Mestrado Roberto Veras - Instituto Gestalt de São Paulo
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Mestrado Roberto Veras - Instituto Gestalt de São Paulo
ROBERTO PERES VERAS ILUMINA-AÇÃO: DIÁLOGOS ENTRE A GESTALT-TERAPIA E O ZEN-BUDISMO MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO – 2005 ROBERTO PERES VERAS ILUMINA-AÇÃO: DIÁLOGOS ENTRE A GESTALT-TERAPIA E O ZEN-BUDISMO Trabalho apresentado à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica sob orientação da Professora Doutora Marília Ancona Lopez. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO – 2005 Banca Examinadora _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ “Para retribuir e agradecer os benefícios recebidos, não precisamos fazer nada de especial. A melhor retribuição é perseverar com simplicidade na prática cotidiana. Este é o Caminho da Verdade”. Rôshi – Mestra Zen (2003) Ao meu pai. AGRADECIMENTOS À Profa. Dra. Marília Ancona lopez, minha orientadora, que com seu acolhimento, sua objetividade e competência possibilitou criar um contorno para minhas idéias iniciais, e o acontecer deste trabalho. Respeitou meu ritmo e estilo pessoal, e me acompanhou de maneira firme e suave. Ao Prof. Dr. Luiz Afredo Lilienthal que, com sua leitura atenta e minuciosa, sua dedicação, e amizade, contribuiu em suas intervenções para precisar aspectos fundamentais para o desenvolvimento do trabalho. Ao Prof. Dr. Gilberto Safra que, com sua poesia e clareza ao transitar entre os universos da psicologia e das religiões, possibilitou-me o encontro com minha religiosidade, importante para minha vida pessoal e profissional e para definir o tema deste trabalho. A minha família, Doralice, Rochelle, Rejiane, Reinaldo, Rosemary, Andrew, Rosana, Pinheiro, Jéssica, Adham, que durante este percurso me incentivaram com seu carinho e estímulo a transpor os obstáculos. Muitas pessoas participaram deste trabalho. Não poderia deixar de registrar meu agradecimento a companheiros muito presentes: A Ana Maria Loffredo que me ajudou a lançar a semente agora desabrochada. A Walquiria Fonseca Duarte, a Rodolfo Argueles. e colegas da Universidade de Santo Amaro, pelo incentivo a me lançar nesta jornada. Aos amigos e colegas do Instituto de Gestalt de São Paulo. À Lais filizolla, amiga de sempre, que me apresentou o Budismo. As minhas amigas, de consultório, Mariângela de Oliveira e Ana Mirabella, que me “suportaram”, nos sentidos conotativo e denotativo, durante a realização deste trabalho. Aos amigos Carlos Padilha, Carlos Evandro, Carlos Brizola, Carlos Alberto, Paulo Fontes, Ulisses Basilio, muito presentes durante este percurso, incentivando e auxiliando-me cada um do seu jeito peculiar. Ás amigas Maria Cecília, Cida Barreto e Rosaly Duprat, que colaboraram e me incentivaram a ir mais além. Edson Gomes que, com sua companhia, interesse e participação muito colaborou na continuidade deste trabalho. Jorge Maalouf, amigo irmão de muitas caminhadas, que me introduziu ao núcleo de práticas clínicas, me incentivou, literalmente me empurrou..., auxiliando desde o nascimento desta idéia, e principalmente me lembrando do estilo próprio de cada trabalho e autor, e me relembrando que o o extrordinário se dá no ordinário. Fernando Genaro Junior, amigo irmão de todas as horas, que com sua generosidade e brilhantismo, foi a mão amiga sempre presente e fundamental nos momentos de “sufoco”. Gabriel Lescovar que com a magia de seu sorriso, a disponibilidade de seu ser e sua energia se fez presente neste trabalho. A Maria Cristina Esteves que desde sua chegada na PUC se mostrou grande amiga e incentivadora, tornando-se uma presença importante no mestrado e nesta dissertação. Às amigas da PUC, Simone, Giovana, Analú, Irene, Cinthia, Michele, Beth Montagna, grandes incentivadoras e com quem constituí um grupo suportivo. Ao Centro de Budismo Tibetano, Ghagdud Gonpa, Odsal-ling, cujo contato possibilitou a retomada de minha trajetória espiritual, e a Lama Tsering que, em nosso primeiro contato criou a conexão para o surgir deste trabalho. Aos meus clientes, alunos e supervionandos, que todos os dias pacientemente me ensinam o que eu ainda não sei. A Zakie Rizkallah, pelo cuidado na revisão do texto. E a todos que co-participaram do meu caminhar e que silenciosamente contribuiram com este trabalho, ainda que não incluidos. Esta dissertação de Mestrado teve o apoio do Conselho Nacional de pesquisa-Cnpq. RESUMO Este trabalho teve como objetivo, por meio da análise de conceitos da Gestalt-Terapia e do Zen-Budismo, estabelecer um diálogo entre esses dois universos tendo em vista contribuir para o desenvolvimento do corpo teórico da Gestalt-Terapia. Como método de investigação utilizou-se o modelo gestáltico através do processo de formação e destruição de figuras (gestalten). Inicialmente delineou-se o ponto de partida ou figura inicial, o interesse de Perls, principal expoente da Gestalt-Terapia, pelo Zen-Budismo. A leitura e análise de suas obras e de sua autobiografia permitiu delinear seu contato com o Zen-Budismo e conseqüentemente sua reverberação na criação da Gestaltterapia. No corpo teórico da Gestalt-Terapia, alguns conceitos estão relacionados ao Zen-Budismo e outros revelam uma grande aproximação, como o fluxo de awareness ou continuum de awareness e a meditação. As concepções de homem da GestaltTerapia e do Zen-Budismo foram investigadas, assim como os conceitos de self, “eu”, o aqui e agora, e a temporalidade assinalando-se suas convergências e divergências. Vinhetas advindas da prática da clínica da Gestalt-Terapia, historietas e mondos do ZenBudismo contribuíram para a compreensão dos conceitos desenvolvidos no presente trabalho. O diálogo estabelecido permitiu identificar os principais eixos de articulação entre a Gestalt-Terapia e o Zen-Budismo assim como as diferenças fundamentais que distinguem suas identidades. ABSTRACT The main purpose of this study is to establish the relationship between Gestalt-Therapy and Zen-Buddhism universes, based on a conceptual analysis for contributing to Gestalt-Therapy theoretical development. Gestalt model has been adopted as investigation methodology using the creation and destruction figures (gestalten). Initially it was determined Perls as the start up reference or initial figure, due to his interest in Zen-Buddhism. The analysis of his collected works and auto-biography has defined his contact with Buddhism and, as consequence, its reverberation in GestaltTherapy creation. Within Gestalt-Therapy theoretical content, some concepts are related to Zen and others illustrate a close interaction, as the awareness flow/continuum awareness and meditation. Both Gestalt-Therapy and Zen-Buddhism have been investigated on the human being conceptual analysis perspective, as well as “self”, ‘I’, ‘here and now’, temporality, addressing their similarities and differences. Situations captured from Gestalt-Therapy clinical practice, stories and Zen-Buddhism ‘mondos’ have contributed for the understanding of concepts presented in this study. This relationship establishment has allowed the identification of main articulation structures between Gestalt-Therapy and Zen-Buddhism, pointing out the fundamental topics that differentiate their identities. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 1 CAPÍTULO I: O PERCURSO DE FRITZ PERLS: A CRIAÇÃO DA GESTALT-TERAPIA E O ZEN-BUDISMO .................................... 10 CAPÍTULO II: AWARENESS E MEDITAÇÃO .......................................................... 42 2.1 2.2 2.3 Awareness ........................................................................................... 42 Meditação ........................................................................................... 47 Aproximações e distanciamentos ....................................................... 51 CAPÍTULO III: AWARENESS E ILUMINAÇAO ........................................................ 61 3.1 3.2 3.3 Awareness ........................................................................................... 61 Iluminação ou satori ........................................................................... 76 Aproximações e distanciamentos ....................................................... 84 CAPÍTULO IV: O SELF E O “EU”............................................................................... 93 4.1 4.2 4.3 O self para a GT.................................................................................. 93 O “eu” no Zen-Budismo ................................................................... 105 Aproximações e distanciamentos ..................................................... 113 CAPÍTULO V: O AQUI E AGORA E A TEMPORALIDADE ................................. 120 5.1 5.2 5.3 O aqui e agora na GT....................................................................... 120 O aqui e agora no Zen-Budismo ...................................................... 127 Aproximações e distanciamentos ..................................................... 132 CONCLUSÕES .......................................................................................................... 139 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 153 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS …………………………………………. ….. 158 1 INTRODUÇÃO “Grande é a Mente! A altura do Céu é imensurável, mas a Mente vai além dele; as profundezas da terra terra são também insondáveis, mas a Mente as sobrepassa. A velocidade da luz não pode ser vencida, mas a Mente é mais veloz que ela. O macrocosmo é infinito, mas a Mente vai além dele. Como é imenso o Espaço! Como é imensa a Energia Primordial! Apesar disso, a Mente abrange o Espaço e gera a Energia Primária. Por causa dela (a Mente) o Céu cobre e a Terra sustenta. Por causa dela o Sol e a Lua se movem, as quatro estações ocorrem em sucessão e todas as coisas são geradas. Grande, na verdade, é a Mente!” Eisai (in Suzuki, 2002) A Gestalt-terapia 1 é uma abordagem fenomenológico-existencial que preconiza a singularidade do ser humano, sua consciência, responsabilidade, liberdade e sua alteridade, bem como sua capacidade relacional, uma vez que o ser humano é sempre um ser no mundo. A GT enfatiza o potencial criativo e realizador do indivíduo na direção de criar e estar constantemente construindo e reconstruindo a sua própria existência. Em GT, o ser humano está sempre aberto a possibilidades de um constante vir-a-ser. É uma abordagem que acredita no homem como sujeito de sua própria existência e que parte de um conceito dinâmico, uma vez que o homem não é, mas está sempre sendo (Ginger e Ginger, 1995). Neste sentido, o homem é um ser numa 1 No decorrer do texto utilizarei a abreviatura GT para me referir à Gestalt-Terapia. 2 realidade que não é estática, estanque ou substancializada mas sim constitui-se no processo mesmo, em constante mutação, o que exige a atualização do seu potencial criador e adaptativo para conseguir lidar com todas as exigências que a vida impõe. Acrescentemos aqui a concepção dialética, pois o homem estará o tempo todo transformando o mundo e sendo transformado por ele (Ribeiro, 1985). Acreditamos como parte fundante da condição humana a possibilidade de tornar-se o que se é, ou seja, conseguir ao longo do processo de desenvolvimento instalar-se no mundo, administrar e integrar sentimentos, sensações, pensamentos, sonhos e projetos de uma forma harmônica. O que permitiria lidar com os ritmos da vida, seus riscos, suas perdas, seus ganhos, suas incertezas e sua provisoriedade, conseguindo assim criar um sentido para sua existência, em outras palavras, humanizarse (Unger, 1991). Como Gestalt-terapeuta sempre me interessei pelo estudo da fenomenologia e do existencialismo, bases de fundamentação da GT. Em 1998, como aluno ouvinte das aulas do Prof.. Dr. Gilberto Safra, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Catolica PUC de São Paulo, comecei a me interessar pelas aproximações entre Psicologia e Religião, desenvolvidas no núcleo de Práticas Clínicas. As discussões destas aulas, aliadas a uma antiga curiosidade, despertaram em mim um interesse pelo Budismo que também influenciou a GT como uma das chamadas teorias de fundo (Ribeiro, 1985). Durante minha especialização em GT no Instituto Sedes Sapientiae, estudei todas as correntes que influenciaram essa abordagem. Entretanto, a influência do Budismo na GT, embora citada, nunca foi aprofundada, ausência que marcou meu 3 interesse por este tema. Em minha vida particular, ao me aproximar do Budismo, sinto que fui tomado por uma espécie de encantamento e perplexidade, à medida que fui me deparando com sua “suavidade, seu colorido harmônico”, a densidade de seus ensinamentos, sua ênfase na compaixão e tolerância, e uma infindável lista de outros aspectos. O ponto que mais me tocou no seu conhecimento e linguagem foi a aproximação que eu observava com a prática clínica, principalmente, com a GT, que vinha estudando desde minha especialização. Com relação ao início de minha aproximação pessoal ao Budismo, percebo que esta se deu muito cedo em minha vida, e de alguma forma deixou uma semente à espera de condições favoráveis para o seu germinar. Ainda em minha infância, meu pai tinha um certo interesse pelo tema, que aparecia em algumas conversas familiares e também em alguns livros que circulavam pela casa e passavam pelas minhas mãos. Contudo, durante aquele período, este contato foi apenas ocasional, uma vez que acabei trilhando outros caminhos religiosos e posteriormente me distanciei de qualquer religião, por um tempo significativo. Na aproximação com o Budismo, além das aulas do Prof. Gilberto Safra, que funcionaram como um aval para que eu voltasse a trilhar um caminho espiritual e reaproximasse os horizontes da psicologia e da religião, outras vivências também foram significativas, entre elas a amizade com pessoas profundamente religiosas que me mantiveram em contato com o tema, mesmo quando me distanciei da prática religiosa. Um outro aspecto importante foi também a presença marcante de amigos budistas ou simpatizantes a esta filosofia que, com seu modo de ser e suas peculiaridades, de 4 alguma forma colaboraram para a fertilização daquela semente que carregava há muito tempo. O aprofundamento nos ensinamentos do Budismo, além de promover um enriquecimento pessoal e espiritual, começou também a enriquecer minha prática clínica. Com muita freqüência, parte destes conteúdos já eram conhecidos, no entanto, ressurgiam com um imenso vigor, tanto no âmbito pessoal como no profissional. Os ensinamentos apresentados em muitos momentos revelavam não só aspectos e idéias já conhecidos, e que até então eu não havia compreendido com tamanha clareza, como também conteúdos novos que de alguma forma já me habitavam, sem que eu mesmo soubesse, e dos quais pude, então, me apropriar. No contato com o Budismo, muitas questões foram emergindo como figuras, revelando possibilidades de aproximação com a GT com as quais até então não tinha me deparado. Foi esta surpresa e perplexidade com a possibilidade de intersecção que criou o desejo de investigar um pouco mais estes aspectos. Boris,2 tradutor para o português do primeiro livro de Perls, Ego, Fome e Agressão, comenta em sua apresentação para a edição brasileira que Perls: [...]abriu muitas trilhas: algumas ele desenvolveu por meio de livros e práticas posteriores; outras apenas esboçou o caminho, sem percorrê-lo; outras mais foram abandonadas ou rejeitadas ao longo do percurso; finalmente, algumas trilhas não foram nem mesmo tocadas. Este é um trabalho que, hoje, compete a nós: retomar, rever, modificar, 2 Ego, Fome e Agressão foi o primeiro livro de Perls, lançado em 1942, a princípio como uma contribuição ao método psicanalítico e posteriormente reconhecido como o livro embrionário da GT. Sua tradução para o português só ocorreu em 2002. 5 acrescentar, criar e desenvolver as trilhas do criador da Gestalt-Terapia. (Boris in Perls, 2002, p. 28). Pretendo nesta dissertação desenvolver um diálogo entre a GT e o ZenBudismo 3 , buscando uma aproximação entre conceitos destas duas práticas. Na biografia de Perls e na sua busca de inspiração na filosofia oriental, encontramos a relevância histórica que justifica esta exploração. Através deste diálogo acredito ser possível criar pontes que aproximem estas duas áreas do conhecimento humano, pontes que possibilitem interligar territórios, criar uma interação e troca de conhecimentos, enfim uma possibilidade de encontro. Sabemos que, após uma viagem, nunca retornamos os mesmos, algo desta experiência permanecerá conosco e nos fará diferentes modificando nosso cotidiano. Este trabalho nasce de uma dupla vertente, de um lado, o desejo de estabelecer um diálogo, uma investigação das aproximações e dos distanciamentos entre o Zen- Budismo e a GT; de outro lado, uma busca pessoal que possibilitou uma reaproximação com a minha religiosidade, abalada durante a graduação em Psicologia, com todos os questionamentos que esta formação costuma gerar. A literatura científica levantada oferece poucos trabalhos realizados em relação à GT e o Budismo ou Zen-Budismo, o que reforça a oportunidade deste estudo. Dos trabalhos encontrados a maioria trata de estudos sobre a importância da meditação como recurso terapêutico. O trabalho mais significativo encontrado realiza uma comparação entre os conceitos de awareness da GT e do Zen-Budismo, segundo 3 Quando o Budismo chegou à China ele assimilou parte significativa das idéias e conceitos taoístas, nascendo assim o Budismo Ch’an que posteriormente chegou ao Japão dando origem ao Zen-Budismo. 6 Page e Chang (1989) na qual os autores contrastam as descrições da awareness no Zen e na GT. O artigo conclui que o conceito de awareness no Zen parece incluir uma dimensão mais ampla da experiência humana que a visão da GT. Nos Estados Unidos, Machovec (1984) refere que podemos encontrar em várias teorias e técnicas atuais um resíduo dos princípios básicos e de práticas já presentes nas religiões e filosofias orientais. Neste artigo são apresentadas idéias do Taoísmo, Confucionismo, Yoga e Budismo que aparecem em terapias individuais, de grupo e de família, em várias abordagens como, por exemplo, a abordagem existencial, a psicanálise, a análise transacional, a cognitivo-comportamental e a Gestalt. Historicamente, a GT foi criada por Fritz Perls, (Frederick Salomon) e sua mulher Laura Perls, ou segundo outros teóricos, pelo chamado “grupo dos sete”, o casal e um grupo de colaboradores. No entanto, a figura de maior destaque e à qual é associada a abordagem é mesmo Fritz Perls. A fim de atingir o objetivo desta pesquisa retomarei a trajetória de Perls e seu contato com o Zen-Budismo, sem desenvolver uma ampla investigação da vida e obra de Perls, uma vez que alguns autores já o fizeram como Loffredo, (l994); Ginger e Ginger, (1995); Kiyan, (2001). Considero, no entanto, ser de grande importância acompanhar sua trajetória de médico neuropsiquiatra, psicanalista a criador da GT através das experiências, encontros, desencontros e influências que colaboraram com o surgimento da abordagem. A leitura e análise da trajetória de Perls através de suas obras, de sua biografia e de sua autobiografia permitiram delinear e assinalar seu contato com o Budismo e o Zen-Budismo e com autores que lançaram mão deste referencial e, conseqüentemente, sua reverberação na GT. Possibilitaram também destacar alguns 7 conceitos da GT nos quais foi possível reconhecer a influência do Zen, como o conceito de vazio fértil, ponto zero, a noção de totalidade e polaridades, e o próprio processo de formação figura/fundo como o fluxo natural do existir humano. Neles, reconheci a proximidade com as noções Zen de totalidade e processo, entre outras. Desde o início observei uma aproximação entre as noções de awareness e meditação, nascendo assim o interesse em investigar melhor estes dois conceitos. Por essa razão, iniciei este trabalho com o estudo e detalhamento desses conceitos. Busquei nas obras de Perls e em outros autores o mapeamento e desenvolvimento do conceito de awareness a fim de deixá-lo mais claro e procurei especificar tudo o que o termo awareness, que não tem equivalente na língua portuguesa, carrega como significado. Segui o mesmo caminho ao discutir a meditação. Dada a variedade de técnicas de meditação existentes, considerei importante descrever a técnica de meditação Zen-budista. Esta descrição mostrou-se muito útil por possibilitar o estabelecimento de um paralelo com o continuum de awareness utilizado na GT. Ao tratar da meditação Zen, explicitei também a inclusão da possibilidade de viver o próprio cotidiano como uma prática meditativa. Desenvolvidos esses dois conceitos foi possível clarear a aproximação que eu já vislumbrava. Também foi possível mostrar como eles se aproximam na sua prática e como se encontram em alguns objetivos comuns. Para elucidar estas aproximações lancei mão de vinhetas clínicas e de historietas Zen-budistas. À medida que as aproximações ficavam mais nítidas eu pude perceber que as diferenças se situam no modo como estes conceitos estão inseridos em cada um dos universos, ou seja, como 8 eles se posicionam na GT e no Zen. A awareness na GT é meio e, ao mesmo tempo, é fim. A meditação no Zen é meio, mas não é fim. A percepção de que a awareness é meio e ao mesmo tempo fim, levoume a indagar qual o fim a que a meditação se propõe. A iluminação como objetivo final deixou mais claras as diferenças entre estes dois conceitos, que se mostraram fundamentais e constituíram um novo ponto de discussão. A reflexão da awareness como o fim na psicoterapia levou-me a investigar a visão de homem da GT, as noções de doença e cura e, como desdobramentos, a noção de contato e ajustamento criativo. A reflexão sobre a iluminação seguiu outro caminho. Inicialmente precisei destacar os horizontes do pensamento oriental no qual se formou este conceito, naquilo que ele se diferencia do pensamento ocidental. Eles exigem ultrapassar a lógica formal, o reconhecimento da existência como um viver paradoxal e propõem uma ampliação dos conceitos de tempo e espaço ao mesmo tempo em que apresentam a compreensão do tempo como um eterno aqui e agora. No decorrer desta reflexão, o aqui e agora foi se apresentando como um vértice importante na continuidade do diálogo. A aproximação entre awareness e iluminação se deu por meio das respectivas visões de homem do Zen e da GT, mostrando diferenças tanto nos conceitos de “eu” quanto nos de self. Pela investigação destes conceitos, o modo e a direção como são apresentados na GT e no Budismo apareceram como diferença fundamental entre os dois universos, com reflexos nas distâncias existentes entre os demais conceitos. Foi possível observar que, enquanto a GT opera nos aspectos psicológicos, o Zen atravessa 9 estes aspectos, sem lhes atribuir maior ênfase, indo direto para os aspectos ontológicos. O Zen se ocupa dos aspectos psicológicos apenas como um meio para desobstruir o caminho de acesso à dimensão ontológica. Dessa forma, o Zen se apresenta novamente paradoxal: ao mesmo tempo que usa os aspectos psicológicos para a transformação da mente, ele os descarta, propondo um salto direto ao ontológico. O conjunto destas reflexões mostrou a importância de analisar o aqui e agora para o Zen e para a GT. Essa investigação considera o aqui e agora não apenas do ponto de vista conceitual mas como registro de um modo de estar no mundo, que se refletiu na vida e obra de Perls, e que tem repercussões na prática da psicoterapia. As conclusões deste diálogo permitiram apresentar algumas das principais aproximações entre a GT e o Zen, assim como evidenciar os pontos que marcam suas diferenças, mantendo as suas identidades distintas. Não passei incólume por este exercício de diálogo entre a minha pessoa, a GT e o Zen. Ele se mostrou transformador e senti seus efeitos tanto no âmbito pessoal como no profissional. Como conseqüência, pude repensar as interfaces entre a psicologia e a religião, e os seus atravessamentos na prática clínica psicológica enfatizando o cuidado que se deve ter ao lidar com estes dois universos. 10 CAPÍTULO I: O PERCURSO DE FRITZ PERLS: A CRIAÇÃO DA GESTALT-TERAPIA E O ZEN-BUDISMO Mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas – nunca o ato de entrega se fará. Tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho que abrange a compreensão e sobre tudo a incompreensão. E quem sou eu para ousar pensar? Devo é entregar-me. Como se faz? Sei porém que só andando é que se sabe andar e – milagre – se anda. Clarice Lispector (1980) Perls nasceu na Alemanha em l893, filho de uma família judia, formou-se em medicina. Em 1916, participou da 1ª Guerra Mundial na Bélgica, onde foi ferido e repatriado. Como judeu, também foi perseguido por seus colegas alemães. Durante muitos anos carregou as marcas das situações traumatizantes vividas na guerra. Doutorou-se em neuropsiquiatria em 1920. Desde a adolescência, desenvolveu um gosto pelo teatro, interesse que conservou em sua vida, freqüentou os cafés esquerdistas de Berlim onde encontrava filósofos, poetas e artistas anarquistas da chamada “contracultura”. Em 1923, partiu para Nova York com esperança de validar seu diploma de medicina e estabelecer-se no país (Ginger e Ginger, l995). No entanto, teve dificuldades com a língua e com o ritmo excessivamente competitivo da sociedade americana. Desistiu do seu sonho e retornou à Alemanha decepcionado com a cultura americana que por toda a sua vida não deixou de criticar. 11 Foi durante este período que Perls encontrou o filósofo expressionista Salomon Friedläender, autor de A Indiferença Criadora (Ginger e Ginger, l995) ou A Indiferença Criativa (Loffredo, l994), um ensaio que visava superar o dualismo kantiano e apresentava o conceito de estado indiferenciado ou ponto zero. Para Friedläender todos os eventos estariam relacionados a um ponto zero a partir do qual acontece uma diferenciação em opostos. Portanto, é a partir deste estado indiferenciado que podemos pensar por opostos; através de uma perspectiva paradoxal poderemos desenvolver o pensamento diferencial. É importante ressaltar que estes opostos apresentarão uma grande afinidade entre si, uma vez que são dimensões de um mesmo fenômeno. Permanecendo no centro ou no ponto zero, que não necessariamente é um zero absoluto, mas um ponto de equilíbrio, poderemos desenvolver uma capacidade criativa para observar ambos os lados de um mesmo campo, evitando uma visão unilateral, com a possibilidade de completar uma metade incompleta e assim uma compreensão muito mais abrangente da situação. A indiferença criativa não representa desinteresse, ao contrário, ela é plena de interesse em ambas as direções das diferenciações (Perls, 2002). O Zen-Budismo e o Budismo chamam este estado de vacuidade ou vazio4, difícil de captar, e consagram a ele vários escritos. Em sua autobiografia Escarafunchando Fritz Dentro e Fora da Lata de Lixo, Perls (1979) revela que Friedläender foi um dos gurus em sua vida e com ele aprendeu “[...] o significado do equilíbrio, do centro zero, dos oposto [...], meu primeiro encontro filosófico com o nada foi o nada em forma de zero. Descobri-o sob o nome de indiferença criativa”. (Perls, 1979, p. 89) 4 Vacuidade ou vazio, sunyata em sânscrito: O vazio de todos os seres separados. Na vida, o único princípio permanente é a natureza búdica, que se manifesta em formas separadas. Essas formas não têm permanência ou realidade como formas, somente como “natureza búdica”. Por essa razão, a filosofia Mahayana declara que elas são vazias. 12 O conceito de indiferença criativa posteriormente foi amplamente desenvolvido em seu primeiro livro Ego, Fome e Agressão, de 1942. Comentando a respeito deste conceito, Perls relata que Friedläender: [...] trouxe um modo simples de orientação primária. Qualquer coisa se diferencia em opostos. Se somos capturados por uma dessas forças opostas, estamos numa cilada, ou pelo menos, desequilibrados. Se ficamos no nada do centro zero, estamos equilibrados e temos perspectivas. (Perls, 1979, p. 96). Só mais tarde Perls percebeu que este é o equivalente ocidental do ensinamento taoísta de Lao Tse. Sintetizando, poderíamos dizer que para Lao Tse e o Taoísmo a realidade é sempre formada por opostos, pólos opostos que não se excluem, ao contrário, eles se compõem reciprocamente, constituindo uma harmonia equilibrada e ativa, e ao mesmo tempo se condicionam e se limitam. Desta forma estaríamos longe de uma visão unilateral, mas sim uma visão completa da experiência. Uma visão dialética ou dialógica, poderíamos assim dizer: Se o mundo concorda sobre a beleza, é porque existe a feiúra. Se todos concordam sobre o bem, é porque existe o mal. O “ser” e o “não ser” nascem um do outro; o difícil e o fácil são complementares; o longo e o curto nascem por comparação; o alto e o baixo são interdependentes; 13 o som e o silêncio estão em mútua harmonia; o anterior e o posterior são correlativos. É por isso que o Sábio entrega-se ao não-agir, e ensina silenciosamente. As coisas inumeráveis são feitas sem a menor palavra. A natureza dá nascimento mas nada possui. Ela age, mas não exige nenhuma submissão. Ela tem mérito mas não reclama. O fato de que ela nada pretende a torna indispensável. (Tse, 2001, p.26-27). Para Lao Tse (2001), o sábio é aquele que busca conhecer e viver de acordo com o Tao, aqui compreendido como o mistério que escapa a qualquer investigação lógica discursiva e que, portanto, só pode ser atingível pela intuição mística, o Uno, o eterno, o absoluto, o todo, que reune ao mesmo tempo o Yin e o Yang, a luz e a treva, o masculino e o feminino, o positivo e o negativo e todos os demais opostos. Aquele que coloca em harmonia seu modo de ser e agir, age não pelo seu “eu” mas sim deixa que o Tao aja nele e por meio dele, sem que seu pequeno “eu” interfira. Para Loffredo (1994), foi por concepções de Friedläender, como o pensamento diferencial que permite pensar por opostos, que Perls pôde estabelecer um elo entre a Psicologia da Gestalt, com suas noções de figura-fundo e a filosofia ZenBudista. Posteriormente estes conceitos formarão um todo coeso, unificado, que estará presente em conceitos centrais da GT. A fluidez figura e fundo, e Gestalt emergente, por exemplo, são noções que encontram similaridades no pensamento oriental, segundo o qual no universo assim como na vida tudo é fluir, sendo este o curso natural das 14 “coisas”, em outras palavras, um eterno processo de formação e destruição de figuras. Também o conceito de vazio fértil, um vazio fecundo de possibilidades e criatividade constantemente utilizado por Perls, surge desta ligação entre as concepções do Zen e de Friedläender. Podemos perceber que este contato de Perls com Friedläender foi extremamente rico e fecundo, e serão estes conhecimentos que em um futuro próximo propiciarão a Perls a aproximação e interlocução com os conhecimentos do pensamento oriental e que permitirão o elo de ligação destas duas vertentes com a Psicologia da Gestalt, colaborando para o surgimento de alguns conceitos importantes da GT. Ao comentar o interesse de Perls pelo Zen-Budismo, Tellegen (1984) assinala que, desde o inicio de seu trabalho, Perls começou a interessar-se por este tema do qual nunca se afastou, embora mantivesse uma certa reserva a respeito. Relata que no livro Ego, Fome e Agressão podemos observar esta influência: [...] ele apresenta o círculo taoísta do yin e yang para ilustrar e esclarecer seu pensamento. A insistência em diminuir a atividade e acalmar o pensar agitado, para deixar emergir a forma e o ritmo mais fundamental da experiência presente, tem semelhança com o esvaziar da mente procurado na meditação oriental. O paradoxo, tão presente no pensamento oriental, permeia a linguagem de Perls: mudar-se é tornarse o que já é; o árido é fértil; não tentar dominar uma dor pela supressão, mas acompanhá-la atentamente, é um meio para não ser dominado por ela; permanecendo no vazio, se encontra o pleno; o momento do caos prenuncia uma nova ordenação desde que não se tente impor ordem. (Tellegen, 1984, p. 42). 15 Acrescenta também que com freqüência ele usava a palavra satori, que significa iluminação, para descrever descobertas súbitas e intensas que na Psicologia da Gestalt são chamadas insight, o vislumbrar repentino de uma nova configuração e relação de sentidos, só então percebidos. Segundo Ribeiro (1985), Perls sofreu a influência de várias teorias e, como um profundo conhecedor do ser humano, foi buscar em vários lugares os conhecimentos necessários para esta compreensão do homem, envolvendo-se pessoalmente com alguns movimentos terapêuticos e também com a filosofia oriental, o Taoísmo e o Zen-Budismo. Incorporou à GT o que encontrou de positivo e útil em sua busca para a compreensão do homem e do mundo. Para ele, é este movimento de Perls que nos permite definir a GT como uma Gestalt do homem, uma arte e uma filosofia de vida. Relata que o sentido de abertura, de fuga do domínio do pensamento, o abandono de si próprio, à volta ao corpo e às emoções, a fuga dos rituais, da não espera programada e do deixar acontecer são influências nítidas do Zen e do Taoísmo que transmitiram à GT um modo de estar na realidade e a ela responder. Retomando a trajetória de Perls, é interessante perceber seu fascínio pelos movimentos de contracultura. Assim como esteve ligado ao chamado movimento anarquista dos anos vinte na Alemanha, durante toda sua vida Perls sempre manteve um fascínio pelos marginalizados e constantemente freqüentava grupos anarquistas: em Nova York, com Paul Goodmam e o Living Theater; em Israel, as comunidades de pintores beatniks; na Califórnia, o movimento de contracultura hippie. Foi em 1926 que Perls, motivado por uma série de inquietações e frustrações, decidiu começar uma psicanálise com Karen Horney e logo foi conquistado 16 por esta nova prática, decidindo tornar-se psicanalista. Neste período, muda-se para Frankfurt, começa a trabalhar como assistente de Kurt Goldstein, 5 encontra Lore (Laura) Posner, também assistente de Goldstein, psicanalista, e que no futuro se tornaria sua mulher e grande colaboradora na edificação da GT. O trabalho com Goldstein foi significativo para Perls e para a GT. De Goldstein vem a noção de organismo, uma concepção que não admite a dicotomia corpo-mente, que Perls muito bem assimilou e estruturou como um dos vértices centrais da GT. A auto-regulação do organismo é outro aspecto proposto por Goldstein. Após o nascimento, o ser humano inicia seu processo de aprendizado o que lhe propicia realizar o movimento contínuo de se auto-regular por meio da apropriação dos conhecimentos de si mesmo e do mundo. O organismo busca constantemente seu equilíbrio, movimento compreendido como sinônimo de saúde, uma compreensão dinâmica e não estática. Para este autor a auto-regulação é o único fio condutor do organismo (Lilienthal, 2004). A concepção de auto-regulação também está presente na GT e seu desdobramento possibilitou o conceito de ajustamento criativo. Em 1927, após continuar sua análise com uma segunda analista, Clara Happel, foi para Viena e instalou-se como psicanalista recebendo seus primeiros clientes, sob orientação de Hélène Deutsch. Em 1928, novamente em Berlim, passa por mais duas análises, uma delas com Reich6, com quem viveu um encontro decisivo para sua vida e também para a GT. 5 Kurt Goldstein: autor da teoria organísmica, uma das escolas que também influenciaram a GT, pesquisava os distúrbios perceptivos em pacientes com problemas cerebrais, a partir de trabalhos da Psicologia da Gestalt. Autor do livro The Organism. 6 Wilhelm Reich, autor de A função do orgasmo e da Análise do caráter entre outros, foi aceito aos 23 anos na Sociedade Psicanalítica de Viena. Como psicanalista começou a interessar-se mais pelo presente do que pelas “escavações arqueológicas” da primeira infância. Desenvolveu uma análise mais ativa, 17 Nesta análise sentiu-se finalmente compreendido e energizado, tecendo uma grande admiração por Reich (Ginger e Ginger, 1995). Segundo Loffredo (1994), o fato de Perls, além de ser cliente de Reich, também ter participado de seus seminários clínicos, reforçam a influência deste em sua pessoa e em sua obra. Comenta que o fato de Goodman, o grande expoente teórico da GT, também ter sido cliente de Reich em outro momento, intensificou ainda mais esta influência na construção teórica da abordagem. A autora menciona que na primeira edição do livro Gestalt-Terapia, Perls, Hefferline e Goodman fazem uma dedicatória do livro à Reich. Considera essencial na contribuição de Reich para a GT [...] A descoberta e identificação de tensões musculares e formação de caráter. Ou seja, conceber as resistências psíquicas em termos de ‘couraça muscular’ e, portanto, identificando-as enquanto manifestação corporal. A marca decisiva de Reich foi enfatizar que a dinâmica do conflito é melhor apreendida através da maneira do paciente comunicarse, do que através do conteúdo apresentado. (Loffredo, 1994, p. 40). Podemos dizer,que para Reich, o “corpo” passou a fazer parte direta do trabalho terapêutico, na medida em que a observação do corpo, seus gestos, postura, tom de voz, poderiam nas contrações musculares revelar ansiedade, fruto das repressões. A concepção do contato entre terapeuta e cliente, ou seja, a própria relação terapêutica também ganhou uma nova compreensão em relação à psicanálise clássica. A buscando descobrir os processos de cura, tocando o corpo de seus pacientes, despertando atenção para as tensões de sua “couraça do caráter”, abordando de uma maneira mais direta a agressividade, a sexualidade e a política. Foi excluído da Sociedade de Psicanálise em 1933 passando então a desenvolver sua própria teoria: a orgonoterapia. (Ginger e Ginger, 1995) 18 noção de resistência, por sua vez, passou a ser concebida como funções organísmicas totais. Todos estes aspectos estão presentes na compreensão teórica e na prática da GT (Loffredo, l994). O conceito de retroflexão7, segundo Tellegen (1984), foi introduzido por Perls para designar situações de retenção de impulsos por contração muscular na direção oposta à desejada. A couraça muscular dentro desta perspectiva pode ser compreendida como um estado crônico de retroflexão. Contudo assinala que Perls preferia uma linguagem que indicasse processos e funções, não utilizando o termo couraça muscular. Com o crescimento do movimento nazista na Alemanha, Perls deixa a Europa, muda-se para a África do Sul em 1934, estabelece-se como psicanalista e cria o instituto de formação The South African Institute for Psychoanalysis, vivendo neste país por mais de dez anos. Este período para muitos autores é a fase embrionária da GT. Em 1936 aconteceu o Congresso Internacional de Psicanálise de Praga e um frustrante encontro com Freud, na verdade um grande desencontro, desencadeou uma grave crise profissional e pessoal. Perls inicia seu rompimento com a psicanálise e assim posteriormente nasce a GT. Sabemos que o início do interesse de Perls pelo Zen-Budismo aconteceu na África do Sul, segundo Loffredo (1994) e conforme o próprio Perls (1979). Para Figueiroa (1996), seu interesse foi muito mais do que uma simples curiosidade, o que levantaria a hipótese de que sua busca pelo Zen naquele momento estava mais ligada à necessidade de novos pontos de apoio em virtude; da profunda crise existencial vivida e 7 Retroflexão: Um dos conceitos da GT, com relação às distorções de contato. Descreve uma situação em que a energia mobilizada para uma ação externa volta contra si mesma. “Fazer a si aquilo que gostaria de fazer aos outros. (Ginger e Ginger, 1995, p. 137) 19 desencadeada pelas frustrações profissionais do congresso de Praga8, e do encontro com Freud. O próprio Perls relata: Depois de 1936, procurei me reorientar. As malditas e contidas dúvidas sobre o sistema freudiano se espalharam e me envolveram todo. Torneime um cético, quase um niilista – um negador de tudo. Budismo – Zen – uma religião sem Deus? É verdade, na época eu aceitava muita coisa do Zen, de um modo frio, intelectual. (Perls, 1979, p. 78). Toda esta decepção, juntamente com suas dúvidas e a busca da superação das mesmas, possibilitaram a publicação do livro Ego, Fome e Agressão, no qual podemos perceber o esboço de várias idéias que mais tarde desembocariam no nascimento da GT. É interessante observar que em sua primeira edição a obra aparece com o sub-título Uma revisão da teoria e do método de Freud, o que, com o decorrer do tempo, se revelaria como o início da ruptura com a psicanálise. Neste livro, já podemos perceber suas idéias, como a importância do momento presente, a importância do corpo no processo psicoterapêutico, a contestação da neurose de transferência, a importância do contato direto e autêntico entre paciente e analista, uma abordagem holística do homem com o meio ambiente, uma abordagem mais sintética que analítica, a ênfase na introjeção, na projeção e nas emoções incompletas, terminando com a proposta de uma terapia da concentração. Nela lança mão de técnicas de visualização, utilização da primeira pessoa do singular, ênfase na 8 No Congresso Internacional de Psicanálise de Praga, Perls também se decepcionou com Reich, seu antigo analista que o recebeu de forma fria, e com a comunidade de psicanálise, que acolheu de forma glacial seu trabalho e suas idéias sobre a importância das resistências orais. (Ginger e Ginger, 1995) 20 responsabilidade pelos sentimentos e concentração no corpo, nas sensações e nas evitações. Podemos perceber que ele estava questionando os conceitos essenciais da psicanálise dos anos 30: o inconsciente, o primado da sexualidade e a neurose de transferência como a mola mestra do tratamento analítico. No livro, podemos também perceber que Perls ampliou suas idéias iniciais, incorporou elementos de suas experiências com Reich, da Psicologia da Gestalt, da Teoria Organísmica e do Holismo, seus conhecimentos sobre o Pensamento Existencial e as inspirações advindas da Filosofia Oriental. Observamos um autor flexibilizado, mostrando-se mais aberto e experimental. Durante este período se deu a primeira fase do contato de Perls com o Zen-Budismo, de fato uma aproximação aparentemente não tão significativa, movida muito mais por uma curiosidade ou busca de um certo suporte para o enfrentamento de uma situação de crise, uma vez que o próprio Perls reconhece que quem verdadeiramente o apresentou ao Zen foi Paul Weisz. Pautado por uma curiosidade ou muito mais por uma necessidade existencial ou mesmo espiritual, não sabemos precisar, o importante é reconhecer que este contato inicial foi significativo por ter possibilitado inspirações para seu primeiro livro e, mais do que isto, deixou uma semente em solo fecundo. No final dos anos quarenta, início dos anos cinqüenta do século passado, Perls voltará a se interessar pelo tema. De 1942 a 1945, Perls novamente esteve na guerra, desta vez como voluntário, lutando ao lado do exército inglês contra os alemães. De volta a Johannesburgo, como oficial médico, enfrentou novas dificuldades: a crise social causada pelo pós-guerra; o fascismo sul-africano que avançava anunciando o apartheid; 21 dificuldades no seu relacionamento com Laura. Estes aspectos fomentaram o desejo de sair do continente em direção aos EUA. Nos Estados Unidos, com a ajuda de Erich Fromm e Clara Thompson, ele, a princípio sozinho e depois com Laura reiniciaram a vida profissional ainda como psicanalistas, porém, em pouco tempo, abandonariam definitivamente o divã, buscando uma relação mais abertamente afetiva e totalmente centrada no contato e no aqui e agora. Em 1951, nascia de fato a GT com o livro Gestalt-Terapia9 de autoria de Perls, Hefferline e Goodman. O livro foi criado de uma forma pouco usual. Perls apresentava suas idéias e princípios de uma maneira desordenada para Goodman que desenvolveu e alinhavou essas idéias, escrevendo a segunda metade do livro. Hefferline estruturou a primeira parte que relatava uma série de experimentos de crescimento aplicados a uma turma de estudantes universitários. Com relação ao nascimento da GT, ou mesmo a sua paternidade, é referida por alguns autores como fruto do chamado “grupo dos sete”: Paul Goodman, escritor e ensaísta anarquista que começou a fazer terapia, iniciando depois sua formação como terapeuta com Laura Perls; Elliot Shapiro, respeitado professor e diretor de escolas em Nova York; Paul Weisz, médico, que apresentou o pensamento oriental e o Zen-Budismo a Perls; Isadore From, terapeuta fenomenólogo e grande colaborador na edificação da GT; Ralf Hefferline, professor universitário; posteriormente Jim Sinkim. 9 Do original em lingua inglesa GESTALT THERAPY: Excitement and Growth in the Human Personality Copyright by Frederick Perls, M.D., Ph.D.; Ralph Hefferline, Ph.D; Paul Goodman, Ph.D. by Julian Press, 1951. 22 Este grupo articulado por Laura e Perls, em 1950, dedicou-se por meio de encontros semanais ao estudo mais sistematizado das idéias e pressupostos de Perls, fruto de sua trajetória pessoal e profissional. Em 1952, um ano após o lançamento do livro, Gestalt-Terapia, Perls e Laura fundaram o Instituto Gestáltico de Nova York (The Gestalt Institute of New York). Pouco tempo após sua criação, Perls entregaria a direção do Instituto a Laura, Paul Goodman e Paul Weisz (Ginger e Ginger, 1995). Retomando o fio condutor do pensamento oriental, foi durante este período de ebulição e surgimento da GT que Weisz, um dos colaboradores do grupo dos sete, introduziu Perls ao pensamento oriental. Weisz tornou-se muito amigo de Perls, uma das poucas pessoas que Perls conseguia escutar e acatar. Em sua autobiografia, Perls descreve a importância de sua amizade, mencionando que, diante das afirmações de Weisz, mesmo as aparentemente mais absurdas, ele costumava guardá-las, deixandoas amadurecer, e constatava tempos depois que em sua maioria elas davam frutos. Weisz trabalhava com pacientes com câncer e, além de envolver-se com a GT, tinha um grande interesse pelo Zen-Budismo. Fez diversas viagens ao Japão e trouxe vários monges para dar ensinamentos nos EUA. Este contato deixou Perls cada vez mais fascinado pelo Zen “...sua sabedoria, seu potencial e sua atitude não moral.” (Perls, 1979, p. 136), instigando-o a desenvolver um método psicoterapêutico que possibilitasse ao homem ocidental o mesmo tipo de abertura à autotranscendência humana, que ele experimentara com o Zen. Situamos neste período a segunda fase de aproximação e de um maior aprofundamento de Perls ao pensamento oriental, e ao Zen-Budismo. Conforme já mencionado seu primeiro contato se dera nos anos trinta na África do Sul. 23 Após a criação do Instituto de Cleveland em 1954, Perls começou viagens e peregrinações, inicialmente pelos Estados Unidos, com a intenção de divulgar seu método de trabalho, a GT (Ginger e Ginger, 1995). No final dos anos cinqüenta, início dos anos sessenta, Perls continua seu trabalho de divulgação e de demonstrações da GT, vivendo um novo período, agora de grandes viagens. Em seu livro autobiográfico, relata sua viagem de navio em volta do mundo, no início dos anos sessenta, saindo de Los Angeles com destino a Nova York. Durante este trajeto passou um período num kibutz em Israel e dois meses no Japão, “escarafunchando” sua cultura e o Zen-Budismo. Visitou Tóquio e Kioto, e em uma descrição envolvente, contrasta as duas culturas. Em Tóquio relata a insensibilidade das pessoas e também comenta seu encontro com um mestre Zen, Roshi Ihiguru que segundo Perls, desenvolvia uma proposta de Zen instantâneo “satori em uma semana” (Perls, 1979, p. 129). Apaixonou-se por Kioto, cogitando a possibilidade de lá se estabelecer. Comenta a delicadeza das pessoas, seus olhares abertos, respeito e consideração mútua e um encantamento pelo equilíbrio e pela harmonia da natureza local. Fala da serenidade que transborda na cidade e não apenas nos templos. Relata que sentiu isto até mesmo num espetáculo de strip-tease, que em qualquer lugar do mundo se tornaria obsceno. Menciona que ficou dois meses no templo Daitokuji, com um grupo variado de pessoas no qual alguns levavam uma vida simples com a pretensão de se tornarem monges. Comenta que com freqüência, antes do “sentar”10, discutiam sobre a respiração e outros tópicos relacionados ao Zen. Sua busca era de exploração e investigação dos resultados destes trabalhos. Grande parte do exercício de meditação consistia em respirar de uma determinada maneira e manter a atenção na respiração com 10 Termo utilizado para indicar a posição e prática de meditação no Zen. 24 o intuito de diminuir a intromissão dos pensamentos, cabendo ao mestre corrigir a condução dos exercícios. Em virtude da curta estadia, ele relata que: “Não houve tempo para ser adequadamente apresentado ao jogo de Koan 11 : ele só me deu um Koan simples e infantil: ‘Qual a cor do vento’, e pareceu satisfeito quando eu, como resposta, soprei no seu rosto” (Perls, 1979, p. 134). A viagem de Perls ao Japão encerra a terceira e última fase de contato com o Zen-Budismo. Inicialmente o Zen havia atraído Perls como a possibilidade de uma religião sem Deus. No entanto, ele se surpreendeu, ou mesmo se incomodou com o fato de ter que invocar e curvar-se diante de uma estátua do Buda, antes de cada sessão. “Simbolismo ou não, para mim tratava-se mais uma vez de reificação conduzindo à deificação” (Perls, 1979, p. 133). Com relação a sua visita, afirma que ela foi um fracasso no que se refere ao Zen: Reforço a minha convicção de que, como na psicanálise, algo deve estar errado se são precisos muitos anos e décadas para não se chegar a nenhum lugar. O melhor que se pode dizer é que a psicanálise cria psicanalistas e o estudo do Zen cria monges. O valor de ambos, o aumento da tomada de consciência e a liberação do potencial humano, devem ser afirmados; a eficiência de ambos os métodos deve ser negada. Eles não podem ser eficientes porque não são centrados nas polaridades de contato e retraimento, o ritmo da vida. (Perls, 1979, p. 137). 11 Koans: Histórias curtas, paradoxais destinadas a desafiar a racionalidade do praticante. 25 Kiyan (2001) menciona que, muito embora estas afirmações tenham se tornado freqüentes em Perls, as influências do pensamento oriental sempre se mantiveram em sua obra. Sua critica ao Zen reportava-se mais a prática do que a pressupostos filosóficos. Em defesa do Budismo e do Zen-Budismo, penso ser importante esclarecer alguns aspectos que nas falas de Perls aparecem de uma forma distorcida. Compreendo que esta foi sua leitura, mas ainda assim vejo que tais esclarecimentos são pertinentes. As chamadas prostrações feitas diante da estátua do Buda têm como objetivo um ato e exercício de humildade por parte do praticante, que se prostra no chão e, simbolicamente, deposita seus venenos da mente 12 no chão e se levanta com o conhecimento e com a sabedoria. Esta espécie de reverência à estátua do Buda não significa ou representa uma deificação, representa a manutenção dos votos de compromisso do praticante que também busca sua iluminação assim como o Buda, ao mesmo tempo que reconhece o Buda como aquele que trilhou este caminho e atingiu tal condição e portanto serve como constante fonte de inspiração. Depois de suas viagens e já com 70 anos, Perls voltou para Los Angeles com muitas experiências pessoais e profissionais, sem acreditar que conseguiria ver a GT em um lugar de destaque. 12 Venenos da mente: dentro da concepção budista são os venenos que ocupam a mente, como o orgulho, a inveja, a raiva, entre outros e que impedem o ser humano de experenciar a realidade tal como ela é, ou como ela se apresenta. Da mesma forma, como na psicologia e na GT a neurose e seus processos de cristalizações impedem o ser humano de melhor apreender a realidade. 26 Foi em dezembro de 1963 que Perls encontrou Michael Murphy em um de seus workshops13. Este acabara de herdar uma propriedade em Big Sur, a 300km de São Francisco, e batizara o lugar de Esalen. Murphy e um colega de universidade Richard Price criaram ali o centro de desenvolvimento do potencial humano. Em abril de 1964, após insistentes convites, Perls aceitou instalar-se em Esalen como residente, propondo laboratórios de demonstração e um programa de formação profissional em GT. Apesar da rapidez com que o centro se tornou conhecido, atraindo profissionais de vários países, para Perls o sucesso foi lento. É deste período o vídeo The Esalen Years que apresenta várias sessões nas quais Perls desenvolve alguns atendimentos individuais e em grupo, com o intuito de apresentar e demonstrar a proposta da GT e respectivamente seu trabalho. O filme Three Approaches to Psychotherapy de 1956 apresenta três perspectivas e leituras distintas de Rogers, Ellis e Perls, os quais entrevistaram e trabalharam com a mesma cliente, Glória. Em 1965, cansado e com problemas cardíacos, Perls submeteu-se ao Rolfing, método de integração estrutural proposta por Ida Rolf, que modificou suas costas arqueadas, seu peito cavo, proporcionando-lhe um certo rejuvenescimento. Em 1968, o mundo vivia o momento dos grandes protestos dos jovens: o direito de viver a liberdade, a queda dos tabus, o estilo de vida hippie, o amor e não a guerra, o prazer dos corpos, os movimentos sociais. Foi toda esta circunstância que favoreceu a conjuntura, que permitiu a entrada de figuras como Perls, com suas idéias e propostas inovadoras, e o acolhimento destas mesmas idéias na proposta da GT e de toda psicologia humanista. Neste período Perls foi capa da revista Life, sendo 13 Workshop: trabalhos intensivos em grupo desenvolvidos por um ou dois terapeutas, normalmente durante um período contínuo, um final de semana , ou mesmo durante toda uma semana, com objetivo psicoterapêutico ou também para treinamento de psicoterapeutas 27 considerado Rei dos hippies, em Esalen centenas de pessoas se aglomeravam para ver seu trabalho. Era o apogeu de sua carreira, o reconhecimento de seu trabalho e principalmente de sua cria, a GT que, naquele momento, já estava consolidada como uma eficaz abordagem terapêutica. Segundo Ginger e Ginger (1995) todo este período de grande destaque e sucesso não tirou totalmente de Perls seu lado irascível e a inveja com relação ao sucesso de outros profissionais em Esalen. Ele queria ser o único. Por outro lado, Perls sentia que este era o momento de realizar um antigo sonho, um Gestalt-Kibutz, uma comunidade onde se pudesse viver a filosofia gestáltica vinte e quatro horas por dia, e que superasse a divisão: equipe terapêutica e participantes. Foi este espírito que o levou ao Canadá em Cowichan, onde adquiriu um velho hotel de pescadores e, juntamente com cerca de 30 discípulos, criou seu kibutz, um lugar onde todos participavam do trabalho coletivo, das sessões de terapia ou das sessões de formação, enfim, em uma vida em comunidade que proporcionou a Perls um sentimento de descontração, felicidade e paz até então não experenciado. Com relação a esta proposta, Tellegen (1984) assinala uma interessante evolução na experiência profissional de Perls que inicia seu trabalho com a terapia individual, posteriormente dá grande ênfase à terapia em grupo e aos workshops, tecendo uma grande crítica à proposta de terapia individual em seu artigo intitulado Terapia de grupo versus terapia individual no livro Isto é Gestalt organizado por Stevens (1977b). No final de sua vida busca uma proposta psicoterapêutica totalmente radical, através da criação de um Gestalt Kibutz, por acreditar que também a terapia em 28 grupo e os workshops já estavam obsoletos, enfatizando a importância da vivência em comunidade. A importância que Perls passou a dar à vivência em comunidade me levou a pensar na importância deste aspecto dentro do próprio Budismo. Para refletirmos sobre este aspecto, precisaremos recorrer à história e evolução do Budismo, e à importância da comunidade budista dentro do Budismo, uma vez que elas parecem apresentar afinidades de ideais e práticas. Creio portanto ser importante abrirmos um parêntese aqui na trajetória de Perls para elucidar estas idéias. Dentro do movimento budista, estima-se que pouco depois da morte do Buda Shakiamuni (Pinto, 1980), a partir do primeiro século de sua criação, aconteceu uma espécie de divisão do Budismo em duas escolas, ou melhor, uma evolução do pensamento e da proposta budista que culminou com o surgimento das primeiras duas escolas: Hinaiana ou Teravada (pequeno veículo ou tradição dos antigos) e Mahaiana, (grande veículo) que permanecem até hoje. Um dos pontos centrais para esta divisão foi a questão monástica; enquanto a escola Teravada pregava um ideal monástico, a escola Mahaiana visava uma abertura do Budismo para os leigos. Um outro desdobramento desta divergência foi a ampliação da responsabilidade do próprio praticante. Para a escola Hinaiana toda ênfase recai na importância de cada ser humano trilhar seu próprio caminho rumo à iluminação, conseqüentemente há uma maior ênfase na trajetória pessoal e individual. A escola Mahaiana mantém estes aspectos da tradição Teravada, no entanto acrescenta que além da importância da trajetória pessoal cada ser humano também é responsável pela trajetória de todos os seres humanos, ou seja, de toda comunidade rumo à eliminação do sofrimento, à realização da iluminação. Para tanto, as 29 duas escolas assinalarão a fundamental importância da filiação ou do compromisso, as três jóias ou tesouros do Budismo, que são: O Buda, o Dharma 14 e a Sanga 15 . O primeiro aspecto é a importância da figura do Buda como um referencial, um modelo, uma constante fonte de inspiração, ou seja, se o Buda por todo seu esforço, prática e dedicação pessoal atingiu a iluminação, qualquer ser humano também poderá atingi-la. Como a natureza búdica16 que habita todos os homens, e só precisa ser despertada. O segundo aspecto é a importância dos praticantes conhecerem, exercitarem e verificarem o conjunto de ensinamentos do Buda, também conhecido como o Dharma. O terceiro aspecto recai na importância da Sanga, um “grupo de pertença”, uma comunidade que comungue com os mesmos ideais, com uma mesma busca, que possibilite uma espécie de sustentação para que o praticante consiga desabrochar sua potencialidade, renovar suas energias e manter-se caminhante rumo ao mais além. Discorrendo a respeito da importância da sanga, do dharma e do Buda, a monja Zen budista, escritora e poetisa Rôshi (2003), nos apresenta um texto claro e de rara beleza, intitulado: “Monges são ótimos amigos” que compreendo ser útil na ampliação da importância destes aspectos dentro da comunidade budista: O Buda Shakiamuni 17 dizia: ‘ter ótimos amigos e estar em boa companhia não é metade do caminho, não é parte do caminho, é o próprio caminho’. Ele enfatizava assim a importância de ter bons 14 Dharma: Doutrina dos ensinamentos do Buda. A doutrina do Budismo Sanga: Comunidade dos práticantes budistas. “A comunidade de pessoas que vivem de acordo com os preceitos budistas”. (Hanh, 2002 p. 31) 16 Natureza búdica: a natureza que habita todos os seres humanos, como potencialidade, e quando despertada revela o Buda, a perfeição que habita cada ser humano. A capacidade do homem captar a verdade ultima e absoluta a respeito da existência humana. A capacidade de todo ser humano trazer a iluminação a sua existência. 17 “Buda Shakiamuni – O Buda histórico, fundador do Budismo, cujo nome original era Príncipe Gautama Sidharta. Shakia se refere ao nome do clã a que ele pertencia e muni significa sábio. (Aoyama, 2002, 232, 233) 15 30 amigos. O mestre Dôgen também escreveu no Shôbôgenzô Zuimonki18: ‘Mesmo os estudantes de Zen que não tenham muita disposição em buscar o Caminho, apenas por estarem próximos a bons praticantes, acabam por criar bons relacionamentos e enfim podem ver e ouvir como eles. Os bons amigos estão conosco, não importa quão sofrida e solitária seja a prática’ Essas palavras mostram a docilidade, a sabedoria e a compaixão do Mestre Dôgen, que se colocava sempre no plano das pessoas comuns, mesmo daqueles de fé mais fraca. O caractere ‘so’ em japonês deriva do sânscrito ‘sangha’ e quer dizer ‘grupo harmonioso’. Uma pessoa apenas não é chamada de ‘so’, não pode formar uma ‘sangha’. Buda Shakiamuni, reconhecendo a fraqueza humana, não aconselhava a prática solitária. Sozinhos não conseguimos nos empenhar verdadeiramente, nem mesmo por apenas uma hora, em zazen. Se, por outro lado, o fizermos com outras pessoas, podemos praticar o zazen por três dias, ou mesmo durante um retiro de uma semana, ou até dedicar toda existência à vida monástica. Pode parecer que o zazen é uma prática solitária, mas isto não é verdade. Não podemos ter sucesso sozinhos. Como dizia Mestre Dôgen: ‘A prática é a força do grupo’. A perseverança de todo o grupo sustenta a prática de cada um. É por isso que dizemos que ‘ os monges são ótimos amigos’. Reverenciando aqueles que despertaram para o verdadeiro caminho, seguindo os ensinamentos de Buda, mantemos a prática constante em nosso 18 dia-a-dia, sustentados por nossos amigos monges que Shôbôgenzô Zuimonki – literalmente: O olho – tesouro do Dharma correto, obra de Eihei Dôgen. Ele pretendia escrever 100 capítulos, porém morreu antes de terminar. Há uma versão oficial com 95 capítulos. O olho – tesouro da lei verdadeira e a suprema mente de nirvana são considerados os ensinamentos de Buda transmitidos a seu discípulo Makakashô. (Aoyama, 2002, 233) 31 compartilham de nossas aspirações. Quando doentes, sou doente. Quando pobres, sou pobre. Bem no meio da doença e da pobreza, ou de qualquer situação que surja, confiamos nos Três Tesouros: Buda, o ser iluminado; Dharma, seus ensinamentos; e Sangha, a comunidade harmoniosa de praticantes. São os Três Tesouros que nos permitem praticar. Existe alguma felicidade maior do que esta? (Rôshi, 2003, p. 30-31). Na psicoterapia, é possível perceber que mesmo a psicoterapia individual tem um caráter social. A teoria de campo de Lewin e a psicologia da gestalt, entre outras teorias que co-participam da edificação da GT, corroboram esta idéia - toda vez que eu interfiro em uma parte eu altero a configuração do todo. No entanto, não é exatamente o aspecto social que pretendo discutir aqui. Meu interesse caminha em direção a uma reflexão a respeito da importância da vivência e do sentimento de pertença que a experiência de comunidade pode proporcionar, e que aqui mais uma vez parece aproximar o pensamento de Perls e o pensamento budista. Em sua autobiografia, Perls (1979) enquanto brinca com o “número seis” faz uma significativa revelação: “1966 - A Gestalt-Terapia está traçada. Finalmente encontro uma comunidade, um lugar para estar: Esalen” (Perls, 1979, p. 80), obviamente comentando sua vivência e experiência em Esalen, o que com certeza alimentou e ampliou seu sonho a respeito de um Gestalt Kibutz - uma vida em comunidade - um local para se viver gestalticamente vinte e quatro horas por dia. Nas palavras de Perls, “o principal é o espírito de comunidade propiciado pela terapia” (Perls, 1977, p. 106), seu sonho de nortear a vida através da própria filosofia da GT. 32 Safra (2004a), discorre sobre a da importância de uma comunidade de destino para o ser humano, Sóbornost, conceito russo que compreende o homem como um ser inter-relacionado com o passado, com o futuro, com os contemporâneos, com a natureza e com as coisas. Enfatiza a comunidade compreendida não apenas pela perspectiva social, mas em seu aspecto mais fundamental, a comunidade como fundante para o ser. Estas experiências possibilitariam ao ser humano se reconhecer como humano, ser reconhecido pelos outros e, mais do que isto, compartilhar de um destino para a humanidade, junto com esta comunidade. Parte da idéia de Perls com seu Gestalt Kibutz caminha exatamente nesta mesma direção. Tanto quando comenta a respeito de sua vida em Esalen como quando relata sua vida em Cowichan, a satisfação e o prazer do encontro de uma comunidade, um grupo de pertença, a importância da tranqüilidade, um lugar para repousar, um local que possibilita estar verdadeiramente inteiro, o que Perls procurou durante toda sua vida. O Budismo com seu ideal da sanga comunga também com esta mesma idéia. Ambos ressaltam a importância do sentimento de pertencimento um espaço para a vida autêntica em comunidade que partilha ideais comuns, que possibilita ao ser humano um sentido de existência e participação no mundo norteado pelo vértice do nós, e não uma visão e participação individualista norteada pelo vértice da individualidade. Este tipo de experiência possibilita ao ser humano um lugar de refúgio, um campo de revitalização da energia, para continuidade da jornada humana. Podemos entender que a vivência em comunidade para Perls e para o Budismo, pode possibilitar abertura para o desabrochar humano como um espaço fundante do ser. Na vida em comunidade, tanto para o Budismo como para Perls, não 33 deixariam de existir os papéis de monge e de terapeuta, discípulo e de cliente, fundamentais para as experiências de descoberta, superação dos limites e busca da autotranscendência, em cada uma das perspectivas, na GT por meio do processo terapêutico e da relação terapeuta-cliente, no Budismo pela relação mestre-discípulo. Perls, com sua proposta de vida em comunidade, parecia acreditar que esta experiência possibilitaria uma alternância e superação desta divisão de papéis e situações. Para o Budismo, dentro da sanga estes papéis são bem definidos, até porque eles indicam uma trajetória a ser seguida, um desenvolvimento da potencialidade humana a ser alcançado. O monge, aquele que já conhece o caminho, é uma pessoa fundamental que funcionaria como facilitador na relação como seu discípulo, auxiliando-o a trilhar seu próprio caminho. No entanto, o objetivo último é exatamente a superação destes papéis, na medida em que os discípulos consigam despertar sua natureza búdica. Com relação a estas aproximações acredito que uma ressalva deve ser feita. Não estou apontando que a proposta de Perls com seu Gestalt kibutz tenha surgido da influência de seu contato com o Budismo, até porque a nomenclatura por ele usada para batizar sua proposta de certa forma já indica a origem de sua idéia: a importância da comunidade dentro da perspectiva judaica, possivelmente ressaltada pela experiência de vida comunitária em um kibutz, durante sua estada em Israel. Seria portanto um legado judaico, por mais que ele tenha negado, ou mesmo tentado se desvencilhar, uma vez que desde muito cedo Perls passou a se auto-denominar ateu. Justificando este fato em sua autobiografia como fruto da vivência de desestruturação judaica vivida muito precocemente em sua família (Perls, 1979). 34 Podemos imaginar que este legado cultural judaico sempre esteve presente co-participando de sua trajetória, de seu pensar, de sua maneira de viver e conseqüentemente de sua construção teórica. Uma vivência pessoal seria interessante para ilustrar a importância da comunidade. Minha incursão no mestrado mais uma vez proporcionou-me uma vivência desta ordem, assim como tive a mesma sensação e experiência durante minha especialização em GT no Instituto Sedes Sapientiae. Costumávamos brincar que “encontramos nossa turma”, percebíamos a importância da formação dos grupos e da comunidade para a sustentação do existir humano, que sempre se dará num mundo compartilhado.E, mais do que isto, esta é uma experiência vivida como fundante do ser, como possibilidade de abertura ao compartilhar sonhos e ideais. Acredito que todos que passam pela vivência do mestrado ou doutorado vivem uma situação de mergulho pessoal e profissional, diria um mergulho existencial, “de corpo, alma e espírito”, que este tipo de experiência impõe. Revendo minha trajetória, percebo que diante de todo trabalho, investimento, desgaste, mergulho profissional e pessoal que este período demanda, o caminho que encontrei para enfrentar e suportar este percurso foi criar um grupo de pertença, uma comunidade, com meus colegas de mestrado e doutorado que partilhavam dos mesmos desejos, sonhos, projetos e também angústias. Junto com este grupo criei e criamos um espaço no qual pude me refugiar, descansar, me inspirar, palpitar e receber palpites, ser suportado e, em muitos momentos, suportar o outro, em alguns momentos funcionar como orientador de meus colegas, em outros como orientando que precisa de auxílio, sem contar os momentos em que funcionava como terapeuta, em outros como cliente, numa constante 35 alternância de papéis. Tínhamos como fonte de inspiração nossos orientadores ou colegas que já haviam concluído esta tarefa. Percebia que muitas vezes me afastava de antigos colegas, amigos e familiares, tendo como justificativa a falta de tempo, que também era real, mas refletindo agora percebo que na maioria das vezes este afastamento era fruto da necessidade de estar com aqueles que também estavam vivendo a mesma situação, que compartilhavam de um universo comum. E, mais do que isto, aqueles que comungavam com meus ideais, que partilhavam de uma nova possibilidade de ser. Toda esta vivência possibilitava a criação de uma espécie de rede que nos unia ao mesmo tempo em que sustentava o peso, as dificuldades, os impasses e as angústias de todos nós, como uma comunidade que partilhava de um destino comum. Tal experiência retrata os aspectos fundamentais relacionados às idéias de Perls, assim como do Budismo no que se refere à importância da comunidade para o desenvolvimento do potencial humano. Retomando a trajetória de Perls, em 1970, voltando de uma viagem à Europa, parou em Chicago para dirigir alguns workshops. Em março do mesmo ano, sofreu um enfarto no miocárdio que ocasionou sua morte. É possível perceber o quanto a vida de Perls foi rica em experiências, buscas, encontros e desencontros, superações de limites, influências que deixaram suas marcas na GT. O movimento de contracultura da Berlim dos anos vinte, que abriu espaço para um pensamento de vanguarda e lançou sementes para o pensamento existencial e a concepção fenomenológica, foi fundamental como base de sustentação de 36 sua futura criação. A figura e o pensamento de Friedläender, com o pensamento diferencial e a noção do ponto zero, não podem ser esquecidos. Outra influência significativa foi o contato com a Psicologia da Gestalt e toda sua teoria da percepção com seus conceitos de figura-fundo. Seu convívio com Goldstein foi muito fecundo, uma vez que este também lhe apresentou a sua Teoria Organísmica, com a idéia de que o organismo é uma totalidade auto-regulada, tendendo ao equilíbrio e à busca pela integração. Posteriormente, Perls assimilará este conceito à GT e com ele desenvolveu a noção de ajustamento criativo. Lilienthal (2004), em sua tese Educa-são: uma possibilidade de atenção em ação, também desenvolve e explora a influência do pensamento de Goldstein na GT. A própria Psicanálise, foi outra influência significativa. Loffredo (1994), em seu ensaio A Cara e o Rosto – Ensaio sobre a Gestalt Terapia, investiga esta vertente. De Reich como já mencionado, Perls compartilhou da importância do corpo como totalidade de uma nova compreensão dos processos psíquicos e do próprio processo terapêutico. A visão do Holismo e da Teoria de Campo teria possibilitado Perls a criar uma configuração, uma gestalt, um todo no qual estes fragmentos de influências ganharam uma estruturação significativa. Uma teoria em construção, mas cujos conceitos e constructos centrais já estavam edificados, criando uma configuração própria, coerente e harmônica. Ao retomar nosso fio condutor e ao mesmo tempo buscar avaliar a trajetória de Perls e seu namoro com o Zen, foi possível perceber que ele se deu em três fases: a primeira nos anos trinta do século passado quando surge seu interesse inicial 37 pelo Zen. A segunda, quando Perls é reintroduzido e se aprofunda no estudo do Zen, no início dos anos cinqüenta, com a da colaboração de Weisz. A terceira, quando busca conhecer o Zen de uma forma mais vivencial, ao mesmo tempo em que também pretendia avaliar a eficácia desta prática (Ginger e Ginger, 1995) em sua viagem ao Japão, e que a seguir desencadeará seu desinteresse e distanciamento do Zen. Com relação as críticas que passou a tecer após este período, é importante ressaltar que as mesmas não se reportam à filosofia do Zen, que continuou transitando em seus escritos na GT como constante fonte de inspiração e ilustração, mas sim à sua prática, principalmente frente ao zazen, sua técnica de meditação tradicional. Retomando as referências ao pensamento oriental e ao Zen Budismo, pudemos perceber que eles apareceram desde o livro de Perls, Ego fome e Agressão, e continuaram presentes ora subsidiando material para construção de seus conceitos, ora como fontes de inspiração ou ilustração e, em outros momentos, como uma confirmação de suas idéias e propostas. Um exemplo que ilustra esta idéia é o conceito de vazio fértil, um vazio prenhe de criatividade e possibilidades, que revela em sua origem uma nítida influência do conceito de vazio, ou vacuidade do Zen-Budismo e ao mesmo tempo é uma influência direta de Friedäender com sua noção de o ponto zero e a indiferença criativa. O pensamento diferencial, que inicialmente Perls tomou emprestado de Friedläender, é outro exemplo; a aproximação do Zen Budismo e do Taoísmo reassegurou sua maneira de pensar, possivelmente funcionando como uma confirmação e validação do pensar por opostos, com um maior vigor e consistência a estas noções, enriquecendo seu trabalho posterior com as polaridades: os opostos sempre compõem 38 um todo e ao mesmo tempo cada um destes pólos sempre trará consigo a semente de seu oposto. Outro aspecto importante em relação, tanto das afinidades destas duas áreas da experiência humana como da própria presença do pensamento oriental como inspiração na GT, é a compreensão que alguns Gestalt-terapeutas, e que o próprio Perls, têm a respeito da criação da GT. Perls afirma não ser o fundador da GT mas seu descobridor ou re-descobridor, uma vez que “A gestalt é tão velha quanto o próprio mundo” (Perls, 1977, p.32). Compreendo que Perls nesta frase esteja falando da concepção filosófica da GT, enquanto uma filosofia de vida, e que de certa forma é uma filosofia conhecida há muito tempo, e também de seu método terapêutico, “a tomada de consciência”, um método também há muito conhecido nas filosofias orientais. Loffredo (1994), endossa este ponto de vista e acrescenta que é o ponto de vista integrador, como a tendência natural do organismo preconizada por Perls, Hefferline e Goodman no livro Gestalt-Terapia, que sustenta a auto-denominação de Perls como re-descobridor da GT. Com relação a este aspecto integrador como a tendência natural do organismo, sabemos que ele pode ser distorcido ao longo do processo de desenvolvimento mas que o processo psicoterapêutico é uma das maneiras de resgatá-lo. Shepard (apud Loffredo, 1994), ao tecer considerações da afinidade da palavra Gestalt com o conceito taoísta do Tao, considera também a concepção gestáltica tão antiga quanto a concepção taoísta dos opostos Yin e Yang, afirmando que Perls, a partir de seu próprio existencialismo filosófico, teria criado uma nova velha terapia. Quando enfatizamos que a GT é muito mais que um método psicoterapêutico, ela é uma 39 filosofia de vida, podemos perceber que Perls reconheceu na filosofia oriental a riqueza de sua filosofia de vida e transportou para a GT alguns destes princípios. É importante também ressaltar que durante todo este período nunca houve uma aderência por parte de Perls ao Zen Budismo como religião. Nos anos cinqüenta houve de sua parte um grande fascínio e entusiasmo por seus ensinamentos e sua filosofia, e que chegaram a levá-lo ao Japão na expectativa de conhecê-lo melhor. Segundo Ginger e Ginger (1995), Perls tinha a fantasia de atingir a iluminação durante seu treinamento em sua viagem ao Japão, o que poderia justificar seu descontentamento e críticas ao Zen, após a viagem. Mais importante que precisar as expectativas de Perls em sua ida ao Japão, é perceber que o Zen para ele parece ter funcionado como uma espécie de fio condutor para o surgimento de alguns conceitos da GT. O Zen em outros momentos parece ser um dos fios que, junto com a Psicologia da Gestalt, a Teoria de Friedläender, o Taoísmo, o Holismo, a Teoria Organísmica, possibilitaram a criação ou mesmo a releitura de alguns conceitos, como, por exemplo, o de figura e fundo e gestalt emergente, e toda a fluidez deste processo, agora ilustrando a forma como o organismo vive suas relações com o meio ou como os fenômenos acontecem. Fenômenos estes que são um constante fluir no qual nada permanece a não ser o própria fluidez, como o Zen insiste em nos lembrar, e não mais restrito à idéia de como a percepção se estrutura, ponto de partida da Psicologia da Gestalt. Outro conceito seria indiferença criativa ou vazio fértil, estado posterior ao fechamento de uma gestalt e anterior à formação de uma nova figura, como uma alusão clara à noção de vazio ou vacuidade do Zen, e o pensamento diferencial, com a noção de polaridades, que permite pensar por opostos e 40 através de paradoxos remete à idéia de convivência simultânea de opostos postulado pelo Taoísmo e pelo Zen-Budismo. No capítulo dois, ao discutir as aproximações entre awareness e meditação, desenvolvo a idéia de que ambos lançam mão de uma mesma atitude, da qual encontraremos correspondência na fenomenologia. Compreendo que esta constatação tenha fascinado Perls, o que possivelmente o levou a afirmar a intenção de desenvolver um método psicoterapêutico que possibilitasse ao homem ocidental o mesmo tipo de abertura a autotranscendência humana, que ele experimentou com o Zen (Perls, 1979). No Zen, o paradoxo tão presente em sua filosofia, em seus Koans e Mondos19, parece ter sido mais uma das inspirações assimiladas por Perls que permeiam sua linguagem e suas ilustrações. A própria adoção e preferência de Perls pelo uso do termo satori (iluminação) ou mini satori utilizado em substituição ao termo gestáltico insight, para descrever situações de descobertas súbitas e intensas, deixam claras a presença e a marca desta influência que, neste caso, explicitaria com mais propriedade o vislumbrar repentino de uma nova relação de significados que até então não havia sido percebida. Compreendo que a riqueza e originalidade de Perls com relação à GT residem em sua capacidade de integrar sua experiência de médico neuropsiquiatra, psicanalista e ser humano profundamente sintonizado com os movimentos culturais de sua época, conseguindo criar não só um método psicoterapêutico, mas uma filosofia de vida. Com relação ao Zen-Budismo e ao Taoísmo, concordo com Figueiroa (1996), que ressalta que Perls foi muito feliz ao conseguir transportar para uma linguagem própria, 19 Mondo: Estórias ou entrevistas entre discípulo e o mestre; em geral estão além do domínio da razão ou lógica. 41 para o pensar ocidental, algumas das idéias centrais desta corrente de pensamento, mantendo o frescor e o fundamento do pensamento oriental com uma roupagem claramente ocidental. Conseguiu assim romper com a dicotomia Oriente-Ocidente. Alguns conceitos do Zen e da GT podem revelar um grande parentesco, esta será nossa investigação, vamos explorá-los refletindo e analisando suas aproximações e distanciamentos. 42 CAPÍTULO II: AWARENESS E MEDITAÇÃO Seja paciente, não faça nada, deixe de lutar. Achamos esse conselho desanimador, portanto impraticável, porque esquecemos que é a nossa própria atividade inflexível que estrutura a realidade. Pensamos que se não nos apressarmos, nada acontecerá e definharemos. É provável que a realidade já esteja em movimento e que daqui a pouco poderemos fazer parte desse movimento. Mas não se pode saber. Paul Goodman (in Epstein, 1999) 2.1 Awareness Awareness é um dos conceitos centrais da GT e esbarra na dificuldade e complexidade da tradução para o português, e na sua própria conceituação. Barros (apud Stevens, 1977a) na apresentação do livro Tornar-se Presente (Awareness), comenta esta questão: Awareness é uma palavra que não possui correspondente preciso em nosso idioma. Em geral é traduzida por ‘consciência’, porém seu significado é muito mais amplo. No sentido psicológico, o equivalente em inglês de ‘consciência’ seria consciousness. Awareness, porém, possui uma conotação que transcende este sentido, envolvendo um aspecto maior de ‘consciência’. Assim, awareness pode significar ‘consciência’, ‘conhecimento’, ‘ciência’, ‘atenção’, ‘percepção’, ou ‘sensação da presença de algo. (Barros apud Stevens, 1977a, p. 11). 43 Na tentativa de precisar melhor este conceito, encontrei vários autores que reconhecem a dificuldade dessa tradução. Tellegen (apud Loffredo, 1994, p.128) comenta: “...é mais que percepção, diferente de tomar consciência: tem a ver com o estado de presença quase meditativo”, propondo fluxo associativo focalizado para a tradução do continuum de awareness, que poderíamos entender como a metodologia de awareness. Loffredo concorda com a proposta de Tellegen e acrescenta: Nela fica implícito o caráter dinâmico e de processo no termo ‘fluxo’; a finalidade do método de facilitar a discriminação e de promover a maior precisão no contato com a figura emergente, através do termo ‘focalizado’; e ‘associativo’, na medida em que a focalização poderá levar à produção de novas cadeias de relações de significado. (Loffredo, 1994, p. 128). Ainda para Loffredo (1994), o fluxo associativo focalizado busca levar o cliente a um “tomar posse” do seu processo de existir e como ele acontece a cada momento. Não se restringe a um processo meramente cognitivo, mas que envolve também o afeto, a emoção, o pensamento e as sensações corporais. Para tanto, faz-se necessário um engajamento do indivíduo com a totalidade do seu ser, em um dado momento, tomando o que é mais relevante no campo organismo-meio do qual ele faz parte. Awareness, portanto, pode ser compreendida como uma forma de experienciar, apreendendo também o como se experiencia. Yontef (1998) segue um caminho similar ao de (Loffredo, 1994). Para ele: 44 ‘Awareness’ é uma forma de experienciar. É o processo de estar em contato vigilante com o evento mais importante do campo individuo/ambiente, com total apoio sensoriomotor, emocional, cognitivo e energético. (Yontef, 1998, p. 215). O ‘insight’, uma forma de ‘awareness’, é uma percepção óbvia imediata de uma unidade entre elementos, que no campo aparentam ser díspares. O contato com ‘awareness’ gera totalidades significativas novas e, portanto, é em si a integração de um problema. (Idem, p. 31). Segundo Clarkson e Mackewn (1993, p. 44-45) awareness para Perls é a habilidade humana de estar em contato com o próprio campo perceptual. Vejamos o que nos dizem as autoras: Awareness é, para Perls, a sua habilidade humana de estar em contato com seu campo perceptual total. É a capacidade de estar em contato com sua própria existência, de notar o que ocorre dentro de você ou à sua volta, de conectar com o ambiente, com outras pessoas e com você mesmo; saber a que você está sensível ou o que está sentindo ou pensando; como você está reagindo neste momento. Awareness não é somente um processo mental: ela envolve todas as experiências, sejam elas físicas ou mentais, sensórias ou emocionais. É um processo conjunto no qual a totalidade do organismo está engajada: ‘Awareness é como a brasa de um carvão, que provém de sua própria combustão (o organismo total)’. (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1973, p. 106)20. 20 Tradução de Lilienthal, L.A. 45 Para ilustrar este conceito na prática, penso que uma vinheta clínica comporta um mergulho na práxis terapêutica. Karen, 33 anos em uma entrevista inicial relatava sua frustração e desapontamento por não ter passado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil OAB em três tentativas. Narrou uma série de aspectos ligados a esta situação, contando também de sua experiência profissional como estagiária no escritório de sua irmã e seu cunhado, mencionou que demorou para ingressar na faculdade, por falta de condições financeiras e por ter que criar os sobrinhos de uma irmã falecida. Karen, ao retomar as reprovações do exame da Ordem, começou a falar cada vez mais baixo, o que exigia um esforço para poder ouvi-la. Neste momento resolvo comentar isto para ela. • Eu percebo que você foi diminuindo o tom da sua voz. Com ar de estranheza, ela me diz que não havia percebido. • Fiquei com a impressão de que você não queria ou estava com receio de que alguém ouvisse nossa conversa. Após esta minha intervenção Karen pensou um pouco e começou a contar o quanto se sentia envergonhada frente ao cunhado e a sua irmã por estar trabalhando com eles, ser ajudada e não conseguir corresponder, passando no exame da Ordem. Com um ar de surpresa verbalizou que não se dava conta do quanto todos estes aspectos a estavam incomodando. Um registro do modo como a cliente estava se expressando, no caso diminuição de seu tom de voz, o reconhecimento sensóriomotor, permitiu a apropriação de outros sentimentos presentes, até então não identificados, o que a auxiliou começar a 46 delinear com maior nitidez a complexidade de sentimentos envolvidos em suas questões profissionais, o exame da Ordem e as relações familiares. Podemos perceber o insight que Karen teve, e a ampliação da consciência, awareness, frente à situação vivida, resultando numa “melhor percepção de si mesma, e de seu modo de existir”. Esta ilustração ressalta a importância das sensações corporais, da emoção, do pensamento e da própria energia, como aspectos fundamentais no processo de awareness, e no insight, uma vez que não estamos falando de um processo meramente cognitivo, mas de uma atividade que requer o envolvimento e engajamento total do indivíduo na situação vivida. Portanto, todo trabalho com awareness visa facilitar e promover um processo de integração no indivíduo, com o objetivo último de auxiliá-lo a dispor melhor de si mesmo. Um outro aspecto relevante para a experiência da awareness, e que este exemplo ilustrou, é a importância do contato e do aqui e agora para que esta experiência possa verdadeiramente ocorrer. Na relação terapêutica, eles, awareness, contato e o aqui e agora, estarão criando o tripé fundamental (Lilienthal, 1994) que possibilita a expansão da consciência, a partir da apropriação de outros sentimentos ou aspectos presentes na situação, com a criação de novos sentidos. Lilienthal (1994) enfatiza que a awareness, o contato e o aqui agora estão intimamente relacionados na constituição deste tripé, e a falha ou ausência de um destes vértices implica a impossibilidade de sustentação dessa vivência na relação terapêutica O contato e o aqui e agora receberão um maior destaque posteriormente. Em sua autobiografia, Perls (l979, p. 88) enfatiza a questão da awareness: “[...] eu fiz da tomada de consciência o ponto central da minha abordagem, 47 reconhecendo que a fenomenologia é o passo básico e indispensável no sentido de sabermos tudo o que é possível saber”. No Gestalt-terapia Explicada, complementa sua idéia,“[...]a tomada de consciência em si – e de si mesmo – pode ter efeito de cura.” (Perls, 1977, p. 34). Podemos facilmente compreender esta idéia e proposta de Perls. Sua operacionalização na psicoterapia é algo um tanto complexo, já que não estamos falando de uma simples técnica ou de um exercício que visa uma prática ou mera repetição mecânica. Falamos sim da possibilidade do desenvolvimento de uma atitude para com a própria experiência, uma espécie de ampliação de sentido existencial, que abarca uma dupla vertente: sustentar e ao mesmo tempo ser sustentado pela prática da atenção, ao que se experiencia e ao que acontece na totalidade; e a própria prática (Figueiroa, 1996). 2.2 Meditação A verdadeira meditação, no sentido zen, resulta quando não há objeto de atenção, nenhuma preocupação com a forma, significado ou intenção: quando a própria atenção é objeto de atenção, e quando todas as coisas percebidas, inclusive eu mesmo, são experenciadas como manifestações da atenção. Tal atenção poderia ser comparada a alguém, que aguarda alerta e pacientemente por algo-que-não-sabe-o-que-é; no entanto, espera com convicção que conhecerá (algo) quando (algo) ocorrer. (Joslyn apud Stevens, 1977b, p. 315). 48 Antes de começarmos nossa trajetória creio ser importante um esclarecimento com relação à meditação, recurso fundamental em todas as escolas do Budismo e também em outras religiões. Quando falamos de meditação no Zen e em outras escolas do Budismo, estamos falando de uma prática que visa de certa forma acalmar a superfície agitada da mente, a superfície excitada pelos sentidos, e isto pode ser conseguido por meio de todo um treino e prática constantes que podem lançar mão de inúmeros recursos, dependendo de cada vertente do Budismo. No Zen, por exemplo, podemos falar do zazen, cuja prática consiste em sentar em uma almofada na posição de lótus, com a coluna reta, apoiando a mão direita no pé esquerdo e sobre ela a mão esquerda, as pontas dos polegares devem se tocar levemente. Os olhos devem estar semi-abertos e o olhar manter um ângulo de aproximadamente quarenta e cinco graus, dirigido para baixo. Durante toda a meditação a boca estará fechada e a língua mantida contra o céu do maxilar. Seu objetivo consiste em prestar atenção na respiração, sem se importar com mais nada, nenhum pensamento, fantasia. Quando surgir algum pensamento, a orientação é não tentar impedi-lo, nem desenvolvê-lo, simplesmente permitir que ele aconteça e desapareça livremente, sem buscar controlá-lo. A postura correta e a atenção em sua respiração tranqüila naturalmente acalmarão a mente. Uma boa imagem para ilustrar esta proposta é a do indivíduo que se encontra em uma estrada de rodagem e que acompanha os carros que passam, desde o momento em que eles se anunciam no horizonte até o momento em que eles desaparecem, sem se deter para perguntar qual a marca ou o ano do carro, quantas válvulas possui, quem está lá dentro, ou por que ele está passando naquele momento. A proposta é concentrar-se na respiração e simplesmente dar passagem aos pensamentos, 49 sem evitação ou apego, deixando-os fluir. Está é a maneira de conduzir e lidar com os pensamentos sem perder o contato com a respiração. Outra prática é a meditação andando. No entanto, podemos compreender o próprio cotidiano como uma meditação a partir do momento em que este cotidiano é vivido com uma “presença” e atenção constante em cada situação vivida. Esta “consciência cotidiana” pode ser entendida como o próprio Zen, pois é através destas diversas experiências que a mente pode ser ampliada (Suzuki, 2002). Assim, o Zen revela sua grande ênfase existencial, uma vez que o aprendizado também se faz nas vivências diretas e nas circunstâncias concretas do cotidiano. Vejamos um mondo interessante, que aborda exatamente este aspecto, no qual um noviço interpela Chao-Chou: “[...]’Mestre sou ainda um novio. Mostre-me o caminho’. E Chao-Chou diz: ‘Já terminaste o desjejum?’ – ‘Sim, reponde o monge’ – ‘Então vai lavar a tigela’”. (Sohl e Carr apud Pinto, 1980, p. 70). Esta ilustração demonstra o colorido especial com que o Zen acena para a meditação como prática do cotidiano, priorizando a presença ou inteireza em cada situação, uma vez que o instante para o despertar é sempre este instante vivido aqui e agora. Esta idéia do cotidiano como prática não significa que o Zen deixe de enfatizar também a prática da meditação tradicional (Suzuki, 2002). A partir desta perspectiva qualquer situação do cotidiano pode ser compreendida como a própria prática da meditação e não simplesmente como preparação para ela, desde que haja expressão da inteireza no ato realizado. Podemos encontrar aqui uma espécie de reverência ao cotidiano. Foram estes pressupostos que permitiram o aparecimento de caminhos e práticas nas artes em que a filosofia Zen 50 encontra-se presente como sustentação e inspiração. Muitas delas se difundiram no ocidente: é o caso dos arranjos florais, ou ikebana; o sumiy-e 21 , uma das mais significativas correntes da pintura japonesa; a cerimônia do chá; a poesia da Bashô entre outras. E não foi apenas na estética que as civilizações do Extremo Oriente foram influenciadas pelo Zen; também nas artes militares podemos perceber tal influência como, por exemplo, o jiu-jitsu, a esgrima e os rígidos princípios do bushido – o código de cavalheirismo do samurai. Aqui também podemos perceber novamente os paradoxos, a originalidade do Zen que conseguiu com extrema habilidade combinar seus princípios e fundamentos, a chamada paz do nirvana, tanto com as tarefas comuns da vida diária como com a intensa atividade de batalha. Esta proposta do Zen, do cotidiano como prática meditativa, encontra na cultura ocidental uma grande semelhança com um dos fragmentos do pensamento de Heráclito22, posteriormente desenvolvido por Heidegger (1998). Todo o Budismo parte de um chão comum, o extraordinário vigora no inaparente, ou no mais que aparente, do cotidiano, nas coisas como elas são. Para tanto é necessário ter olhos para enxergar. Assim, não é necessário evitar o conhecido, o comum, na esperança ilusória de que ao perseguir o excitante, o estimulante e o extravagante, encontremos o extraordinário. Fiquemos no nosso cotidiano, pois só ali pode reluzir o mistério da vida, proclama ele. 21 Sumiy-e: sumiy, tinta negra usada na caligrafia; e, pintura. “Diz-se (numa palavra) que Heráclito assim teria respondido aos estranhos vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele os (ainda hesitantes) encorajou a entrar, pronunciando as seguintes palavras: ‘Mesmo aqui, os deuses também estão presentes’” (Aristóteles apud Heidegger, l998 p.22). Heidegger ao desenvolver este tema revela que num lugar comum e cotidiano cada coisa e situação podem se apresentar de forma familiar, confiante e ordinária. É exatamente nesta dimensão do ordinário que os deuses também estarão presentes. Para Heráclíto a essência dos deuses é exatamente este aparecimento, um olhar que quando compenetrado ao atravessar e perpassar o ordinário é o próprio extraordinário. (Heidegger, 1998) 22 51 Segundo o Zen, todos nós tendemos a procurar a verdade muito longe, buscamos seus segredos onde é menos provável encontrá-los, nas abstrações verbais e nas sutilezas metafísicas, não percebendo que ela realmente está nas coisas concretas de nossa vida cotidiana (Suzuki, 2002). Para Suzuki (2002), o Zen não é um panteísmo, para o qual Deus estará presente em tudo. Seu maior propósito é “[...] ver as coisas como elas são e deixar que tudo siga seu curso. [...] Assim, a concentração é apenas um recurso para auxiliá-lo a se aperceber da ‘grande mente’ – da mente que é o todo” (Suzuki, 1996, p. 31). A grande mente é a própria natureza búdica que habita todos os seres e que só precisaria ser despertada. Também podemos entendê-la como aquela que possibilita que nada exterior possa nos abalar ou perturbar. Praticar o Zen é abrir, expandir nossa pequena mente. 2.3 Aproximações e distanciamentos Uma primeira aproximação dos dois conceitos parece revelar um objetivo comum, a tomada de consciência em sua experiência imediata no presente, no aqui e agora, sem a mediação do intelecto, um contato pleno com os fenômenos que se apresentam e como se apresentam sem nenhuma preocupação em analisá-los ou categorizá-los, simplesmente vivê-los. 52 Figueiroa (1996) também enfatiza estes aspectos: Este me parece ser o principal elo entre a Gestalt-Terapia e o ZenBudismo; ambos dão total primazia à experiência, à tomada de consciência direta da realidade vivenciada no presente, o que inclui o próprio ato de conscientizar-se. Apesar da grande variedade de métodos e técnicas existentes e possíveis para promover este estado de atenção, o que importa é sempre o contato direto com o experienciar, direto no sentido de não intermediado pelo pensar, pelo reflexivo, pelo conceitual. (Figueiroa, 1996, p. 59). Com relação a esta aproximação, Loffredo assinala a concentração no vivido, no aqui e agora, como o possível elo de ligação na aproximação entre awareness e meditação. Vejamos o que nos diz a autora: O ‘esvaziar da mente’ – objetivado pela meditação oriental – aproximase do que a concentração no vivido, aqui-e-agora, proposta pela GT, tenta atingir. O ‘continuum de presentificação’ que é objetivado dessa forma significa possibilitar a formação livre, fluente e contínua de gestalten-formas mais fundamentais da experiência presente, a cada momento. (Loffredo, 1994, p. 68). Em seu terceiro livro Gestalt-Terapia Explicada, Perls (1977) a respeito da técnica que usamos em GT, comenta que “a técnica é estabelecer um ‘continuum’ de ‘tomada de consciência1. Este ‘continuum’ de tomada de consciência é exigido de 53 forma que o organismo possa trabalhar de acordo com o princípio saudável da ‘gestalt’” (Perls, 1977, p. 78). Mais adiante esclarece que “assim, o agente terapêutico, o meio para o desenvolvimento, é a integração da ‘atenção e da tomada de consciência’” (Idem, p. 80). Esta estratégia seria a única maneira de restabelecermos o estado de espontaneidade saudável e a genuinidade do humano, ou seja, o ciclo natural de formação figura-fundo que, com o decorrer da vida , vamos perdendo. No entanto nos adverte, “o paradoxo é que, a fim de obtermos esta espontaneidade, precisamos, como no Zen, de uma disciplina rígida” (Idem, p. 77). Barros (in Stevens, 1977b), um dos pioneiros da GT no Brasil, no prefácio da tradução brasileira do livro Isto é Gestalt (Stevens, 1977b), comenta o uso que Perls faz da filosofia oriental em sua teorização, ao lançar mão da concentração e da tomada de consciência, reconhecendo que estes dois recursos priorizados por Perls em sua prática são recursos típicos da meditação. Ainda segundo Barros, as várias práticas de meditação e a GT por meio da awareness atuam sobre o foco de atenção e buscam desenvolver dois pólos: (1) A atenção inespecífica, o estado de receptividade geral, de não seletividade e não interferência com relação à própria experiência; (2) E o estado de concentração de atenção e envolvimento integral com a figura emergente, possibilitando desta forma a finalização do processo de formação figura-fundo, sem a interferência das maneiras habituais de distorcer e evitar a tomada de consciência. (Barros in Stevens, 1977b, p. 11). 54 Podemos perceber que para Loffredo (1994), Figueiroa (1996), Stevens (1977b) e para o próprio Perls (1977), os processos embutidos na prática da meditação e no continuum de awareness são os mesmos, uma vez que ambos fazem da tomada de consciência e da concentração seu objeto de trabalho. Enfatizam a experiência vivida, centrada no presente, no aqui e agora, e o contato, buscando superar o intelectualismo, a lógica formal e a necessidade de conceitualização. Seriam preservadas a riqueza de cada experiência e o sabor do momento vivido no qual reluz o mistério do extraordinário. É possível perceber que tanto a meditação no Zen como o continuum de awareness na psicoterapia gestáltica favorecem uma visão interna, que possibilita encontrar aspectos da nossa vida, do próprio ser, e realizá-los da maneira mais direta possível. Este foco na atenção que ambos postulam tem um mesmo movimento que permite, pela concentração e acompanhamento de cada vivência, a descoberta daquilo que sempre esteve presente, mas até então não plenamente consciente portanto, não apropriado. Assim, não é necessária uma busca externa, mas simplesmente restabelecer o fluxo natural do processo de formação figura-fundo, no qual reside a espontaneidade natural e genuinamente humana que possibilita o desvelar de nossa própria natureza. Tanto na meditação quanto no continuum de awareness, encontraremos como fundamento e sustentação uma mesma atitude que corresponde à proposta da fenomenologia. Na GT é esta atitude que possibilita a investigação da própria experiência, através de um olhar ingênuo, que suspende temporariamente seu saber na tentativa de assim apreender o fenômeno em sua essência e em seu sentido peculiar. Já na meditação, a atitude aparece através do “olhar de principiante” que, segundo Suzuki 55 (1996), visa exatamente à manutenção da mente vazia e alerta, abandonando o “conhecimento” e o domínio das “coisas”, o que, para o Zen, pode tirar a capacidade de abertura e de receptividade. É a atitude de principiante diante da vida que possibilita a aprendizagem de fato. Penso que uma história do Zen-Budismo proporcione uma melhor compreensão desta idéia. Há a história de um impaciente professor universitário muito inteligente que pede os ensinamentos a um velho mestre Zen. O mestre lhe oferece chá e, quando ele aceita, começa a encher uma xícara até transbordar. Quando o professor polidamente expressa sua inquietação com o transbordamento, o mestre zen continua despejando o chá. - A mente que já está cheia não pode apreender nada de novo – explica o mestre. – Como esta xícara você está cheio de opiniões e idéias preconcebidas. Para encontrar a felicidade, ensina ele ao discípulo, é preciso primeiro esvaziar a xícara. (Epstein, 1999, p. xiii). Portanto, seja através da suspensão, ou do colocar entre parênteses, que a fenomenologia propõe, ou do esvaziamento da mente que o Zen prega, o continuum de awareness e a meditação preconizam uma mesma atitude frente à possibilidade de aproximação, contato e conhecimento no que tange às experiências humanas. A awareness na GT busca restabelecer o fluxo natural do processo de formação de figuras que no adoecer é interrompido ou cristalizado. Para Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 45) “a psicologia é o estudo dos ajustamentos 56 criativos” e, nos processos de adoecimento, “o estudo da interrupção, inibição ou outros acidentes no decorrer do ajustamento criativo”. Estes dois conceitos, que posteriormente serão desdobrados, nos ajudam a esclarecer como a GT entende saúde e doença e assim nos ajuda a ampliar a compreensão do método de awareness que, segundo Penteado, é visto [...] como um ‘instrumento’ da terapia que, ao focar, na fronteira de contato, evidencia o processo de como as interrupções de contato organismo-meio estão presentes no ajustamento neurótico. Estas parecem ser um ‘ajustamento criativo anacrônico’, que dificulta a assimilação e integração de partes alienadas da personalidade, impedindo o crescimento e desenvolvimento do cliente como ‘potência’ no mundo. (Penteado, 1998, p. 93). Mais adiante o autor acrescenta que “O método de awareness trata da percepção da rede de significados, que se desvelam e velam, como se estivéssemos entranhados nessa malha, que nos captura pela inesgotabilidade de sentidos que se desdobram no campo” (Idem, p. 94). Na prática psicoterápica, com a técnica de concentração na voz, nos gestos, na postura, nas sensações corporais, nos pensamentos e fantasias, no aqui e agora, buscamos possibilitar ao cliente, pelos assinalamentos do terapeuta, uma conscientização das eventuais interrupções, paralisações, dissociações, cristalizações e lacunas que ele experiencia, tornando-as assim mais evidentes. Desta forma, o terapeuta auxilia o cliente a construir um caminho próprio, na direção do estabelecimento de 57 novas relações de sentido e significado, até então ocultas. Para Perls, Hefferline e Goodman (1997), o restabelecimento do processo de formação figura-fundo que propicie a realização de uma ou novas gestalten firmes, nítidas, é compreendido como o próprio processo de integração e não como uma das etapas deste processo. Um exemplo talvez nos auxilie a compreender esta forma de trabalho na sessão terapêutica. Janice é uma jovem profissional de 23 anos, é uma mulher bonita, simpática, extrovertida e comunicativa. Encontrava-se em terapia há nove meses, vinha trabalhando questões ligadas à dificuldade nos relacionamentos afetivos. Durante uma sessão em que comenta sua dificuldade no relacionamento afetivo com os homens, em um determinado momento percebo um movimento estranho em seu corpo e em seu olhar. Ao assinalar para ela essas reações físicas, a cliente menciona que às vezes tem a sensação de que seu corpo está atravessado por uma madeira na altura da cintura, o que não sabe explicar. Peço a ela que seja a madeira que atravessa sua cintura, e que me conte um pouco o que a madeira está fazendo com ela. Descreve a separação que a madeira está criando em seu corpo, dividindo-o em duas partes. Solicito então que ela seja primeiramente uma parte, e me conte um pouco desta experiência e que repita o mesmo processo com a outra parte. Durante este experimento23, quando Janice começa a relatar sua experiência, começa a chorar dizendo que até então não percebia a divisão que vivia em seu corpo. Relata um episódio de sua adolescência quando foi flagrada pelo pai dentro do carro do namorado em uma situação de muita erotização, o que gerou muita vergonha e que desencadeou forte crítica e maior repressão dos pais frente a sua 23 Experimento: Recurso técnico da GT que tem como objetivo ampliar o campo perceptual do cliente. Para Juliano (1999) “o experimento é qualquer coisa que aumente a consciência... [...] a intenção do experimento é sempre a de enfatizar, apontar e sublinhar o que esta presente no momento. Portanto, afinando a percepção do presente, aumentando a awareness” (Juliano, 1999, p. 42,43). 58 sexualidade. A partir desse episódio, sua mãe freqüentemente repetia que ela parecia “lingüiça se oferecendo na frente do cachorro”. Esta situação permitiu resgatar uma espécie de cisão e inibição que a cliente passou a viver frente a sua sexualidade, muito possivelmente em função do receio de, ao vivê-las não conseguir controlar seus desejos. A conscientização deste impedimento permitiu uma nova rede de sentidos para suas dificuldades nos relacionamentos afetivos, iniciando assim uma reapropriação de seu desejo através de seus receios, vergonha e inibições. A dificuldade frente a uma maior vinculação afetiva pôde ser re-significada e do fundo pôde emergir novas gestalten uma vez que o processo de formação figura-fundo voltou a fluir. Este trabalho de conscientização propiciou à cliente o contato com uma interrupção em seu processo de maturação, o que levou a uma dissociação da erotização e da sexualidade e, conseqüentemente, um maior impedimento frente aos relacionamentos afetivos. A partir do reconhecimento da complexidade de aspectos que envolviam sua dificuldade e inibição nos relacionamentos, a cliente pôde ir se reapropriando de toda sua potencialidade de ser para os relacionamentos afetivos, dando um novo rumo para esta questão ao superar a paralização vivida e conseguir colocar sua vida afetiva em marcha. Ao compreender a meditação como uma prática que visa possibilitar um estado de abertura que permite apreender as sutilezas da vida, que o sonambulismo do cotidiano com seu véu não nos permite usufruir, a prática tanto da meditação tradicional zazen como a não tradicional “viver o próprio cotidiano” podem então criar possibilidades de expansão da consciência. Desenvolve-se assim um maior senso de 59 presença e inteireza no viver de cada situação que levam à ampliação da mente. Vejamos a seguinte passagem Zen. Certa vez perguntaram a um distinto instrutor: Fazeis qualquer esforço para vos tornardes disciplinado na verdade? Sim, faço. Como voz exercitais? Quando estou com fome, como. Quando estou cansado, durmo. Isto é o que todo mundo faz. Assim podemos considerar que eles estão também se exercitando da mesma forma por que o fazeis? Não. Por que não? Porque, quando eles comem, não estão comendo e sim pensando em várias coisas, deixando-se, portanto, perturbar por vários pensamentos. Quando eles dormem, não estão dormindo e sim sonhando com mil e uma coisas. Esta é a razão por que não são como eu. (Suzuki, 2002, p. 110). Assim podemos perceber que tanto a meditação como o continuum de presentificação, são similares em sua estrutura, prática e aparentemente em seu objetivo na medida em que ambos visam auxiliar o ser humano a se alojar no presente e conseqüentemente a melhor se apropriar de sua existência. Vejamos o que nos diz Penteado: ‘Awareness’ é a condição ‘sine qua non’ para mudança na terapia gestáltica. Não só se refere ao ‘método’ da Gestalt-terapia como é 60 ‘objetivo’ da terapia, pois com isso se pretende que o cliente possa tomar posse de seu próprio processo de ‘awarenes’s. Ou seja, ela é ‘meio e fim’. Simkin e Yontef são incisivos: ‘Em Gestalt Terapia, o objetivo é sempre awareness e apenas awareness. (Penteado, 1998, p. 83) Podemos perceber então que em GT a awareness é método através do continuum de presentificação; é processo na medida em que durante a psicoterapia o cliente ampliará sua consciência, seu estado de abertura e presença para a vida; e é também o próprio objetivo da psicoterapia em GT. Como objetivo da psicoterapia, em que horizonte ele se desenvolve, qual sua visão de homem, sua noção de cura e adoecimento? No Zen-Budismo, a meditação pode ser vista como uma estratégia, ao mesmo tempo em que é também um processo para se atingir um fim, mas poderíamos dizer que ela não é um fim em si mesma, uma vez que o principal objetivo do Budismo é a iluminação ou estado desperto. Podemos a partir daí perceber os aspectos divergentes ou, melhor dizendo, os distanciamentos dos objetivos destas práticas. Para continuarmos nossa reflexão iremos explorar agora os objetivos do Zen e da GT, seus horizontes e suas respectivas visões de homem. 61 CAPÍTULO III: AWARENESS E ILUMINAÇAO “Quando curiosamente te perguntarem, buscando saber o que é Aquilo, Não deves afirmar ou negar nada. Pois o que quer que seja afirmado não é a verdade, E o que quer que seja negado não é verdadeiro. Como alguém poderá dizer com certeza o que Aquilo possa ser Enquanto por si mesmo não tiver compreendido plenamente o que É? E, após tê-lo compreendido, que palavra deve ser enviada de uma Região Onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde possa seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece-lhes apenas o silêncio, Silêncio – e um dedo apontando o caminho". Verso Budista (Watts, 2000) 3.1 Awareness Iniciaremos este capítulo retomando parte da idéia desenvolvida anteriormente, awareness é meio, mas também é fim na GT. O que visamos como gestalt-terapeutas ao afirmar que o objetivo último na psicoterapia é a awareness? O que pretendemos ao afirmar que objetivamos ampliá-la, desenvolvê-la ou mesmo restaurá-la? O que espero ou o que pretendo quando acompanho meu cliente em sua jornada? Para responder a estas questões. iremos transitar um pouco sobre os conceitos de doença, neurose, saúde, cura na GT. 62 Ao discorrer sobre a noção de cura Ribeiro (1998) nos relembra que toda abordagem psicoterapêutica trará em sua construção teórica uma noção de cura e que, com certeza, a mesma se baseará nas premissas de saúde e doença a partir de sua visão de homem e de mundo. Na terapia gestáltica a cura não estaria relacionada à solução de problemas, mas à possibilidade de entrar em contato com o “sábio” que cada um traz dentro de si. Esta crença no “equilíbrio organísmico” para a GT permitirá ao indivíduo responder criativamente e, portanto, da melhor maneira possível às situações vividas (Ribeiro, 1998). Para que o desenvolvimento humano aconteça, ele dependerá de um ambiente favorável que possibilite à pessoa uma rede de interrelações saudáveis, sem pressões sistemáticas, para que seu potencial maturacional possa acontecer, propiciando assim seu crescimento e amadurecimento sem maiores dificuldades ou traumas.O desenvolvimento conseqüentemente possibilita o desabrochar de sua potencialidade (Ribeiro, 1998). Poderíamos aqui fazer uma aproximação destes pressupostos com a teoria winnicottiana, que também preconiza a importância de um ambiente suportivo, a mãe suficientemente boa, aquela que permite ao seu bebê o florescimento dele mesmo como ser singular e, para que isso aconteça, será necessário a identificação e seu estado devotado para com o bebê. Quando essas condições do ambiente não puderem acontecer, corre-se o risco do surgimento de um tipo relacional intrusivo e invasivo, resultando em paradas, impedimentos e traumas na continuidade do processo de amadurecimento do ser que ali está. Winnicott em seus estudos enfatiza a preponderância das falhas ambientais no processo de amadurecimento do ser humano com uma leitura muito 63 próxima de algumas idéias da GT, caminhando muito além na exploração e desenvolvimento destes aspectos em sua teoria. Não pretendo desenvolver no presente trabalho interfaces nesta direção, no entanto, penso serem relevantes tais apontamentos. Compreendo os processos ou comportamentos saudáveis e doentios como fruto dos ajustamentos criativos ou não, nas interações do homem com seu meio. Perls já observara que o homem e o meio podem estar numa relação de mutualidade e a falta da mesma poderia indicar o adoecimento. A forma como o indivíduo interage com o meio e basicamente a qualidade do contato nestas interações passam a ser um dos determinantes para o critério de saúde e doença. As situações em que a qualidade de contato é vivo e espontâneo tornam-se a marca da saúde, já as situações caracterizadas pela confusão, desconexão ou por distúrbios acentuados ou crônicos deflagram o patológico. Todos os distúrbios neuróticos surgem da incapacidade do individuo encontrar e manter o equilíbrio adequado entre ele e o resto do mundo e todos têm em comum o fato de que na neurose o social e os limites do meio sejam sentidos como se estendendo demais sobre o individuo. [...] Sua neurose é uma manobra defensiva para protegê-lo contra a ameaça de ser barrado por um mundo esmagador. (Perls, 1981, p. 45). Para a perspectiva fenomenológico-existencial, o desvelar do humano implica inevitavelmente a possibilidade de revelar e ao mesmo tempo desvelar algo de si, portanto a condição humana está assentada neste paradoxo, isto é, o ser humano é ao mesmo tempo abertura e fechamento. O desequilíbrio entre estas duas dimensões, o que 64 é ocultado e o que é explicitado, poderia estar manifestando-se como adoecimento e como processo psicopatológico (Hycner, 1995). A carência de sentidos existenciais ou uma restrição significativa em um único sentido existente poderiam ser outros sinais do adoecimento. Para Perls e para a GT, a neurose não é vista como uma “doença” mas sim uma revelação dos vários sintomas da estagnação do processo de amadurecimento. Perls explicita seu interesse em contrapor-se a uma psicoterapia normativa na qual o normal e o patológico estariam norteando o trabalho do terapeuta na busca de um ajustamento do indivíduo à sociedade constituída. Assim, seu pressuposto teria como finalidade o estabelecimento da qualidade do contato como um dos critérios de saúde. Desta forma, visaria à capacidade do indivíduo se relacionar de forma crítica e autônoma com o meio, abrindo um espaço para o único, o singular e para a autenticidade nos processos de ajustamento homem-meio, ou seja, uma ênfase na capacidade do homem se colocar criativamente em seu meio (Tellegen, 1984). O desdobramento para esta proposta é a noção de ajustamento criativo, conceito fundamental da GT, visto como a capacidade do indivíduo se auto regular dentro do meio social de maneira ativa, por meio de um contato vivo, espontâneo, autêntico, e que permita abertura ao novo e conseqüentemente abra espaço para o potencial criativo e transformador do indivíduo, em contraposição à idéia de dependência, cerceamento ou de controle social. Para Tellegen: Ajustamento criativo tem a ver com a dialética de continuidade e mudança, com a inserção estrutural do novo no velho, para formar com ele uma nova configuração. A mobilidade estrutural do todo é a base da 65 criatividade, enquanto cristalização estrutural é a fixidez do passado no presente. (Tellegen, 1984, p. 46). Na prática clínica, percebemos tais fenômenos acontecer com certa freqüência, assim foi no encontro com Rita. Durante sua psicoterapia, em vários momentos trazia a falta da figura paterna em sua infância e adolescência. O que para ela dava a impressão de “ter um buraco”, como o de uma janela, no qual deveria existir de fato uma janela. Seus pais separaram-se quando ela ainda era muito pequena, assim ela e sua irmã, dois anos mais velha, foram criadas por sua mãe. Em uma de nossas sessões Rita relembra a importância de um tio em sua adolescência e início da vida adulta, e que a auxiliou em situações difíceis, tanto emocionalmente como financeiramente. A partir destas lembranças Rita retorna no tempo relatando algumas experiências com figuras masculinas como, por exemplo, seu avô materno e um amigo dele. Rita conta sobre a presença do avô em sua infância e principalmente a daquele grande amigo, pessoas extremamente afetivas com quem viveu situações como aprender a pintar rodapé enquanto estes pintavam uma parede; ou aprender a colocar uma minhoca num anzol quando ambos iam pescar. Nas sessões posteriores Rita retoma essa questão (a presença do avô materno e do amigo) comentando a importância e a participação deles em sua infância, relatando outras lembranças de situações significativas vividas na companhia e presença do avô e de seu amigo.Por meio destes relatos, das lembranças das experiências vividas com o avô, o amigo do avô e de seu tio, durante sua infância, adolescência e início da fase adulta, Rita começa a se conscientizar da importância destas vivências e do quanto 66 estas figuras masculinas foram significativas e suportivas em momentos importantes de seu processo de desenvolvimento. Este trabalho propiciou à cliente o reconhecimento da construção de um vitral no local onde anteriormente existia o buraco “janela” gerado pela falta da figura paterna. O que antes era percebido como fragmentos de contato com figuras masculinas, “cacos de vidro”, com o decorrer do processo terapêutico e do processo de apropriação de sua história de vida, tanto de suas faltas e perdas, como do pai, como de seus ganhos com presenças e vivências significativas como com seu avô, o amigo do avô e o tio, passou a constituir um belo vitral. Em outras palavras, Rita conseguiu re-significar um pedaço de sua história de vida ao rever sua própria história, se reapropriando de suas perdas e de seus ganhos. Ao realizar isto, pôde colocar sua vida em marcha, abrindo espaço no presente para melhor cuidar de sua vida afetiva e profissional. Esta situação ilustra com propriedade as situações de ajustamento criativo. No caso de Rita, a partir de uma situação de falta e perda, ela conseguiu ir para além da mesma. Não permaneceu prisioneira desta falta, alcançou por meio de outras relações constituídas em sua vida e ofertadas pelo meio uma nova possibilidade, frente à necessidade e importância da figura paterna. A construção do vitral permitiu a Rita a percepção e integração da presença dessas figuras em sua vida, antes tida como lugar de ausência e perda. Pôde assim re-significar uma situação inacabada, ou seja, pôde fechar esta gestalt. Um outro aspecto a ser ressaltado é que, no cerne de todo comportamento disfuncional ou neurótico, houve em algum momento algo de criativo e funcional, uma vez que possivelmente aquela foi a melhor saída encontrada pelo indivíduo. Dentro de 67 determinadas circunstâncias, a perpetuação deste comportamento, sem levar em consideração as alterações do meio e as novas necessidades ou mesmo possibilidades de resposta, leva ao processo de cristalização, uma espécie de perpetuação do passado no presente. Um dos objetivos da psicoterapia gestáltica, pela recuperação da capacidade de estabelecer ajustamentos criativos, é devolver a repetição, a fixação e o passado ao seu caráter histórico. O fechamento de situações inacabadas possibilita novas configurações no campo existencial e perceptual do cliente pois, quando esta figura cristalizada retrocede para o fundo, abre-se um novo espaço para que novas necessidades e possibilidades possam surgir, e conseqüentemente serem atendidas dentro do possível. “Encerrar situações inacabadas” é para Perls o caminho para recolocar o passado no seu devido lugar, transformá-lo em recordação, restabelecer o presente ao cliente para que novas situações possam ser vividas e exploradas e assim ressurgir seu potencial criativo, sua espontaneidade e conseqüentemente maior autonomia. No caso de Rita, este processo de fechamento de uma situação inacabada - a falta do pai em sua infância - e o ajustamento criativo, através do que o meio pôde ofertar, e sua capacidade de usar e se apropriar destas experiências, permitiram abrir espaço em sua vida atual para que novas questões pudessem surgir, como por exemplo, situações ligadas a sua vida profissional que até então também estavam caminhando aquém de seu desejo, necessidade e possibilidade. Toda esta nova configuração permitiu a retomada do fluxo natural de formação e destruição de figuras. Ciornai (1994), apresenta-nos um resumo desta idéia de uma forma límpida e poética vejamos o que ela diz: 68 Em Gestalt-Terapia, funcionamento saudável é literalmente equacionado como funcionamento criativo, como a habilidade de estabelecer contatos frescos e criativos com o que for, com a pessoa que esteja se relacionando, como a habilidade de gerar e manter fluxos de consciência que possam conduzir a soluções satisfatórias e criativas em nossas vidas. Uma característica que identifica os seres humanos. Criatividade é, portanto, um processo da vida. (Ciornai, 1994, p. 11). A GT acredita que a mudança de perspectiva, ou a re-significação, é uma das vias para transformar e liberar o processo de cristalização vivido pelo cliente. Por este pressuposto, o psicoterapeuta apresenta ao cliente um olhar novo para determinada situação, o que não significa que o olhar do terapeuta é melhor que o do cliente, mas, neste momento, ele simplesmente empresta um olhar diferente que permitirá uma espécie de “arejamento” em uma situação antes dominada pela paralisação. Novos ventos propiciam o restabelecimento da mobilidade ao permitir um olhar novo para a mesma situação e, assim novas leituras e compreensões para o vivido. Nas palavras de Juliano: Não temos o poder de mudar os fatos da vida; o ponto de partida da psicoterapia consiste na possibilidade de olhar a própria vida a partir de um outro ângulo, a partir de uma perspectiva completamente diferente. Reconstruindo uma outra história. (Juliano, 1999, p. 47). Discorrendo sobre a importância da mudança de perspectiva para Perls, Tellegen (1984) escreve: 69 Pensar, concentrar-se, imaginar equivale a gerar informação capaz de orientar respostas em nível de ação. E a idéia que lhe é tão cara de que o homem, ao colocar-se em estado de disponibilidade ou de ‘ indiferença criativa’, segundo os termos emprestados a Friedläender, pode abranger dimensões opostas de uma mesma questão, vislumbrando a relação dialética que as une, diz respeito precisamente à possibilidade de ‘mudança de perspectiva’ que vai desvendar novas relações de significados e novas alternativas de ação. (Tellegen, 1984, p. 67). Dando continuidade à idéia de ilustrar clinicamente alguns conceitos teóricos, lanço mão de uma nova vinheta clínica: Ana em busca do novo. Ana, casada há aproximadamente quinze anos, procurou ajuda psicológica ao se descobrir apaixonada por um outro homem, com quem teve um rápido envolvimento, o que gerou angústia e sofrimentos intensos. Para Ana a concepção sobre seu casamento era “para toda a vida” e, portanto, jamais esperara viver tal situação. No início do processo seu desejo era livrar-se o mais rapidamente deste sentimento que estava criando tanta instabilidade e tanto sofrimento em sua vida. A princípio, sua leitura era mais ou menos a seguinte “minha vida estava ótima e de repente fui atropelada por esta pessoa e por este sentimento”. Com o passar dos atendimentos, Ana começou a perceber que sua vida não ia tão bem e que seu casamento vivia uma grande crise. Sentia-se insatisfeita com o rumo que o casamento tomou, totalmente atrelada ao marido, quase sem vida própria, e prisioneira de um impasse situacional e existencial que ela mesma permitira. 70 Na medida que o processo foi evoluindo a cliente começou a reivindicar uma maior autonomia e alternativas de uma vida própria na qual ela pudesse imprimir suas próprias necessidades, motivações, desejos. Um tempo significativo passou até que numa dada sessão a cliente chegou muito alegre e contou que pela primeira vez tinha ido a uma festa “gay”. Convidada por um colega de trabalho, fora pela primeira vez “sozinha” a um aniversário, e nesse caso a novidade: uma festa “gay”. Mencionou que há muito não se divertia tanto sozinha e, para minha surpresa, acrescentou que isto só foi possível graças à experiência extra-conjugal com todos os desdobramentos que esta relação lhe proporcionara. Em face da dinâmica relacional que Ana passou a viver, aquilo que inicialmente foi visto como traumático, revelou-se abertura e liberdade frente a seu destino e a sua própria existência. A situação de crise tornou-se situação de oportunidade, oportunidade de descoberta de si mesma, num momento em que sua vida estava oprimida e abafada. Ao perceber a crise e transformá-la em oportunidade, Ana conseguiu dar um destino ao seu sofrimento, aspecto que merece relevância por lhe permitir a saída de um ciclo de inautenticidade e a instalação de um ciclo de autenticidade. A possibilidade de criação de um sentido ou de novos sentidos para o sofrimento também é outro aspecto importante para a ampliação da awareness, ao produzir nova rede de possibilidades no campo existencial e perceptual do cliente, instalando assim novas perspectivas Em outras palavras, a abertura para o inédito! O desenvolvimento do contato torna-se um dos eixos centrais na GT, pois junto com a awareness, e o aqui e agora, eles estarão formando o que Lilienthal 71 (1994), nomeou de “tripé fundamental”, que possibilita o processo de awareness. Juliano, discorrendo sobre a importância do contato, menciona que o objetivo da psicoterapia “[...] é restaurar a qualidade do contato com o mundo, buscando a vivacidade, a fluidez, a disponibilidade e a abertura, o ritmo e a discriminação nesse processo contínuo em que o homem e o mundo se transformam” (Juliano, 1999, p. 25). Com a ampliação e desenvolvimento da qualidade de contato intrapessoal, interpessoal e transpessoal do cliente, visamos uma maior apropriação de seus recursos pessoais no intuito de um intercâmbio mais rico com o meio. Todo este trabalho de lapidação do contato possibilita a ampliação da awareness compreendida como maior conhecimento de si mesmo e do ambiente, maior auto-aceitação e responsabilidade pelas escolhas, o que permite discriminar e ampliar o potencial humano, sua forma de ser. Dentro da perspectiva gestáltica, a própria relação terapêutica torna-se o melhor campo para avaliação e desenvolvimento da qualidade de contato. O espaço terapêutico, neste sentido, pode se tornar uma espécie de laboratório, na medida em que propicia ao cliente um local para a observação e avaliação de seu modo de ser, possibilitando, também, uma oportunidade para experienciar novas formas de ser e assim criar novos sentidos e significados para sua existência. Uma nova vinheta ajuda-nos na compreensão de como o espaço terapêutico na GT pode se tornar uma espécie de laboratório ao mesmo tempo que propicia o desenvolvimento da qualidade do contato, por meio da relação terapeutacliente, isto é, pelo experenciar o presente. 72 Carlos era um professor do ensino médio extremamente comprometido com seu trabalho e seus ideais, e que desenvolvia um trabalho criativo e crítico, reconhecido plenamente na instituição em que trabalhava. O jogo de quebra-cabeça foi a porta de entrada para iniciar um trabalho de reaproximação com sua falta de habilidade para lidar com atividades manuais. Podemos dizer que houve uma cristalização desta faceta após experiências marcantes vividas com seu pai, pessoa rude, analfabeto, e que nunca se interessou por seus estudos. Contou que constantemente era comparado pelo pai a seus irmãos como aquele que “nada sabia fazer”, que não tinha nenhuma habilidade física, e que “a única coisa que sabia fazer era ler e escrever”, habilidade não valorizadas pelo pai. Após uma sessão intensa em que o cliente ficou mobilizado com a temática em questão, emergiu um sentimento de fracasso frente a toda sua existência. Neste momento a falta de habilidade manual encobria toda sua potencialidade de ser. Durante o trabalho, em um momento de maior descontração, brinca que não conseguia trocar uma lâmpada e nem ajudar seu filho a montar um quebra-cabeça. Brinco com a idéia de que talvez pudéssemos juntos experimentar estas duas possibilidades na sessão. A idéia de usar o jogo de quebra-cabeça durante a sessão mobilizou o cliente de uma tal maneira que a partir deste encontro passamos a utilizar o jogo em alguns de nossos encontros posteriores. Por meio do jogo de encaixar e montar peças concretamente, e das imagens e metáforas que foram surgindo a partir do próprio jogo, iniciamos um percurso de exploração, apropriação e expansão das capacidades e qualidades manuais de Carlos e seus desdobramentos relacionais na vida. O ambiente protegido da sessão, a postura de acolhimento e aceitação de suas dificuldades e limitações, facilitaram a assimilação e integração de toda esta faceta até então dissociada do seu modo de ser. 73 Tendo em vista os estigmas e rótulos instaurados na infância, Carlos se viu impedido de lidar com os aspectos pragmáticos e comuns do cotidiano e do universo masculino. Portanto o jogo funcionou como possibilidade de restabelecimento de sua capacidade relacional. Atravessou tanto as questões intrapsíquicas como as interpessoais, favoreceu seu processo de reapropriação de si mesmo, e permitiu retomar o processo maturacional – isto é, o contato nos encontros com Carlos foi o vértice fundamental para a “acontecência”24 “potência de ser”. Rehfeld (2000) relata que terapia vem do grego Therapeia, que significa cuidado, atenção, desvelo. Podemos pensar a psicoterapia como um espaço para estar presente junto e com o cliente, na retomada de seu processo de existir, agora acompanhado. Esta idéia indica um aspecto fundamental na perspectiva gestáltica: a importância da presença do outro no existir humano; é através desta presença, desta relação com o outro e de sua confirmação que eu me descubro e me reconheço humano, ou experiencio as situações de achatamento ou de impossibilidade de meu existir (Buber, 1979). Este princípio norteará e sustentará a prática clínica. Assim, na psicoterapia, a possibilidade de experenciar um processo de existir acompanhado, num clima de acolhimento, propicia espaço para o outro ser, não impondo ou determinando a ele seu modo de ser, mas simplesmente o acompanhando e o auxiliando a cuidar, e a aprender a cuidar de seu ser. Permite ainda a recriação de um inter-relacionamento saudável, a experiência de “companheiros de viagem”. Ao promover um espaço para a 24 Ao me referir ao termo acontecência, utilizo-o conforme as concepções desenvolvidas pelo Prof. Dr. Zeljko Lopparic no Núcleo de Práticas Clínicas do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. 1º semestre de 1998. Acontecência é definida como possibilidade de acontecer no mundo humano: o homem como aquele que tem seu acontecer marcado pela temporalidade, isto é, pela finitude! 74 auto-aceitação, esta aceitação, torna-se uma ponte rumo à integração, à busca de novos sentidos para a existência e para o acontecer de sua “verdadeira natureza”. Refletindo a respeito da psicoterapia e do papel do terapeuta numa abordagem fenomenológico-existencial, Cytrynowicz (l978) nos apresenta uma bela e profunda metáfora. que ilustra perfeitamente o que busco desenvolver: [...] é tarefa primordial do terapeuta zelar pelo desabrochar da riqueza humana, isto é, estar constantemente atento para o desvelamento do poder ser próprio de cada paciente. Não é o terapeuta quem deve indicar o que é próprio de cada paciente – isto é até um contrasenso ao sentido mesmo de próprio – O terapeuta deve atuar como um jardineiro que cultiva uma planta. O jardineiro não produz a planta como se produz um automóvel, não cria a terra nem a semente, nem planeja os passos que devem ser seguidos pela planta para atingir a maturidade, florir e frutificar. Ele somente cria melhores condições de solo, abriga a muda, quando muito pequena, contra condições climáticas adversas, protege-a na medida do possível contra os insetos, livra-lhe a área de crescimento, para que ela não morra por falta de espaço ou luz. Mas não é ele que a faz crescer. O crescimento da planta é dela própria. É ela que absorve o alimento do solo e principalmente é ela quem deita suas raízes próprias [...] (Cytrynowicz, l978, p. 45) Refletindo um pouco mais sobre o que é próprio do ser e sobre as condições facilitadoras da mudança, Baisser (in Fagan e Shepherd, 1980) gestaltterapeuta da primeira geração, em seu conhecido artigo “A teoria paradoxal da mudança”, desenvolve uma idéia interessante e que posteriormente tornou-se um dos 75 pilares centrais da GT no que diz respeito à noção de mudança. Para ele, o ser humano só muda quando abre mão de tentar tornar-se o que não é, ou seja, é só pela aceitação e reconhecimento daquilo que se é, sua própria natureza, que um novo horizonte se descortina diante do homem. Para que a terapia possa de fato realizar seu caráter transformador e libertador, torna-se necessário que o terapeuta, além de acompanhar, cuidar e auxiliar seu cliente em seu processo de transformação, também o ensine a cuidar de si, num sentido prospectivo, para que a doença não chegue a se instalar. Rehfeld (2000) retoma uma origem anterior à palavra grega Terapeia citando Terufá, palavra que vem do hebraico e que foi assimilada pelos gregos, assinalando que seu significado vai além da noção de cuidado, de cura - “[...] cabe ao terapeuta cuidar do ser e ensiná-lo a cuidar de si e não somente tratar a doença” (Rehfeld, 2000, p. 60). Quando o cliente aprende verdadeiramente a cuidar de si, ele descobre a preciosidade de sua existência e a importância do cuidado em relação a ela. Neste momento ele consegue acreditar em si mesmo, no outro e no mundo, pois despertou seu sábio interior. Agora, estará apto a reinserir a “graça” novamente em sua vida, “até se constelar um novo combate” (Juliano, 1999). Stevens (1977b) no livro Isto é Gestalt, assinala com muita clareza e simplicidade que: Talvez a mensagem mais notável da Gestalt e no entanto óbvia, seja a seguinte: se você vê claramente os acontecimentos da sua vida, o seu viver vai bem, sem confusão e sofrimentos desnecessários. Algumas vezes a vida é difícil e dolorosa, às vezes alegre e plena. Com consciência você 76 poderá minimizar a dor e aumentar alegrias e satisfações. [...] A filosofia da Gestalt serve como uma orientação de vida, um lembrete de que a consciência é sempre útil, e oferece técnicas e estratégias específicas que podemos usar para caminhar em direção a uma maior tomada de consciência. (Stevens, 1977b, p. 14-15). 3.2 Iluminação ou satori Conta-se que Sidarta Gautama, o Buda, era bastante cuidadoso e evitava qualquer descrição da iluminação e que, quando indagado sobre a mesma ou os mistérios do universo, ele mantinha “um nobre silêncio”, repetindo que sua doutrina, o dharma, estava apenas preocupada com o caminho para a iluminação (Watts, 2000). O objetivo último do Budismo e do Zen Budismo é a iluminação ou satori também às vezes chamado de estado desperto25, algo difícil de ser descrito ou mesmo indefinível. Segundo Fromm, algo que só pode ser abordado de forma tangencial. Suzuki (2002, p.113), em sua simplicidade, apresenta-o como “a aquisição de um novo ponto de vista” [...] “um olhar intuitivo no âmago das coisas, em contraposição à sua compreensão intelectual ou lógica [...] o desabrochar de um novo mundo até então despercebido, em face da confusão da mente dualística” (Idem, 2002, p. 113). Com a iluminação, nós despertamos nossa natureza búdica, natureza que habita todos os seres enquanto plena potencialidade, nós nos tornamos Buda, despertamos a natureza de nosso verdadeiro ser. Estamos falando de uma espécie de abertura que possibilita ao homem um elevado estado de consciência, no qual encontra a união com a 25 Estado desperto: Em algumas tradições do Budismo, como a tradição Vajrayaina, ou também conhecida como a linhagem tibetana, estado desperto ou iluminação é chamado de awareness. 77 realidade definitiva do universo, rompendo assim com qualquer compreensão dualista. Para o Zen, o satori é essencialmente uma experiência súbita, que só pode ser encontrada “na vida do mundo e não no afastamento do mundo”. Dizendo de outra forma, é na práxis, no existir cotidiano com sua fonte primordial de inspiração e provocação, que poderemos encontrar a centelha para iluminação e que, como primeiro passo, impõe um voltar-se a si mesmo, ao seu mundo cotidiano e concreto, onde toda busca principia e ao mesmo tempo se encerra. Inúmeras vezes o satori também é descrito como uma experiência de “reviravolta” da mente, uma libertação do nosso usual estado de tensão e apego às falsas idéias de posse, de controle ou de conhecimento da realidade e da vida. Repentinamente, toda a rígida estrutura usada na interpretação humana da vida é despedaçada e como resultado traz um ilimitado sentido de liberdade. Vejamos um relato a respeito da experiência de um mestre: O satori está além da descrição e é completamente incomunicável, pois não há nada no mundo com que possa ser comparado... Quando olhava ao redor, para cima e para baixo, todo o universo com seus múltiplos objetos sensoriais parecia agora completamente diferente; o que antes parecia repugnante, junto com a ignorância e as paixões, foi visto como um simples fluir da minha natureza mais profunda, que em si mesma permanecia brilhante, verdadeira e transparente. (Watts, 2000, p. 78-79). 78 Nas palavras de Suzuki: [...] quando o satori é alcançado, o que é irracional deixa de sê-lo; as irracionalidades caem ao nível da lógica e do senso comum. Diz-se que o caçador não conhece as montanhas porque ele está exatamente nelas. Ele tem que estar suspenso no ar para ver toda a cadeia de ondulações. O satori realiza esse fato; ele destaca o homem do seu contexto, e o faz reconhecer o campo inteiro. (Suzuki, 1977, p. 47-48). Para nos aproximarmos da compreensão da iluminação teremos que atravessar o oceano de paradoxos ao qual o Zen nos lança e, para nós, marinheiros de primeira viagem, o movimento inicial é rotineiramente a paralisação. No entanto, para atravessarmos este oceano, e atravessar significa necessariamente vivê-lo, suportá-lo e sustentá-lo, precisamos seguir em frente. Isto posto, o satori verdadeiro é ao mesmo tempo imanente e transcendente, para que ele possa operar é necessário que o sujeito se torne objeto e que o objeto se torne sujeito. Assim, no satori, o que é imanente é transcendente e o que é transcendente é imanente: “o caçador está, ao mesmo tempo, fora e dentro das montanhas, pois nunca se afastou delas” (Idem, p. 48). Para melhor compreender a noção de iluminação para o Zen, uma espécie de alerta presente no prefácio do livro “A arte cavalheiresca do arqueiro Zen” Herrigel (2001) poderá nos ser bastante oportuna: [...] Mas tal encontro exigirá, por parte do leitor, algumas abdicações. A lógica do pensamento ocidental deve ser posta de lado. A estrutura do 79 cartesianismo, reduzida a cinzas. A relação causa-efeito, desprezada. A separação sujeito-objeto, ignorada. O tédio, ridicularizado. Mas a paixão pela vida, enaltecida. (Ismael in Herrigel, 2001, p. 5). Percebemos que para a compreensão tanto do Budismo como do ZenBudismo, é necessária uma espécie de ruptura com conceitos centrais do pensamento ocidental, em sua maioria vistos pela filosofia oriental como dualismo, dicotomias a serem ultrapassadas. Assim, poderíamos entender a iluminação como uma superação das noções de tempo-espaço, sujeito-objeto, mente-corpo, eu-outro, eu-mundo. A iluminação é algo que não pode ser captado pela razão ou por uma análise intelectual. Trata-se de uma experiência que não pode ser transmitida por explicações ou argumentos mas, fundamentalmente, uma experiência que precisa ser vivida. Toda proposta do Zen, que enfatiza que o fundamental no ser humano é sua transformação existencial e que é esta sua verdadeira razão de ser, nos auxilia rumo a uma melhor compreensão desta proposta. A possibilidade de sua transmissão verbal, com total clareza, a quem não a tivesse alcançado indicaria que não se trata mais da experiência de satori, pois neste momento estaremos correndo o risco de nos emaranharmos na teorização, escapando de sua proposta, que acena para a vivência como campo operacional concreto da mudança da consciência. Quando o satori se torna um conceito, ele impossibilita a própria experiência, uma vez que o conceito aprisiona e mata a possibilidade da vivência plena. O que o Zen pode proporcionar como sugestão, instrução ou mesmo indicação, é assinalar o caminho pelo qual a atenção de cada praticante poderá ser orientada em direção ao alvo. Atingi-lo, porém, é algo que só pode ser realizado por 80 cada um, com suas próprias mãos e seu próprio caminhar, uma vez que ninguém mais poderá trilhá-lo (Suzuki, 2002). Um outro aspecto importante para a compreensão do satori é a noção de presente absoluto, que segundo o Zen, possibilita romper com o confinamento vivido dentro da estrutura de tempo e espaço, e que tira do homem seu espírito livre e autoregulado, uma vez que a estrutura da consciência impõe à mente as regras do tempo e do espaço e, conseqüentemente, uma estruturação e conceitualização lógica. As contradições e provocações apresentadas pelos mestres, tanto nas frases ou histórias aparentemente absurdas, como nas reações imprevisíveis e muitas vezes disparatadas, visam exatamente uma profunda mudança psicológica na medida em que “rompem as algemas do cativeiro do tempo”. Apresentam ao discípulo a descoberta de uma outra vida além da já conhecida, centrada geralmente em ruminações sobre as frustrações do passado, ou a expectativa angustiante dos acontecimentos futuros ainda por vir e que também geram grande ansiedade, ou mesmo o risco do aprisionamento que mantém o individuo dentro do território conhecido não permitindo o se lançar para o desconhecido e para o mais além. Tanto a meditação como os koans e os mondos podem ser compreendidos como facilitadores para a vivência do presente absoluto, práticas que visam manter e desenvolver no discípulo o contato pleno com a experiência presente acompanhada a cada instante pela consciência. Também é importante assinalar que essas práticas não asseguram a conquista da iluminação, uma vez que para o Zen não existem fórmulas prontas, elas são meios, facilitadores na busca deste fim; atingi-la sempre dependerá das articulações e criações de cada pessoa. 81 O presente absoluto, Sokkon em japonês, que também poderia ser compreendido como “este exato momento”, busca a experiência ou vivência pura e não a freqüente mistura com alguma coisa a mais, resquícios de outros acontecimentos vividos ou prospecções sobre os acontecimentos futuros, velhos conhecidos do nosso viver. O ato puro, vivido em sua totalidade e “inteireza”, quando a mente pode estar inteira nela mesma e não esfacelada pela tensão ou pré-ocupação, propicia à própria mente um lugar de descanso, tranqüilidade e equilíbrio. Assim como na perspectiva dialógica buberiana, o encontro é algo que acontece. Para o Zen, quando a mente do homem está amadurecida para o satori este também acontece, “...ele tropeça com ele em qualquer lugar [...] o leve toque de um fio no outro produz uma centelha, que resulta numa explosão que sacudirá a terra” (Suzuki, 2002 p.116-117). Qualquer acontecimento aparentemente comum, ”ordinário”, proporcionará esta vivência “extraordinária”, um pôr-do-sol, um sorriso, uma cena de um filme, o retornará a você mesmo ou, em outras palavras, reencontrará seu verdadeiro ser, a sua verdadeira natureza. Parafraseando Buber 26 , o satori me encontra pela “graça” e não pela insistência da minha busca, porém se não me colocar em marcha, a caminho, não acontecerá o satori, (encontro). Podemos também perceber que todas as condições para o satori encontram-se no ser humano, aguardando apenas o processo de maturação, de despertar, que possibilite o seu desabrochar. 26 Buber, M.: Filósofo, educador e humanista, considerado por muitos autores como filósofo existencialista ou filósofo da vida, sentiu o colapso do relacionamento na civilização moderna. Desenvolveu os aspectos relacionais ou dialógicos das relações humanas, destacando duas motivações básicas nessas relações humanas: o Eu-Tu e o Eu-Isso: se eu estou me relacionando com o outro como pessoa , atento à sua alteridade, ou se eu o estou tratando como um fim para meus objetivos, em outras palavras se estou coisificando o outro. Este trabalho foi desenvolvido em seu livro Eu-Tu, Buber é um dos autores muito citado pelos GT, na busca da fundamentação existencial da abordagem. 82 Nas palavras de Watts (2000, p. 94), “[...] o satori é a compreensão de nossa própria e mais íntima natureza”, que possibilita estar no mundo e percebê-lo como ele realmente é. Esta possibilidade implica “largar o ponto de apoio”, que rotineiramente fomos habituados a construir e, do qual normalmente temos muita dificuldade em nos desprender, uma vez que buscamos uma espécie de sustentação e garantia em alguns conceitos e constructos de como o “mundo é, ou como ele funciona”, sem percebermos que estas mesmas definições e explicações acabam nos aprisionando em nosso modo de existir; restrito, impeditivo e muitas vezes limitador. Toda busca do Zen caminha exatamente no rompimento destas estruturas, destes pontos de apoio que reduzem o viver pleno em especulações sobre o viver, ou a regras sobre o viver, e que acabam por confundir o “viver pleno” com as especulações e conjecturas sobre o mesmo. Este desprendimento, ou ruptura, com os pontos de apoio, visa permitir aceitar a vida como ela é, fluida, livre, espontânea, ilimitada, sempre aberta ao imprevisível, ao novo e, portanto, dinâmica, impermanente. Suzuki (1977) observa que a busca do Zen não é uma experiência fragmentada ou parcial mas, sim, uma experiência que envolve todo o ser e portanto, busca uma transformação total. Nesta transformação, o “eu” aparentemente não sofre uma alteração, os antigos órgãos dos sentidos continuam os mesmos, assim como o intelecto e os sentimentos, como também continuam as antigas referências do mundo onde o “eu” se coloca: o sol continua a brilhar, o rio continua a fluir. Uma conhecida frase de um mestre Zen poderá ilustrar a questão: [...] Antes de um homem conhecer o Zen, as montanhas são para ele montanhas e as águas são águas. Quando ele começa aprender o Zen, as 83 montanhas deixam de ser montanhas e as águas deixam de ser águas. Quando ele realiza o Zen, as montanhas voltam a ser montanhas e as águas voltam a ser águas. (Suzuki apud Pinto, 1980, p.68). Com esta transformação: [...] Embora todos os acontecimentos à minha volta sejam familiares, o ‘Eu’ não é o mesmo ‘Eu’, nem o mundo é o mesmo mundo. Deu-se uma transformação total em alguma parte; ela não pode ser chamada de uma experiência. A experiência é psicológica, enquanto que a transformação a que o Zen se refere não é meramente psicológica, ela pode ser qualificada de metafísica ou existencial, o que é ser mais do que psicológica. Não há dúvida alguma de que o Zen tem o seu aspecto psicológico, mas ele vai além [...] (Suzuki, 1977, p. 35). Compreendo que a intenção de Suzuki aqui é enfatizar que a mudança que o Zen busca é da ordem do ontológico27 e não apenas do ôntico28. 27 Segundo Buarque de Holanda (1988, p. 467), ontológico: “ … trata do ser enquanto ser, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres…” . Segundo Safra (2004) “O ontológico aponta para o lugar a partir do qual a condição humana se abre para a existência. ... Pela perspectiva heideggeriana o ontológico refere-se às condições sob as quais a vida nos é dada, é o aspecto fundante da condição humana”. Safra(2004) “Espiritualidade e religiosidade na clínica contemporânea” Trabalhado apresentado no V seminário Nacional de Psicologia e Senso Religioso: Religião e Espiritualidade, ainda não publicado. PUC-CAMP, SP, 2004 28 Segundo SAFRA, em comunicação oral no Laboratório de Estudos da Transicionalidade-LET na PUCSP, 2003, ôntico está relacionado ao aspecto puramente psicológico do ser, ou seja, em termos de representações, imagens, mundo interno e simbólico do sujeito, em outras palavras o “ôntico refere-se aos acontecimentos no mundo em que o campo representacional é privilegiado”, Safra(2004) “Espiritualidade e religiosidade na clínica contemporânea” Trabalhado apresentado no V Seminário Nacional de Psicologia e Senso Religioso: Religião e Espiritualidade, ainda não publicado. PUC-CAMP, SP, 2004 84 Para finalizar esta trajetória pelos campos da iluminação, recorro novamente a Suzuki (2002) que com sua beleza e poesia pôde sintetizar este caminhar. Há algo rejuvenescedor na posse do Zen. As flores da primavera parecem mais belas, os regatos das montanhas mais frios e mais transparentes. A revolução subjetiva que nos trouxe esse estado de coisas, não pode ser chamada de anormal. Se a vida torna mais gozável, e seu âmbito se expande para incluir o próprio universo, tem de haver algo pelo qual valha a pena lutar. (Suzuki, 2002, p.122). 3.3 Aproximações e distanciamentos A investigação destes conceitos revela que estas propostas acenam para uma confiança no ser humano e é dentro desta perspectiva que elas se desenvolvem, enfatizando a liberdade do ser humano, sua responsabilidade diante de sua existência, sua capacidade de escolha, seu poder frente a si mesmo e a sua própria existência, sua capacidade de expansão da consciência, sua busca incessante rumo à transcendência, aqui entendida como o movimento humano natural de ir mais além de si mesmo. Enfim, sua capacidade de destinar sua própria existência. Tais propostas carregam pois todas estas afinidades em sua visão de homem. As matrizes destes conceitos revelam uma crença no potencial humano, em sua capacidade de integração e de desenvolvimento. Na perspectiva budista a liberdade não é outorgada, mas cultivada, isto é, ela necessariamente independe das condições ou do ambiente em que o indivíduo se encontra. Há no Budismo uma ênfase na capacidade do ser humano lidar com as adversidades, e isto é possível a partir do momento em que o homem conhece e aprende 85 a lidar com seus próprios sentimentos, ou seja, ao lidar com a raiva, com a inveja, com o orgulho, com o desespero, com a angústia. A transformação destes sentimentos instrumentaliza o indivíduo a lidar com qualquer acontecimento do cotidiano. Estamos aqui diante de pessoas mais fortalecidas, firmes, capazes de residir no aqui e agora e não absorvidas pelo passado ou pelo futuro. Pessoas mais livres, capazes de lidar melhor com qualquer situação independentemente das circunstâncias. (Hanh, 2004). Para a GT a noção de liberdade está muito próxima da perspectiva budista. O homem não escolhe o local de seu nascimento mas, uma vez lançado, cabe a ele construir seu próprio projeto existencial dentro das limitações do meio em que está inserido. O homem portanto sempre terá uma liberdade de escolha e de ação dentro deste campo. A liberdade pode ser compreendida como a capacidade do homem de criar dentro do possível. No entanto, também podemos perceber, com relação à própria liberdade, um diferencial entre estas duas perspectivas. A visão de angústia estará definindo este diferencial. Para a GT, em sua perspectiva existencial, a angústia é inerente à condição humana, uma vez que o ser humano é abertura, e diante desta abertura o homem não tem condições de realizar todas suas potencialidades, nem tem garantias frente a suas escolhas. Sua trajetória estará sempre marcada pela angústia que, poderíamos assim dizer, é a marca da precariedade da própria existência humana, é a vivência da angústia que desvela ao homem suas possibilidades, colocando-o em contato com o nada, com o não-ser, com aquilo que ainda não é, mas que no entanto poderá ou não ser. Poderíamos pensar que este nada é um “vazio fértil, cheio de possibilidades”, noção que Perls, emprestou da filosofia oriental. A angústia, na perspectiva existencial, não pode ser superada pelo homem, mas sim sustentada por ele. 86 Portanto, em última instância, o homem pode ir para a morte sem medo, mas não sem angústia, uma vez que ela é a própria possibilidade da impossibilidade. Para o Budismo, o ser humano também é abertura e o sofrimento assim como a angústia fazem parte da condição humana, tornando-se oportunidades para o auto-conhecimento e para a transcendência humana. No entanto, o Budismo, com a supressão dos desejos e o desapego do “eu”, acena para a superação do sofrimento e conseqüentemente da própria angústia, e a iluminação possibilita esta superação. Dentro desta perspectiva, ela pode sim ser superada. O Zen, assim como a GT, enfatiza a transformação existencial do ser humano rumo ao desabrochar de sua “própria natureza” não só privilegiando os aspectos relacionais do ser humano mas enfatizando o fundamento relacional da existência: a GT, pela importância dada à noção do entre, dialógico29, ou relacional proposta por Buber (1979); e no Zen, pela noção de inter-ser ou interdependência30. Ao enfatizar este aspecto dialógico ou relacional da existência humana, Buber (1979) assinala que a característica fundante do ser humano é sua natureza inerentemente relacional, nesta vertente o homem só pode ser, com os outros. Assim, o que todo ser humano anseia é um encontro autêntico, verdadeiro e genuíno com o outro humano, no qual reconheço e sou reconhecido pela humanidade do outro. Este é o ‘entre’, “o verdadeiro lugar e o berço do que acontece entre os homens” (Buber apud Hycner e Jacobs, 1997, p. 29). 29 Dialógico ou entre: “ não se refere ao ‘discurso’ como tal, mas ao fato de que a existência humana, em seu nível mais fundamental, é inerentemente relacional” (Hycner, 1995, p. 22). Este diálogo acontece através da vivência de duas possibilidades de relações: o EU-TU e EU-ISSO, duas atitudes fundamentais do ser humano para relacionar-se com os outros e com o mundo. 30 Inter-ser ou interdependência: “Ser mutuamente.. [...] do todo contido no um e do um contido no todo” (Hanh, 2002, p.115). “Nós não somos, nós inter-somos. Todas as coisas co-existem.. [...] “inter-são”. Nós não podemos ser apenas nós mesmos; nós temos de interser com todas as demais coisas” . (Hanh, 2000, p.16, 17). 87 No Zen iremos observar esta mesma idéia, na medida em que ele não apenas reconhecerá esta interdependência humana e sua natureza relacional como também irá ampliá-la, acrescentando que o homem, além de ser com os outros homens, necessita “inter-ser” com todas as demais “coisas”, “numa folha de papel podemos ver o todo: a nuvem, a floresta o lenhador. Eu sou; portanto, você é. Você é; portanto eu sou.” (Hanh, 2002, p.116). Há aqui uma perspectiva ainda mais abrangente que não apenas inclui o “outro” mas todos os “outros”, a natureza propriamente dita, poderíamos dizer numa perspectiva mais ecológica. É clara à ênfase que o Budismo dá ao binômio homem-meio. Muito embora em alguns momentos aparentemente a ênfase esteja no homem, o aprofundamento deste estudo permite perceber que a ênfase está na totalidade homemmeio. Um bom exemplo disto está na idéia do “não agir”, wu wei para o Taoísmo, tão bem absorvida pelo Zen Budismo, e que preconiza que a capacidade de transformação não se encontra apenas nas ações do homem, mas também em suas não-ações, ou seja, muitas vezes a transformação só ocorrerá se o homem permitir a ação do universo, não relutando e não resistindo a esta ação. Para que a ação e a transformação possam ocorrer será preciso o “não agir” humano, a ação pela não-ação (Borel, 1997). A ênfase aqui é a ação consonante com a própria vida, que não é levada adiante independente do “céu e da terra”, e nem em conflito com o todo, mas sim em completa harmonia com o todo. Explicando melhor, para o Zen a compreensão da vida só pode se dar uma vez que o homem consiga conviver, aceitar e lidar com seus paradoxos, sem buscar explicá-los por um caminho racional. Permitiria assim a inclusão do meio, do universo, como coparticipantes ativos nos processo de transformação do próprio homem, reconhecendo e aceitando a importância de sua harmonia e equilíbrio nestes processos, com a fluidez 88 inerente ao movimento natural da própria vida. Para o Zen, esta compreensão se dá na relação e na inter-ação do homem e o meio, no cotidiano, na medida em que tudo isto é vivido concretamente. Para a GT, o binômio homem-meio também é visto de uma forma dialética, na qual os dois estarão em mútuo processo de transformação e constituição, ou seja, o meio também modifica o homem. Na GT, acreditamos na auto-regulação organísmica, ou seja, o ser humano tem uma tendência natural à auto-regulação, à busca de equilíbrio e integração, o que permitirá ao individuo agir de forma criativa, crítica e autônoma em relação ao meio, abrindo espaço para o único, o singular e para a autenticidade nos processos de ajustamento homem-meio. No Zen, o caminho do auto-conhecimento e da iluminação poderia conduzir o homem a despertar também sua singularidade, sua autenticidade, e liberar o devir, pela compaixão, pela simplicidade e pela aceitação do fluxo constante da vida, do não-apego ao “próprio eu”. Neste fluxo nada permanece, nem o “próprio eu”, o que possibilita uma naturalidade e maleabilidade frente à vida; processo compreendido como uma auto-regulação e uma crença nesta tendência rumo ao equilíbrio. “A quebra dos pontos de apoio”, que o Zen visa, pode ser compreendida como a restauração dos processos de cristalização na GT. No Zen, estes pontos de apoio podem revelar futuros impedimentos e restrições ao existir fluido do humano. Na GT, eles seriam correspondentes ao próprio processo de cristalização, que estaria estagnando o processo maturacional do ser humano. No Zen, eles estariam a serviço de uma tentativa de busca de sustentação, segurança e permanência frente à impermanência do “eu” e de todos os fenômenos, em essência, impermanência que permeia todo existir e que nós relutamos em aceitar. Na GT, o processo de cristalização e fixação de figuras 89 ou gestalten (neuroses) visam uma tentativa anacrônica de encontrar e manter um equilíbrio entre o indivíduo e o meio ambiente, uma vez que nestas situações o meio e toda fronteira ambiental são vividos como uma grande ameaça que pode fragmentar o indivíduo. É possível perceber tanto no Zen como na GT uma ênfase à simplicidade do cotidiano, quase que uma reverência ao cotidiano, à singularidade de cada experiência vivida. Para ambos é no inaparente do cotidiano, no ordinário mesmo de nossas vivências aqui e agora que reluz o extraordinário. Para tanto vale ressaltar a importância da presença e da inteireza nas situações vividas. Para o Zen, a iluminação, o despertar, só pode ser encontrado “na vida do mundo e não no afastamento do mundo”, ou seja, é no existir cotidiano com sua fonte inesgotável de inspiração e provocação que a iluminação poderá acontecer. Para GT, a relação terapêutica, a princípio, funciona como um espaço para a auto-descoberta e para ampliar a capacidade relacional do cliente que paulatinamente estará transportando toda esta descoberta e aprendizado para seu cotidiano. Em suma, o aqui e agora remete a dois aspectos compartilhados pelo Zen e pela GT: é no concreto da vida cotidiana que nós encontraremos a verdade tão perseguida pelos seres humanos; é no momento presente que nós encontraremos a via de acesso para a mudança, para a integração e para a iluminação. Fromm (1970) faz do satori a seguinte leitura: [...] É o estado em que a pessoa se acha completamente afinada com a realidade fora e dentro de si mesma, o estado em que ela tem plena 90 percepção desta realidade e a apreende plenamente. ‘Ela’ tem percepção da realidade – isto é, não o seu cérebro, nem qualquer outra parte de seu organismo, mas ‘ela’, a pessoa toda. Tem percepção ‘dela’; não como de um objeto colocado lá adiante, que se apreende com o pensamento, mas ‘dela’, da flor, do cão, do homem, em sua plena realidade. Aquêle que desperta, se torna aberto e receptivo para o mundo, e pode tornar-se aberto e receptivo, porque deixou de aferrar-se a si mesmo como a uma coisa e, assim, se tornou vazio e pronto para receber. Ser iluminado significa ‘o pleno despertar da personalidade total para a realidade’. (Fromm in Suzuki, Fromm e De Martino, 1970, p. 134-135). O satori como a awareness podem ser compreendidos como a totalidade que se busca. Partem da possibilidade de um equilíbrio e sintonia entre o indivíduo e o meio, da capacidade do ser humano se apropriar do seu processo de existir, e de integrar seu aparato afetivo, sensoriomotor, cognitivo seus sonhos e projetos de uma forma harmônica. Esse processo propicia o desabrochar de sua singularidade, re-significando a coisificação e a inautenticidade, promovendo enfim abertura para o ser e o viver em toda a sua plenitude. Watts (2000, p. 94) destaca que o satori, “é a compreensão de nossa própria e mais intima natureza”. A GT por meio da awareness, visa também proporcionar ao cliente um melhor conhecimento de si, de sua “própria natureza”, o que permite dispor melhor de seus recursos, em outras palavras, entrar em contato com seu “sábio” interior. (Ribeiro, 1998) Podemos perceber que a proposta budista, e a proposta da GT, reafirmam a crença na assim chamada “natureza humana”. 91 Ainda que suas concepções de “natureza humana” revelem proximidades, seus horizontes desvelam distanciamentos em suas perspectivas. Percebemos que há uma crença na “natureza humana” quando pensamos na GT porém, ela não apresenta repertório fechado e definido para as possíveis facetas do humano, no entanto, podemos falar de seu potencial criativo e realizador na busca pela integração: um ser que estará constantemente construindo e reconstruindo sua própria existência, um ser aberto a possibilidades em um constante vir a ser. Há portanto uma total confiança no potencial integrador e no florescer deste alvo, natureza humana. Retomando a metáfora de Cytrynowicz (l978), não definimos a planta que a semente carrega, embora acreditemos na planta que habita a semente enquanto potencial a se desenvolver. Martins (1995) em seu artigo mostra a possível existência de dois humanismos diversos, um valorizando o homem, e seu ser no mundo, outro que valorizaria a idealização do homem, de sua transcendência, ou de como deveria se dar o seu vir a ser. Particularmente acredito que Perls e a comunidade gestáltica se apóiam nestas duas perspectivas, ora enfatizando uma, ora outra, uma vez que tais perspectivas estariam colocando em sua visão de homem uma espécie de continuum que vai de sua valorização até sua idealização (Pinto, 2004). Para o Budismo, o alvo, natureza humana, parece encampar toda a proposta da GT dando um salto além, e esta é a grande distinção entre as duas perspectivas. Compreendo que o Budismo, com sua filosofia milenar, apresenta uma continuidade para a perspectiva de homem da GT, por este continuum de engrandecimento do homem que vai desde sua valorização até sua idealização, definindo claramente este alvo por meio de uma crença bem fundamentada e definida, portanto atingível, a respeito do fim último do homem. Para o Budismo só precisamos 92 despertar a natureza do nosso verdadeiro ser. Já somos Buda, portanto só precisamos trazer isto à existência o que se dá com a iluminação, abertura que possibilita ao homem um elevado estado de consciência na qual encontra a união com a realidade definitiva do universo, que irá libertá-lo da roda do samsara31, do sofrimento que permeia toda existência humana. 31 Samsara: O ciclo de nascimento, vida, sofrimento e morte que todo ser humano está fadado a atravessar durante a própria existência, aspecto que no Zen-Budismo é pouco discutido. 93 CAPÍTULO IV: O SELF E O “EU” Se um homem atravessar um rio E um barco vazio colidir com sua própria embarcação, Mesmo que seja um mal-humorado, Não terá muita raiva. Mas se vir um homem no outro barco, Gritará que ele reme direito. Se o outro não ouvir o grito, gritará de novo, E mais, começando a xingar. Tudo porque há alguém no barco. Se o barco estivesse vazio, Não gritaria nem ficaria com raiva. Se você conseguir esvaziar seu barco Ao atravessar o rio do mundo, Ninguém lhe porá obstáculos, Ninguém procurará fazer-lhe mal. Thomas Merton (1989) 4.1 O self para a GT Perls, Hefferline e Goodman, denominam self como sendo [...] o sistema de contatos em qualquer momento. Como tal, o ‘self’ é flexivelmente variado, porque varia com as necessidades orgânicas dominantes e os estímulos ambientais prementes; é o sistema de respostas; [...] O ‘self’ é a fronteira-de-contato em funcionamento; sua atividade é formar figuras e fundos”. (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p. 49) 94 Portanto, podemos considerar que para a GT o self sempre estará na fronteira de contato, organismo-meio, fronteira que não exclui mas sim também inclui o ambiente. O self sempre estará onde quer que aconteça uma interação, ou seja, na fronteira de contato. Ele estará reduzido e diminuído durante o sono, em situações mais inertes ou mesmo em situações que se aproximam de uma resolução ou de um equilíbrio; e extremamente ativo, quando estamos diante de uma situação problema que exigirá criatividade ou que requeiram concentração como, por exemplo, ministrar uma palestra. Esses autores apresentam uma imagem para ilustrar o que pretendem demonstrar, na qual parafraseiam Aristóteles indicando que: “...quando se aperta o polegar, o ‘self’ existe no polegar dolorido” (Idem, p.179). Esta idéia ilustra com propriedade o fato do self, para a GT, ser o próprio processo de figura-fundo em situações de contato ou a própria função de contato. No entanto, remete-nos a uma outra questão: o self para a GT se encontra no corpo? Pelo que foi até aqui apresentado, é possível perceber que o self na GT não é uma instância intra-psíquica, uma entidade fechada, uma estrutura, ou mesmo um núcleo pessoal ou essência encontrado dentro do organismo, mas, sim, interação, contato na fronteira de contato. Uma outra imagem poderia ser trazida: uma partida de tênis. Durante um jogo de tênis, o self do jogador transita momentaneamente entre a bolinha de tênis e seu próprio corpo em posse da raquete, se verdadeiramente o jogador estiver compenetrado no jogo. Esta ilustração revela um outro aspecto fundamental do self dentro da perspectiva gestáltica: o self se constitui entre o organismo e meio, ele faz parte do entre, o campo relacional, organismo-meio. Já podemos então responder parte 95 de nossa questão: nesta perspectiva, o self não está no corpo, restrito ao corpo, mas está no entre, no campo organismo-meio. Ele se encontraria temporariamente neste espaço criado pela interação eu-outro, espaço que inclui o corpo físico e também o meio. Ao desenvolver a noção de subjetividade e sua relação com o self, complementaremos esta resposta. Segundo a visão de Perls, Hefferline e Goodman (1997), o sentido do self não deve se limitar à propriocepção da individualidade, ele precisa transcender este aspecto. Na verdade, ele precisa perceber o “campo” no qual o indivíduo está inserido naquele momento. À medida que o self se torna mais auto-consciente desta totalidade, ele não terá fronteiras rígidas. Ao pensar que é na fronteira de contato que o self experimenta contato com o mundo, podemos concluir que é nesta fronteira que ele vive seus conflitos. Assim, a abordagem postula que é função do self viver e administrar conflitos, experienciar suas perdas, seus ganhos, e sempre transformar o que é dado. É a partir da atividade mais elementar, “contatar o presente transiente concreto”, atividade que envolve a totalidade de nossa existência, que experiencio no meio aspectos com os quais me identifico ou dos quais me alieno, e que possibilita a transformação do meu organismo e a mudança do meio (Perls, Hefferline e Goodaman, 1997, p.177). Para Granzotto e Granzotto, estas trocas com o meio possibilitam [...] a conservação de algumas formas de organização anteriores (junto às quais me experimento como aquilo que permanece) e, por outro lado, a destruição de formas antigas e assimilação de novas formas (o que permite que eu me experimente como alguém integrado ao meio ambiente). Trata-se, nesse sentido, da experiência de um ‘continuum’ 96 que, entretanto, modifica-se a cada instante [...] (Granzotto e Granzotto, 2004). É exatamente esta experiência que permite ao self sua vivência de coesão e identidade. O caráter dinâmico do self, sempre se atualizando e se completando na fronteira de contato é assinalado por Perls; Hefferline e Goodman: “em situações de contato, o ‘self’ é a força que forma a gestalt no campo; ou melhor, o ‘self’ é o processo de figura/fundo em situações de contato” (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p. 180). Para Ginger e Ginger (1995) o self é um processo especificamente pessoal e singular, que revela sua maneira peculiar e seu estilo pessoal de reagir num dado momento e dentro de um dado campo. O self portanto, “não é seu ‘ser’, mas seu ‘ser no mundo’ – variável conforme as situações” (Ginger e Ginger, 1995, p. 126). O fato de na GT concebermos o self muito mais como função e processo, requer que o consideremos muito mais como um processo vivo, dinâmico. Para Yontef (1998), esta conceitualização de self da GT apresenta uma perspectiva inovadora, portanto contrária às psicologias que o definem como uma estrutura. Para este autor, esta percepção reflete de certa forma uma herança do início da psicologia como ciência e de uma epistemologia, e que acaba criando uma imposição da objetividade sobre a subjetividade, questão também desenvolvida por Távora (2004). Compreendo que Yontef busca enfatizar o viés reducionista desta visão mecanicista da psicologia e conseqüentemente do conceito de self. 97 Ginger e Ginger (1995) referem que, para Latner “o ‘self’ é nossa maneira particular de estarmos envolvidos em qualquer processo, nosso modo de expressão individual em nosso contato com o meio [...] Ele é o agente de contato com o presente, que permite nosso ajustamento criador”. Assim, para este autor, o terapeuta sempre estará interessado na averiguação de um processo de campo, tendo como um dos objetivos apreender o quanto o paciente consegue manter um sentido de self coeso ou não. (Latner apud Ginger e Ginger, 1995, p. 127). O self também tem o caráter integrador, uma vez que cabe ao sistema de contatos integrar funções perceptivas e proprioceptivas, funções motoras e musculares, necessidades orgânicas e psíquicas. Ele funciona como uma unidade sintética, desempenhando o fundamental papel de achar, fazer e criar significados por meio dos quais crescemos. Nas palavras de Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 49) ele “[...] é o artista da vida”. Ao abordar a questão do self e a temporalidade, estes autores mencionam que “[...] é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self” (Idem, p.180). Portanto, na neurose, a inibição do self revelaria uma incapacidade de conceber, conviver e aceitar a dinamicidade das situações da vida como processo em constante mutação, acrescentando o fato de identificar e alienar estes aspectos, que assim estancariam a fluidez, a maleabilidade e a própria criatividade. Perls, Hefferline e Goodman (1997) consideram três modos de funcionamento do self ou operações básicas do self: o self na função “id”, na função “eu” e na função “personalidade”. 98 O self na função “id” diz respeito às necessidades vitais, basicamente as questões corporais; desta maneira esta função me informa se tenho sede, se estou cansado ou se estou com sono. Esta função também responde pelos atos automáticos como, por exemplo, andar, respirar ou mesmo fazer uma coisa enquanto penso em outra. Poderíamos dizer que de certa forma meu “id” “age em mim” independente da minha vontade. O self na função “eu” tem um funcionamento muito mais ativo, de deliberação e também de opção: é da própria responsabilidade do indivíduo intensificar ou reduzir o contato com o meio, manipulando-o a partir da tomada de consciência de suas necessidades, seus interesses e vontades. As perturbações desta função respondem pelas chamadas “perdas das funções do ego”, comparadas com os mecanismos de evitação ou com os mecanismos de defesa do eu. Na função “personalidade” o self possibilita a auto-imagem permite que a noção de self se sedimente, tornando-se uma identidade histórica, representada, constituída, por meio dos atos simbólicos e a representação que o indivíduo faz de si mesmo e que permite o reconhecimento e a responsabilidade pelo que sente ou pelo que faz. Granzotto e Granzotto (2004) acrescentam que “...a personalidade é uma generalidade virtual, formada a partir das ações, sobremodo lingüísticas, que o ‘self’ estabelece por meio do ego, No modo personalidade o ‘self’ identifica-se com o que o ego fez, criou a partir do meio”. As relações interpessoais são destacadas por Perls, Hefferline e Goodman (1997) ao considerarem, “a personalidade é o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos, que serve de 99 fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, se nos pedissem uma explicação”. (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p.187). Nestas três funções, o self pode aparecer de maneiras distintas conforme as variações das situações e dos momentos vividos: tanto posso não me reconhecer em um transbordar frente a um determinado acontecimento como, em outra situação, meu self quase que se dissolve numa intensa confluência quando assisto a uma peça de teatro emocionante, por exemplo. Ao tratar destes três modos de funcionamento do self , a neurose poderia ser compreendida por estes autores como uma perda da função “eu” ou da função “personalidade”: nestas situações o indivíduo consegue apreender o mundo interior e suas necessidades internas, função “id”, contudo as respostas do eu não são satisfatórias, o ajustamento criativo não está de acordo com a real necessidade dentro de uma hierarquia de necessidades. Estas respostas não atualizadas poderiam desencadear o surgimento da neurose. A neurose desta maneira seria um conjunto de respostas anacrônicas, na maioria das vezes cristalizadas em uma estrutura de caráter, ou em um restrito modo de ser, que no geral revela comportamentos adquiridos em outros tempos e outros lugares.Para ilustrar estes aspectos recorro a uma vinheta clínica: Clara é uma mulher de cinqüenta anos, divorciada. Em terapia há mais de três anos, trazendo em sua história períodos de desorganização emocional, vem atualmente conquistando uma maior interioridade e auto-suporte, o que tem permitido um melhor contato com seu cotidiano. Consegue posicionar-se de forma mais aberta, menos persecutória em seu trabalho e em suas relações interpessoais, enfim em seu meio, ao mesmo tempo que está conseguindo se apropriar de seu corpo, que tempos 100 atrás quase não era percebido. Tem se cuidado melhor, descobriu uma maior vaidade e tem vivenciado alguns processos de psicossomatização que em sua maioria têm sido comemorados por indicarem o desenvolvimento da corporeidade. Na sessão que pretendo relatar, a cliente conta que está triste, pois o namorado que conhecera há mais ou menos três meses resolvera terminar o namoro. Clara, que constantemente reclama de sua solidão, sente-se um pouco surpresa diante do fato de estar triste mas conseguindo caminhar normalmente em seu cotidiano. Mostro que este aspecto parece revelar o quanto ela está suportando melhor as “coisas”, conseguindo viver ambas as facetas desta mesma situação: fica triste diante de uma perda, mas não é tomada pela mesma. Consegue suportar e aceitar este fato e ao mesmo tempo tocar sua vida e suas atividades. Demonstra uma satisfação ao perceber o quanto está conseguindo se relacionar melhor em vários âmbitos de sua vida. Durante sua fala, percebo uma modificação em sua fisionomia, que não consigo decodificar, a seguir aparentemente um ar maroto se instala em sua face. Comento minha impressão e indago se ela se dera conta disto. Relata que enquanto estava verbalizando as mudanças em sua vida e eu lhe ofereci uma bala, sentiu que seu dedo esbarrou no meu. Nesta situação sentiu meu corpo e também minha presença, não como uma situação erótica, mas como uma percepção de meu corpo através do toque, o que normalmente não conseguia. Lembrou que até pouco tempo só conseguia sentir e perceber o outro quando “transava”, e acrescentou que foi bom perceber esta sensação. Menciono que ela está muito mais sintonizada com seu corpo e com o meio, conseguindo de fato acompanhar suas experiências no momento vivido, apreender 101 sutilezas que agora não passam despercebidas, o que nem sempre acontecia. Neste caso, ela está mais inteira, mantém melhor contato nos atendimentos, percebe e “sente” a minha presença. A situação apresentada por Clara neste encontro revela a ampliação de seu processo de percepção e conscientização em sua vida, o que também aparece no atendimento terapêutico. Há um aumento de sua capacidade de contato, a partir do desenvolvimento da interioridade, de seu auto-suporte, que lhe permite conter as sensações e sentimentos em suas vivências bem como da apropriação e expansão da corporeidade. Sabemos que a plasticidade e a permeabilidade do self se revela na fluidez natural do ciclo de contato, com suas emoções, sensações, pensamentos, sentimentos e sua alternância incessante de contatos e retrações. O organismo mantémse em movimento contínuo em suas interações com o meio, através do ciclo natural de formação e destruição de figuras, demonstrando assim um comportamento saudável, dentro da perspectiva gestáltica. A situação apresentada mostra que na clínica estaremos interessados em acompanhar as interrupções do ciclo de contato e os momentos em que esta alternância é perturbada, uma vez que as interrupções podem revelar a perda da espontaneidade, da maleabilidade e permeabilidade do self. No caso de Clara, sua história de vida, com inúmeras situações de impedimento, cercearam seu processo maturacional deixando várias lacunas, com repercussões negativas nos contatos e em sua capacidade relacional, em sua disponibilidade no processo de ajustamento criativo na fronteira de contato. As duas situações apresentadas nesta sessão, tanto o suportar melhor a frustração e o 102 sofrimento como a ampliação da consciência e percepção no contato, revelam recuperação e expansão no processo de interação self-meio, pelo restabelecimento do fluxo natural na formação figura-fundo.Uma maior capacidade de contato possibilitou maior plasticidade em suas interações. Távora (2004) assinala a riqueza e a criatividade da GT ao estabelecer esta concepção de self. No entanto, apresenta alguns aspectos que revelam pontos polêmicos dentro da construção teórica da GT: um deles, segundo a autora, mostraria certa ambivalência dentro do próprio corpo teórico e prático da abordagem que, em alguns momentos, enfatiza o aspecto processual da subjetividade e conseqüentemente da compreensão e definição do self entre outros conceitos. E em outros momentos, revela um percurso quase oposto a este, acompanhar outras teorias e práticas psicológicas em sua maneira de estruturar metodologia e conceitos. No caso do conceito de self, por exemplo, lhe seria atribuída uma compreensão estrutural. Távora ressalta que dentro dos próprios textos de Perls esta ambivalência ou dicotomia já aparecia, como em alguns momentos em que a conflituosa relação organismo-meio é conduzida de uma maneira dicotômica (Perls, 1979). Outros autores já haviam observado esta questão, Loffredo (1994), parte de uma experiência pessoal para assinalar este mesmo ponto, uma ambivalência dentro do corpo teórico da GT, e a partir daí desenvolve seu ensaio. Tellegen (1984), uma das pioneiras na apresentação, na divulgação e no estudo da GT no Brasil, analisa este aspecto em Gestalt e Grupos: “Embora Perls afirme insistentemente que a interação organismo meio é física, biológica, psicológica e sóciocultural, a linguagem e os exemplos por ele usados freqüentemente se referem ao que é biologicamente vital” (Tellegen, 1984, p. 39). 103 Outro ponto defendido por Távora (2004) diz respeito ao aspecto incorpóreo encontrado na teoria do self. Conceber o self como processo de fronteira e ao mesmo tempo como função ou processo de contato significa compreendê-lo como funções ou mesmo efeitos em andamento32, abarcando todos os níveis de relações nos múltiplos aspectos do contato entre o organismo e seu meio. Para ela, esta conceituação pode ser vista como uma derivação do aspecto incorpóreo da própria subjetividade pois, a mesma não está alojada em um espaço do mesmo modo que uma substância corpórea. A subjetividade nesta perspectiva pode ser vista como o efeito de vários fatores concorrentes extremamente complexos, entre eles o biológico, o familiar o social e também de ligações e interações com a arte, a tecnologia, a literatura, a mídia e as instituições. Segundo a autora, estas concepções vão além das concepções de MerleauPounty sobre existência corpórea ‘original’ e ‘corpo visível’, ao enfatizar os inúmeros aspectos que um corpo é capaz de apresentar, as ligações que ele possibilita, suas possibilidades de movimento, suas capacidades, seus afetos, seu envolvimento e ação (Távora, 2004). Esta concepção surge como alternativa à concepção clássica que associa a subjetividade a um lócus – um lugar no espaço – organismo físico. Nesta concepção clássica, existiria uma falta de compreensão dos aspectos ligados à qualidade temporal e incorpórea. Távora (2004) menciona também que para muitos esta conceitualização do self para a GT pode apresentar um aspecto ameaçador, na medida em que não associamos o self à imagem histórica e reconhecível que o indivíduo faz dele mesmo, ou mesmo à imagem da pessoa com quem interagimos fisicamente como sendo outro self. 32 Grifo meu. 104 Penso que talvez este seja o paradoxo a ser vivido, uma vez que pode ser também seu aspecto mais rico e estimulante. Para mim, assim como para a autora, temos aqui sua principal qualidade: uma valiosa ferramenta teórica que destaca através da lente gestáltica os processos, as características temporais e relacionais da subjetividade humana. Távora (2004) levanta três aspectos ou, méritos, que a teoria do self na GT apresenta e que poderiam caracterizá-la ou mesmo defini-la para a abordagem: Estabelece a distinção entre os conceitos de self e indivíduo - se a awareness do self for definida em termos de outra pessoa numa situação concreta, o self não deve ser situado ‘dentro’ da pessoa e não deve ter um ‘núcleo’ em um espaço determinado. (Távora, 2004 , p. 55). Favorece a idéia de necessidade em vez da idéia de instinto – se tanto as necessidades quanto as suas possíveis satisfações existem somente no âmbito do processo interativo, segue que condição para o desenvolvimento da vida psicológica é a própria contradição (dialética), quer esteja entre os pólos humano e natureza, pessoa e mundo exterior, sujeito e objeto, estrutura e processo, ou espaço e tempo. (Idem, p. 55). Permite a compreensão correta do tornar-se como conceito essencialmente temporal (das werden, em alemão, ou le devenir, em francês), como processo invisível, imprevisível e desconhecido. É por meio da manipulação daquilo que oferece resistência no meio que o self acaba por tornar-se negociado. O verdadeiro trabalho, ou descoberta, a ser realizado é experimentado pela primeira vez e pode ser descoberto no conflito. O self não sabe de antemão qual ajuste criativo é possível. Devemos concluir, portanto, que se e quando algo que está nesse 105 processo torna-se conhecido, não ‘ se tornará’ mais - será algo já processado33. (Idem p. 55). 4.2 O “eu” no Zen-Budismo “Estudar o Budismo é estudar o ego. Estudar o ego é esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se de si mesmo significa ver o verdadeiro ego em todas as outras coisas do mundo [...]”. (Dogen apud Silva e Homenko, 2002, p.237). Antes de iniciarmos nossa investigação a respeito da noção de “eu” ou “self” para o Budismo, lembremos que no Budismo não há uma divisão, ou mesmo uma conceitualização, dos termos “eu”, “ego” ou self, tal como rotineiramente encontramos na psicologia. Os termos “eu”, “ego” e self aparecem nos textos e são usados pelas várias escolas do Budismo, entretanto na maioria das vezes surgem como sinônimos, e será desta forma que eles estarão sendo usados e trabalhados neste capítulo. Um outro aspecto fundamental é que em todo Budismo não existe uma noção ou mesmo uma idéia de um “eu” permanente, como uma estrutura ou identidade. A idéia de “eu” percebida como instância ou estrutura permanente é apontada como a própria ilusão 34 frente à existência. Conforme já assinalado anteriormente, dentro da concepção budista a ilusão e a ignorância são as grandes responsáveis pelo sofrimento, sofrimento que leva ao adoecimento humano. Neste contexto o adoecimento pode ser compreendido como fechamento ao porvir. Portanto, toda proposta budista visa escapar 33 Tradução minha. O conceito de ilusão no Budismo, é oriundo do conceito de Maia do hinduismo. Nesse aspecto, estaremos compreendendo-o como as verdades relativas da vida e do samsara, em que a verdade última e/ou verdade absoluta está para além do manifestado. Para o Budismo, a cisão eu-outro, tempo-espaço, entre outras, são as responsáveis pelo surgimento da ilusão. 34 106 da ilusão para assim podermos superar o sofrimento ou, dizendo de outra forma, conquistar o sofrimento. Foi possível perceber que os termos “eu” ou self não aparecem como as descrições ou noções que encontramos na psicologia. Persiste então a pergunta: o que vem a ser o “eu” ou self para o Budismo, e quais as possíveis afinidades com a compreensão gestáltica? Para desenvolver esta questão, precisaremos retomar a noção de impermanência. No capítulo anterior, discutimos que a idéia da impermanência permeia toda a concepção e filosofia budista. Para o Budismo, estamos diante do fato de que nada se mantém, tudo o que existe em algum momento deixará de existir, nada permanece, tudo na existência humana e no mundo é transitório. Podemos, portanto, dizer que tudo é fluir, só existindo o devir. A noção de “eu”, parte deste mesmo princípio, carregando estas mesmas características, ou seja, também o “eu” não se mantém como uma estrutura, identidade ou um núcleo imutável. Para o Budismo, ele é tão fugaz como tudo mais neste mundo. O “eu”, segundo esta concepção, é visto como uma série ininterrupta de processos mentais que estarão se alternando momento a momento, assim como os processos físicos e a própria vida humana como um todo. A impermanência ou transitoriedade que permeia a existência e o mundo permeia também o “eu” que, como tudo que aí está, está fadado a decair. Desta forma, o “eu” é constituído de fatores existenciais impessoais formando combinações que constantemente estarão se transformando num eterno recombinar de configurações e transformações (Gaarder; Hellern e Notaker, 2001). Podemos portanto concluir que o que aparenta ser um “eu” 107 nada mais é do que um agregado impessoal de fatores existenciais em processos que aparecem e desaparecem. Segundo o dicionário budista Nyanatiloka, o “eu” é compreendido como “processos de fenômenos físicos e mentais que continuamente emergem e imediatamente desaparecem de novo”. (Hall e Lindzey, 1984, p. 118). O “eu” nasce da mistura destes processos físicos e mentais: O que parece ser eu é a soma total das partes do corpo, pensamentos, sensações, desejos, lembranças etc. O único fio contínuo da mente é Bhava, a continuidade da consciência através do tempo. Cada momento sucessivo de nossa consciência é moldado pelo momento prévio e, por sua vez, determinará o momento seguinte; é Bhava que liga um momento da consciência ao outro. Podemos identificar o eu com suas atividades psicológicas tais como nossos pensamentos, lembranças, ou percepções, mas todos esses fenômenos são parte de um fluxo continuo. A personalidade humana, diz o Abhidhama35, é como um rio que mantém uma forma constante, parecendo uma identidade única, embora nem uma única gota seja a mesma de um momento atrás. (Van Aung, apud Hall e Lindzey, l984, p. 116). Silva e Homenko (2002, p. 38) apresentam uma outra imagem para ilustrar o processo de ilusão vivido quando condicionamos nossa mente à idéia de um “eu” como uma identidade permanente: “É uma ilusão semelhante àquela que se obtém fazendo girar rapidamente um carvão incandescente: temos a impressão de um círculo luminoso, quando na realidade existe apenas um ponto luminoso em movimento”. Estas 35 Abhidharma, sânscrito, compilação de ensinamentos sobre a filosofia budista. 108 imagens são bastante ilustrativas na medida em que desconstróem a idéia do “eu” percebido como uma estrutura ou identidade permanente, e revelam e enfatizam o aspecto processual deste fenômeno, ou seja, estamos o tempo todo diante de um fluir contínuo. A atitude mental do esgrimista, também conhecida como estado de Muga, ou seja, ausência da idéia de que “eu estou fazendo isto”, pode ser um recurso interessante e que nos auxiliará a compreender um pouco melhor a noção do “eu” na perspectiva Zen-Budista. Para os samurais, a consciência do “eu” deve estar subordinada à concentração na tarefa realizada, a mente precisa seguir os movimentos do adversário de uma maneira tal que a reposta aconteça de forma tão imediata que o dualismo de “ataque e defesa” se torne uma só unidade. No Japão feudal, os samurais freqüentemente visitavam os mestres Zen, com o intuito de reunirem forças da religião para continuar sua trajetória, “ir direto para frente sem olhar para trás”. Nestes encontros, reafirmavam os ensinamentos de que a vida e a morte nada mais eram que aspectos de uma mesma existência, revelando que o “eu” podia ser esquecido nessa unidade com a vida. O credo do samurai mostra a essência desta atitude de Muga: Não tenho pais; fiz do céu e da terra os meus pais. Não tenho poder divino; fiz da honestidade o meu poder. Não tenho meios; fiz da submissão os meus meios. Não tenho poder mágico; fiz da minha força interior a minha magia. Não tenho vida nem morte; fiz do eterno a minha vida e a minha morte. 109 Não tenho corpo; fiz da minha força interior o meu corpo. Não tenho olhos; fiz do relâmpago os meus olhos. Não tenho ouvidos; fiz da sensibilidade os meus ouvidos. Não tenho membros; fiz da velocidade os meus membros. Não tenho desígnios; fiz da oportunidade o meu desígnio. Não tenho milagres; fiz do Dharma o meu milagre. Não tenho princípios; fiz da adaptabilidade a todas as coisas os meus princípios. Não tenho amigos; fiz da minha mente o meu amigo. Não tenho inimigos; fiz da desatenção o meu inimigo. Não tenho armadura; fiz da boa vontade e da justiça a minha armadura. Não tenho castelos; fiz da mente inamovível o meu castelo. Não tenho espada; fiz do sono da mente a minha espada. (in Watts, 2000, p. 145). A noção da interdependência ou inter-ser é o elo que une todas as coisas, ou o reconhecimento de que o “um” está contido no “todo” e o “todo” está contido no “um” - nesta folha de papel podemos encontrar o sol, a chuva, o pinheiro e o lenhador com seus dramas existenciais. Esta interdependência também é outro conceito que pode nos auxiliar a compreender a idéia de um “não-eu” permanente, mas sim uma totalidade. 110 Tudo que existe é sempre efeito de uma causa anterior e em breve se tornará causa de um efeito posterior. A noção da temporalidade, dentro desta perspectiva, também se estrutura de modo semelhante: o passado está inteiramente contido no presente, condicionando-o, assim como o presente resume o passado e, em potencial, também contém todo o futuro. É este conjunto que liga as diferentes fases de um mesmo processo que, em sua fluição, possibilitará a noção de continuidade, a criação da noção de identidade (Silva e Homenko, 2002). A crença num “eu” permanente como sustentação do ser é uma mera ilusão. Em última instância podemos afirmar que o que existe é o contínuo fluir. O constante processo de um vir-a-ser e as chamadas identidades ou individualizações nada mais são do que momentos deste processo. Uma outra forma de compreender esta idéia é compreender o próprio eu como uma realidade relativa, embora seja vivido como uma verdade absoluta. Para o Budismo o grande erro é a divisão eu-outro e, quando isto acontece, nossa visão egocêntrica estruturará o “eu sou” como mais importante do que o outro, o que acentua o erro da mente dividida. Do suposto “eu sou”, como já descrito, nasce o “eu preciso”, ou então, o “eu não quero”, que vêm a ser a mesma coisa. Para o Budismo é o amor e a compaixão que reduzem o autocentrismo, enquanto existir um “eu” existirá o sofrimento, a partir do momento em que não há mais “eu” não há mais sofrimento. Na natureza absoluta não há “eu” e, portanto, não há desejo. Pinto (1980), filósofo e monge zen-budista, destaca que o modo de compreender o “eu” no Budismo é um dos pilares que possibilita a manutenção e a 111 sustentação de toda a filosofia e pensamento budista, uma vez que esta idéia permeia todas as escolas, e mantém a fundamentação e o elo comum entre elas. Neste artigo, o autor corrobora a compreensão de homem como um processo de vir-a-ser, no qual, não existe uma natureza estática, “eu” (em sânscrito: anatman), um substrato, ou mesmo um núcleo. O que há e simplesmente o fluir, idéia que nos apresenta de uma forma poética: Haveria o viver, o sentir, o pensar, o andar, mas não um sujeito transcendental vivendo o viver, sentindo o sentir, pensando o pensar. Há o agir, não há um agente. O agente suposto é uma ilusão criada arbitrariamente, sem fundamento real. A ilusão do sujeito nasce do apego, isto é, do anseio de escapar ao devir, de reter o fluxo, de evitar a finitude. [...] Do suposto alguém em nós nasce o suposto algo no mundo. Da constância deste suposto alguém nasce a constância do suposto algo. Mas por detrás destas representações o fluir prossegue. A representação pode ocultar o devir, mas não pode impedi-lo. (Pinto, 1980, p. 67). Toda ênfase do Budismo com relação à questão do apego e seus desdobramentos é fruto da expectativa humana de manter e preservar “as coisas”, do desejo de “uma eterna permanência”. Esta expectativa e este desejo, na medida em que não podem ser atendidos e mantidos em sua plenitude, levam à frustração, à dor e ao sofrimento – “O apego carrega água num cesto de vime” – (Pinto, 1980, p. 67). Dentro desta perspectiva, todas as representações serão fatalmente desmascaradas no devir. Podemos então concluir que o samsara, a roda dos ciclos de nascimento, vida e morte, é o constante movimento de construção dessas representações, que fatalmente serão 112 dissolvidas pela impermanência – “Se não acreditas, olha para setembro, olha para outubro! As folhas caindo, caindo, a encher o rio e a montanha.” (Watts apud Pinto, 1980, p. 67). O ensinamento do Buda Shakiamuni e de todo Budismo para este grande impasse da existência humana é o desapego, a aceitação da impossibilidade de realizar e manter todos os desejos e expectativas humanas. Um aspecto simples, normalmente distorcido com relação ao existir e tudo o que a vida nos oferece, é a compreensão que o Budismo nos apresenta, de que não podemos viver a vida em sua plenitude, uma vez que não podemos desejar. A proposta budista, no entanto, é muita clara e simples, podemos e devemos viver a vida e tudo que ela nos oferece, podemos saborear, podemos usufruir, e fazer o melhor uso possível de todas “as coisas” enquanto elas estiverem aí, disponíveis, e também aceitar o momento em que elas não mais existirem. Este seria o reconhecimento e a aceitação do “eterno” fluir. O desapego do próprio “eu”, aqui compreendido como entidade, com seus desejos e expectativas, é um aspecto vital dentro desta proposta do desapego. Pelo reconhecimento e aceitação da ilusão do “eu” possibilitaremos à consciência ser una com o fluir dos fenômenos e assim ela poderá surgir e ressurgir a todo momento da nãoconsciência, do próprio vazio, da impermanência. Esta proposta encerra a questão do devir, uma vez que com ela desaparece a questão do “eu”. “Se não há mais um alguém, se só há devir, ninguém está ameaçado pela impermanência. Ninguém mais nasce nem morre, ainda que haja o nascimento e a morte.” (Pinto, 1980, p. 68). Vejamos o que nos diz o Visuddhimagga, um texto budista: 113 Apenas o sofrer existe, ninguém que sofra; O ato existe, não quem o tenha feito; Nirvana é, sem que ninguém o procure; Há o Caminho, não quem o percorra. (Pinto, 1980, p. 68). 4.3 Aproximações e distanciamentos Com relação à noção do “eu” para o Zen-Budismo e self para a GT, apresentadas neste tópico, é possível perceber que elas mostram algumas semelhanças em suas concepções. Compreendo que um dos aspectos centrais é o caráter dinâmico e processual atribuído ao “eu” e ao self, uma vez que estes não são vistos como estruturas, instâncias, com características fechadas ou mesmo com um núcleo pessoal ou essência encontrada no indivíduo. Ambos reconhecem e enfatizam a fluidez, a maleabilidade e a permeabilidade tanto do “eu” como do self. Para a GT é esta compreensão do self como a função de “contatar o presente transiente concreto” (Perls, Hefferline e Goodman 1997, p.177) que permite o reconhecimento de sua característica intrínseca, ou seja, o self como processo. Esta leitura é uma das especificidades da visão gestáltica. Por sua vez, é esta característica do self que garante e mantém a fluidez no processo existencial, criando assim espaço para que se manifestem a expressão das potencialidades humanas e sua negociação com as possibilidades do meio, é esta interação que garantiria a capacidade de criatividade no ajustamento do homem com o meio. No Zen, esta fluidez também é ressaltada e é condição sine qua non para a possibilidade existencial humana. É esta compreensão do “eu” como um processo contínuo que permitirá ao ser “fluir com 114 o rio da vida”, pois, para o Zen, o homem que consegue, assim como a água, se adaptar a tudo, e ao mesmo tempo tudo ultrapassar, carrega a possibilidade de vida autêntica. Um outro aspecto relevante diz respeito ao self como sistema de contatos na GT e à noção do “eu” e interdependência no Budismo. Para a GT quando descrevemos o self como “o sistema de contatos em qualquer momento. Como tal, o self é flexivelmente variado, porque varia com as necessidades orgânicas dominantes e os estímulos ambientais prementes” (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p. 49), estamos afirmando sua plasticidade, sua capacidade de adaptação e de se apresentar sempre de maneira distinta, dependendo da interação, entre necessidades dominantes do organismo e disponibilidade dos aspectos ambientais. Portanto, na interação, o self não se restringe ou se limita ao corpo, ele faz parte, ele é o próprio entre, o campo relacional organismo-meio. Esta característica do self reafirma a plasticidade e permeabilidade que lhe permitem fluir com os fenômenos vividos, podendo assim, estar de modo diferente a cada experiência e transitar sempre neste entre, organismo-meio. Transitar no entre possibilita o ajustamento criativo, abre espaço para o potencial criativo humano, reassegura que homem só pode ser com, o que garante a fluidez inerente ao processo de existir. A noção de interdependência em todo o Budismo também enfatiza este mesmo aspecto proposto pela GT, o “eu”, ou melhor, o “não-eu”, é o próprio entre, o campo relacional organismo-meio. O homem só pode ser com todos os outros seres e com tudo que habita o mundo mas ao mesmo tempo ele precisará se apresentar sempre de maneira distinta, dependendo das combinações destas interações. No entanto, o caminho proposto pelo Budismo distingue-se da proposta gestáltica ao enfatizar que é o 115 desapego do “eu” que garante a plasticidade no existir humano. Esta noção impõe ao praticante desprender-se de si mesmo para estar e encontrar-se em todas as coisas do mundo – assim quanto mais o indivíduo está desapegado de si mesmo, mais ele estará inter-sendo, mais ele estará uno com o fluir dos fenômenos, seguindo o curso natural da vida. Ao mesmo tempo, ele se descobrirá mais e aprenderá mais sobre a vida. Para o Budismo, todo sofrimento humano é decorrência do processo de ilusão do “eu” como estrutura, com identidade própria que estaria se mantendo. É exatamente esta estrutura que rouba do ser a capacidade de fluir com a vida, instalando o desejo de permanecer com as “coisas”. Um outro aspecto significativo é que esta noção de “eu” também cria nos seres humanos o individualismo e o egocentrismo que, para o Budismo, descaracterizariam a própria natureza humana. Nas palavras de Suzuki (2002, p. 153) “De fato, vivemos todos sob os mantos de múltiplas ilusões e artificialismos, que evidentemente nada têm em comum com nosso ser real mais profundo”. Desapegar-se deste “eu”, reconhecer suas verdadeiras características, seu caráter ilusório, é o caminho para acessar nosso ser mais profundo, às vezes também chamado “o homem do caminho”. (Suzuki, Fromm e De Martino, 1970, p. 43). Ainda sobre o individualismo e egoísmo, Suzuki, escreve: O desejo de possuir é considerado pelo Budismo uma das piores paixões que podem obcecar os seres humanos. O que causa, de fato, toda a miséria do mundo é o impulso universal de aquisição. Quando o poder é desejado, o forte sempre tiraniza o fraco. Quando a riqueza é cobiçada, os ricos e os pobres estão sempre cruzando as espadas na mais amarga das inimizades. (Suzuki, 2002, p. 145). 116 O desprendimento do “eu” somado ao reconhecimento do desejo, seu traço egoísta e egocêntrico, e a consciência da impossibilidade de realizá-lo, uma vez que não há objeto no mundo que possibilite a satisfação e realização definitiva do próprio desejo, podem recolocar o homem em outro patamar, tanto frente aos outros homens, como frente ao mundo e a si mesmo. Ao reconhecer e assumir o caráter ilusório do “eu”, e de todo egocentrismo e egoísmo dele decorrente, estaríamos abertos à experiência primordial da interdependência entre todos os seres, conseqüentemente a uma nova maneira de viver e se de relacionar. A visão budista apresenta a idéia e a crença de que somente diante da perda do “eu” o ser primordial estará se revelando, ou seja, enquanto existir qualquer traço de vontade, desejo, ou expectativa de interferir no fluxo natural das coisas e da vida, o ser autêntico não se desvelará. Embora Perls e outros autores da GT não falem da “perda do eu”, quando Perls enfatiza sua crença na natureza humana apresenta um ponto de vista similar, uma vez que em sua proposição assinala a necessidade do homem permitir o fluir de seu fluxo natural, não tentando impor a si mesmo um ritmo, um tempo, ou mesmo um modo de ser que não lhe é peculiar. A teoria paradoxal da mudança, discutida anteriormente, revela esta idéia - toda e qualquer mudança ocorrerá a partir do reconhecimento e da aceitação daquilo que sou, e não da tentativa de me tornar aquilo que não sou. Muito embora a GT não proponha a desestruturação do “eu”, mas sim uma reestruturação a partir da maleabilidade e flexibilidade possíveis ao “eu”, ela, assim como o Budismo, acena para o desabrochar natural do ser, quando este aceita e não se opõe com o fluxo natural do próprio ser, sua condição existencial. 117 É neste desabrochar natural do ser, do qual GT e Zen sutilmente compartilham, ponto de partida e movimento inicial comuns, que encontramos a diferenciação e o afastamento em suas posições, pois os horizontes que descortinam suas respectivas visões de homem e de mundo são distintas. A GT, quando fala deste desabrochar, preconiza a espontaneidade, a criatividade e toda potência de ser do humano. Nesta concepção da capacidade do homem ser formador de mundo e ao mesmo tempo se formar com o mundo, não encontramos um alvo definido para este desabrochar, ou seja, um alvo definido para a natureza humana. Todo o Budismo, fala de abandono do “eu” para que assim possa se dar o desabrochar verdadeiro do ser, refere-se à natureza búdica que habita todos os seres e à “vacuidade ou vazio” que permeia todas as coisas. Sintetizando, poderíamos dizer que, para o Budismo, todos nós somos Budas e que o aqui e agora é o nirvana; no entanto, só quem tem olhos para ver consegue perceber isto (Watts, 2000). Nas palavras de Hui-Neng, o sexto patriarca do Budismo na China: “A única diferença entre um Buda e uma pessoa comum é que um percebe isso, ao passo que o outro não consegue” (Neng apud Watts, 2000, p. 57). Podemos perceber que o desabrochar do ser, a natureza búdica, só será conquistada ou despertada quando o homem conseguir ultrapassar todas as dicotomias como eu/outro, tempo/espaço, atingindo a iluminação. Novamente o Zen e todo o Budismo têm um alvo bem definido para a flecha natureza humana. Outro ponto de diferenciação e afastamento nestas concepções se dá pelo enfoque dado a identidade. Para a GT é possível e necessário pensar que o self desenvolve uma auto-referência que lhe permite um senso de identidade. Este senso, de unidade e coesão, é vital para estruturação do psiquismo e da própria personalidade permitindo à pessoa seu processo de desenvolvimento e amadurecimento. O Zen, por 118 sua vez, não opera neste campo e não desenvolve uma compreensão ou leitura mais específica destes aspectos do próprio processo de desenvolvimento e amadurecimento do psiquismo, não salienta ou mesmo indica a importância de um senso de identidade frente a esses processos. A ênfase da GT recai nos aspectos processuais do self, seu aspecto temporal, incorpóreo e processual, sua plasticidade e permeabilidade, reconhecendo também que, juntamente com este processo, o self na função personalidade possibilita a auto-imagem a auto-representação, auto-reconhecimento, e a incorporação dos aspectos com os quais eu me identifico, possibilitando um senso de unidade, uma coesão da noção de self. É ele que proporciona o senso de identidade histórica, constituída por meio dos atos simbólicos, e da representação que o indivíduo faz de si mesmo e que permite o reconhecimento e a responsabilidade pelo que escolhe, sente ou faz. O Budismo novamente parece levar sua compreensão do “eu” à radicalidade, uma vez que não há “eu”, o que existe são apenas processos de fenômenos físicos e mentais, continuamente emergindo e imediatamente desaparecendo. Nestes processos, o único fio contínuo é o fluxo da consciência através do tempo e nada mais. Novamente podemos perceber que o Budismo, levou às últimas conseqüências parte do que a GT formulou a respeito de sua noção de self. O Zen-Budismo, com relação à noção do “eu”, aparentemente se desprende dos aspectos psicológicos e propõe um salto direto à ontologia do ser. A GT, com relação ao self, ocupa-se dos aspectos psicológicos, na busca da possibilidade de reconfigurá-los, reconhecendo que sem a realização deste trabalho seria praticamente impossível devolver ao homem a reapropriação de sua própria existência, pela liberação de sua capacidade de 119 ajustamento criativo e conseqüente condição de criar o possível. Podemos pensar que para a GT a liberação da ontologia pessoal só acontecerá após cuidarmos dos aspectos ônticos. 120 CAPÍTULO V: O AQUI E AGORA E A TEMPORALIDADE O mestre Dôgen dizia: “A ameixeira desabrocha a primavera”. Não disse “no início da primavera”. O desabrochar da ameixeira é a própria primavera. Compreendendo isso, percebemos que “não existe nenhum lugar que não seja a primavera”. Rôshi – Mestra Zen (2003) 5.1 O aqui e agora na GT O que vem a ser o aqui e agora na GT? Para iniciarmos esta investigação é necessário retornar à criação da própria GT, na tentativa de compreender melhor o campo que contextualiza esta questão. Em Ego, Fome e Agressão, Perls (2002) dedica na primeira parte do livro, “Holismo e Psicanálise”, três capítulos a respeito a questão do tempo. O primeiro é trata do tempo, enfatizando o presente; o segundo do passado e do futuro e o terceiro do passado e presente. O lançamento do livro deu-se em 1942, portanto quando Perls era um psicanalista que buscava novas perspectivas que contribuíssem para a Psicanálise. E mais que isso, encontraremos o autor dando seus primeiros passos ou lançando as idéias embrionárias da nova abordagem, a GT. Neste trabalho, Perls põe em discussão o enfoque e o método psicanalítico frente à questão da temporalidade, à importância que dá à necessidade do retorno ao passado para a compreensão do sujeito e do próprio trabalho analítico. Perls contesta esta idéia argumentando que este retorno 121 pode muitas vezes se tornar prejudicial ao desenvolvimento do próprio indivíduo. Ele apresenta o esboço de suas novas concepções como a centralidade no presente. O centro temporal de nós mesmos como eventos espaço-tempo humanos conscientes é o presente. Não há outra realidade a não ser o presente. Nosso desejo de reter mais do passado ou de antecipar o futuro poderia encobrir completamente este senso de realidade. [...] qualquer renúncia do presente como centro de equilíbrio – como a alavanca de nossa vida – deve levar a uma personalidade desequilibrada. [...] O que quer que experienciemos ali, experenciamos no presente. Essa deve ser a base para toda tentativa de ‘reorganização organísmica’. (Perls, 2002, p.146147). Neste capítulo, o autor também já respondia à questão que mais tarde despertou grande celeuma a respeito da importância que a GT dá ao passado ou ao fato dos gestaltistas não considerarem o passado. Perls afirma que não nega que tudo sempre terá um ponto de origem no passado, tendendo a um desenvolvimento posterior. O que pretende demonstrar é que o passado e futuro se apóiam continuamente no presente e, portanto, devem estar sempre relacionados a ele (Perls, 2002). Em outras palavras, o passado significativo é o passado que nos fala no presente, e não no tempo em que ele se deu. O passado é importante agora, na forma como ele se apresenta neste momento. Nesta perspectiva, o passado tem uma certa tarefa e, enquanto esta não for cumprida, ele continuará se reapresentando. Enquanto a gestalt, a figura ou, situação inacabada não fechar de modo satisfatório, ela continuará emergindo na busca de uma solução ou desfecho. 122 Podemos perceber que Perls questiona o modelo explicativo enfatizado pela psicanálise da época, na busca do “por quê”, da causa. E apresentando seu modelo descritivo, um modelo fenomenológico, apoiado no “como”, “onde” e “quando”, Perls enfatiza a concentração, que futuramente se tornaria o “continuum de awareness ou presentificação”, em detrimento do método da associação livre. Define sua concepção a respeito do presente da seguinte forma: O presente é o ponto-zero em constante movimento dos opostos passado e futuro. Uma personalidade adequadamente equilibrada leva em conta o passado e o futuro sem abandonar o ponto-zero do presente, sem ver o passado ou o futuro como realidades. (Perls, 2002, p. 151). A partir desta concepção, desenvolve a noção de senso da realidade como sendo a experiência deste presente, na verdade a percepção e a aceitação da mutabilidade do presente, sem querer congelá-lo ou preservá-lo permanentemente, mas sim aceitá-lo em sua fluidez, já que a experiência deste exato segundo não é mais a mesma experiência de um segundo atrás. Por meio de sua metodologia inicial, “técnica da concentração”, é possível desenvolver o senso de realidade pelo contato com o presente e pela atenção com o que está a sua volta, ou mesmo pelo contato com o devanear no tempo passado ou futuro. Neste mesmo texto, Perls assinala que o futuro imediato está contido no presente, assim como o passado também está contido no presente. Em trabalhos futuros, Perls desenvolverá novos aspectos a respeito de sua compreensão sobre a importância do momento presente para o existir humano e a importância destes aspectos nos 123 desdobramentos da prática psicoterápica, no entanto, o eixo central de seu pensamento, de sua proposta teórica e prática, já está parcialmente estruturado em Ego, Fome e Agressão. Em seus trabalhos seguintes, Perls continua a desenvolver a questão do presente que vai se delineando com mais clareza com o desenvolvimento do conceito do aqui e agora que ganha maior relevo dentro da construção teórica da GT. O aqui e agora se impõe em sua visão de homem, em sua teoria e em seu método. A partir de então, “a centralidade no presente”, que se desdobra no aqui e agora, está estruturada na teoria e na prática da GT. Em seu terceiro livro Gestalt-Terapia Explicada, Perls (1977) dedica um capítulo a sua proposta e compreensão sobre o aqui e agora, iniciando-o com uma nítida influência do Zen, por um koan, “[...] e eu digo que não é possível viver no aqui e no agora, e entretanto nada existe exceto o aqui e o agora[...]” (Perls, 1977, p. 65). Retoma a questão do presente e do agora reafirmando que “[...]o agora não é uma escala, mas sim o ponto de sustentação, o ponto zero, um nada, isto é o agora[...]” (Idem, 66). Perls dá continuidade a sua proposta de Ego Fome e Agressão, critica a leitura psicanalítica do passado e aos traumas, enfatiza a idéia de processo contínuo em movimento. Desta forma o aqui e agora e o “como” tornam-se bases de sustentação para a GT. O “como” permite perceber a estrutura de comportamento e a compreensão do que está se passando agora e, conseqüentemente, conduz a uma compreensão mais aprofundada do processo. 124 O como é tudo que necessitamos para entender como nós ou o mundo funcionamos. O como nos dá perspectiva, orientação. O como mostra que uma das leis básicas, a identidade da estrutura e da função, é válida. Se modificarmos a estrutura, a função mudará. Se modificarmos a função, a estrutura mudará. (Perls, 1977, p. 68). O agora para Perls envolve tudo que existe, inclui portanto, o equilíbrio entre o experenciar, o aqui e agora, o envolvimento com a situação, com o próprio fenômeno e com a consciência. No livro A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia, Perls (1981) dedica mais um capítulo a este tema: A terapia aqui e agora, descrevendo as bases teóricas e técnicas da GT. Para o autor, a GT é uma terapia mais experiencial que meramente verbal ou interpretativa. Seu ponto de partida são os aspectos neuróticos da personalidade com todos os seus impedimentos para um existir pleno e fluido; em função das distorções criadas, o indivíduo neurótico tem um senso de identidade mal formado, não conseguindo distinguir com clareza ele mesmo do seu meio ambiente. Sua auto-suficiência é falha e inadequada, reverberando também em falhas no processo de homeostase. Na maioria das vezes, questões inacabadas do passado estarão perturbando sua capacidade de estar plenamente no presente. Para Perls (1981, p. 75), o neurótico “[...]tem um problema contínuo, aqui e agora, no presente[...]”, ou seja, para Perls e para a GT o ponto nodal desta questão é a impossibilidade de viver no presente. Todo desvio para o passado ou para o futuro revela a impossibilidade de lidar ou mesmo de ficar no presente, podendo também significar uma fixação e um aprisionamento em uma dessas esferas. 125 Esta compreensão teórica possibilita um método de trabalho que se estrutura na centralidade no presente, continuum de awareness ou presentificação. Em síntese, podemos dizer que o objetivo da psicoterapia gestáltica é dar ao indivíduo instrumentos para que possa resolver seus problemas atuais e quaisquer outros que venha a ter. Percebemos então que a centralidade no presente é fundamentação teórica, método de trabalho e estratégia técnica durante o processo. Dizendo de outra forma, e parafraseando Hycner (1995) a “abordagem global”, o “processo” e o “objetivo” precisam estar assentados na “centralidade no presente”. Quando falo de “abordagem global” compreendo a orientação pessoal e filosófica do terapeuta. Como “processo” a própria interação ou relação entre terapeuta e cliente e seu método de trabalho centrado no presente, e o “objetivo”, são compreendidos como resultado final da terapia, no caso, a capacidade do cliente viver no presente. Para que isto ocorra, precisaremos atravessar territórios como o do restabelecimento de si mesmo Pela integração das partes dissociadas da personalidade, e da restauração da auto-estima rebaixada, entre outros. Ao retomar a importância do momento presente, Polster e Polster (1979) observam que as dimensões do passado e futuro, através do reconhecimento daquilo que um dia foi e do que um dia será, formam um contorno psicológico, uma espécie de contexto psicológico para a experiência que proporciona ao presente simbólico um fundo sobre o qual ele pode existir. Mencionam que, ao mesmo tempo em que uma certa preocupação com o passado ou com o futuro é central para o funcionamento psicológico, o comportar-se como se estivéssemos realmente no passado ou no futuro pode tornar-se um obstáculo para as possibilidades vivas da existência. 126 Para Loffredo (1994), é possível perceber a influência de Bergson na obra de Perls. Observa que o conceito bergsoniano de durée, que “significa um ponto fluindo, aqui-e-agora, um ponto fluindo na torrente do tempo, a torrente do tempo que está avançando e no mesmo momento em que avança tem um horizonte de passado e de futuro” (Loffredo, 1994, p. 52), nos ajuda na compreensão correta do aqui e agora para a GT, uma vez que no aqui e agora simultaneamente estão alojados e co-participando a totalidade do passado e a perspectiva do futuro. O aqui e agora deve ser entendido então como um presente pleno no qual dimensões do passado e futuro se condensam. Ribeiro (1985) compreende que o homem é um ser locado no tempo e espaço, muito embora seu lugar neste tempo e espaço não esteja totalmente evidenciado. Acrescenta que, sob um outro ângulo, o ser humano carrega um sentido atemporal e “aespacial”, uma vez que em sua natureza ele sempre buscará transcender os próprios limites da temporalidade e da espacialidade. O homem é um ser que é capaz de se refazer a cada instante, estará se refazendo à todo momento e como tal estará sempre ocupado em se compreender como um ser do presente. Com relação ao tempo, não podemos em GT pensar o passado e o futuro como duas esferas de tempo distintas que estariam se encontrando numa espécie de ponto zero chamado presente. Há uma distinção entre os dois tempos, o passado está aí, atrás de nós; o futuro, está à nossa frente, por vir, ali adiante. No entanto, podemos perceber que os dois têm uma importância e um sentido atual: passado e futuro estão condensados num tempo presente. E o presente tem dimensões, ele pode conter toda uma vida, ou ser árido, desértico, e aparentemente não conter nada. O passado é o que se estende atrás de nós, porém apenas na medida em que um futuro permite que ali ele 127 se estenda. O futuro está à nossa frente, aí adiante, por vir, mas apenas na medida em que ele é nutrido pelo passado. O presente é, então, o convite vindo do futuro para que possamos conquistar o domínio dos tempos passados, assim como, a boa configuração do passado se torna também um convite para ousarmos e nos lançarmos nos tempos futuros. 5.2 O aqui e agora no Zen-Budismo Para abarcarmos a noção de tempo dentro da perspectiva budista, novamente iremos nos deparar com a originalidade do Zen, pois a compreensão absoluta desta perspectiva só se dará quando atingirmos a iluminação ou satori. E só atingiremos a iluminação quando conseguirmos romper com a estrutura do tempo à qual nossa mente está condicionada. Portanto, temporalidade e iluminação estão imbricadas em uma questão que precisa necessariamente ser vivida na tentativa de ser solucionada. O satori aparece quando rompemos com a noção de tempo e espaço. O tempo significa shabetsu, diferenciação e determinação, enquanto que a eternidade é byodo, tudo que não é shabetsu. É exatamente no satori que a eternidade irrompe no tempo, ou seja, quando byodo e shabetsu se interpenetram ou usando outra terminologia, quando ocorre a interfusão do universal e do individual (Suzuki, 1977). Também se costuma dizer que o satori tem lugar quando a consciência percebe um estado de “pensamento único”, e este, por sua vez, seria a menor unidade de tempo possível. Neste caso, o pensamento representaria um instante ou o tempo 128 reduzido a um ponto absoluto, um ponto sem qualquer durabilidade. Desta forma, o “presente absoluto” é exatamente o tempo reduzido a este ponto sem nenhuma durabilidade, às vezes também chamado de “eterno agora”. Suzuki (1977) enfatiza que o “presente absoluto” do ponto de vista existencial não é uma mera abstração, muito pelo contrário, ele é vivo e com muita criatividade. O satori então é a experiência, a vivência do “pensamento único”, um ponto no tempo que não tem nem passado ou futuro, ou seja, o ponto onde a eternidade irrompe o tempo. Muitos mosteiros e templos trazem a seguinte inscrição que revela a concepção zen budista acerca da vida e da temporalidade, e que procura lembrar os praticantes sobre a preciosidade de cada momento: O nascer e o morrer são um grave evento; Como é transitória a vida! Cada minuto tem que ser aproveitado, O tempo não espera por ninguém. (Watts, 2000, p. 104) Nesta perspectiva, o tempo ganharia seu verdadeiro significado quando está fundido com a eternidade. A eternidade, para estar viva, precisa descer para a ordem do tempo, pois só aí conseguirá realizar todas suas possibilidades. Já o tempo abandonado a si mesmo perde seu campo de operação. Para o Zen, o tempo não existe por ele mesmo, bem como a eternidade sem o tempo é impotente. É só na vivência real da eternidade que a noção do tempo torna-se possível, para tanto é necessário que a consciência esteja alerta “para o momento quando a eternidade levante seu pé para pisar dentro do tempo” (Suzuki, 1977, p. 55) e assim alcance a mesma. Este é o 129 “presente absoluto ou o eterno agora” e, no presente absoluto, “ o tempo e o espaço estão fundidos como um só, como um corpo de identidade própria” (Idem, p. 82-83). Neste ponto absoluto do tempo não há futuro esperando à frente nem passado deixado atrás, ele é exatamente este “aqui e agora”. Watts, nos oferece uma imagem que ilustra perfeitamente esta idéia da fusão de tempo e espaço, “O início do universo é agora, pois todas as coisas estão sendo criadas neste momento; e o fim do universo é agora, pois todas as coisas estão desaparecendo neste momento”. (Watts, 2000, p. 61). Para Suzuki (1996, p. 25-26) “[...] nós temos que existir no aqui e agora. Este é o ponto chave. Você tem que estar de posse de seu corpo e mente. Tudo deve existir no lugar certo e de maneira certa. Então não há problemas”. Para este autor, este foi um dos motivos que levou Buda a não aceitar as religiões que existiam em sua época, por não ter ficado satisfeito nem com suas respostas e nem com suas práticas. Buda estava interessado no corpo e na mente, no aqui e agora, e não nos aspectos metafísicos da existência. Quando conseguiu encontrar a si mesmo descobriu que a natureza búdica está em tudo o que existe. E esta foi sua iluminação. Esta é uma das chaves para compreensão e também para a prática do Budismo, existir no aqui e agora, pois só assim poderemos verdadeiramente nos apropriar de nossa existência e conseqüentemente dar passagem a nossa “verdadeira natureza”. Em outras palavras, a natureza búdica e a verdade eterna estão se manifestando continuamente diante de nós, aqui e agora, tanto em nossas ações como em nossos pensamentos, e na transitoriedade dos fenômenos que estão fluindo diante de nós, o tempo todo. No entanto, só os que possuem olhos para ver conseguem enxergar tudo isto (Watts, 2000). Vejamos uma história Zen chamada “O Agora”, que nos apresenta exatamente esta perspectiva: 130 Um guerreiro japonês foi capturado pelos seus inimigos e jogado na prisão. Naquela noite ele sentiu-se incapaz de dormir pois sabia que no dia seguinte ele iria ser interrogado, torturado e executado. Então as palavras de seu mestre Zen surgiram em sua mente: ‘O ‘amanhã’ não é real. E uma ilusão. A única realidade é ‘agora’. O verdadeiro sofrimento é viver ignorando este Dharma’. Em meio ao seu terror subitamente compreendeu o sentido dessas palavras, ficou em paz e dormiu. (Contos Zen, 2003 in www.dharmanet.com.br/zen) Podemos concluir que cada instante, aqui e agora, ou todo o momento que vivemos é a própria eternidade, que nada mais é que o próprio instante vivido. A iluminação situa-se aí, neste ponto, e é só através da iluminação ou do satori que poderemos perceber a eternidade no próprio instante e não como se ela se situasse em uma seqüência de unidades de instantes que se estendessem em um número infinito. Para o Zen, só dentro deste paradigma poderemos verdadeiramente ter acesso à realidade última, ou à realidade-em-si-mesma, e realmente compreendê-la como nós imediatamente a vivenciamos (Hanh, 2002). Quando estabelecemos a realidade como costumeiramente fazemos no tempo e espaço, estamos percebendo as coisas como representações ou como meras imagens, e assim nos afastamos ou mesmo destruímos a possibilidade de acesso à realidade última ou absoluta. Para Suzuki, este é o maior engano que temos cometido no entendimento da realidade. No começo do despertar intelectual, pensávamos que tínhamos conseguido um grande feito ao colocar a realidade dentro da estrutura 131 do tempo e do espaço. Nós nunca pensamos que isso estava preparando, na verdade, uma tragédia espiritual. (Suzuki, 1977, p. 56) Ainda, segundo Suzuki, a estrutura do tempo e espaço confina o homem numa espécie de aprisionamento ao karma e à mente lógica, afastando-o do “presente absoluto” e da possibilidade de ser um espírito livre e auto-regulado. Para ele, é a consciência que, em um trabalho estrutural, vigoroso e tirânico, coloca a mente sob as regras do tempo e espaço e, por sua vez, da conceituação lógica. Toda prática Zen, com sua meditação, seus koans e mondos - suas negações, contradições e paradoxos – visa romper com esta estrutura formal da consciência que, pelo aprisionamento no tempo e no espaço, impede as vivências de atos puros, uma vez que a mesma sempre estará carregada de alguma coisa a mais: seja a expectativa do novo, do futuro, seja o receio da repetição do velho, do passado, o que gera sempre muita tensão e desgaste desnecessário, não proporcionando ao homem um lugar de descanso em si mesmo. Suzuki (1996) observa que a prática da meditação zazen, possivelmente a mais conhecida do Zen, visa, ao mesmo tempo em que exercita, a supressão da idéia de tempo e espaço. Quando se inicia a meditação há a idéia de um recinto, de um espaço, e de um horário, de um tempo em que ela acontece. No entanto, o que está se realizando é apenas um sentar-se, o praticante está cônscio da atividade do universo. Envolve concentrar-se na respiração e acompanhar o fluxo das formações mentais, abrindo-se para uma direção, e já no estante seguinte caminha em direção oposta. Momento a momento, todos repetem este exercício. Durante esta prática não há idéia de tempo e espaço, “tempo e espaço são um”. A prática favorece a compreensão 132 da unidade que permeia o ser e o universo, retirando a noção dualista de tempo e espaço. Para o Zen, nas palavras de Suzuki (1996, p. 29) “[...] tudo que se tem a fazer é simplesmente executar as coisas tal como se apresentam. Faça alguma coisa! Seja o que for, devemos fazê-lo, mesmo que se trate de um não-fazer. Devemos viver neste momento”. Ao estabelecer este modo de vida podemos dissolver a confusão que reside em nossa “mente limitada”, o que nos possibilita aperceber de nossa “grande mente”. O meditar e seu exercício de concentração no respirar são recursos que favorecem esta ampliação. A proposta Zen é devolver à mente a inteireza, a completude nela mesma, propiciando ao ser um lugar de descanso, um lugar de equilíbrio e calma. Em uma perspectiva espiritual, Suzuki (1977) relata que boa parte deste caminho propõe um lugar último de repouso. O Zen, com sua clareza e lucidez, propõe que o praticante se recolha em seu interior, um lugar no qual possa descansar tanto consigo como com o mundo que rodeia. Na verdade ele propõe este descanso no próprio interior. 5.3 Aproximações e distanciamentos Para iniciar esta reflexão na busca de aproximações entre a compreensão do aqui e agora para a GT e para o Zen-Budismo, trago uma vivência pessoal. A situação aqui apresentada é a mais comum das situações vividas pelos pós-graduandos em via de concluir as respectivas dissertações e teses. São exatamente nestas situações ordinárias que podemos acessar o extraordinário, o feixe de luz que repentinamente 133 pode iluminar nossa escuridão. Envolvido por esta sensação de escuridão, de ao mesmo tempo estar atravessando, e estar sendo atravessado por uma avalancha, que é estar próximo da conclusão deste trabalho, com todas as expectativas, medos, dúvidas, incertezas e receios que ele gera, em muitos momentos me surpreendi. E às vezes ainda me surpreendo, caminhando na contramão das próprias idéias propostas pelo ZenBudismo e pela GT, e que, afinal, são as bases que escolhi para este trabalho. Em muitos momentos me vi ansioso, angustiado, até desesperado para concluir a dissertação. Comento com amigos que estou vivendo um período de abnegação, de total dedicação mas que a liberdade chegará assim que tiver alcançado meu objetivo. Houve momentos em que me vi deslocado no tempo, acreditando que lá, então, com o término da dissertação, seria feliz, e que aqui e agora sou um prisioneiro desta situação e de uma condição de sofrimento que me impedem de “ser feliz”. A angústia que envolveu este percurso chegou a tal dimensão que, em determinado momento, tomado de irritação e intolerância para comigo, para com os outros e para com meu próprio trabalho, recorri a um retiro36 budista. Obviamente com algumas resistências iniciais, pois quando houve a oportunidade e o convite, me sentia culpado por deixar de estudar e escrever para o mestrado, durante um feriado prolongado de quatro dias. Por fim, consciente de estresse e tensão e aconselhado por colegas que diziam “pode ser bom, você pode voltar melhor e mais energizado e com maior clareza de idéias”, resolvi realizá-lo. Os dias de convivência em comunidade, num espírito fraterno e acolhedor, com muitas práticas meditativas e ensinamentos que, também abordaram a importância do “aqui e agora”, foram a oportunidade de conseguir um distanciamento da própria situação do mestrado. Pude então me dar conta do “como” estava vivendo toda esta experiência e de como eu 36 Retiro: Prática budista na qual por alguns dias os participantes se reúnem com um monge, com o objetivo de praticar meditação e vivenciar alguns ensinamentos. 134 me estava colocando na mesma. O retiro resgatou uma das idéias centrais da comunidade budista, fazer o melhor uso possível das coisas que nos são dadas e nada perder do que a vida nos oferece. Na verdade, o intelecto, a imaginação, e todas as outras disciplinas mentais, bem como os objetos físicos que nos cercam, sem exceção do nosso próprio corpo, nos são oferecidos para desabrochamento e intensificação dos maiores poderes que possuímos latentes e não para a gratificação dos desejos individuais [...] (Suzuki, 2002, p. 146). Pude então perceber que não só minha angústia, medo do insucesso, mas também meu desejo de obter sucesso e um certo brilho com a dissertação, estavam me impedindo de usar a experiência que a vida me estava ofertando, no enfretamento das dificuldades do dia-a-dia. Para a GT, também poderíamos compreender esta situação por meio do pensamento diferencial, ou do pensar por polaridades. Tal enfoque revela a co-participação de aspectos do pólo oposto ao que se está fixado, ou pólo emergente, no caso, o quanto eu também vivenciava uma expectativa de sucesso na conclusão deste trabalho. O retiro me alertou também, para a necessidade de ações sem mérito, realizar o que precisa ser realizado, com um desprendimento tal que a ação se faça por si mesma. Com certeza algo simples de se dizer, mas difícil de se praticar. Pude perceber o quanto as expectativas em relação ao trabalho estavam me impedindo de lidar com as coisas como elas se apresentavam. Ao ampliar da minha percepção e consciência dos aspectos envolvidos, agora nos dois pólos, pude conduzir a situação de outra forma. 135 Retornei mais auto-centrado, e menos estressado, conseguindo perceber que as angústias, medos, incertezas, e também uma certa fixação pela conclusão do trabalho com um certo brilho, estavam destruindo exatamente o que há de mais rico. Pude ainda perceber o processo vivido durante este percurso como oportunidade de me acompanhar e de estar verdadeiramente presente durante esta trajetória. Pude perceber o aqui e agora de cada instante vivido, a centralidade no presente tão ressaltada pela GT e pelo Zen, com toda sua riqueza, dores e delícias do próprio caminhar. Pude perceber nesta trajetória aspectos do meu funcionamento, do meu carregar no tom das cores nos momentos de tensão e expectativa, do meu deslocamento para um futuro próximo diante de uma situação de insegurança, com as dúvidas e medos da perda do controle. Pude perceber na projeção do futuro a possibilidade ou a certeza de me encontrar livre de todo este sofrimento. Esta percepção reforçou a importância de atravessar esta situação e não saltá-la, “sentar” no meio do problema, como ressalta o Zen. Pude então verdadeiramente me perceber no aqui e agora, reconhecendo meus momentos de impotência e o quanto estes momentos me deslocavam para um futuro idealizado. No entanto, esta antecipação também roubava meu auto-suporte, minha criatividade, minha potencialidade e a capacidade de responder da melhor maneira possível ao que se apresentava. Paradoxalmente, ao enfrentar e atravessar as dificuldades, limitações e angústias, inerentes à situação de finalização da dissertação, as quais eu procurava evitar, pude constatar que a questão que eu discutia em meu trabalho trazia em si a própria resposta. O conflito possibilitou o aprendizado; o sofrimento, abertura para o mais além, possibilidade de transcendência ou, como reza a tradição oriental, a crise tornou-se oportunidade. 136 Esta vivência ilustra a importância do aqui e agora tanto para o Zen como para a GT. Na verdade, os referenciais da GT e do Zen na leitura desta minha vivência procuraram mostrar que para ambos o aqui e agora é a possibilidade de aproximação, o portal de acesso ao universo humano, e ao mesmo tempo, através dele, podemos realizar transformações psicológicas, existenciais ou espirituais. Outro aspecto que aproxima a GT e o Zen é exatamente a busca pela centralidade no presente. Ambos priorizam este aspecto – qualquer possibilidade de apropriação da existência, de sua transformação e da própria transcendência humana só pode se dar a partir deste paradigma. Zen e GT concordam a respeito da dificuldade do seres humanos se instalarem no presente, enfatizam que esta é uma das maiores dificuldades a serem enfrentadas, e propõem que a vida é aqui e agora e só tem sentido quando vivida a partir desta perspectiva. Para a GT o intuito da psicoterapia é dar ao cliente instrumentos para que ele possa resolver seus problemas atuais e futuros, devolvendo-lhe sua inteireza, sua potencialidade e capacidade de habitar melhor no presente, e assim viver de forma mais consciente, no aqui e agora, de forma harmoniosa e integrada. O Zen com sua prática, principalmente a meditação e a vivência do cotidiano com inteireza e consciência, também visa desenvolver a mente do praticante, a completude nela mesma, proporcionando ao ser um lugar de descanso, equilíbrio e calma. Ou seja, tratar a si mesmo e ao mundo de uma forma mais reverencial pela prática sobretudo da compaixão, sem qualquer necessidade de reconhecimento por parte dos outros. 137 Uma criança está se afogando. Eu mergulho e salvo a criança. Isto é tudo que tenho a fazer no caso. O que está feito, está feito. Ando para frente sem olhar para trás e sem pensar mais no caso. Uma nuvem passa. O céu é tão azul e amplo como sempre o foi. (Suzuki, 2002, p.155). Continuum de awareness ou presentificação e a meditação, como já assinalado, apresentam similaridades. As duas práticas visam resgatar no humano sua potencialidade e se fundamentam na centralidade no presente, com alguns pressupostos comuns. Ambas reconhecem a dificuldade de se viver no presente, utilizam métodos com muitas afinidades, a fim de atingirem seus objetivos. No entanto, o horizonte de suas visões de homem é distinto e a compreensão do aqui e agora reforça exatamente esta diferença. Para GT o aqui e agora é uma condensação de tempos, também reconhecida pelo Zen que, no entanto, visa uma supressão do tempo, e este é seu maior diferencial, em relação à GT. Explicando melhor, para a GT o aqui e agora deve ser entendido como um presente pleno no qual simultaneamente co-participam a totalidade do passado e a perspectiva do futuro. Esta perspectiva permite também perceber no ser humano um sentido atemporal e “a-espacial”, uma vez que é de sua natureza sempre buscar transcender os próprios limites da temporalidade e da espacialidade, perspectiva que a afasta da proposta do Zen que busca, através da unificação de tempo e espaço e da percepção da eternidade contida em cada instante vivido, a supressão ou a superação da temporalidade. Para o Zen é fundamental a superação da temporalidade, como das outras cisões ou dicotomias pois só assim, o homem atingirá a iluminação. Podemos perceber que em relação à natureza humana, o Budismo e o Zen visam um alvo distinto, 138 como já assinalado. No entanto, a GT, embora afirme a potencialidade da natureza humana e conseqüentemente a sua capacidade de se auto-destinar, ela não determina de antemão o alvo deste destino. Para o Zen, embora a iluminação não deva ser perseguida com apego, ela é o alvo, a direção a ser seguida. É através da superação de todas as cisões, como a de tempo e espaço, que o homem atingirá a iluminação. Ao reconhecer sua natureza búdica, consegue acessar a realidade última, tornando-se uno com o fluir dos fenômenos, assim como “a água, que a tudo se adapta porque a tudo se submete” (Herrigel, 2001, p. 37). 139 CONCLUSÕES Como alguém pode impedir uma gota d’água de jamais secar?... Atirando-a ao mar. Samsara (2001) O diálogo desenvolvido nesta dissertação entre conceitos da GT e do Zen Budismo, permite ressaltar alguns aspectos mais significativos. Com relação ao continuum de awareness e a meditação, é possível observar que eles fazem da tomada de consciência e da concentração seu objeto de trabalho, dando enfaze à experiência vivida centrada no presente, como um recurso para a superação do racionalismo, da lógica formal e da necessidade de conceituação. Preserva assim a riqueza de cada experiência no seu todo e o sabor do momento vivido no qual reluz o mistério, o extraordinário. Tanto a meditação Zen quanto o continuum de awareness da GT favorecem uma visão interna que possibilita o emergir de aspectos da própria vida, do próprio ser, e realizá-los da maneira a mais direta possível. Este foco na atenção ao presente que ambos promovem tem um mesmo movimento que permite, através da concentração e acompanhamento de cada vivência, a descoberta daquilo que sempre 140 esteve presente, mas até então não plenamente consciente e portanto, não apropriado.Para as duas práticas não há a necessidade de uma busca externa mas simplesmente possibilitar um maior contato com a situação, a experiência vivida. Nela se desvelam o próprio ser, os processos de expansão da consciência e de transformação humana. Outro aspecto importante nestas duas propostas é a atitude que fundamenta e sustenta suas práticas. Na GT, o continuum de awareness ou presentificação possibilita a investigação da própria experiência, por meio de um olhar ingênuo que suspende temporariamente seu saber, na tentativa de assim apreender o vivido em sua essência e na busca de um sentido singular e peculiar para aquela pessoa. Já na meditação, essa atitude aparece no do “olhar de principiante” que visa a manutenção da mente vazia e aberta, que abandona o “conhecimento”, o domínio das coisas que para o Zen, poderiam obstruir a capacidade de abertura e de receptividade para o novo e para a construção de novos sentidos. É a atitude de principiante diante da vida que possibilita a aprendizagem de fato. Estas idéias e atitudes, do Zen e da GT, encontram correspondência na proposta da Fenomenologia quando esta sugere a suspensão, o colocar entre parênteses valores e pré-concepções, suspendendo a crença no mundo natural e olhando para os fenômenos com um olhar ingênuo. As práticas do Zen e da GT preconizam a mesma postura frente à possibilidade de aproximação e compreensão das experiências humanas e do processo de auto-conhecimento. A meditação é compreendida como uma prática que possibilite um estado de abertura necessária para apreender as sutilezas da vida que o “sonambulismo” do cotidiano com seu véu não permite usufruir. Em outras palavras, propõe uma expansão 141 da consciência ou uma ampliação da mente que desenvolvem um maior senso de presença e inteireza no viver de cada situação. O continuum de awareness, que se estrutura por meio do aqui e agora e do contato, também visa a expansão da consciência, um maior senso de presença e inteireza no viver, a centralidade no presente, e conseqüentemente uma melhor apropriação da condição existencial da pessoa. Assim, tanto a meditação como o método de awareness ou continuum de presentificação são similares em sua estrutura, sua prática e, aparentemente, em seu objetivo, na medida em que ambos visam auxiliar o ser humano a se alojar no presente e a se apropriar melhor deste viver. Com relação às visões de homem e às concepções de cura tanto na GT quanto no Zen, elas remetem a confiança no ser humano e é nesta perspectiva que se desenvolvem. Enfatizam a liberdade do ser humano, sua responsabilidade diante da existência, sua capacidade de escolha, seu poder frente a si mesmo e ao próprio existir. Valorizam também capacidade de expansão da consciência e busca incessante rumo à transcendência, entendida como o movimento humano de ir mais além de si mesmo. Há nelas a crença no potencial humano de integração e desenvolvimento. Na perspectiva budista a liberdade não é outorgada, mas cultivada, ela independe das condições ou do ambiente em que o indivíduo se encontra. Acredita na capacidade do ser humano lidar com as adversidades, possível a partir do momento em que o homem conhece seus próprios sentimentos e aprende a lidar com eles, ou seja, lidar com a raiva, com a inveja, com o orgulho, com o desespero e com a angústia. A transformação destes sentimentos instrumentaliza os indivíduos a lidarem com qualquer 142 acontecimento do cotidiano, o que os torna mais fortalecidos, firmes, capazes de residir no aqui e agora e não absorvidos pelo passado ou pelo futuro. Serão pessoas mais livres, capazes de lidar melhor com qualquer situação, independentemente das circunstâncias. Para a GT, a noção de liberdade está muito próxima da perspectiva budista. O homem não escolhe o local de seu nasciment, mas uma vez lançado no mundo, cabe a ele construir seu próprio projeto existencial dentro das limitações do meio em que está inserido. O homem sempre terá liberdade de escolha e de ação dentro deste campo, liberdade compreendida como a capacidade de criar dentro do possível. Mas na própria noção de liberdade aparecem diferenças entre as duas perspectivas, envolvendo a compreensão e a visão da angústia. A perspectiva fenomenológica, característica da GT, na sua vertente existencial, apresenta o homem como abertura. Ante esta abertura o homem não tem condições de pré-ver e conseqüentemente não tem garantias diante de suas escolhas. Sua trajetória será sempre marcada pela angústia, pela impossibilidade de realizar todas suas potencialidades e pela precariedade da existência humana que caminha para a morte. É a vivência da angústia que desvela ao homem suas possibilidades, colocando-o em contato com o nada, com o não-ser, com aquilo que ainda não é, mas que, no entanto, poderá ou não ser. Nesta perspectiva, a angústia não pode ser superada pelo homem, mas sim, sustentada por ele. Em última instância, o homem pode ir para a morte sem medo, mas não sem angústia, uma vez que esta trás a própria possibilidade da impossibilidade. 143 Para o Budismo, o ser humano também é abertura. O sofrimento, assim como a angústia, fazem parte da condição humana e se apresentam como oportunidades para o auto-conhecimento, para a descoberta de si mesmo, para a transcendência. Contudo, o Budismo acena para a possibilidade da supressão dos desejos e desapego do “eu”, movimento através do qual se pode chegar à eliminação do sofrimento e da própria angústia. Este desprendimento permite que continue acontecendo o nascer e o morrer, mas ultrapassando-se o sofrimento e a angústia, isto é, sobre este vértice a angústia pode, sim, ser superada. GT e Zen acreditam na transformação do ser humano rumo ao desabrochar de sua verdadeira natureza, ambos privilegiam e o fundamento relacional da existência humana. Na GT ele aparece pela noção do entre, do dialógico, do relacional. No Zen, ela aparece por meio da noção de inter-ser ou da interdependência. A “quebra dos pontos de apoio” proposta pelo Zen pode ser comparada à restauração dos processos de cristalização na GT. No Zen porém, estes pontos de apoio podem revelar futuros impedimentos e restrições ao existir fluido do ser humano enquanto na GT eles podem corresponder ao próprio processo de cristalização, em situações de “engessamento” que estariam estagnando o processo maturacional humano. Muito embora GT e Zen destaquem a importância do desabrochar humano, “a compreensão de nossa própria e mais íntima natureza”, o “entrar em contato com nosso sábio interior”, suas concepções de natureza humana apresentam diferenciações. A GT não apresenta um acervo fechado e definido para as possíveis facetas do humano, uma vez que ele é um ser aberto às infinitas possibilidades num 144 constante vir-a-ser. Não define a planta que a semente carrega, embora acredite na planta que habita a semente enquanto potencial a se desenvolver. Já para o Budismo, há um alvo claro para a flecha natureza humana; o homem é Buda, só precisa despertar essa natureza do seu verdadeiro ser. Sua concepção de natureza humana parece encampar toda a proposta da GT, mas a modifica e a ultrapassa na medida em que revela uma continuidade para a perspectiva de homem da GT que vai desde sua valorização até sua idealização com um objetivo claro e atingível ou alcânçavel, a respeito do seu fim último. Quanto à noção do “eu” para o Zen-Budismo e self para a GT, um dos aspectos centrais em suas concepções é o caráter dinâmico e processual atribuído ao “eu” e ao self. Estes não são vistos como estruturas, instâncias ou mesmo como núcleo pessoal no indivíduo. Tanto o Zen quanto a GT reconhecem a fluidez, a maleabilidade e a permeabilidade tanto do “eu” como do self. A plasticidade e a maleabilidade são características fundamentais do self, elas garantem e mantêm a fluidez no processo existencial, ao mesmo tempo em que manifestam a expressão das potencialidades humanas e sua negociação com as possibilidades do meio. Para o Zen, elas são condição sine qua non para a possibilidade existencial humana. Esta compreensão do “eu”, visto não como identidade, mas como um processo contínuo, demarcará o ser como o “fluir com o rio da vida”. Sintetizando, o ser é pura permeabilidade e flexibilidade. É este potencial interacional que garante a criatividade no ajustamento do homem ao meio. Embora o Zen não use a terminologia “ajustamento criativo”, ele fala da capacidade humana de a tudo se adaptar, tal como a 145 água, que a tudo se adapta e ao mesmo tempo a tudo transpõe. Novamente é nesta flexibilidade do “eu” e do self que vamos encontrar a possibilidade de vida autêntica. Outro aspecto relevante diz respeito ao ser com na GT. É na interação que o self se constitui no campo relacional organismo-meio. Esta interação exige do self estar de modo diferente a cada experiência. O estar na “fronteira de contato” possibilita este “ajustamento criativo” e ao mesmo tempo reassegura a característica relacional do homem, o ser com. A noção de interdependência no Budismo também destaca este mesmo aspecto proposto pela GT, o “eu”, ou melhor, o desapego do “eu” permite ao homem fluir no entre, o campo relacional organismo-meio. O homem só pode ser com todos os outros seres e com tudo que o circunda. Em função disto, ele precisará se apresentar sempre de maneira diferente, dependendo das combinações destas interações. O caminho proposto pelo Budismo, porém, é distinto da proposta gestáltica, na medida em que enfatiza que é o desapego do “eu” que garante a plasticidade no existir humano, noção que impõe ao praticante “desprender-se de si mesmo” para estar e encontrar-se em todas as coisas do mundo. Assim, quanto mais estiver o indivíduo desapegado de si mesmo, mais estará inter-sendo, mais estará uno com o fluir dos fenômenos, e mais descobrirá sobre si e sobre a vida. Para o Budismo, todo sofrimento humano é decorrência do processo de ilusão do “eu”. É essa ilusão que instala o desejo de permanecer com as “coisas”, criando também o individualismo, o egocentrismo e o egoísmo, que descaracterizam a própria natureza humana, uma vez que, enquanto existir qualquer traço de vontade, desejo ou expectativa de interferir no fluxo natural das coisas e da vida, o ser autêntico 146 não se desvelará. Desapegar-se do “eu”, reconhecer suas verdadeiras características, seu caráter ilusório, recoloca o homem em outro patamar, tanto frente aos outros, como frente ao mundo e a si mesmo. Ao reconhecer e assumir o caráter ilusório do “eu”, ele se abre à experiência primordial da interdependência entre todos os seres, conseqüentemente a uma nova maneira de viver e se relacionar, na qual o seu ser mais profundo pôde ser acessado. Perls e outros autores da GT não falam do desapego do “eu” mas de sua plasticidade. A crença na natureza humana assinala a necessidade do homem permitirse fluir aceitando seu próprio fluxo natural, não tentando impor a si mesmo um ritmo, um tempo, ou mesmo um modo de ser que não lhe é peculiar. A teoria paradoxal da mudança revela a compreensão de que toda e qualquer mudança ocorrerá a partir do reconhecimento e da aceitação daquilo que sou, e não da tentativa de me tornar aquilo que não sou. Tanto a GT como o Budismo compartilham da idéia de que um dos passos para o desabrochar natural do ser acontece a partir da aceitação de sua condição existencial, condição esta que traz em seu cerne o homem como um ser no mundo, como um ser relacional. Um ponto de diferenciação e afastamento nestas concepções se encontra no enfoque dado à identidade. Para a GT, é possível e necessário pensar que o self desenvolve uma auto-referência que lhe permite um senso de identidade. O self na função personalidade possibilita a auto-imagem, a auto-representação, o autoreconhecimento, e a incorporação dos aspectos com os quais eu me identifico, possibilitando o senso de unidade e de coesão. É ele que também proporciona o senso de identidade histórica. Este senso de unidade e coesão é vital para estruturação do 147 psiquismo e da própria personalidade permitindo à pessoa prosseguir em seu processo de desenvolvimento e amadurecimento. O Zen não opera neste campo. Ele não desenvolve uma compreensão ou leitura específica dos aspectos envolvidos no processo de desenvolvimento e amadurecimento do psiquismo. Não salienta e nem mesmo indica a importância de um senso de identidade nesses processos, já que segue na direção oposta. Ele propõe a dissolução do “eu” e não seu fortalecimento. O Budismo leva sua compreensão do “eu” à radicalidade, uma vez que postula o “não-eu”. Novamente podemos pensar que o Budismo leva às últimas conseqüências parte do que a GT formulou a respeito de sua noção de self. Embora o Budismo se ocupe dos aspectos psicológicos como meio para transformação da mente, ele propõe um salto direto à ontologia do ser. A GT, com relação ao self, ocupa-se dos aspectos psicológicos, na possibilidade de reconfigurá-los. Reconhece que sem trabálho-los é praticamente impossível devolver ao homem a reapropriação de sua própria existência, liberando sua capacidade de ajustamento criativo e conseqüentemente a condição de criar o possível. Com relação ao aqui e agora, ele é a possibilidade, para a GT e para o Zen, de aproximação, o portal de acesso ao universo humano e, através dele, o homem pode realizar transformações em suas várias dimensões, psicológicas, existenciais ou espirituais. Ambos compartilham algumas posições comuns; é no concreto da vida cotidiana que se encontra a verdade tão perseguida pelos seres humanos; é no momento presente que se encontra a via de acesso para a mudança, integração na GT, iluminação no Zen; o aqui e agora é o ponto para o qual tudo converge, o ponto em que passado e 148 futuro convergem para o presente. O aqui e agora é uma condensação de tempos, e é a partir desta compreensão que ambos desenvolvem suas concepções e práticas. GT e Zen prezam a centralidade no presente, priorizando radicalmente este aspecto. Por suas concepções qualquer possibilidade de apropriação da existência, de sua transformação e da própria transcendência humana só pode se dar a partir deste paradigma. Ambos concordam a respeito da dificuldade dos homens se instalarem no presente, enfatizando que esta é uma das maiores dificuldades a ser enfrentada. Propõem que a vida é aqui e agora e só tem sentido quando vivida a partir desta perspectiva. O intuito da psicoterapia, para a GT, é dar ao cliente instrumentos para que ele possa resolver seus problemas atuais e outros que venha a ter, devolvendo-lhe sua inteireza, sua potencialidade e capacidade de habitar melhor no presente e, assim, viver de forma mais consciente no aqui e agora, em contato, de forma harmoniosa e integrada. A prática Zen, principalmente a da meditação e a da vivência do cotidiano com inteireza e consciência, também visa desenvolver a mente do praticante, a completude nela mesma, proporcionando ao homem um lugar de descanso, equilíbrio e calma. Permite ao homem tratar a si mesmo e ao mundo de uma forma mais reverencial, praticando particularmente a compaixão, sem qualquer necessidade de reconhecimento por parte dos outros. Como já destacado, as práticas da GT e do Zen apresentam muitas afinidades, no entanto suas visões de homem são distintas e a compreensão do aqui e agora reforça esta distinção. 149 O distanciamento surge na medida em que o Zen vai além da compreensão do aqui e agora como condensação de tempos, visando uma supressão ou superação do tempo. Para a GT, o aqui e agora deve ser entendido como um presente pleno no qual simultaneamente co-participam a totalidade do passado e a perspectiva do futuro. Esta perspectiva permite também perceber no ser humano um sentido atemporal e “a-espacial”, pois por sua natureza, ele sempre buscará transcender os próprios limites da temporalidade e da espacialidade. A filosofia Zen, ao conceber a eternidade contida em cada instante, pela unificação de tempo e espaço, supera a temporalidade. O tempo assim como o “eu”, para o Budismo é também uma ilusão. A grande diferenciação entre o Zen e a GT se dá a partir do fim último em suas concepções de homem ou natureza humana. O Budismo carrega um alvo distinto. A GT, embora afirme a potencialidade e a confiança na natureza humana e conseqüentemente, a sua capacidade de se auto-destinar, não determina de antemão o alvo deste destino. Para o Zen, embora a iluminação não deva ser perseguida com apego, ela é o alvo, a direção a ser seguida. É só através da superação de todas as cisões, como a de tempo e espaço, que o homem atingirá a iluminação. Ao reconhecer sua natureza búdica e a “vacuidade ou vazio” que permeia todas as coisas, consegue acessar a realidade última. A GT confia na natureza humana, acreditando na auto-regulação organísmica e na capacidade do seres humanos iluminarem suas ações, no entanto não afirma que o objetivo último do homem é a iluminação. Em relação a seus objetivos, portanto, Zen Budismo e GT se afastam. Apesar de todas as proximidades eles se mantêm em universos distintos: o Zen situa-se no âmbito religioso e a GT limita-se ao âmbito da Psicologia. 150 Para Vergote (1966, p. 24), “religião é um conjunto orientado e estruturado de sentimentos e pensamentos, por meio dos quais o homem e a sociedade tomam consciência vital de seu ser íntimo e último e, simultaneamente, nela se torna presente o poder divino [...]”. Já para James (1991, p. 70) religião é “[...] sentimentos, atos, e experiências do indivíduo humano, em sua solidão, enquanto se situa numa relação, seja qual for por ele considerado divino [...]”. Compreendo que as religiões propõem uma estruturação das crenças e perguntas que os seres humanos foram tecendo durante seu desenvolvimento sócio-histórico-cultural, constituem um arcabouço de dogmas, valores e princípios, que tentam responder às primeiras e mais antigas questões do homem, da origem e do fim: de onde viemos e para onde vamos. E a estas, soma-se a questão do divino. Estas são as questões mais complexas para os homens e que ao longo dos tempos, através da busca e criação de um sentido espiritual as religiões, tentam responder. A religiosidade pode assim ser entendida como a busca de uma compreensão que ultrapasse a lógica, o tempo, o espaço. Esta busca que ultrapassa a racionalidade humana, pode estar ou não vinculada especificamente a uma religião. Safra (2004b) diz que há em toda subjetividade humana um movimento de religiosidade, um movimento originário que busca dar sentido às experiências e vivências no mundo. A religiosidade é pois complexa, ampla e presente nos níveis ontológico e ôntico da subjetividade humana. No nível ontológico, ela nos fala da própria condição humana, das possibilidades e dos fundamentos do acontecer humano, sempre em seu caráter universal. No nível ôntico, enfoca a maneira peculiar como a condição ontológica se dá na existência singular de cada indivíduo. 151 O Zen-Budismo situa-se na interface entre religião e filosofia. Como religião, carrega uma concepção de homem e de mundo, apresenta um sistema representacional de crenças, valores e dogmas, permitindo aos praticantes, por meio deste sistema, modelarem sua vida pautada nestes valores de uma maneira espiritual, rumo à transcendência e à sacralidade. Em outras palavras, oferece a possibilidade de se ligarem novamente ao divino. Para o Zen especificamente, isto se dá a partir do reconhecimento da própria existência em sua precariedade, e basicamente em seu cotidiano, no que há de mais ordinário da existência humana, evitando o uso de explicações ou operações metafísicas para tentar responder às questões sobre o início e o fim do homem e do mundo. Dentro da perspectiva Zen, estas questões aparecem como um gigantesco Koan, que não precisa de explicações e racionalizações, mas sim ser vivido para ser decifrado. Em última instância, para o Zen a re-ligação com o divino se dá na concretude da existência humana, em seu cotidiano, no âmbito mais ordinário e comum de nossa existência que, quando vivida em sua totalidade, com “os olhos de quem consegue ver”, desvela ao ser a sua própria natureza divina Buda, que sempre esteve presente ali mas até então não reconhecida. A GT é uma abordagem psicológica que tem como objetivo promover a reestruturação emocional de indivíduos que viveram situações de perturbação em seu processo maturacional, e que foram impedidos em seu desenvolvimento, potencialidade e criatividade, comprometendo a forma como se colocam no mundo como sujeitos existenciais autônomos e auto-dirigidos rumo à realização de si mesmos. Como todo trabalho psicológico clínico, visa compreender as falhas e lacunas do processo de crescimento humano possibilitando ao cliente, dentro do possível, libertar-se dos aprisionamentos e das cristalizações vividas como impedimentos nos processos 152 existenciais. Ela pode ser sustentada por uma visão filosófica, com sua concepção de homem e de mundo, mas desenvolve conceitos e atua no âmbito de uma teoria psicológica que desenvolve técnicas cujo objetivo último é proporcionar uma mudança positiva na vida do cliente, através da própria relação terapêutica. 153 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo teve como horizonte um diálogo, a possibilidade de uma interlocução entre idéias, conceitos e métodos da GT e do Zen-Budismo, buscando encontrar proximidades e distinções entre estas duas áreas do conhecimento humano. Trazia no início – como pano de fundo – a possibilidade de integrar em minha vida a esfera religiosa e a esfera psicológica. E agora, no final deste percurso, ao chegar à reflexão e elaboração das considerações finais deste trabalho, percebo o quanto fui me transformando no decorrer desta trajetória. Reconheço o quanto me foi propiciado pela integração destas esferas extremamente significativas de minha vida: a dimensão profissional e a dimensão espiritual. Quando propus me debruçar sobre esta dissertação, aceitei correr os riscos e empregar os cuidados necessários para me colocar na interface entre psicologia e religião. Procurei ter em mente as palavras de Ancona-Lopez (2002, p. 79) quanto à importância dos cuidados e desafios que este tipo de trabalho exige. “[...] perseguir o conhecimento traçando formas de trabalho que respeitem a especificidade do saber psicológico e a singularidade das tradições religiosas. Manter ‘um pé em cada campo’, buscando o equilíbrio entre as duas áreas e evitando aproximações redutivas, é o desafio [...]”. Na condução deste trabalho, de fato, o grande risco e o grande desafio foram manter o equilíbrio entre estas duas áreas evitando aproximações reducionistas. Um dos recursos que usei para evitar o reducionismo foi não esquecer que falava de registros diferentes da condição existencial humana, mesmo quando apontei as confluências entre conceitos das duas áreas. Ao discutir estes tópicos, foi importante 154 manter as especificidades da GT e a singularidade do Zen, garantindo que a GT não é Zen-Budismo e, por outro lado, esclarecendo que Zen-Budismo não é uma forma de psicoterapia. Com relação a estes aspectos, é importante ressaltar que em todo processo psicoterapêutico, de forma implícita ou explícita, as questões ligadas à religiosidade e à espiritualidade do cliente aparecerão em algum momento, como lembram Safra e Juliano. Ao refletir sobre o processo terapêutico na perspectiva gestáltica, Juliano, nomeia esta etapa de “passagem pelo território do sagrado”. Após a reconstrução de sua história pessoal, o cliente tem condição de perceber temas guardados que pertencem à dimensão do humano e não apenas as questões individuais. Ele está apto para viver a mutualidade ou a interdependência, um ponto no processo de individuação, no qual o indivíduo consegue se identificar com uma história humana ou com a própria condição humana e com tudo que tem em comum como ser humano e como parte da natureza. Ao chegar nesta etapa do processo, cabe ao terapeuta acolher, acompanhar e cuidar destas questões universais, sabendo que diante destas questões não cabem respostas psicológicas, mas sim o testemunho de quem também se reconhece humano nesta busca. Ao realizar isto, permite que seu cliente continue caminhante em sua jornada. Embora GT não seja Budismo e Budismo não seja GT, diante das experiências do processo terapêutico, o Zen, como outras religiões, com toda sua riqueza e sabedoria, tem muito a oferecer, pois, suas propostas são basicamente aberturas para as questões ontológicas. Idéias e conceitos trazidos pelo Zen como o desapego do “eu”, a impermanência, a interdependência ou inter-ser, a quebra dos pontos de apoio, a vida 155 aqui e agora e a centralidade no presente, o sofrimento e a crise como oportunidades, o fluir com o rio da vida, bem como suas metáforas, Mondos e Koans, apresentam-se extremamente ricos para o trabalho terapêutico e para o desenvolvimento do próprio terapeuta. Em outras palavras, possibilitam a afinação do seu próprio instrumento, na medida em que podem facilitar o auto-conhecimento, favorecer processos de integração, desenvolver maior equilíbrio e harmonia, aspectos imprescindíveis ao terapeuta e fundamentais para o trabalho clínico. Para além da realização de um trabalho acadêmico, ou das reflexões que acompanham a ação clínica, uma outra maneira de responder à questão do cuidado na interface religião-psicologia, no caso, consonante ao espírito Zen, é o de ultrapassar as respostas a esta questão, deixar que ela continue a ressoar no silêncio. Como o Zen preconiza, as grandes questões são para serem vividas. Assim como a própria existência, que não é para ser explicada, mas sim um Koan a ser decifrado. Após transitar por estes dois universos, realizando um diálogo entre estas duas esferas distintas em suas interfaces, pude me apropriar de outra faceta que foi se revelando, silenciosamente, nos bastidores deste trabalho. À medida que caminhava na investigação da GT e do Zen-Budismo, na tentativa de conhecê-los melhor, a minha compreensão acerca do universo da psicologia e da religião também se transformou. Somente agora, ao final desta dissertação, consigo me apropriar desta modificação. No âmbito pessoal, esta integração me colocou mais aberto e mais inteiro para a vida. No âmbito profissional, consigo hoje acolher as questões religiosas e espirituais de meus clientes de uma maneira mais receptiva e espontânea, e posso compreendê-las como questões universais, genuínas e autênticas, quando elas assim se 156 revelam, sem correr o risco de fazer psicologismo da religiosidade. Observo que, ao me colocar desta forma no processo terapêutico, meus clientes também conseguem elaborar estas questões de um jeito mais harmônico e integrado. Em suma, percebo que foi possível um salto na maneira como lido com religiosidade e espiritualidade. Isto só foi possível a partir do processo de transformação e integração que vivi nos últimos anos, reforçando a premissa básica da GT e de parte significativa da psicologia: quanto mais inteiro, integrado e harmônico o terapeuta se encontra, mais aberto e receptivo ele poderá estar para receber, acolher e acompanhar seu cliente. É importante assinalar que esta integração não se deu apenas na prática clínica, mas também enquanto professor, em sala de aula, situação na qual a informação, a formação e a transformação incidem na relação professor-aluno. Através do acolhimento das questões e dúvidas dos alunos frente à interface psicologia e religião, da sustentação de um diálogo maduro e consistente nas incertezas, dúvidas e angústias dos supervisionados sobre como conduzir as questões religiosas nos atendimentos clínicos, a minha relação com meus alunos e supervisionandos tornou-se mais rica e fecunda. Compreendo que a forma de conduzir este tema é fundamental na formação de novos profissionais, uma vez que a interface psicologia-religião está fortemente presente em nossa cultura. O caminhar entre a psicologia e a religião, somado a demanda do mestrado, cursos, disciplinas, o encontro com novos amigos, ampliaram e modificaram significativamente meu raciocínio clínico, minha compreensão e minha condução na prática clínica. Mudanças fundamentais uma vez que o fazer terapêutico requer do 157 terapeuta a capacidade de questionar, construir, desconstruir e reconstruir constantemente o seu saber e o seu fazer. Ao final, gostaria de lembrar uma parábola do Buda Shaquiamuni citada por Borges e Jurado: sobre uma pessoa ferida por uma flecha e que, cercada de pessoas que tentavam ajudá-la, não deixava que o fizessem. Queria saber a casta, o nome, os pais de quem o havia ferido, qual a distância ele estava quando atirou a flecha, de que material era feito a flecha. Buda diante desta situação inusitada, arrancou a flecha do ferido dizendo: eu sou aquele que ensina extrair a flecha! Espero que o leitor que se interesse pelo tema se permita viver estas questões em seu corpo e em sua prática. Cabe a cada um encontrar, construir, criar suas próprias respostas a partir de sua própria experiência e vivência. É hora de arrancar a flecha! Que este encontro lance uma luz naquilo que todos nós procuramos, gestalt-terapeutas ou não, religiosos ou não, Zen-budistas ou não: Iluminar nossas ações. 158 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANCONA-LOPEZ, M. Psicologia e religião: recursos para construção do conhecimento. Revista Estudos de Psicologia, Puc-Campinas, v. 19, n. 2, maio/ago. 2002. BOREL, H. Wu wei a sabedoria do não-agir. São Paulo: Attar, 1997. BORGES, J.L.; JURADO, A. Buda. Rio de Janeiro: Difel-Difusão, 1977. BUARQUE DE HOLANDA, A. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. BUBER, M. Eu e tu. São Paulo: Cortez, 1979. CIORNAI, S. Arte terapia gestáltica: um caminho para a expansão da consciência. 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