Mestrado Roberto Veras - Instituto Gestalt de São Paulo

Transcrição

Mestrado Roberto Veras - Instituto Gestalt de São Paulo
ROBERTO PERES VERAS
ILUMINA-AÇÃO: DIÁLOGOS ENTRE A GESTALT-TERAPIA E O
ZEN-BUDISMO
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO – 2005
ROBERTO PERES VERAS
ILUMINA-AÇÃO: DIÁLOGOS ENTRE A GESTALT-TERAPIA E O
ZEN-BUDISMO
Trabalho
apresentado
à
Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Psicologia Clínica sob
orientação da Professora Doutora Marília
Ancona Lopez.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO – 2005
Banca Examinadora
_______________________________________________
_______________________________________________
_______________________________________________
“Para retribuir e
agradecer os benefícios
recebidos, não precisamos
fazer nada de especial.
A melhor retribuição é
perseverar com
simplicidade na prática
cotidiana.
Este é o Caminho da
Verdade”.
Rôshi – Mestra Zen (2003)
Ao meu pai.
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Marília Ancona lopez, minha orientadora, que com seu
acolhimento, sua objetividade e competência possibilitou criar um contorno para minhas
idéias iniciais, e o acontecer deste trabalho. Respeitou meu ritmo e estilo pessoal, e me
acompanhou de maneira firme e suave.
Ao Prof. Dr. Luiz Afredo Lilienthal que, com sua leitura atenta e
minuciosa, sua dedicação, e amizade, contribuiu em suas intervenções para precisar
aspectos fundamentais para o desenvolvimento do trabalho.
Ao Prof. Dr. Gilberto Safra que, com sua poesia e clareza ao transitar
entre os universos da psicologia e das religiões, possibilitou-me o encontro com minha
religiosidade, importante para minha vida pessoal e profissional e para definir o tema
deste trabalho.
A minha família, Doralice, Rochelle, Rejiane, Reinaldo, Rosemary,
Andrew, Rosana, Pinheiro, Jéssica, Adham, que durante este percurso me incentivaram
com seu carinho e estímulo a transpor os obstáculos.
Muitas pessoas participaram deste trabalho. Não poderia deixar de
registrar meu agradecimento a companheiros muito presentes:
A Ana Maria Loffredo que me ajudou a lançar a semente agora
desabrochada.
A Walquiria Fonseca Duarte, a Rodolfo Argueles. e colegas da
Universidade de Santo Amaro, pelo incentivo a me lançar nesta jornada.
Aos amigos e colegas do Instituto de Gestalt de São Paulo.
À Lais filizolla, amiga de sempre, que me apresentou o Budismo.
As minhas amigas, de consultório, Mariângela de Oliveira e Ana
Mirabella, que me “suportaram”, nos sentidos conotativo e denotativo, durante a
realização deste trabalho.
Aos amigos Carlos Padilha, Carlos Evandro, Carlos Brizola, Carlos
Alberto, Paulo Fontes, Ulisses Basilio, muito presentes durante este percurso,
incentivando e auxiliando-me cada um do seu jeito peculiar.
Ás amigas Maria Cecília, Cida Barreto e Rosaly Duprat, que colaboraram
e me incentivaram a ir mais além.
Edson Gomes que, com sua companhia, interesse e participação muito
colaborou na continuidade deste trabalho.
Jorge Maalouf, amigo irmão de muitas caminhadas, que me introduziu ao
núcleo de práticas clínicas, me incentivou, literalmente me empurrou..., auxiliando
desde o nascimento desta idéia, e principalmente me lembrando do estilo próprio de
cada trabalho e autor, e me relembrando que o o extrordinário se dá no ordinário.
Fernando Genaro Junior, amigo irmão de todas as horas, que com sua
generosidade e brilhantismo, foi a mão amiga sempre presente e fundamental nos
momentos de “sufoco”.
Gabriel Lescovar que com a magia de seu sorriso, a disponibilidade de
seu ser e sua energia se fez presente neste trabalho.
A Maria Cristina Esteves que desde sua chegada na PUC se mostrou
grande amiga e incentivadora, tornando-se uma presença importante no mestrado e
nesta dissertação.
Às amigas da PUC, Simone, Giovana, Analú, Irene, Cinthia, Michele,
Beth Montagna, grandes incentivadoras e com quem constituí um grupo suportivo.
Ao Centro de Budismo Tibetano, Ghagdud Gonpa, Odsal-ling, cujo
contato possibilitou a retomada de minha trajetória espiritual, e a Lama Tsering que, em
nosso primeiro contato criou a conexão para o surgir deste trabalho.
Aos meus clientes, alunos e supervionandos, que todos os dias
pacientemente me ensinam o que eu ainda não sei.
A Zakie Rizkallah, pelo cuidado na revisão do texto.
E a todos que co-participaram do meu caminhar e que silenciosamente
contribuiram com este trabalho, ainda que não incluidos.
Esta dissertação de Mestrado teve o apoio do Conselho Nacional de
pesquisa-Cnpq.
RESUMO
Este trabalho teve como objetivo, por meio da análise de conceitos da Gestalt-Terapia e
do Zen-Budismo, estabelecer um diálogo entre esses dois universos tendo em vista
contribuir para o desenvolvimento do corpo teórico da Gestalt-Terapia. Como método
de investigação utilizou-se o modelo gestáltico através do processo de formação e
destruição de figuras (gestalten). Inicialmente delineou-se o ponto de partida ou figura
inicial, o interesse de Perls, principal expoente da Gestalt-Terapia, pelo Zen-Budismo.
A leitura e análise de suas obras e de sua autobiografia permitiu delinear seu contato
com o Zen-Budismo e conseqüentemente sua reverberação na criação da Gestaltterapia. No corpo teórico da Gestalt-Terapia, alguns conceitos estão relacionados ao
Zen-Budismo e outros revelam uma grande aproximação, como o fluxo de awareness
ou continuum de awareness e a meditação. As concepções de homem da GestaltTerapia e do Zen-Budismo foram investigadas, assim como os conceitos de self, “eu”, o
aqui e agora, e a temporalidade assinalando-se suas convergências e divergências.
Vinhetas advindas da prática da clínica da Gestalt-Terapia, historietas e mondos do ZenBudismo contribuíram para a compreensão dos conceitos desenvolvidos no presente
trabalho. O diálogo estabelecido permitiu identificar os principais eixos de articulação
entre a Gestalt-Terapia e o Zen-Budismo assim como as diferenças fundamentais que
distinguem suas identidades.
ABSTRACT
The main purpose of this study is to establish the relationship between Gestalt-Therapy
and Zen-Buddhism universes, based on a conceptual analysis for contributing to
Gestalt-Therapy theoretical development. Gestalt model has been adopted as
investigation methodology using the creation and destruction figures (gestalten).
Initially it was determined Perls as the start up reference or initial figure, due to his
interest in Zen-Buddhism. The analysis of his collected works and auto-biography has
defined his contact with Buddhism and, as consequence, its reverberation in GestaltTherapy creation. Within Gestalt-Therapy theoretical content, some concepts are related
to Zen and others illustrate a close interaction, as the awareness flow/continuum
awareness and meditation. Both Gestalt-Therapy and Zen-Buddhism have been
investigated on the human being conceptual analysis perspective, as well as “self”, ‘I’,
‘here and now’, temporality, addressing their similarities and differences. Situations
captured from Gestalt-Therapy clinical practice, stories and Zen-Buddhism ‘mondos’
have contributed for the understanding of concepts presented in this study. This
relationship establishment has allowed the identification of main articulation structures
between Gestalt-Therapy and Zen-Buddhism, pointing out the fundamental topics that
differentiate their identities.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 1
CAPÍTULO I:
O PERCURSO DE FRITZ PERLS: A CRIAÇÃO DA
GESTALT-TERAPIA E O ZEN-BUDISMO .................................... 10
CAPÍTULO II: AWARENESS E MEDITAÇÃO .......................................................... 42
2.1
2.2
2.3
Awareness ........................................................................................... 42
Meditação ........................................................................................... 47
Aproximações e distanciamentos ....................................................... 51
CAPÍTULO III: AWARENESS E ILUMINAÇAO ........................................................ 61
3.1
3.2
3.3
Awareness ........................................................................................... 61
Iluminação ou satori ........................................................................... 76
Aproximações e distanciamentos ....................................................... 84
CAPÍTULO IV: O SELF E O “EU”............................................................................... 93
4.1
4.2
4.3
O self para a GT.................................................................................. 93
O “eu” no Zen-Budismo ................................................................... 105
Aproximações e distanciamentos ..................................................... 113
CAPÍTULO V: O AQUI E AGORA E A TEMPORALIDADE ................................. 120
5.1
5.2
5.3
O aqui e agora na GT....................................................................... 120
O aqui e agora no Zen-Budismo ...................................................... 127
Aproximações e distanciamentos ..................................................... 132
CONCLUSÕES .......................................................................................................... 139
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 153
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS …………………………………………. ….. 158
1
INTRODUÇÃO
“Grande é a Mente! A altura do Céu é imensurável, mas a Mente vai
além dele; as profundezas da terra terra são também insondáveis, mas a
Mente as sobrepassa. A velocidade da luz não pode ser vencida, mas a
Mente é mais veloz que ela. O macrocosmo é infinito, mas a Mente vai
além dele. Como é imenso o Espaço! Como é imensa a Energia
Primordial! Apesar disso, a Mente abrange o Espaço e gera a Energia
Primária. Por causa dela (a Mente) o Céu cobre e a Terra sustenta. Por
causa dela o Sol e a Lua se movem, as quatro estações ocorrem em
sucessão e todas as coisas são geradas. Grande, na verdade, é a
Mente!”
Eisai (in Suzuki, 2002)
A Gestalt-terapia 1 é uma abordagem fenomenológico-existencial que
preconiza a singularidade do ser humano, sua consciência, responsabilidade, liberdade e
sua alteridade, bem como sua capacidade relacional, uma vez que o ser humano é
sempre um ser no mundo. A GT enfatiza o potencial criativo e realizador do indivíduo
na direção de criar e estar constantemente construindo e reconstruindo a sua própria
existência. Em GT, o ser humano está sempre aberto a possibilidades de um constante
vir-a-ser.
É uma abordagem que acredita no homem como sujeito de sua própria
existência e que parte de um conceito dinâmico, uma vez que o homem não é, mas está
sempre sendo (Ginger e Ginger, 1995). Neste sentido, o homem é um ser numa
1
No decorrer do texto utilizarei a abreviatura GT para me referir à Gestalt-Terapia.
2
realidade que não é estática, estanque ou substancializada mas sim constitui-se no
processo mesmo, em constante mutação, o que exige a atualização do seu potencial
criador e adaptativo para conseguir lidar com todas as exigências que a vida impõe.
Acrescentemos aqui a concepção dialética, pois o homem estará o tempo todo
transformando o mundo e sendo transformado por ele (Ribeiro, 1985).
Acreditamos como parte fundante da condição humana a possibilidade de
tornar-se o que se é, ou seja, conseguir ao longo do processo de desenvolvimento
instalar-se no mundo, administrar e integrar sentimentos, sensações, pensamentos,
sonhos e projetos de uma forma harmônica. O que permitiria lidar com os ritmos da
vida, seus riscos, suas perdas, seus ganhos, suas incertezas e sua provisoriedade,
conseguindo assim criar um sentido para sua existência, em outras palavras, humanizarse (Unger, 1991).
Como
Gestalt-terapeuta
sempre
me
interessei
pelo
estudo
da
fenomenologia e do existencialismo, bases de fundamentação da GT. Em 1998, como
aluno ouvinte das aulas do Prof.. Dr. Gilberto Safra, no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Catolica PUC de São Paulo, comecei a
me interessar pelas aproximações entre Psicologia e Religião, desenvolvidas no núcleo
de Práticas Clínicas. As discussões destas aulas, aliadas a uma antiga curiosidade,
despertaram em mim um interesse pelo Budismo que também influenciou a GT como
uma das chamadas teorias de fundo (Ribeiro, 1985).
Durante minha especialização em GT no Instituto Sedes Sapientiae,
estudei todas as correntes que influenciaram essa abordagem. Entretanto, a influência do
Budismo na GT, embora citada, nunca foi aprofundada, ausência que marcou meu
3
interesse por este tema. Em minha vida particular, ao me aproximar do Budismo, sinto
que fui tomado por uma espécie de encantamento e perplexidade, à medida que fui me
deparando com sua “suavidade, seu colorido harmônico”, a densidade de seus
ensinamentos, sua ênfase na compaixão e tolerância, e uma infindável lista de outros
aspectos. O ponto que mais me tocou no seu conhecimento e linguagem foi a
aproximação que eu observava com a prática clínica, principalmente, com a GT, que
vinha estudando desde minha especialização.
Com relação ao início de minha aproximação pessoal ao Budismo,
percebo que esta se deu muito cedo em minha vida, e de alguma forma deixou uma
semente à espera de condições favoráveis para o seu germinar. Ainda em minha
infância, meu pai tinha um certo interesse pelo tema, que aparecia em algumas
conversas familiares e também em alguns livros que circulavam pela casa e passavam
pelas minhas mãos. Contudo, durante aquele período, este contato foi apenas ocasional,
uma vez que acabei trilhando outros caminhos religiosos e posteriormente me distanciei
de qualquer religião, por um tempo significativo.
Na aproximação com o Budismo, além das aulas do Prof. Gilberto Safra,
que funcionaram como um aval para que eu voltasse a trilhar um caminho espiritual e
reaproximasse os horizontes da psicologia e da religião, outras vivências também foram
significativas, entre elas a amizade com pessoas profundamente religiosas que me
mantiveram em contato com o tema, mesmo quando me distanciei da prática religiosa.
Um outro aspecto importante foi também a presença marcante de amigos budistas ou
simpatizantes a esta filosofia que, com seu modo de ser e suas peculiaridades, de
4
alguma forma colaboraram para a fertilização daquela semente que carregava há muito
tempo.
O aprofundamento nos ensinamentos do Budismo, além de promover um
enriquecimento pessoal e espiritual, começou também a enriquecer minha prática
clínica. Com muita freqüência, parte destes conteúdos já eram conhecidos, no entanto,
ressurgiam com um imenso vigor, tanto no âmbito pessoal como no profissional. Os
ensinamentos apresentados em muitos momentos revelavam não só aspectos e idéias já
conhecidos, e que até então eu não havia compreendido com tamanha clareza, como
também conteúdos novos que de alguma forma já me habitavam, sem que eu mesmo
soubesse, e dos quais pude, então, me apropriar.
No contato com o Budismo, muitas questões foram emergindo como
figuras, revelando possibilidades de aproximação com a GT com as quais até então não
tinha me deparado. Foi esta surpresa e perplexidade com a possibilidade de intersecção
que criou o desejo de investigar um pouco mais estes aspectos. Boris,2 tradutor para o
português do primeiro livro de Perls, Ego, Fome e Agressão, comenta em sua
apresentação para a edição brasileira que Perls:
[...]abriu muitas trilhas: algumas ele desenvolveu por meio de livros e
práticas posteriores; outras apenas esboçou o caminho, sem percorrê-lo;
outras mais foram abandonadas ou rejeitadas ao longo do percurso;
finalmente, algumas trilhas não foram nem mesmo tocadas. Este é um
trabalho que, hoje, compete a nós: retomar, rever, modificar,
2
Ego, Fome e Agressão foi o primeiro livro de Perls, lançado em 1942, a princípio como uma
contribuição ao método psicanalítico e posteriormente reconhecido como o livro embrionário da GT. Sua
tradução para o português só ocorreu em 2002.
5
acrescentar, criar e desenvolver as trilhas do criador da Gestalt-Terapia.
(Boris in Perls, 2002, p. 28).
Pretendo nesta dissertação desenvolver um diálogo entre a GT e o ZenBudismo 3 , buscando uma aproximação entre conceitos destas duas práticas. Na
biografia de Perls e na sua busca de inspiração na filosofia oriental, encontramos a
relevância histórica que justifica esta exploração. Através deste diálogo acredito ser
possível criar pontes que aproximem estas duas áreas do conhecimento humano, pontes
que possibilitem interligar territórios, criar uma interação e troca de conhecimentos,
enfim uma possibilidade de encontro. Sabemos que, após uma viagem, nunca
retornamos os mesmos, algo desta experiência permanecerá conosco e nos fará
diferentes modificando nosso cotidiano.
Este trabalho nasce de uma dupla vertente, de um lado, o desejo de
estabelecer um diálogo, uma investigação das aproximações e dos distanciamentos entre
o Zen- Budismo e a GT; de outro lado, uma busca pessoal que possibilitou uma
reaproximação com a minha religiosidade, abalada durante a graduação em Psicologia,
com todos os questionamentos que esta formação costuma gerar.
A literatura científica levantada oferece poucos trabalhos realizados em
relação à GT e o Budismo ou Zen-Budismo, o que reforça a oportunidade deste estudo.
Dos trabalhos encontrados a maioria trata de estudos sobre a importância
da meditação como recurso terapêutico. O trabalho mais significativo encontrado realiza
uma comparação entre os conceitos de awareness da GT e do Zen-Budismo, segundo
3
Quando o Budismo chegou à China ele assimilou parte significativa das idéias e conceitos taoístas,
nascendo assim o Budismo Ch’an que posteriormente chegou ao Japão dando origem ao Zen-Budismo.
6
Page e Chang (1989) na qual os autores contrastam as descrições da awareness no Zen e
na GT. O artigo conclui que o conceito de awareness no Zen parece incluir uma
dimensão mais ampla da experiência humana que a visão da GT.
Nos Estados Unidos, Machovec (1984) refere que podemos encontrar em
várias teorias e técnicas atuais um resíduo dos princípios básicos e de práticas já
presentes nas religiões e filosofias orientais. Neste artigo são apresentadas idéias do
Taoísmo, Confucionismo, Yoga e Budismo que aparecem em terapias individuais, de
grupo e de família, em várias abordagens como, por exemplo, a abordagem existencial,
a psicanálise, a análise transacional, a cognitivo-comportamental e a Gestalt.
Historicamente, a GT foi criada por Fritz Perls, (Frederick Salomon) e
sua mulher Laura Perls, ou segundo outros teóricos, pelo chamado “grupo dos sete”, o
casal e um grupo de colaboradores. No entanto, a figura de maior destaque e à qual é
associada a abordagem é mesmo Fritz Perls. A fim de atingir o objetivo desta pesquisa
retomarei a trajetória de Perls e seu contato com o Zen-Budismo, sem desenvolver uma
ampla investigação da vida e obra de Perls, uma vez que alguns autores já o fizeram
como Loffredo, (l994); Ginger e Ginger, (1995); Kiyan, (2001). Considero, no entanto,
ser de grande importância acompanhar sua trajetória de médico neuropsiquiatra,
psicanalista a criador da GT através das experiências, encontros, desencontros e
influências que colaboraram com o surgimento da abordagem.
A leitura e análise da trajetória de Perls através de suas obras, de sua
biografia e de sua autobiografia permitiram delinear e assinalar seu contato com o
Budismo e o Zen-Budismo e com autores que lançaram mão deste referencial e,
conseqüentemente, sua reverberação na GT. Possibilitaram também destacar alguns
7
conceitos da GT nos quais foi possível reconhecer a influência do Zen, como o conceito
de vazio fértil, ponto zero, a noção de totalidade e polaridades, e o próprio processo de
formação figura/fundo como o fluxo natural do existir humano. Neles, reconheci a
proximidade com as noções Zen de totalidade e processo, entre outras.
Desde o início observei uma aproximação entre as noções de awareness e
meditação, nascendo assim o interesse em investigar melhor estes dois conceitos. Por
essa razão, iniciei este trabalho com o estudo e detalhamento desses conceitos. Busquei
nas obras de Perls e em outros autores o mapeamento e desenvolvimento do conceito de
awareness a fim de deixá-lo mais claro e procurei especificar tudo o que o termo
awareness, que não tem equivalente na língua portuguesa, carrega como significado.
Segui o mesmo caminho ao discutir a meditação. Dada a variedade de
técnicas de meditação existentes, considerei importante descrever a técnica de
meditação Zen-budista. Esta descrição mostrou-se muito útil por possibilitar o
estabelecimento de um paralelo com o continuum de awareness utilizado na GT. Ao
tratar da meditação Zen, explicitei também a inclusão da possibilidade de viver o
próprio cotidiano como uma prática meditativa.
Desenvolvidos esses dois conceitos foi possível clarear a aproximação
que eu já vislumbrava. Também foi possível mostrar como eles se aproximam na sua
prática e como se encontram em alguns objetivos comuns. Para elucidar estas
aproximações lancei mão de vinhetas clínicas e de historietas Zen-budistas. À medida
que as aproximações ficavam mais nítidas eu pude perceber que as diferenças se situam
no modo como estes conceitos estão inseridos em cada um dos universos, ou seja, como
8
eles se posicionam na GT e no Zen. A awareness na GT é meio e, ao mesmo tempo, é
fim. A meditação no Zen é meio, mas não é fim.
A percepção de que a awareness é meio e ao mesmo tempo fim, levoume a indagar qual o fim a que a meditação se propõe. A iluminação como objetivo final
deixou mais claras as diferenças entre estes dois conceitos, que se mostraram
fundamentais e constituíram um novo ponto de discussão.
A reflexão da awareness como o fim na psicoterapia levou-me a
investigar a visão de homem da GT, as noções de doença e cura e, como
desdobramentos, a noção de contato e ajustamento criativo.
A reflexão sobre a iluminação seguiu outro caminho. Inicialmente
precisei destacar os horizontes do pensamento oriental no qual se formou este conceito,
naquilo que ele se diferencia do pensamento ocidental. Eles exigem ultrapassar a lógica
formal, o reconhecimento da existência como um viver paradoxal e propõem uma
ampliação dos conceitos de tempo e espaço ao mesmo tempo em que apresentam a
compreensão do tempo como um eterno aqui e agora. No decorrer desta reflexão, o
aqui e agora foi se apresentando como um vértice importante na continuidade do
diálogo.
A aproximação entre awareness e iluminação se deu por meio das
respectivas visões de homem do Zen e da GT, mostrando diferenças tanto nos conceitos
de “eu” quanto nos de self. Pela investigação destes conceitos, o modo e a direção como
são apresentados na GT e no Budismo apareceram como diferença fundamental entre os
dois universos, com reflexos nas distâncias existentes entre os demais conceitos. Foi
possível observar que, enquanto a GT opera nos aspectos psicológicos, o Zen atravessa
9
estes aspectos, sem lhes atribuir maior ênfase, indo direto para os aspectos ontológicos.
O Zen se ocupa dos aspectos psicológicos apenas como um meio para desobstruir o
caminho de acesso à dimensão ontológica. Dessa forma, o Zen se apresenta novamente
paradoxal: ao mesmo tempo que usa os aspectos psicológicos para a transformação da
mente, ele os descarta, propondo um salto direto ao ontológico.
O conjunto destas reflexões mostrou a importância de analisar o aqui e
agora para o Zen e para a GT. Essa investigação considera o aqui e agora não apenas
do ponto de vista conceitual mas como registro de um modo de estar no mundo, que se
refletiu na vida e obra de Perls, e que tem repercussões na prática da psicoterapia.
As conclusões deste diálogo permitiram apresentar algumas das
principais aproximações entre a GT e o Zen, assim como evidenciar os pontos que
marcam suas diferenças, mantendo as suas identidades distintas.
Não passei incólume por este exercício de diálogo entre a minha pessoa,
a GT e o Zen. Ele se mostrou transformador e senti seus efeitos tanto no âmbito pessoal
como no profissional. Como conseqüência, pude repensar as interfaces entre a
psicologia e a religião, e os seus atravessamentos na prática clínica psicológica
enfatizando o cuidado que se deve ter ao lidar com estes dois universos.
10
CAPÍTULO I: O PERCURSO DE FRITZ PERLS: A CRIAÇÃO DA
GESTALT-TERAPIA E O ZEN-BUDISMO
Mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas – nunca o ato de
entrega se fará. Tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho que
abrange a compreensão e sobre tudo a incompreensão. E quem sou eu
para ousar pensar? Devo é entregar-me. Como se faz? Sei porém que só
andando é que se sabe andar e – milagre – se anda.
Clarice Lispector (1980)
Perls nasceu na Alemanha em l893, filho de uma família judia, formou-se
em medicina. Em 1916, participou da 1ª Guerra Mundial na Bélgica, onde foi ferido e
repatriado. Como judeu, também foi perseguido por seus colegas alemães. Durante
muitos anos carregou as marcas das situações traumatizantes vividas na guerra.
Doutorou-se em neuropsiquiatria em 1920. Desde a adolescência, desenvolveu um gosto
pelo teatro, interesse que conservou em sua vida, freqüentou os cafés esquerdistas de
Berlim onde encontrava filósofos, poetas e artistas anarquistas da chamada
“contracultura”. Em 1923, partiu para Nova York com esperança de validar seu diploma
de medicina e estabelecer-se no país (Ginger e Ginger, l995). No entanto, teve
dificuldades com a língua e com o ritmo excessivamente competitivo da sociedade
americana. Desistiu do seu sonho e retornou à Alemanha decepcionado com a cultura
americana que por toda a sua vida não deixou de criticar.
11
Foi durante este período que Perls encontrou o filósofo expressionista
Salomon Friedläender, autor de A Indiferença Criadora (Ginger e Ginger, l995) ou A
Indiferença Criativa (Loffredo, l994), um ensaio que visava superar o dualismo
kantiano e apresentava o conceito de estado indiferenciado ou ponto zero. Para
Friedläender todos os eventos estariam relacionados a um ponto zero a partir do qual
acontece uma diferenciação em opostos. Portanto, é a partir deste estado indiferenciado
que podemos pensar por opostos; através de uma perspectiva paradoxal poderemos
desenvolver o pensamento diferencial. É importante ressaltar que estes opostos
apresentarão uma grande afinidade entre si, uma vez que são dimensões de um mesmo
fenômeno. Permanecendo no centro ou no ponto zero, que não necessariamente é um
zero absoluto, mas um ponto de equilíbrio, poderemos desenvolver uma capacidade
criativa para observar ambos os lados de um mesmo campo, evitando uma visão
unilateral, com a possibilidade de completar uma metade incompleta e assim uma
compreensão muito mais abrangente da situação. A indiferença criativa não representa
desinteresse, ao contrário, ela é plena de interesse em ambas as direções das
diferenciações (Perls, 2002). O Zen-Budismo e o Budismo chamam este estado de
vacuidade ou vazio4, difícil de captar, e consagram a ele vários escritos.
Em sua autobiografia Escarafunchando Fritz Dentro e Fora da Lata de
Lixo, Perls (1979) revela que Friedläender foi um dos gurus em sua vida e com ele
aprendeu “[...] o significado do equilíbrio, do centro zero, dos oposto [...], meu primeiro encontro
filosófico com o nada foi o nada em forma de zero. Descobri-o sob o nome de indiferença criativa”.
(Perls, 1979, p. 89)
4
Vacuidade ou vazio, sunyata em sânscrito: O vazio de todos os seres separados. Na vida, o único
princípio permanente é a natureza búdica, que se manifesta em formas separadas. Essas formas não têm
permanência ou realidade como formas, somente como “natureza búdica”. Por essa razão, a filosofia
Mahayana declara que elas são vazias.
12
O conceito de indiferença criativa posteriormente foi amplamente
desenvolvido em seu primeiro livro Ego, Fome e Agressão, de 1942. Comentando a
respeito deste conceito, Perls relata que Friedläender:
[...] trouxe um modo simples de orientação primária. Qualquer coisa se
diferencia em opostos. Se somos capturados por uma dessas forças
opostas, estamos numa cilada, ou pelo menos, desequilibrados. Se
ficamos no nada do centro zero, estamos equilibrados e temos
perspectivas. (Perls, 1979, p. 96).
Só mais tarde Perls percebeu que este é o equivalente ocidental do
ensinamento taoísta de Lao Tse. Sintetizando, poderíamos dizer que para Lao Tse e o
Taoísmo a realidade é sempre formada por opostos, pólos opostos que não se excluem,
ao contrário, eles se compõem reciprocamente, constituindo uma harmonia equilibrada e
ativa, e ao mesmo tempo se condicionam e se limitam. Desta forma estaríamos longe de
uma visão unilateral, mas sim uma visão completa da experiência. Uma visão dialética
ou dialógica, poderíamos assim dizer:
Se o mundo concorda sobre a beleza, é porque existe a feiúra.
Se todos concordam sobre o bem, é porque existe o mal.
O “ser” e o “não ser” nascem um do outro;
o difícil e o fácil são complementares;
o longo e o curto nascem por comparação;
o alto e o baixo são interdependentes;
13
o som e o silêncio estão em mútua harmonia;
o anterior e o posterior são correlativos.
É por isso que o Sábio entrega-se ao não-agir, e ensina silenciosamente.
As coisas inumeráveis são feitas sem a menor palavra.
A natureza dá nascimento mas nada possui.
Ela age, mas não exige nenhuma submissão.
Ela tem mérito mas não reclama.
O fato de que ela nada pretende a torna indispensável. (Tse, 2001, p.26-27).
Para Lao Tse (2001), o sábio é aquele que busca conhecer e viver de
acordo com o Tao, aqui compreendido como o mistério que escapa a qualquer
investigação lógica discursiva e que, portanto, só pode ser atingível pela intuição
mística, o Uno, o eterno, o absoluto, o todo, que reune ao mesmo tempo o Yin e o Yang,
a luz e a treva, o masculino e o feminino, o positivo e o negativo e todos os demais
opostos. Aquele que coloca em harmonia seu modo de ser e agir, age não pelo seu “eu”
mas sim deixa que o Tao aja nele e por meio dele, sem que seu pequeno “eu” interfira.
Para Loffredo (1994), foi por concepções de Friedläender, como o
pensamento diferencial que permite pensar por opostos, que Perls pôde estabelecer um
elo entre a Psicologia da Gestalt, com suas noções de figura-fundo e a filosofia ZenBudista. Posteriormente estes conceitos formarão um todo coeso, unificado, que estará
presente em conceitos centrais da GT. A fluidez figura e fundo, e Gestalt emergente,
por exemplo, são noções que encontram similaridades no pensamento oriental, segundo
o qual no universo assim como na vida tudo é fluir, sendo este o curso natural das
14
“coisas”, em outras palavras, um eterno processo de formação e destruição de figuras.
Também o conceito de vazio fértil, um vazio fecundo de possibilidades e criatividade
constantemente utilizado por Perls, surge desta ligação entre as concepções do Zen e de
Friedläender.
Podemos perceber que este contato de Perls com Friedläender foi
extremamente rico e fecundo, e serão estes conhecimentos que em um futuro próximo
propiciarão a Perls a aproximação e interlocução com os conhecimentos do pensamento
oriental e que permitirão o elo de ligação destas duas vertentes com a Psicologia da
Gestalt, colaborando para o surgimento de alguns conceitos importantes da GT.
Ao comentar o interesse de Perls pelo Zen-Budismo, Tellegen (1984)
assinala que, desde o inicio de seu trabalho, Perls começou a interessar-se por este tema
do qual nunca se afastou, embora mantivesse uma certa reserva a respeito. Relata que no
livro Ego, Fome e Agressão podemos observar esta influência:
[...] ele apresenta o círculo taoísta do yin e yang para ilustrar e
esclarecer seu pensamento. A insistência em diminuir a atividade e
acalmar o pensar agitado, para deixar emergir a forma e o ritmo mais
fundamental da experiência presente, tem semelhança com o esvaziar da
mente procurado na meditação oriental. O paradoxo, tão presente no
pensamento oriental, permeia a linguagem de Perls: mudar-se é tornarse o que já é; o árido é fértil; não tentar dominar uma dor pela
supressão, mas acompanhá-la atentamente, é um meio para não ser
dominado por ela; permanecendo no vazio, se encontra o pleno; o
momento do caos prenuncia uma nova ordenação desde que não se tente
impor ordem. (Tellegen, 1984, p. 42).
15
Acrescenta também que com freqüência ele usava a palavra satori, que
significa iluminação, para descrever descobertas súbitas e intensas que na Psicologia da
Gestalt são chamadas insight, o vislumbrar repentino de uma nova configuração e
relação de sentidos, só então percebidos.
Segundo Ribeiro (1985), Perls sofreu a influência de várias teorias e,
como um profundo conhecedor do ser humano, foi buscar em vários lugares os
conhecimentos necessários para esta compreensão do homem, envolvendo-se
pessoalmente com alguns movimentos terapêuticos e também com a filosofia oriental, o
Taoísmo e o Zen-Budismo. Incorporou à GT o que encontrou de positivo e útil em sua
busca para a compreensão do homem e do mundo. Para ele, é este movimento de Perls
que nos permite definir a GT como uma Gestalt do homem, uma arte e uma filosofia de
vida. Relata que o sentido de abertura, de fuga do domínio do pensamento, o abandono
de si próprio, à volta ao corpo e às emoções, a fuga dos rituais, da não espera
programada e do deixar acontecer são influências nítidas do Zen e do Taoísmo que
transmitiram à GT um modo de estar na realidade e a ela responder.
Retomando a trajetória de Perls, é interessante perceber seu fascínio
pelos movimentos de contracultura. Assim como esteve ligado ao chamado movimento
anarquista dos anos vinte na Alemanha, durante toda sua vida Perls sempre manteve um
fascínio pelos marginalizados e constantemente freqüentava grupos anarquistas: em
Nova York, com Paul Goodmam e o Living Theater; em Israel, as comunidades de
pintores beatniks; na Califórnia, o movimento de contracultura hippie.
Foi em 1926 que Perls, motivado por uma série de inquietações e
frustrações, decidiu começar uma psicanálise com Karen Horney e logo foi conquistado
16
por esta nova prática, decidindo tornar-se psicanalista. Neste período, muda-se para
Frankfurt, começa a trabalhar como assistente de Kurt Goldstein, 5 encontra Lore
(Laura) Posner, também assistente de Goldstein, psicanalista, e que no futuro se tornaria
sua mulher e grande colaboradora na edificação da GT.
O trabalho com Goldstein foi significativo para Perls e para a GT. De
Goldstein vem a noção de organismo, uma concepção que não admite a dicotomia
corpo-mente, que Perls muito bem assimilou e estruturou como um dos vértices centrais
da GT. A auto-regulação do organismo é outro aspecto proposto por Goldstein. Após o
nascimento, o ser humano inicia seu processo de aprendizado o que lhe propicia realizar
o movimento contínuo de se auto-regular por meio da apropriação dos conhecimentos
de si mesmo e do mundo. O organismo busca constantemente seu equilíbrio,
movimento compreendido como sinônimo de saúde, uma compreensão dinâmica e não
estática. Para este autor a auto-regulação é o único fio condutor do organismo
(Lilienthal, 2004). A concepção de auto-regulação também está presente na GT e seu
desdobramento possibilitou o conceito de ajustamento criativo.
Em 1927, após continuar sua análise com uma segunda analista, Clara
Happel, foi para Viena e instalou-se como psicanalista recebendo seus primeiros
clientes, sob orientação de Hélène Deutsch.
Em 1928, novamente em Berlim, passa por mais duas análises, uma delas
com Reich6, com quem viveu um encontro decisivo para sua vida e também para a GT.
5
Kurt Goldstein: autor da teoria organísmica, uma das escolas que também influenciaram a GT,
pesquisava os distúrbios perceptivos em pacientes com problemas cerebrais, a partir de trabalhos da
Psicologia da Gestalt. Autor do livro The Organism.
6
Wilhelm Reich, autor de A função do orgasmo e da Análise do caráter entre outros, foi aceito aos 23
anos na Sociedade Psicanalítica de Viena. Como psicanalista começou a interessar-se mais pelo presente
do que pelas “escavações arqueológicas” da primeira infância. Desenvolveu uma análise mais ativa,
17
Nesta análise sentiu-se finalmente compreendido e energizado, tecendo uma grande
admiração por Reich (Ginger e Ginger, 1995).
Segundo Loffredo (1994), o fato de Perls, além de ser cliente de Reich,
também ter participado de seus seminários clínicos, reforçam a influência deste em sua
pessoa e em sua obra. Comenta que o fato de Goodman, o grande expoente teórico da
GT, também ter sido cliente de Reich em outro momento, intensificou ainda mais esta
influência na construção teórica da abordagem. A autora menciona que na primeira
edição do livro Gestalt-Terapia, Perls, Hefferline e Goodman fazem uma dedicatória do
livro à Reich. Considera essencial na contribuição de Reich para a GT
[...] A descoberta e identificação de tensões musculares e formação de
caráter. Ou seja, conceber as resistências psíquicas em termos de
‘couraça muscular’ e, portanto, identificando-as enquanto manifestação
corporal. A marca decisiva de Reich foi enfatizar que a dinâmica do
conflito é melhor apreendida através da maneira do paciente comunicarse, do que através do conteúdo apresentado. (Loffredo, 1994, p. 40).
Podemos dizer,que para Reich, o “corpo” passou a fazer parte direta do
trabalho terapêutico, na medida em que a observação do corpo, seus gestos, postura,
tom de voz, poderiam nas contrações musculares revelar ansiedade, fruto das
repressões. A concepção do contato entre terapeuta e cliente, ou seja, a própria relação
terapêutica também ganhou uma nova compreensão em relação à psicanálise clássica. A
buscando descobrir os processos de cura, tocando o corpo de seus pacientes, despertando atenção para as
tensões de sua “couraça do caráter”, abordando de uma maneira mais direta a agressividade, a sexualidade
e a política. Foi excluído da Sociedade de Psicanálise em 1933 passando então a desenvolver sua própria
teoria: a orgonoterapia. (Ginger e Ginger, 1995)
18
noção de resistência, por sua vez, passou a ser concebida como funções organísmicas
totais. Todos estes aspectos estão presentes na compreensão teórica e na prática da GT
(Loffredo, l994).
O conceito de retroflexão7, segundo Tellegen (1984), foi introduzido por
Perls para designar situações de retenção de impulsos por contração muscular na direção
oposta à desejada. A couraça muscular dentro desta perspectiva pode ser compreendida
como um estado crônico de retroflexão. Contudo assinala que Perls preferia uma
linguagem que indicasse processos e funções, não utilizando o termo couraça muscular.
Com o crescimento do movimento nazista na Alemanha, Perls deixa a
Europa, muda-se para a África do Sul em 1934, estabelece-se como psicanalista e cria o
instituto de formação The South African Institute for Psychoanalysis, vivendo neste país
por mais de dez anos. Este período para muitos autores é a fase embrionária da GT.
Em 1936 aconteceu o Congresso Internacional de Psicanálise de Praga e
um frustrante encontro com Freud, na verdade um grande desencontro, desencadeou
uma grave crise profissional e pessoal. Perls inicia seu rompimento com a psicanálise e
assim posteriormente nasce a GT.
Sabemos que o início do interesse de Perls pelo Zen-Budismo aconteceu
na África do Sul, segundo Loffredo (1994) e conforme o próprio Perls (1979). Para
Figueiroa (1996), seu interesse foi muito mais do que uma simples curiosidade, o que
levantaria a hipótese de que sua busca pelo Zen naquele momento estava mais ligada à
necessidade de novos pontos de apoio em virtude; da profunda crise existencial vivida e
7
Retroflexão: Um dos conceitos da GT, com relação às distorções de contato. Descreve uma situação em
que a energia mobilizada para uma ação externa volta contra si mesma. “Fazer a si aquilo que gostaria de
fazer aos outros. (Ginger e Ginger, 1995, p. 137)
19
desencadeada pelas frustrações profissionais do congresso de Praga8, e do encontro com
Freud. O próprio Perls relata:
Depois de 1936, procurei me reorientar. As malditas e contidas dúvidas
sobre o sistema freudiano se espalharam e me envolveram todo. Torneime um cético, quase um niilista – um negador de tudo. Budismo – Zen –
uma religião sem Deus? É verdade, na época eu aceitava muita coisa do
Zen, de um modo frio, intelectual. (Perls, 1979, p. 78).
Toda esta decepção, juntamente com suas dúvidas e a busca da superação
das mesmas, possibilitaram a publicação do livro Ego, Fome e Agressão, no qual
podemos perceber o esboço de várias idéias que mais tarde desembocariam no
nascimento da GT. É interessante observar que em sua primeira edição a obra aparece
com o sub-título Uma revisão da teoria e do método de Freud, o que, com o decorrer do
tempo, se revelaria como o início da ruptura com a psicanálise.
Neste livro, já podemos perceber suas idéias, como a importância do
momento presente, a importância do corpo no processo psicoterapêutico, a contestação
da neurose de transferência, a importância do contato direto e autêntico entre paciente e
analista, uma abordagem holística do homem com o meio ambiente, uma abordagem
mais sintética que analítica, a ênfase na introjeção, na projeção e nas emoções
incompletas, terminando com a proposta de uma terapia da concentração. Nela lança
mão de técnicas de visualização, utilização da primeira pessoa do singular, ênfase na
8
No Congresso Internacional de Psicanálise de Praga, Perls também se decepcionou com Reich, seu
antigo analista que o recebeu de forma fria, e com a comunidade de psicanálise, que acolheu de forma
glacial seu trabalho e suas idéias sobre a importância das resistências orais. (Ginger e Ginger, 1995)
20
responsabilidade pelos sentimentos e concentração no corpo, nas sensações e nas
evitações. Podemos perceber que ele estava questionando os conceitos essenciais da
psicanálise dos anos 30: o inconsciente, o primado da sexualidade e a neurose de
transferência como a mola mestra do tratamento analítico. No livro, podemos também
perceber que Perls ampliou suas idéias iniciais, incorporou elementos de suas
experiências com Reich, da Psicologia da Gestalt, da Teoria Organísmica e do Holismo,
seus conhecimentos sobre o Pensamento Existencial e as inspirações advindas da
Filosofia Oriental. Observamos um autor flexibilizado, mostrando-se mais aberto e
experimental.
Durante este período se deu a primeira fase do contato de Perls com o
Zen-Budismo, de fato uma aproximação aparentemente não tão significativa, movida
muito mais por uma curiosidade ou busca de um certo suporte para o enfrentamento de
uma situação de crise, uma vez que o próprio Perls reconhece que quem
verdadeiramente o apresentou ao Zen foi Paul Weisz. Pautado por uma curiosidade ou
muito mais por uma necessidade existencial ou mesmo espiritual, não sabemos precisar,
o importante é reconhecer que este contato inicial foi significativo por ter possibilitado
inspirações para seu primeiro livro e, mais do que isto, deixou uma semente em solo
fecundo. No final dos anos quarenta, início dos anos cinqüenta do século passado, Perls
voltará a se interessar pelo tema.
De 1942 a 1945, Perls novamente esteve na guerra, desta vez como
voluntário, lutando ao lado do exército inglês contra os alemães. De volta a
Johannesburgo, como oficial médico, enfrentou novas dificuldades: a crise social
causada pelo pós-guerra; o fascismo sul-africano que avançava anunciando o apartheid;
21
dificuldades no seu relacionamento com Laura. Estes aspectos fomentaram o desejo de
sair do continente em direção aos EUA.
Nos Estados Unidos, com a ajuda de Erich Fromm e Clara Thompson,
ele, a princípio sozinho e depois com Laura reiniciaram a vida profissional ainda como
psicanalistas, porém, em pouco tempo, abandonariam definitivamente o divã, buscando
uma relação mais abertamente afetiva e totalmente centrada no contato e no aqui e
agora.
Em 1951, nascia de fato a GT com o livro Gestalt-Terapia9 de autoria de
Perls, Hefferline e Goodman. O livro foi criado de uma forma pouco usual. Perls
apresentava suas idéias e princípios de uma maneira desordenada para Goodman que
desenvolveu e alinhavou essas idéias, escrevendo a segunda metade do livro. Hefferline
estruturou a primeira parte que relatava uma série de experimentos de crescimento
aplicados a uma turma de estudantes universitários. Com relação ao nascimento da GT,
ou mesmo a sua paternidade, é referida por alguns autores como fruto do chamado
“grupo dos sete”: Paul Goodman, escritor e ensaísta anarquista que começou a fazer
terapia, iniciando depois sua formação como terapeuta com Laura Perls; Elliot Shapiro,
respeitado professor e diretor de escolas em Nova York; Paul Weisz, médico, que
apresentou o pensamento oriental e o Zen-Budismo a Perls; Isadore From, terapeuta
fenomenólogo e grande colaborador na edificação da GT; Ralf Hefferline, professor
universitário; posteriormente Jim Sinkim.
9
Do original em lingua inglesa GESTALT THERAPY: Excitement and Growth in the Human Personality
Copyright by Frederick Perls, M.D., Ph.D.; Ralph Hefferline, Ph.D; Paul Goodman, Ph.D. by Julian
Press, 1951.
22
Este grupo articulado por Laura e Perls, em 1950, dedicou-se por meio de
encontros semanais ao estudo mais sistematizado das idéias e pressupostos de Perls,
fruto de sua trajetória pessoal e profissional. Em 1952, um ano após o lançamento do
livro, Gestalt-Terapia, Perls e Laura fundaram o Instituto Gestáltico de Nova York (The
Gestalt Institute of New York). Pouco tempo após sua criação, Perls entregaria a direção
do Instituto a Laura, Paul Goodman e Paul Weisz (Ginger e Ginger, 1995).
Retomando o fio condutor do pensamento oriental, foi durante este
período de ebulição e surgimento da GT que Weisz, um dos colaboradores do grupo dos
sete, introduziu Perls ao pensamento oriental. Weisz tornou-se muito amigo de Perls,
uma das poucas pessoas que Perls conseguia escutar e acatar. Em sua autobiografia,
Perls descreve a importância de sua amizade, mencionando que, diante das afirmações
de Weisz, mesmo as aparentemente mais absurdas, ele costumava guardá-las, deixandoas amadurecer, e constatava tempos depois que em sua maioria elas davam frutos.
Weisz trabalhava com pacientes com câncer e, além de envolver-se com a GT, tinha um
grande interesse pelo Zen-Budismo. Fez diversas viagens ao Japão e trouxe vários
monges para dar ensinamentos nos EUA. Este contato deixou Perls cada vez mais
fascinado pelo Zen “...sua sabedoria, seu potencial e sua atitude não moral.” (Perls,
1979, p. 136), instigando-o a desenvolver um método psicoterapêutico que
possibilitasse ao homem ocidental o mesmo tipo de abertura à autotranscendência
humana, que ele experimentara com o Zen.
Situamos neste período a segunda fase de aproximação e de um maior
aprofundamento de Perls ao pensamento oriental, e ao Zen-Budismo. Conforme já
mencionado seu primeiro contato se dera nos anos trinta na África do Sul.
23
Após a criação do Instituto de Cleveland em 1954, Perls começou
viagens e peregrinações, inicialmente pelos Estados Unidos, com a intenção de divulgar
seu método de trabalho, a GT (Ginger e Ginger, 1995).
No final dos anos cinqüenta, início dos anos sessenta, Perls continua seu
trabalho de divulgação e de demonstrações da GT, vivendo um novo período, agora de
grandes viagens. Em seu livro autobiográfico, relata sua viagem de navio em volta do
mundo, no início dos anos sessenta, saindo de Los Angeles com destino a Nova York.
Durante este trajeto passou um período num kibutz em Israel e dois meses no Japão,
“escarafunchando” sua cultura e o Zen-Budismo. Visitou Tóquio e Kioto, e em uma
descrição envolvente, contrasta as duas culturas. Em Tóquio relata a insensibilidade das
pessoas e também comenta seu encontro com um mestre Zen, Roshi Ihiguru que
segundo Perls, desenvolvia uma proposta de Zen instantâneo “satori em uma semana”
(Perls, 1979, p. 129). Apaixonou-se por Kioto, cogitando a possibilidade de lá se
estabelecer. Comenta a delicadeza das pessoas, seus olhares abertos, respeito e
consideração mútua e um encantamento pelo equilíbrio e pela harmonia da natureza
local. Fala da serenidade que transborda na cidade e não apenas nos templos. Relata que
sentiu isto até mesmo num espetáculo de strip-tease, que em qualquer lugar do mundo
se tornaria obsceno. Menciona que ficou dois meses no templo Daitokuji, com um
grupo variado de pessoas no qual alguns levavam uma vida simples com a pretensão de
se tornarem monges. Comenta que com freqüência, antes do “sentar”10, discutiam sobre
a respiração e outros tópicos relacionados ao Zen. Sua busca era de exploração e
investigação dos resultados destes trabalhos. Grande parte do exercício de meditação
consistia em respirar de uma determinada maneira e manter a atenção na respiração com
10
Termo utilizado para indicar a posição e prática de meditação no Zen.
24
o intuito de diminuir a intromissão dos pensamentos, cabendo ao mestre corrigir a
condução dos exercícios. Em virtude da curta estadia, ele relata que: “Não houve tempo
para ser adequadamente apresentado ao jogo de Koan 11 : ele só me deu um Koan
simples e infantil: ‘Qual a cor do vento’, e pareceu satisfeito quando eu, como resposta,
soprei no seu rosto” (Perls, 1979, p. 134).
A viagem de Perls ao Japão encerra a terceira e última fase de contato
com o Zen-Budismo. Inicialmente o Zen havia atraído Perls como a possibilidade de
uma religião sem Deus. No entanto, ele se surpreendeu, ou mesmo se incomodou com o
fato de ter que invocar e curvar-se diante de uma estátua do Buda, antes de cada sessão.
“Simbolismo ou não, para mim tratava-se mais uma vez de reificação conduzindo à
deificação” (Perls, 1979, p. 133). Com relação a sua visita, afirma que ela foi um
fracasso no que se refere ao Zen:
Reforço a minha convicção de que, como na psicanálise, algo deve estar
errado se são precisos muitos anos e décadas para não se chegar a
nenhum lugar. O melhor que se pode dizer é que a psicanálise cria
psicanalistas e o estudo do Zen cria monges. O valor de ambos, o
aumento da tomada de consciência e a liberação do potencial humano,
devem ser afirmados; a eficiência de ambos os métodos deve ser negada.
Eles não podem ser eficientes porque não são centrados nas polaridades
de contato e retraimento, o ritmo da vida. (Perls, 1979, p. 137).
11
Koans: Histórias curtas, paradoxais destinadas a desafiar a racionalidade do praticante.
25
Kiyan (2001) menciona que, muito embora estas afirmações tenham se
tornado freqüentes em Perls, as influências do pensamento oriental sempre se
mantiveram em sua obra. Sua critica ao Zen reportava-se mais a prática do que a
pressupostos filosóficos.
Em defesa do Budismo e do Zen-Budismo, penso ser importante
esclarecer alguns aspectos que nas falas de Perls aparecem de uma forma distorcida.
Compreendo que esta foi sua leitura, mas ainda assim vejo que tais esclarecimentos são
pertinentes. As chamadas prostrações feitas diante da estátua do Buda têm como
objetivo um ato e exercício de humildade por parte do praticante, que se prostra no chão
e, simbolicamente, deposita seus venenos da mente 12 no chão e se levanta com o
conhecimento e com a sabedoria. Esta espécie de reverência à estátua do Buda não
significa ou representa uma deificação, representa a manutenção dos votos de
compromisso do praticante que também busca sua iluminação assim como o Buda, ao
mesmo tempo que reconhece o Buda como aquele que trilhou este caminho e atingiu tal
condição e portanto serve como constante fonte de inspiração.
Depois de suas viagens e já com 70 anos, Perls voltou para Los Angeles
com muitas experiências pessoais e profissionais, sem acreditar que conseguiria ver a
GT em um lugar de destaque.
12
Venenos da mente: dentro da concepção budista são os venenos que ocupam a mente, como o orgulho,
a inveja, a raiva, entre outros e que impedem o ser humano de experenciar a realidade tal como ela é, ou
como ela se apresenta. Da mesma forma, como na psicologia e na GT a neurose e seus processos de
cristalizações impedem o ser humano de melhor apreender a realidade.
26
Foi em dezembro de 1963 que Perls encontrou Michael Murphy em um
de seus workshops13. Este acabara de herdar uma propriedade em Big Sur, a 300km de
São Francisco, e batizara o lugar de Esalen. Murphy e um colega de universidade
Richard Price criaram ali o centro de desenvolvimento do potencial humano. Em abril
de 1964, após insistentes convites, Perls aceitou instalar-se em Esalen como residente,
propondo laboratórios de demonstração e um programa de formação profissional em
GT. Apesar da rapidez com que o centro se tornou conhecido, atraindo profissionais de
vários países, para Perls o sucesso foi lento. É deste período o vídeo The Esalen Years
que apresenta várias sessões nas quais Perls desenvolve alguns atendimentos individuais
e em grupo, com o intuito de apresentar e demonstrar a proposta da GT e
respectivamente seu trabalho. O filme Three Approaches to Psychotherapy de 1956
apresenta três perspectivas e leituras distintas de Rogers, Ellis e Perls, os quais
entrevistaram e trabalharam com a mesma cliente, Glória.
Em 1965, cansado e com problemas cardíacos, Perls submeteu-se ao
Rolfing, método de integração estrutural proposta por Ida Rolf, que modificou suas
costas arqueadas, seu peito cavo, proporcionando-lhe um certo rejuvenescimento.
Em 1968, o mundo vivia o momento dos grandes protestos dos jovens: o
direito de viver a liberdade, a queda dos tabus, o estilo de vida hippie, o amor e não a
guerra, o prazer dos corpos, os movimentos sociais. Foi toda esta circunstância que
favoreceu a conjuntura, que permitiu a entrada de figuras como Perls, com suas idéias e
propostas inovadoras, e o acolhimento destas mesmas idéias na proposta da GT e de
toda psicologia humanista. Neste período Perls foi capa da revista Life, sendo
13
Workshop: trabalhos intensivos em grupo desenvolvidos por um ou dois terapeutas, normalmente
durante um período contínuo, um final de semana , ou mesmo durante toda uma semana, com objetivo
psicoterapêutico ou também para treinamento de psicoterapeutas
27
considerado Rei dos hippies, em Esalen centenas de pessoas se aglomeravam para ver
seu trabalho. Era o apogeu de sua carreira, o reconhecimento de seu trabalho e
principalmente de sua cria, a GT que, naquele momento, já estava consolidada como
uma eficaz abordagem terapêutica.
Segundo Ginger e Ginger (1995) todo este período de grande destaque e
sucesso não tirou totalmente de Perls seu lado irascível e a inveja com relação ao
sucesso de outros profissionais em Esalen. Ele queria ser o único. Por outro lado, Perls
sentia que este era o momento de realizar um antigo sonho, um Gestalt-Kibutz, uma
comunidade onde se pudesse viver a filosofia gestáltica vinte e quatro horas por dia, e
que superasse a divisão: equipe terapêutica e participantes. Foi este espírito que o levou
ao Canadá em Cowichan, onde adquiriu um velho hotel de pescadores e, juntamente
com cerca de 30 discípulos, criou seu kibutz, um lugar onde todos participavam do
trabalho coletivo, das sessões de terapia ou das sessões de formação, enfim, em uma
vida em comunidade que proporcionou a Perls um sentimento de descontração,
felicidade e paz até então não experenciado.
Com relação a esta proposta, Tellegen (1984) assinala uma interessante
evolução na experiência profissional de Perls que inicia seu trabalho com a terapia
individual, posteriormente dá grande ênfase à terapia em grupo e aos workshops,
tecendo uma grande crítica à proposta de terapia individual em seu artigo intitulado
Terapia de grupo versus terapia individual no livro Isto é Gestalt organizado por
Stevens (1977b). No final de sua vida busca uma proposta psicoterapêutica totalmente
radical, através da criação de um Gestalt Kibutz, por acreditar que também a terapia em
28
grupo e os workshops já estavam obsoletos, enfatizando a importância da vivência em
comunidade.
A importância que Perls passou a dar à vivência em comunidade me
levou a pensar na importância deste aspecto dentro do próprio Budismo. Para
refletirmos sobre este aspecto, precisaremos recorrer à história e evolução do Budismo,
e à importância da comunidade budista dentro do Budismo, uma vez que elas parecem
apresentar afinidades de ideais e práticas. Creio portanto ser importante abrirmos um
parêntese aqui na trajetória de Perls para elucidar estas idéias.
Dentro do movimento budista, estima-se que pouco depois da morte do
Buda Shakiamuni (Pinto, 1980), a partir do primeiro século de sua criação, aconteceu
uma espécie de divisão do Budismo em duas escolas, ou melhor, uma evolução do
pensamento e da proposta budista que culminou com o surgimento das primeiras duas
escolas: Hinaiana ou Teravada (pequeno veículo ou tradição dos antigos) e Mahaiana,
(grande veículo) que permanecem até hoje. Um dos pontos centrais para esta divisão foi
a questão monástica; enquanto a escola Teravada pregava um ideal monástico, a escola
Mahaiana visava uma abertura do Budismo para os leigos. Um outro desdobramento
desta divergência foi a ampliação da responsabilidade do próprio praticante. Para a
escola Hinaiana toda ênfase recai na importância de cada ser humano trilhar seu próprio
caminho rumo à iluminação, conseqüentemente há uma maior ênfase na trajetória
pessoal e individual. A escola Mahaiana mantém estes aspectos da tradição Teravada,
no entanto acrescenta que além da importância da trajetória pessoal cada ser humano
também é responsável pela trajetória de todos os seres humanos, ou seja, de toda
comunidade rumo à eliminação do sofrimento, à realização da iluminação. Para tanto, as
29
duas escolas assinalarão a fundamental importância da filiação ou do compromisso, as
três jóias ou tesouros do Budismo, que são: O Buda, o Dharma 14 e a Sanga 15 . O
primeiro aspecto é a importância da figura do Buda como um referencial, um modelo,
uma constante fonte de inspiração, ou seja, se o Buda por todo seu esforço, prática e
dedicação pessoal atingiu a iluminação, qualquer ser humano também poderá atingi-la.
Como a natureza búdica16 que habita todos os homens, e só precisa ser despertada. O
segundo aspecto é a importância dos praticantes conhecerem, exercitarem e verificarem
o conjunto de ensinamentos do Buda, também conhecido como o Dharma. O terceiro
aspecto recai na importância da Sanga, um “grupo de pertença”, uma comunidade que
comungue com os mesmos ideais, com uma mesma busca, que possibilite uma espécie
de sustentação para que o praticante consiga desabrochar sua potencialidade, renovar
suas energias e manter-se caminhante rumo ao mais além.
Discorrendo a respeito da importância da sanga, do dharma e do Buda, a
monja Zen budista, escritora e poetisa Rôshi (2003), nos apresenta um texto claro e de
rara beleza, intitulado: “Monges são ótimos amigos” que compreendo ser útil na
ampliação da importância destes aspectos dentro da comunidade budista:
O Buda Shakiamuni 17 dizia: ‘ter ótimos amigos e estar em boa
companhia não é metade do caminho, não é parte do caminho, é o
próprio caminho’. Ele enfatizava assim a importância de ter bons
14
Dharma: Doutrina dos ensinamentos do Buda. A doutrina do Budismo
Sanga: Comunidade dos práticantes budistas. “A comunidade de pessoas que vivem de acordo com os
preceitos budistas”. (Hanh, 2002 p. 31)
16
Natureza búdica: a natureza que habita todos os seres humanos, como potencialidade, e quando
despertada revela o Buda, a perfeição que habita cada ser humano. A capacidade do homem captar a
verdade ultima e absoluta a respeito da existência humana. A capacidade de todo ser humano trazer a
iluminação a sua existência.
17
“Buda Shakiamuni – O Buda histórico, fundador do Budismo, cujo nome original era Príncipe Gautama
Sidharta. Shakia se refere ao nome do clã a que ele pertencia e muni significa sábio. (Aoyama, 2002, 232,
233)
15
30
amigos. O mestre Dôgen também escreveu no Shôbôgenzô Zuimonki18:
‘Mesmo os estudantes de Zen que não tenham muita disposição em
buscar o Caminho, apenas por estarem próximos a bons praticantes,
acabam por criar bons relacionamentos e enfim podem ver e ouvir como
eles. Os bons amigos estão conosco, não importa quão sofrida e solitária
seja a prática’
Essas palavras mostram a docilidade, a sabedoria e a compaixão do
Mestre Dôgen, que se colocava sempre no plano das pessoas comuns,
mesmo daqueles de fé mais fraca.
O caractere ‘so’ em japonês deriva do sânscrito ‘sangha’ e quer dizer
‘grupo harmonioso’. Uma pessoa apenas não é chamada de ‘so’, não
pode formar uma ‘sangha’. Buda Shakiamuni, reconhecendo a fraqueza
humana, não aconselhava a prática solitária.
Sozinhos não conseguimos nos empenhar verdadeiramente, nem mesmo
por apenas uma hora, em zazen. Se, por outro lado, o fizermos com
outras pessoas, podemos praticar o zazen por três dias, ou mesmo
durante um retiro de uma semana, ou até dedicar toda existência à vida
monástica. Pode parecer que o zazen é uma prática solitária, mas isto
não é verdade. Não podemos ter sucesso sozinhos. Como dizia Mestre
Dôgen: ‘A prática é a força do grupo’. A perseverança de todo o grupo
sustenta a prática de cada um. É por isso que dizemos que ‘ os monges
são ótimos amigos’.
Reverenciando aqueles que despertaram para o verdadeiro caminho,
seguindo os ensinamentos de Buda, mantemos a prática constante em
nosso
18
dia-a-dia,
sustentados
por
nossos
amigos
monges
que
Shôbôgenzô Zuimonki – literalmente: O olho – tesouro do Dharma correto, obra de Eihei Dôgen. Ele
pretendia escrever 100 capítulos, porém morreu antes de terminar. Há uma versão oficial com 95
capítulos. O olho – tesouro da lei verdadeira e a suprema mente de nirvana são considerados os
ensinamentos de Buda transmitidos a seu discípulo Makakashô. (Aoyama, 2002, 233)
31
compartilham de nossas aspirações. Quando doentes, sou doente.
Quando pobres, sou pobre. Bem no meio da doença e da pobreza, ou de
qualquer situação que surja, confiamos nos Três Tesouros: Buda, o ser
iluminado; Dharma, seus ensinamentos; e Sangha, a comunidade
harmoniosa de praticantes. São os Três Tesouros que nos permitem
praticar. Existe alguma felicidade maior do que esta? (Rôshi, 2003, p.
30-31).
Na psicoterapia, é possível perceber que mesmo a psicoterapia individual
tem um caráter social. A teoria de campo de Lewin e a psicologia da gestalt, entre outras
teorias que co-participam da edificação da GT, corroboram esta idéia - toda vez que eu
interfiro em uma parte eu altero a configuração do todo. No entanto, não é exatamente o
aspecto social que pretendo discutir aqui. Meu interesse caminha em direção a uma
reflexão a respeito da importância da vivência e do sentimento de pertença que a
experiência de comunidade pode proporcionar, e que aqui mais uma vez parece
aproximar o pensamento de Perls e o pensamento budista.
Em sua autobiografia, Perls (1979) enquanto brinca com o “número seis”
faz uma significativa revelação: “1966 - A Gestalt-Terapia está traçada. Finalmente
encontro uma comunidade, um lugar para estar: Esalen” (Perls, 1979, p. 80),
obviamente comentando sua vivência e experiência em Esalen, o que com certeza
alimentou e ampliou seu sonho a respeito de um Gestalt Kibutz - uma vida em
comunidade - um local para se viver gestalticamente vinte e quatro horas por dia. Nas
palavras de Perls, “o principal é o espírito de comunidade propiciado pela terapia”
(Perls, 1977, p. 106), seu sonho de nortear a vida através da própria filosofia da GT.
32
Safra (2004a), discorre sobre a da importância de uma comunidade de
destino para o ser humano, Sóbornost, conceito russo que compreende o homem como
um ser inter-relacionado com o passado, com o futuro, com os contemporâneos, com a
natureza e com as coisas. Enfatiza a comunidade compreendida não apenas pela
perspectiva social, mas em seu aspecto mais fundamental, a comunidade como fundante
para o ser. Estas experiências possibilitariam ao ser humano se reconhecer como
humano, ser reconhecido pelos outros e, mais do que isto, compartilhar de um destino
para a humanidade, junto com esta comunidade. Parte da idéia de Perls com seu Gestalt
Kibutz caminha exatamente nesta mesma direção. Tanto quando comenta a respeito de
sua vida em Esalen como quando relata sua vida em Cowichan, a satisfação e o prazer
do encontro de uma comunidade, um grupo de pertença, a importância da tranqüilidade,
um lugar para repousar, um local que possibilita estar verdadeiramente inteiro, o que
Perls procurou durante toda sua vida.
O Budismo com seu ideal da sanga comunga também com esta mesma
idéia. Ambos ressaltam a importância do sentimento de pertencimento um espaço para a
vida autêntica em comunidade que partilha ideais comuns, que possibilita ao ser
humano um sentido de existência e participação no mundo norteado pelo vértice do nós,
e não uma visão e participação individualista norteada pelo vértice da individualidade.
Este tipo de experiência possibilita ao ser humano um lugar de refúgio, um campo de
revitalização da energia, para continuidade da jornada humana.
Podemos entender que a vivência em comunidade para Perls e para o
Budismo, pode possibilitar abertura para o desabrochar humano como um espaço
fundante do ser. Na vida em comunidade, tanto para o Budismo como para Perls, não
33
deixariam de existir os papéis de monge e de terapeuta, discípulo e de cliente,
fundamentais para as experiências de descoberta, superação dos limites e busca da autotranscendência, em cada uma das perspectivas, na GT por meio do processo terapêutico
e da relação terapeuta-cliente, no Budismo pela relação mestre-discípulo. Perls, com sua
proposta de vida em comunidade, parecia acreditar que esta experiência possibilitaria
uma alternância e superação desta divisão de papéis e situações. Para o Budismo, dentro
da sanga estes papéis são bem definidos, até porque eles indicam uma trajetória a ser
seguida, um desenvolvimento da potencialidade humana a ser alcançado. O monge,
aquele que já conhece o caminho, é uma pessoa fundamental que funcionaria como
facilitador na relação como seu discípulo, auxiliando-o a trilhar seu próprio caminho.
No entanto, o objetivo último é exatamente a superação destes papéis, na medida em
que os discípulos consigam despertar sua natureza búdica.
Com relação a estas aproximações acredito que uma ressalva deve ser
feita. Não estou apontando que a proposta de Perls com seu Gestalt kibutz tenha surgido
da influência de seu contato com o Budismo, até porque a nomenclatura por ele usada
para batizar sua proposta de certa forma já indica a origem de sua idéia: a importância
da comunidade dentro da perspectiva judaica, possivelmente ressaltada pela experiência
de vida comunitária em um kibutz, durante sua estada em Israel. Seria portanto um
legado judaico, por mais que ele tenha negado, ou mesmo tentado se desvencilhar, uma
vez que desde muito cedo Perls passou a se auto-denominar ateu. Justificando este fato
em sua autobiografia como fruto da vivência de desestruturação judaica vivida muito
precocemente em sua família (Perls, 1979).
34
Podemos imaginar que este legado cultural judaico sempre esteve
presente co-participando de sua trajetória, de seu pensar, de sua maneira de viver e
conseqüentemente de sua construção teórica.
Uma vivência pessoal seria interessante para ilustrar a importância da
comunidade. Minha incursão no mestrado mais uma vez proporcionou-me uma vivência
desta ordem, assim como tive a mesma sensação e experiência durante minha
especialização em GT no Instituto Sedes Sapientiae. Costumávamos brincar que
“encontramos nossa turma”, percebíamos a importância da formação dos grupos e da
comunidade para a sustentação do existir humano, que sempre se dará num mundo
compartilhado.E, mais do que isto, esta é uma experiência vivida como fundante do ser,
como possibilidade de abertura ao compartilhar sonhos e ideais.
Acredito que todos que passam pela vivência do mestrado ou doutorado
vivem uma situação de mergulho pessoal e profissional, diria um mergulho existencial,
“de corpo, alma e espírito”, que este tipo de experiência impõe. Revendo minha
trajetória, percebo que diante de todo trabalho, investimento, desgaste, mergulho
profissional e pessoal que este período demanda, o caminho que encontrei para
enfrentar e suportar este percurso foi criar um grupo de pertença, uma comunidade, com
meus colegas de mestrado e doutorado que partilhavam dos mesmos desejos, sonhos,
projetos e também angústias. Junto com este grupo criei e criamos um espaço no qual
pude me refugiar, descansar, me inspirar, palpitar e receber palpites, ser suportado e, em
muitos momentos, suportar o outro, em alguns momentos funcionar como orientador de
meus colegas, em outros como orientando que precisa de auxílio, sem contar os
momentos em que funcionava como terapeuta, em outros como cliente, numa constante
35
alternância de papéis. Tínhamos como fonte de inspiração nossos orientadores ou
colegas que já haviam concluído esta tarefa. Percebia que muitas vezes me afastava de
antigos colegas, amigos e familiares, tendo como justificativa a falta de tempo, que
também era real, mas refletindo agora percebo que na maioria das vezes este
afastamento era fruto da necessidade de estar com aqueles que também estavam vivendo
a mesma situação, que compartilhavam de um universo comum. E, mais do que isto,
aqueles que comungavam com meus ideais, que partilhavam de uma nova possibilidade
de ser. Toda esta vivência possibilitava a criação de uma espécie de rede que nos unia
ao mesmo tempo em que sustentava o peso, as dificuldades, os impasses e as angústias
de todos nós, como uma comunidade que partilhava de um destino comum. Tal
experiência retrata os aspectos fundamentais relacionados às idéias de Perls, assim
como do Budismo no que se refere à importância da comunidade para o
desenvolvimento do potencial humano.
Retomando a trajetória de Perls, em 1970, voltando de uma viagem à
Europa, parou em Chicago para dirigir alguns workshops. Em março do mesmo ano,
sofreu um enfarto no miocárdio que ocasionou sua morte.
É possível perceber o quanto a vida de Perls foi rica em experiências,
buscas, encontros e desencontros, superações de limites, influências que deixaram suas
marcas na GT.
O movimento de contracultura da Berlim dos anos vinte, que abriu
espaço para um pensamento de vanguarda e lançou sementes para o pensamento
existencial e a concepção fenomenológica, foi fundamental como base de sustentação de
36
sua futura criação. A figura e o pensamento de Friedläender, com o pensamento
diferencial e a noção do ponto zero, não podem ser esquecidos.
Outra influência significativa foi o contato com a Psicologia da Gestalt e
toda sua teoria da percepção com seus conceitos de figura-fundo. Seu convívio com
Goldstein foi muito fecundo, uma vez que este também lhe apresentou a sua Teoria
Organísmica, com a idéia de que o organismo é uma totalidade auto-regulada, tendendo
ao equilíbrio e à busca pela integração. Posteriormente, Perls assimilará este conceito à
GT e com ele desenvolveu a noção de ajustamento criativo. Lilienthal (2004), em sua
tese Educa-são: uma possibilidade de atenção em ação, também desenvolve e explora a
influência do pensamento de Goldstein na GT.
A própria Psicanálise, foi outra influência significativa. Loffredo (1994),
em seu ensaio A Cara e o Rosto – Ensaio sobre a Gestalt Terapia, investiga esta
vertente. De Reich como já mencionado, Perls compartilhou da importância do corpo
como totalidade de uma nova compreensão dos processos psíquicos e do próprio
processo terapêutico.
A visão do Holismo e da Teoria de Campo teria possibilitado Perls a criar
uma configuração, uma gestalt, um todo no qual estes fragmentos de influências
ganharam uma estruturação significativa. Uma teoria em construção, mas cujos
conceitos e constructos centrais já estavam edificados, criando uma configuração
própria, coerente e harmônica.
Ao retomar nosso fio condutor e ao mesmo tempo buscar avaliar a
trajetória de Perls e seu namoro com o Zen, foi possível perceber que ele se deu em três
fases: a primeira nos anos trinta do século passado quando surge seu interesse inicial
37
pelo Zen. A segunda, quando Perls é reintroduzido e se aprofunda no estudo do Zen, no
início dos anos cinqüenta, com a da colaboração de Weisz. A terceira, quando busca
conhecer o Zen de uma forma mais vivencial, ao mesmo tempo em que também
pretendia avaliar a eficácia desta prática (Ginger e Ginger, 1995) em sua viagem ao
Japão, e que a seguir desencadeará seu desinteresse e distanciamento do Zen.
Com relação as críticas que passou a tecer após este período, é
importante ressaltar que as mesmas não se reportam à filosofia do Zen, que continuou
transitando em seus escritos na GT como constante fonte de inspiração e ilustração, mas
sim à sua prática, principalmente frente ao zazen, sua técnica de meditação tradicional.
Retomando as referências ao pensamento oriental e ao Zen Budismo,
pudemos perceber que eles apareceram desde o livro de Perls, Ego fome e Agressão, e
continuaram presentes ora subsidiando material para construção de seus conceitos, ora
como fontes de inspiração ou ilustração e, em outros momentos, como uma confirmação
de suas idéias e propostas. Um exemplo que ilustra esta idéia é o conceito de vazio fértil,
um vazio prenhe de criatividade e possibilidades, que revela em sua origem uma nítida
influência do conceito de vazio, ou vacuidade do Zen-Budismo e ao mesmo tempo é
uma influência direta de Friedäender com sua noção de o ponto zero e a indiferença
criativa. O pensamento diferencial, que inicialmente Perls tomou emprestado de
Friedläender, é outro exemplo; a aproximação do Zen Budismo e do Taoísmo
reassegurou sua maneira de pensar, possivelmente funcionando como uma confirmação
e validação do pensar por opostos, com um maior vigor e consistência a estas noções,
enriquecendo seu trabalho posterior com as polaridades: os opostos sempre compõem
38
um todo e ao mesmo tempo cada um destes pólos sempre trará consigo a semente de seu
oposto.
Outro aspecto importante em relação, tanto das afinidades destas duas
áreas da experiência humana como da própria presença do pensamento oriental como
inspiração na GT, é a compreensão que alguns Gestalt-terapeutas, e que o próprio Perls,
têm a respeito da criação da GT. Perls afirma não ser o fundador da GT mas seu
descobridor ou re-descobridor, uma vez que “A gestalt é tão velha quanto o próprio
mundo” (Perls, 1977, p.32). Compreendo que Perls nesta frase esteja falando da
concepção filosófica da GT, enquanto uma filosofia de vida, e que de certa forma é uma
filosofia conhecida há muito tempo, e também de seu método terapêutico, “a tomada de
consciência”, um método também há muito conhecido nas filosofias orientais.
Loffredo (1994), endossa este ponto de vista e acrescenta que é o ponto
de vista integrador, como a tendência natural do organismo preconizada por Perls,
Hefferline e Goodman no livro Gestalt-Terapia, que sustenta a auto-denominação de
Perls como re-descobridor da GT. Com relação a este aspecto integrador como a
tendência natural do organismo, sabemos que ele pode ser distorcido ao longo do
processo de desenvolvimento mas que o processo psicoterapêutico é uma das maneiras
de resgatá-lo.
Shepard (apud Loffredo, 1994), ao tecer considerações da afinidade da
palavra Gestalt com o conceito taoísta do Tao, considera também a concepção gestáltica
tão antiga quanto a concepção taoísta dos opostos Yin e Yang, afirmando que Perls, a
partir de seu próprio existencialismo filosófico, teria criado uma nova velha terapia.
Quando enfatizamos que a GT é muito mais que um método psicoterapêutico, ela é uma
39
filosofia de vida, podemos perceber que Perls reconheceu na filosofia oriental a riqueza
de sua filosofia de vida e transportou para a GT alguns destes princípios.
É importante também ressaltar que durante todo este período nunca
houve uma aderência por parte de Perls ao Zen Budismo como religião. Nos anos
cinqüenta houve de sua parte um grande fascínio e entusiasmo por seus ensinamentos e
sua filosofia, e que chegaram a levá-lo ao Japão na expectativa de conhecê-lo melhor.
Segundo Ginger e Ginger (1995), Perls tinha a fantasia de atingir a iluminação durante
seu treinamento em sua viagem ao Japão, o que poderia justificar seu descontentamento
e críticas ao Zen, após a viagem.
Mais importante que precisar as expectativas de Perls em sua ida ao
Japão, é perceber que o Zen para ele parece ter funcionado como uma espécie de fio
condutor para o surgimento de alguns conceitos da GT. O Zen em outros momentos
parece ser um dos fios que, junto com a Psicologia da Gestalt, a Teoria de Friedläender,
o Taoísmo, o Holismo, a Teoria Organísmica, possibilitaram a criação ou mesmo a
releitura de alguns conceitos, como, por exemplo, o de figura e fundo e gestalt
emergente, e toda a fluidez deste processo, agora ilustrando a forma como o organismo
vive suas relações com o meio ou como os fenômenos acontecem. Fenômenos estes que
são um constante fluir no qual nada permanece a não ser o própria fluidez, como o Zen
insiste em nos lembrar, e não mais restrito à idéia de como a percepção se estrutura,
ponto de partida da Psicologia da Gestalt. Outro conceito seria indiferença criativa ou
vazio fértil, estado posterior ao fechamento de uma gestalt e anterior à formação de uma
nova figura, como uma alusão clara à noção de vazio ou vacuidade do Zen, e o
pensamento diferencial, com a noção de polaridades, que permite pensar por opostos e
40
através de paradoxos remete à idéia de convivência simultânea de opostos postulado
pelo Taoísmo e pelo Zen-Budismo.
No capítulo dois, ao discutir as aproximações entre awareness e
meditação, desenvolvo a idéia de que ambos lançam mão de uma mesma atitude, da
qual encontraremos correspondência na fenomenologia. Compreendo que esta
constatação tenha fascinado Perls, o que possivelmente o levou a afirmar a intenção de
desenvolver um método psicoterapêutico que possibilitasse ao homem ocidental o
mesmo tipo de abertura a autotranscendência humana, que ele experimentou com o Zen
(Perls, 1979).
No Zen, o paradoxo tão presente em sua filosofia, em seus Koans e
Mondos19, parece ter sido mais uma das inspirações assimiladas por Perls que permeiam
sua linguagem e suas ilustrações. A própria adoção e preferência de Perls pelo uso do
termo satori (iluminação) ou mini satori utilizado em substituição ao termo gestáltico
insight, para descrever situações de descobertas súbitas e intensas, deixam claras a
presença e a marca desta influência que, neste caso, explicitaria com mais propriedade o
vislumbrar repentino de uma nova relação de significados que até então não havia sido
percebida. Compreendo que a riqueza e originalidade de Perls com relação à GT
residem em sua capacidade de integrar sua experiência de médico neuropsiquiatra,
psicanalista e ser humano profundamente sintonizado com os movimentos culturais de
sua época, conseguindo criar não só um método psicoterapêutico, mas uma filosofia de
vida. Com relação ao Zen-Budismo e ao Taoísmo, concordo com Figueiroa (1996), que
ressalta que Perls foi muito feliz ao conseguir transportar para uma linguagem própria,
19
Mondo: Estórias ou entrevistas entre discípulo e o mestre; em geral estão além do domínio da razão ou
lógica.
41
para o pensar ocidental, algumas das idéias centrais desta corrente de pensamento,
mantendo o frescor e o fundamento do pensamento oriental com uma roupagem
claramente ocidental. Conseguiu assim romper com a dicotomia Oriente-Ocidente.
Alguns conceitos do Zen e da GT podem revelar um grande parentesco,
esta será nossa investigação, vamos explorá-los refletindo e analisando suas
aproximações e distanciamentos.
42
CAPÍTULO II: AWARENESS E MEDITAÇÃO
Seja paciente, não faça nada, deixe de lutar. Achamos esse conselho
desanimador, portanto impraticável, porque esquecemos que é a nossa
própria atividade inflexível que estrutura a realidade. Pensamos que se
não nos apressarmos, nada acontecerá e definharemos. É provável que a
realidade já esteja em movimento e que daqui a pouco poderemos fazer
parte desse movimento. Mas não se pode saber.
Paul Goodman (in Epstein, 1999)
2.1
Awareness
Awareness é um dos conceitos centrais da GT e esbarra na dificuldade e
complexidade da tradução para o português, e na sua própria conceituação. Barros (apud
Stevens, 1977a) na apresentação do livro Tornar-se Presente (Awareness), comenta esta
questão:
Awareness é uma palavra que não possui correspondente preciso em
nosso idioma. Em geral é traduzida por ‘consciência’, porém seu
significado é muito mais amplo. No sentido psicológico, o equivalente em
inglês de ‘consciência’ seria consciousness. Awareness, porém, possui
uma conotação que transcende este sentido, envolvendo um aspecto
maior de ‘consciência’. Assim, awareness pode significar ‘consciência’,
‘conhecimento’, ‘ciência’, ‘atenção’, ‘percepção’, ou ‘sensação da
presença de algo. (Barros apud Stevens, 1977a, p. 11).
43
Na tentativa de precisar melhor este conceito, encontrei vários autores
que reconhecem a dificuldade dessa tradução. Tellegen (apud Loffredo, 1994, p.128)
comenta: “...é mais que percepção, diferente de tomar consciência: tem a ver com o
estado de presença quase meditativo”, propondo fluxo associativo focalizado para a
tradução do continuum de awareness, que poderíamos entender como a metodologia de
awareness. Loffredo concorda com a proposta de Tellegen e acrescenta:
Nela fica implícito o caráter dinâmico e de processo no termo ‘fluxo’; a
finalidade do método de facilitar a discriminação e de promover a maior
precisão no contato com a figura emergente, através do termo
‘focalizado’; e ‘associativo’, na medida em que a focalização poderá
levar à produção de novas cadeias de relações de significado. (Loffredo,
1994, p. 128).
Ainda para Loffredo (1994), o fluxo associativo focalizado busca levar o
cliente a um “tomar posse” do seu processo de existir e como ele acontece a cada
momento. Não se restringe a um processo meramente cognitivo, mas que envolve
também o afeto, a emoção, o pensamento e as sensações corporais. Para tanto, faz-se
necessário um engajamento do indivíduo com a totalidade do seu ser, em um dado
momento, tomando o que é mais relevante no campo organismo-meio do qual ele faz
parte. Awareness, portanto, pode ser compreendida como uma forma de experienciar,
apreendendo também o como se experiencia.
Yontef (1998) segue um caminho similar ao de (Loffredo, 1994). Para
ele:
44
‘Awareness’ é uma forma de experienciar. É o processo de estar em
contato
vigilante
com
o
evento
mais
importante
do
campo
individuo/ambiente, com total apoio sensoriomotor, emocional, cognitivo
e energético. (Yontef, 1998, p. 215).
O ‘insight’, uma forma de ‘awareness’, é uma percepção óbvia imediata
de uma unidade entre elementos, que no campo aparentam ser díspares.
O contato com ‘awareness’ gera totalidades significativas novas e,
portanto, é em si a integração de um problema. (Idem, p. 31).
Segundo Clarkson e Mackewn (1993, p. 44-45) awareness para Perls é a
habilidade humana de estar em contato com o próprio campo perceptual. Vejamos o que
nos dizem as autoras:
Awareness é, para Perls, a sua habilidade humana de estar em contato
com seu campo perceptual total. É a capacidade de estar em contato com
sua própria existência, de notar o que ocorre dentro de você ou à sua
volta, de conectar com o ambiente, com outras pessoas e com você
mesmo; saber a que você está sensível ou o que está sentindo ou
pensando; como você está reagindo neste momento. Awareness não é
somente um processo mental: ela envolve todas as experiências, sejam
elas físicas ou mentais, sensórias ou emocionais. É um processo conjunto
no qual a totalidade do organismo está engajada: ‘Awareness é como a
brasa de um carvão, que provém de sua própria combustão (o organismo
total)’. (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1973, p. 106)20.
20
Tradução de Lilienthal, L.A.
45
Para ilustrar este conceito na prática, penso que uma vinheta clínica
comporta um mergulho na práxis terapêutica.
Karen, 33 anos em uma entrevista inicial relatava sua frustração e
desapontamento por não ter passado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil OAB em três tentativas. Narrou uma série de aspectos ligados a esta situação, contando
também de sua experiência profissional como estagiária no escritório de sua irmã e seu
cunhado, mencionou que demorou para ingressar na faculdade, por falta de condições
financeiras e por ter que criar os sobrinhos de uma irmã falecida. Karen, ao retomar as
reprovações do exame da Ordem, começou a falar cada vez mais baixo, o que exigia um
esforço para poder ouvi-la. Neste momento resolvo comentar isto para ela.
•
Eu percebo que você foi diminuindo o tom da sua voz.
Com ar de estranheza, ela me diz que não havia percebido.
•
Fiquei com a impressão de que você não queria ou estava com receio
de que alguém ouvisse nossa conversa.
Após esta minha intervenção Karen pensou um pouco e começou a
contar o quanto se sentia envergonhada frente ao cunhado e a sua irmã por estar
trabalhando com eles, ser ajudada e não conseguir corresponder, passando no exame da
Ordem. Com um ar de surpresa verbalizou que não se dava conta do quanto todos estes
aspectos a estavam incomodando.
Um registro do modo como a cliente estava se expressando, no caso
diminuição de seu tom de voz, o reconhecimento sensóriomotor, permitiu a apropriação
de outros sentimentos presentes, até então não identificados, o que a auxiliou começar a
46
delinear com maior nitidez a complexidade de sentimentos envolvidos em suas questões
profissionais, o exame da Ordem e as relações familiares. Podemos perceber o insight
que Karen teve, e a ampliação da consciência, awareness, frente à situação vivida,
resultando numa “melhor percepção de si mesma, e de seu modo de existir”. Esta
ilustração ressalta a importância das sensações corporais, da emoção, do pensamento e
da própria energia, como aspectos fundamentais no processo de awareness, e no insight,
uma vez que não estamos falando de um processo meramente cognitivo, mas de uma
atividade que requer o envolvimento e engajamento total do indivíduo na situação
vivida. Portanto, todo trabalho com awareness visa facilitar e promover um processo de
integração no indivíduo, com o objetivo último de auxiliá-lo a dispor melhor de si
mesmo.
Um outro aspecto relevante para a experiência da awareness, e que este
exemplo ilustrou, é a importância do contato e do aqui e agora para que esta
experiência possa verdadeiramente ocorrer. Na relação terapêutica, eles, awareness,
contato e o aqui e agora, estarão criando o tripé fundamental (Lilienthal, 1994) que
possibilita a expansão da consciência, a partir da apropriação de outros sentimentos ou
aspectos presentes na situação, com a criação de novos sentidos. Lilienthal (1994)
enfatiza que a awareness, o contato e o aqui agora estão intimamente relacionados na
constituição deste tripé, e a falha ou ausência de um destes vértices implica a
impossibilidade de sustentação dessa vivência na relação terapêutica O contato e o aqui
e agora receberão um maior destaque posteriormente.
Em sua autobiografia, Perls (l979, p. 88) enfatiza a questão da
awareness: “[...] eu fiz da tomada de consciência o ponto central da minha abordagem,
47
reconhecendo que a fenomenologia é o passo básico e indispensável no sentido de
sabermos tudo o que é possível saber”. No Gestalt-terapia Explicada, complementa sua
idéia,“[...]a tomada de consciência em si – e de si mesmo – pode ter efeito de cura.”
(Perls, 1977, p. 34).
Podemos facilmente compreender esta idéia e proposta de Perls. Sua
operacionalização na psicoterapia é algo um tanto complexo, já que não estamos
falando de uma simples técnica ou de um exercício que visa uma prática ou mera
repetição mecânica. Falamos sim da possibilidade do desenvolvimento de uma atitude
para com a própria experiência, uma espécie de ampliação de sentido existencial, que
abarca uma dupla vertente: sustentar e ao mesmo tempo ser sustentado pela prática da
atenção, ao que se experiencia e ao que acontece na totalidade; e a própria prática
(Figueiroa, 1996).
2.2
Meditação
A verdadeira meditação, no sentido zen, resulta quando não há objeto de
atenção, nenhuma preocupação com a forma, significado ou intenção:
quando a própria atenção é objeto de atenção, e quando todas as coisas
percebidas, inclusive eu mesmo, são experenciadas como manifestações
da atenção. Tal atenção poderia ser comparada a alguém, que aguarda
alerta e pacientemente por algo-que-não-sabe-o-que-é; no entanto,
espera com convicção que conhecerá (algo) quando (algo) ocorrer.
(Joslyn apud Stevens, 1977b, p. 315).
48
Antes de começarmos nossa trajetória creio ser importante um
esclarecimento com relação à meditação, recurso fundamental em todas as escolas do
Budismo e também em outras religiões. Quando falamos de meditação no Zen e em
outras escolas do Budismo, estamos falando de uma prática que visa de certa forma
acalmar a superfície agitada da mente, a superfície excitada pelos sentidos, e isto pode
ser conseguido por meio de todo um treino e prática constantes que podem lançar mão
de inúmeros recursos, dependendo de cada vertente do Budismo.
No Zen, por exemplo, podemos falar do zazen, cuja prática consiste em
sentar em uma almofada na posição de lótus, com a coluna reta, apoiando a mão direita
no pé esquerdo e sobre ela a mão esquerda, as pontas dos polegares devem se tocar
levemente. Os olhos devem estar semi-abertos e o olhar manter um ângulo de
aproximadamente quarenta e cinco graus, dirigido para baixo. Durante toda a meditação
a boca estará fechada e a língua mantida contra o céu do maxilar. Seu objetivo consiste
em prestar atenção na respiração, sem se importar com mais nada, nenhum pensamento,
fantasia. Quando surgir algum pensamento, a orientação é não tentar impedi-lo, nem
desenvolvê-lo, simplesmente permitir que ele aconteça e desapareça livremente, sem
buscar controlá-lo. A postura correta e a atenção em sua respiração tranqüila
naturalmente acalmarão a mente. Uma boa imagem para ilustrar esta proposta é a do
indivíduo que se encontra em uma estrada de rodagem e que acompanha os carros que
passam, desde o momento em que eles se anunciam no horizonte até o momento em que
eles desaparecem, sem se deter para perguntar qual a marca ou o ano do carro, quantas
válvulas possui, quem está lá dentro, ou por que ele está passando naquele momento. A
proposta é concentrar-se na respiração e simplesmente dar passagem aos pensamentos,
49
sem evitação ou apego, deixando-os fluir. Está é a maneira de conduzir e lidar com os
pensamentos sem perder o contato com a respiração.
Outra prática é a meditação andando. No entanto, podemos compreender
o próprio cotidiano como uma meditação a partir do momento em que este cotidiano é
vivido com uma “presença” e atenção constante em cada situação vivida. Esta
“consciência cotidiana” pode ser entendida como o próprio Zen, pois é através destas
diversas experiências que a mente pode ser ampliada (Suzuki, 2002). Assim, o Zen
revela sua grande ênfase existencial, uma vez que o aprendizado também se faz nas
vivências diretas e nas circunstâncias concretas do cotidiano.
Vejamos um mondo interessante, que aborda exatamente este aspecto, no
qual um noviço interpela Chao-Chou: “[...]’Mestre sou ainda um novio. Mostre-me o
caminho’. E Chao-Chou diz: ‘Já terminaste o desjejum?’ – ‘Sim, reponde o monge’ –
‘Então vai lavar a tigela’”. (Sohl e Carr apud Pinto, 1980, p. 70).
Esta ilustração demonstra o colorido especial com que o Zen acena para a
meditação como prática do cotidiano, priorizando a presença ou inteireza em cada
situação, uma vez que o instante para o despertar é sempre este instante vivido aqui e
agora. Esta idéia do cotidiano como prática não significa que o Zen deixe de enfatizar
também a prática da meditação tradicional (Suzuki, 2002).
A partir desta perspectiva qualquer situação do cotidiano pode ser
compreendida como a própria prática da meditação e não simplesmente como
preparação para ela, desde que haja expressão da inteireza no ato realizado. Podemos
encontrar aqui uma espécie de reverência ao cotidiano. Foram estes pressupostos que
permitiram o aparecimento de caminhos e práticas nas artes em que a filosofia Zen
50
encontra-se presente como sustentação e inspiração. Muitas delas se difundiram no
ocidente: é o caso dos arranjos florais, ou ikebana; o sumiy-e 21 , uma das mais
significativas correntes da pintura japonesa; a cerimônia do chá; a poesia da Bashô entre
outras. E não foi apenas na estética que as civilizações do Extremo Oriente foram
influenciadas pelo Zen; também nas artes militares podemos perceber tal influência
como, por exemplo, o jiu-jitsu, a esgrima e os rígidos princípios do bushido – o código
de cavalheirismo do samurai. Aqui também podemos perceber novamente os paradoxos,
a originalidade do Zen que conseguiu com extrema habilidade combinar seus princípios
e fundamentos, a chamada paz do nirvana, tanto com as tarefas comuns da vida diária
como com a intensa atividade de batalha.
Esta proposta do Zen, do cotidiano como prática meditativa, encontra na
cultura ocidental uma grande semelhança com um dos fragmentos do pensamento de
Heráclito22, posteriormente desenvolvido por Heidegger (1998).
Todo o Budismo parte de um chão comum, o extraordinário vigora no
inaparente, ou no mais que aparente, do cotidiano, nas coisas como elas são. Para tanto
é necessário ter olhos para enxergar. Assim, não é necessário evitar o conhecido, o
comum, na esperança ilusória de que ao perseguir o excitante, o estimulante e o
extravagante, encontremos o extraordinário. Fiquemos no nosso cotidiano, pois só ali
pode reluzir o mistério da vida, proclama ele.
21
Sumiy-e: sumiy, tinta negra usada na caligrafia; e, pintura.
“Diz-se (numa palavra) que Heráclito assim teria respondido aos estranhos vindos na intenção de
observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali permaneceram, de pé,
(impressionados sobretudo porque) ele os (ainda hesitantes) encorajou a entrar, pronunciando as
seguintes palavras: ‘Mesmo aqui, os deuses também estão presentes’” (Aristóteles apud Heidegger, l998
p.22). Heidegger ao desenvolver este tema revela que num lugar comum e cotidiano cada coisa e situação
podem se apresentar de forma familiar, confiante e ordinária. É exatamente nesta dimensão do ordinário
que os deuses também estarão presentes. Para Heráclíto a essência dos deuses é exatamente este
aparecimento, um olhar que quando compenetrado ao atravessar e perpassar o ordinário é o próprio
extraordinário. (Heidegger, 1998)
22
51
Segundo o Zen, todos nós tendemos a procurar a verdade muito longe,
buscamos seus segredos onde é menos provável encontrá-los, nas abstrações verbais e
nas sutilezas metafísicas, não percebendo que ela realmente está nas coisas concretas de
nossa vida cotidiana (Suzuki, 2002).
Para Suzuki (2002), o Zen não é um panteísmo, para o qual Deus estará
presente em tudo. Seu maior propósito é “[...] ver as coisas como elas são e deixar que
tudo siga seu curso. [...] Assim, a concentração é apenas um recurso para auxiliá-lo a
se aperceber da ‘grande mente’ – da mente que é o todo” (Suzuki, 1996, p. 31). A
grande mente é a própria natureza búdica que habita todos os seres e que só precisaria
ser despertada. Também podemos entendê-la como aquela que possibilita que nada
exterior possa nos abalar ou perturbar. Praticar o Zen é abrir, expandir nossa pequena
mente.
2.3
Aproximações e distanciamentos
Uma primeira aproximação dos dois conceitos parece revelar um objetivo
comum, a tomada de consciência em sua experiência imediata no presente, no aqui e
agora, sem a mediação do intelecto, um contato pleno com os fenômenos que se
apresentam e como se apresentam sem nenhuma preocupação em analisá-los ou
categorizá-los, simplesmente vivê-los.
52
Figueiroa (1996) também enfatiza estes aspectos:
Este me parece ser o principal elo entre a Gestalt-Terapia e o ZenBudismo; ambos dão total primazia à experiência, à tomada de
consciência direta da realidade vivenciada no presente, o que inclui o
próprio ato de conscientizar-se. Apesar da grande variedade de métodos
e técnicas existentes e possíveis para promover este estado de atenção, o
que importa é sempre o contato direto com o experienciar, direto no
sentido de não intermediado pelo pensar, pelo reflexivo, pelo conceitual.
(Figueiroa, 1996, p. 59).
Com relação a esta aproximação, Loffredo assinala a concentração no
vivido, no aqui e agora, como o possível elo de ligação na aproximação entre
awareness e meditação. Vejamos o que nos diz a autora:
O ‘esvaziar da mente’ – objetivado pela meditação oriental – aproximase do que a concentração no vivido, aqui-e-agora, proposta pela GT,
tenta atingir. O ‘continuum de presentificação’ que é objetivado dessa
forma significa possibilitar a formação livre, fluente e contínua de
gestalten-formas mais fundamentais da experiência presente, a cada
momento. (Loffredo, 1994, p. 68).
Em seu terceiro livro Gestalt-Terapia Explicada, Perls (1977) a respeito
da técnica que usamos em GT, comenta que “a técnica é estabelecer um ‘continuum’ de
‘tomada de consciência1. Este ‘continuum’ de tomada de consciência é exigido de
53
forma que o organismo possa trabalhar de acordo com o princípio saudável da
‘gestalt’” (Perls, 1977, p. 78). Mais adiante esclarece que “assim, o agente terapêutico,
o meio para o desenvolvimento, é a integração da ‘atenção e da tomada de
consciência’” (Idem, p. 80). Esta estratégia seria a única maneira de restabelecermos o
estado de espontaneidade saudável e a genuinidade do humano, ou seja, o ciclo natural
de formação figura-fundo que, com o decorrer da vida , vamos perdendo. No entanto
nos adverte, “o paradoxo é que, a fim de obtermos esta espontaneidade, precisamos,
como no Zen, de uma disciplina rígida” (Idem, p. 77).
Barros (in Stevens, 1977b), um dos pioneiros da GT no Brasil, no
prefácio da tradução brasileira do livro Isto é Gestalt (Stevens, 1977b), comenta o uso
que Perls faz da filosofia oriental em sua teorização, ao lançar mão da concentração e da
tomada de consciência, reconhecendo que estes dois recursos priorizados por Perls em
sua prática são recursos típicos da meditação.
Ainda segundo Barros, as várias práticas de meditação e a GT por meio
da awareness atuam sobre o foco de atenção e buscam desenvolver dois pólos:
(1) A atenção inespecífica, o estado de receptividade geral, de não
seletividade e não interferência com relação à própria experiência; (2) E
o estado de concentração de atenção e envolvimento integral com a
figura emergente, possibilitando desta forma a finalização do processo de
formação figura-fundo, sem a interferência das maneiras habituais de
distorcer e evitar a tomada de consciência. (Barros in Stevens, 1977b, p.
11).
54
Podemos perceber que para Loffredo (1994), Figueiroa (1996), Stevens
(1977b) e para o próprio Perls (1977), os processos embutidos na prática da meditação e
no continuum de awareness são os mesmos, uma vez que ambos fazem da tomada de
consciência e da concentração seu objeto de trabalho. Enfatizam a experiência vivida,
centrada no presente, no aqui e agora, e o contato, buscando superar o intelectualismo,
a lógica formal e a necessidade de conceitualização. Seriam preservadas a riqueza de
cada experiência e o sabor do momento vivido no qual reluz o mistério do
extraordinário.
É possível perceber que tanto a meditação no Zen como o continuum de
awareness na psicoterapia gestáltica favorecem uma visão interna, que possibilita
encontrar aspectos da nossa vida, do próprio ser, e realizá-los da maneira mais direta
possível. Este foco na atenção que ambos postulam tem um mesmo movimento que
permite, pela concentração e acompanhamento de cada vivência, a descoberta daquilo
que sempre esteve presente, mas até então não plenamente consciente portanto, não
apropriado. Assim, não é necessária uma busca externa, mas simplesmente restabelecer
o fluxo natural do processo de formação figura-fundo, no qual reside a espontaneidade
natural e genuinamente humana que possibilita o desvelar de nossa própria natureza.
Tanto na meditação quanto no continuum de awareness, encontraremos
como fundamento e sustentação uma mesma atitude que corresponde à proposta da
fenomenologia. Na GT é esta atitude que possibilita a investigação da própria
experiência, através de um olhar ingênuo, que suspende temporariamente seu saber na
tentativa de assim apreender o fenômeno em sua essência e em seu sentido peculiar. Já
na meditação, a atitude aparece através do “olhar de principiante” que, segundo Suzuki
55
(1996), visa exatamente à manutenção da mente vazia e alerta, abandonando o
“conhecimento” e o domínio das “coisas”, o que, para o Zen, pode tirar a capacidade de
abertura e de receptividade. É a atitude de principiante diante da vida que possibilita a
aprendizagem de fato. Penso que uma história do Zen-Budismo proporcione uma
melhor compreensão desta idéia.
Há a história de um impaciente professor universitário muito inteligente
que pede os ensinamentos a um velho mestre Zen. O mestre lhe oferece
chá e, quando ele aceita, começa a encher uma xícara até transbordar.
Quando o professor polidamente expressa sua inquietação com o
transbordamento, o mestre zen continua despejando o chá.
- A mente que já está cheia não pode apreender nada de novo – explica o
mestre. – Como esta xícara você está cheio de opiniões e idéias
preconcebidas.
Para encontrar a felicidade, ensina ele ao discípulo, é preciso primeiro
esvaziar a xícara. (Epstein, 1999, p. xiii).
Portanto, seja através da suspensão, ou do colocar entre parênteses, que a
fenomenologia propõe, ou do esvaziamento da mente que o Zen prega, o continuum de
awareness e a meditação preconizam uma mesma atitude frente à possibilidade de
aproximação, contato e conhecimento no que tange às experiências humanas.
A awareness na GT busca restabelecer o fluxo natural do processo de
formação de figuras que no adoecer é interrompido ou cristalizado. Para Perls,
Hefferline e Goodman (1997, p. 45) “a psicologia é o estudo dos ajustamentos
56
criativos” e, nos processos de adoecimento, “o estudo da interrupção, inibição ou
outros acidentes no decorrer do ajustamento criativo”. Estes dois conceitos, que
posteriormente serão desdobrados, nos ajudam a esclarecer como a GT entende saúde e
doença e assim nos ajuda a ampliar a compreensão do método de awareness que,
segundo Penteado, é visto
[...] como um ‘instrumento’ da terapia que, ao focar, na fronteira de
contato, evidencia o processo de como as interrupções de contato
organismo-meio estão presentes no ajustamento neurótico. Estas
parecem ser um ‘ajustamento criativo anacrônico’, que dificulta a
assimilação e integração de partes alienadas da personalidade,
impedindo o crescimento e desenvolvimento do cliente como ‘potência’
no mundo. (Penteado, 1998, p. 93).
Mais adiante o autor acrescenta que “O método de awareness trata da
percepção da rede de significados, que se desvelam e velam, como se estivéssemos
entranhados nessa malha, que nos captura pela inesgotabilidade de sentidos que se
desdobram no campo” (Idem, p. 94).
Na prática psicoterápica, com a técnica de concentração na voz, nos
gestos, na postura, nas sensações corporais, nos pensamentos e fantasias, no aqui e
agora, buscamos possibilitar ao cliente, pelos assinalamentos do terapeuta, uma
conscientização das eventuais interrupções, paralisações, dissociações, cristalizações e
lacunas que ele experiencia, tornando-as assim mais evidentes. Desta forma, o terapeuta
auxilia o cliente a construir um caminho próprio, na direção do estabelecimento de
57
novas relações de sentido e significado, até então ocultas. Para Perls, Hefferline e
Goodman (1997), o restabelecimento do processo de formação figura-fundo que
propicie a realização de uma ou novas gestalten firmes, nítidas, é compreendido como o
próprio processo de integração e não como uma das etapas deste processo.
Um exemplo talvez nos auxilie a compreender esta forma de trabalho na
sessão terapêutica. Janice é uma jovem profissional de 23 anos, é uma mulher bonita,
simpática, extrovertida e comunicativa. Encontrava-se em terapia há nove meses, vinha
trabalhando questões ligadas à dificuldade nos relacionamentos afetivos. Durante uma
sessão em que comenta sua dificuldade no relacionamento afetivo com os homens, em
um determinado momento percebo um movimento estranho em seu corpo e em seu
olhar. Ao assinalar para ela essas reações físicas, a cliente menciona que às vezes tem a
sensação de que seu corpo está atravessado por uma madeira na altura da cintura, o que
não sabe explicar. Peço a ela que seja a madeira que atravessa sua cintura, e que me
conte um pouco o que a madeira está fazendo com ela. Descreve a separação que a
madeira está criando em seu corpo, dividindo-o em duas partes. Solicito então que ela
seja primeiramente uma parte, e me conte um pouco desta experiência e que repita o
mesmo processo com a outra parte. Durante este experimento23, quando Janice começa
a relatar sua experiência, começa a chorar dizendo que até então não percebia a divisão
que vivia em seu corpo. Relata um episódio de sua adolescência quando foi flagrada
pelo pai dentro do carro do namorado em uma situação de muita erotização, o que gerou
muita vergonha e que desencadeou forte crítica e maior repressão dos pais frente a sua
23
Experimento: Recurso técnico da GT que tem como objetivo ampliar o campo perceptual do cliente.
Para Juliano (1999) “o experimento é qualquer coisa que aumente a consciência... [...] a intenção do
experimento é sempre a de enfatizar, apontar e sublinhar o que esta presente no momento. Portanto,
afinando a percepção do presente, aumentando a awareness” (Juliano, 1999, p. 42,43).
58
sexualidade. A partir desse episódio, sua mãe freqüentemente repetia que ela parecia
“lingüiça se oferecendo na frente do cachorro”.
Esta situação permitiu resgatar uma espécie de cisão e inibição que a
cliente passou a viver frente a sua sexualidade, muito possivelmente em função do
receio de, ao vivê-las não conseguir controlar seus desejos. A conscientização deste
impedimento permitiu uma nova rede de sentidos para suas dificuldades nos
relacionamentos afetivos, iniciando assim uma reapropriação de seu desejo através de
seus receios, vergonha e inibições. A dificuldade frente a uma maior vinculação afetiva
pôde ser re-significada e do fundo pôde emergir novas gestalten uma vez que o processo
de formação figura-fundo voltou a fluir.
Este trabalho de conscientização propiciou à cliente o contato com uma
interrupção em seu processo de maturação, o que levou a uma dissociação da erotização
e da sexualidade e, conseqüentemente, um maior impedimento frente aos
relacionamentos afetivos. A partir do reconhecimento da complexidade de aspectos que
envolviam sua dificuldade e inibição nos relacionamentos, a cliente pôde ir se
reapropriando de toda sua potencialidade de ser para os relacionamentos afetivos, dando
um novo rumo para esta questão ao superar a paralização vivida e conseguir colocar sua
vida afetiva em marcha.
Ao compreender a meditação como uma prática que visa possibilitar um
estado de abertura que permite apreender as sutilezas da vida, que o sonambulismo do
cotidiano com seu véu não nos permite usufruir, a prática tanto da meditação tradicional
zazen como a não tradicional “viver o próprio cotidiano” podem então criar
possibilidades de expansão da consciência. Desenvolve-se assim um maior senso de
59
presença e inteireza no viver de cada situação que levam à ampliação da mente.
Vejamos a seguinte passagem Zen. Certa vez perguntaram a um distinto instrutor:
Fazeis qualquer esforço para vos tornardes disciplinado na verdade?
Sim, faço.
Como voz exercitais?
Quando estou com fome, como. Quando estou cansado, durmo.
Isto é o que todo mundo faz. Assim podemos considerar que eles estão
também se exercitando da mesma forma por que o fazeis?
Não.
Por que não?
Porque, quando eles comem, não estão comendo e sim pensando em
várias coisas, deixando-se, portanto, perturbar por vários pensamentos.
Quando eles dormem, não estão dormindo e sim sonhando com mil e uma
coisas. Esta é a razão por que não são como eu. (Suzuki, 2002, p. 110).
Assim podemos perceber que tanto a meditação como o continuum de
presentificação, são similares em sua estrutura, prática e aparentemente em seu objetivo
na medida em que ambos visam auxiliar o ser humano a se alojar no presente e
conseqüentemente a melhor se apropriar de sua existência. Vejamos o que nos diz
Penteado:
‘Awareness’ é a condição ‘sine qua non’ para mudança na terapia
gestáltica. Não só se refere ao ‘método’ da Gestalt-terapia como é
60
‘objetivo’ da terapia, pois com isso se pretende que o cliente possa tomar
posse de seu próprio processo de ‘awarenes’s. Ou seja, ela é ‘meio e
fim’. Simkin e Yontef são incisivos: ‘Em Gestalt Terapia, o objetivo é
sempre awareness e apenas awareness. (Penteado, 1998, p. 83)
Podemos perceber então que em GT a awareness é método através do
continuum de presentificação; é processo na medida em que durante a psicoterapia o
cliente ampliará sua consciência, seu estado de abertura e presença para a vida; e é
também o próprio objetivo da psicoterapia em GT. Como objetivo da psicoterapia, em
que horizonte ele se desenvolve, qual sua visão de homem, sua noção de cura e
adoecimento?
No Zen-Budismo, a meditação pode ser vista como uma estratégia, ao
mesmo tempo em que é também um processo para se atingir um fim, mas poderíamos
dizer que ela não é um fim em si mesma, uma vez que o principal objetivo do Budismo
é a iluminação ou estado desperto. Podemos a partir daí perceber os aspectos
divergentes ou, melhor dizendo, os distanciamentos dos objetivos destas práticas. Para
continuarmos nossa reflexão iremos explorar agora os objetivos do Zen e da GT, seus
horizontes e suas respectivas visões de homem.
61
CAPÍTULO III: AWARENESS E ILUMINAÇAO
“Quando curiosamente te perguntarem, buscando saber o que é
Aquilo,
Não deves afirmar ou negar nada.
Pois o que quer que seja afirmado não é a verdade,
E o que quer que seja negado não é verdadeiro.
Como alguém poderá dizer com certeza o que Aquilo possa ser
Enquanto por si mesmo não tiver compreendido plenamente o
que É?
E, após tê-lo compreendido, que palavra deve ser enviada de
uma Região
Onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde
possa seguir?
Portanto, aos seus questionamentos oferece-lhes apenas o
silêncio,
Silêncio – e um dedo apontando o caminho".
Verso Budista (Watts, 2000)
3.1
Awareness
Iniciaremos este capítulo retomando parte da idéia desenvolvida
anteriormente, awareness é meio, mas também é fim na GT. O que visamos como
gestalt-terapeutas ao afirmar que o objetivo último na psicoterapia é a awareness? O
que pretendemos ao afirmar que objetivamos ampliá-la, desenvolvê-la ou mesmo
restaurá-la? O que espero ou o que pretendo quando acompanho meu cliente em sua
jornada? Para responder a estas questões. iremos transitar um pouco sobre os conceitos
de doença, neurose, saúde, cura na GT.
62
Ao discorrer sobre a noção de cura Ribeiro (1998) nos relembra que toda
abordagem psicoterapêutica trará em sua construção teórica uma noção de cura e que,
com certeza, a mesma se baseará nas premissas de saúde e doença a partir de sua visão
de homem e de mundo. Na terapia gestáltica a cura não estaria relacionada à solução de
problemas, mas à possibilidade de entrar em contato com o “sábio” que cada um traz
dentro de si. Esta crença no “equilíbrio organísmico” para a GT permitirá ao indivíduo
responder criativamente e, portanto, da melhor maneira possível às situações vividas
(Ribeiro, 1998).
Para que o desenvolvimento humano aconteça, ele dependerá de um
ambiente favorável que possibilite à pessoa uma rede de interrelações saudáveis, sem
pressões sistemáticas, para que seu potencial maturacional possa acontecer, propiciando
assim seu crescimento e amadurecimento sem maiores dificuldades ou traumas.O
desenvolvimento conseqüentemente possibilita o desabrochar de sua potencialidade
(Ribeiro, 1998). Poderíamos aqui fazer uma aproximação destes pressupostos com a
teoria winnicottiana, que também preconiza a importância de um ambiente suportivo, a
mãe suficientemente boa, aquela que permite ao seu bebê o florescimento dele mesmo
como ser singular e, para que isso aconteça, será necessário a identificação e seu estado
devotado para com o bebê. Quando essas condições do ambiente não puderem
acontecer, corre-se o risco do surgimento de um tipo relacional intrusivo e invasivo,
resultando em paradas, impedimentos e traumas na continuidade do processo de
amadurecimento do ser que ali está.
Winnicott em seus estudos enfatiza a preponderância das falhas
ambientais no processo de amadurecimento do ser humano com uma leitura muito
63
próxima de algumas idéias da GT, caminhando muito além na exploração e
desenvolvimento destes aspectos em sua teoria. Não pretendo desenvolver no presente
trabalho interfaces nesta direção, no entanto, penso serem relevantes tais apontamentos.
Compreendo os processos ou comportamentos saudáveis e doentios como fruto dos
ajustamentos criativos ou não, nas interações do homem com seu meio.
Perls já observara que o homem e o meio podem estar numa relação de
mutualidade e a falta da mesma poderia indicar o adoecimento. A forma como o
indivíduo interage com o meio e basicamente a qualidade do contato nestas interações
passam a ser um dos determinantes para o critério de saúde e doença. As situações em
que a qualidade de contato é vivo e espontâneo tornam-se a marca da saúde, já as
situações caracterizadas pela confusão, desconexão ou por distúrbios acentuados ou
crônicos deflagram o patológico.
Todos os distúrbios neuróticos surgem da incapacidade do individuo
encontrar e manter o equilíbrio adequado entre ele e o resto do mundo e
todos têm em comum o fato de que na neurose o social e os limites do
meio sejam sentidos como se estendendo demais sobre o individuo. [...]
Sua neurose é uma manobra defensiva para protegê-lo contra a ameaça
de ser barrado por um mundo esmagador. (Perls, 1981, p. 45).
Para a perspectiva fenomenológico-existencial, o desvelar do humano
implica inevitavelmente a possibilidade de revelar e ao mesmo tempo desvelar algo de
si, portanto a condição humana está assentada neste paradoxo, isto é, o ser humano é ao
mesmo tempo abertura e fechamento. O desequilíbrio entre estas duas dimensões, o que
64
é ocultado e o que é explicitado, poderia estar manifestando-se como adoecimento e
como processo psicopatológico (Hycner, 1995). A carência de sentidos existenciais ou
uma restrição significativa em um único sentido existente poderiam ser outros sinais do
adoecimento.
Para Perls e para a GT, a neurose não é vista como uma “doença” mas
sim uma revelação dos vários sintomas da estagnação do processo de amadurecimento.
Perls explicita seu interesse em contrapor-se a uma psicoterapia normativa na qual o
normal e o patológico estariam norteando o trabalho do terapeuta na busca de um
ajustamento do indivíduo à sociedade constituída. Assim, seu pressuposto teria como
finalidade o estabelecimento da qualidade do contato como um dos critérios de saúde.
Desta forma, visaria à capacidade do indivíduo se relacionar de forma crítica e
autônoma com o meio, abrindo um espaço para o único, o singular e para a
autenticidade nos processos de ajustamento homem-meio, ou seja, uma ênfase na
capacidade do homem se colocar criativamente em seu meio (Tellegen, 1984).
O desdobramento para esta proposta é a noção de ajustamento criativo,
conceito fundamental da GT, visto como a capacidade do indivíduo se auto regular
dentro do meio social de maneira ativa, por meio de um contato vivo, espontâneo,
autêntico, e que permita abertura ao novo e conseqüentemente abra espaço para o
potencial criativo e transformador do indivíduo, em contraposição à idéia de
dependência, cerceamento ou de controle social. Para Tellegen:
Ajustamento criativo tem a ver com a dialética de continuidade e
mudança, com a inserção estrutural do novo no velho, para formar com
ele uma nova configuração. A mobilidade estrutural do todo é a base da
65
criatividade, enquanto cristalização estrutural é a fixidez do passado no
presente. (Tellegen, 1984, p. 46).
Na prática clínica, percebemos tais fenômenos acontecer com certa
freqüência, assim foi no encontro com Rita. Durante sua psicoterapia, em vários
momentos trazia a falta da figura paterna em sua infância e adolescência. O que para ela
dava a impressão de “ter um buraco”, como o de uma janela, no qual deveria existir de
fato uma janela. Seus pais separaram-se quando ela ainda era muito pequena, assim ela
e sua irmã, dois anos mais velha, foram criadas por sua mãe. Em uma de nossas sessões
Rita relembra a importância de um tio em sua adolescência e início da vida adulta, e que
a auxiliou em situações difíceis, tanto emocionalmente como financeiramente. A partir
destas lembranças Rita retorna no tempo relatando algumas experiências com figuras
masculinas como, por exemplo, seu avô materno e um amigo dele. Rita conta sobre a
presença do avô em sua infância e principalmente a daquele grande amigo, pessoas
extremamente afetivas com quem viveu situações como aprender a pintar rodapé
enquanto estes pintavam uma parede; ou aprender a colocar uma minhoca num anzol
quando ambos iam pescar.
Nas sessões posteriores Rita retoma essa questão (a presença do avô
materno e do amigo) comentando a importância e a participação deles em sua infância,
relatando outras lembranças de situações significativas vividas na companhia e presença
do avô e de seu amigo.Por meio destes relatos, das lembranças das experiências vividas
com o avô, o amigo do avô e de seu tio, durante sua infância, adolescência e início da
fase adulta, Rita começa a se conscientizar da importância destas vivências e do quanto
66
estas figuras masculinas foram significativas e suportivas em momentos importantes de
seu processo de desenvolvimento.
Este trabalho propiciou à cliente o reconhecimento da construção de um
vitral no local onde anteriormente existia o buraco “janela” gerado pela falta da figura
paterna. O que antes era percebido como fragmentos de contato com figuras masculinas,
“cacos de vidro”, com o decorrer do processo terapêutico e do processo de apropriação
de sua história de vida, tanto de suas faltas e perdas, como do pai, como de seus ganhos
com presenças e vivências significativas como com seu avô, o amigo do avô e o tio,
passou a constituir um belo vitral. Em outras palavras, Rita conseguiu re-significar um
pedaço de sua história de vida ao rever sua própria história, se reapropriando de suas
perdas e de seus ganhos. Ao realizar isto, pôde colocar sua vida em marcha, abrindo
espaço no presente para melhor cuidar de sua vida afetiva e profissional.
Esta situação ilustra com propriedade as situações de ajustamento
criativo. No caso de Rita, a partir de uma situação de falta e perda, ela conseguiu ir para
além da mesma. Não permaneceu prisioneira desta falta, alcançou por meio de outras
relações constituídas em sua vida e ofertadas pelo meio uma nova possibilidade, frente à
necessidade e importância da figura paterna. A construção do vitral permitiu a Rita a
percepção e integração da presença dessas figuras em sua vida, antes tida como lugar de
ausência e perda. Pôde assim re-significar uma situação inacabada, ou seja, pôde fechar
esta gestalt.
Um outro aspecto a ser ressaltado é que, no cerne de todo comportamento
disfuncional ou neurótico, houve em algum momento algo de criativo e funcional, uma
vez que possivelmente aquela foi a melhor saída encontrada pelo indivíduo. Dentro de
67
determinadas circunstâncias, a perpetuação deste comportamento, sem levar em
consideração as alterações do meio e as novas necessidades ou mesmo possibilidades de
resposta, leva ao processo de cristalização, uma espécie de perpetuação do passado no
presente.
Um dos objetivos da psicoterapia gestáltica, pela recuperação da
capacidade de estabelecer ajustamentos criativos, é devolver a repetição, a fixação e o
passado ao seu caráter histórico. O fechamento de situações inacabadas possibilita
novas configurações no campo existencial e perceptual do cliente pois, quando esta
figura cristalizada retrocede para o fundo, abre-se um novo espaço para que novas
necessidades e possibilidades possam surgir, e conseqüentemente serem atendidas
dentro do possível. “Encerrar situações inacabadas” é para Perls o caminho para
recolocar o passado no seu devido lugar, transformá-lo em recordação, restabelecer o
presente ao cliente para que novas situações possam ser vividas e exploradas e assim
ressurgir seu potencial criativo, sua espontaneidade e conseqüentemente maior
autonomia. No caso de Rita, este processo de fechamento de uma situação inacabada - a
falta do pai em sua infância - e o ajustamento criativo, através do que o meio pôde
ofertar, e sua capacidade de usar e se apropriar destas experiências, permitiram abrir
espaço em sua vida atual para que novas questões pudessem surgir, como por exemplo,
situações ligadas a sua vida profissional que até então também estavam caminhando
aquém de seu desejo, necessidade e possibilidade. Toda esta nova configuração permitiu
a retomada do fluxo natural de formação e destruição de figuras.
Ciornai (1994), apresenta-nos um resumo desta idéia de uma forma
límpida e poética vejamos o que ela diz:
68
Em Gestalt-Terapia, funcionamento saudável é literalmente equacionado
como funcionamento criativo, como a habilidade de estabelecer contatos
frescos e criativos com o que for, com a pessoa que esteja se
relacionando, como a habilidade de gerar e manter fluxos de consciência
que possam conduzir a soluções satisfatórias e criativas em nossas vidas.
Uma característica que identifica os seres humanos. Criatividade é,
portanto, um processo da vida. (Ciornai, 1994, p. 11).
A GT acredita que a mudança de perspectiva, ou a re-significação, é uma
das vias para transformar e liberar o processo de cristalização vivido pelo cliente. Por
este pressuposto, o psicoterapeuta apresenta ao cliente um olhar novo para determinada
situação, o que não significa que o olhar do terapeuta é melhor que o do cliente, mas,
neste momento, ele simplesmente empresta um olhar diferente que permitirá uma
espécie de “arejamento” em uma situação antes dominada pela paralisação. Novos
ventos propiciam o restabelecimento da mobilidade ao permitir um olhar novo para a
mesma situação e, assim novas leituras e compreensões para o vivido. Nas palavras de
Juliano:
Não temos o poder de mudar os fatos da vida; o ponto de partida da
psicoterapia consiste na possibilidade de olhar a própria vida a partir de
um outro ângulo, a partir de uma perspectiva completamente diferente.
Reconstruindo uma outra história. (Juliano, 1999, p. 47).
Discorrendo sobre a importância da mudança de perspectiva para Perls,
Tellegen (1984) escreve:
69
Pensar, concentrar-se, imaginar equivale a gerar informação capaz de
orientar respostas em nível de ação. E a idéia que lhe é tão cara de que o
homem, ao colocar-se em estado de disponibilidade ou de ‘ indiferença
criativa’, segundo os termos emprestados a Friedläender, pode abranger
dimensões opostas de uma mesma questão, vislumbrando a relação
dialética que as une, diz respeito precisamente à possibilidade de
‘mudança de perspectiva’ que vai desvendar novas relações de
significados e novas alternativas de ação. (Tellegen, 1984, p. 67).
Dando continuidade à idéia de ilustrar clinicamente alguns conceitos
teóricos, lanço mão de uma nova vinheta clínica: Ana em busca do novo.
Ana, casada há aproximadamente quinze anos, procurou ajuda
psicológica ao se descobrir apaixonada por um outro homem, com quem teve um rápido
envolvimento, o que gerou angústia e sofrimentos intensos. Para Ana a concepção sobre
seu casamento era “para toda a vida” e, portanto, jamais esperara viver tal situação. No
início do processo seu desejo era livrar-se o mais rapidamente deste sentimento que
estava criando tanta instabilidade e tanto sofrimento em sua vida. A princípio, sua
leitura era mais ou menos a seguinte “minha vida estava ótima e de repente fui
atropelada por esta pessoa e por este sentimento”.
Com o passar dos atendimentos, Ana começou a perceber que sua vida
não ia tão bem e que seu casamento vivia uma grande crise. Sentia-se insatisfeita com o
rumo que o casamento tomou, totalmente atrelada ao marido, quase sem vida própria, e
prisioneira de um impasse situacional e existencial que ela mesma permitira.
70
Na medida que o processo foi evoluindo a cliente começou a reivindicar
uma maior autonomia e alternativas de uma vida própria na qual ela pudesse imprimir
suas próprias necessidades, motivações, desejos. Um tempo significativo passou até que
numa dada sessão a cliente chegou muito alegre e contou que pela primeira vez tinha
ido a uma festa “gay”. Convidada por um colega de trabalho, fora pela primeira vez
“sozinha” a um aniversário, e nesse caso a novidade: uma festa “gay”. Mencionou que
há muito não se divertia tanto sozinha e, para minha surpresa, acrescentou que isto só
foi possível graças à experiência extra-conjugal com todos os desdobramentos que esta
relação lhe proporcionara.
Em face da dinâmica relacional que Ana passou a viver, aquilo que
inicialmente foi visto como traumático, revelou-se abertura e liberdade frente a seu
destino e a sua própria existência. A situação de crise tornou-se situação de
oportunidade, oportunidade de descoberta de si mesma, num momento em que sua vida
estava oprimida e abafada. Ao perceber a crise e transformá-la em oportunidade, Ana
conseguiu dar um destino ao seu sofrimento, aspecto que merece relevância por lhe
permitir a saída de um ciclo de inautenticidade e a instalação de um ciclo de
autenticidade.
A possibilidade de criação de um sentido ou de novos sentidos para o
sofrimento também é outro aspecto importante para a ampliação da awareness, ao
produzir nova rede de possibilidades no campo existencial e perceptual do cliente,
instalando assim novas perspectivas Em outras palavras, a abertura para o inédito!
O desenvolvimento do contato torna-se um dos eixos centrais na GT,
pois junto com a awareness, e o aqui e agora, eles estarão formando o que Lilienthal
71
(1994), nomeou de “tripé fundamental”, que possibilita o processo de awareness.
Juliano, discorrendo sobre a importância do contato, menciona que o objetivo da
psicoterapia “[...] é restaurar a qualidade do contato com o mundo, buscando a
vivacidade, a fluidez, a disponibilidade e a abertura, o ritmo e a discriminação nesse
processo contínuo em que o homem e o mundo se transformam” (Juliano, 1999, p. 25).
Com a ampliação e desenvolvimento da qualidade de contato
intrapessoal, interpessoal e transpessoal do cliente, visamos uma maior apropriação de
seus recursos pessoais no intuito de um intercâmbio mais rico com o meio. Todo este
trabalho de lapidação do contato possibilita a ampliação da awareness compreendida
como maior conhecimento de si mesmo e do ambiente, maior auto-aceitação e
responsabilidade pelas escolhas, o que permite discriminar e ampliar o potencial
humano, sua forma de ser.
Dentro da perspectiva gestáltica, a própria relação terapêutica torna-se o
melhor campo para avaliação e desenvolvimento da qualidade de contato. O espaço
terapêutico, neste sentido, pode se tornar uma espécie de laboratório, na medida em que
propicia ao cliente um local para a observação e avaliação de seu modo de ser,
possibilitando, também, uma oportunidade para experienciar novas formas de ser e
assim criar novos sentidos e significados para sua existência.
Uma nova vinheta ajuda-nos na compreensão de como o espaço
terapêutico na GT pode se tornar uma espécie de laboratório ao mesmo tempo que
propicia o desenvolvimento da qualidade do contato, por meio da relação terapeutacliente, isto é, pelo experenciar o presente.
72
Carlos era um professor do ensino médio extremamente comprometido
com seu trabalho e seus ideais, e que desenvolvia um trabalho criativo e crítico,
reconhecido plenamente na instituição em que trabalhava. O jogo de quebra-cabeça foi
a porta de entrada para iniciar um trabalho de reaproximação com sua falta de
habilidade para lidar com atividades manuais. Podemos dizer que houve uma
cristalização desta faceta após experiências marcantes vividas com seu pai, pessoa rude,
analfabeto, e que nunca se interessou por seus estudos. Contou que constantemente era
comparado pelo pai a seus irmãos como aquele que “nada sabia fazer”, que não tinha
nenhuma habilidade física, e que “a única coisa que sabia fazer era ler e escrever”,
habilidade não valorizadas pelo pai.
Após uma sessão intensa em que o cliente ficou mobilizado com a
temática em questão, emergiu um sentimento de fracasso frente a toda sua existência.
Neste momento a falta de habilidade manual encobria toda sua potencialidade de ser.
Durante o trabalho, em um momento de maior descontração, brinca que não conseguia
trocar uma lâmpada e nem ajudar seu filho a montar um quebra-cabeça. Brinco com a
idéia de que talvez pudéssemos juntos experimentar estas duas possibilidades na sessão.
A idéia de usar o jogo de quebra-cabeça durante a sessão mobilizou o cliente de uma tal
maneira que a partir deste encontro passamos a utilizar o jogo em alguns de nossos
encontros posteriores. Por meio do jogo de encaixar e montar peças concretamente, e
das imagens e metáforas que foram surgindo a partir do próprio jogo, iniciamos um
percurso de exploração, apropriação e expansão das capacidades e qualidades manuais
de Carlos e seus desdobramentos relacionais na vida. O ambiente protegido da sessão, a
postura de acolhimento e aceitação de suas dificuldades e limitações, facilitaram a
assimilação e integração de toda esta faceta até então dissociada do seu modo de ser.
73
Tendo em vista os estigmas e rótulos instaurados na infância, Carlos se viu impedido de
lidar com os aspectos pragmáticos e comuns do cotidiano e do universo masculino.
Portanto o jogo funcionou como possibilidade de restabelecimento de sua capacidade
relacional. Atravessou tanto as questões intrapsíquicas como as interpessoais, favoreceu
seu processo de reapropriação de si mesmo, e permitiu retomar o processo maturacional
– isto é, o contato nos encontros com Carlos foi o vértice fundamental para a
“acontecência”24 “potência de ser”.
Rehfeld (2000) relata que terapia vem do grego Therapeia, que significa
cuidado, atenção, desvelo. Podemos pensar a psicoterapia como um espaço para estar
presente junto e com o cliente, na retomada de seu processo de existir, agora
acompanhado. Esta idéia indica um aspecto fundamental na perspectiva gestáltica: a
importância da presença do outro no existir humano; é através desta presença, desta
relação com o outro e de sua confirmação que eu me descubro e me reconheço humano,
ou experiencio as situações de achatamento ou de impossibilidade de meu existir
(Buber, 1979). Este princípio norteará e sustentará a prática clínica. Assim, na
psicoterapia, a possibilidade de experenciar um processo de existir acompanhado, num
clima de acolhimento, propicia espaço para o outro ser, não impondo ou determinando a
ele seu modo de ser, mas simplesmente o acompanhando e o auxiliando a cuidar, e a
aprender a cuidar de seu ser. Permite ainda a recriação de um inter-relacionamento
saudável, a experiência de “companheiros de viagem”. Ao promover um espaço para a
24
Ao me referir ao termo acontecência, utilizo-o conforme as concepções desenvolvidas pelo Prof. Dr.
Zeljko Lopparic no Núcleo de Práticas Clínicas do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Clínica da PUC-SP. 1º semestre de 1998. Acontecência é definida como possibilidade de acontecer no
mundo humano: o homem como aquele que tem seu acontecer marcado pela temporalidade, isto é, pela
finitude!
74
auto-aceitação, esta aceitação, torna-se uma ponte rumo à integração, à busca de novos
sentidos para a existência e para o acontecer de sua “verdadeira natureza”.
Refletindo a respeito da psicoterapia e do papel do terapeuta numa
abordagem fenomenológico-existencial, Cytrynowicz (l978) nos apresenta uma bela e
profunda metáfora. que ilustra perfeitamente o que busco desenvolver:
[...] é tarefa primordial do terapeuta zelar pelo desabrochar da riqueza
humana, isto é, estar constantemente atento para o desvelamento do
poder ser próprio de cada paciente. Não é o terapeuta quem deve indicar
o que é próprio de cada paciente – isto é até um contrasenso ao sentido
mesmo de próprio – O terapeuta deve atuar como um jardineiro que
cultiva uma planta. O jardineiro não produz a planta como se produz um
automóvel, não cria a terra nem a semente, nem planeja os passos que
devem ser seguidos pela planta para atingir a maturidade, florir e
frutificar. Ele somente cria melhores condições de solo, abriga a muda,
quando muito pequena, contra condições climáticas adversas, protege-a
na medida do possível contra os insetos, livra-lhe a área de crescimento,
para que ela não morra por falta de espaço ou luz. Mas não é ele que a
faz crescer. O crescimento da planta é dela própria. É ela que absorve o
alimento do solo e principalmente é ela quem deita suas raízes próprias
[...] (Cytrynowicz, l978, p. 45)
Refletindo um pouco mais sobre o que é próprio do ser e sobre as
condições facilitadoras da mudança, Baisser (in Fagan e Shepherd, 1980) gestaltterapeuta da primeira geração, em seu conhecido artigo “A teoria paradoxal da
mudança”, desenvolve uma idéia interessante e que posteriormente tornou-se um dos
75
pilares centrais da GT no que diz respeito à noção de mudança. Para ele, o ser humano
só muda quando abre mão de tentar tornar-se o que não é, ou seja, é só pela aceitação e
reconhecimento daquilo que se é, sua própria natureza, que um novo horizonte se
descortina diante do homem.
Para que a terapia possa de fato realizar seu caráter transformador e
libertador, torna-se necessário que o terapeuta, além de acompanhar, cuidar e auxiliar
seu cliente em seu processo de transformação, também o ensine a cuidar de si, num
sentido prospectivo, para que a doença não chegue a se instalar. Rehfeld (2000) retoma
uma origem anterior à palavra grega Terapeia citando Terufá, palavra que vem do
hebraico e que foi assimilada pelos gregos, assinalando que seu significado vai além da
noção de cuidado, de cura - “[...] cabe ao terapeuta cuidar do ser e ensiná-lo a cuidar
de si e não somente tratar a doença” (Rehfeld, 2000, p. 60). Quando o cliente aprende
verdadeiramente a cuidar de si, ele descobre a preciosidade de sua existência e a
importância do cuidado em relação a ela. Neste momento ele consegue acreditar em si
mesmo, no outro e no mundo, pois despertou seu sábio interior. Agora, estará apto a reinserir a “graça” novamente em sua vida, “até se constelar um novo combate” (Juliano,
1999).
Stevens (1977b) no livro Isto é Gestalt, assinala com muita clareza e
simplicidade que:
Talvez a mensagem mais notável da Gestalt e no entanto óbvia, seja a
seguinte: se você vê claramente os acontecimentos da sua vida, o seu
viver vai bem, sem confusão e sofrimentos desnecessários. Algumas vezes
a vida é difícil e dolorosa, às vezes alegre e plena. Com consciência você
76
poderá minimizar a dor e aumentar alegrias e satisfações. [...] A filosofia
da Gestalt serve como uma orientação de vida, um lembrete de que a
consciência é sempre útil, e oferece técnicas e estratégias específicas que
podemos usar para caminhar em direção a uma maior tomada de
consciência. (Stevens, 1977b, p. 14-15).
3.2
Iluminação ou satori
Conta-se que Sidarta Gautama, o Buda, era bastante cuidadoso e evitava
qualquer descrição da iluminação e que, quando indagado sobre a mesma ou os
mistérios do universo, ele mantinha “um nobre silêncio”, repetindo que sua doutrina, o
dharma, estava apenas preocupada com o caminho para a iluminação (Watts, 2000).
O objetivo último do Budismo e do Zen Budismo é a iluminação ou
satori também às vezes chamado de estado desperto25, algo difícil de ser descrito ou
mesmo indefinível. Segundo Fromm, algo que só pode ser abordado de forma
tangencial. Suzuki (2002, p.113), em sua simplicidade, apresenta-o como “a aquisição
de um novo ponto de vista” [...] “um olhar intuitivo no âmago das coisas, em
contraposição à sua compreensão intelectual ou lógica [...] o desabrochar de um novo
mundo até então despercebido, em face da confusão da mente dualística” (Idem, 2002,
p. 113). Com a iluminação, nós despertamos nossa natureza búdica, natureza que habita
todos os seres enquanto plena potencialidade, nós nos tornamos Buda, despertamos a
natureza de nosso verdadeiro ser. Estamos falando de uma espécie de abertura que
possibilita ao homem um elevado estado de consciência, no qual encontra a união com a
25
Estado desperto: Em algumas tradições do Budismo, como a tradição Vajrayaina, ou também
conhecida como a linhagem tibetana, estado desperto ou iluminação é chamado de awareness.
77
realidade definitiva do universo, rompendo assim com qualquer compreensão dualista.
Para o Zen, o satori é essencialmente uma experiência súbita, que só pode ser
encontrada “na vida do mundo e não no afastamento do mundo”. Dizendo de outra
forma, é na práxis, no existir cotidiano com sua fonte primordial de inspiração e
provocação, que poderemos encontrar a centelha para iluminação e que, como primeiro
passo, impõe um voltar-se a si mesmo, ao seu mundo cotidiano e concreto, onde toda
busca principia e ao mesmo tempo se encerra.
Inúmeras vezes o satori também é descrito como uma experiência de
“reviravolta” da mente, uma libertação do nosso usual estado de tensão e apego às falsas
idéias de posse, de controle ou de conhecimento da realidade e da vida.
Repentinamente, toda a rígida estrutura usada na interpretação humana da vida é
despedaçada e como resultado traz um ilimitado sentido de liberdade. Vejamos um
relato a respeito da experiência de um mestre:
O satori está além da descrição e é completamente incomunicável, pois
não há nada no mundo com que possa ser comparado... Quando olhava
ao redor, para cima e para baixo, todo o universo com seus múltiplos
objetos sensoriais parecia agora completamente diferente; o que antes
parecia repugnante, junto com a ignorância e as paixões, foi visto como
um simples fluir da minha natureza mais profunda, que em si mesma
permanecia brilhante, verdadeira e transparente. (Watts, 2000, p. 78-79).
78
Nas palavras de Suzuki:
[...] quando o satori é alcançado, o que é irracional deixa de sê-lo; as
irracionalidades caem ao nível da lógica e do senso comum. Diz-se que o
caçador não conhece as montanhas porque ele está exatamente nelas. Ele
tem que estar suspenso no ar para ver toda a cadeia de ondulações. O
satori realiza esse fato; ele destaca o homem do seu contexto, e o faz
reconhecer o campo inteiro. (Suzuki, 1977, p. 47-48).
Para nos aproximarmos da compreensão da iluminação teremos que
atravessar o oceano de paradoxos ao qual o Zen nos lança e, para nós, marinheiros de
primeira viagem, o movimento inicial é rotineiramente a paralisação. No entanto, para
atravessarmos este oceano, e atravessar significa necessariamente vivê-lo, suportá-lo e
sustentá-lo, precisamos seguir em frente. Isto posto, o satori verdadeiro é ao mesmo
tempo imanente e transcendente, para que ele possa operar é necessário que o sujeito se
torne objeto e que o objeto se torne sujeito. Assim, no satori, o que é imanente é
transcendente e o que é transcendente é imanente: “o caçador está, ao mesmo tempo,
fora e dentro das montanhas, pois nunca se afastou delas” (Idem, p. 48).
Para melhor compreender a noção de iluminação para o Zen, uma espécie
de alerta presente no prefácio do livro “A arte cavalheiresca do arqueiro Zen” Herrigel
(2001) poderá nos ser bastante oportuna:
[...] Mas tal encontro exigirá, por parte do leitor, algumas abdicações. A
lógica do pensamento ocidental deve ser posta de lado. A estrutura do
79
cartesianismo, reduzida a cinzas. A relação causa-efeito, desprezada. A
separação sujeito-objeto, ignorada. O tédio, ridicularizado. Mas a paixão
pela vida, enaltecida. (Ismael in Herrigel, 2001, p. 5).
Percebemos que para a compreensão tanto do Budismo como do ZenBudismo, é necessária uma espécie de ruptura com conceitos centrais do pensamento
ocidental, em sua maioria vistos pela filosofia oriental como dualismo, dicotomias a
serem ultrapassadas. Assim, poderíamos entender a iluminação como uma superação
das noções de tempo-espaço, sujeito-objeto, mente-corpo, eu-outro, eu-mundo.
A iluminação é algo que não pode ser captado pela razão ou por uma
análise intelectual. Trata-se de uma experiência que não pode ser transmitida por
explicações ou argumentos mas, fundamentalmente, uma experiência que precisa ser
vivida. Toda proposta do Zen, que enfatiza que o fundamental no ser humano é sua
transformação existencial e que é esta sua verdadeira razão de ser, nos auxilia rumo a
uma melhor compreensão desta proposta. A possibilidade de sua transmissão verbal,
com total clareza, a quem não a tivesse alcançado indicaria que não se trata mais da
experiência de satori, pois neste momento estaremos correndo o risco de nos
emaranharmos na teorização, escapando de sua proposta, que acena para a vivência
como campo operacional concreto da mudança da consciência. Quando o satori se torna
um conceito, ele impossibilita a própria experiência, uma vez que o conceito aprisiona e
mata a possibilidade da vivência plena.
O que o Zen pode proporcionar como sugestão, instrução ou mesmo
indicação, é assinalar o caminho pelo qual a atenção de cada praticante poderá ser
orientada em direção ao alvo. Atingi-lo, porém, é algo que só pode ser realizado por
80
cada um, com suas próprias mãos e seu próprio caminhar, uma vez que ninguém mais
poderá trilhá-lo (Suzuki, 2002).
Um outro aspecto importante para a compreensão do satori é a noção de
presente absoluto, que segundo o Zen, possibilita romper com o confinamento vivido
dentro da estrutura de tempo e espaço, e que tira do homem seu espírito livre e autoregulado, uma vez que a estrutura da consciência impõe à mente as regras do tempo e
do espaço e, conseqüentemente, uma estruturação e conceitualização lógica. As
contradições e provocações apresentadas pelos mestres, tanto nas frases ou histórias
aparentemente absurdas, como nas reações imprevisíveis e muitas vezes disparatadas,
visam exatamente uma profunda mudança psicológica na medida em que “rompem as
algemas do cativeiro do tempo”. Apresentam ao discípulo a descoberta de uma outra
vida além da já conhecida, centrada geralmente em ruminações sobre as frustrações do
passado, ou a expectativa angustiante dos acontecimentos futuros ainda por vir e que
também geram grande ansiedade, ou mesmo o risco do aprisionamento que mantém o
individuo dentro do território conhecido não permitindo o se lançar para o desconhecido
e para o mais além. Tanto a meditação como os koans e os mondos podem ser
compreendidos como facilitadores para a vivência do presente absoluto, práticas que
visam manter e desenvolver no discípulo o contato pleno com a experiência presente
acompanhada a cada instante pela consciência. Também é importante assinalar que
essas práticas não asseguram a conquista da iluminação, uma vez que para o Zen não
existem fórmulas prontas, elas são meios, facilitadores na busca deste fim; atingi-la
sempre dependerá das articulações e criações de cada pessoa.
81
O presente absoluto, Sokkon em japonês, que também poderia ser
compreendido como “este exato momento”, busca a experiência ou vivência pura e não
a freqüente mistura com alguma coisa a mais, resquícios de outros acontecimentos
vividos ou prospecções sobre os acontecimentos futuros, velhos conhecidos do nosso
viver. O ato puro, vivido em sua totalidade e “inteireza”, quando a mente pode estar
inteira nela mesma e não esfacelada pela tensão ou pré-ocupação, propicia à própria
mente um lugar de descanso, tranqüilidade e equilíbrio. Assim como na perspectiva
dialógica buberiana, o encontro é algo que acontece. Para o Zen, quando a mente do
homem está amadurecida para o satori este também acontece, “...ele tropeça com ele em
qualquer lugar [...] o leve toque de um fio no outro produz uma centelha, que resulta
numa explosão que sacudirá a terra” (Suzuki, 2002 p.116-117). Qualquer
acontecimento aparentemente comum, ”ordinário”, proporcionará esta vivência
“extraordinária”, um pôr-do-sol, um sorriso, uma cena de um filme, o retornará a você
mesmo ou, em outras palavras, reencontrará seu verdadeiro ser, a sua verdadeira
natureza. Parafraseando Buber 26 , o satori me encontra pela “graça” e não pela
insistência da minha busca, porém se não me colocar em marcha, a caminho, não
acontecerá o satori, (encontro). Podemos também perceber que todas as condições para
o satori encontram-se no ser humano, aguardando apenas o processo de maturação, de
despertar, que possibilite o seu desabrochar.
26
Buber, M.: Filósofo, educador e humanista, considerado por muitos autores como filósofo
existencialista ou filósofo da vida, sentiu o colapso do relacionamento na civilização moderna.
Desenvolveu os aspectos relacionais ou dialógicos das relações humanas, destacando duas motivações
básicas nessas relações humanas: o Eu-Tu e o Eu-Isso: se eu estou me relacionando com o outro como
pessoa , atento à sua alteridade, ou se eu o estou tratando como um fim para meus objetivos, em outras
palavras se estou coisificando o outro. Este trabalho foi desenvolvido em seu livro Eu-Tu, Buber é um dos
autores muito citado pelos GT, na busca da fundamentação existencial da abordagem.
82
Nas palavras de Watts (2000, p. 94), “[...] o satori é a compreensão de
nossa própria e mais íntima natureza”, que possibilita estar no mundo e percebê-lo
como ele realmente é. Esta possibilidade implica “largar o ponto de apoio”, que
rotineiramente fomos habituados a construir e, do qual normalmente temos muita
dificuldade em nos desprender, uma vez que buscamos uma espécie de sustentação e
garantia em alguns conceitos e constructos de como o “mundo é, ou como ele
funciona”, sem percebermos que estas mesmas definições e explicações acabam nos
aprisionando em nosso modo de existir; restrito, impeditivo e muitas vezes limitador.
Toda busca do Zen caminha exatamente no rompimento destas estruturas, destes pontos
de apoio que reduzem o viver pleno em especulações sobre o viver, ou a regras sobre o
viver, e que acabam por confundir o “viver pleno” com as especulações e conjecturas
sobre o mesmo. Este desprendimento, ou ruptura, com os pontos de apoio, visa permitir
aceitar a vida como ela é, fluida, livre, espontânea, ilimitada, sempre aberta ao
imprevisível, ao novo e, portanto, dinâmica, impermanente.
Suzuki (1977) observa que a busca do Zen não é uma experiência
fragmentada ou parcial mas, sim, uma experiência que envolve todo o ser e portanto,
busca uma transformação total. Nesta transformação, o “eu” aparentemente não sofre
uma alteração, os antigos órgãos dos sentidos continuam os mesmos, assim como o
intelecto e os sentimentos, como também continuam as antigas referências do mundo
onde o “eu” se coloca: o sol continua a brilhar, o rio continua a fluir. Uma conhecida
frase de um mestre Zen poderá ilustrar a questão:
[...] Antes de um homem conhecer o Zen, as montanhas são para ele
montanhas e as águas são águas. Quando ele começa aprender o Zen, as
83
montanhas deixam de ser montanhas e as águas deixam de ser águas.
Quando ele realiza o Zen, as montanhas voltam a ser montanhas e as
águas voltam a ser águas. (Suzuki apud Pinto, 1980, p.68).
Com esta transformação:
[...] Embora todos os acontecimentos à minha volta sejam familiares, o
‘Eu’ não é o mesmo ‘Eu’, nem o mundo é o mesmo mundo. Deu-se uma
transformação total em alguma parte; ela não pode ser chamada de uma
experiência. A experiência é psicológica, enquanto que a transformação
a que o Zen se refere não é meramente psicológica, ela pode ser
qualificada de metafísica ou existencial, o que é ser mais do que
psicológica. Não há dúvida alguma de que o Zen tem o seu aspecto
psicológico, mas ele vai além [...] (Suzuki, 1977, p. 35).
Compreendo que a intenção de Suzuki aqui é enfatizar que a mudança
que o Zen busca é da ordem do ontológico27 e não apenas do ôntico28.
27
Segundo Buarque de Holanda (1988, p. 467), ontológico: “ … trata do ser enquanto ser, do ser
concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres…” . Segundo
Safra (2004) “O ontológico aponta para o lugar a partir do qual a condição humana se abre para a
existência. ... Pela perspectiva heideggeriana o ontológico refere-se às condições sob as quais a vida nos
é dada, é o aspecto fundante da condição humana”. Safra(2004) “Espiritualidade e religiosidade na
clínica contemporânea” Trabalhado apresentado no V seminário Nacional de Psicologia e Senso
Religioso: Religião e Espiritualidade, ainda não publicado. PUC-CAMP, SP, 2004
28
Segundo SAFRA, em comunicação oral no Laboratório de Estudos da Transicionalidade-LET na PUCSP, 2003, ôntico está relacionado ao aspecto puramente psicológico do ser, ou seja, em termos de
representações, imagens, mundo interno e simbólico do sujeito, em outras palavras o “ôntico refere-se aos
acontecimentos no mundo em que o campo representacional é privilegiado”, Safra(2004)
“Espiritualidade e religiosidade na clínica contemporânea” Trabalhado apresentado no V Seminário
Nacional de Psicologia e Senso Religioso: Religião e Espiritualidade, ainda não publicado. PUC-CAMP,
SP, 2004
84
Para finalizar esta trajetória pelos campos da iluminação, recorro
novamente a Suzuki (2002) que com sua beleza e poesia pôde sintetizar este caminhar.
Há algo rejuvenescedor na posse do Zen. As flores da primavera parecem
mais belas, os regatos das montanhas mais frios e mais transparentes. A
revolução subjetiva que nos trouxe esse estado de coisas, não pode ser
chamada de anormal. Se a vida torna mais gozável, e seu âmbito se
expande para incluir o próprio universo, tem de haver algo pelo qual
valha a pena lutar. (Suzuki, 2002, p.122).
3.3
Aproximações e distanciamentos
A investigação destes conceitos revela que estas propostas acenam para
uma confiança no ser humano e é dentro desta perspectiva que elas se desenvolvem,
enfatizando a liberdade do ser humano, sua responsabilidade diante de sua existência,
sua capacidade de escolha, seu poder frente a si mesmo e a sua própria existência, sua
capacidade de expansão da consciência, sua busca incessante rumo à transcendência,
aqui entendida como o movimento humano natural de ir mais além de si mesmo. Enfim,
sua capacidade de destinar sua própria existência. Tais propostas carregam pois todas
estas afinidades em sua visão de homem. As matrizes destes conceitos revelam uma
crença no potencial humano, em sua capacidade de integração e de desenvolvimento.
Na perspectiva budista a liberdade não é outorgada, mas cultivada, isto é, ela
necessariamente independe das condições ou do ambiente em que o indivíduo se
encontra. Há no Budismo uma ênfase na capacidade do ser humano lidar com as
adversidades, e isto é possível a partir do momento em que o homem conhece e aprende
85
a lidar com seus próprios sentimentos, ou seja, ao lidar com a raiva, com a inveja, com o
orgulho, com o desespero, com a angústia. A transformação destes sentimentos
instrumentaliza o indivíduo a lidar com qualquer acontecimento do cotidiano. Estamos
aqui diante de pessoas mais fortalecidas, firmes, capazes de residir no aqui e agora e
não absorvidas pelo passado ou pelo futuro. Pessoas mais livres, capazes de lidar
melhor com qualquer situação independentemente das circunstâncias. (Hanh, 2004).
Para a GT a noção de liberdade está muito próxima da perspectiva
budista. O homem não escolhe o local de seu nascimento mas, uma vez lançado, cabe a
ele construir seu próprio projeto existencial dentro das limitações do meio em que está
inserido. O homem portanto sempre terá uma liberdade de escolha e de ação dentro
deste campo. A liberdade pode ser compreendida como a capacidade do homem de criar
dentro do possível. No entanto, também podemos perceber, com relação à própria
liberdade, um diferencial entre estas duas perspectivas. A visão de angústia estará
definindo este diferencial. Para a GT, em sua perspectiva existencial, a angústia é
inerente à condição humana, uma vez que o ser humano é abertura, e diante desta
abertura o homem não tem condições de realizar todas suas potencialidades, nem tem
garantias frente a suas escolhas. Sua trajetória estará sempre marcada pela angústia que,
poderíamos assim dizer, é a marca da precariedade da própria existência humana, é a
vivência da angústia que desvela ao homem suas possibilidades, colocando-o em
contato com o nada, com o não-ser, com aquilo que ainda não é, mas que no entanto
poderá ou não ser. Poderíamos pensar que este nada é um “vazio fértil, cheio de
possibilidades”, noção que Perls, emprestou da filosofia oriental. A angústia, na
perspectiva existencial, não pode ser superada pelo homem, mas sim sustentada por ele.
86
Portanto, em última instância, o homem pode ir para a morte sem medo, mas não sem
angústia, uma vez que ela é a própria possibilidade da impossibilidade.
Para o Budismo, o ser humano também é abertura e o sofrimento assim
como a angústia fazem parte da condição humana, tornando-se oportunidades para o
auto-conhecimento e para a transcendência humana. No entanto, o Budismo, com a
supressão dos desejos e o desapego do “eu”, acena para a superação do sofrimento e
conseqüentemente da própria angústia, e a iluminação possibilita esta superação. Dentro
desta perspectiva, ela pode sim ser superada.
O Zen, assim como a GT, enfatiza a transformação existencial do ser
humano rumo ao desabrochar de sua “própria natureza” não só privilegiando os
aspectos relacionais do ser humano mas enfatizando o fundamento relacional da
existência: a GT, pela importância dada à noção do entre, dialógico29, ou relacional
proposta por Buber (1979); e no Zen, pela noção de inter-ser ou interdependência30. Ao
enfatizar este aspecto dialógico ou relacional da existência humana, Buber (1979)
assinala que a característica fundante do ser humano é sua natureza inerentemente
relacional, nesta vertente o homem só pode ser, com os outros. Assim, o que todo ser
humano anseia é um encontro autêntico, verdadeiro e genuíno com o outro humano, no
qual reconheço e sou reconhecido pela humanidade do outro. Este é o ‘entre’, “o
verdadeiro lugar e o berço do que acontece entre os homens” (Buber apud Hycner e
Jacobs, 1997, p. 29).
29
Dialógico ou entre: “ não se refere ao ‘discurso’ como tal, mas ao fato de que a existência humana, em
seu nível mais fundamental, é inerentemente relacional” (Hycner, 1995, p. 22). Este diálogo acontece
através da vivência de duas possibilidades de relações: o EU-TU e EU-ISSO, duas atitudes fundamentais
do ser humano para relacionar-se com os outros e com o mundo.
30
Inter-ser ou interdependência: “Ser mutuamente.. [...] do todo contido no um e do um contido no todo”
(Hanh, 2002, p.115). “Nós não somos, nós inter-somos. Todas as coisas co-existem.. [...] “inter-são”.
Nós não podemos ser apenas nós mesmos; nós temos de interser com todas as demais coisas” . (Hanh,
2000, p.16, 17).
87
No Zen iremos observar esta mesma idéia, na medida em que ele não
apenas reconhecerá esta interdependência humana e sua natureza relacional como
também irá ampliá-la, acrescentando que o homem, além de ser com os outros homens,
necessita “inter-ser” com todas as demais “coisas”, “numa folha de papel podemos ver
o todo: a nuvem, a floresta o lenhador. Eu sou; portanto, você é. Você é; portanto eu
sou.” (Hanh, 2002, p.116). Há aqui uma perspectiva ainda mais abrangente que não
apenas inclui o “outro” mas todos os “outros”, a natureza propriamente dita, poderíamos
dizer numa perspectiva mais ecológica.
É clara à ênfase que o Budismo dá ao binômio homem-meio. Muito
embora em alguns momentos aparentemente a ênfase esteja no homem, o
aprofundamento deste estudo permite perceber que a ênfase está na totalidade homemmeio. Um bom exemplo disto está na idéia do “não agir”, wu wei para o Taoísmo, tão
bem absorvida pelo Zen Budismo, e que preconiza que a capacidade de transformação
não se encontra apenas nas ações do homem, mas também em suas não-ações, ou seja,
muitas vezes a transformação só ocorrerá se o homem permitir a ação do universo, não
relutando e não resistindo a esta ação. Para que a ação e a transformação possam ocorrer
será preciso o “não agir” humano, a ação pela não-ação (Borel, 1997). A ênfase aqui é a
ação consonante com a própria vida, que não é levada adiante independente do “céu e
da terra”, e nem em conflito com o todo, mas sim em completa harmonia com o todo.
Explicando melhor, para o Zen a compreensão da vida só pode se dar uma vez que o
homem consiga conviver, aceitar e lidar com seus paradoxos, sem buscar explicá-los
por um caminho racional. Permitiria assim a inclusão do meio, do universo, como coparticipantes ativos nos processo de transformação do próprio homem, reconhecendo e
aceitando a importância de sua harmonia e equilíbrio nestes processos, com a fluidez
88
inerente ao movimento natural da própria vida. Para o Zen, esta compreensão se dá na
relação e na inter-ação do homem e o meio, no cotidiano, na medida em que tudo isto é
vivido concretamente. Para a GT, o binômio homem-meio também é visto de uma
forma dialética, na qual os dois estarão em mútuo processo de transformação e
constituição, ou seja, o meio também modifica o homem.
Na GT, acreditamos na auto-regulação organísmica, ou seja, o ser
humano tem uma tendência natural à auto-regulação, à busca de equilíbrio e integração,
o que permitirá ao individuo agir de forma criativa, crítica e autônoma em relação ao
meio, abrindo espaço para o único, o singular e para a autenticidade nos processos de
ajustamento homem-meio. No Zen, o caminho do auto-conhecimento e da iluminação
poderia conduzir o homem a despertar também sua singularidade, sua autenticidade, e
liberar o devir, pela compaixão, pela simplicidade e pela aceitação do fluxo constante da
vida, do não-apego ao “próprio eu”. Neste fluxo nada permanece, nem o “próprio eu”, o
que possibilita uma naturalidade e maleabilidade frente à vida; processo compreendido
como uma auto-regulação e uma crença nesta tendência rumo ao equilíbrio.
“A quebra dos pontos de apoio”, que o Zen visa, pode ser compreendida
como a restauração dos processos de cristalização na GT. No Zen, estes pontos de apoio
podem revelar futuros impedimentos e restrições ao existir fluido do humano. Na GT,
eles seriam correspondentes ao próprio processo de cristalização, que estaria estagnando
o processo maturacional do ser humano. No Zen, eles estariam a serviço de uma
tentativa de busca de sustentação, segurança e permanência frente à impermanência do
“eu” e de todos os fenômenos, em essência, impermanência que permeia todo existir e
que nós relutamos em aceitar. Na GT, o processo de cristalização e fixação de figuras
89
ou gestalten (neuroses) visam uma tentativa anacrônica de encontrar e manter um
equilíbrio entre o indivíduo e o meio ambiente, uma vez que nestas situações o meio e
toda fronteira ambiental são vividos como uma grande ameaça que pode fragmentar o
indivíduo.
É possível perceber tanto no Zen como na GT uma ênfase à simplicidade
do cotidiano, quase que uma reverência ao cotidiano, à singularidade de cada
experiência vivida. Para ambos é no inaparente do cotidiano, no ordinário mesmo de
nossas vivências aqui e agora que reluz o extraordinário. Para tanto vale ressaltar a
importância da presença e da inteireza nas situações vividas.
Para o Zen, a iluminação, o despertar, só pode ser encontrado “na vida
do mundo e não no afastamento do mundo”, ou seja, é no existir cotidiano com sua
fonte inesgotável de inspiração e provocação que a iluminação poderá acontecer. Para
GT, a relação terapêutica, a princípio, funciona como um espaço para a auto-descoberta
e para ampliar a capacidade relacional do cliente que paulatinamente estará
transportando toda esta descoberta e aprendizado para seu cotidiano.
Em suma, o aqui e agora remete a dois aspectos compartilhados pelo Zen
e pela GT: é no concreto da vida cotidiana que nós encontraremos a verdade tão
perseguida pelos seres humanos; é no momento presente que nós encontraremos a via
de acesso para a mudança, para a integração e para a iluminação.
Fromm (1970) faz do satori a seguinte leitura:
[...] É o estado em que a pessoa se acha completamente afinada com a
realidade fora e dentro de si mesma, o estado em que ela tem plena
90
percepção desta realidade e a apreende plenamente. ‘Ela’ tem percepção
da realidade – isto é, não o seu cérebro, nem qualquer outra parte de seu
organismo, mas ‘ela’, a pessoa toda. Tem percepção ‘dela’; não como de
um objeto colocado lá adiante, que se apreende com o pensamento, mas
‘dela’, da flor, do cão, do homem, em sua plena realidade. Aquêle que
desperta, se torna aberto e receptivo para o mundo, e pode tornar-se
aberto e receptivo, porque deixou de aferrar-se a si mesmo como a uma
coisa e, assim, se tornou vazio e pronto para receber. Ser iluminado
significa ‘o pleno despertar da personalidade total para a realidade’.
(Fromm in Suzuki, Fromm e De Martino, 1970, p. 134-135).
O satori como a awareness podem ser compreendidos como a totalidade
que se busca. Partem da possibilidade de um equilíbrio e sintonia entre o indivíduo e o
meio, da capacidade do ser humano se apropriar do seu processo de existir, e de integrar
seu aparato afetivo, sensoriomotor, cognitivo seus sonhos e projetos de uma forma
harmônica. Esse processo propicia o desabrochar de sua singularidade, re-significando a
coisificação e a inautenticidade, promovendo enfim abertura para o ser e o viver em
toda a sua plenitude.
Watts (2000, p. 94) destaca que o satori, “é a compreensão de nossa
própria e mais intima natureza”. A GT por meio da awareness, visa também
proporcionar ao cliente um melhor conhecimento de si, de sua “própria natureza”, o que
permite dispor melhor de seus recursos, em outras palavras, entrar em contato com seu
“sábio” interior. (Ribeiro, 1998) Podemos perceber que a proposta budista, e a proposta
da GT, reafirmam a crença na assim chamada “natureza humana”.
91
Ainda que suas concepções de “natureza humana” revelem proximidades,
seus horizontes desvelam distanciamentos em suas perspectivas. Percebemos que há
uma crença na “natureza humana” quando pensamos na GT porém, ela não apresenta
repertório fechado e definido para as possíveis facetas do humano, no entanto, podemos
falar de seu potencial criativo e realizador na busca pela integração: um ser que estará
constantemente construindo e reconstruindo sua própria existência, um ser aberto a
possibilidades em um constante vir a ser. Há portanto uma total confiança no potencial
integrador e no florescer deste alvo, natureza humana. Retomando a metáfora de
Cytrynowicz (l978), não definimos a planta que a semente carrega, embora acreditemos
na planta que habita a semente enquanto potencial a se desenvolver. Martins (1995) em
seu artigo mostra a possível existência de dois humanismos diversos, um valorizando o
homem, e seu ser no mundo, outro que valorizaria a idealização do homem, de sua
transcendência, ou de como deveria se dar o seu vir a ser. Particularmente acredito que
Perls e a comunidade gestáltica se apóiam nestas duas perspectivas, ora enfatizando
uma, ora outra, uma vez que tais perspectivas estariam colocando em sua visão de
homem uma espécie de continuum que vai de sua valorização até sua idealização (Pinto,
2004).
Para o Budismo, o alvo, natureza humana, parece encampar toda a
proposta da GT dando um salto além, e esta é a grande distinção entre as duas
perspectivas. Compreendo que o Budismo, com sua filosofia milenar, apresenta uma
continuidade para a perspectiva de homem da GT, por este continuum de
engrandecimento do homem que vai desde sua valorização até sua idealização,
definindo claramente este alvo por meio de uma crença bem fundamentada e definida,
portanto atingível, a respeito do fim último do homem. Para o Budismo só precisamos
92
despertar a natureza do nosso verdadeiro ser. Já somos Buda, portanto só precisamos
trazer isto à existência o que se dá com a iluminação, abertura que possibilita ao homem
um elevado estado de consciência na qual encontra a união com a realidade definitiva
do universo, que irá libertá-lo da roda do samsara31, do sofrimento que permeia toda
existência humana.
31
Samsara: O ciclo de nascimento, vida, sofrimento e morte que todo ser humano está fadado a atravessar
durante a própria existência, aspecto que no Zen-Budismo é pouco discutido.
93
CAPÍTULO IV: O SELF E O “EU”
Se um homem atravessar um rio
E um barco vazio colidir com sua própria embarcação,
Mesmo que seja um mal-humorado,
Não terá muita raiva.
Mas se vir um homem no outro barco,
Gritará que ele reme direito.
Se o outro não ouvir o grito, gritará de novo,
E mais, começando a xingar.
Tudo porque há alguém no barco. Se o barco estivesse vazio,
Não gritaria nem ficaria com raiva.
Se você conseguir esvaziar seu barco
Ao atravessar o rio do mundo,
Ninguém lhe porá obstáculos,
Ninguém procurará fazer-lhe mal.
Thomas Merton (1989)
4.1
O self para a GT
Perls, Hefferline e Goodman, denominam self como sendo
[...] o sistema de contatos em qualquer momento. Como tal, o ‘self’ é
flexivelmente variado, porque varia com as necessidades orgânicas
dominantes e os estímulos ambientais prementes; é o sistema de
respostas; [...] O ‘self’ é a fronteira-de-contato em funcionamento; sua
atividade é formar figuras e fundos”. (Perls, Hefferline e Goodman,
1997, p. 49)
94
Portanto, podemos considerar que para a GT o self sempre estará na
fronteira de contato, organismo-meio, fronteira que não exclui mas sim também inclui o
ambiente.
O self sempre estará onde quer que aconteça uma interação, ou seja, na
fronteira de contato. Ele estará reduzido e diminuído durante o sono, em situações mais
inertes ou mesmo em situações que se aproximam de uma resolução ou de um
equilíbrio; e extremamente ativo, quando estamos diante de uma situação problema que
exigirá criatividade ou que requeiram concentração como, por exemplo, ministrar uma
palestra. Esses autores apresentam uma imagem para ilustrar o que pretendem
demonstrar, na qual parafraseiam Aristóteles indicando que: “...quando se aperta o
polegar, o ‘self’ existe no polegar dolorido” (Idem, p.179). Esta idéia ilustra com
propriedade o fato do self, para a GT, ser o próprio processo de figura-fundo em
situações de contato ou a própria função de contato. No entanto, remete-nos a uma outra
questão: o self para a GT se encontra no corpo?
Pelo que foi até aqui apresentado, é possível perceber que o self na GT
não é uma instância intra-psíquica, uma entidade fechada, uma estrutura, ou mesmo um
núcleo pessoal ou essência encontrado dentro do organismo, mas, sim, interação,
contato na fronteira de contato. Uma outra imagem poderia ser trazida: uma partida de
tênis. Durante um jogo de tênis, o self do jogador transita momentaneamente entre a
bolinha de tênis e seu próprio corpo em posse da raquete, se verdadeiramente o jogador
estiver compenetrado no jogo. Esta ilustração revela um outro aspecto fundamental do
self dentro da perspectiva gestáltica: o self se constitui entre o organismo e meio, ele faz
parte do entre, o campo relacional, organismo-meio. Já podemos então responder parte
95
de nossa questão: nesta perspectiva, o self não está no corpo, restrito ao corpo, mas está
no entre, no campo organismo-meio. Ele se encontraria temporariamente neste espaço
criado pela interação eu-outro, espaço que inclui o corpo físico e também o meio. Ao
desenvolver a noção de subjetividade e sua relação com o self, complementaremos esta
resposta.
Segundo a visão de Perls, Hefferline e Goodman (1997), o sentido do self
não deve se limitar à propriocepção da individualidade, ele precisa transcender este
aspecto. Na verdade, ele precisa perceber o “campo” no qual o indivíduo está inserido
naquele momento. À medida que o self se torna mais auto-consciente desta totalidade,
ele não terá fronteiras rígidas. Ao pensar que é na fronteira de contato que o self
experimenta contato com o mundo, podemos concluir que é nesta fronteira que ele vive
seus conflitos. Assim, a abordagem postula que é função do self viver e administrar
conflitos, experienciar suas perdas, seus ganhos, e sempre transformar o que é dado. É a
partir da atividade mais elementar, “contatar o presente transiente concreto”, atividade
que envolve a totalidade de nossa existência, que experiencio no meio aspectos com os
quais me identifico ou dos quais me alieno, e que possibilita a transformação do meu
organismo e a mudança do meio (Perls, Hefferline e Goodaman, 1997, p.177).
Para Granzotto e Granzotto, estas trocas com o meio possibilitam
[...] a conservação de algumas formas de organização anteriores (junto
às quais me experimento como aquilo que permanece) e, por outro lado,
a destruição de formas antigas e assimilação de novas formas (o que
permite que eu me experimente como alguém integrado ao meio
ambiente). Trata-se, nesse sentido, da experiência de um ‘continuum’
96
que, entretanto, modifica-se a cada instante [...] (Granzotto e Granzotto,
2004).
É exatamente esta experiência que permite ao self sua vivência de coesão
e identidade.
O caráter dinâmico do self, sempre se atualizando e se completando na
fronteira de contato é assinalado por Perls; Hefferline e Goodman: “em situações de
contato, o ‘self’ é a força que forma a gestalt no campo; ou melhor, o ‘self’ é o
processo de figura/fundo em situações de contato” (Perls, Hefferline e Goodman, 1997,
p. 180).
Para Ginger e Ginger (1995) o self é um processo especificamente
pessoal e singular, que revela sua maneira peculiar e seu estilo pessoal de reagir num
dado momento e dentro de um dado campo. O self portanto, “não é seu ‘ser’, mas seu
‘ser no mundo’ – variável conforme as situações” (Ginger e Ginger, 1995, p. 126).
O fato de na GT concebermos o self muito mais como função e processo,
requer que o consideremos muito mais como um processo vivo, dinâmico. Para Yontef
(1998), esta conceitualização de self da GT apresenta uma perspectiva inovadora,
portanto contrária às psicologias que o definem como uma estrutura. Para este autor,
esta percepção reflete de certa forma uma herança do início da psicologia como ciência
e de uma epistemologia, e que acaba criando uma imposição da objetividade sobre a
subjetividade, questão também desenvolvida por Távora (2004). Compreendo que
Yontef busca enfatizar o viés reducionista desta visão mecanicista da psicologia e
conseqüentemente do conceito de self.
97
Ginger e Ginger (1995) referem que, para Latner “o ‘self’ é nossa
maneira particular de estarmos envolvidos em qualquer processo, nosso modo de
expressão individual em nosso contato com o meio [...] Ele é o agente de contato com o
presente, que permite nosso ajustamento criador”. Assim, para este autor, o terapeuta
sempre estará interessado na averiguação de um processo de campo, tendo como um dos
objetivos apreender o quanto o paciente consegue manter um sentido de self coeso ou
não. (Latner apud Ginger e Ginger, 1995, p. 127).
O self também tem o caráter integrador, uma vez que cabe ao sistema de
contatos integrar funções perceptivas e proprioceptivas, funções motoras e musculares,
necessidades orgânicas e psíquicas. Ele funciona como uma unidade sintética,
desempenhando o fundamental papel de achar, fazer e criar significados por meio dos
quais crescemos. Nas palavras de Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 49) ele “[...] é
o artista da vida”.
Ao abordar a questão do self e a temporalidade, estes autores mencionam
que “[...] é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma
leitura do funcionamento do self” (Idem, p.180). Portanto, na neurose, a inibição do self
revelaria uma incapacidade de conceber, conviver e aceitar a dinamicidade das situações
da vida como processo em constante mutação, acrescentando o fato de identificar e
alienar estes aspectos, que assim estancariam a fluidez, a maleabilidade e a própria
criatividade.
Perls, Hefferline e Goodman (1997) consideram três modos de
funcionamento do self ou operações básicas do self: o self na função “id”, na função
“eu” e na função “personalidade”.
98
O self na função “id” diz respeito às necessidades vitais, basicamente as
questões corporais; desta maneira esta função me informa se tenho sede, se estou
cansado ou se estou com sono. Esta função também responde pelos atos automáticos
como, por exemplo, andar, respirar ou mesmo fazer uma coisa enquanto penso em
outra. Poderíamos dizer que de certa forma meu “id” “age em mim” independente da
minha vontade.
O self na função “eu” tem um funcionamento muito mais ativo, de
deliberação e também de opção: é da própria responsabilidade do indivíduo intensificar
ou reduzir o contato com o meio, manipulando-o a partir da tomada de consciência de
suas necessidades, seus interesses e vontades. As perturbações desta função respondem
pelas chamadas “perdas das funções do ego”, comparadas com os mecanismos de
evitação ou com os mecanismos de defesa do eu.
Na função “personalidade” o self possibilita a auto-imagem permite que
a noção de self se sedimente, tornando-se uma identidade histórica, representada,
constituída, por meio dos atos simbólicos e a representação que o indivíduo faz de si
mesmo e que permite o reconhecimento e a responsabilidade pelo que sente ou pelo que
faz. Granzotto e Granzotto (2004) acrescentam que “...a personalidade é uma
generalidade virtual, formada a partir das ações, sobremodo lingüísticas, que o ‘self’
estabelece por meio do ego, No modo personalidade o ‘self’ identifica-se com o que o
ego fez, criou a partir do meio”. As relações interpessoais são destacadas por Perls,
Hefferline e Goodman (1997) ao considerarem, “a personalidade é o sistema de atitudes
adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos, que serve de
99
fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, se nos pedissem uma
explicação”. (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p.187).
Nestas três funções, o self pode aparecer de maneiras distintas conforme
as variações das situações e dos momentos vividos: tanto posso não me reconhecer em
um transbordar frente a um determinado acontecimento como, em outra situação, meu
self quase que se dissolve numa intensa confluência quando assisto a uma peça de teatro
emocionante, por exemplo.
Ao tratar destes três modos de funcionamento do self , a neurose poderia
ser compreendida por estes autores como uma perda da função “eu” ou da função
“personalidade”: nestas situações o indivíduo consegue apreender o mundo interior e
suas necessidades internas, função “id”, contudo as respostas do eu não são
satisfatórias, o ajustamento criativo não está de acordo com a real necessidade dentro de
uma hierarquia de necessidades. Estas respostas não atualizadas poderiam desencadear
o surgimento da neurose. A neurose desta maneira seria um conjunto de respostas
anacrônicas, na maioria das vezes cristalizadas em uma estrutura de caráter, ou em um
restrito modo de ser, que no geral revela comportamentos adquiridos em outros tempos
e outros lugares.Para ilustrar estes aspectos recorro a uma vinheta clínica:
Clara é uma mulher de cinqüenta anos, divorciada. Em terapia há mais de
três anos, trazendo em sua história períodos de desorganização emocional, vem
atualmente conquistando uma maior interioridade e auto-suporte, o que tem permitido
um melhor contato com seu cotidiano. Consegue posicionar-se de forma mais aberta,
menos persecutória em seu trabalho e em suas relações interpessoais, enfim em seu
meio, ao mesmo tempo que está conseguindo se apropriar de seu corpo, que tempos
100
atrás quase não era percebido. Tem se cuidado melhor, descobriu uma maior vaidade e
tem vivenciado alguns processos de psicossomatização que em sua maioria têm sido
comemorados por indicarem o desenvolvimento da corporeidade.
Na sessão que pretendo relatar, a cliente conta que está triste, pois o
namorado que conhecera há mais ou menos três meses resolvera terminar o namoro.
Clara, que constantemente reclama de sua solidão, sente-se um pouco surpresa diante do
fato de estar triste mas conseguindo caminhar normalmente em seu cotidiano. Mostro
que este aspecto parece revelar o quanto ela está suportando melhor as “coisas”,
conseguindo viver ambas as facetas desta mesma situação: fica triste diante de uma
perda, mas não é tomada pela mesma. Consegue suportar e aceitar este fato e ao mesmo
tempo tocar sua vida e suas atividades.
Demonstra uma satisfação ao perceber o quanto está conseguindo se
relacionar melhor em vários âmbitos de sua vida. Durante sua fala, percebo uma
modificação em sua fisionomia, que não consigo decodificar, a seguir aparentemente
um ar maroto se instala em sua face. Comento minha impressão e indago se ela se dera
conta disto. Relata que enquanto estava verbalizando as mudanças em sua vida e eu lhe
ofereci uma bala, sentiu que seu dedo esbarrou no meu. Nesta situação sentiu meu corpo
e também minha presença, não como uma situação erótica, mas como uma percepção de
meu corpo através do toque, o que normalmente não conseguia. Lembrou que até pouco
tempo só conseguia sentir e perceber o outro quando “transava”, e acrescentou que foi
bom perceber esta sensação.
Menciono que ela está muito mais sintonizada com seu corpo e com o
meio, conseguindo de fato acompanhar suas experiências no momento vivido, apreender
101
sutilezas que agora não passam despercebidas, o que nem sempre acontecia. Neste caso,
ela está mais inteira, mantém melhor contato nos atendimentos, percebe e “sente” a
minha presença.
A situação apresentada por Clara neste encontro revela a ampliação de
seu processo de percepção e conscientização em sua vida, o que também aparece no
atendimento terapêutico. Há um aumento de sua capacidade de contato, a partir do
desenvolvimento da interioridade, de seu auto-suporte, que lhe permite conter as
sensações e sentimentos em suas vivências bem como da apropriação e expansão da
corporeidade.
Sabemos que a plasticidade e a permeabilidade do self se revela na
fluidez natural do ciclo de contato, com suas emoções, sensações, pensamentos,
sentimentos e sua alternância incessante de contatos e retrações. O organismo mantémse em movimento contínuo em suas interações com o meio, através do ciclo natural de
formação e destruição de figuras, demonstrando assim um comportamento saudável,
dentro da perspectiva gestáltica.
A situação apresentada mostra que na clínica estaremos interessados em
acompanhar as interrupções do ciclo de contato e os momentos em que esta alternância
é perturbada, uma vez que as interrupções podem revelar a perda da espontaneidade, da
maleabilidade e permeabilidade do self. No caso de Clara, sua história de vida, com
inúmeras situações de impedimento, cercearam seu processo maturacional deixando
várias lacunas, com repercussões negativas nos contatos e em sua capacidade relacional,
em sua disponibilidade no processo de ajustamento criativo na fronteira de contato. As
duas situações apresentadas nesta sessão, tanto o suportar melhor a frustração e o
102
sofrimento como a ampliação da consciência e percepção no contato, revelam
recuperação e expansão no processo de interação self-meio, pelo restabelecimento do
fluxo natural na formação figura-fundo.Uma maior capacidade de contato possibilitou
maior plasticidade em suas interações.
Távora (2004) assinala a riqueza e a criatividade da GT ao estabelecer
esta concepção de self. No entanto, apresenta alguns aspectos que revelam pontos
polêmicos dentro da construção teórica da GT: um deles, segundo a autora, mostraria
certa ambivalência dentro do próprio corpo teórico e prático da abordagem que, em
alguns momentos, enfatiza o aspecto processual da subjetividade e conseqüentemente
da compreensão e definição do self entre outros conceitos. E em outros momentos,
revela um percurso quase oposto a este, acompanhar outras teorias e práticas
psicológicas em sua maneira de estruturar metodologia e conceitos. No caso do conceito
de self, por exemplo, lhe seria atribuída uma compreensão estrutural. Távora ressalta
que dentro dos próprios textos de Perls esta ambivalência ou dicotomia já aparecia,
como em alguns momentos em que a conflituosa relação organismo-meio é conduzida
de uma maneira dicotômica (Perls, 1979). Outros autores já haviam observado esta
questão, Loffredo (1994), parte de uma experiência pessoal para assinalar este mesmo
ponto, uma ambivalência dentro do corpo teórico da GT, e a partir daí desenvolve seu
ensaio. Tellegen (1984), uma das pioneiras na apresentação, na divulgação e no estudo
da GT no Brasil, analisa este aspecto em Gestalt e Grupos: “Embora Perls afirme
insistentemente que a interação organismo meio é física, biológica, psicológica e sóciocultural, a linguagem e os exemplos por ele usados freqüentemente se referem ao que é
biologicamente vital” (Tellegen, 1984, p. 39).
103
Outro ponto defendido por Távora (2004) diz respeito ao aspecto
incorpóreo encontrado na teoria do self. Conceber o self como processo de fronteira e ao
mesmo tempo como função ou processo de contato significa compreendê-lo como
funções ou mesmo efeitos em andamento32, abarcando todos os níveis de relações nos
múltiplos aspectos do contato entre o organismo e seu meio. Para ela, esta conceituação
pode ser vista como uma derivação do aspecto incorpóreo da própria subjetividade pois,
a mesma não está alojada em um espaço do mesmo modo que uma substância corpórea.
A subjetividade nesta perspectiva pode ser vista como o efeito de vários fatores
concorrentes extremamente complexos, entre eles o biológico, o familiar o social e
também de ligações e interações com a arte, a tecnologia, a literatura, a mídia e as
instituições. Segundo a autora, estas concepções vão além das concepções de MerleauPounty sobre existência corpórea ‘original’ e ‘corpo visível’, ao enfatizar os inúmeros
aspectos que um corpo é capaz de apresentar, as ligações que ele possibilita, suas
possibilidades de movimento, suas capacidades, seus afetos, seu envolvimento e ação
(Távora, 2004). Esta concepção surge como alternativa à concepção clássica que associa
a subjetividade a um lócus – um lugar no espaço – organismo físico. Nesta concepção
clássica, existiria uma falta de compreensão dos aspectos ligados à qualidade temporal e
incorpórea.
Távora (2004) menciona também que para muitos esta conceitualização
do self para a GT pode apresentar um aspecto ameaçador, na medida em que não
associamos o self à imagem histórica e reconhecível que o indivíduo faz dele mesmo,
ou mesmo à imagem da pessoa com quem interagimos fisicamente como sendo outro
self.
32
Grifo meu.
104
Penso que talvez este seja o paradoxo a ser vivido, uma vez que pode ser
também seu aspecto mais rico e estimulante. Para mim, assim como para a autora,
temos aqui sua principal qualidade: uma valiosa ferramenta teórica que destaca através
da lente gestáltica os processos, as características temporais e relacionais da
subjetividade humana.
Távora (2004) levanta três aspectos ou, méritos, que a teoria do self na
GT apresenta e que poderiam caracterizá-la ou mesmo defini-la para a abordagem:
Estabelece a distinção entre os conceitos de self e indivíduo - se a
awareness do self for definida em termos de outra pessoa numa situação
concreta, o self não deve ser situado ‘dentro’ da pessoa e não deve ter um
‘núcleo’ em um espaço determinado. (Távora, 2004 , p. 55).
Favorece a idéia de necessidade em vez da idéia de instinto – se tanto as
necessidades quanto as suas possíveis satisfações existem somente no
âmbito
do
processo
interativo,
segue
que
condição
para
o
desenvolvimento da vida psicológica é a própria contradição (dialética),
quer esteja entre os pólos humano e natureza, pessoa e mundo exterior,
sujeito e objeto, estrutura e processo, ou espaço e tempo. (Idem, p. 55).
Permite
a
compreensão
correta
do
tornar-se
como
conceito
essencialmente temporal (das werden, em alemão, ou le devenir, em
francês), como processo invisível, imprevisível e desconhecido. É por
meio da manipulação daquilo que oferece resistência no meio que o self
acaba por tornar-se negociado. O verdadeiro trabalho, ou descoberta, a
ser realizado é experimentado pela primeira vez e pode ser descoberto no
conflito. O self não sabe de antemão qual ajuste criativo é possível.
Devemos concluir, portanto, que se e quando algo que está nesse
105
processo torna-se conhecido, não ‘ se tornará’ mais - será algo já
processado33. (Idem p. 55).
4.2
O “eu” no Zen-Budismo
“Estudar o Budismo é estudar o ego. Estudar o ego é esquecer-se de si
mesmo. Esquecer-se de si mesmo significa ver o verdadeiro ego em todas as outras
coisas do mundo [...]”. (Dogen apud Silva e Homenko, 2002, p.237).
Antes de iniciarmos nossa investigação a respeito da noção de “eu” ou
“self” para o Budismo, lembremos que no Budismo não há uma divisão, ou mesmo uma
conceitualização, dos termos “eu”, “ego” ou self, tal como rotineiramente encontramos
na psicologia. Os termos “eu”, “ego” e self aparecem nos textos e são usados pelas
várias escolas do Budismo, entretanto na maioria das vezes surgem como sinônimos, e
será desta forma que eles estarão sendo usados e trabalhados neste capítulo.
Um outro aspecto fundamental é que em todo Budismo não existe uma
noção ou mesmo uma idéia de um “eu” permanente, como uma estrutura ou identidade.
A idéia de “eu” percebida como instância ou estrutura permanente é apontada como a
própria ilusão 34 frente à existência. Conforme já assinalado anteriormente, dentro da
concepção budista a ilusão e a ignorância são as grandes responsáveis pelo sofrimento,
sofrimento que leva ao adoecimento humano. Neste contexto o adoecimento pode ser
compreendido como fechamento ao porvir. Portanto, toda proposta budista visa escapar
33
Tradução minha.
O conceito de ilusão no Budismo, é oriundo do conceito de Maia do hinduismo. Nesse aspecto,
estaremos compreendendo-o como as verdades relativas da vida e do samsara, em que a verdade última
e/ou verdade absoluta está para além do manifestado. Para o Budismo, a cisão eu-outro, tempo-espaço,
entre outras, são as responsáveis pelo surgimento da ilusão.
34
106
da ilusão para assim podermos superar o sofrimento ou, dizendo de outra forma,
conquistar o sofrimento.
Foi possível perceber que os termos “eu” ou self não aparecem como as
descrições ou noções que encontramos na psicologia. Persiste então a pergunta: o que
vem a ser o “eu” ou self para o Budismo, e quais as possíveis afinidades com a
compreensão gestáltica?
Para desenvolver esta questão, precisaremos retomar a noção de
impermanência. No capítulo anterior, discutimos que a idéia da impermanência permeia
toda a concepção e filosofia budista. Para o Budismo, estamos diante do fato de que
nada se mantém, tudo o que existe em algum momento deixará de existir, nada
permanece, tudo na existência humana e no mundo é transitório. Podemos, portanto,
dizer que tudo é fluir, só existindo o devir. A noção de “eu”, parte deste mesmo
princípio, carregando estas mesmas características, ou seja, também o “eu” não se
mantém como uma estrutura, identidade ou um núcleo imutável. Para o Budismo, ele é
tão fugaz como tudo mais neste mundo.
O “eu”, segundo esta concepção, é visto como uma série ininterrupta de
processos mentais que estarão se alternando momento a momento, assim como os
processos físicos e a própria vida humana como um todo. A impermanência ou
transitoriedade que permeia a existência e o mundo permeia também o “eu” que, como
tudo que aí está, está fadado a decair. Desta forma, o “eu” é constituído de fatores
existenciais impessoais formando combinações que constantemente estarão se
transformando num eterno recombinar de configurações e transformações (Gaarder;
Hellern e Notaker, 2001). Podemos portanto concluir que o que aparenta ser um “eu”
107
nada mais é do que um agregado impessoal de fatores existenciais em processos que
aparecem e desaparecem. Segundo o dicionário budista Nyanatiloka, o “eu” é
compreendido como “processos de fenômenos físicos e mentais que continuamente
emergem e imediatamente desaparecem de novo”. (Hall e Lindzey, 1984, p. 118).
O “eu” nasce da mistura destes processos físicos e mentais:
O que parece ser eu é a soma total das partes do corpo, pensamentos,
sensações, desejos, lembranças etc. O único fio contínuo da mente é
Bhava, a continuidade da consciência através do tempo. Cada momento
sucessivo de nossa consciência é moldado pelo momento prévio e, por
sua vez, determinará o momento seguinte; é Bhava que liga um momento
da consciência ao outro. Podemos identificar o eu com suas atividades
psicológicas tais como nossos pensamentos, lembranças, ou percepções,
mas todos esses fenômenos são parte de um fluxo continuo. A
personalidade humana, diz o Abhidhama35, é como um rio que mantém
uma forma constante, parecendo uma identidade única, embora nem uma
única gota seja a mesma de um momento atrás. (Van Aung, apud Hall e
Lindzey, l984, p. 116).
Silva e Homenko (2002, p. 38) apresentam uma outra imagem para
ilustrar o processo de ilusão vivido quando condicionamos nossa mente à idéia de um
“eu” como uma identidade permanente: “É uma ilusão semelhante àquela que se obtém
fazendo girar rapidamente um carvão incandescente: temos a impressão de um círculo
luminoso, quando na realidade existe apenas um ponto luminoso em movimento”. Estas
35
Abhidharma, sânscrito, compilação de ensinamentos sobre a filosofia budista.
108
imagens são bastante ilustrativas na medida em que desconstróem a idéia do “eu”
percebido como uma estrutura ou identidade permanente, e revelam e enfatizam o
aspecto processual deste fenômeno, ou seja, estamos o tempo todo diante de um fluir
contínuo.
A atitude mental do esgrimista, também conhecida como estado de
Muga, ou seja, ausência da idéia de que “eu estou fazendo isto”, pode ser um recurso
interessante e que nos auxiliará a compreender um pouco melhor a noção do “eu” na
perspectiva Zen-Budista. Para os samurais, a consciência do “eu” deve estar
subordinada à concentração na tarefa realizada, a mente precisa seguir os movimentos
do adversário de uma maneira tal que a reposta aconteça de forma tão imediata que o
dualismo de “ataque e defesa” se torne uma só unidade. No Japão feudal, os samurais
freqüentemente visitavam os mestres Zen, com o intuito de reunirem forças da religião
para continuar sua trajetória, “ir direto para frente sem olhar para trás”. Nestes
encontros, reafirmavam os ensinamentos de que a vida e a morte nada mais eram que
aspectos de uma mesma existência, revelando que o “eu” podia ser esquecido nessa
unidade com a vida. O credo do samurai mostra a essência desta atitude de Muga:
Não tenho pais; fiz do céu e da terra os meus pais.
Não tenho poder divino; fiz da honestidade o meu poder.
Não tenho meios; fiz da submissão os meus meios.
Não tenho poder mágico; fiz da minha força interior a minha
magia.
Não tenho vida nem morte; fiz do eterno a minha vida e a
minha morte.
109
Não tenho corpo; fiz da minha força interior o meu corpo.
Não tenho olhos; fiz do relâmpago os meus olhos.
Não tenho ouvidos; fiz da sensibilidade os meus ouvidos.
Não tenho membros; fiz da velocidade os meus membros.
Não tenho desígnios; fiz da oportunidade o meu desígnio.
Não tenho milagres; fiz do Dharma o meu milagre.
Não tenho princípios; fiz da adaptabilidade a todas as coisas
os meus princípios.
Não tenho amigos; fiz da minha mente o meu amigo.
Não tenho inimigos; fiz da desatenção o meu inimigo.
Não tenho armadura; fiz da boa vontade e da justiça a minha
armadura.
Não tenho castelos; fiz da mente inamovível o meu castelo.
Não tenho espada; fiz do sono da mente a minha espada.
(in Watts, 2000, p. 145).
A noção da interdependência ou inter-ser é o elo que une todas as coisas,
ou o reconhecimento de que o “um” está contido no “todo” e o “todo” está contido no
“um” - nesta folha de papel podemos encontrar o sol, a chuva, o pinheiro e o lenhador
com seus dramas existenciais. Esta interdependência também é outro conceito que pode
nos auxiliar a compreender a idéia de um “não-eu” permanente, mas sim uma
totalidade.
110
Tudo que existe é sempre efeito de uma causa anterior e em breve se
tornará causa de um efeito posterior. A noção da temporalidade, dentro desta
perspectiva, também se estrutura de modo semelhante: o passado está inteiramente
contido no presente, condicionando-o, assim como o presente resume o passado e, em
potencial, também contém todo o futuro. É este conjunto que liga as diferentes fases de
um mesmo processo que, em sua fluição, possibilitará a noção de continuidade, a
criação da noção de identidade (Silva e Homenko, 2002). A crença num “eu”
permanente como sustentação do ser é uma mera ilusão. Em última instância podemos
afirmar que o que existe é o contínuo fluir. O constante processo de um vir-a-ser e as
chamadas identidades ou individualizações nada mais são do que momentos deste
processo.
Uma outra forma de compreender esta idéia é compreender o próprio eu
como uma realidade relativa, embora seja vivido como uma verdade absoluta. Para o
Budismo o grande erro é a divisão eu-outro e, quando isto acontece, nossa visão
egocêntrica estruturará o “eu sou” como mais importante do que o outro, o que acentua
o erro da mente dividida. Do suposto “eu sou”, como já descrito, nasce o “eu preciso”,
ou então, o “eu não quero”, que vêm a ser a mesma coisa. Para o Budismo é o amor e a
compaixão que reduzem o autocentrismo, enquanto existir um “eu” existirá o
sofrimento, a partir do momento em que não há mais “eu” não há mais sofrimento. Na
natureza absoluta não há “eu” e, portanto, não há desejo.
Pinto (1980), filósofo e monge zen-budista, destaca que o modo de
compreender o “eu” no Budismo é um dos pilares que possibilita a manutenção e a
111
sustentação de toda a filosofia e pensamento budista, uma vez que esta idéia permeia
todas as escolas, e mantém a fundamentação e o elo comum entre elas.
Neste artigo, o autor corrobora a compreensão de homem como um
processo de vir-a-ser, no qual, não existe uma natureza estática, “eu” (em sânscrito:
anatman), um substrato, ou mesmo um núcleo. O que há e simplesmente o fluir, idéia
que nos apresenta de uma forma poética:
Haveria o viver, o sentir, o pensar, o andar, mas não um sujeito
transcendental vivendo o viver, sentindo o sentir, pensando o pensar. Há
o agir, não há um agente. O agente suposto é uma ilusão criada
arbitrariamente, sem fundamento real. A ilusão do sujeito nasce do
apego, isto é, do anseio de escapar ao devir, de reter o fluxo, de evitar a
finitude. [...] Do suposto alguém em nós nasce o suposto algo no mundo.
Da constância deste suposto alguém nasce a constância do suposto algo.
Mas por detrás destas representações o fluir prossegue. A representação
pode ocultar o devir, mas não pode impedi-lo. (Pinto, 1980, p. 67).
Toda ênfase do Budismo com relação à questão do apego e seus
desdobramentos é fruto da expectativa humana de manter e preservar “as coisas”, do
desejo de “uma eterna permanência”. Esta expectativa e este desejo, na medida em que
não podem ser atendidos e mantidos em sua plenitude, levam à frustração, à dor e ao
sofrimento – “O apego carrega água num cesto de vime” – (Pinto, 1980, p. 67). Dentro
desta perspectiva, todas as representações serão fatalmente desmascaradas no devir.
Podemos então concluir que o samsara, a roda dos ciclos de nascimento, vida e morte, é
o constante movimento de construção dessas representações, que fatalmente serão
112
dissolvidas pela impermanência – “Se não acreditas, olha para setembro, olha para
outubro! As folhas caindo, caindo, a encher o rio e a montanha.” (Watts apud Pinto,
1980, p. 67).
O ensinamento do Buda Shakiamuni e de todo Budismo para este grande
impasse da existência humana é o desapego, a aceitação da impossibilidade de realizar e
manter todos os desejos e expectativas humanas. Um aspecto simples, normalmente
distorcido com relação ao existir e tudo o que a vida nos oferece, é a compreensão que o
Budismo nos apresenta, de que não podemos viver a vida em sua plenitude, uma vez
que não podemos desejar. A proposta budista, no entanto, é muita clara e simples,
podemos e devemos viver a vida e tudo que ela nos oferece, podemos saborear,
podemos usufruir, e fazer o melhor uso possível de todas “as coisas” enquanto elas
estiverem aí, disponíveis, e também aceitar o momento em que elas não mais existirem.
Este seria o reconhecimento e a aceitação do “eterno” fluir.
O desapego do próprio “eu”, aqui compreendido como entidade, com
seus desejos e expectativas, é um aspecto vital dentro desta proposta do desapego. Pelo
reconhecimento e aceitação da ilusão do “eu” possibilitaremos à consciência ser una
com o fluir dos fenômenos e assim ela poderá surgir e ressurgir a todo momento da nãoconsciência, do próprio vazio, da impermanência. Esta proposta encerra a questão do
devir, uma vez que com ela desaparece a questão do “eu”. “Se não há mais um alguém,
se só há devir, ninguém está ameaçado pela impermanência. Ninguém mais nasce nem
morre, ainda que haja o nascimento e a morte.” (Pinto, 1980, p. 68). Vejamos o que
nos diz o Visuddhimagga, um texto budista:
113
Apenas o sofrer existe, ninguém que sofra;
O ato existe, não quem o tenha feito;
Nirvana é, sem que ninguém o procure;
Há o Caminho, não quem o percorra. (Pinto, 1980, p. 68).
4.3
Aproximações e distanciamentos
Com relação à noção do “eu” para o Zen-Budismo e self para a GT,
apresentadas neste tópico, é possível perceber que elas mostram algumas semelhanças
em suas concepções. Compreendo que um dos aspectos centrais é o caráter dinâmico e
processual atribuído ao “eu” e ao self, uma vez que estes não são vistos como estruturas,
instâncias, com características fechadas ou mesmo com um núcleo pessoal ou essência
encontrada no indivíduo. Ambos reconhecem e enfatizam a fluidez, a maleabilidade e a
permeabilidade tanto do “eu” como do self. Para a GT é esta compreensão do self como
a função de “contatar o presente transiente concreto” (Perls, Hefferline e Goodman
1997, p.177) que permite o reconhecimento de sua característica intrínseca, ou seja, o
self como processo. Esta leitura é uma das especificidades da visão gestáltica. Por sua
vez, é esta característica do self que garante e mantém a fluidez no processo existencial,
criando assim espaço para que se manifestem a expressão das potencialidades humanas
e sua negociação com as possibilidades do meio, é esta interação que garantiria a
capacidade de criatividade no ajustamento do homem com o meio. No Zen, esta fluidez
também é ressaltada e é condição sine qua non para a possibilidade existencial humana.
É esta compreensão do “eu” como um processo contínuo que permitirá ao ser “fluir com
114
o rio da vida”, pois, para o Zen, o homem que consegue, assim como a água, se adaptar
a tudo, e ao mesmo tempo tudo ultrapassar, carrega a possibilidade de vida autêntica.
Um outro aspecto relevante diz respeito ao self como sistema de contatos
na GT e à noção do “eu” e interdependência no Budismo. Para a GT quando
descrevemos o self como “o sistema de contatos em qualquer momento. Como tal, o
self é flexivelmente variado, porque varia com as necessidades orgânicas dominantes e
os estímulos ambientais prementes” (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p. 49),
estamos afirmando sua plasticidade, sua capacidade de adaptação e de se apresentar
sempre de maneira distinta, dependendo da interação, entre necessidades dominantes do
organismo e disponibilidade dos aspectos ambientais. Portanto, na interação, o self não
se restringe ou se limita ao corpo, ele faz parte, ele é o próprio entre, o campo relacional
organismo-meio. Esta característica do self reafirma a plasticidade e permeabilidade que
lhe permitem fluir com os fenômenos vividos, podendo assim, estar de modo diferente a
cada experiência e transitar sempre neste entre, organismo-meio. Transitar no entre
possibilita o ajustamento criativo, abre espaço para o potencial criativo humano,
reassegura que homem só pode ser com, o que garante a fluidez inerente ao processo de
existir.
A noção de interdependência em todo o Budismo também enfatiza este
mesmo aspecto proposto pela GT, o “eu”, ou melhor, o “não-eu”, é o próprio entre, o
campo relacional organismo-meio. O homem só pode ser com todos os outros seres e
com tudo que habita o mundo mas ao mesmo tempo ele precisará se apresentar sempre
de maneira distinta, dependendo das combinações destas interações. No entanto, o
caminho proposto pelo Budismo distingue-se da proposta gestáltica ao enfatizar que é o
115
desapego do “eu” que garante a plasticidade no existir humano. Esta noção impõe ao
praticante desprender-se de si mesmo para estar e encontrar-se em todas as coisas do
mundo – assim quanto mais o indivíduo está desapegado de si mesmo, mais ele estará
inter-sendo, mais ele estará uno com o fluir dos fenômenos, seguindo o curso natural da
vida. Ao mesmo tempo, ele se descobrirá mais e aprenderá mais sobre a vida.
Para o Budismo, todo sofrimento humano é decorrência do processo de
ilusão do “eu” como estrutura, com identidade própria que estaria se mantendo. É
exatamente esta estrutura que rouba do ser a capacidade de fluir com a vida, instalando
o desejo de permanecer com as “coisas”. Um outro aspecto significativo é que esta
noção de “eu” também cria nos seres humanos o individualismo e o egocentrismo que,
para o Budismo, descaracterizariam a própria natureza humana. Nas palavras de Suzuki
(2002, p. 153) “De fato, vivemos todos sob os mantos de múltiplas ilusões e
artificialismos, que evidentemente nada têm em comum com nosso ser real mais
profundo”. Desapegar-se deste “eu”, reconhecer suas verdadeiras características, seu
caráter ilusório, é o caminho para acessar nosso ser mais profundo, às vezes também
chamado “o homem do caminho”. (Suzuki, Fromm e De Martino, 1970, p. 43).
Ainda sobre o individualismo e egoísmo, Suzuki, escreve:
O desejo de possuir é considerado pelo Budismo uma das piores paixões
que podem obcecar os seres humanos. O que causa, de fato, toda a
miséria do mundo é o impulso universal de aquisição. Quando o poder é
desejado, o forte sempre tiraniza o fraco. Quando a riqueza é cobiçada,
os ricos e os pobres estão sempre cruzando as espadas na mais amarga
das inimizades. (Suzuki, 2002, p. 145).
116
O desprendimento do “eu” somado ao reconhecimento do desejo, seu
traço egoísta e egocêntrico, e a consciência da impossibilidade de realizá-lo, uma vez
que não há objeto no mundo que possibilite a satisfação e realização definitiva do
próprio desejo, podem recolocar o homem em outro patamar, tanto frente aos outros
homens, como frente ao mundo e a si mesmo. Ao reconhecer e assumir o caráter
ilusório do “eu”, e de todo egocentrismo e egoísmo dele decorrente, estaríamos abertos
à experiência primordial da interdependência entre todos os seres, conseqüentemente a
uma nova maneira de viver e se de relacionar.
A visão budista apresenta a idéia e a crença de que somente diante da
perda do “eu” o ser primordial estará se revelando, ou seja, enquanto existir qualquer
traço de vontade, desejo, ou expectativa de interferir no fluxo natural das coisas e da
vida, o ser autêntico não se desvelará. Embora Perls e outros autores da GT não falem
da “perda do eu”, quando Perls enfatiza sua crença na natureza humana apresenta um
ponto de vista similar, uma vez que em sua proposição assinala a necessidade do
homem permitir o fluir de seu fluxo natural, não tentando impor a si mesmo um ritmo,
um tempo, ou mesmo um modo de ser que não lhe é peculiar. A teoria paradoxal da
mudança, discutida anteriormente, revela esta idéia - toda e qualquer mudança ocorrerá
a partir do reconhecimento e da aceitação daquilo que sou, e não da tentativa de me
tornar aquilo que não sou. Muito embora a GT não proponha a desestruturação do “eu”,
mas sim uma reestruturação a partir da maleabilidade e flexibilidade possíveis ao “eu”,
ela, assim como o Budismo, acena para o desabrochar natural do ser, quando este aceita
e não se opõe com o fluxo natural do próprio ser, sua condição existencial.
117
É neste desabrochar natural do ser, do qual GT e Zen sutilmente
compartilham, ponto de partida e movimento inicial comuns, que encontramos a
diferenciação e o afastamento em suas posições, pois os horizontes que descortinam
suas respectivas visões de homem e de mundo são distintas. A GT, quando fala deste
desabrochar, preconiza a espontaneidade, a criatividade e toda potência de ser do
humano. Nesta concepção da capacidade do homem ser formador de mundo e ao
mesmo tempo se formar com o mundo, não encontramos um alvo definido para este
desabrochar, ou seja, um alvo definido para a natureza humana. Todo o Budismo, fala
de abandono do “eu” para que assim possa se dar o desabrochar verdadeiro do ser,
refere-se à natureza búdica que habita todos os seres e à “vacuidade ou vazio” que
permeia todas as coisas. Sintetizando, poderíamos dizer que, para o Budismo, todos nós
somos Budas e que o aqui e agora é o nirvana; no entanto, só quem tem olhos para ver
consegue perceber isto (Watts, 2000). Nas palavras de Hui-Neng, o sexto patriarca do
Budismo na China: “A única diferença entre um Buda e uma pessoa comum é que um
percebe isso, ao passo que o outro não consegue” (Neng apud Watts, 2000, p. 57).
Podemos perceber que o desabrochar do ser, a natureza búdica, só será conquistada ou
despertada quando o homem conseguir ultrapassar todas as dicotomias como eu/outro,
tempo/espaço, atingindo a iluminação. Novamente o Zen e todo o Budismo têm um alvo
bem definido para a flecha natureza humana.
Outro ponto de diferenciação e afastamento nestas concepções se dá pelo
enfoque dado a identidade. Para a GT é possível e necessário pensar que o self
desenvolve uma auto-referência que lhe permite um senso de identidade. Este senso, de
unidade e coesão, é vital para estruturação do psiquismo e da própria personalidade
permitindo à pessoa seu processo de desenvolvimento e amadurecimento. O Zen, por
118
sua vez, não opera neste campo e não desenvolve uma compreensão ou leitura mais
específica destes aspectos do próprio processo de desenvolvimento e amadurecimento
do psiquismo, não salienta ou mesmo indica a importância de um senso de identidade
frente a esses processos.
A ênfase da GT recai nos aspectos processuais do self, seu aspecto
temporal, incorpóreo e processual, sua plasticidade e permeabilidade, reconhecendo
também que, juntamente com este processo, o self na função personalidade possibilita a
auto-imagem a auto-representação, auto-reconhecimento, e a incorporação dos aspectos
com os quais eu me identifico, possibilitando um senso de unidade, uma coesão da
noção de self. É ele que proporciona o senso de identidade histórica, constituída por
meio dos atos simbólicos, e da representação que o indivíduo faz de si mesmo e que
permite o reconhecimento e a responsabilidade pelo que escolhe, sente ou faz.
O Budismo novamente parece levar sua compreensão do “eu” à
radicalidade, uma vez que não há “eu”, o que existe são apenas processos de fenômenos
físicos e mentais, continuamente emergindo e imediatamente desaparecendo. Nestes
processos, o único fio contínuo é o fluxo da consciência através do tempo e nada mais.
Novamente podemos perceber que o Budismo, levou às últimas conseqüências parte do
que a GT formulou a respeito de sua noção de self. O Zen-Budismo, com relação à
noção do “eu”, aparentemente se desprende dos aspectos psicológicos e propõe um salto
direto à ontologia do ser. A GT, com relação ao self, ocupa-se dos aspectos
psicológicos, na busca da possibilidade de reconfigurá-los, reconhecendo que sem a
realização deste trabalho seria praticamente impossível devolver ao homem a
reapropriação de sua própria existência, pela liberação de sua capacidade de
119
ajustamento criativo e conseqüente condição de criar o possível. Podemos pensar que
para a GT a liberação da ontologia pessoal só acontecerá após cuidarmos dos aspectos
ônticos.
120
CAPÍTULO V: O AQUI E AGORA E A TEMPORALIDADE
O mestre Dôgen dizia: “A ameixeira desabrocha a primavera”.
Não disse “no início da primavera”. O desabrochar da
ameixeira é a própria primavera. Compreendendo isso,
percebemos que “não existe nenhum lugar que não seja a
primavera”.
Rôshi – Mestra Zen (2003)
5.1
O aqui e agora na GT
O que vem a ser o aqui e agora na GT? Para iniciarmos esta investigação
é necessário retornar à criação da própria GT, na tentativa de compreender melhor o
campo que contextualiza esta questão.
Em Ego, Fome e Agressão, Perls (2002) dedica na primeira parte do
livro, “Holismo e Psicanálise”, três capítulos a respeito a questão do tempo. O primeiro
é trata do tempo, enfatizando o presente; o segundo do passado e do futuro e o terceiro
do passado e presente. O lançamento do livro deu-se em 1942, portanto quando Perls
era um psicanalista que buscava novas perspectivas que contribuíssem para a
Psicanálise. E mais que isso, encontraremos o autor dando seus primeiros passos ou
lançando as idéias embrionárias da nova abordagem, a GT. Neste trabalho, Perls põe em
discussão o enfoque e o método psicanalítico frente à questão da temporalidade, à
importância que dá à necessidade do retorno ao passado para a compreensão do sujeito e
do próprio trabalho analítico. Perls contesta esta idéia argumentando que este retorno
121
pode muitas vezes se tornar prejudicial ao desenvolvimento do próprio indivíduo. Ele
apresenta o esboço de suas novas concepções como a centralidade no presente.
O centro temporal de nós mesmos como eventos espaço-tempo humanos
conscientes é o presente. Não há outra realidade a não ser o presente.
Nosso desejo de reter mais do passado ou de antecipar o futuro poderia
encobrir completamente este senso de realidade. [...] qualquer renúncia
do presente como centro de equilíbrio – como a alavanca de nossa vida –
deve levar a uma personalidade desequilibrada. [...] O que quer que
experienciemos ali, experenciamos no presente. Essa deve ser a base
para toda tentativa de ‘reorganização organísmica’. (Perls, 2002, p.146147).
Neste capítulo, o autor também já respondia à questão que mais tarde
despertou grande celeuma a respeito da importância que a GT dá ao passado ou ao fato
dos gestaltistas não considerarem o passado. Perls afirma que não nega que tudo sempre
terá um ponto de origem no passado, tendendo a um desenvolvimento posterior. O que
pretende demonstrar é que o passado e futuro se apóiam continuamente no presente e,
portanto, devem estar sempre relacionados a ele (Perls, 2002). Em outras palavras, o
passado significativo é o passado que nos fala no presente, e não no tempo em que ele
se deu. O passado é importante agora, na forma como ele se apresenta neste momento.
Nesta perspectiva, o passado tem uma certa tarefa e, enquanto esta não for cumprida, ele
continuará se reapresentando. Enquanto a gestalt, a figura ou, situação inacabada não
fechar de modo satisfatório, ela continuará emergindo na busca de uma solução ou
desfecho.
122
Podemos perceber que Perls questiona o modelo explicativo enfatizado
pela psicanálise da época, na busca do “por quê”, da causa. E apresentando seu modelo
descritivo, um modelo fenomenológico, apoiado no “como”, “onde” e “quando”, Perls
enfatiza a concentração, que futuramente se tornaria o “continuum de awareness ou
presentificação”, em detrimento do método da associação livre.
Define sua concepção a respeito do presente da seguinte forma:
O presente é o ponto-zero em constante movimento dos opostos passado e
futuro. Uma personalidade adequadamente equilibrada leva em conta o
passado e o futuro sem abandonar o ponto-zero do presente, sem ver o
passado ou o futuro como realidades. (Perls, 2002, p. 151).
A partir desta concepção, desenvolve a noção de senso da realidade como
sendo a experiência deste presente, na verdade a percepção e a aceitação da
mutabilidade do presente, sem querer congelá-lo ou preservá-lo permanentemente, mas
sim aceitá-lo em sua fluidez, já que a experiência deste exato segundo não é mais a
mesma experiência de um segundo atrás. Por meio de sua metodologia inicial, “técnica
da concentração”, é possível desenvolver o senso de realidade pelo contato com o
presente e pela atenção com o que está a sua volta, ou mesmo pelo contato com o
devanear no tempo passado ou futuro.
Neste mesmo texto, Perls assinala que o futuro imediato está contido no
presente, assim como o passado também está contido no presente. Em trabalhos futuros,
Perls desenvolverá novos aspectos a respeito de sua compreensão sobre a importância
do momento presente para o existir humano e a importância destes aspectos nos
123
desdobramentos da prática psicoterápica, no entanto, o eixo central de seu pensamento,
de sua proposta teórica e prática, já está parcialmente estruturado em Ego, Fome e
Agressão.
Em seus trabalhos seguintes, Perls continua a desenvolver a questão do
presente que vai se delineando com mais clareza com o desenvolvimento do conceito do
aqui e agora que ganha maior relevo dentro da construção teórica da GT. O aqui e
agora se impõe em sua visão de homem, em sua teoria e em seu método. A partir de
então, “a centralidade no presente”, que se desdobra no aqui e agora, está estruturada
na teoria e na prática da GT.
Em seu terceiro livro Gestalt-Terapia Explicada, Perls (1977) dedica um
capítulo a sua proposta e compreensão sobre o aqui e agora, iniciando-o com uma
nítida influência do Zen, por um koan, “[...] e eu digo que não é possível viver no aqui
e no agora, e entretanto nada existe exceto o aqui e o agora[...]” (Perls, 1977, p. 65).
Retoma a questão do presente e do agora reafirmando que “[...]o agora não é uma
escala, mas sim o ponto de sustentação, o ponto zero, um nada, isto é o agora[...]”
(Idem, 66). Perls dá continuidade a sua proposta de Ego Fome e Agressão, critica a
leitura psicanalítica do passado e aos traumas, enfatiza a idéia de processo contínuo em
movimento. Desta forma o aqui e agora e o “como” tornam-se bases de sustentação
para a GT. O “como” permite perceber a estrutura de comportamento e a compreensão
do que está se passando agora e, conseqüentemente, conduz a uma compreensão mais
aprofundada do processo.
124
O como é tudo que necessitamos para entender como nós ou o mundo
funcionamos. O como nos dá perspectiva, orientação. O como mostra que
uma das leis básicas, a identidade da estrutura e da função, é válida. Se
modificarmos a estrutura, a função mudará. Se modificarmos a função, a
estrutura mudará. (Perls, 1977, p. 68).
O agora para Perls envolve tudo que existe, inclui portanto, o equilíbrio
entre o experenciar, o aqui e agora, o envolvimento com a situação, com o próprio
fenômeno e com a consciência.
No livro A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia, Perls
(1981) dedica mais um capítulo a este tema: A terapia aqui e agora, descrevendo as
bases teóricas e técnicas da GT. Para o autor, a GT é uma terapia mais experiencial que
meramente verbal ou interpretativa. Seu ponto de partida são os aspectos neuróticos da
personalidade com todos os seus impedimentos para um existir pleno e fluido; em
função das distorções criadas, o indivíduo neurótico tem um senso de identidade mal
formado, não conseguindo distinguir com clareza ele mesmo do seu meio ambiente. Sua
auto-suficiência é falha e inadequada, reverberando também em falhas no processo de
homeostase. Na maioria das vezes, questões inacabadas do passado estarão perturbando
sua capacidade de estar plenamente no presente. Para Perls (1981, p. 75), o neurótico
“[...]tem um problema contínuo, aqui e agora, no presente[...]”, ou seja, para Perls e
para a GT o ponto nodal desta questão é a impossibilidade de viver no presente. Todo
desvio para o passado ou para o futuro revela a impossibilidade de lidar ou mesmo de
ficar no presente, podendo também significar uma fixação e um aprisionamento em uma
dessas esferas.
125
Esta compreensão teórica possibilita um método de trabalho que se
estrutura na centralidade no presente, continuum de awareness ou presentificação. Em
síntese, podemos dizer que o objetivo da psicoterapia gestáltica é dar ao indivíduo
instrumentos para que possa resolver seus problemas atuais e quaisquer outros que
venha a ter. Percebemos então que a centralidade no presente é fundamentação teórica,
método de trabalho e estratégia técnica durante o processo. Dizendo de outra forma, e
parafraseando Hycner (1995) a “abordagem global”, o “processo” e o “objetivo”
precisam estar assentados na “centralidade no presente”. Quando falo de “abordagem
global” compreendo a orientação pessoal e filosófica do terapeuta. Como “processo” a
própria interação ou relação entre terapeuta e cliente e seu método de trabalho centrado
no presente, e o “objetivo”, são compreendidos como resultado final da terapia, no caso,
a capacidade do cliente viver no presente. Para que isto ocorra, precisaremos atravessar
territórios como o do restabelecimento de si mesmo Pela integração das partes
dissociadas da personalidade, e da restauração da auto-estima rebaixada, entre outros.
Ao retomar a importância do momento presente, Polster e Polster (1979)
observam que as dimensões do passado e futuro, através do reconhecimento daquilo que
um dia foi e do que um dia será, formam um contorno psicológico, uma espécie de
contexto psicológico para a experiência que proporciona ao presente simbólico um
fundo sobre o qual ele pode existir. Mencionam que, ao mesmo tempo em que uma
certa preocupação com o passado ou com o futuro é central para o funcionamento
psicológico, o comportar-se como se estivéssemos realmente no passado ou no futuro
pode tornar-se um obstáculo para as possibilidades vivas da existência.
126
Para Loffredo (1994), é possível perceber a influência de Bergson na
obra de Perls. Observa que o conceito bergsoniano de durée, que “significa um ponto
fluindo, aqui-e-agora, um ponto fluindo na torrente do tempo, a torrente do tempo que
está avançando e no mesmo momento em que avança tem um horizonte de passado e de
futuro” (Loffredo, 1994, p. 52), nos ajuda na compreensão correta do aqui e agora para
a GT, uma vez que no aqui e agora simultaneamente estão alojados e co-participando a
totalidade do passado e a perspectiva do futuro. O aqui e agora deve ser entendido
então como um presente pleno no qual dimensões do passado e futuro se condensam.
Ribeiro (1985) compreende que o homem é um ser locado no tempo e
espaço, muito embora seu lugar neste tempo e espaço não esteja totalmente evidenciado.
Acrescenta que, sob um outro ângulo, o ser humano carrega um sentido atemporal e “aespacial”, uma vez que em sua natureza ele sempre buscará transcender os próprios
limites da temporalidade e da espacialidade. O homem é um ser que é capaz de se
refazer a cada instante, estará se refazendo à todo momento e como tal estará sempre
ocupado em se compreender como um ser do presente.
Com relação ao tempo, não podemos em GT pensar o passado e o futuro
como duas esferas de tempo distintas que estariam se encontrando numa espécie de
ponto zero chamado presente. Há uma distinção entre os dois tempos, o passado está aí,
atrás de nós; o futuro, está à nossa frente, por vir, ali adiante. No entanto, podemos
perceber que os dois têm uma importância e um sentido atual: passado e futuro estão
condensados num tempo presente. E o presente tem dimensões, ele pode conter toda
uma vida, ou ser árido, desértico, e aparentemente não conter nada. O passado é o que
se estende atrás de nós, porém apenas na medida em que um futuro permite que ali ele
127
se estenda. O futuro está à nossa frente, aí adiante, por vir, mas apenas na medida em
que ele é nutrido pelo passado. O presente é, então, o convite vindo do futuro para que
possamos conquistar o domínio dos tempos passados, assim como, a boa configuração
do passado se torna também um convite para ousarmos e nos lançarmos nos tempos
futuros.
5.2
O aqui e agora no Zen-Budismo
Para abarcarmos a noção de tempo dentro da perspectiva budista,
novamente iremos nos deparar com a originalidade do Zen, pois a compreensão
absoluta desta perspectiva só se dará quando atingirmos a iluminação ou satori. E só
atingiremos a iluminação quando conseguirmos romper com a estrutura do tempo à qual
nossa mente está condicionada. Portanto, temporalidade e iluminação estão imbricadas
em uma questão que precisa necessariamente ser vivida na tentativa de ser solucionada.
O satori aparece quando rompemos com a noção de tempo e espaço. O
tempo significa shabetsu, diferenciação e determinação, enquanto que a eternidade é
byodo, tudo que não é shabetsu. É exatamente no satori que a eternidade irrompe no
tempo, ou seja, quando byodo e shabetsu se interpenetram ou usando outra
terminologia, quando ocorre a interfusão do universal e do individual (Suzuki, 1977).
Também se costuma dizer que o satori tem lugar quando a consciência
percebe um estado de “pensamento único”, e este, por sua vez, seria a menor unidade
de tempo possível. Neste caso, o pensamento representaria um instante ou o tempo
128
reduzido a um ponto absoluto, um ponto sem qualquer durabilidade. Desta forma, o
“presente absoluto” é exatamente o tempo reduzido a este ponto sem nenhuma
durabilidade, às vezes também chamado de “eterno agora”. Suzuki (1977) enfatiza que
o “presente absoluto” do ponto de vista existencial não é uma mera abstração, muito
pelo contrário, ele é vivo e com muita criatividade. O satori então é a experiência, a
vivência do “pensamento único”, um ponto no tempo que não tem nem passado ou
futuro, ou seja, o ponto onde a eternidade irrompe o tempo. Muitos mosteiros e templos
trazem a seguinte inscrição que revela a concepção zen budista acerca da vida e da
temporalidade, e que procura lembrar os praticantes sobre a preciosidade de cada
momento:
O nascer e o morrer são um grave evento;
Como é transitória a vida!
Cada minuto tem que ser aproveitado,
O tempo não espera por ninguém. (Watts, 2000, p. 104)
Nesta perspectiva, o tempo ganharia seu verdadeiro significado quando
está fundido com a eternidade. A eternidade, para estar viva, precisa descer para a
ordem do tempo, pois só aí conseguirá realizar todas suas possibilidades. Já o tempo
abandonado a si mesmo perde seu campo de operação. Para o Zen, o tempo não existe
por ele mesmo, bem como a eternidade sem o tempo é impotente. É só na vivência real
da eternidade que a noção do tempo torna-se possível, para tanto é necessário que a
consciência esteja alerta “para o momento quando a eternidade levante seu pé para
pisar dentro do tempo” (Suzuki, 1977, p. 55) e assim alcance a mesma. Este é o
129
“presente absoluto ou o eterno agora” e, no presente absoluto, “ o tempo e o espaço
estão fundidos como um só, como um corpo de identidade própria” (Idem, p. 82-83).
Neste ponto absoluto do tempo não há futuro esperando à frente nem passado deixado
atrás, ele é exatamente este “aqui e agora”. Watts, nos oferece uma imagem que ilustra
perfeitamente esta idéia da fusão de tempo e espaço, “O início do universo é agora, pois
todas as coisas estão sendo criadas neste momento; e o fim do universo é agora, pois
todas as coisas estão desaparecendo neste momento”. (Watts, 2000, p. 61).
Para Suzuki (1996, p. 25-26) “[...] nós temos que existir no aqui e agora.
Este é o ponto chave. Você tem que estar de posse de seu corpo e mente. Tudo deve
existir no lugar certo e de maneira certa. Então não há problemas”. Para este autor,
este foi um dos motivos que levou Buda a não aceitar as religiões que existiam em sua
época, por não ter ficado satisfeito nem com suas respostas e nem com suas práticas.
Buda estava interessado no corpo e na mente, no aqui e agora, e não nos aspectos
metafísicos da existência. Quando conseguiu encontrar a si mesmo descobriu que a
natureza búdica está em tudo o que existe. E esta foi sua iluminação. Esta é uma das
chaves para compreensão e também para a prática do Budismo, existir no aqui e agora,
pois só assim poderemos verdadeiramente nos apropriar de nossa existência e
conseqüentemente dar passagem a nossa “verdadeira natureza”. Em outras palavras, a
natureza búdica e a verdade eterna estão se manifestando continuamente diante de nós,
aqui e agora, tanto em nossas ações como em nossos pensamentos, e na transitoriedade
dos fenômenos que estão fluindo diante de nós, o tempo todo. No entanto, só os que
possuem olhos para ver conseguem enxergar tudo isto (Watts, 2000). Vejamos uma
história Zen chamada “O Agora”, que nos apresenta exatamente esta perspectiva:
130
Um guerreiro japonês foi capturado pelos seus inimigos e jogado na
prisão. Naquela noite ele sentiu-se incapaz de dormir pois sabia que no
dia seguinte ele iria ser interrogado, torturado e executado. Então as
palavras de seu mestre Zen surgiram em sua mente: ‘O ‘amanhã’ não é
real. E uma ilusão. A única realidade é ‘agora’. O verdadeiro sofrimento
é viver ignorando este Dharma’. Em meio ao seu terror subitamente
compreendeu o sentido dessas palavras, ficou em paz e dormiu. (Contos
Zen, 2003 in www.dharmanet.com.br/zen)
Podemos concluir que cada instante, aqui e agora, ou todo o momento
que vivemos é a própria eternidade, que nada mais é que o próprio instante vivido. A
iluminação situa-se aí, neste ponto, e é só através da iluminação ou do satori que
poderemos perceber a eternidade no próprio instante e não como se ela se situasse em
uma seqüência de unidades de instantes que se estendessem em um número infinito.
Para o Zen, só dentro deste paradigma poderemos verdadeiramente ter
acesso à realidade última, ou à realidade-em-si-mesma, e realmente compreendê-la
como nós imediatamente a vivenciamos (Hanh, 2002). Quando estabelecemos a
realidade como costumeiramente fazemos no tempo e espaço, estamos percebendo as
coisas como representações ou como meras imagens, e assim nos afastamos ou mesmo
destruímos a possibilidade de acesso à realidade última ou absoluta. Para Suzuki, este é
o maior engano que temos cometido no entendimento da realidade.
No começo do despertar intelectual, pensávamos que tínhamos
conseguido um grande feito ao colocar a realidade dentro da estrutura
131
do tempo e do espaço. Nós nunca pensamos que isso estava preparando,
na verdade, uma tragédia espiritual. (Suzuki, 1977, p. 56)
Ainda, segundo Suzuki, a estrutura do tempo e espaço confina o homem
numa espécie de aprisionamento ao karma e à mente lógica, afastando-o do “presente
absoluto” e da possibilidade de ser um espírito livre e auto-regulado. Para ele, é a
consciência que, em um trabalho estrutural, vigoroso e tirânico, coloca a mente sob as
regras do tempo e espaço e, por sua vez, da conceituação lógica.
Toda prática Zen, com sua meditação, seus koans e mondos - suas
negações, contradições e paradoxos – visa romper com esta estrutura formal da
consciência que, pelo aprisionamento no tempo e no espaço, impede as vivências de
atos puros, uma vez que a mesma sempre estará carregada de alguma coisa a mais: seja
a expectativa do novo, do futuro, seja o receio da repetição do velho, do passado, o que
gera sempre muita tensão e desgaste desnecessário, não proporcionando ao homem um
lugar de descanso em si mesmo. Suzuki (1996) observa que a prática da meditação
zazen, possivelmente a mais conhecida do Zen, visa, ao mesmo tempo em que exercita,
a supressão da idéia de tempo e espaço. Quando se inicia a meditação há a idéia de um
recinto, de um espaço, e de um horário, de um tempo em que ela acontece. No entanto,
o que está se realizando é apenas um sentar-se, o praticante está cônscio da atividade do
universo. Envolve concentrar-se na respiração e acompanhar o fluxo das formações
mentais, abrindo-se para uma direção, e já no estante seguinte caminha em direção
oposta. Momento a momento, todos repetem este exercício. Durante esta prática não há
idéia de tempo e espaço, “tempo e espaço são um”. A prática favorece a compreensão
132
da unidade que permeia o ser e o universo, retirando a noção dualista de tempo e
espaço.
Para o Zen, nas palavras de Suzuki (1996, p. 29) “[...] tudo que se tem a
fazer é simplesmente executar as coisas tal como se apresentam. Faça alguma coisa!
Seja o que for, devemos fazê-lo, mesmo que se trate de um não-fazer. Devemos viver
neste momento”. Ao estabelecer este modo de vida podemos dissolver a confusão que
reside em nossa “mente limitada”, o que nos possibilita aperceber de nossa “grande
mente”. O meditar e seu exercício de concentração no respirar são recursos que
favorecem esta ampliação. A proposta Zen é devolver à mente a inteireza, a completude
nela mesma, propiciando ao ser um lugar de descanso, um lugar de equilíbrio e calma.
Em uma perspectiva espiritual, Suzuki (1977) relata que boa parte deste
caminho propõe um lugar último de repouso. O Zen, com sua clareza e lucidez, propõe
que o praticante se recolha em seu interior, um lugar no qual possa descansar tanto
consigo como com o mundo que rodeia. Na verdade ele propõe este descanso no próprio
interior.
5.3
Aproximações e distanciamentos
Para iniciar esta reflexão na busca de aproximações entre a compreensão
do aqui e agora para a GT e para o Zen-Budismo, trago uma vivência pessoal. A
situação aqui apresentada é a mais comum das situações vividas pelos pós-graduandos
em via de concluir as respectivas dissertações e teses. São exatamente nestas situações
ordinárias que podemos acessar o extraordinário, o feixe de luz que repentinamente
133
pode iluminar nossa escuridão. Envolvido por esta sensação de escuridão, de ao mesmo
tempo estar atravessando, e estar sendo atravessado por uma avalancha, que é estar
próximo da conclusão deste trabalho, com todas as expectativas, medos, dúvidas,
incertezas e receios que ele gera, em muitos momentos me surpreendi. E às vezes ainda
me surpreendo, caminhando na contramão das próprias idéias propostas pelo ZenBudismo e pela GT, e que, afinal, são as bases que escolhi para este trabalho. Em
muitos momentos me vi ansioso, angustiado, até desesperado para concluir a
dissertação. Comento com amigos que estou vivendo um período de abnegação, de total
dedicação mas que a liberdade chegará assim que tiver alcançado meu objetivo. Houve
momentos em que me vi deslocado no tempo, acreditando que lá, então, com o término
da dissertação, seria feliz, e que aqui e agora sou um prisioneiro desta situação e de
uma condição de sofrimento que me impedem de “ser feliz”. A angústia que envolveu
este percurso chegou a tal dimensão que, em determinado momento, tomado de irritação
e intolerância para comigo, para com os outros e para com meu próprio trabalho, recorri
a um retiro36 budista. Obviamente com algumas resistências iniciais, pois quando houve
a oportunidade e o convite, me sentia culpado por deixar de estudar e escrever para o
mestrado, durante um feriado prolongado de quatro dias. Por fim, consciente de estresse
e tensão e aconselhado por colegas que diziam “pode ser bom, você pode voltar melhor
e mais energizado e com maior clareza de idéias”, resolvi realizá-lo. Os dias de
convivência em comunidade, num espírito fraterno e acolhedor, com muitas práticas
meditativas e ensinamentos que, também abordaram a importância do “aqui e agora”,
foram a oportunidade de conseguir um distanciamento da própria situação do mestrado.
Pude então me dar conta do “como” estava vivendo toda esta experiência e de como eu
36
Retiro: Prática budista na qual por alguns dias os participantes se reúnem com um monge, com o
objetivo de praticar meditação e vivenciar alguns ensinamentos.
134
me estava colocando na mesma. O retiro resgatou uma das idéias centrais da
comunidade budista, fazer o melhor uso possível das coisas que nos são dadas e nada
perder do que a vida nos oferece.
Na verdade, o intelecto, a imaginação, e todas as outras disciplinas
mentais, bem como os objetos físicos que nos cercam, sem exceção do
nosso próprio corpo, nos são oferecidos para desabrochamento e
intensificação dos maiores poderes que possuímos latentes e não para a
gratificação dos desejos individuais [...] (Suzuki, 2002, p. 146).
Pude então perceber que não só minha angústia, medo do insucesso, mas
também meu desejo de obter sucesso e um certo brilho com a dissertação, estavam me
impedindo de usar a experiência que a vida me estava ofertando, no enfretamento das
dificuldades do dia-a-dia. Para a GT, também poderíamos compreender esta situação
por meio do pensamento diferencial, ou do pensar por polaridades. Tal enfoque revela a
co-participação de aspectos do pólo oposto ao que se está fixado, ou pólo emergente, no
caso, o quanto eu também vivenciava uma expectativa de sucesso na conclusão deste
trabalho. O retiro me alertou também, para a necessidade de ações sem mérito, realizar
o que precisa ser realizado, com um desprendimento tal que a ação se faça por si
mesma. Com certeza algo simples de se dizer, mas difícil de se praticar. Pude perceber o
quanto as expectativas em relação ao trabalho estavam me impedindo de lidar com as
coisas como elas se apresentavam. Ao ampliar da minha percepção e consciência dos
aspectos envolvidos, agora nos dois pólos, pude conduzir a situação de outra forma.
135
Retornei mais auto-centrado, e menos estressado, conseguindo perceber
que as angústias, medos, incertezas, e também uma certa fixação pela conclusão do
trabalho com um certo brilho, estavam destruindo exatamente o que há de mais rico.
Pude ainda perceber o processo vivido durante este percurso como oportunidade de me
acompanhar e de estar verdadeiramente presente durante esta trajetória. Pude perceber o
aqui e agora de cada instante vivido, a centralidade no presente tão ressaltada pela GT e
pelo Zen, com toda sua riqueza, dores e delícias do próprio caminhar. Pude perceber
nesta trajetória aspectos do meu funcionamento, do meu carregar no tom das cores nos
momentos de tensão e expectativa, do meu deslocamento para um futuro próximo diante
de uma situação de insegurança, com as dúvidas e medos da perda do controle. Pude
perceber na projeção do futuro a possibilidade ou a certeza de me encontrar livre de
todo este sofrimento. Esta percepção reforçou a importância de atravessar esta situação
e não saltá-la, “sentar” no meio do problema, como ressalta o Zen. Pude então
verdadeiramente me perceber no aqui e agora, reconhecendo meus momentos de
impotência e o quanto estes momentos me deslocavam para um futuro idealizado. No
entanto, esta antecipação também roubava meu auto-suporte, minha criatividade, minha
potencialidade e a capacidade de responder da melhor maneira possível ao que se
apresentava. Paradoxalmente, ao enfrentar e atravessar as dificuldades, limitações e
angústias, inerentes à situação de finalização da dissertação, as quais eu procurava
evitar, pude constatar que a questão que eu discutia em meu trabalho trazia em si a
própria resposta. O conflito possibilitou o aprendizado; o sofrimento, abertura para o
mais além, possibilidade de transcendência ou, como reza a tradição oriental, a crise
tornou-se oportunidade.
136
Esta vivência ilustra a importância do aqui e agora tanto para o Zen
como para a GT. Na verdade, os referenciais da GT e do Zen na leitura desta minha
vivência procuraram mostrar que para ambos o aqui e agora é a possibilidade de
aproximação, o portal de acesso ao universo humano, e ao mesmo tempo, através dele,
podemos realizar transformações psicológicas, existenciais ou espirituais.
Outro aspecto que aproxima a GT e o Zen é exatamente a busca pela
centralidade no presente. Ambos priorizam este aspecto – qualquer possibilidade de
apropriação da existência, de sua transformação e da própria transcendência humana só
pode se dar a partir deste paradigma. Zen e GT concordam a respeito da dificuldade do
seres humanos se instalarem no presente, enfatizam que esta é uma das maiores
dificuldades a serem enfrentadas, e propõem que a vida é aqui e agora e só tem sentido
quando vivida a partir desta perspectiva.
Para a GT o intuito da psicoterapia é dar ao cliente instrumentos para que
ele possa resolver seus problemas atuais e futuros, devolvendo-lhe sua inteireza, sua
potencialidade e capacidade de habitar melhor no presente, e assim viver de forma mais
consciente, no aqui e agora, de forma harmoniosa e integrada.
O Zen com sua prática, principalmente a meditação e a vivência do
cotidiano com inteireza e consciência, também visa desenvolver a mente do praticante, a
completude nela mesma, proporcionando ao ser um lugar de descanso, equilíbrio e
calma. Ou seja, tratar a si mesmo e ao mundo de uma forma mais reverencial pela
prática sobretudo da compaixão, sem qualquer necessidade de reconhecimento por parte
dos outros.
137
Uma criança está se afogando. Eu mergulho e salvo a criança. Isto é tudo
que tenho a fazer no caso. O que está feito, está feito. Ando para frente
sem olhar para trás e sem pensar mais no caso. Uma nuvem passa. O céu
é tão azul e amplo como sempre o foi. (Suzuki, 2002, p.155).
Continuum de awareness ou presentificação e a meditação, como já
assinalado, apresentam similaridades. As duas práticas visam resgatar no humano sua
potencialidade e se fundamentam na centralidade no presente, com alguns pressupostos
comuns. Ambas reconhecem a dificuldade de se viver no presente, utilizam métodos
com muitas afinidades, a fim de atingirem seus objetivos. No entanto, o horizonte de
suas visões de homem é distinto e a compreensão do aqui e agora reforça exatamente
esta diferença.
Para GT o aqui e agora é uma condensação de tempos, também
reconhecida pelo Zen que, no entanto, visa uma supressão do tempo, e este é seu maior
diferencial, em relação à GT. Explicando melhor, para a GT o aqui e agora deve ser
entendido como um presente pleno no qual simultaneamente co-participam a totalidade
do passado e a perspectiva do futuro. Esta perspectiva permite também perceber no ser
humano um sentido atemporal e “a-espacial”, uma vez que é de sua natureza sempre
buscar transcender os próprios limites da temporalidade e da espacialidade, perspectiva
que a afasta da proposta do Zen que busca, através da unificação de tempo e espaço e da
percepção da eternidade contida em cada instante vivido, a supressão ou a superação da
temporalidade. Para o Zen é fundamental a superação da temporalidade, como das
outras cisões ou dicotomias pois só assim, o homem atingirá a iluminação. Podemos
perceber que em relação à natureza humana, o Budismo e o Zen visam um alvo distinto,
138
como já assinalado. No entanto, a GT, embora afirme a potencialidade da natureza
humana e conseqüentemente a sua capacidade de se auto-destinar, ela não determina de
antemão o alvo deste destino. Para o Zen, embora a iluminação não deva ser perseguida
com apego, ela é o alvo, a direção a ser seguida. É através da superação de todas as
cisões, como a de tempo e espaço, que o homem atingirá a iluminação. Ao reconhecer
sua natureza búdica, consegue acessar a realidade última, tornando-se uno com o fluir
dos fenômenos, assim como “a água, que a tudo se adapta porque a tudo se submete”
(Herrigel, 2001, p. 37).
139
CONCLUSÕES
Como alguém pode impedir uma gota d’água de jamais secar?...
Atirando-a ao mar.
Samsara (2001)
O diálogo desenvolvido nesta dissertação entre conceitos da GT e do Zen
Budismo, permite ressaltar alguns aspectos mais significativos. Com relação ao
continuum de awareness e a meditação, é possível observar que eles fazem da tomada
de consciência e da concentração seu objeto de trabalho, dando enfaze à experiência
vivida centrada no presente, como um recurso para a superação do racionalismo, da
lógica formal e da necessidade de conceituação. Preserva assim a riqueza de cada
experiência no seu todo e o sabor do momento vivido no qual reluz o mistério, o
extraordinário.
Tanto a meditação Zen quanto o continuum de awareness da GT
favorecem uma visão interna que possibilita o emergir de aspectos da própria vida, do
próprio ser, e realizá-los da maneira a mais direta possível. Este foco na atenção ao
presente que ambos promovem tem um mesmo movimento que permite, através da
concentração e acompanhamento de cada vivência, a descoberta daquilo que sempre
140
esteve presente, mas até então não plenamente consciente e portanto, não
apropriado.Para as duas práticas não há a necessidade de uma busca externa mas
simplesmente possibilitar um maior contato com a situação, a experiência vivida. Nela
se desvelam o próprio ser, os processos de expansão da consciência e de transformação
humana.
Outro aspecto importante nestas duas propostas é a atitude que
fundamenta e sustenta suas práticas. Na GT, o continuum de awareness ou
presentificação possibilita a investigação da própria experiência, por meio de um olhar
ingênuo que suspende temporariamente seu saber, na tentativa de assim apreender o
vivido em sua essência e na busca de um sentido singular e peculiar para aquela pessoa.
Já na meditação, essa atitude aparece no do “olhar de principiante” que visa a
manutenção da mente vazia e aberta, que abandona o “conhecimento”, o domínio das
coisas que para o Zen, poderiam obstruir a capacidade de abertura e de receptividade
para o novo e para a construção de novos sentidos. É a atitude de principiante diante da
vida que possibilita a aprendizagem de fato. Estas idéias e atitudes, do Zen e da GT,
encontram correspondência na proposta da Fenomenologia quando esta sugere a
suspensão, o colocar entre parênteses valores e pré-concepções, suspendendo a crença
no mundo natural e olhando para os fenômenos com um olhar ingênuo. As práticas do
Zen e da GT preconizam a mesma postura frente à possibilidade de aproximação e
compreensão das experiências humanas e do processo de auto-conhecimento.
A meditação é compreendida como uma prática que possibilite um estado
de abertura necessária para apreender as sutilezas da vida que o “sonambulismo” do
cotidiano com seu véu não permite usufruir. Em outras palavras, propõe uma expansão
141
da consciência ou uma ampliação da mente que desenvolvem um maior senso de
presença e inteireza no viver de cada situação. O continuum de awareness, que se
estrutura por meio do aqui e agora e do contato, também visa a expansão da
consciência, um maior senso de presença e inteireza no viver, a centralidade no
presente, e conseqüentemente uma melhor apropriação da condição existencial da
pessoa.
Assim, tanto a meditação como o método de awareness ou continuum de
presentificação são similares em sua estrutura, sua prática e, aparentemente, em seu
objetivo, na medida em que ambos visam auxiliar o ser humano a se alojar no presente e
a se apropriar melhor deste viver.
Com relação às visões de homem e às concepções de cura tanto na GT
quanto no Zen, elas remetem a confiança no ser humano e é nesta perspectiva que se
desenvolvem. Enfatizam a liberdade do ser humano, sua responsabilidade diante da
existência, sua capacidade de escolha, seu poder frente a si mesmo e ao próprio existir.
Valorizam também capacidade de expansão da consciência e busca incessante rumo à
transcendência, entendida como o movimento humano de ir mais além de si mesmo. Há
nelas a crença no potencial humano de integração e desenvolvimento.
Na perspectiva budista a liberdade não é outorgada, mas cultivada, ela
independe das condições ou do ambiente em que o indivíduo se encontra. Acredita na
capacidade do ser humano lidar com as adversidades, possível a partir do momento em
que o homem conhece seus próprios sentimentos e aprende a lidar com eles, ou seja,
lidar com a raiva, com a inveja, com o orgulho, com o desespero e com a angústia. A
transformação destes sentimentos instrumentaliza os indivíduos a lidarem com qualquer
142
acontecimento do cotidiano, o que os torna mais fortalecidos, firmes, capazes de residir
no aqui e agora e não absorvidos pelo passado ou pelo futuro. Serão pessoas mais
livres, capazes de lidar melhor com qualquer situação, independentemente das
circunstâncias.
Para a GT, a noção de liberdade está muito próxima da perspectiva
budista. O homem não escolhe o local de seu nasciment, mas uma vez lançado no
mundo, cabe a ele construir seu próprio projeto existencial dentro das limitações do
meio em que está inserido. O homem sempre terá liberdade de escolha e de ação dentro
deste campo, liberdade compreendida como a capacidade de criar dentro do possível.
Mas na própria noção de liberdade aparecem diferenças entre as duas
perspectivas, envolvendo a compreensão e a visão da angústia.
A perspectiva fenomenológica, característica da GT, na sua vertente
existencial, apresenta o homem como abertura. Ante esta abertura o homem não tem
condições de pré-ver e conseqüentemente não tem garantias diante de suas escolhas.
Sua trajetória será sempre marcada pela angústia, pela impossibilidade de realizar todas
suas potencialidades e pela precariedade da existência humana que caminha para a
morte. É a vivência da angústia que desvela ao homem suas possibilidades, colocando-o
em contato com o nada, com o não-ser, com aquilo que ainda não é, mas que, no
entanto, poderá ou não ser. Nesta perspectiva, a angústia não pode ser superada pelo
homem, mas sim, sustentada por ele. Em última instância, o homem pode ir para a
morte sem medo, mas não sem angústia, uma vez que esta trás a própria possibilidade
da impossibilidade.
143
Para o Budismo, o ser humano também é abertura. O sofrimento, assim
como a angústia, fazem parte da condição humana e se apresentam como oportunidades
para o auto-conhecimento, para a descoberta de si mesmo, para a transcendência.
Contudo, o Budismo acena para a possibilidade da supressão dos desejos e desapego do
“eu”, movimento através do qual se pode chegar à eliminação do sofrimento e da
própria angústia. Este desprendimento permite que continue acontecendo o nascer e o
morrer, mas ultrapassando-se o sofrimento e a angústia, isto é, sobre este vértice a
angústia pode, sim, ser superada.
GT e Zen acreditam na transformação do ser humano rumo ao
desabrochar de sua verdadeira natureza, ambos privilegiam e o fundamento relacional
da existência humana. Na GT ele aparece pela noção do entre, do dialógico, do
relacional. No Zen, ela aparece por meio da noção de inter-ser ou da interdependência.
A “quebra dos pontos de apoio” proposta pelo Zen pode ser comparada à
restauração dos processos de cristalização na GT. No Zen porém, estes pontos de apoio
podem revelar futuros impedimentos e restrições ao existir fluido do ser humano
enquanto na GT eles podem corresponder ao próprio processo de cristalização, em
situações de “engessamento” que estariam estagnando o processo maturacional humano.
Muito embora GT e Zen destaquem a importância do desabrochar
humano, “a compreensão de nossa própria e mais íntima natureza”, o “entrar em
contato com nosso sábio interior”, suas concepções de natureza humana apresentam
diferenciações. A GT não apresenta um acervo fechado e definido para as possíveis
facetas do humano, uma vez que ele é um ser aberto às infinitas possibilidades num
144
constante vir-a-ser. Não define a planta que a semente carrega, embora acredite na
planta que habita a semente enquanto potencial a se desenvolver.
Já para o Budismo, há um alvo claro para a flecha natureza humana; o
homem é Buda, só precisa despertar essa natureza do seu verdadeiro ser. Sua concepção
de natureza humana parece encampar toda a proposta da GT, mas a modifica e a
ultrapassa na medida em que revela uma continuidade para a perspectiva de homem da
GT que vai desde sua valorização até sua idealização com um objetivo claro e atingível
ou alcânçavel, a respeito do seu fim último.
Quanto à noção do “eu” para o Zen-Budismo e self para a GT, um dos
aspectos centrais em suas concepções é o caráter dinâmico e processual atribuído ao
“eu” e ao self. Estes não são vistos como estruturas, instâncias ou mesmo como núcleo
pessoal no indivíduo. Tanto o Zen quanto a GT reconhecem a fluidez, a maleabilidade e
a permeabilidade tanto do “eu” como do self.
A plasticidade e a maleabilidade são características fundamentais do self,
elas garantem e mantêm a fluidez no processo existencial, ao mesmo tempo em que
manifestam a expressão das potencialidades humanas e sua negociação com as
possibilidades do meio. Para o Zen, elas são condição sine qua non para a possibilidade
existencial humana. Esta compreensão do “eu”, visto não como identidade, mas como
um processo contínuo, demarcará o ser como o “fluir com o rio da vida”. Sintetizando,
o ser é pura permeabilidade e flexibilidade. É este potencial interacional que garante a
criatividade no ajustamento do homem ao meio. Embora o Zen não use a terminologia
“ajustamento criativo”, ele fala da capacidade humana de a tudo se adaptar, tal como a
145
água, que a tudo se adapta e ao mesmo tempo a tudo transpõe. Novamente é nesta
flexibilidade do “eu” e do self que vamos encontrar a possibilidade de vida autêntica.
Outro aspecto relevante diz respeito ao ser com na GT. É na interação
que o self se constitui no campo relacional organismo-meio. Esta interação exige do self
estar de modo diferente a cada experiência. O estar na “fronteira de contato” possibilita
este “ajustamento criativo” e ao mesmo tempo reassegura a característica relacional do
homem, o ser com.
A noção de interdependência no Budismo também destaca este mesmo
aspecto proposto pela GT, o “eu”, ou melhor, o desapego do “eu” permite ao homem
fluir no entre, o campo relacional organismo-meio. O homem só pode ser com todos os
outros seres e com tudo que o circunda. Em função disto, ele precisará se apresentar
sempre de maneira diferente, dependendo das combinações destas interações.
O caminho proposto pelo Budismo, porém, é distinto da proposta
gestáltica, na medida em que enfatiza que é o desapego do “eu” que garante a
plasticidade no existir humano, noção que impõe ao praticante “desprender-se de si
mesmo” para estar e encontrar-se em todas as coisas do mundo. Assim, quanto mais
estiver o indivíduo desapegado de si mesmo, mais estará inter-sendo, mais estará uno
com o fluir dos fenômenos, e mais descobrirá sobre si e sobre a vida.
Para o Budismo, todo sofrimento humano é decorrência do processo de
ilusão do “eu”. É essa ilusão que instala o desejo de permanecer com as “coisas”,
criando também o individualismo, o egocentrismo e o egoísmo, que descaracterizam a
própria natureza humana, uma vez que, enquanto existir qualquer traço de vontade,
desejo ou expectativa de interferir no fluxo natural das coisas e da vida, o ser autêntico
146
não se desvelará. Desapegar-se do “eu”, reconhecer suas verdadeiras características, seu
caráter ilusório, recoloca o homem em outro patamar, tanto frente aos outros, como
frente ao mundo e a si mesmo. Ao reconhecer e assumir o caráter ilusório do “eu”, ele
se abre à experiência primordial da interdependência entre todos os seres,
conseqüentemente a uma nova maneira de viver e se relacionar, na qual o seu ser mais
profundo pôde ser acessado.
Perls e outros autores da GT não falam do desapego do “eu” mas de sua
plasticidade. A crença na natureza humana assinala a necessidade do homem permitirse fluir aceitando seu próprio fluxo natural, não tentando impor a si mesmo um ritmo,
um tempo, ou mesmo um modo de ser que não lhe é peculiar.
A teoria paradoxal da mudança revela a compreensão de que toda e
qualquer mudança ocorrerá a partir do reconhecimento e da aceitação daquilo que sou, e
não da tentativa de me tornar aquilo que não sou. Tanto a GT como o Budismo
compartilham da idéia de que um dos passos para o desabrochar natural do ser acontece
a partir da aceitação de sua condição existencial, condição esta que traz em seu cerne o
homem como um ser no mundo, como um ser relacional.
Um ponto de diferenciação e afastamento nestas concepções se encontra
no enfoque dado à identidade. Para a GT, é possível e necessário pensar que o self
desenvolve uma auto-referência que lhe permite um senso de identidade. O self na
função personalidade possibilita a auto-imagem, a auto-representação, o autoreconhecimento, e a incorporação dos aspectos com os quais eu me identifico,
possibilitando o senso de unidade e de coesão. É ele que também proporciona o senso
de identidade histórica. Este senso de unidade e coesão é vital para estruturação do
147
psiquismo e da própria personalidade permitindo à pessoa prosseguir em seu processo
de desenvolvimento e amadurecimento.
O Zen não opera neste campo. Ele não desenvolve uma compreensão ou
leitura específica dos aspectos envolvidos no processo de desenvolvimento e
amadurecimento do psiquismo. Não salienta e nem mesmo indica a importância de um
senso de identidade nesses processos, já que segue na direção oposta. Ele propõe a
dissolução do “eu” e não seu fortalecimento.
O Budismo leva sua compreensão do “eu” à radicalidade, uma vez que
postula o “não-eu”. Novamente podemos pensar que o Budismo leva às últimas
conseqüências parte do que a GT formulou a respeito de sua noção de self. Embora o
Budismo se ocupe dos aspectos psicológicos como meio para transformação da mente,
ele propõe um salto direto à ontologia do ser. A GT, com relação ao self, ocupa-se dos
aspectos psicológicos, na possibilidade de reconfigurá-los. Reconhece que sem
trabálho-los é praticamente impossível devolver ao homem a reapropriação de sua
própria
existência,
liberando
sua
capacidade
de
ajustamento
criativo
e
conseqüentemente a condição de criar o possível.
Com relação ao aqui e agora, ele é a possibilidade, para a GT e para o
Zen, de aproximação, o portal de acesso ao universo humano e, através dele, o homem
pode realizar transformações em suas várias dimensões, psicológicas, existenciais ou
espirituais. Ambos compartilham algumas posições comuns; é no concreto da vida
cotidiana que se encontra a verdade tão perseguida pelos seres humanos; é no momento
presente que se encontra a via de acesso para a mudança, integração na GT, iluminação
no Zen; o aqui e agora é o ponto para o qual tudo converge, o ponto em que passado e
148
futuro convergem para o presente. O aqui e agora é uma condensação de tempos, e é a
partir desta compreensão que ambos desenvolvem suas concepções e práticas.
GT e Zen prezam a centralidade no presente, priorizando radicalmente
este aspecto. Por suas concepções qualquer possibilidade de apropriação da existência,
de sua transformação e da própria transcendência humana só pode se dar a partir deste
paradigma. Ambos concordam a respeito da dificuldade dos homens se instalarem no
presente, enfatizando que esta é uma das maiores dificuldades a ser enfrentada.
Propõem que a vida é aqui e agora e só tem sentido quando vivida a partir desta
perspectiva.
O intuito da psicoterapia, para a GT, é dar ao cliente instrumentos para
que ele possa resolver seus problemas atuais e outros que venha a ter, devolvendo-lhe
sua inteireza, sua potencialidade e capacidade de habitar melhor no presente e, assim,
viver de forma mais consciente no aqui e agora, em contato, de forma harmoniosa e
integrada.
A prática Zen, principalmente a da meditação e a da vivência do
cotidiano com inteireza e consciência, também visa desenvolver a mente do praticante, a
completude nela mesma, proporcionando ao homem um lugar de descanso, equilíbrio e
calma. Permite ao homem tratar a si mesmo e ao mundo de uma forma mais reverencial,
praticando particularmente a compaixão, sem qualquer necessidade de reconhecimento
por parte dos outros.
Como já destacado, as práticas da GT e do Zen apresentam muitas
afinidades, no entanto suas visões de homem são distintas e a compreensão do aqui e
agora reforça esta distinção.
149
O distanciamento surge na medida em que o Zen vai além da
compreensão do aqui e agora como condensação de tempos, visando uma supressão ou
superação do tempo. Para a GT, o aqui e agora deve ser entendido como um presente
pleno no qual simultaneamente co-participam a totalidade do passado e a perspectiva do
futuro. Esta perspectiva permite também perceber no ser humano um sentido atemporal
e “a-espacial”, pois por sua natureza, ele sempre buscará transcender os próprios limites
da temporalidade e da espacialidade. A filosofia Zen, ao conceber a eternidade contida
em cada instante, pela unificação de tempo e espaço, supera a temporalidade. O tempo
assim como o “eu”, para o Budismo é também uma ilusão.
A grande diferenciação entre o Zen e a GT se dá a partir do fim último
em suas concepções de homem ou natureza humana. O Budismo carrega um alvo
distinto. A GT, embora afirme a potencialidade e a confiança na natureza humana e
conseqüentemente, a sua capacidade de se auto-destinar, não determina de antemão o
alvo deste destino. Para o Zen, embora a iluminação não deva ser perseguida com
apego, ela é o alvo, a direção a ser seguida. É só através da superação de todas as cisões,
como a de tempo e espaço, que o homem atingirá a iluminação. Ao reconhecer sua
natureza búdica e a “vacuidade ou vazio” que permeia todas as coisas, consegue acessar
a realidade última. A GT confia na natureza humana, acreditando na auto-regulação
organísmica e na capacidade do seres humanos iluminarem suas ações, no entanto não
afirma que o objetivo último do homem é a iluminação.
Em relação a seus objetivos, portanto, Zen Budismo e GT se afastam.
Apesar de todas as proximidades eles se mantêm em universos distintos: o Zen situa-se
no âmbito religioso e a GT limita-se ao âmbito da Psicologia.
150
Para Vergote (1966, p. 24), “religião é um conjunto orientado e
estruturado de sentimentos e pensamentos, por meio dos quais o homem e a sociedade
tomam consciência vital de seu ser íntimo e último e, simultaneamente, nela se torna
presente o poder divino [...]”. Já para James (1991, p. 70) religião é “[...] sentimentos,
atos, e experiências do indivíduo humano, em sua solidão, enquanto se situa numa
relação, seja qual for por ele considerado divino [...]”. Compreendo que as religiões
propõem uma estruturação das crenças e perguntas que os seres humanos foram tecendo
durante seu desenvolvimento sócio-histórico-cultural, constituem um arcabouço de
dogmas, valores e princípios, que tentam responder às primeiras e mais antigas questões
do homem, da origem e do fim: de onde viemos e para onde vamos. E a estas, soma-se a
questão do divino. Estas são as questões mais complexas para os homens e que ao longo
dos tempos, através da busca e criação de um sentido espiritual as religiões, tentam
responder.
A religiosidade pode assim ser entendida como a busca de uma
compreensão que ultrapasse a lógica, o tempo, o espaço. Esta busca que ultrapassa a
racionalidade humana, pode estar ou não vinculada especificamente a uma religião.
Safra (2004b) diz que há em toda subjetividade humana um movimento de
religiosidade, um movimento originário que busca dar sentido às experiências e
vivências no mundo. A religiosidade é pois complexa, ampla e presente nos níveis
ontológico e ôntico da subjetividade humana. No nível ontológico, ela nos fala da
própria condição humana, das possibilidades e dos fundamentos do acontecer humano,
sempre em seu caráter universal. No nível ôntico, enfoca a maneira peculiar como a
condição ontológica se dá na existência singular de cada indivíduo.
151
O Zen-Budismo situa-se na interface entre religião e filosofia. Como
religião, carrega uma concepção de homem e de mundo, apresenta um sistema
representacional de crenças, valores e dogmas, permitindo aos praticantes, por meio
deste sistema, modelarem sua vida pautada nestes valores de uma maneira espiritual,
rumo à transcendência e à sacralidade. Em outras palavras, oferece a possibilidade de se
ligarem novamente ao divino. Para o Zen especificamente, isto se dá a partir do
reconhecimento da própria existência em sua precariedade, e basicamente em seu
cotidiano, no que há de mais ordinário da existência humana, evitando o uso de
explicações ou operações metafísicas para tentar responder às questões sobre o início e
o fim do homem e do mundo. Dentro da perspectiva Zen, estas questões aparecem como
um gigantesco Koan, que não precisa de explicações e racionalizações, mas sim ser
vivido para ser decifrado. Em última instância, para o Zen a re-ligação com o divino se
dá na concretude da existência humana, em seu cotidiano, no âmbito mais ordinário e
comum de nossa existência que, quando vivida em sua totalidade, com “os olhos de
quem consegue ver”, desvela ao ser a sua própria natureza divina Buda, que sempre
esteve presente ali mas até então não reconhecida.
A GT é uma abordagem psicológica que tem como objetivo promover a
reestruturação emocional de indivíduos que viveram situações de perturbação em seu
processo maturacional, e que foram impedidos em seu desenvolvimento, potencialidade
e criatividade, comprometendo a forma como se colocam no mundo como sujeitos
existenciais autônomos e auto-dirigidos rumo à realização de si mesmos. Como todo
trabalho psicológico clínico, visa compreender as falhas e lacunas do processo de
crescimento humano possibilitando ao cliente, dentro do possível, libertar-se dos
aprisionamentos e das cristalizações vividas como impedimentos nos processos
152
existenciais. Ela pode ser sustentada por uma visão filosófica, com sua concepção de
homem e de mundo, mas desenvolve conceitos e atua no âmbito de uma teoria
psicológica que desenvolve técnicas cujo objetivo último é proporcionar uma mudança
positiva na vida do cliente, através da própria relação terapêutica.
153
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo teve como horizonte um diálogo, a possibilidade de uma
interlocução entre idéias, conceitos e métodos da GT e do Zen-Budismo, buscando
encontrar proximidades e distinções entre estas duas áreas do conhecimento humano.
Trazia no início – como pano de fundo – a possibilidade de integrar em minha vida a
esfera religiosa e a esfera psicológica. E agora, no final deste percurso, ao chegar à
reflexão e elaboração das considerações finais deste trabalho, percebo o quanto fui me
transformando no decorrer desta trajetória. Reconheço o quanto me foi propiciado pela
integração destas esferas extremamente significativas de minha vida: a dimensão
profissional e a dimensão espiritual.
Quando propus me debruçar sobre esta dissertação, aceitei correr os
riscos e empregar os cuidados necessários para me colocar na interface entre psicologia
e religião. Procurei ter em mente as palavras de Ancona-Lopez (2002, p. 79) quanto à
importância dos cuidados e desafios que este tipo de trabalho exige. “[...] perseguir o
conhecimento traçando formas de trabalho que respeitem a especificidade do saber
psicológico e a singularidade das tradições religiosas. Manter ‘um pé em cada campo’,
buscando o equilíbrio entre as duas áreas e evitando aproximações redutivas, é o
desafio [...]”. Na condução deste trabalho, de fato, o grande risco e o grande desafio
foram manter o equilíbrio entre estas duas áreas evitando aproximações reducionistas.
Um dos recursos que usei para evitar o reducionismo foi não esquecer que falava de
registros diferentes da condição existencial humana, mesmo quando apontei as
confluências entre conceitos das duas áreas. Ao discutir estes tópicos, foi importante
154
manter as especificidades da GT e a singularidade do Zen, garantindo que a GT não é
Zen-Budismo e, por outro lado, esclarecendo que Zen-Budismo não é uma forma de
psicoterapia.
Com relação a estes aspectos, é importante ressaltar que em todo
processo psicoterapêutico, de forma implícita ou explícita, as questões ligadas à
religiosidade e à espiritualidade do cliente aparecerão em algum momento, como
lembram Safra e Juliano. Ao refletir sobre o processo terapêutico na perspectiva
gestáltica, Juliano, nomeia esta etapa de “passagem pelo território do sagrado”. Após a
reconstrução de sua história pessoal, o cliente tem condição de perceber temas
guardados que pertencem à dimensão do humano e não apenas as questões individuais.
Ele está apto para viver a mutualidade ou a interdependência, um ponto no processo de
individuação, no qual o indivíduo consegue se identificar com uma história humana ou
com a própria condição humana e com tudo que tem em comum como ser humano e
como parte da natureza. Ao chegar nesta etapa do processo, cabe ao terapeuta acolher,
acompanhar e cuidar destas questões universais, sabendo que diante destas questões não
cabem respostas psicológicas, mas sim o testemunho de quem também se reconhece
humano nesta busca. Ao realizar isto, permite que seu cliente continue caminhante em
sua jornada. Embora GT não seja Budismo e Budismo não seja GT, diante das
experiências do processo terapêutico, o Zen, como outras religiões, com toda sua
riqueza e sabedoria, tem muito a oferecer, pois, suas propostas são basicamente
aberturas para as questões ontológicas.
Idéias e conceitos trazidos pelo Zen como o desapego do “eu”, a
impermanência, a interdependência ou inter-ser, a quebra dos pontos de apoio, a vida
155
aqui e agora e a centralidade no presente, o sofrimento e a crise como oportunidades, o
fluir com o rio da vida, bem como suas metáforas, Mondos e Koans, apresentam-se
extremamente ricos para o trabalho terapêutico e para o desenvolvimento do próprio
terapeuta. Em outras palavras, possibilitam a afinação do seu próprio instrumento, na
medida em que podem facilitar o auto-conhecimento, favorecer processos de integração,
desenvolver maior equilíbrio e harmonia, aspectos imprescindíveis ao terapeuta e
fundamentais para o trabalho clínico.
Para além da realização de um trabalho acadêmico, ou das reflexões que
acompanham a ação clínica, uma outra maneira de responder à questão do cuidado na
interface religião-psicologia, no caso, consonante ao espírito Zen, é o de ultrapassar as
respostas a esta questão, deixar que ela continue a ressoar no silêncio. Como o Zen
preconiza, as grandes questões são para serem vividas. Assim como a própria
existência, que não é para ser explicada, mas sim um Koan a ser decifrado.
Após transitar por estes dois universos, realizando um diálogo entre estas
duas esferas distintas em suas interfaces, pude me apropriar de outra faceta que foi se
revelando, silenciosamente, nos bastidores deste trabalho. À medida que caminhava na
investigação da GT e do Zen-Budismo, na tentativa de conhecê-los melhor, a minha
compreensão acerca do universo da psicologia e da religião também se transformou.
Somente agora, ao final desta dissertação, consigo me apropriar desta modificação.
No âmbito pessoal, esta integração me colocou mais aberto e mais inteiro
para a vida. No âmbito profissional, consigo hoje acolher as questões religiosas e
espirituais de meus clientes de uma maneira mais receptiva e espontânea, e posso
compreendê-las como questões universais, genuínas e autênticas, quando elas assim se
156
revelam, sem correr o risco de fazer psicologismo da religiosidade. Observo que, ao me
colocar desta forma no processo terapêutico, meus clientes também conseguem elaborar
estas questões de um jeito mais harmônico e integrado. Em suma, percebo que foi
possível um salto na maneira como lido com religiosidade e espiritualidade. Isto só foi
possível a partir do processo de transformação e integração que vivi nos últimos anos,
reforçando a premissa básica da GT e de parte significativa da psicologia: quanto mais
inteiro, integrado e harmônico o terapeuta se encontra, mais aberto e receptivo ele
poderá estar para receber, acolher e acompanhar seu cliente.
É importante assinalar que esta integração não se deu apenas na prática
clínica, mas também enquanto professor, em sala de aula, situação na qual a
informação, a formação e a transformação incidem na relação professor-aluno. Através
do acolhimento das questões e dúvidas dos alunos frente à interface psicologia e
religião, da sustentação de um diálogo maduro e consistente nas incertezas, dúvidas e
angústias dos supervisionados sobre como conduzir as questões religiosas nos
atendimentos clínicos, a minha relação com meus alunos e supervisionandos tornou-se
mais rica e fecunda. Compreendo que a forma de conduzir este tema é fundamental na
formação de novos profissionais, uma vez que a interface psicologia-religião está
fortemente presente em nossa cultura.
O caminhar entre a psicologia e a religião, somado a demanda do
mestrado, cursos, disciplinas, o encontro com novos amigos, ampliaram e modificaram
significativamente meu raciocínio clínico, minha compreensão e minha condução na
prática clínica. Mudanças fundamentais uma vez que o fazer terapêutico requer do
157
terapeuta
a
capacidade
de
questionar,
construir,
desconstruir
e
reconstruir
constantemente o seu saber e o seu fazer.
Ao final, gostaria de lembrar uma parábola do Buda Shaquiamuni citada
por Borges e Jurado: sobre uma pessoa ferida por uma flecha e que, cercada de pessoas
que tentavam ajudá-la, não deixava que o fizessem. Queria saber a casta, o nome, os
pais de quem o havia ferido, qual a distância ele estava quando atirou a flecha, de que
material era feito a flecha. Buda diante desta situação inusitada, arrancou a flecha do
ferido dizendo: eu sou aquele que ensina extrair a flecha!
Espero que o leitor que se interesse pelo tema se permita viver estas
questões em seu corpo e em sua prática. Cabe a cada um encontrar, construir, criar suas
próprias respostas a partir de sua própria experiência e vivência. É hora de arrancar a
flecha!
Que este encontro lance uma luz naquilo que todos nós procuramos,
gestalt-terapeutas ou não, religiosos ou não, Zen-budistas ou não: Iluminar nossas
ações.
158
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