iv colóquio internacional de políticas e práticas curriculares
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iv colóquio internacional de políticas e práticas curriculares
VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino ARQUITETURA ESCOLAR: MUROS QUE EDUCAM E ENSINAM Bianca Cristina Alves Albino – UFCG [email protected] Ângela Cristina Alves Albino – UFPB [email protected] Resumo O presente estudo tem como objetivo analisar a estruturação do sistema de construção das escolas brasileiras a partir de uma perspectiva histórica e filosófica dos contextos que formam o modelo difundido atualmente de escola pública. No decorrer da análise apontamos a influência estética do ambiente escolar na prática e na construção curricular e questionamos sua influência na estruturação arquitetônica vigente, que segue uma normatização nem sempre eficiente e que vai de encontro, em diversas ocasiões, à perspectiva Freiriana da liberdade na educação. Por fim, destacamos a possibilidade concreta de uma mudança de paradigma e reforçamos o papel das artes e da ação colaborativa no ofício do espaço escolar. Palavras-chave: Arquitetura - Escola - Educação - Estrutura O espaço escolar é compreendido na análise interdisciplinar: Arquitetura e Educação como locus importante de formação de personalidade pedagógica e de currículo. Neste estudo, partimos da compreensão de que, o espaço possui um efeito psicológico que interfere na formação ética e estética do sujeito e, portanto, educa e ensina indissociavelmente. O histórico construtivo brasileiro tem agregado valores emergenciais de uso do espaço. Por várias décadas as políticas governamentais fazem o país progredir em níveis de improviso, e o caso das escolas no Brasil retratam bem essa tradição construtiva da necessidade e a manutenção desse padrão quando já se conseguiu o essencial para o funcionamento dessas estruturas. A arquitetura é um tipo de arte que sempre reflete um contexto ou um ideal de futuro, mesmo que esse ideal seja traçado dentro de ideais de nostalgia ou que se dê de maneira mais isolada e menos representativa. Então existem exemplos de escolas públicas de construção tradicional barroca, eclética ou neoclássica que datam dos séculos dezessete e dezoito. É o caso de várias escolas paulistas do período da república e da expansão cafeeira, quando havia uma disposição monetária para a tentativa de criar uma aparência européia num território tupiniquim. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3217 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Escola Estadual Rodrigues Alves, fundada em São Paulo em 1907. Fonte: (esq) upload.wikimedia.org, (dir) farm4.staticflickr.com O período no qual o país passava por uma definição da identidade de sua arquitetura foi o modernismo, e o contexto da época era o de uma construção civil muito intensa e singular sob a idealização de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Esse estilo produziu exemplares bons de arquitetura escolar, como o Colégio Estadual Maria Constança de Barros Machado, que reforçava os conceitos de modulação de estrutura como facilitadora na construção das instituições brasileiras. A escola entendida como espaço de reflexos filosóficos, políticos sociais e a particularização dos saberes ao longo da história nos levam a crer que o currículo opera conforme Veiga Neto (2002, p.65) “na distribuição dos saberes – pondo-os e dispondo-os, hierarquizando-os, matizando-os e classificando-os, atribuindo-lhes valores – ele estabelece o fundo para que tudo o mais (no mundo) seja entendido geometricamente." Escola Estadual Maria Constança de Barros Machado, Oscar Niemeyer, Campo Grande - 1954. Fonte: campograndenews.com.br A produção arquitetônica escolar dos anos 50 aos 70 tem que ser vista também por um ângulo Freireano. A fundação desses grupos escolares acontece numa época de intersecção com o ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3218 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino pensamento de uma educação que liberta e que se integra, esse conceito pode ser traduzido e observado nessa relação da estrutura da escola não ser dissociada da cidade onde está inserida. Paulo Freire (2007) compreende os espaços escolares como lugares de promover a conscientização e a libertação dos oprimidos, propugnar um novo tipo de educação dialógica crítica, participativa. Assim, na sua perspectiva humanista entende: que a escola é lugar de gente, Lugar onde se faz amigos, [...] gente que trabalha, que estuda, que se alegra, se conhece, se estima. [...] cada vez melhor na medida em que cada um se comporte como colega, amigo, irmão. [..] nada de ser como ao tijolo que forma a parede, indiferente, frio, só. [...] numa escola assim vai ser fácil estudar, trabalhar, crescer, fazer amigos, educar-se, ser feliz (p.92) Nas décadas de setenta e oitenta, o investimento governamental para instituições escolares era direcionado, em várias ocasiões, às estruturas flexíveis e transponíveis, salas de aula sem paredes divisórias ou divisórias móveis, numa proposta pedagógica inovativa com manifestação física. É o que Gonçalves (2011) discute em sua tese Arquitetura Flexível e Psicologia Ativa. O desencontro mencionado no título é o da efemeridade da manutenção desses tipos pedagógicos e arquitetônicos. Mesmo tendo sido adotado em vários outros países Argentina e Portugal, na mesma época - os prédios sofreram um processo de recessão à configuração convencional. Conforme Gonçalves (2011): A Polivalente, como era conhecida a escola que nasceu com espaços abertos, é hoje, na expressão dos que lá trabalham, uma "escola comum como as outras". As paredes que se abriam unificando salas para trabalhos conjuntos entre professores foram enrijecidas com tijolos e as salas-ambiente e os laboratórios foram adaptados ou usados para outras finalidades O destino das escolas flexíveis exprime uma truculência do sistema pedagógico brasileiro, que raramente sai de uma linha convencional do professor como centro. A escola polivalente é um caminho de difícil feitura e manutenção, além do frequente descaso na alocação de recursos para a educação no país. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3219 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino O principal benefício de salas multiatividade seria então um conjunto heterogêneo de convivência, a consciência do outro é muito mais baseada em afinidade e personalidade do que numa condição comum de posição inferior ao professor. O aprendizado passa a ser múltiplo. Qual seria então a intenção pedagógica de enrijecer as paredes e padronizar um tipo de ensino? Uma outra expressão da inventividade que já adentrava o período dos anos noventa foi a contratação de João Filgueiras Lima (Lelé) para a idealização dos Centros Integrados de Atenção à Criança (CIAC). Lelé é um arquiteto de aspiração modernista que procurou utilizar a tecnologia a favor de suas obras. O ofício arquitetônico de Lelé era baseado em formas que se encaixavam numa estrutura modular eficiente, uma série de peças que podiam ser repetidas afim de compor a demanda de mais de dois mil CIACs que o Brasil tinha na época. Entretando, mais uma vez, uma iniciativa de concepção de melhores espaços não foi agraciada pelo sistema do governo que acabou por direcionar Lelé para sua resignação e de seus funcionários. As primeiras unidades foram concluídas mas os outros Centros sofreram modificações e descaracterizações, a normatização da construção civil acabou por prejudicar a replicação de um modelo promissor em todo o país. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3220 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino João Filgueiras Lima (Lelé) - CIAC Professor Anisio Teixeira, Ceilândia DF, Brazil Fonte: leonardofinotti.blogspot.com.br Essa possibilidade de reprodução do modelo de Lelé é um dos melhores aspectos dessa abordagem arquitetônica, pois contempla cidades de menor porte com um modelo adequado. O histórico de construções de unidades de educação básica e pública se resume muito aos estados do sul e às grandes capitais, as novas alocações de recursos deveriam amenizar essas disparidades em cidades próximas que possuem alunos para atender. A repetição de modelos construtivos passa a ser o ponto de partida de nossa postura atual da construção da escola, iniciada em 2004 com a criação do Fundo de Fortalecimento da Escola (Fundescola, Relatório de atividades do FNDE, 2004), que assumiu uma postura similar da Fundação para o Desenvolvimento da Escola em São Paulo (FDE). Ambos os programas, dentro do âmbito da construção civil, traçam uma série de requisições e normas para que os projetos das escolas sejam realizados. Considerando a histórica falta de critério no fazer institucional do Brasil, a normatização do planejamento do espaço escolar é um avanço, os manuais disponibilizados traçam os limites do mínimo que esse tipo de construção precisa ter, essa percepção do mínimo não existia antes. Por outro lado, esse modelo que funciona no âmbito de gestão escolar não favorece o desenvolvimento formal, e portanto, psicológico do espaço na criança que o frequenta. As escolas são fabricadas em série e geralmente dispõem de muros que as cercam e isolam aquele lugar que originalmente intencionava uma liberdade do ambiente plural e heterogêneo da cidade. A contratação de arquitetos para as licitações de arquitetura escolar dá vazão para o desenvolvimento de um modelo inovativo, econômico e formalmente mais condizente com o que foi intencionado pela proposta curricular daquele grupo específico. Um trabalho ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3221 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino compartilhado de percepções sobre os objetivos da escola é fundamental para que existam bons resultados. E existem. Ângelo Bucci (2006) e sua equipe do SPBR arquitetos realizou uma obra de escola pública dentro dos padrões do FDE, e sem perder esse diálogo tão importante do ambiente de ensino com a cidade que o envolve. ESCOLA FDE JARDIM ATALIBA LEONEL, São Paulo - SP, 2006. Fonte: www.spbr.arq.br E porque não, a inserção para a continuidade do sonho de Paulo Freire, "O sonho de mudar a cara da escola. O sonho de democratizá-la, de superar o seu elitismo autoritário” (1991, p. 74). O sonho que “tem que ver com uma sociedade menos injusta, menos malvada, mais democrática, menos discriminatória, menos racista, menos sexista (1991, p. 118). A ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3222 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino escola precisa sair da lógica observada por Mayume de Souza Lima quando refere-se às áreas destinadas às escolas nas cidades contemporâneas do Terceiro Mundo: As construções podiam se destinar tanto a crianças, a sacos de feijão ou a carros, pois são apenas áreas cobertas, com fechamento e piso. (...) os seres humanos perderam não apenas a sua capacidade única de dar sentido às coisas, mas também perderam o instinto primário de todos os animais adultos de buscar o ambiente mais favorável para o desenvolvimento dos seres jovens de sua espécie (Lima, 1989, p.11). Considerações pontuais: Diante do exposto podemos compreender que os “desenhos” dos espaços escolares contém nuances que (de)anunciam a filosofia, a política educacional e a próprio tipo de formação de sujeito. Isso aparece as vezes de forma explícita quando observamos no desenho curricular a separação das entradas por gênero nas escolas do período da República, a comunicação do ambiente escolar com a cidade no modernismo e o arranjo aberto das salas mutiuso das escolas polivalentes. Por fim, entendemos que, no campo curricular esses lugares constituem o sujeito e se a educação se dá numa perspectiva estética consideramos importante que os projetos escolares sejam pensados também numa perspectiva formal e arquitetônica condizente com os prospectos do Projeto Político Pedagógico local. Referências FREIRE, P. & HORTON, Myles. O caminho se faz caminhando: conversas sobre educação e mudança social. 4 ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 35 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007. ________. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez; 1991. FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: Uma trajetória filosófica : para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rabinow, Paul e Dreyfus, Hubert. Tradução Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1995. GONÇALVES, Rita. Arquitetura Flexível e Pedagogia Ativa: Um (des)encontro nas escolas de espaços abertos. Lisboa, 2011. LIMA, Mayume S. A cidade e a criança. São Paulo: Nobel, 1989. VEIGA-NETO, Alfredo. De geometrias, currículo e diferenças. Educação e sociedade:formação de profissionais da educação, São Paulo, n. 79, p. 163-186, ago. 2002. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3223 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino REBELLO, Yopanan & LEITE, Maria Amélia. Architekton Lelé: o mestre da arte de construir, ed.175, Revista AU, out. 2008. OLIVEIRA, J., FONSECA, M. & TOSCHI, M. O Programa Fundescola: Objetivos, Componentes e Abrangência. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 90, p. 127-147, Jan./Abr. 2005 127. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br Relatório de atividades do FNDE - 2004. 2009. www.fnde.gov.br/fnde/institucional>. Acesso em 25 set. 2013. Disponível em < BUCCI, Ângelo. Escola FDE Jardim Ataliba Leonel. 2006. Disponível em < www.spbr.arq.br>. Acesso em 25 set. 2013. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3224 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino CRIANÇAS E LINGUAGEM NA ESCOLA: A CULTURA E O CORPO INFANTIL Juliana Carla da Paz Alves – UFAL [email protected] Lúcia de Mendonça Ribeiro – SEMED [email protected] Resumo Pensamos ser a cultura o tempo e o espaço no qual se dá as relações sociais. É nesse espaço que ocorre a apropriação dos símbolos e signos pelas crianças. Observamos como esse processo se dá em diferentes momentos das experiências infantis e atravessa de maneira extraordinária seus corpos. Fizemos isso utilizando a interação da criança com a linguagem na escola, tanto no contato com adultos quanto com seus pares. Para nos auxiliar nessa interpretação traremos Ariès, Gouveia, Kramer e outros para falarmos sobre infância. Nas análises de Bakhtin, Vygotsky, Benjamim, Pimentel e Souza, encontraremos base para discutirmos linguagem. Autores como Silva e Tiriba que vão discutir sob vários aspectos o desenvolvimento do processo ensino aprendizagem da criança e a importância de enxergar o corpo como espaço de concretização de linguagens e aprendizagens das formas de representação cultural de um grupo social. Suas aprendizagens ocorrem na interação com o outro e por meio da linguagem verbal e extra verbal (falada, escrita, gestual, imagética etc.). Vista desta forma a separação mente e corpo como tem sido feita, perde muito do sentido, por isso esse trabalho propôs a interação entre o corpo e as linguagens e a necessidade de um repensar sobre a criança que produz cultura, mas que também recebe e se modifica pelos processos culturais. Palavras-chave: infância, cultura, linguagem, corpo, escola. CHILDREN IN SCHOOL AND LANGUAGE: CULTURE AND CHILD BODY Abstract We think the culture like time and space in which happens social relations. It is in this space that the appropriation of symbols and signs by children happen. We observed how this process occurs at different times of childhood experiences and through their bodies in extraordinary ways. We used children's interaction with the language in school, both in contact with adults and other children. To assist us in this interpretation will bring Ariès, Gouveia, Kramer and others to talk about childhood. In analyzes of Bakhtin, Vygotsky, Benjamin, Pimentel and Souza, find a basis for discussing language. Authors like Silva and Tiriba that will discuss various aspects in the development of the learning process of children and the importance of seeing the body as a place of realization of learning languages and forms of cultural representation of a social group. Their learning occurs in the interaction with others and through verbal and non verbal (spoken, written, gestural, imagery etc…). Viewed in this way the severance of mind and body as it has been done loses the sense, so this paper proposed the interaction between body and languages and the necessity to rethink about children producing culture, but also is produced within the culture. Keywords: childhood, culture, language, body, school. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3225 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino CRIANÇAS E LINGUAGEM: A CULTURA E O CORPO INFANTIL CULTURA COMO ESPAÇO DA INFÂNCIA Apoiando-se principalmente em Geertz (1989), esse trabalho analisa o significado de cultura, no diálogo denso entre autores que consideram a cultura como uma rede de significados, na qual os sujeitos constroem interpretações sobre símbolos, identidades e discursos, como também, as dimensões psicológica, biológica e cultural, agindo de maneira simultânea a construção de símbolos e significados culturais pelos sujeitos. Dentro desse cenário maior destacamos a noção de infância que nos acompanha. Datada historicamente, e construída no agora, no presente, mesmo recebendo os resquícios do passado e a projeções e expectativas do futuro, pois vemos que “Em relação dialógica, passado, presente e futuro podem ser compreendidos como interligados. Na aparente descontinuidade, há uma continuidade subterrânea. O passado pode ser ativado numa citação atual.” (PIMENTEL, 2011, p. 61). Áries (1981) afirma que até os séculos XIV e XV a palavra efant servia para designar tanto crianças quanto adolescentes ou rapazes. A partir do século XVII, o autor já consegue identificar que a palavra infância começa a ter uso delimitado às pessoas que estavam no estágio que vai até a puberdade. O termo estava mais vinculado à situação de dependência dos sujeitos – como no caso dos vassalos e servos – que a uma delimitação de idade, ou período da vida. O discurso a respeito da infância e o trato diferenciado com as pessoas que estão nessa fase da vida, surgem apenas na Idade Moderna. Com a separação do mundo infantil do mundo adulto, na modernidade, a escola tornou-se um dos principais lugares da infância. De acordo com Ariès (1981), na Idade moderna, “A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles” (p.11). Com isso o autor afirma que naquele período – meados do século XVII – surgiu um novo discurso sobre infância tornando-se bastante difundido no ocidente, ganhando mais força que outras visões de criança ao longo da modernidade. A infância se refere à fase da vida em que as pessoas são consideradas crianças. Uma fase em que, segundo Áries (1981), a partir da modernidade, vem sendo dispensado aos sujeitos maior cuidado com seu desenvolvimento psicológico, cognitivo e social. Essa ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3226 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino preocupação decorre do fato de serem considerados ainda inaptos, incapazes de aprender as formas sociais de convivência sozinhos. Segundo Pagni (2010) a “origem etimológica da palavra infância é proveniente do latim infantia: do verbo fari, falar – especificamente de seu particípio presente fan, falante – e de sua negação in”. De acordo com o autor, o prefixo in, na palavra infância, vem denominar a incapacidade de se expressar ordenadamente, de se comunicar com o mundo. Infantes seriam pessoas necessitadas de desenvolver tal habilidade. Depois de determinado tempo passou a significar também, e prioritariamente, a fase da vida na qual ainda não se obteve tal capacidade, ou seja, o período em que se é criança. De acordo com Gouveia, (2007): Se várias produções contemporâneas, ao tematizar a cultura infantil, tomam como objeto o estudo de suas manifestações, cabe analisar a estrutura simbólica que organiza as práticas da criança. Ou seja, é fundamental está atento para como a criança significa o mundo, expressando-o nessas práticas. (p.114) Entendemos, entretanto, que a despeito da enorme contribuição que traz o trabalho de Ariès, o discurso moderno sobre a infância não foi o primeiro a se constituir historicamente para definir as formas de tratar crianças. Isso pode ser evidenciado em textos como os de, Wong (2008), quando discutem outras formas de ver e distinguir a infância das outras fases da vida, em períodos pré-modernos no mundo ocidental. Há ainda outra crítica sobre o clássico, que de acordo com Nascimento (2009), Outras concepções e conceitos foram elaborados em relação à temática na História da Infância e são aqui considerados, como aquelas formuladas por Jacques Gelis (1991). O autor se contrapõe a Ariès ao salientar que o novo sentimento de infância não ocorreu de forma linear, nem está ligado a um novo sentimento, o que mudou foi a visão do ser humano ao se compreender como um ser único, insubstituível, resultando, nesse momento, em um maior cuidado dos adultos em relação à vida da criança. Destacam-se ainda as formulações sobre a distinção histórica. (p.14) O sentido de infância, atualmente, na cultura ocidental, parece denotar tanto o período de vida em que se encontram as crianças, como a dependência em que essas são colocadas perante os adultos, nas variadas situações nos modos de vida modernos, inclusive na escola e no meio midiático. (PAGNI, 2010). ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3227 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Há as crianças que vivenciam experiências de abandono em instituições de cuidado à infância, ou as que passam sua meninice nas ruas, ou ainda as que têm acesso a instituições, crescendo nos ambientes familiares, porém, pertencem a diferentes classes sociais. Por isso, a infância não poderia ser estudada de maneira unilateral, ou generalizada, pois os contextos históricos nos quais se originam diferentes situações de análise em diferentes espaços, são produtos e produtores das subjetividades humanas. Existem muitas formas de caracterizar a infância representada pelos diferentes contatos com a linguagem presentes no percurso de seu desenvolvimento (FROTA, 2007). Nesse texto o foco será discutir e compreender os variados contextos e discursos sobre a infância que atravessam o corpo infantil, observar esse atravessamento da cultura em seus aspectos afetivos, psicológicos, físicos, estéticos, etc. LIGUAGEM E INFÂNCIA Utilizaremos aqui os autores já citados para falar sobre a linguagem enquanto intermediadora entre cultura e crianças. Bakhtin, Benjamim e Vygotsky são trazidos para a discussão, considerando a concepção ampliada dos estudiosos sobre linguagem como produto e produção social e cultural, que ora se assemelha, ora se complementa entre si. (SOUZA, 2008). Walter Benjamin conceitua experiência e vivência demonstrando como as vivências, quando resgatadas através da linguagem, da narração, podem se transformar em experiência histórica, renovada e reativada nos sujeitos que se apropriam desse universo simbólico para fazerem-se e estarem socialmente. Estudamos a distinção que Benjamin estabelece entre vivência (reação a choques) e experiência (vivido que é pensado, narrado): na vivência, a ação se esgota no momento de sua realização (por isso é finita); na experiência, a ação é contada ao outro, compartilhada, tornando-se infinita. Esse caráter histórico, de permanência, de ir além do tempo vivido e de ser coletiva constitui a experiência (KRAMER, 2009, p.33). A infância que vivencia os diferentes tipos de linguagens socialmente produzidas, como a mídia, as tradições, as linguagens escolares e a literatura, está constantemente exposta à narração do outro sobre si e suas experiências. Essa relação com o outro lhe diz formas de conduzir-se nas teias da cultura que introjeta. Para Benjamim ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3228 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. (BENJAMIN, 1994, p. 198). Para o autor é na narração que se celebra o diálogo, pois o outro ouvinte se encontra na experiência e a incorpora, a experimenta como experiência estética, faz parte da experiência do narrador no momento em que interpreta sua exposição e que bebe em sua sabedoria sobre a tradição e a cultura. Para ele, na modernidade, a “arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção.” (BENJAMIN, 1994, p. 199-200). Em uma passagem de um de seus textos, Benjamin elucida, com licença poética, o que, a partir dele, conseguimos entender como experiência estética da linguagem e da cultura. Era preciso abrir caminho até os cantos mais recônditos; então deparava minhas meias que ali jaziam amontoadas, enroladas e dobradas da maneira tradicional, de sorte que cada par tinha o aspecto de uma bolsa. Nada superava o prazer de mergulhar a mão em seu interior tão profundamente quanto possível. E não apenas o calor da lã. Era “tradição” enrolada naquele interior que eu senti em minha mão e que, desse modo, me atraía para aquela profundeza. Quando encerrava no punho e confirmava, tanto quanto possível, a posse daquela massa suave lanosa, começava então a segunda etapa da brincadeira que trazia a empolgante revelação. Pois agora me punha a desembrulhar a “tradição de sua bolsa de lã. (BENJAMIN, 1987, p.122) Nesse trecho de Mão Única (1987), Benjamin deixa claro que não apenas escreve sobre as formas de captar a cultura, mas expõe sua forma de experimentá-la, sua maneira de expressá-la, em um texto que é uma narrativa sobre como a tradição, retomada e reativada em simples ações, são traços históricos, datados, que produzem subjetividades, atravessando corpos, falas, sentimentos e desejos clandestinamente vivenciados. Nessas águas cabe trazer a lógica do diálogo proposta por Bakhtin, uma visão ampliada da linguagem que entre narrador e ouvinte não existe passividade em nenhum dos lados, uma vez que o narrador, quando reaviva história e expõe sabedoria sobre seu folclore e cultura, também reaprende. Por outro lado, o ouvinte, utilizando seu repertório reinterpreta a fala do narrador reunindo, reproduzindo e produzindo saberes. No que diz respeito a Bakhtin, o que nos interessa é observar como os sujeitos organizados socialmente fazem surgir os signos e como a partir deles e de todo o sistema de linguagem, organizam sua vida prática, sua cultura, seu grupo social e sua história. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3229 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Por mais diferentes que sejam, os signos só podem se constituir como um sistema a partir de alguma organização social. O social, portanto, precede o individual. A própria complexidade do mundo interior dos indivíduos depende da complexidade da organização social no interior da qual eles existem. Por isso, para Bakhtin, a questão da ideologia consiste em saber como o signo reflete e refrata a realidade em transformação. Assim como Benjamin, Bakhtin trava uma luta contra a coisificação do homem e da história, considerando que a linguagem é mediadora e que o homem se constitui nela. (PIMENTEL, 2011, p.63) Nos interessa, principalmente, o processo desse fenômeno social que ocorre numa relação dialógica entre sujeitos, tomando uma proporção de imediatismo na vida das pessoas. Fazendo a linguagem acontecer na prática cotidiana, moldando-a, surgindo constantemente na correnteza do seu uso e na potencialidade de seu inacabamento permanente. Muito atrativo também o fato de as crianças, imersas que estão no mundo social estarem sempre se apropriando desse renovar, correr sem fim dos sujeitos com a linguagem, com as formas de dar sentido às coisas e fenômenos, dentro de um modo infantil de desejar, construir e experienciar a vida, pois “[…] Aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico, faz dele um instrumento de refração e de deformação do ser” (BAKHTIN, 2004, p.47).Que tem a ver com o inacabado, com submergir nas águas mornas e turbulentas do processo de utilização da linguagem, de sua renovação e da tensão social vivenciada nesse processo. Isso tudo é evidenciado quando Bakhtin diz que “O signo e a situação social em que se insere estão indissoluvelmente ligados. O signo não pode ser separado da situação social sem ver alterada sua natureza semiótica”. (IDEM, p.62) Para Vygotsky a linguagem tem a mesma condição de importância no desenvolvimento da consciência dos sujeitos. Para ele é na interação social através da linguagem que ocorre a interiorização das formas culturais de existência do grupo social no qual se está inserido. Ainda sobre isso Pimentel (2011), nos esclarece que O processo de internalização da linguagem é primeiro interpsíquico e depois intrapsíquico. Dessa forma, o significado da palavra é a chave da compreensão da unidade dialética entre pensamento e linguagem. A palavras são plurivalentes, pois toda frase tem um subtexto que traduz desejos, sentimentos, interesses. Logo a compreensão do que o outro diz depende da interação do ouvinte com a base afetivovolitiva do locutor. Entre o verbal e o extraverbal existe a possibilidade de múltiplos sentidos. (p, 65) Em Vygostsky, quando a criança, sujeito do processo, se inicia em um processo de apropriação da linguagem que ocorre em etapas. É na relação pensamento palavra que, para o ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3230 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino autor, a consciência (ou as estruturas psicológicas superiores) se desenvolve, pois para ele, “o pensamento não é simplesmente expresso em palavras, é por meio delas que ele passa a existir” (VIGOTSKY, 1987, p. 108). Socialmente as crianças se apropriam dos instrumentos culturais e isso acontece num sentido múltiplo, atingindo os aspectos fisiológicos, psicológicos e culturais delas nas diferentes fases de suas vidas. Por se interessar por esse processo de desenvolvimento como o entende, Vygotsky diz: Esse fluxo de pensamento ocorre como um movimento interior através de uma série de plano. Uma análise da interação do pensamento e da palavra deve começar com uma investigação das fases e dos planos diferentes que um pensamento percorre antes de ser expresso em palavras (VIGOTSKY, p.108) Embora o caráter de interiorização da cultura pelos sujeitos seja o que mais nos interessa, nesse texto, trazemos esse aspecto da teoria Vygotskyana, por ser um ponto que se destaca em relação aos outros autores que trouxemos junto com ele na construção da visão de linguagem nesse trabalho. Dentre os três, ele certamente é o que mais se preocupa com as fases de desenvolvimento do ser social, considerando-o em etapas específicas. Benjamin, Bakhtin e Vygotsky trazem a perspectiva histórica, dialética e humana da linguagem. Afirmando a linguagem como expressão, dão ênfase ao riso, ao extraverbal, e à possibilidade humana de criação e de transformação. Suas interpretações negam a linguagem instrumental, cristalizada, monovalente.(…). Também contribuem para considerarmos o homem como sujeito social, ativo, produtor de sentido, valorizando a estética, a ética e a afetividade, formas de conhecimento além de lógico e do racional (KRAMER, 1993 p.46). É a capacidade de enxergar a cultura como algo que se torna parte da natureza de cada pessoa, e que isso acorre na interação com o outro, dando às formas de utilização da palavra e do extra verbal múltiplas possibilidades de sentidos, que nos remete tanto a Vygotsky, quanto a Bakhtin e Benjamin. A LINGUAGEM DO (NO) CORPO Que lugar o CORPO ocupa no processo ensino-aprendizagem? Um local em que habitam muitas linguagens, expressões, singularidades plurais, eixo fundamental de percepção do ser CRIANÇA. Confirmação de algo existente, concreto, construído nas relações sociais e ao mesmo tempo, por muitas vezes, desconhecido e/ou ignorado. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3231 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino A dimensão corpo se faz presente em todos os processos formativos, mas é incrivelmente desconsiderado quando iniciamos uma reflexão acerca de um conceito que possa definir o que é corpo. Somos incapazes de formular uma ideia imediata de corpo quando nos é questionado, assim, como somos muitas vezes incapazes de entender que falar de corpo tão somente é falar do meio mais imediato de contato do ser humano com o mundo físico, social e cultural e falar de ser humano é falar de possibilidades e potencialidades. [...] os corpos podem traduzir, revelar e evidenciar formas bem precisas de educação, modos bastante sutis de inserção de indivíduos e grupos em cada sociedade, por meio de formas múltiplas de socialização. Pressuponho, então, que o corpo é um dos locais onde se revela o que há de mais íntimo, mais profundo no humano, trata-se da possibilidade física de estarmos no mundo. (SILVA, 2012, p.19). Compreender as dimensões que se inter-relacionam nas múltiplas formas de organização e socialização culturais em cada sociedade. E neste contexto entender que o corpo, enquanto representação deste ser, se expressa em diversas formas de linguagens importantíssimas para repensar ações que envolvem práticas educativas no espaço da escola pública. Podemos ainda compreender o corpo enquanto local e instrumento de aprendizagem, capaz de interagir em todas as dimensões da vida sejam elas, física, intelectual, psicológica, ética, moral, social, estética e cultural! Como deixar de reconhecer o movimento e as sensações a que o corpo está submetido diariamente? Como desconsiderar as manifestações deste corpo e a forma como estas interações se revelam na sala de aula? E como estas interações podem fazer parte das práticas pedagógicas na escola? O corpo reconhecido neste texto como instrumento de aprendizagem e possibilidades pedagógicas se depara com um sistema educacional e social fragmentado e excludente, objetivo e racional que desconsidera a expressividade de sua interação no cotidiano, questão fundamental para rever práticas e saberes deste espaço de formação. Espaço este que continua a priorizar os saberes racionais em detrimento das interações e saberes subjetivos e que ainda considera o aluno como um expectador do processo ensinoaprendizagem. Um corpo separado da mente, interpretado pelas delimitações e pelo previsível planejado pelos professores. Idealizado e organizado a partir dos saberes e das práticas desprovidos de significados que continuam presentes nas propostas pedagógicas, nos espaços de formação de professores e nas rotinas das escolas. São corpos paralisados, idealizados e manipuláveis pela educação, mas, sensíveis às adversidades que se dão no ambiente em que convivem com iguais e diferentes. Em que a ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3232 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino diversidade se expressa através dos corpos perpassados pelas múltiplas linguagens no momento em que as experiências e a partilha “.tornar-se signo entre signos, transcendendo a natureza, ultrapassando o espaço imediato e o tempo presente” (GOUVEIA, 2011, p.02) Diante desta problemática surgem hipóteses que geram inquietações para percebermos como o corpo da criança, que se move, que corre, que cai, que sente dor, que tem necessidades, vontades e desejos, e que não são os mesmos para todos e nem tão pouco acontecem na mesma hora ou da mesma forma e que precisam ser respeitados, continuam desconsiderados nos planejamentos disciplinadores das práticas educativas na sala de aula. Um corpo produtor de cultura e produzido por ela, sujeito ativo deste processo de formação e dono de uma singularidade particular, que por ser singular é plural e presente em uma sociedade que o observa de longe, em uma perspectiva determinada pela produtividade, ou seja, pelo lucro. Portanto, tornar práticas educativas significativas para as crianças é ultrapassar as proposições ordenadoras do trabalho docente na escola. Nesta relação a criança ainda é considerada improdutiva e sem potencial, sobretudo a criança da escola pública, filha de uma classe social marginalizada e excluída dos processos de aprendizagem satisfatórios definidos por políticas e práticas educacionais distantes do chão da escola. Uma pluralidade cultural que produz e que se apresenta no dia-a-dia das crianças junto as suas famílias, nas brincadeiras, nas expressões, nos dialetos que rapidamente ganham domínio público, mas, que não são considerados saberes formativos para “muitas escolas”. A experimentação das possibilidades de narração de um mundo construído pelas crianças permite que “as aprendizagens se efetivem e os processos de subjetivação se colocam como movimentos individuaiscoletivos” (SILVESTRI, 2010, p.09). A narrativa da criança se desloca, subvertendo a ordem encontrando alternativas. As crianças “habitam, dão cor e vida, pela imaginação e criatividade, movimentando e modificando a estética do espaço [...].O ato estético não é neutro, não é condição natural dos sujeitos, é criado “nas” relações que são estabelecidas socialmente” (KRAMER, 2011, p.100). Vemos um horizonte de possibilidades e uma discussão bastante complexa e ampla se considerarmos que o corpo durante a história evolutiva do mundo passou por diversas formas de conceituação e formas de controle. Nos diversos momentos históricos tivemos nossos corpos idealizados, moldados, disciplinados, controlados, vigiados, normalizados e conduzidos para a organização de sociedades que atendam a demanda de cada época. [...] a lógica mecânica do século XVII, a lógica energética do século XIX e a lógica informacional do século XX foram usadas como abordagens de ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3233 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino estudos que tiveram o corpo como objeto ao longo da sua história. Para muitos pensadores, no final do século XIX, o corpo era um pedaço de matéria, um feixe de mecanismos. O século XX resgatou e aprofundou a questão da carne, do corpo animado, corpo vivo, que age, reage e interage, estabelecendo relações corpóreas. [...] O século XXI apresenta um corpo que é objetivo e subjetivo; espiritual e corpóreo; que representa e é representado; que carrega consigo sua cultura, sua história, que sofre processos identitários e de inclusão/exclusão no campo individual e coletivo. (SILVA, 2012, p.60). Enfim, ressignificar saberes e práticas tornam-se necessários à medida que em muitas de nossas atitudes estes, são contraditórias. Acreditamos porque vivenciamos no nosso dia-a-dia enquanto professores, que alguns projetos e programas institucionais chegam aos espaços de formação sem nenhuma avaliação mais criteriosa, ou muito menos sugerem uma reflexão mais crítica por parte dos envolvidos. Há uma adaptação do corpo às circunstâncias do momento, em que pouca ou nenhuma alteração acontece em consideração às manifestações ou desejos expressos, mas que “interconectadas”, influenciam-se na forma como se organiza a condução dos processos formativos. Sem uma releitura dos processos formativos que desconsideram o corpo e sua expressividade, sejam das crianças, ou dos professores, não conseguiremos repensar processos de formação educativos de qualidade, em que as relações e interações humanas e subjetivas não sejam reconhecidas nos espaços. É nesta releitura que entenderemos que são manifestações dos desejos que em acordo com Silvestri, “subvertem regras e atribuem sentidos, significados e formas de enfrentamento aos valores dominantes” (SILVESTRI, 2010, p.01). A ausência de ações que demonstrem o sentimento de pertencimento e reconhecimento nas ações formativas se esvazia nos processos educativos que dizem buscar a igualdade, a liberdade e o respeito à diversidade como formas de expressão de uma atividade que deveria ser democrática, consequentemente, igualitária em oportunidades a todos. A LINGUAGEM DO CORPO NA ESCOLA Contextualizando o espaço da escola pública, a dimensão infância e as diversas linguagens, identificamos na contemporaneidade um paradoxo no pensar sobre a infância, a criança e a escola. Dispomos de um leque de dispositivos de aprendizagem avançados, conhecimento cientifico amplamente divulgado, programas e políticas de governo que começam a reconhecer a criança enquanto sujeito de direitos historicamente constituídos. Entretanto, observamos que o trabalho desenvolvido no espaço escolar mostra-se distante das ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3234 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino ações de pertencimento significativo da organização pedagógica dos processos educativos. E para pensarmos sobre esta relação de pertencimento trazemos Walter Benjamim em Canteiro de obra, As crianças (grifo das autoras)... [...] sentem-se irresistivelmente atraídas pelos destroços que surgem da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e para elas unicamente. Neles, elas menos imitam as obras dos adultos do que põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que com eles aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si. Com isso, as crianças formam para si seu mundo de coisas, um pequeno no grande, elas mesmas. (BENJAMIM, 1995, p.18-19). Mais preocupados com os processos de escolarização da criança pequena do que com a compreensão do que seja corpo e sua presença e reconhecimento enquanto instrumento de aprendizagem, práticas tradicionais vêm determinando e naturalizando na escola conceitos desconectados da realidade. Esta concepção vem uniformizando a aprendizagem das crianças levando-as a não se identificarem com o espaço da escola em sua totalidade. Bem como, impedindo que as mesmas construam suas próprias lógicas e seus próprios conceitos a partir de aspectos que surgem do sono a brincadeira. Neste espaço a atividade da brincadeira não está preocupada com estruturas sofisticadas e nem muito menos com brinquedos educativos regrados que acabam por inibir a imaginação das crianças. As crianças já têm em sua natureza as habilidades necessárias para criar e recriar. Habilidades estas que se organizam a partir da experiência que as crianças vivenciam em sua comunidade, com sua família e, com seus pares. [...] a imaginação adquire uma função muito importante no comportamento e no desenvolvimento humanos. Ela transforma-se em meio de ampliação da experiência de um individuo porque, tendo por base a narração ou a descrição de outrem, ele pode imaginar o que não viu, o que não vivenciou diretamente em sua experiência pessoal. (VIGOTSKI, 2009, p.25) Esta mudança de atitude diante da criança se faz necessária para que não se esgotem as possibilidades de um refletir sobre o processo de ação-reflexão-ação na sala de aula, e assim, poder redimensionar saberes com vistas a atingir uma dimensão maior de exploração da aprendizagem e da curiosidade das crianças. Tornando o espaço da escola um lugar de descobertas significativas que vão além do conhecimento fantástico que as crianças já trazem e produzem. Envolvidas e permeadas pela cultura que faz parte de seu cotidiano, a criança produz e se faz produzir em novas relações, ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3235 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino As brincadeiras, as artes e as práticas corporais observadas emergem como conhecimentos contextualizados na cultura contemporânea; tanto trazem marcas da institucionalização das relações como abrem brechas para a mediação das experiências sociais, revelando-se como dimensão ética e estética do humano, tempo-espaço de ampliação das possibilidades de ler o mundo e escrever uma história coletiva (KRAMER, 2012, p.12). Nosso desafio está em repensar nossas práticas educativas e reconhecer os saberes culturais do cotidiano de nossas crianças, como saberes formativos no espaço escolar e para além deste espaço. Desafiadores de currículos sem flexibilidade que negam e silenciam culturas. Inverter esta ótica cruel e desumana que incutem nos espaços de formação “legitimados”, que crianças de famílias com baixo poder aquisitivo, de pouco acesso aos bens culturais, filhos de pais com pouca ou nenhuma escolaridade continuem apresentando o pior desempenho escolar. O espaço da escola precisa reconhecer que crianças “emparedadas” termo utilizado por Tiriba (2010), distanciadas da natureza e, portanto sem relação com o mundo lá fora, acabam por fazer parte de uma prática pedagógica que cada vez mais divorcia corpo e mente. Crianças sentadas, enfileiradas, controladas, não terão seu aprendizado garantido, mas, irão aprender a separar o pensar e o sentir presentes na relações que permeiam o processo de aprendizagem ao qual fazem parte. São crianças “[...] aprisionadas, [...] despotencializadas, adormecidas em sua curiosidade, em sua exuberância humana” (TIRIBA, 2005, p.2). Se este espaço foi legitimado como espaço de ensino e de aprendizagem, de viver o que é bom, de se aprender no dia-a-dia com o outro, com o diferente, de reinventar e de ser capaz de potencializar na criança, novas formas de sociabilidade e de subjetividades vão estar presentes nesta (re)construção e (re)organização de práticas pedagógicas da escola em que a criança é sujeito deste processo. Só uma pedagogia que respeite as vontades do corpo poderá manter viva a potência infantil, pois o livre movimento dos corpos está na sua origem, e possibilita o encantamento, o questionamento, a indagação e o conhecimento das crianças em relação ao mundo físico e social, ao tempo e à natureza (TIRIBA, 2010, p.5) Reinventar o tempo, os espaços, as rotinas, ou seja, reinventar a escola, não é algo que possa ficar a critério de um só corpo que decide o que é prioridade ou não. Esta situação é real, precisa ser superada, para que estes espaços de convivência voltem a ser um lugar de pertencimento e reconhecimento por este sujeito criança. Se como diz Tiriba, 2010, se a criança é sujeito deste processo, partícipe de uma construção que a longo prazo tem nos ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3236 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino apresentado diversas hipóteses, para problemáticas ativas e presentes na escola, não podemos aceitar que estas questões fiquem à margem das discussões reflexivas. É relevante entender que o processo de democratização e universalização da educação básica vem possibilitar o acesso das crianças à escola, mas deve também, possibilitar a permanência destas neste espaço. Que sejam consideradas as limitações das políticas públicas para a educação, quanto à execução, implementação, manutenção e qualidade deste processo, acesso e permanência, tanto para alunos como para professores, mas, que pese junto a todas as reivindicações o compromisso de todos, sujeitos singulares e, portanto, plurais com uma educação pública, gratuita e de qualidade. CONSIDERAÇÕES Trouxemos para a discussão deste texto uma concepção de corpo enquanto instrumento de ensino e aprendizagem a partir de sua relação direta com as múltiplas linguagens que constituem o imaginário infantil e suas práticas sociais. Identificamos a linguagem do corpo e como esta, tem sido negligenciado na organização das práticas e saberes para a formação da criança na escola, na formação do professor e ainda, através do trabalho pedagógico planejado e organizado pelos professores em detrimento do sujeito criança. Este sujeito criança que se origina em distintas concepções de infância durante os diversos períodos históricos em que o contexto social, político e econômico define que criança será idealizada. Propôs a interação entre o corpo e as linguagens e a necessidade de um repensar sobre a criança que produz cultura, mas que também recebe e se modifica pelos processos culturais em que se encontra envolvida. Conhecer a infância e as crianças favorece que o humano continue sendo sujeito crítico da história que ele produz (e que o produz). Sendo humano, esse processo é marcado por contradições: podemos aprender com as crianças a crítica, a brincadeira, a virar as coisas do mundo pelo avesso. Ao mesmo tempo, precisamos considerar o contexto, as condições concretas em que as crianças estão inseridas e onde se dão suas práticas e interações. Precisamos considerar os valores e princípios éticos que queremos transmitir na ação educativa (KRAMER, 2006, p.17). Notadamente os processos formativos voltados à criança começam a ter seus direitos garantidos e efetivados pelas políticas públicas para a educação infantil e o discurso traz a necessidade de se repensar as práticas em relação ao trabalho pedagógico com as ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3237 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino múltiplas linguagens, a fim de que, possamos construir uma relação de pertencimento entre as crianças e o espaço escolar. REFERÊNCIAS ARIÉS, P. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2.ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981. BAKHTIN. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 2004. BENJAMIN, W. Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1997. (Obras escolhidas, v. 2.) ______, Walter. 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Kátia Aparecida de Souza e Silva – PUCMINAS [email protected] Marco Aurélio Ferreira Alves – PUCMINAS [email protected] Resumo O presente trabalho é o resultado de duas pesquisas realizadas no período de 2009 a 2011 que inserem-se na linha de investigação currículo e sala de aula a fim de compreender a materialização do currículo como espaço de formação. A metodologia utilizada foi a Hermenêutica Objetiva desenvolvida pelo sociólogo Ulrich Oevermann, que permitiu compreender a escola a partir da reconstituição da aula. A primeira pesquisa denominada Limites e possibilidades de formação do empreendedor-cidadão: o que revela a sala de aula de duas disciplinas de caráter técnico em uma escola de formação de empreendedores, em Belo Horizonte. A investigação procurou elucidar se as disciplinas do currículo técnico formam o empreendedor-cidadão. Observou-se que a proposta curricular de formar o sujeito empreendedor não se realiza. A segunda investigação intitulada Currículo e processo pedagógico: a proposição educar, ensinar e formar no currículo materializado na sala de aula objetivou compreender o processo pedagógico sustentado pela tríade educação, ensino e formação nas aulas de História, Língua Portuguesa e Matemática do 9º ano do Ensino Fundamental. Os estudos ampararam-se na Teoria pedagógica, teoria crítica de currículo e Teoria Crítica de Adorno. A investigação evidenciou uma semiformação. Palavras chave: Currículo - Sala de aula - Teoria Crítica. Abstract This work is the result of two surveys conducted in the period 2009-2011 that fall into the line of inquiry curriculum and the classroom in order to understand the materialization of the curriculum as a training space. The methodology used was the Objective Hermeneutics developed by sociologist Ulrich Oevermann who could understand the school from the reconstitution of class. The first research called Limits and possibilities of formation of citizen - entrepreneur: revealing the classroom two disciplines of technical training in a school of entrepreneurs, in Belo Horizonte. The research sought to elucidate whether the disciplines of technical curriculum form the citizen entrepreneur. It was observed that the proposed curriculum form the entrepreneurial subject is not realized. The second research entitled Curriculum and pedagogical process: the proposition educating, teaching and training in the curriculum embodied in the classroom aimed at understanding the educational process supported by the triad education, teaching and training in the lessons of history, Portuguese and Mathematics of the 9 Th grade key. Studies bolstered up in pedagogical theory, critical theory curriculum and Critical Theory of Adorno. The investigation revealed a erudition. Keywords: Curriculum - Classroom - Critical Theory. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3240 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Introdução Este trabalho objetiva apresentar o resultado de duas pesquisas fundamentadas na Teoria Crítica, Teoria do campo do currículo e na Teoria Pedagógica. A primeira pesquisa denominada Limites e possibilidades de formação do empreendedor-cidadão: o que revela a sala de aula de duas disciplinas de caráter técnico em uma escola de formação de empreendedores, em Belo Horizonte procurou elucidar se as disciplinas do currículo técnico para formar o empreendedor-cidadão, ao se materializarem na sala de aula deixavam em evidência a formação desse sujeito. Já a segunda pesquisa intitulada Currículo e processo pedagógico: a proposição educar, ensinar e formar no currículo materializado na sala de aula objetivou compreender o processo pedagógico sustentado pela tríade educação, ensino e formação nas aulas de História, Língua Portuguesa e Matemática do 9º ano do Ensino Fundamental. Nas pesquisas, teoria crítica de currículo colaborou na compreensão de uma visão de um currículo historicamente construído, na seleção dos conhecimentos considerados legítimos pela sociedade para fazer parte do currículo. E, além disso, questionar o papel do currículo, compreendendo o que o mesmo se propõe a realizar; que tipo de sujeito o currículo pretende formar e para qual sociedade o sujeito está sendo preparado, ou seja, qual é a função social da escola dentro de um determinado contexto histórico (APPLE, 2006). Já a teoria pedagógica permitiu discutir a formação do homem tendo como ênfase a razão, manifestada não somente pelo conhecimento técnico e científico, mas pela capacidade de fazer uso pleno da sua autonomia intelectual, pela formação moral e ética. Ser, de fato, no conceito moderno, um cidadão emancipado. Ao pensar em formar um determinado sujeito, a teoria educacional perpassa pelo formato de um currículo com determinadas disciplinas, seleção de conteúdos, tempos de aula, geografia da sala de aula. Nesse sentido, o currículo deixa de ser um mero instrumento técnico, este já possui algum tempo uma tradição crítica dentro do campo educacional, tornando-se um objeto contínuo de análise e problematização. A Teoria Crítica possibilitou através dos conceitos de esquematismo kantiano (Theodor Adorno) e de Indústria Cultural (Horkheimer- Adorno) referências centrais para discutir a escola revelada na sala de aula. Salienta-se aqui que Horkheimer e Adorno reconfiguram o conceito de cultura de massas para Indústria Cultural, concebendo o processo de dominação ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3241 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino do pensamento através da cultura produzida e difundida segundo uma ordem estabelecida que transforma as relações sociais em relações de heteronomia e incapacita o sujeito para o exercício pleno de autonomia de pensar e de agir. Como orientação teórico metodológica foi utilizada nas pesquisas, a análise sociológica Hermenêutica Objetiva, que possibilitou conhecer a escola para além de suas aparências com a reconstrução do processo pedagógico que se materializa na sala de aula. Essa metodologia de análise consiste em um método desenvolvido pelo sociólogo Ulrich Overmann da Universidade de de Frankfurt, seguindo a tradição chamada Escola de Frankfurt, embasado no trabalho de pesquisa de Adorno, um dos fundadores da Teoria Crítica Social. A Hermenêutica Objetiva é uma inovação dentro do campo da pesquisa qualitativa possuindo particularidades que diferenciam das demais formas de pesquisas. É um método que visa à interpretação e análise de textos produzidos a partir de dados empíricos, registrados, de forma fidedigna, coletados a partir de gravação em áudio. O texto, denominado protocolo é a condição chave para que o método seja aplicado. A análise do protocolo segue um procedimento rigoroso e complexo. Cada detalhe da aula analisado procura enfatizar os pormenores com indagação sistemática e pormenorizada dos fatos. O protocolo é analisado por uma equipe de profissionais de diferentes áreas do conhecimento que levantam as possibilidades de explicação das falas que compõem a aula. Após um conjunto de aulas, o pesquisador analisa as regularidades que regem a estrutura das aulas e as evidências que se apresentam na investigação. Desenvolvimento As evidências das duas pesquisas Segundo Adorno (1995), o papel da educação é promover a capacidade do sujeito de libertarse da condição de ser tutelado (Mundel), aquele que precisa de tutela de outrem, para torná-lo (Mündig), aquele que é capaz de agir, decidir e pensar por conta própria (VILELA, 2006). O que evidenciam as pesquisas? O início da aula e o seu desenvolvimento ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3242 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino A entrada do professor na sala constitui um importante momento para efetivação da aula. Nesse momento, existe uma futura promessa para a constituição do que será a aula (VILELA, 2010). Assim, segundo estudiosos, ele é primordial para o exercício do efetivo trabalho educativo. Nas aulas analisadas, pode-se observar um relativo estabelecimento de vínculos entre professor e alunos por meio do cumprimento, que é pessoal e com cortesia. Pode-se dizer que a entrada do professor na sala de aula constituiu o início de uma possível interlocução deste com os alunos. Nesse momento, em todas as aulas, foi observado que os alunos encontravam-se fora de seus lugares, ou seja, fora de suas cadeiras, conversando e até mesmo gritando. Isso definiu o tom da aula, pois os professores começaram a aula sempre exercendo papel disciplinador, pois precisavam estabelecer a ordem necessária para o início da aula. Nas aulas de História Matemática e Marketing, evidenciou-se relativa tensão na sala de aula devido à falta de organização para o início da aula. Esse início foi protelado por mais de cinco minutos pelos alunos. O tempo ocupado para a organização da turma para que a aula de fato se instaurasse é uma situação que chamou atenção. Nela, o professor cumpre seu papel educativo tentando organizar a turma de modo a constituir o trabalho pedagógico. Comenius (2002), Kant (1996) e Hegel (1994) pontuam que o professor não deve começar uma aula sem que antes os alunos estejam atentos e organizados. Observa-se, nessas aulas, que os alunos demonstram uma dificuldade de organização para iniciarem o trabalho, conversando entre si, mantendo-se localizados no fundo da sala e ainda com um aluno pedindo constantemente para se ausentar da turma. A situação presenciada, registrada no caderno de campo e analisada pelo grupo de intérpretes evidencia que os alunos não compreenderam as regras necessárias para o início da aula, ou ainda não a consideraram importantes. Em relação a essa situação, Comenius afirma que as regras somente poderiam constituir parte dos sujeitos à medida que o processo educativo fosse alicerçado no entendimento das regras e estas fossem reconhecidas pelos sujeitos como importantes, o que possibilitaria sua internalização com autonomia. Este constituiria para o autor as reais possibilidades para que a educação acontecesse de fato. Nessa aula, internalização não estava estabelecida. Desse modo, no lugar de educação para autonomia impõe a condição disciplinadora. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3243 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino O disciplinamento é algo importante na dinâmica da aula para criar as condições favoráveis para o desenvolvimento da aula e ajudar os discentes a entenderem o seu papel de aluno. No entanto, a aula não pode ficar somente no disciplinamento, pois, se o professor, o tempo todo, fica apenas nos comandos da aula, isto não contribui para o desenvolvimento da autonomia do aluno. Além do mais o disciplinamento favorável ao desenvolvimento social do aluno não é aquele se aplica com imposições e controle, mas o que permite desenvolvimento de discernimento e decisão com autonomia. Lembrando que a escola deve ser um espaço em que a juventude tenha condições de vivenciar práticas pedagógicas que colabore para a formação de um sujeito autônomo, a dinâmica da aula deve favorecer o crescimento do aluno em uma das suas dimensões formativas (educação/ensino). Ficar sujeito a imposições, rituais e atividades de reprodução de informações sem discuti-las, sem refleti-las, é o contrário do que deveria ser a experiência de sala de aula, segundo o que salienta Adorno (1995). Tarefa educativa da professora: nenhum a menos na sala de aula Conhecer os alunos é uma tarefa que envolve o trabalho educativo do professor. Comenius (2002) e Hegel (1994) salientaram com clareza essa necessidade para o desenvolvimento de uma educação e de um ensino relevante e de significado para os alunos. Na aula de Matemática, destaca-se uma preocupação por parte da professora em relação às faltas esporádicas e à ausência prolongada dos alunos na escola, um sinal que ela valoriza o trabalho educativo da escola. Nas aulas observadas a forma como os professores se dirigem a seus alunos deixa claro que eles os conhecem. Além disso, reconhecem que a falta deles faz diferença no processo de aprendizado. No início da aula de Matemática, a professora demonstra preocupação com o lugar em que o aluno está, reconhecendo que é preciso controlar o melhor lugar para aproveitar a aula e assim ela pontua: PROFESSORA: Você pode sentar aqui, Aluno masculino 2, por favor. Onde você está não é bom para você. Nós já conversamos sobre isso. Aluno masculino 2: Ah, não.... (O aluno ri e diz) Mas, você pediu. Pra mim ta tudo bem. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3244 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Em várias passagens das aulas observa-se que a professora tem controle sobre a classe e que valoriza situações que regulam as condutas dos alunos que podem favorecer sua participação e aproveitamento da aula. Há uma manifestação clara que sabe e quer educar os alunos para seu papel de aluno. Estar na sala de aula envolvido com o processo educativo é a primeira condição para o aprendizado. De forma geral, foi observada uma preocupação em relação à frequência dos alunos. A chamada é realizada em todas as aulas para observar a ausência dos alunos na escola e na sala de aula. Esta é uma forma de controle da instituição que diante da infrequência do aluno faz cumprir a legislação. Em uma das redes de ensino pesquisa existe uma regulamentação: o aluno com cinco faltas consecutivas ou dez alternadas, o professor deverá fazer o comunicado à direção para que seja acionada a família para que esta possa justificar as faltas. Este contato é feito através de visita à casa da família, telegrama e carta registrada. Se a família não conseguir ser localizada, é preciso fazer o BH escola1. Este BH escola é um comunicado que se faz ao Conselho tutelar informando a ausência do aluno na escola. A legislação e a ação da escola contribuem de certa forma para se evitar a evasão dos alunos. Pode-se dizer que essa ação entre Estado, escola e família constitui uma tentativa de se evitar ausência do aluno à escola conforme defendido por pelos teóricos da educação, principalmente Comenius (2002) e Hegel (1994). Síndrome da aula expositiva/ perguntas retóricas Outro aspecto constatado nas análises é a “síndrome” da aula expositiva. Nas aulas os professores ficam preocupados em dar todas as respostas, de passar a sua visão sobre os assuntos que estão sendo estudados. O aluno acaba ocupando o lugar da passividade, uma vez que não possibilita a participação efetiva destes na aula. O conhecimento que circula na sala de aula ocorre em forma de um monólogo, um diálogo solitário, centrado apenas na figura do professor. Esse modelo de aula centrado apenas no professor contraria os princípios da pedagogia moderna, que coloca o aluno no centro do processo de aprendizagem. Esse modelo impede o aluno de elaborar melhor as dúvidas, de compreender de fato o conteúdo que está sendo ensinado. Nas aulas analisadas, pude observar, em vários momentos, o interesse dos 1 Trata-se de um controle implementado pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. A escola tem um bloco de formulário denominado “Registro de Freqüência Escolar- BH na escola” onde é feito o registro da situação do aluno com cópia encaminhada ao Conselho Tutelar, a Promotoria da Infância e da Juventude e Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3245 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino alunos em aprender através das perguntas feitas e elas não são percebidas pelos professores, resultando na “síndrome” da aula expositiva. O professor, preocupado em demonstrar que domina o assunto, nem percebe de fato as perguntas feitas pelos alunos e responde em alguns momentos de forma irrefletida, não devolvendo a pergunta, não questiona a própria pergunta feita pelo aluno, não cria uma situação pedagógica para que, de fato, o processo de aprendizagem aconteça. Outro aspecto constatado é a fuga do tema da aula. Nas duas aulas os conteúdos foram sendo pulverizados ao longo das aulas. O professor, sem refletir as perguntas dos alunos e na ânsia de responder, acabava fugindo do tema e do objetivo da aula e criando situações de aprendizagem na sala de aula de puro senso comum. A própria ânsia do professor em querer responder de imediato às perguntas dos alunos, sem nenhuma reflexão, o induz ao erro. Outra questão observada é um contingente de informações erradas que circulam na sala de aula. Por exemplo, nas aulas de História, o professor diz que o Brasil possui a arrecadação tributária mais cara do mundo e que esta corresponde a sete meses de trabalho de um funcionário. Conforme dados divulgados pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em 15/12/2010, sobre a arrecadação tributária de 2009, no ranking mundial, o Brasil ocupa o décimo quarto lugar, atrás da Noruega, que ocupa o oitavo lugar e a Suécia que ocupa o segundo lugar. Além disso, o brasileiro teria de trabalhar o equivalente a 5 meses para pagar a cobrança de impostos por parte do governo. Os dados confirmam que as informações ditas pelo professor na aula estão incorretas. Na mesma aula, o professor, ao elaborar uma comparação entre o número de desempregados no período da crise de 1929, que chegava a 15 milhões de pessoas, afirma que este número corresponderia a sete ou oito vezes a população da cidade de Belo Horizonte. Essa informação também não procede, tendo-se em vista que, segundo censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no ano de 2009, a população da cidade de Belo Horizonte estava estimada em 2.452.617 habitantes. A linguagem ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3246 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino A linguagem utilizada em sala de aula, na maioria das vezes, é informal, sendo que em determinados momentos da aula chega a ser uma banalização do conhecimento. É importante lembrar que a sala de aula é um dos lugares constituído e legitimado pela sociedade para a produção do conhecimento de caráter mais científico e acadêmico. Cuidar da linguagem é cuidar, também, da formação do aluno, de educá-lo no sentido de que a linguagem formal é mais adequada para ser utilizada em sala de aula. Além disso, devemos sempre usar na sala de aula os conceitos corretos, a linguagem técnica de acordo com a disciplina. Estas são práticas pedagógicas que contribuem de fato na circulação e construção do conhecimento na sala de aula. A linguagem favorece o aluno a decodificar melhor aqueles conteúdos que estão sendo ensinados na aula e desenvolve junto a ele uma compreensão mais sofisticada dos objetos que estão em discussão em sala de aula. Além disso, em situações de sua vida, o aluno fará uso da norma padrão e articulará com conceitos científicos. Se o professor não favorece na sala de aula o desenvolvimento dessa competência restringe o espaço de formação educativo ao senso comum, o que contradiz o motivo pelo qual segundo Comenius (2002), a escola foi edificada como lócus de educação, ensino e formação. A expropriação do pensamento Os dados revelam que a educação e o ensino, em grande parte, não possibilitam ao aluno um avanço significativo para além do ponto em que se encontra. Nessa ótica, a educação e o ensino não edificariam a formação pensada por Adorno. O que decorreria é uma semiformação, que, segundo o estudioso, expropria o sujeito da capacidade de pensar e de refletir. Esse processo de expropriação é operado pela Indústria Cultural2 e é sua finalidade última. Desse modo, a Indústria Cultural impediria a formação plena do homem, ou seja, daquele que possui autonomia, liberdade, capaz de julgar e decidir conscientemente. A forma com que os 2 A Indústria Cultural oferece um aparato que controla a consciência das pessoas e utiliza-se de técnicas para reificar o mundo aparente, dispensando a necessidade de reflexão. Isso é possível através da distribuição e reprodução mecânica de seus produtos que permanecem, ao mesmo tempo, submetidos à ideologia para sustentar a Indústria Cultural. Esta empobrece a cultura, quando, por exemplo, transforma grandes romances em folhetins e propaga o fácil acesso a uma mera disponibilidade mercadológica da obra (ADORNO, 1972). ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3247 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino professores efetivam as aulas parece evidenciar uma falta de consciência sobre instauração do processo de semiformação na sala de aula. Adorno ensina a refletir sobre até que [...] ponto tais reações subjetivas dos indivíduos são, na realidade, tão espontâneas e imediatas como dão a entender os sujeitos; até que ponto, por trás daquelas, escondem-se não só os mecanismos de propaganda e a força de sugestão do aparato, senão e também as condições objetivas dos meios e o material com que são confrontados os ouvintes e, por fim, as estruturas sociais mais amplas, até chegar à sociedade como um todo (ADORNO, 1995, p. 144). Os dados indicam que o professor, muitas vezes, na tentativa de facilitar o processo ensino aprendizagem elabora e indica para seus alunos o caminho a ser trilhado na compreensão dos conteúdos. Nessa perspectiva, os professores funcionariam como mediadores, operando o processo de esquematismo kantiano3, o qual deveria ser realizado pelos alunos. Desse modo, os docentes não apenas impossibilitam como retiram dos discentes a capacidade de pensar, na medida em que realizam essa importante atividade no lugar de seus alunos. Assim, os professores oferecem uma massa pronta de conhecimentos bastando que os alunos absorvam a lógica que é de outrem. Pode-se dizer que a tríade pensada teoricamente pelos estudiosos da educação e por Adorno não se realiza. Isto porque na maior parte das práticas curriculares efetuadas na sala de aula não se observou educação para a autonomia, um conhecimento consistente para sustentar a argumentação lógica do pensamento possibilitando o uso da razão e da reflexão, o que ocasiona a semiformação. O mundo, que permanece irracional, seria reconstruído como racionalização, num esquematismo planejado que substitui o que seria a experiência do consumidor, antecipando-a sob os desígnios do capital, resultando na ilusão de que o mundo exterior seria o prolongamento da produção nos termos da indústria cultural. No mundo reconstruído o sujeito semiformado toma-se como sujeito do mundo que meramente reproduz. Para ele a construção parece “natural”, mas é uma “segunda” natureza. No verbete “Para uma crítica da filosofia da história”, a questão retorna: “[...] a dominação conseqüente da natureza se impõe de uma maneira cada vez mais decidida e passa a integrar toda a interioridade humana” (ADORNO, 2003, p. 463). Para ele [o homem semiformado] todas as palavras se convertem num sistema alucinatório, na tentativa de tomar posse pelo espírito de tudo 3 A função do esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela Indústria Cultural. O esquematismo é o primeiro serviço prestado por ela ao cliente. Na alma devia atuar um mecanismo secreto destinado a preparar os dados imediatos de modo a ajustarem ao sistema da razão pura (HORKHEIMER, ADORNO, 1985, p. 103). ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3248 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino aquilo que sua experiência não alcança, de dar arbitrariamente um sentido ao mundo que torna o homem sem sentido, mas ao mesmo tempo se transformam também na tentativa de difamar o espírito e a experiência de que está excluído, e de imputar-lhes a culpa, que, na verdade, é da sociedade que o exclui do espírito e da experiência. Uma semicultura [ou semiformação] que por oposição à simples incultura [ou ausência de formação] hipostasia o saber limitado como verdade, não pode mais suportar a ruptura entre o interior e o exterior, o destino individual e a lei social, a manifestação e a essência. Essa dor encerra, é claro, um elemento de verdade em comparação com a simples aceitação da realidade dada (HORKHEIMER, ADORNO apud ADORNO, 1978, p. 463-464). Nesta ótica pode-se dizer que as práticas curriculares dos professores estão estruturadas sob a lógica da Indústria Cultural que através de um processo de dominação do pensamento reproduzindo a cultura produzida e difundida segundo uma ordem estabelecida. Desse modo, transforma as relações sociais em relações de heteronomia e incapacita os sujeitos para o exercício pleno de autonomia de pensar e de agir. Assim, os professores em suas aulas operando na lógica da Indústria Cultural estariam impossibilitados de romper com esse processo. Isto porque não lhes foi possibilitado refletir e agir com o uso da razão para pensar sobre seu exercício profissional. Desse modo, a sala de aula estaria alicerçada a serviço do capital, massificando as relações sociais e impedindo a humanização do homem e o desenvolvimento de sua autonomia. Todas as aulas evidenciam a forma como o currículo é materializado na sala de aula. Assim, pode-se dizer que [...] a aula, concretizando o currículo, revela a unidade dialética entre didática, aspirações educacionais relacionadas à formação de pessoas e de sujeitos capazes de vida em sociedade, portanto, a unidade dialética entre as aspirações da escola (objetivos revelados) e os seus resultados (GRUSCHKA apud VILELA, 2010, p. 146). Nas aulas analisadas, a tensão entre aspirações e a possibilidades da escola revela as dificuldades dessa instituição em educar e instruir, perseguindo a formação plena dos alunos. O currículo materializado na sala de aula não estaria possibilitando experiências formadoras capazes de formar o sujeito pleno, esclarecido, com possibilidades de uso da razão e reflexão para viver com seus semelhantes. Considerações Finais ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3249 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Nas duas pesquisas, as análises das aulas apontam o modo pelo qual a escola está lidando com a questão da construção do conhecimento. Em vários momentos, predomina o senso comum, impondo visões fragmentadas sobre um determinado objeto estudado. Os professores, muitas vezes reforçam a sua visão de mundo a partir de suas percepções sem nenhuma evidência científica. Além disso, as aulas indicam que os professores não criam momentos pedagógicos que levam os alunos a desenvolverem de fato a sua autonomia intelectual em que os mesmos se sintam capazes de produzir o próprio conhecimento. As aulas demonstram várias evidências em que os alunos estavam com vontade de aprender, sendo registradas várias perguntas deles que evidenciaram como estavam desafiados a compreenderem o tema apresentado. E, de certo modo, faltou aos professores a capacidade de mediar essas perguntas no processo de ensino-aprendizagem e oportunizar os mesmos o desenvolvimento da reflexão em sala de aula. Em relação à materialização do currículo, as aulas para a formação do cidadão-empreendedor deixaram a desejar, uma vez que, enfatizaram essencialmente informações técnicas da gestão do negócio. Em nenhum momento as aulas apresentaram preocupações relacionadas à formação da cidadania dos alunos. Tanto na aula de Gestão Financeira quanto na aula de Marketing ocorreram situações que poderiam ser aproveitadas pelos professores para discutir aspectos relacionados à cidadania, como por exemplo: as características do consumidor brasileiro, o papel do fetiche na economia capitalista, o papel da propaganda e seus aspectos ideológicos, enfim, vários assuntos que poderiam contribuir para a formação política desses jovens empreendedores que em breve estarão no mercado de trabalho. Partindo da premissa de que na teoria pedagógica a tríade (educar, ensinar e formar) se processa numa tensão entre elas e que a formação do sujeito seria o processo final em que a plena capacidade de se situar no mundo estaria assentada na apropriação dos aspectos educativos e de domínio de conhecimentos, a formação plena do sujeito não se concretizou. Referências ADORNO, Theodor W. Indústria cultural. In: COHN, G. (org). Comunicação e Indústria Cultural. São Paulo: Nacional, 1972. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3250 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino ADORNO, Theodor W. A filosofia e os professores. In: ADORNO, T.W. Educação e Emancipação. Tradução: Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1995, p.5174. ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. In: ADORNO, T.W. Educação e Emancipação. Tradução: Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 19ap.119-138. ADORNO.Theodor W. Educação para quê? In: ADORNO, T.W. Educação e Emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo, Paz e Terra, 1995b, p.139-154. ADORNO, Theodor W. Educação contra barbárie. In: ADORNO, T.W. Educação e Emancipação. Tradução: Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1995c, p.155-168. ADORNO, Theodor. A dialética negativa. Tradução: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. APPLE, M.W. Ideologia e currículo. 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ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3252 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino A BUSCA DE IDENTIDADE DE “ANGÉLICA”: UMA DISCUSSÃO SOBRE O CURRÍCULO NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL Marlos José Lima Machado – FURNE [email protected] Rute Pereira Alves de Araújo – UFPB [email protected] Resumo O trabalho, ora apresentado, é fruto de uma pesquisa bibliográfica em que se buscou refletir a construção identitária da criança através de personagens da Literatura infanto-juvenil, especialmente do personagem “Porto” da narrativa Angélica de Lygia Bojunga Nunes (1988). A partir da análise do personagem Porto, enfaticamente focado na narrativa, o professor poderá trabalhar aspectos da construção identitária das crianças, enaltecendo que as identidades se constroem na dinâmica pessoal/social, em espaços nunca fixos (QUEIRÓS, 2012). O estudo nos evidencia que a partir da leitura de texto literários o professor pode trabalhar temas complexos amparados pela leveza estética da literatura. Muito embora esse estudo nos evidencie a relevância da leitura literária realizada junto à crianças e jovens como contributo à formação identitária do leitor, foi percebido, também, os ranços que permeiam essa prática e por muitas vezes entravam os usos adequados das obras literárias nas salas de aula, dentre esses entraves podemos destacar a compreensão de currículo e formação que se têm, na maioria das vezes atrelada a linearidade de práticas que desconsideram a diversidade cultural e a diferença como nuance importante à identidade infantil que está sendo construída.(SILVA, 2000). Palavras-Chave: Identidade. Literatura Infanto-juvenil. Currículo. THE SEARCH FOR IDENTITY "ANGELICA": A DISCUSSION ABOUT THE CURRICULUM IN CHILDREN'S LITERATURE ABSTRACT: The work presented here is the result of a literature in which it sought to reflect the child's identity construction through characters of juvenile literature, especially the character "Porto" of the narrative Angélica of Lygia Bojunga Nunes (1988). From the analysis of the character Port, strongly focused on narrative, the teacher can work aspects of identity construction in children, highlighting that identities are constructed in the dynamic personal / social spaces never fixed (QUEIRÓS, 2012). The study shows that from the reading of literary text the teacher can work with complex issues supported by the lightness aesthetic literature. Although in this study highlights the relevance of literary reading held by the children and young people to contribute to the identity formation of the reader, was perceived also the biases that permeate the practice and often hinder the proper uses of literary works in rooms tuition, among these barriers can highlight the understanding of curriculum and training that have most often linked to linearity practices that ignore cultural diversity and difference as important nuance to the identity child being built. (SILVA, 2000). Keywords: Identity. Children and Youth Literature. Curriculum. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3253 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino 1. Introdução Sabemos que a questão da identidade vem sendo uma das temáticas mais discutidas na contemporaneidade. Identidade tornou-se alvo tanto das teorias educacionais críticas quanto as pedagogias oficiais, e acompanhando essa “explosão discursiva”, a literatura infantil vem através de seus autores, abordando em suas obras essa temática. É sabido, também, que essa temática também é amplamente difundida nas teorias que versam sobre Educação e Estudos Culturais, dentre os autores que tratam desse tema nessas duas áreas podemos destacar Tomaz Tadeu da Silva e Stuart Hall, autores que também fundamentam o estudo apresentado. A literatura infantil quando envereda a tratar de problemas que afetam ou interferem no indivíduo/sociedade, como questões relacionadas à identidade, torna-se um instrumento, que além de ser arte, é capaz de contribuir para a formação de um indivíduo necessário nos dias atuais. Assim, no cenário nacional várias autoras consagradas desse gênero literário vêm se esmerando em trabalhar a temática da diferença e da identidade em suas obras, podemos destacar ligeiramente: Ana Maria Machado, Mirna Pinsky, Lygia Bojunga Nunes, etc. É pertinente esclarecer que desde o final da década de 70 as autoras supramencionadas vêm abordando em suas obras, essa temática, é assim em Bem do seu tamanho (1979) e Bento que Bento é o frade (1983) de Ana Maria Machado e em Angélica (1988) de Lygia Bojunga Nunes. Através dessas obras, a criança leitora pode se identificar com as personagens nelas descritas, personagens infantis que partem em busca de explicações que lhes possibilitem firmar sua identidade, enfim, tratam de questões identitárias. Tentaremos, a partir desse trabalho, perceber a questão da identidade no contexto literário infantil a partir da obra “Angélica” (1979) de Lygia Bojunga Nunes, e mais precisamente da personagem “Porto” é que construiremos um diálogo com o que será dito, relação literatura infantil - criança e identidade – obra, buscando as relações que se estabelecem nesse diálogo com os currículos que construímos atualmente no contexto escolar. É importante salientar que a organização curricular na atualidade se preocupa mais com a padronização mecânica de seus componentes e saberes, desconsiderando com isso a diversidade cultural e identitária que compõe a escola, nessa perspectiva se vela a diversidade em sua riqueza de saberes, considerando as pessoas como se elas fossem únicas, em outras palavras se homogeneíza para facilitar as formas de controle social. (PEREIRA, 2010). ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3254 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Só para nos situar, iniciaremos falando da literatura infantil e o período quando esta começa a ir além do pedagogismo moral, enfatizando a questão da formação identitária do indivíduo a partir da infância, através de uma abordagem sucinta obra “Angélica”, em que direcionamos as reflexões a questão identitária, trazendo alguns recortes das falas das personagens que confirmam o conflito em relação à identidade “tida” e desejada, e posteriormente para concluir, dialogamos com essas falas sobre identidade e literatura infantil, na tentativa de confirmar a necessidade e importância da temática identidade como parte significativa não apenas no contexto da literatura infantil, mas, sobretudo no espaço escolar onde as identidade são construídas na tentativa de fixa-las, estabilizá-las, pois só assim as relações de poder e controle social poderão ser exercidas mais avidamente. (HALL, 2005). Pois “É também por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade.” (SILVA, 2000, p.91). 2. Iniciando Um Diálogo Entre Identidade E Literatura Infantil Foi a partir principalmente da segunda metade do século XX, que a literatura infantil se ampliou em relação ao seu público alvo. Com o aperfeiçoamento e maior facilidade de divulgação das idéias inclusive em áreas como pedagogia e da psicologia infantil, especialmente no que estava relacionado às etapas de desenvolvimento da criança; os escritores, as editoras etc., começaram a produzir/exigir obras que atendessem as necessidades desse público respeitando as propostas das novas ideias surgidas nesse período. (SALEM, 1970) O que podemos perceber, a partir desse contexto, é que a literatura infantil quando passa a dialogar com a pedagogia e a psicologia inspirando-se em Freud, Piaget, Vygotsky, dentre outros, e a própria quebra de paradigmas e de modelos tradicionais de ensino, acaba ampliando seu diálogo. Outras áreas do conhecimento como a sociologia, antropologia, filosofia contemporânea, psicolinguística, enfim, acabam entrando também na conversa, contribuindo para que a fantasia tão comum nesse gênero literário ajudassem a criança a se relacionar com o mundo exterior ampliando, inclusive, o seu “repertório cultural”. Os escritores passaram a utilizar tanto as ciências que tratam do desenvolvimento cognitivo, sensório e motor quanto às ciências que tratam das relações, do sentimento, do sagrado, enfim da cultura, para enriquecer e ampliar as temáticas e as discussões nas obras no gênero literário infantil. Dialogando com outras áreas do conhecimento, a literatura infantil ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3255 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino passou a ser capaz, enquanto meio de comunicação, de abordar por meio de uma linguagem simbólica, lúdica e prazerosa, questões sociais, culturais e econômicas as quais geralmente são difíceis de serem apresentadas às crianças de forma realista, o que se tornou significativo para o desenvolvimento da criança enquanto indivíduo social. (CARVALHO, 2004) Se tratando de identidade e literatura infantil brasileira, sabe-se que o “ponta-pé” inicial foi dado por Monteiro Lobato já na década de 20. A partir de suas histórias, começa a “falar para” a criança, entretanto, como dito anteriormente, é só na segunda metade do século XX, que o gênero passa, de maneira mais representativa, a abordar temáticas que se referem, por exemplo, à busca de identidade o que acabará influenciando vários escritores, todavia foi a partir da década de 70, que a literatura infantil: […] partiu, pois, para apresentar personagens que subvertiam as normas de comportamento vigentes e propunham uma ordem mais satisfatória para um maior número de pessoas. […] os heróis infantis passaram a ser constestadores e detonadores do conflito, revolucionando a ordem com as soluções propostas. (YUNE & PONDÉ, 1988, p. 79). Os anos 70 foram importantes para o amadurecimento do movimento literário infantil. Foi durante esse período que a literatura infantil brasileira através de um movimento de renovação e alternativas para os modelos comportamentais pedagógicos e moralizantes tão difundidos pela literatura de décadas anteriores, que fez surgir: […] dezenas de escritores e escritoras, obedecendo a uma nova palavra de ordem: experimentalismo com a linguagem, com a estruturação narrativa e com o visualismo do texto; substituição da literatura confiante/segura por uma literatura inquietador/questionadora, que põe em causa as relações convencionais existentes entre a criança e o mundo em que ela vive; questionando também os valores sobre os quais nossa Sociedade está assentada. (COELHO, 1985, p. 214) E entre essa literatura inquietadora e questionadora, a identidade passa a fazer parte do contexto literário infantil em busca de respostas para o sujeito social. Alguns autores como Hall (2005), Roudinesco (2000), Silva (2000) entre outros, abordam em suas obras que a contemporaneidade é marcada pela descentralização do sujeito. O sujeito não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente. Ela é transformada continuamente influenciada pelos sistemas culturais aos quais estamos inseridos, o que acaba transformando o homem de hoje em algo contrário de sujeito. “Quanto mais a sociedade apregoa a emancipação, sublinhando a igualdade de todos perante a lei, mais ela acentua as diferenças.” (ROUDINESCO, p.13). ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3256 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino As identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social. A identidade, pois, não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença. (WOODWARD, 2000, p.39) A identidade é simplesmente aquilo que se é. O indivíduo só é algo se existe o não algo (o diferente). Sendo assim, toda a produção que influenciou e influenciam esses (as) pesquisadores (as) em se tratando de identidade, também se fez e faz presente na produção literária contemporânea, e é claro, na literatura infantil. O que vem acontecendo representativamente desde a segunda metade do século XX. Nos últimos anos percebemos uma produção significativa nesse gênero literário que tratam das diferenças: o negro, a mulher, o homoafetivo, o idoso, entre outros, são temáticas que surgem fundamentadas a partir das produções e estudos voltados para questões de identidade e diferença muito percebidas nas obras destinadas à criança atualmente. Segundo Silva (2000), diferença e identidade são dependentes entre si. A diferença é um produto derivado da identidade. E ambas são indeterminadas e instáveis, são um processo de produção simbólica e discursiva. É nessa seara da diversidade que as políticas de currículo têm encontrado portas para a reflexão, especialmente no que tange a formação dos professores que, na maioria das vezes, não a concebem como processo contínuo, necessária à sua atuação em sala de aula. Roberto Sidney Macedo (2011) aponta para a necessidade de quê esse professor construa a consciência de suas necessidade de formação, que opera num movimento dialógico concretizado na coletividade. Através da formação contínua, perene, do educador ele será capaz de se indagar sobre, se as práticas por ele desenvolvidas respeitam a diversidade presente no contexto da sala de aula? Será capaz de se indagar sobre quais as perspectivas de currículo por ele apregoada em sala de aula? Prosseguindo a discussão sobre a discussão da temática “identidade” na literatura infantil, acreditamos que não tem como marcar uma data específica de quando esse diálogo se iniciou, porém, podemos perceber que a partir da quebra do sujeito iluminista, o início do processo, tendência ou talvez a necessidade de se falar em identidade foi um representativo começo. Vários fatores influenciaram para uma produção significativa sobre o tema identidade, mas foi durante o período do “sujeito pós-moderno” que se inicia uma produção significativa do tema nas obras infantis. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3257 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Se o texto literário vai além da temática enquanto fornecimento de informação, ele, além de tantas outras possibilidades, permite que o leitor vivencie situações existenciais. É através da identificação com os temas tratados e com as personagens que o leitor pode: afirmar sua personalidade, formular julgamentos éticos, e prolongar na leitura experiências e/ou questionamentos pessoais. (FARIA, 2005). O interessante de trabalhar a temática identidade na literatura infantil acontece justamente porque esse tipo de leitura possibilita ao leitor a percepção de vários mundos, várias culturas e subculturas e na interação texto/leitor e ficção/realidade em diferentes vozes narrativas que a criança percebe a diversidade, o outro, o diferente, o eu, enfim, ela pode se reconhecer no texto e traçar caminhos que as possibilitem reconhecer/formar sua própria identidade. É relevante a reflexão sobre a temática, pois conforme nos aponta Skliar (2010) a mudança educativa nos olha e nesse olhar nos convoca a mudar o nosso prisma sobre os currículos que temos e as múltiplas identidades que são formadas contemporaneamente. O outro requisita o nosso olhar, o outro multicultural, “Ser diverso” e “diferente” que constitui a minha identidade na simbiose dinâmica que constitui a vida, me convida a percebê-lo como sujeito. 2.1. Criança e Identidade Segundo Roudinesco (2000), a nossa sociedade é uma sociedade depressiva. O indivíduo não reflete sobre a origem de sua infelicidade e não sabe lhe dar com a sua própria liberdade conquistada, gerando um sentimento de individualismo o que não o ajuda para afirmar sua “verdadeira” diferença ou sua (s) identidade (s), “[…] dando a si mesmo a ilusão de uma liberdade irrestrita, de uma independência sem desejo e de uma historicidade sem história.” (ROUDINESCO, p.14). A sociedade democrática moderna vem banindo “[…] de seu horizonte a realidade do infortúnio, da morte e da violência, ao mesmo tempo procurando integrar num sistema único as diferenças e as resistências.” (Ibidem, p. 16). O que pretendemos com esses parágrafos iniciais, é trazer a percepção de que toda essa formação de um sujeito depressivo inicia-se a partir da infância, assim como, o sentimento de democracia, ou melhor, de nacionalidade que é incutido no indivíduo desde a mais tenra infância. A criança é desde pequena “induzida” a tornar-se um indivíduo perdido e “enfraquecido de sua personalidade” inclusive covarde, como afirma Roudinesco. Mesmo ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3258 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino quando entra no período de puberdade onde geralmente tende a ir de encontro às normas, as regras dos pais, estas normas ficam no seu inconsciente, e talvez, em um futuro não muito distante, venha florescer e fazer parte do seu mundo. Ou não é comum, depois de certa idade ou vivência, ouvirmos frases como estas: “Bem que o meu pai/mãe falou!” ou “Se eu tivesse ouvido a minha mãe/pai!”? Sabemos que todo o ser humano quando nasce depende do outro, e essa dependência pode ser considerada um processo de construção identitária, porque tudo vem do outro e “[…] suas próprias identificações primárias vinculadas à formação de seu ego ideal, instância e teórica, que adquire importância plena através da retroatividade4.” (SLAVUTZKY, p. 88). Pensando na população brasileira onde a maioria que lê, são meros decodificadores da língua escrita, isso sem se falar dos que não sabem nem decodificar. Estes grupos, na sua maioria marginalizados, normalmente são frutos do sistema. Suas identidades são formadas e fundamentadas a partir de instrumentos ou instituições de domesticação dominante, até a língua contribui para esse processo. Identidade e diferença são produzidas. “Somos nós que fabricamos, no contexto de relações culturais e sociais. A identidade e a diferença são criações sociais e culturais. […] elas são criadas por meio da linguagem” (SILVA, 2000, p. 76). É mediante essa reflexão formulada por Silva, que avançamos na perspectiva elencada pelo próprio autor ao constatar que: “A pedagogia e o currículo deveriam ser capazes de oferecer oportunidades para que as crianças e os/ as jovens desenvolvessem capacidades de crítica e questionamento dos sistemas e das formas dominantes de representação da identidade e da diferença.” (SILVA, 2000, p. 91-92). Assim, entendemos que muito daquilo que dizemos, de forma socialmente naturalizada, carrega consigo ranços negativos de um contexto linguísticos mais amplos responsáveis por reforçar ou definir identidades. Sendo assim, é uma questão cruciante que a leitura seja efetivamente democratizada e que a criança tenha acesso as mais variadas obras, e dentre a vastidão de obras que a criança terá acesso certamente a questão da identidade será abordada através de suas personagens. Garantir à criança acesso a leitura literária, é consentir que ela passeie livremente entre os territórios simbólicos das mais diversas identidades existentes, tanto em um mesmo indivíduo, quanto na diversidade social. Garantir que a criança cresça tendo acesso a livros é permitir que ela amplie seu repertório cultural, minimizado muitas vezes, pela própria família, comunidade, etc. 4 Relações com o passado cultural de seu responsável. Por exemplo: o cuidar de uma criança vai depender de como este foi cuidado ou como percebeu esse cuidar durante a sua trajetória histórica, cultural e social. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3259 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Todavia no tocante a acessibilidade da criança aos textos literários em sua amplitude artística de leitura fluida e prazerosa sem fins pedagogizantes e/ou moralizantes, como historicamente ela foi se desvencilhando na escola moderna, é uma tarefa que requer audácia e acima de tudo sensibilidade, pois a infância e seu universo imaginário há muito tempo vem sendo relegada da escola, e essa questão precisa ser repensado, conforme constata Miguel Arroyo (2011), há o predomínio de visões escolarizadoras e didatizantes que relegam a todo tempo a infância em suas múltiplas capacidades de desenvolvimento, dentre essas capacidades, a capacidade identitária de imaginar e ser outras pessoas na ludicidade que a move. Essa questão reverbera de modo contundente nas práticas curriculares que movimentam a educação endereçada à crianças e jovens, Arroyo (2011) percebe que o imaginário infantil tem sido trabalhado de modo reducionista ou até mesmo ignorado. Outra questão que tem que ser superada, segundo o autor, é homogeneização do conceito de infância, assim ele visualiza que quando a infância real for realmente considerada, os coletivos serão, indubitavelmente, conduzidos a não ignorar a diversidade de formas de vivê-la e as propostas pedagógicas serão obrigadas a perceber as diferentes infâncias existentes, em suas variadas nuances identitárias, étnicas, raciais, sociais, de gênero, campo, cidade e periferias. Essa percepção curricular escolar rompe com visões genéricas sobre a infância. Todavia, sabemos que essas questões atualmente são discutidas na Literatura infantil contemporânea, Ligia Cademartori (2012), nos fala que finalmente compreendemos que a identidade não é fixa, mas se constitui na flexibilidade do terreno instável. Assim, as identidades são construídas ao longo da vida e na literatura há abertura para a diversidade cultural presente nos mais variados grupos sociais: “Na literatura [...] referências políticas, sociais, culturais ganham multiplicidade e voltam-se à afirmação da diferença e do lugar do outro.” (CADEMARTORI, 2012, p. 53). 3. Angélica: literatura infantil, identidade e currículo Pretendemos valorizar aqui, a linguagem literária que, pela sua própria natureza instigante e não-doutrinária, desperta no leitor a vontade de pensar e debater sobre os conflitos por ela desenvolvidos. Esta é, pois, uma função política, em que a literatura levaria à desalienação. (YUNES, 1988, p.30) 3.1. A história ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3260 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Antes de adentrarmos na descrição da história, mais especificamente na reflexão identitária do personagem “Porto”, é importante salientarmos que Angélica é a segunda produção de Lygia Bojunga Nunes, publicada em 1975, sua estréia no cenário literário infantil se dá com a obra Os colegas de 1972. A obra de Lygia não se restringe unicamente ao público infantil, podendo ser lida pelos mais variados públicos, tendo em vista a sua complexidade. Os olhares dessa obra de ficção se dispersam, pois o narrador – em terceira pessoa – mostra ao leitor as histórias da cegonha Angélica, do elefante Canarinho, do casal de sapos Gonçalves e Mimi-das-Perucas, do casal de crocodilos Jota e Jandira e do porco Porto. Notoriamente o narrador se demora no enfoque das alegrias e dilemas do porquinho Porto. Bem, Porto é um porco que após a convivência com o outro social, passa a não gostar de ter nascido porco. Discriminado na escola por ter nascido porco, troca o seu nome de porco para Porto e esconde a sua identidade por trás de uma fantasia onde todos passam a admirálo. Depois de viver aventuras na narrativa, e ter conquistado amigos, ele volta a ser Porco, mas com certeza não era aquele porco marginalizado, era um Porco que conseguiu a partir do outro, do diferente se encontrar, assumir a sua identidade “indesejada” inicialmente. Porém, sabemos que ele precisou viver outras identidades para afirmar pelo menos uma, a qual determina, enquanto “indivíduo”, a sua identidade biológica. Vejamos alguns trechos da narrativa. Porto vivia bem. Feliz consigo mesmo. – A água então ficava de espelho. O porco se debruçou na água e ficou no maior entusiasmo. […] e entrou na água para se abraçar. (p. 10) Até aqui, não havia o outro para colocar em questão a sua identidade. Vivia praticamente “narcisicamente”. Ele demonstrava interesse e apreço a sua própria pessoa. Gostava de ser porco. O que era um comportamento normal. Uma criança normalmente desenvolve até certa idade um comportamento narcisista, entretanto, depois de algum tempo, ela começa a interessar-se pelo o outro. “[…] o mesmo narcisismo existe não só na criança, mas também no adulto comum; por outras palavras, que a ‘pessoa normal’ participa em menor ou maior grau naquela atitude que, quando quantitativamente mais forte, constitui a psicose.” (FROMM, 1979, p. 42) A identificação é um processo psicológico […] a presença dos outros seres humanos é fundamental. […] No processo de identificação, o sujeito assimila uma propriedade, um atributo do outro, e se transforma. Esta idéia é ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3261 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino fundamental para compreender como se forma a personalidade. A criança, o sujeito, assimila e transforma, ou seja, não será mais como antes. […] Através do processo de identificação o sujeito se transforma parcialmente, tendo como modelo o outro (SLAVUTSKY, 1983, p.15) Se essa relação com o outro acontece de maneira saudável, natural, por exemplo, sem rotulações, este normalmente não encontrará muita dificuldade em se relacionar com o outro, como também, de iniciar significativamente o seu processo de construção identitária. Porém, no caso de Porto, que para mim é uma “pessoa normal”, ou melhor, “um animal normal”, sente a necessidade – naturalmente – de relacionar-se com o outro – afinal ele não era psicótico, mas no primeiro local onde começa realmente essa aproximação que é na escola, ele não é bem aceito, como desejava, pelo outro. Vejamos: – O colega do lado virou pra ele e disse: – Porco! – E disse aquilo com força, com raiva. (p. 11) – A turma de macacos lá no fim da sala desabou numa gargalhada. – O porco parou logo de rir e ficou olhando assustado pro colega: era a primeira vez que diziam o nome dele. E tinham dito de um jeito que parecia até que o nome dele era nome feio. (p. 11) – Tudo que aparecia sujo na classe diziam logo: – Só pode ter sido o Porco. (p. 12) – Estudar pra que, Porco? Você vai ser sempre porco, sua vida vai ser sempre uma porcaria. (p.14) Porto acreditava que na escola faria novas amizades aonde chega com o maior entusiasmo. Porém, não é muito bem recebido e não consegue se enturmar com as outras “crianças” causando-lhe uma sensação ruim. O mal-estar causado a Porto pela não reciprocidade e indiferença das outras “crianças”, é tão marcante que quando volta ao lago não vê mais aquele Porco que viu da primeira vez. Acompanhemos o trecho da narrativa: – Ficou olhando a cara dele na água do jeito que a gente olha uma coisa que não gosta; ficou olhando o nó cego que tinha no rabo e achando que nunca – nunca mais – ia poder desmanchar. Depois botou força na primeira sílaba e disse: – Porco! – e foi embora, compreendendo pelo caminho afora que o maior azar da vida dele tinha sido nascer porco. (p. 14) Dependendo da forma como o outro nos vê, pode influenciar positiva ou negativamente em relação à construção da nossa identidade. No caso de Porto, foi tão significativo o olhar do outro naquele momento, que a solução encontrada por ele foi: abandonar aquele ambiente hostil, trocar de nome e esconder suas características de porco atrás de uma fantasia. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3262 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Quando passa a se chamar Porto, e a esconder a sua verdadeira identidade (biológica), ele consegue “superar” a sua tristeza. Como a própria história afirma começou a viver vida nova. – O porco então respirou sossegado: agora se chamava PORTO. (p. 16) – Porto então começou vida nova. (p. 18) Mas ele não podia apenas mudar o nome. Ele sabia que as suas características físicas iriam afirmar que ele continuava sendo um porco. Ele apenas seria o porco Porto. As características identitárias de um grupo as quais geralmente achamos que estamos as descrevendo, na verdade contribuem para “[…] definir ou reforçar a identidade que supostamente apenas estamos descrevendo.” (SILVA, 2000, p. 93) Sendo assim, quando os personagens, inclusive ele, utilizam à palavra “porco”, não estão fazendo uma descrição apenas de um “indivíduo”, estão, na verdade, contribuindo para reforçar uma negatividade atribuída, enquanto ato linguístico, a sua identidade, a de “porco”. O que justifica a sua necessidade de junto a mudança de seu nome esconder suas características de porco. Apesar da mudança de nome e de sua fantasia, havia o medo de que sua nova identidade fosse desmascarada e ele voltasse a ser porco: – e se todo mundo ficasse sabendo? E se ele tivesse que voltar a ser Porco? Se assustou só de pensar; e pra ver se o susto ia embora começou a brincar de fazedor de nome. (p. 20) O medo de Porto não se dá pelo fato de estar mentindo. O problema é que se todos soubessem que ele era um porco, não poderia ser mais Porto. Ser porco para ele era ser o estranho, o indesejado, enfim, o que ele não queria ser mais, era ser algo que é marginalizado naquela sociedade a qual estava inserido. A partir das falas das personagens, podemos perceber que existe uma grande diferença na forma como nos vemos quando o outro passa a compartilhar o seu olhar conosco em relação a nós mesmos. “A fala é então, o indício de algo, é o que está para. É um signo a ser decifrado ou, psicanaliticamente falando, um sintoma. […] isto é o sujeito representa-se pela palavra.” (QUEIROZ, 2006, p.108). Porto, enquanto porco, antes do outro, era um porco que não tinha problema em ser porco e gostava de sê-lo, mas, quando o outro entra na história, e passa a marcá-lo socialmente através da fala/palavra, a sua vida é completamente transformada. Muda-se de nome, de local, aparência, enfim, vai em busca de algo que lhe dê uma identidade aceitável pela sociedade. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3263 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Angélica é uma obra que trás para o universo infantil, discussões importantes em relação ao olhar do outro e de nós mesmos sobre algo ou alguém. Porto é influenciado tanto por uma cultura comum dominante marginalizadora, quanto uma contracultura. Porém, esse choque entre cultura e contracultura será fundamental para que Porto tenha um final feliz na construção de sua identidade ou identidades. Não existe algo em particular que vai fazer de porco, Porto e de Porto Porco. Tanto uma quanto a outra possibilidade acontecem devido a vários fatores: o outro, a cultura, a família etc., são alguns desses fatores que podemos perceber na narrativa que influenciam nessa formação identitária de Porto. A identidade ou a diferença acontecem a partir de toda uma simbologia cultural, social e econômica a qual estamos inseridos. No caso de Porto, ele foi feliz na sua forma de interpretar o outro, assim como, a sua mudança em busca de aceitação, o que acabou sendo um momento fundamental para a sua construção identitária, mesmo não sabendo que no final de tudo as suas decisões iriam influenciá-lo a querer voltar a ser Porco. O que é interessante nessa obra é que tanto a busca de uma identidade e o conflito que Porto vive no início da narrativa, quanto à auto-aceitação em ser Porco, só acontece por causa do outro. O outro é fundamental para a formação identitária de Porto, inclusive de sua personalidade. Mesmo sabendo que na primeira experiência com o outro não tenha sido positiva, foi devido a essa relação “mal sucedida”, que o porco se torna Porto e vai em busca de uma identidade a qual para ele foi muito positiva. É com o desenrolar da história e o envolvimento com outros personagens, após a sua “mudança”, que acaba recebendo influências diretas e indiretas para que ele se aceite enquanto porco, porém um Porco com “P” maiúsculo. Sabemos que para trabalhar uma narrativa como esta com o público infantil, necessita-se que o proporcionador dessa leitura para a criança, tente fortalecer a disposição crítica desta, levando-as a ir além do consumo de textos literários, até porque “A experiência literária não só nos permite saber da vida por meio da experiência do outro, como também vivenciar essa experiência. (COSSON, 2006, p. 17) As questões levantadas na narrativa de Lygia Bojunga Nunes, são pertinentes para a infância contemporânea e devem estar presentes nos diálogos das salas de aula onde a infância circula. A narrativa de Lygia desestabiliza a linearidade pedagogizante de alguns títulos destinados à crianças e jovens, pois põe em “Xeque” a fixidez pretendida, por isso concordamos com Bartolomeu de Campos Queirós (2012, p. 91) quando o mesmo afirma que: “Ter em mãos o livro literário é defrontar-se com o desiquilíbrio.” ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3264 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Considerações que inquietam A narrativa proporciona a discussão em relação à identidade em vários aspectos como, por exemplo, identidade herdada, negada, desejada, e reformulada. Em se tratando de literatura infanto-juvenil se percebe que as identidades são abrangentemente trabalhadas na narrativa, contribuindo para que a criança às perceba e pense sobre; consciente ou inconscientemente. Será através da ampliação dos horizontes de leitura das crianças e do seu repertório cultural, que poderemos formar indivíduos críticos e capazes de compreender as diversas identidades que assumimos na trajetória de nossa existência. A criança normalmente vivencia e reproduz as representações negativas relacionadas a identidades de grupos marginalizados, é a partir de obras como Angélica, que a criança pode perceber que existem outras possibilidades e indivíduos, que o universo social é amplo, que as culturas são muitas, que a diversidade existe e que é a diferença colore e ilumina o mundo em que vivemos. Pensar literatura infanto-juvenil e seus usos na escola, é pensar o desequilíbrio inquietador que desestabiliza e põe em “xeque” àquilo que tínhamos cristalizado como “verdades” estanques, presentes nas metodologias que empreendemos nas salas de aula, onde o outro não é considerado em sua diversidade cultural, linguística, artística e social. Cogitar o uso da leitura literária junto à crianças e jovens é contestar um currículo que há muito vem sendo absorvido com absolutismo e que não valoriza o conhecimento advindo das massas. A literatura infantil, assim como outros gêneros literários, acompanha o processo de desenvolvimento e mudança da sociedade em geral, sejam nos aspectos sociais, econômicos, e culturais, sintonizada com o período em que está vivendo. O que não pode acontecer com a literatura feita para crianças é que ela não se esqueça que independente do tema, ela é arte. Angélica escrita no final da década de 70, apesar de trabalhar muito interessantemente a identidade, ela não perde o seu encanto. O humor, a fantasia, os personagens e suas características não deixam que a obra seja apenas temática, mas através de sua trama complexamente construída é capaz de encantar e divertir. A importância de abordar a realidade através da literatura infantil utilizando-se da fantasia e ao mesmo tempo do hibridismo cultural, que tem início no final da década de 70, demonstra que o gênero, independente de ser feito para criança, tem a importante função de ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3265 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino fazer com que se discuta sobre os conflitos que vivenciamos sem perder o seu encanto, sem que a sua vertente artística seja diluída. O estudo nos inquieta a pensar a formação dos próprios professores, o currículo que construímos e os espaços que são designados à arte dentro da escola, tornando evidente que temas de grande envergadura e complexidade social podem ser trabalhado com a leveza estética da arte literária. Referências ARROYO, Miguel. Currículo, território em disputa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. CADEMARTORI, Ligia. O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes. 2. ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. CARVALHO, Neuza C. de. Fantasia e emancipação em três tempos. In: CECANTINI, João Luís C. T. (org). Leitura e literatura infanto-juvenil: memória de Gramado. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2004. p. 98-113. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. FARIA, Maria Alice. Como usar a literatura infantil na sala de aula. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2005. FROMM, Erich. Grandeza e limitações das descobertas de Freud. 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Para tal, optou-se por problematizar o bullying e a forma como a mídia enfoca o mesmo e sua relação com os direitos humanos inserindo-os nos aspectos do dia a dia dos alunos. Iniciou-se o trabalho através da desconstrução dos estereótipos criados pela mídia e consideramos as experiências vivenciadas pelas crianças em torno da problemática do bullying, levando os alunos a refletirem sobre suas práticas. Por fim, as crianças construíram fanzines para expressar através da arte o que de fato entenderam a respeito do que foi trabalhado em sala de aula durante a pesquisa-ação. Os fanzines ficaram expostos nos corredores da escola para a apreciação. Palavras-chave: Bullying; Mídia; Educação em Direitos Humanos; ABSTRACT This article discusses an experiment carried to term by an action research project on the theme of human rights education, whose audience was students from a public school in Maceió is sought work and discuss the issue of human rights education in and out of school. To this end, we chose to discuss bullying and how the media focuses on the self and its relation to human rights by placing them in aspects of the daily lives of students. Began working through the deconstruction of stereotypes created by the media and consider the experiences of the children around the issue of bullying, leading students to reflect on their practices. Finally, the children built fanzines to express through art what really understood about what was working in the classroom during the action research. The fanzines were exposed in school hallways for enjoyment. Keywords: Bullying, Media, Human Rights Education; 1. INTRODUÇÃO Discutir e argumentar a respeito dos Direitos Humanos é uma tarefa complexa e requer no mínimo alguma leitura e conhecimento. Mesmo estando todo tempo fazendo parte 5 Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Alagoas. Doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão. 7 Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Alagoas. 6 ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3268 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino de nossas vidas, os direitos humanos são camuflados e de certo modo acabamos não enxergando como deveríamos. Isso fica evidente na citação que segue retirada do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Homem conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem. (BRASIL, 2006, p.1). Em tal sentido, a Educação em Direitos Humanos tem um papel preponderante no sentido de fomentar a discussão e a prática acerca da temática dos direitos humanos na escola. O profissional da educação deve estar a par do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, pois é mais uma maneira de garantir uma formação que aborde a questão da cidadania e dos direitos que temos perante a sociedade. A esse respeito, complementa a citação abaixo: De onde a importância da educação em direitos humanos, concebida não como a simples introdução de um conteúdo temático sobre tais direitos nos programas escolares ou universitários, mas essencialmente como um meio capaz de proporcionar a construção de uma cidadania ativa em nosso país. Este é o desafio que se impõe ao conjunto da sociedade brasileira, principalmente aos mais jovens. (p. 8) o que são os direitos humanos. Como citado anteriormente, nós não estamos acostumados a discutir a respeito de nossos direitos, muitas vezes nem os conhecemos. Para tomar uma definição mais clara segue a citação abaixo: O que se convencionou chamar “direitos humanos” são exatamente os direitos correspondentes à dignidade dos seres humanos. São direitos que possuímos não porque o Estado assim decidiu, através de suas leis, ou porque nós mesmos assim o fizemos, por intermédio dos nossos acordos. Direitos humanos, por mais pleonástico que isso possa parecer, são direitos que possuímos pelo simples fato de que somos humanos. (RABENHORST, [21-?]. p.4). Sendo assim, nós seres humanos não podemos aceitar determinadas práticas que foram sendo realizadas ao longo dos anos, como a escravização dos negros e índios, a desvalorização e privação sofrida pelas mulheres, as ditaduras implantadas em alguns países sem contar com as terríveis guerras que destruíram milhares de vidas mundo a fora. Por esses e outros tantos motivos se faz necessário problematizar as questões que envolvem os direitos humanos, pois não podemos mais nos calar diante da injustiça e da barbárie. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3269 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Na atualidade, passamos por situações bem complicadas, pois ao passo que avançamos em alguns aspectos, retrocedemos em outros. Novas práticas são inseridas na sociedade, como o casamento entre homossexuais por exemplo. Como consequência, presenciamos o desenvolvimento de violências e intolerância. Com a globalização também vem introduzida uma nova forma de agressão à dignidade humana. Muitas pessoas utilizam a internet para difamar, prejudicar, extorquir e ameaçar outras pessoas. Enfim, torna-se muito difícil discutir a questão dos direitos humanos num pais em que os mesmos são a todo tempo desrespeitados. Acredita-se que o profissional da educação deve estar preparado para discutir essas questões em sala de aula, o mais importante é formar pessoas que sejam capazes de se expressar e defender esse ponto de vista. O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos pode e deve nortear o trabalho do docente, contudo não vem sendo trabalhado na maioria das instituições escolares. Consta na apresentação do (PNEDH) que a sua construção se deu de uma maneira democrática e contou com a participação no âmbito internacional, nacional, regional e estadual (BRASIL, 2007, p.9). Infelizmente muitas pessoas não têm conhecimento da existência desse plano e muito menos como o mesmo pode ser utilizado a seu favor. Desta forma, não participaram da sua construção. Isso só reforça a questão de que a discussão dos direitos humanos ainda permanece restrita a um determinado público, isso significa dizer que as camadas mais necessitadas da sociedade são excluídas das discussões e das posteriores decisões. Diante das transformações ocorridas na sociedade ao longo dos anos temos que considerar que questões que antes não perpassavam nossas discussões hoje são de suma importância para a convivência e sobrevivência de nossa humanidade, como o bullying por exemplo. A escola não pode se fechar e fingir que não tem nada a ver com isso. A vida humana está passando por um processo de degradação e vemos cada vez mais, a fome, a discriminação, os mais variados tipos de violência, a corrupção, a opressão das minorias, e o descaso com o meio ambiente invadir nossos espaços. 2. A MÍDIA NO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos é dividido da seguinte maneira: I. EDUCAÇÃO BÁSICA II. EDUCAÇÃO SUPERIOR ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3270 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino III. EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL IV. EDUCAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DOS SISTEMAS DE JUSTIÇA E SEGURANÇA V. EDUCAÇÃO E MÍDIA Cada tópico destes é de suma importância, mas não podemos discuti-los em um único exposto. Se assim fizéssemos, muitas questões seriam negligenciadas. Deste modo, tratamos a respeito da educação e mídia. A mídia está cada vez mais presente em nossas vidas, a todo o momento estamos vendo televisão, acessando a internet, lendo jornal, entre outros. Concordamos com o (PNEDH) quando coloca que a mídia tem a “capacidade de construir opinião pública, formar consciências, influir nos comportamentos, valores, crenças e atitudes” (BRASIL, 2007, p.39). “Assim, a mídia deve adotar uma postura favorável a não violência e ao respeito aos Direitos Humanos, não só pela força da lei, mas também pelo seu engajamento na melhoria da qualidade de vida da população.” (BRASIL, 2007, p.39). Infelizmente não é isso que presenciamos. Durante a intervenção, buscamos discutir com os alunos que devemos buscar diferentes fontes de informação para realmente saber se determinada notícia é verdadeira, ou seja, não devemos acreditar pura e simplesmente no que é vinculado na mídia. Em muitos casos é incentivada a valorização dos Direitos Humanos referente aos bandidos, aos fora da lei. A população mais leiga passa a entender os Direitos Humanos como sendo algo que não lhe diz respeito, algo que não faz parte de sua vida ou de suas preocupações. É importante que o aluno encontre na escola um espaço em que ele possa tirar dúvidas e fazer questionamentos sobre o que ele escuta na mídia e na rua e na sua casa de maneira geral. Esse aluno tem o direito de ter uma segunda versão sobre os fatos de seu cotidiano. Acreditamos que se uma pessoa comete algum tipo de delito ela deve ser punida conforme a lei. Contudo ninguém tem o direito de torturar ou tirar a vida de outra pessoa. Voltando aos programas locais, podemos dizer que não há uma discussão a respeito da dinâmica social (Capitalismo) que constrói as desigualdades sociais, a fome a exclusão, a violência. Tem-se que as pessoas escolhem roubar ou matar quando na realidade em muitos casos essas pessoas são empurradas para o crime mediante suas condições de sobrevivência. O discurso vinculado é que o bandido pode fazer o que quer por conta dos direitos humanos e que nós é que pagamos o “pato”. Enfatizamos com os alunos a questão do respeito ao outro, questionando-os sobre suas práticas na escola. Percebemos que há ocorrência de violência ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3271 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino verbal e física relacionada e em muitos casos ocasionadas pelo Bullying. Sendo assim, buscamos trabalhar em cima dessas violências. O educador deve incentivar os alunos a possuírem uma visão crítica a respeito do que escutam ou veem. Para tal, deve-se apostar no debate a respeito dos Direitos Humanos nas escolas. Não defendemos aqui a implantação de uma disciplina, mas sim a discussão dessas questões de uma forma que possa perpassar por todas as disciplinas no decorrer do ano letivo. Enfim, há tantas maneiras de trabalhar ludicamente com a questão dos Direitos Humanos que cabe a cada instituição eleger a sua preferida. Ao trabalharmos com os alunos percebemos claramente que essas questões devem ser trabalhadas continuamente. Não há como falar uma única vez a respeito dos Direitos Humanos e os problemas serão resolvidos, isso deve perpassar a prática diária e mais, deve estar presente no discurso e nos atos dos professores e funcionários. 3. O BULLYING, A MÍDIA E OS DIREITOS HUMANOS NA ESCOLA Desenvolvemos nosso projeto na Escola Estadual Profª Erotildes Rodrigues Saldanha, situada na Av. Governador Lamenha Filho, no bairro do Feitosa. A diretora se mostrou bastante interessada com a nossa proposta e disponibilizando todos os materiais que pedimos para a realização do trabalho. Deixamos a escolha da turma que iria participar da intervenção a cargo da diretora. Quando estávamos na sala à espera dos alunos, nos surpreendemos ao ver crianças de todas as idades e percebemos que a diretora escolheu os alunos por eles serem considerados como os mais inquietos e briguentos. Durante a intervenção (exposição dos conceitos de mídia, bullying e direitos humanos) os alunos ficaram tranquilos e mostraram bastante interesse. Alguns já sabiam ou tinham ouvido falar no conceito de mídia e de bullying, mas não no conceito de Direitos Humanos. Cabe ressaltar que buscamos colocar esses conceitos de uma maneira um pouco mais simples para que eles pudessem entender melhor. Quando passávamos os vídeos eles ficavam comentando uns com os outros que já tinham visto o vídeo, ou que tinha passado no jornal. Apresentamos o conceito de bullying. O termo bullying tem origem na palavra inglesa bully, que significa valentão, brigão. Mesmo sem uma denominação em português, é entendido como ameaça, tirania, opressão, intimidação, humilhação e maltrato. Bullying é uma situação que se caracteriza por agressões intencionais, verbais, físicas ou psicológicas, ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3272 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino feitas de maneira repetitiva, por um ou mais alunos contra um ou mais colegas causando dor e angústia, sendo executadas dentro de uma relação de desigualdade de poder. O bullying pode ocorrer em qualquer contexto social, como escolas, universidades, famílias, vizinhança e locais de trabalho. O que, à primeira vista, pode parecer um simples apelido inofensivo pode afetar emocional e fisicamente o alvo da ofensa. É uma das formas de violência que mais cresce no mundo. Deve-se encorajar os alunos a participarem ativamente da supervisão e intervenção dos atos de bullying, pois o enfrentamento da situação pelas testemunhas demonstra aos autores do bullying que eles não terão o apoio do grupo. Outra estratégia é a formação de grupos de apoio, que protegem os alvos e auxiliam na solução das situações de bullying. Alunos que buscam ajuda têm maiores de reduzirem ou cessarem um caso de bullying. Os professores devem lidar e resolver efetivamente os casos de bullying, enquanto as escolas devem aperfeiçoar suas técnicas de intervenção e buscar a cooperação de outras instituições, como os centros de saúde, conselhos tutelares e redes de apoio social. No Brasil, a gravidade do ato pode levar os jovens infratores à aplicação de medidas sócio-educativas. De acordo com o Código Penal Brasileiro, a negligência com um crime pode ser tida como uma coautoria. Na área cívil, e os pais dos bullies podem, pois, ser obrigados a pagar indenizações e pode haver processos por danos morais. Os atos de assédio escolar configuram atos ilícitos, não porque não estão autorizados pelo nosso ordenamento jurídico, mas por desrespeitarem princípios constitucionais (ex: dignidade da pessoa humana) e o Código Civil, que determina que todo ato ilícito que cause dano a outrem gera o dever de indenizar. No estado brasileiro do Rio de Janeiro, uma lei estadual sancionada em 23 de setembro de 2010 institui a obrigatoriedade de escolas públicas e particulares notificarem casos de bullying à polícia. Em caso de descumprimento, a multa pode ser de três a 20 salários mínimos (até R$ 10.200) para as instituições de ensino. Outro tipo de opressão utilizada é o Cyberbullying, um tipo de bullying aperfeiçoado. Uma prática que envolve o uso de tecnologias de informação e comunicação para dar apoio a comportamentos deliberados, repetidos e hostis praticados por um indivíduo ou grupo com a intenção de prejudicar outrem. Continuamos a discussão da temática explicando que os Direitos Humanos são os direitos de todos os seres humanos. Os Direitos Humanos têm sua origem nas diversas revoluções democráticas. Temos direito à educação, saúde, segurança, liberdade etc., a partir ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3273 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino do conceito de Direitos Humanos, sistematizamos o conceito de Educação em Direitos Humanos que defende a dignidade humana, o reconhecimento da nossa identidade como seres históricos e culturais.O homem não é somente um ser livre, mas também um ser único que deve ser respeitado na sua individualidade. (FLEINER, 2003, p.12) A dignidade do homem não se encontra apenas na sua individualidade. Ela existe também na coletividade e mediante a coletividade a que o homem pertence. (FLEINER,2003, p.44) A abordagem da questão do bullying na perspectiva dos Direitos Humanos foi socializada de forma que os levasse a reflexão, salientamos que ao ridicularizar alguém pela cor da pele, pelo sotaque, por ter uma religião ou uma característica “diferente”, eles estão violando a dignidade do outro e os Direitos Humanos, articulamos a relação das temáticas incluindo a desconstrução do estereótipo criado pela mídia em relação aos Direitos Humanos e ao bullying, que muitas vezes é tratado de forma superficial pela mídia e a partir dessas concepções construímos uma relação entre os conceitos. Buscamos mostrar a eles a importância de respeitar o “outro”, primeiro ao se colocar no lugar daqueles que sofrem com as agressões, de como se sentiriam sendo agredidos por ser “diferente”, segundo mostrando a eles as conseqüências que a prática do bullying pode trazer para a vida das vítimas e também tomando por base as experiências que alguns deles vivenciaram tanto como agressor quanto como vítima do bullying. Qualquer medida coercitiva que prejudique essencialmente a sua liberdade de decisão se constitui num ataque contra a dignidade humana. (FLEINER, 2003, p.11) Quando alguém é vítima do bullying através de humilhações desumanas, esta pessoa está tendo sua dignidade atingida e essa prática pode acarretar diversos problemas comportamentais e sociais na vítima. Uma vida com respeito à dignidade humana supõe, tanto quanto a liberdade, um meio ambiente saudável no qual as gerações futuras possam também sentir-se bem. (FLEINER, 2003, p.125) Salientamos em meio à discussão, a importância de comunicar as agressões aos pais, professores, amigos, para que eles possam tomar as providências cabíveis através do diálogo e da conscientização que deve ser realizada cotidianamente nas práticas pedagógicas. Para avaliarmos o que todos aprenderam, propomos a construção de um fanzine. Este devia conter os conceitos que foram trabalhados durante a intervenção e foi levado ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3274 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino exemplos prontos para nortear como seria feito. Formaram-se em grupos e começaram a cortar, colar, desenhar e escrever. Os resultados desta intervenção foram vários fanzines mostrando que não deve haver preconceito racial, que se deve ter “amor, paz e vida”. Um com frases retiradas de revista, onde se pode ler: “Faça diferente e conte a sua história”; “Às vezes sua única esperança é alguém que já passou por isso”; “Nunca chamei muita atenção das meninas. Até me chamariam de nerd” e frases do próprio aluno, Diga não ao ‘bulligins’ e ‘deiche’ sua vida mais feliz” “Vocês sorriem de mim ‘pq’ sou diferente, eu sorrio de vocês ‘pq’ somos todos ‘enguais’” e um outro desenhou cenas de brigas com xingamentos e que depois veio a ser uma amizade entre os que brigaram, mostrando que mesmo brigando, no fim somos todos seres humanos passíveis a erro. Notamos que, usando a criatividade eles colocaram no papel muito do que vivem no cotidiano da escola e o apelo pelo fim da violência, do preconceito racial, das práticas de bullying vividas por eles e os anseios por uma escola diferente, onde todos possam viver em paz. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Mesmo diante de tantas dificuldades enfrentadas pela escola, esta pode sim permear seu cotidiano com práticas que venham acrescentar coisas positivas com relação a perspectiva de mundo de sociedade e de ser humano de seus alunos. Acreditamos que se a escola se recusar em falar sobre os direitos humanos estará contribuindo para a disseminação da violência e do desrespeito. Um dos primeiros passos para que isso não ocorra é preparar o profissional da educação para lidar com isso no decorrer de sua profissão. Os cursos devem fornecer debates e discussões a respeito do tema e incentivar seus alunos para serem profissionais comprometidos. O curso de Pedagogia tem muito que evoluir, mas já temos um passo dado, pois estamos discutindo direitos humanos. É uma disciplina eletiva, mas percebemos que este tema interessa a muitas pessoas. Agora temos que lutar para consolidar esta disciplina e fazer com que mais pessoas se interessem em cursála. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3275 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino ANEXOS ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3276 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino REFERÊNCIAS BRASIL. Direitos humanos: documentos internacionais. Brasília: Presidência da República/SEDH, 2006. BRASIL. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília: SEDH/ MJ/MEC/UNESCO, 2007. FLEINER. Thomas. O que são os direitos humanos? São Paulo: Max Limonad, 2003. RABENHORST. Eduardo R. O que são os direitos humanos. [21-?]. Disponível em:<http://www.redhbrasil.net/documentos/bilbioteca_on_line/modulo1/1.o_q_sao_dh_edu ardo.pdf>. Acesso em: 08 de out. 2011. <http://revistaescola.abril.com.br/crianca-e-adolescente/comportamento/bullying-escola494973.shtml>. 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Neste contexto, a escola pública está sendo entendida como uma instituição social, capaz e responsável pela criação de oportunidades do acesso ao conhecimento a todas as pessoas. Outra reflexão realizada abrange o processo de desigualdade na escola que ocorre a partir do fortalecimento das atitudes meritocráticas e no discurso dos dons. Quando essas questões são incentivadas no interior do trabalho das instituições sociais, transfere-se para os sujeitos a responsabilidade do sucesso ou fracasso. A escola então se isenta do seu papel de responsável pelos processos formativos e se “esconde” no discurso do oferecimento de oportunidades iguais para todos. Discutiremos a possibilidade da construção do currículo como instrumento materializador das ações da escola e, também, carregado de contradições para enfrentar desafios na perspectiva de uma escola justa e igualitária. O trabalho está atrelado ao grupo de pesquisa Formação de Professor e Currículo da Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Palavras-chave: igualdade, desigualdade , currículo / equality, inequality, curriculum. ABSTRACT This paper presents a reflection on the meaning of equality and inequality in public school with reference to some assumptions and challenges curriculum . To this end , we begin the understanding of inequality employed by Rousseau when analyzing the origin of private property . In this context , the public school is being understood as a social institution , capable and responsible for creating opportunities of access to knowledge for all people. Another reflection performed covers the process of inequality that occurs in school from the strengthening of meritocratic attitudes and discourse of the gifts . When these issues are encouraged within the work of social institutions , moved to the subjects the responsibility for success or failure . The school will be exempted from its role as responsible for the formation processes and " hide " in the discourse of offering equal opportunities for all . Discuss the possibility of the construction of the curriculum as a means of materializing school's actions and also full of contradictions to face challenges from the perspective of a school fair and equitable . The work is related to the research group of Teacher Training and Curriculum at the University of Bahia - UNEB . Keywords: equality, inequality , curriculum ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3278 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino PALAVRAS INICIAIS A discussão sobre igualdade e desigualdade é remota em nossa sociedade. Em determinados períodos históricos era associada às questões divinas. Diferentemente desta última perspectiva, reconhecemos a complexidade dessa questão e, ao mesmo tempo, sua contemporaneidade, especialmente quando diz respeito às funções e práticas sociais que se estabelecem entre as pessoas por meio das instituições socialmente constituídas. Desse modo, torna-se relevante discutir as concepções de igualdade e desigualdade tomando como contexto uma instituição que tem perdurado durante séculos e que vem passando por mudanças diversas - a escola. Uma instituição social que tem entre suas tarefas a formação do ser humano, através dos processos educativos. Na Grécia Antiga, era vista como o “lugar do ócio”, ou seja, do prazer, do aprendizado livre. Na modernidade, começa a construção de um modelo educacional que possa atender aos desafios que a sociedade vivenciava. Rousseau, um dos precursores da educação moderna, em sua obra Emílio exemplifica bem essa realidade. Parte da bondade natural do homem e dos desafios de conviver em uma sociedade marcada pela corrupção. Projeta um homem ideal. Na construção dessa reflexão sobre igualdade e desigualdade Rousseau (1983), foi um dos autores que trouxe esta temática para o debate. Em seu livro “O Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens”, afirma que a espécie humana possui duas desigualdades: uma natural ou física e outra que é moral ou política, evidenciando o princípio de que o homem é bom, porém a sociedade o corrompe. Nesse sentido, evidencia a imprescindível ação do governo em minimizar as desigualdades naturais. Para o autor, o processo de desigualdade da sociedade civil aconteceu a partir da propriedade privada, na medida em que o homem cercou um pedaço de terra dizendo ser dele e ninguém reclamou da ação. Admite, porém, que esta ideia de propriedade não foi concebida de forma cômoda; ela foi construída em um processo histórico. Rousseau menciona que o ser humano em seu estado natural é ingênuo, sendo o único animal capaz de se apropriar dos alimentos diversos com mais facilidade. As dificuldades naturais fizeram com que adquirisse formas de sobreviver diante das intempéries. Segundo o autor citado, na natureza existe igualdade, a desigualdade surge do homem. Ademais, Rousseau (1983) afirma que a origem da desigualdade está na divisão do trabalho, no desenvolvimento da agricultura e na descoberta da metalurgia. Enquanto cada ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3279 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino um produzia apenas o que consumia as pessoas eram iguais. Com a agricultura e o surgimento do excedente, alguns vão tomar conta destas sobras e começa a desigualdade. Admite que a agricultura e a metalurgia foram elementos fundantes desta desigualdade. O homem quando se torna sociável, enfraquece, não tem mais coragem, torna-se submisso e medroso. Segundo ele, a simplicidade original do homem está perdida. O homem natural não tinha temor, enfrentava os desafios impostos pela natureza. Aprendeu viver e conviver com as diversidades. O fogo, a comunicação e a agricultura foram importantes neste período. Menciona o papel da linguagem na estruturação do pensamento. Rousseau (1983) explicita, ainda, que a propriedade privada contribui não só para a saída deste estado natural do homem, mas para o surgimento do chamado “estado de guerra”, onde as pessoas são levadas a destruírem o outro para sobreviver. Nasce a necessidade de estabelecimento de acordos, regras, para a convivência das pessoas. O autor nos apresenta os grandes conflitos sofridos pela sociedade a partir da propriedade privada. Não acredita em um retorno ao “homem natural”. Menciona que esta decadência vivenciada pela sociedade está incrustada em alguns terem muito e outros não terem nada. As pessoas não podem ser sacrificadas por não serem proprietárias. Termina o seu discurso dizendo: (...) da espécie de desigualdade que reina entre todos os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei de natureza, de qualquer maneira que a definamos, que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um homem sábio, ou que um punhado de pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falta o necessário (ROUSSEAU, 1983, p.55). Nesse sentido, para Rousseau, a desigualdade é algo que contraria os princípios da humanidade, pois confronta com as chamadas leis naturais, quando inverte as relações estabelecidas na sociedade. Para ele, essa ordem natural necessita ser mantida para que não ocorram as discrepâncias sociais. O propósito deste texto é discutir os conceitos de igualdade e desigualdade na escola pública a partir de seus pressupostos e desafios curriculares. IGUALDADE E DESIGUALDADE NA ESCOLA – O PAPEL DO CURRÍCULO ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3280 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino A discussão sobre igualdade e desigualdade nos processos formativos desenvolvidos na escola aponta para a necessidade de pensarmos historicamente essa instituição e o papel que tem exercido ao longo dos tempos, tendo o currículo como instrumento básico de seu fazer. Fazendo um recorte e discutindo a partir do nascimento da escola pública, ou seja, pelos séculos XVIII e XIX, notamos que a sua gênese esteve relacionada à possibilidade de diminuição das desigualdades. Boto (2003) esclarece que por ocasião das discussões sobre a instrução pública na França após sua Revolução, Condorcet8 através de seu plano educacional via que pela escolarização era possível, (...) obter progressivamente a minimização das desigualdades produzidas pelo artifício humano, pela concomitante promoção da única desigualdade natural e, portanto, legítima: a desigualdade de talentos – dos dons, das aptidões, dos potenciais, enfim, das capacidades de cada um perante os demais. A preparação cultural acentuaria a força meritória dos mais capazes, o que era, por si, um elemento corretor dos próprios embaraços de uma sociedade liberal, que tinha em mente assegurar, com firmeza, o direito à propriedade, e, portanto, à herança. (BOTO, 2003, p.742) Isso significa dizer que a escola já nasce com a tarefa de corrigir as desigualdades consideradas naturais a partir da “força meritória” dos mais capazes. Neste contexto, a diminuição destas diferenças estaria associada às capacidades individuais, aos chamados “dons”. Portanto, durante muito tempo os processos formativos desenvolvidos pela escola eram destinados a minimizar as disparidades produzidas pela sociedade. A esse respeito, Dubet (2008) considera que: A igualdade das oportunidades e a valorização do mérito são consubstanciais às sociedades democráticas, porque permitem conciliar dois princípios fundamentais: de um lado, o da igualdade entre os indivíduos; do outro, o da divisão do trabalho necessário a todas as sociedades modernas. Em outras palavras, enquanto as desigualdades decorrentes do nascimento e da herança são injustas, a igualdade das oportunidades estabelece desigualdades justas ao abrir a todos a competição pelos diplomas e pelas posições sociais (...) (DUBET, 2008, p.19) Da mesma forma, o currículo é considerado, desde a sua gênese, um instrumento de controle social e eficiência social (MOREIRA & SILVA, 1994) e, como tal, assume um caráter interessado na educação. Por ser um fenômeno social histórico, contextualizado, dinâmico e imbricado em relações de poder, não pode ser ignorado nessa discussão. Vislumbrar a escola justa sem discutir os interesses que perpassam e sustentam o 8 Presidente do Comitê de Instrução da Assembléia Legislativa Francesa após o processo revolucionário. Instrução Nacional. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES Redator do Plano de 3281 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino currículo, não deixa de ser uma ingenuidade. É oportuno e necessário se refletir sobre os mecanismos discriminatórios cristalizados nas sociedades, bem como desenvolver ações efetivas para combatê-los. O currículo também não é neutro. É um campo de lutas, conflitos, tensões, ideologias que se renovam permanentemente. Goodson (2008) tem afirmado, que as mudanças no formato do currículo oferecem um primoroso indicativo das intenções e propósitos políticos e sociais, que se modificam à medida que o equilíbrio das forças sociais e o contexto econômico que lhe sustenta passam por mudanças cíclicas. Por meio de seus processos formativos, a escola e o currículo têm proporcionado elementos para se questionar o sentido da igualdade, em especial, quando se refere à lógica capital atribuída ao significado do mercado pelo slogan das oportunidades. Sob essa premissa, o entendimento de igualdade de oportunidade desenha um eixo da lógica capitalista no que se refere à educação formal que é oferecer aos diplomados a possibilidade de galgarem postos de serviços através da concorrência. O discurso neoliberal que permeia essa situação embasa-se na ideia de que as oportunidades são iguais e os mais competentes chegam a determinadas posições pelos seus méritos individuais. Internamente se configura uma dinâmica social que se estabelece por meio de uma severa e impiedosa competição, pois vencem aqueles que por seu merecimento conseguem obter os diplomas. Nessa tessitura social, existe um escamoteamento das questões sociais, estabelecendo barreiras entre os fracassos e os sucessos obtidos como decorrências de performances individual consequente concorrência entre as pessoas e não das condições objetivas estabelecidas na sociedade. A escola, nesse sentido, vai aprofundando as desigualdades na medida em que estabelece formalmente em seu currículo, a partir da ação pedagógica situações de competitividade, de classificação, de nomeação daqueles que são considerados vencedores. A CONSTRUÇÃO DO PROCESSO DA DESIGUALDADE NA ESCOLA Partindo da ideia de Rousseau (1983) de que a origem da desigualdade está na propriedade privada, teoricamente essa afirmação está distante da escola pública que conhecemos hoje, em função, sobretudo, de seus processos formativos. Entretanto, efetivamente existe uma forte relação, pois a propriedade individual contribui para o ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3282 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino nascimento de um homem voltado para o atendimento de seus interesses pessoais, preocupado em “vencer” na vida, ter os seus méritos reconhecidos publicamente. Nesse contexto quem pode certificar a capacidade dos sujeitos, dando-lhes a diplomação é a escola, Uma grande parte dos processos educativos desenvolvidos pela escola, ao longo de sua história, tem contribuído para a construção de determinados valores que perpetuam as desigualdades. Dubet (2008, p. 28) aponta que: “o fato de não haver mais seleção social fora dos estudos não impede que haja, através da seleção escolar, uma seleção social durante os estudos”. Essa assertiva é confirmada quando os sucessos e fracassos escolares associam-se diretamente às classes sociais nas quais estão os sujeitos reais que procuram a escola pública. Estudos relacionados a esta temática educacional têm afirmado que os filhos das classes trabalhadoras fracassam mais na escola, devido a uma série de fatores, dentre eles as diferenças sociais, culturais que eles estão submetidos. (CALDART, 2012, ARROYO, 1999) Segundo Dubet (2008): (...) O sistema escolar funciona como um processo de destilação fracionado durante o qual os alunos mais fracos, que são também os menos favorecidos socialmente, são “evacuados” (grifo do autor) para as habilitações relegadas, de baixo prestígio e pouca rentabilidade (DUBET,2008, p.27-28). Essa realidade apresentada pelo autor não é apenas da França, mas se adequa bem a realidade brasileira, pois historicamente em nosso país as profissões consideradas de maior prestígio social sempre foram ocupadas por pessoas oriundas dos extratos sociais mais privilegiados. Essa também foi uma forma de construção da desigualdade escolar. Na verdade, existe uma relação de reciprocidade, alunos com sucesso, oriundos de famílias com bom poder aquisitivo, escolhem profissões mais rentáveis na sociedade. Outro fator em destaque nessa discussão da desigualdade relaciona-se à localização e estrutura dos edifícios escolares. As denominadas “melhores escolas” encontram-se geograficamente em espaços territoriais mais privilegiados socialmente, com maior número de equipamentos públicos e acesso a diferentes e diversificados processos formativos, tais como, teatro, cinemas, museus, clubes. Em contrapartida, as escolas localizadas em regiões periféricas carecem de estrutura física adequada, estão isoladas de outras ações formativas e são obrigadas a vivenciar os reflexos de uma sociedade estratificada pela política perversa do capital. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3283 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Ademais, quando nos referimos às escolas rurais, a situação é bem mais crítica. Boa parte não tem condições nenhuma de funcionalidade, salas que comportam estudantes de classes multisseriadas, além de um projeto educacional urbanocêntrico que desrespeita a historicidade dos povos campesinos. Sob essa temática, Henriques, et all (2007) menciona que: A desigualdade entre os níveis de escolaridade dos indivíduos que vivem no campo e os que vivem nas cidades está claramente demonstrada nas pesquisas populacionais e educacionais. Em todos os indicadores sociais e educacionais as populações do campo estão em desvantagem, sejam eles relativos à matrícula, ao desempenho educacional dos alunos, à formação dos profissionais de educação ou à infra-estrutura física das escolas (HENRIQUES, et all, 2007, p.28). O discurso de que a escola é um espaço de oportunidades iguais vai aos poucos sendo desmascarado pela própria contradição inerente à sociedade capitalista. Quanto mais profunda a desigualdade entre as classes sociais, mais presentes são suas diferenciações. A abordagem das escolas do campo consiste em um eminente exemplo desse processo. Outro aspecto importante referente ao sentido da desigualdade na escola reflete na formação dos professores. Existe um processo de diferenciação profissional entre os que atuam em escolas onde o trabalho pedagógico é realizado com indivíduos oriundos das classes privilegiadas e aqueles que pertencem à classe popular. Tratando dessa questão, Dubet (2008) afirma que existe um processo de desigualdade evidente porque nas escolas onde seu público majoritário é formado de pessoas das classes menos favorecidas, os professores desses estabelecimentos são pouco experientes, vivem mudanças constantes, ou seja, a rotatividade é muito grande, afirmando que “os bons alunos, que são também os mais favorecidos do ponto de vista social, recebem um ensino melhor e mais caro” (DUBET, 2008, p.35). Novamente essa realidade acentua-se quando a relacionamos com o cotidiano das escolas do campo. No caso brasileiro, ainda vivenciamos situações em que os professores são “mandados” para as escolas rurais como forma de castigo, por não terem votado em candidatos de determinados partidos políticos. Geralmente, são profissionais que pouco conhecem a vida das crianças, jovens e adultos que moram no campo. Desse modo, não participam da história desses sujeitos. É pertinente e provocadora a afirmação de Arroyo (2007) ao alertar que: ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3284 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino As conseqüências dessa inspiração no paradigma urbano são marcantes na secundarização do campo e na falta de políticas para o campo em todas as áreas públicas, saúde e educação de maneira particular. O campo é visto como uma extensão, como um quintal da cidade. Conseqüentemente, os profissionais urbanos, médicos, enfermeiras, professores estenderão seus serviços ao campo. Serviços adaptados, precarizados, no posto médico ou na escolinha pobres, com recursos pobres; profissionais urbanos levando seus serviços ao campo, sobretudo nos anos iniciais, sem vínculos culturais com o campo, sem permanência e residência junto aos povos do campo (ARROYO, 2007, p.159) Nesses termos, defendemos o pressuposto de que o discurso da igualdade de oportunidades não tem fundamento quando as realidades são tomadas em sua totalidade. Nessa lógica, os privilégios de classe acabam determinando os serviços públicos que chegam e a forma que são oferecidos para a população. No caso específico da escola pública que precisaria assumir-se como espaço democrático de garantia de acesso e igualdade de condições para todos, existe uma forte afirmação de privilégios que se evidencia a partir de uma concepção meritocrática de educação e escola. A ESCOLA E O FORTALECIMENTO DOS DONS E MÉRITOS A construção curricular, em sentido amplo, imbricada nas ações sistematizadas desenvolvidos pela escola pública ao longo de sua história tem perpetuado determinados valores. Se reconhecermos que essa dinâmica se configura em um processo de segregação escolar, iremos vislumbrar a escola como instituição social, fortalecida pelos setores privilegiados em função de sua posição hierárquica na sociedade, frequentada por pessoas que pertenciam às classes favorecidas economicamente. Para os demais, ela não se configura como lócus formativo interessante. Assim, permanece a concretização da democracia burguesa. Dubet (2008) nos relata que: (...) Em todos os países, mas em graus diversos, os alunos originários das categorias sociais mais privilegiadas, os mais bem munidos em capital cultural e social, apresentam um rendimento melhor, cursam estudos mais longos, mas prestigiosos e mais rentáveis que os outros. (...) (DUBET, 2008, p.27). ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3285 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Nessa conjuntura social demarcada pela lógica do capital, “vencem” aqueles que conseguem por seus próprios méritos driblar esse jogo que foi instituído na consolidação da democracia. A expansão da escolaridade não tem significado de forma efetiva se a lógica for a igualdade de oportunidade para todos. Isso é possível de ser constatado pelo valor capital do prestígio que algumas profissões possuem em detrimento de outras. Coincidentemente ou não, elas são ocupadas por pessoas privilegiadas socialmente. Um dos aspectos cruéis dessa “oportunidade igual” está relacionado ao ocultamento de uma realidade que se apresenta de uma forma invertida, ou seja, apenas de forma aparente. Delegar aos dons pessoais os sucessos e fracassos escolares significa naturalizar as relações de classe que permeiam a sociedade capitalista. Não é justo que se diga a uma criança que se ela estudar, se esforçar muito vai conseguir vencer, sem considerar os aspectos históricos e condicionantes sociais que estão intrínsecos nas relações sociais. Não obstante, entendemos que a perfomance de cada indivíduo é carregada de historicidade. Segundo Miranda (1999): Na sociedade em que vivemos, somos levados a pensar e agir como se fôssemos, cada um de nós, pessoas únicas e isoladas, absolutamente originais, desligadas e separadas do que convencionamos chamar de "social", uma coisa tão abstrata que nem sabemos o que significa. Cada vez mais, somos estimulados pela necessidade de demonstrar uma originalidade, um brilho pessoal, um toque único, um charme especial e sem concorrentes. Ao mesmo tempo, somos atraídos pelas promessas da felicidade que estariam ocultas nessa possibilidade individual. Esse culto ao individualismo constitui uma das manifestações de um processo histórico que dá origem, mantém e fundamenta a sociedade capitalista e tem sua base no fato de que o capitalismo necessita que os indivíduos sejam "livres" e desembaraçados para produzir, consumir e concorrer entre si. (MIRANDA, 1999, p.46) A escola vai desenvolvendo ações que sustentam os prestígios individuais, salientando que através dos desempenhos de cada sujeito é possível vencer, basta ter um “brilho pessoal, um toque único”. Essa afirmação vai de encontro à realidade da escola, pois os vencedores nesta instituição em sua grande parte são aqueles que pertencem às categorias economicamente privilegiadas. Dubet (2008,) ainda complementa dizendo que as crianças que pertencem às categorias privilegiadas conseguem conviver com facilidade com a cultura escolar enquanto outras classes menos favorecidas, necessitam de adaptar-se a esta cultura estranha. Por isso é ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3286 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino injusto delegar aos pobres o fracasso escolar, fazendo com que se tornem responsáveis pela sua falta de êxito. Infelizmente, a nossa experiência profissional no trabalho docente em instituição pública tem mostrado que a escola continua premiando os vencedores e deixando de lado os vencidos, ou melhor, fazendo com que eles acreditem que não conseguem devido a sua incapacidade, sua falta de zelo. Delegam a eles e a seus familiares a responsabilidade pelo fracasso. Desta forma, oculta as contradições que são inerentes a uma sociedade de classes. Nesse processo de ocultamento, entrega aos indivíduos o sucesso e o fracasso, a vitória e a derrota e deixa que as pessoas possam construir sozinhas suas histórias. Agindo assim, permite que o discurso das igualdades de oportunidade continue perpetuando e valorizando as performances individuais, identificando como “dom” o que é histórico. A CONSTRUÇÃO DE UMA ESCOLA JUSTA É POSSÍVEL? Não temos dúvida do papel social, histórico, político que a expansão da escolarização proporcionou às sociedades democráticas. A possibilidade de acesso ao conhecimento, que antes era privilégio apenas dos “bem-nascidos”, a ampliação e a divulgação das informações tem proporcionado avanços incomensuráveis. No entanto, todas essas transformações não têm oportunizado a igualdade de condições para todos. Ainda convivemos com a mão da meritocracia apontando os caminhos a serem seguidos, com escolas com estruturas diferenciadas por sua localização geográfica, com estudantes que conseguem maior desempenho devido ao conhecimento cultural construído fora da escola, com professores que dedicam mais tempo com os indivíduos que pertencem às categorias mais privilegiadas, enfim, a existência da desigualdade. Diante dessa realidade, vêm as indagações: é possível construir uma escola justa desconsiderando a realidade histórica? A escola é justa só pelo fato de universalizar o acesso? Como desenvolver oportunidades iguais desconsiderando as perfomances individuais como fator essencial de igualdade? Na conjuntura educacional que vivenciamos é possível a construção dessa escola justa, uma escola de igualdade, sem repensar o currículo? ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3287 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Arroyo (2010) comenta que a discussão da desigualdade na escola deve levar em consideração outras realidades e não somente as questões internas à escola. É necessária a compreensão de outras determinações que interferem na realidade escolar, mas que são produzidas em outros espaços. Segundo o autor: As pesquisas e análises sérias que apontam outras causas mais determinantes, inclusive intrassistema escolar, são ignoradas. Como não são levadas a sério pesquisas que mostram o papel histórico do próprio sistema, a reprodução das desigualdades, sobretudo, são ignoradas as análises e pesquisas que mostram o peso determinante das desigualdades sociais, regionais, raciais, sobre as desigualdades escolares na formulação de políticas, na sua gestão e avaliação. A repolitização conservadora na sociedade, na política e na formulação e avaliação de políticas fechou o foco no escolar, ignorando os determinantes sociais, econômicos, ou as desigualdades tão abismais nesses campos como determinantes das desigualdades educacionais (ARROYO, 2010, p.1384). Deslocar a discussão das desigualdades das questões sociais, regionais, raciais, políticas da escola, tem por objetivo tentar isentar esse espaço dos problemas sociais e ao mesmo tempo justificar suas ações, pois não “sofrendo” interferência externa, acaba também por não interferir na sociedade. Dessa forma, a construção de uma escola justa acaba sendo tarefa da própria escola e não da coletividade. É fundamental compreender que a escola justa para ser efetivada depende entre outros fatores, de um envolvimento da sociedade, da construção de ações coletivas, pois não podemos pensar uma tarefa dessa envergadura somente com os agentes escolares. Mas afinal, o que é uma escola justa? Para Dubet (2008), (...) a escola justa supõe que as comunidades adultas se responsabilizem pelas crianças e adolescentes a fim de ajudá-las a crescer. Isso significa que o ofício de professor não se reduza unicamente à transmissão dos conhecimentos “escolares” (grifos do autor), que se aprenda a medir um bem educativo propriamente cívico e cultural, que a escola não humilhe ninguém e que ela permita a todos ter valor (,,,) (DUBET, 2008, p.111) Diante do exposto, é possível pensar em uma escola justa entrelaçada com a coletividade, sendo que crianças, adolescentes, jovens e adultos possam compartilhar suas experiências. Trata-se de um processo formativo que não se reduz à escolarização, mas contemplem os conhecimentos extra-escolares. Outro fator essencial é o respeito ao ser ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3288 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino humano. Pensar nessa escola é considerar as múltiplas territorialidades: campo – cidade, urbano-rural, centro- periferia. PARA NÃO FINALIZAR, MAS CONTINUAR REFLETINDO... A reflexão sobre igualdade e desigualdade na escola a partir de seus pressupostos e desafios curriculares apresenta algumas discussões. Primeiro, compreender a escolarização a partir dos processos formativos vivenciados e sua influência na vida dos indivíduos. Isso passa pela questão curricular. A escola pública apesar de ser uma conquista das populações, ainda está longe de tornar-se um espaço popular e justo. A herança de exclusão que ela carrega pelo ideário de igualdade na diversidade demonstra que ainda existe um longo caminho de obstáculos a ser superado. A construção da escola pública passa por uma reestruturação curricular, pela compreensão do seu papel social e político em uma sociedade que vive sob a lógica do capital, pela concepção de homem, enquanto sujeito histórico, enfim, desafios que devem ser vencidos pela coletividade, que precisa dizer qual escola deseja para seus filhos. Concordamos com Silva (1999, p. 90) que se não houver uma mudança consistente no currículo a ‘justiça curricular’ não acontecerá. E nessa mudança é necessário que se reflita “as formas pelas quais a diferença, a desigualdade são produzidas por relações sociais de assimetria”. Gimeno (1995, p 83) amplia a questão ao compreender que não basta pequeno arranjo na cultura escolar para atender uma minoria cultural, um pequeno grupo se a questão maior da diversidade em geral não for tratada adequadamente. Daí a necessidade de redimensionar o currículo numa perspectiva ampla, multicultural, dentro de um contexto democrático de decisões a fim de que todos tenham seus interesses contemplados e a escola possa ser “um projeto aberto, no qual caiba uma cultura que seja espaço de diálogo e de comunicação entre grupos sociais diversos”. Ainda assim, não podemos ignorar a importância da escola na socialização dos saberes historicamente acumulados, bem como, na construção de novos conhecimentos a partir dos processos educativos construídos dialeticamente. Entretanto, revelar suas contradições poderá ser um dos caminhos possíveis para a superação da produção da ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3289 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino desigualdade que continua sendo cultivada nos dias atuais. Suplantar uma escola meritocrática e incentivadora das conquistas individuais é o segundo passo a ser trilhado na edificação de uma escola justa. A escola justa deverá ser fruto das contradições da sociedade, pois sendo elaborada por sujeitos históricos ela não será algo idealizado por mentes iluminadas, mas nascerá dos conflitos, das relações que são entremeadas por múltiplas determinações. A sociedade consegue mudar a partir da intervenção dos seres humanos. Assim também nascerá a escola justa. REFERÊNCIAS. ARROYO, Miguel Gonzalez. Ciclos de Desenvolvimento Humano e Formação de Educadores. Revista Educação e Sociedade. Campinas, Ano XX, n.68, Dezembro de 1999. ARROYO, Miguel Gonzalez. Políticas de Formação de Educadores (as) do Campo. Revista Educação e Sociedade. Campinas, vol.27,n.72, p.157-176, maio/agosto de 2007. Disponível em<http: // www.cedes.unicamp.br> Acesso em 05.05.2013. ARROYO, Miguel Gonzalez. Políticas Educacionais e desigualdades: à procura de novos significados. 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HENRIQUES, Ricardo; MARAGON,Antônio;DELAMORA, Michiele;CHAMUSCA, Adelaide. (orgs). Educação do Campo: diferenças mudando paradigmas. Cadernos SECAD 2. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Ministério da Educação. Brasília, março de 2007. MIRANDA, Marília Gouveia. Psicologia do desenvolvimento: o estudo da construção do homem como ser individual. Educativa, Goiânia/GO, v. 2, p.45-62, 1999. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3290 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino MOREIRA, Antonio Flavio B.; SILVA, Tomaz Tadeu da (Orgs.). Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 1994. ROUSSEU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens. In: Rousseau, São Paulo, Abril Cultural (Os pensadores), 1983. SACRISTÁN, J. Gimeno. Currículo e diversidade cultural. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; MOREIRA, Antonio Flavio B. (Orgs.). 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Pesquiso a Multieducação (1996) e seu enfoque sobre o PPP como ferramenta de orientação e construção das práticas educacionais como articuladora desses saberes. PALAVRAS-CHAVE: Currículo – Projeto – Cultura TENSIONS AND OBSERVATIONS OF PRACTICAL COURSE: TEACHING POLITICAL PROJECT ABSTRACT Analyze curriculum and practices produced in the construction of knowledge taking into account cultural expressions of the subjects in the production of their identities marked by cultural difference. Consider the culture, not only as a reproduction of codes, but also as a producer of speeches and articulator of traditions and knowledge. Researching the Multieducation (1996) and its focus on the PPP as a tool for guidance and construction of educational practices as articulating such knowledge. KEYWORDS: Curriculum - Project - Culture Introdução Compreender o currículo para além de conteúdos disciplinares significa percebê-lo como práticas construídas e produzidas no cotidiano das instituições educacionais a fim de desenvolver o conhecimento. Sendo assim estas práticas são desempenhadas através das relações sociais que tem por articuladora a linguagem, impregnada de símbolos e significados expressos culturalmente. O currículo é considerado um artefato social e cultural [...]. O currículo não é neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares [...] tem uma história, vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e educação. (Moreira, 1995, p.8) ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3292 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino As expressões culturais são representadas por sujeitos múltiplos, possibilitando a hibridização e a constituição de novas identidades marcadas pela diferença cultural que redirecionam e reformulam e conduzem o ensino e a aprendizagem. Segundo Bhabha (2007) tais diferenças culturais se dão por meio do surgimento de um campo em que ocorrem processos de significações culturais. Para tanto é necessário compreender que a cultura, para além de seu sentido antropológico de reprodução de códigos representativos de um determinado grupo, se apresenta como produtora de discursos (Freitas, 2007) e experiências que articula tradições e saberes, proporcionando um espaço de conflito, diálogo e discussão. Sendo assim, a Multieducação (1996) elaborada pela SME/RJ9 pretendeu reconhecer a complexidade social reafirmando a escola municipal como lugar constituinte de valores. Esta proposta curricular – Multieducação – Núcleo Curricular Básico de 1996 – orientou as práticas educacionais da rede desde sua criação até o ano de 2009. Percebê-la como “texto oficial” exige que se coloque em questão como as instituições de ensino articulam as culturas e as diferenças, não naturalizando e por sua vez homogeneizando os conhecimentos e comportamentos de suas práticas, mas como espaço de criador de sentidos. E, como lugar de diálogo em que os sujeitos envolvidos, não apenas nos processos de ensino-aprendizagem, mas como nas produções das relações sociais, cria tensões. O que ocorre são constantes relações de disputas de poder, entendendo que se constitui um espaço de singular e ao mesmo tempo plural. Desta maneira, a Multieducação propõe a valorização da construção histórica na produção do conhecimento a fim de suprimir uma visão fragmentada do conhecimento. É neste sentido que a mesma aponta o Projeto Político Pedagógico10 como ferramenta de orientação e construção das práticas educacionais, e ainda o considera como um meio de produzir a identidade de cada escola, reconhecendo sua realidade sócio-cultural e lugar de diferença (Multieducação, 1996). A construção do PPP cria espaço para que o sujeito dê sentido ao contexto histórico e cultural quando articula as diferentes culturas tornando as produções curriculares significativas para os sujeitos envolvidos e suas práticas. Para além de um registro documental legal da escola, o PPP é analisado como prática curricular ultrapassando o sentido de conteúdos programáticos e também como lugar de resignificação das relações sociais e de produção de identidades e culturas. 9 Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. A partir deste ponto utilizarei a sigla “PPP” para mencionar o Projeto Político Pedagógico. 10 ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3293 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino “Neste espaço, qualquer informação, conteúdo, valor a ser discutido, implica em tantas formas de construção do conhecimento quantos forem os sujeitos envolvidos, pois, para cada sujeito, a repercussão se fará de forma diferenciada atingindo a rede de sentidos em que ele está enredado”. (Multieducação, p. 68). Compreender a construção do PPP como práticas curriculares, requer sua concepção como espaço de disputa e poder, pois ele é a materialização dos intentos que reportam as identidades dos sujeitos envolvidos em seu processo de elaboração. Tal processo é representado pelas relações sociais representadas na/pela diferença e produzindo significados a fim de entender como a sociedade vive seu tempo. O PPP oportuniza aos sujeitos inserirem-se na agência de seus discursos, ou seja, é como ele se constitui. Ao deslocar sua identidade, cruzando o passado, o presente e o futuro, por meio das relações sociais representadas pela linguagem, o sujeito emerge no ato político como enunciador das interações verbais. “Somos diferentemente posicionados, em diferentes momentos e em diferentes lugares, de acordo com os diferentes papéis sociais que estamos exercendo (HALL, 1997, Apud, SILVA, 2009, p30). Diferentes contextos sociais fazem com que nos envolvamos em diferentes significados sociais”. (TADEU, p.30, 2009). As agências são demarcadas pelas intenções que são postas em práticas e negociadas em meio a tensões e disputas que se modificam ao longo do processo de realização do PPP. É desta forma que se tem a possibilidade de novas realizações e produções curriculares que fazem com que os saberes circulem dando novos sentidos por meio da recontextualização e negociação. Por isso, “... é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas de significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros” (Hall, 1997, p.15). O que são novos sentidos? Para compreender é preciso analisar sobre a construção curricular orientada pela SME/RJ com o objetivo de conceber a construção e ressignificação dos sentidos das práticas educativas representadas na/pela diferença. Por isso é pertinente entender o processo de elaboração e prática dos PPPs das instituições de ensino da SME/RJ, ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3294 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino visto que sua criação se deve à necessidade de atender aos sujeitos múltiplos inseridos no contexto do cotidiano educacional. A prática curriculares baseadas em PPPs propõem o aprendizado dos diferentes conhecimentos de forma não-linear, através de múltiplas linguagens com fechamentos provisórios (Barbosa, 2008). Por isso, para que se tenha a aprendizagem é necessária uma organização curricular que tenha significado para os sujeitos envolvidos em suas práticas. Por conseguinte quando há a nomeação de um currículo oficializado encontramos alguns embates. Isso se deve pelo não reconhecimento das políticas curriculares das diferenças culturais e de identidades nas/das relações sociais ao estabelecerem metas e objetivos específicos a fim de promover a apropriação do conhecimento. Entrando na Escola: visões e observações Imaginar é construir simbolicamente algo (GLISSANT apud MIGNOLO, 2005), alguma situação, e aqui mais especificamente imaginar a comunidade escolar. É estabelecer perguntas e respostas para auto-descrever deslocando as identidades e lugares rompendo com fronteiras territoriais e criando fronteiras culturais. Neste contexto de imaginação, criação de perguntas e a tentativa de romper com ideias previamente estabelecidas e naturais às relações sociais que realizei observações, descrições e análises do documento que norteia as práticas educacionais – Multieducação. Busquei refletir sobre os significados que estavam sendo construídos com os sujeitos envolvidos compreendendo que as instituições educacionais precisam estar voltadas para o desenvolvimento integral do sujeito, proporcionando a construção da identidade (Hall, 2005) e a construção de outras/novas relações sociais. Além de permitir contato entre os sujeitos para que estes possam identificar o outro e a si mesmo através da consolidação das relações sociais, entendendo o espaço escolar com significados. Minhas observações na escola se deram pela necessidade de construção e pesquisa do trabalho de conclusão de curso da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cuja temática foi à análise do currículo como lugar de criação, produção e construção de culturas e identidades. Durante minhas observações averiguei como se davam as trocas de experiências, e como se construía o currículo por meio das práticas educacionais e nas relações entre professores e alunos, durante a construção e produção das práticas curriculares. Para além de uma compreensão de que o currículo é a organização de métodos educativos, mas em uma perspectiva de currículo como produção social e cultural, implica em ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3295 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino reconhecer que a escola é um espaço constante de conflito e negociações. Existe uma busca pela ponderação das diferenças culturais e sua valorização, que reforçam a identidade através da linguagem. Para descobrir como se davam as práticas e as relações educacionais, precisei me colocar na “exterioridade do interior” que segundo Mignolo: “... não é necessariamente fora do Ocidente (o que significaria uma total falta de contato), que no entanto é exterioridade exterior e exterioridade interior (as formas de resistência e de oposição traçam a exterioridade interior do sistema”. (Mignolo, 2005, p.38:39) Cabe, aqui, indagar sobre em como se dá a construção dos PPPs educacionais? Se os educadores ficam limitados à transmissão do conteúdo e/ou metodologias? Qual é o objetivo final do PPP: atender às propostas pré-estabelecidas ou articular os diferentes contextos? De que forma o PPP pode criar um campo de produção cultural, constituir identidades e valorização das diferenças? Mais do que entender a relação que se estabelece entre colonizador (o professor) e o colonizado (o aluno), na qual as identidades são deslocadas e o reconhecimento da agência destes sujeitos dentro de uma determinada cultura e lugar por meio de relações de poder, é alcançar que as subjetivações produzidas neste espaço e as fronteiras culturais estabelecidas estão para além de uma hierarquia. Não é categorizar os papéis sociais presentes nestas relações, mas investigá-las. É compreender que as relações sociais produzidas no espaço escolar pelas significações, num processo contínuo e fluído concebem outras formas de produzir culturas e identidades. Para tanto se torna importante examinar as produções do/no espaço educacional fundada pelas relações sociais para a produção curricular e que pondera as diferenças como campo de negociação, articulação e produtor de cultura. Trata-se de uma dimensão interpretativa, de não apenas entender as relações sociais, mas também seus códigos de acordo com os textos. São os códigos criados e construídos no processo de elaboração e prática do PPP considerando as diferenças por meio das negociações, confrontadas pelas relações sociais imersas no contexto de produção de significados. É buscar compreender o porquê determinadas ações e comportamentos culturais produzem significados e códigos, analisando a realidade de cada escola, entendendo seu sentido plural e ao mesmo tempo singular observando cada contexto e suas realidades culturais. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3296 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Meus estudos e minhas indagações estão direcionados a entender em como se dá o processo de construção e negociação do PPP dentro de uma rede municipal de ensino em que somos múltiplos, reconhecendo as diferentes culturas e identidades na/das relações sociais. E ainda, compreender “para quem é importante e necessário definir um lugar de pertencimento e de diferença?” (Mignolo, 2005, p. 41). O professor, como sujeito mediador e articulador no processo da aprendizagem precisa repensar suas práticas a fim de estimular o desenvolvimento da aprendizagem e da criatividade. Com este objetivo é necessário propor ao aluno a manifestação e a troca nas/das relações culturais e não uma simples decodificação de símbolos e conteúdos. Entendendo assim, o PPP enquanto códigos construídos e produzidos a fim de orientar a construção dos saberes educacional e que articula as diferenças nestes espaços, o compreendendo também como espaço constituinte de relações polifônicas. Por ser um texto no qual diferentes atores sociais se pré-dispõe para sua elaboração, exige do pesquisador/observador o olhar, o ouvir e o escrever (Oliveira, 2006) para que sejam compreendidas as negociações e mediações das produções curriculares, visto que o PPP, deveria, segundo a Multieducação (1996) ser a identidade de cada instituição de ensino da SME/RJ. É ainda entender que, como a textualização de uma prática a ser realizada está sujeito as diferentes interpretações de como e quando por em prática. É colocar em questão quais são as identidades que serão produzidas e sua finalidade. O momento de significação de minhas observações sobre as práticas propostas pelo PPP se deu no momento em que observei/olhei para as relações produzidas durante as aulas. Foram “... explicações fornecidas pelos próprios membros da comunidade investigada [...] matéria-prima para o entendimento antropológico...” (Oliveira, 2006, p. 22) que compreendi o andamento das atividades propostas e a ajuda entre alunos para realização das atividades a fim de chegar ao objetivo proposto pelo professor. Pelas relações dialógicas, que confrontaram minhas observações e anotações com as ações do “nativo” (professores e alunos) que captei algumas dinâmicas estabelecidas pelo PPP. Foi minha observação participante, pois em alguns momentos auxiliava na realização das atividades, e isto em alguns momentos dificultou a meu “olhar” sobre o que já estava se tornando “natural” aos meus olhos. Quando percebi esta naturalização das minhas observações, percebi a necessidade de outros questionamentos para além da construção e produção pura e simples do PPP. Por meio ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3297 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino disso cheguei a uma outra análise: que de fato ainda existia era a interrupção entre as atividades das disciplinas curriculares oficiais e as atividades do PPP. A grande questão do PPP é a superação de conteúdos pré- estabelecidos e enrijecidos dentro de um entendimento de currículo com práticas conteudistas. E ainda ultrapassar a noção de que é uma ferramenta de controle e de organização de atividades. Pensando em Oliveira (2006), as relações propostas pelo PPP necessitariam ser pensadas no interior das “representações coletivas”, pois a construção do PPP não exige uma linearidade. Ele deve atender ás necessidades das múltiplas linguagens e reconstruir o que já foi aprendido. A organização do PPP não deve estar acabada e fechada, mas ser um processo contínuo de produção de sentidos por meio das práticas educacionais a fim de produzir conhecimento e culturas. Seria então, a “textualização das culturas” (Oliveira, 2006, p.26) produzidas e construídas por meio das práticas curriculares. É a interpretação dos discursos presentes em tais práticas. Apesar da proposta da Multieducação de uma ferramenta que permite a autonomia de cada escola, o que verificamos é uma regulação curricular por meio do PPP. E, ainda, um documento que já vem pré-estabelecido em algum momento e quem nem sempre é reavaliado a fim de atender as verdadeiras necessidades de aprendizado. Como elaborar e realizar um PPP que promova de fato a integração dos conhecimentos nas práticas curriculares? Como interpretar as múltiplas linguagens encontradas neste espaço? Como entender as negociações e produções de identidades e culturas pertinentes à instituição da escola? São questões que permeiam minha pesquisa e que precisam ser “ouvidas e olhadas”. De que lugar eu falo para realizar minha pesquisa? Para quem eu falo e a quem interessa aquilo que vou produzir? “O ponto de partida é este: nossas escolhas de pesquisa são éticas, são sempre de algum modo políticas. Então, diante de uma folha em branco, de um projeto que teima por vezes desesperadamente, em não ser escrito, talvez um bom começo seja perguntar-nos: que perigos a Educação enfrenta ou precisaria enfrenta, precisamente hoje, agora?” (Fischer, 2002, p. 52-53). Parto do ponto de que há, em alguns momentos, o esvaziamento de sentidos e da finalidade primeira do PPP quando este é concebido como “evento” a ser realizado em determinadas épocas do ano letivo. Não pretendo naturalizar esta percepção, mas sim questionar o meu posicionamento diante dela e ainda questionar os sentidos do PPP. É ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3298 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino inclusive questionar o discurso de que o professor estimula seus alunos na realização das atividades, que acaba por dar sentido permitindo a construção de sentidos e valores, por meio da produção do PPP. A continuação da minha pesquisa se dará através das análises dos PPPs elaborados pelas escolas e das entrevistas realizadas, entendo ambos como discurso, pois como Fischer (2002) menciona Foucalt: “... os discursos e todas as normas e regras institucionais nos mais diferentes campos de poder e saber – são sempre, e por definição, “práticos”.” (p.50). Para embasar e desenvolver reflexões analisarei as demandas individuais/coletivas da produção curricular por meio de um processo metodológico dialógico. E ainda os registros das observações das práticas educacionais permitirão a construção e a ressignificação das produções curriculares como espaço de produção cultural e de conflito por meio das diferenças. Considero que o PPP interfere na produção do conhecimento quando há articulação entre a pluralidade de saberes em que diferencio “eu” do “outro”. Esta diferenciação significa permitir o confronto das singularidades criando assim um espaço de reflexão e interação entendendo que as análises a serem realizadas pela pesquisa têm por relevância os objetivos históricos e as condições de produção. Tais relevâncias são compreendidas por meio da linguagem que dá mobilidade para os significados produzidos pelas relações sociais. As relações entre os sujeitos se tornam capazes de construir o conhecimento, resgatando os saberes por meio de produção de sentidos que surgem através dos significados e de suas interpretações que pela linguagem e produção de discursos se torna viável o diálogo entre os sujeitos. As investigações a serem realizadas buscarão contribuir nas análises das práticas curriculares e a construção do conhecimento nas relações sociais deparando-se com sujeitos em diferentes contextos e ainda, ponderando e articulando os discursos que permitem a produção de identidades culturais por meio da multiculturalidade (Bhabha, 2007) valorizando os sentidos e os signos e símbolos criados através da linguagem e do discurso. Para tanto se pretende verificar como os sujeitos se apropriam diferentemente dos sentidos produzidos, reconfigurando a todo tempo seus valores por meio das múltiplas linguagens, dos múltiplos contextos e discursos que se estabelecem nas relações sociais. Referências: BARBOSA, Maria Carmen Silveira.; HORN, Maria da Graça Souza. Projetos Pedagógicos na Educação Infantil. Porto Alegure: Artmed, 2008. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3299 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2007. FISCHER, Rosa Maria Bueno. Verdades em suspenso: Foucault e os perigos de enfrentar. IN: COSTA, Marisa Vorraber (org.) Caminhos investigativos II: outros modos de pensar e fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. FREITAS, Maria Teresa; SOUZA, Solange Jobim; KRAMER, Sônia. Ciências Humanas e Pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo. 2ª Edição, Cortez, 2007. HALL, Stuart. A Centralidade da Cultura: Notas sobre as Revoluções Culturais do Nosso Tempo. Educação e Realidade, 22(2), p. 15-46. 1997. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 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ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3300 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino HISTÓRIA ENSINADA E PRÁTICAS DE LETRAMENTO: CURRÍCULO, CULTURA E PRODUÇÃO DE SENTIDO Patrícia Bastos de Azevedo 11 UFRRJ [email protected] RESUMO O presente artigo buscou conceituar a produção de sentido em práticas de letramento na história ensinada, operando conceitualmente com o campo da linguagem a partir do Círculo de Bakhtin como arcabouço teórico em interface com o currículo. O currículo, nesse sentido, é compreendido como um signo ideológico que se constitui em seu tempo-espaço sóciohistórico, em uma composição híbrida, ambivalente, complexa e polissêmica. Assim, nesse diálogo com os campos da linguagem e do currículo, o conhecimento é concebido como uma produção social estruturada pelos signos ideológicos em sua historicidade social, e a sala de aula, concebida como espaço complexo, múltiplo, híbrido, ambivalente e polissêmico, desperta muitos questionamentos e possibilidades. Com isso, assevera-se que a história ensinada é estruturada não só pelas questões disciplinares relacionadas à historiografia, ou, em outras palavras, pela prática de letramento que permeia o exercício do ofício do historiador; mas também compõe-se das dinâmicas de formação e significação do mundo da vida, as quais se fazem presentes no espaço de ensino. Palavras-chave: Ensino de história, práticas de letramento escolar, currículo, linguagem. HISTORY TAUGHT AND LITERACY PRACTICES: CURRICULUM, CULTURE, THE PRODUCTION OF MEANING The present article investigates the production of meaning in literacy practices in History education and it is shaped conceptually by the field of language drawn from the Bakhtin Circle (BAKHTIN-VOLOCHINOV, 2002; BAKHTIN, 1998, 2003) as its theoretical framework in interface with the curriculum itself. The curriculum in this sense is understood as an ideological sign that constitutes its social-historical timespace, in a hybrid, ambivalent, complex and polysemic composition. Therefore, many questions and possibilities stem from this conversation between the fields of language and the curriculum since knowledge is defined as a socially constituted production, structured by ideological signs in its social historicity and the classroom is conceived as a complex, multiple, hybrid and ambivalent space. By doing so it is ensured that the teaching of History is not only structured by disciplinary issues related to historiography, that is by the practice of literacy that pervades the exercise of the profession as a historian, but it is also anchored on the development and significance of the life-world dynamics, which is present in education. Key-words: History teaching, school literacy practices, curriculum, language. 11 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Mestre em Educação UFF, Doutora em Educação UFRRJ, professora do curso de História, membro do Grupo de Pesquisa Oficinas da História. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3301 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Introdução O desafio fundamental deste artigo/ensaio é conjugar dois campos discursivos – currículo e linguagem – buscando compreender nosso foco de investigação – história ensinada e sua interface com o letramento. O currículo, nos viés teórico que apresentamos, é pensado como um signo ideológico12 que se constitui em seu tempo-espaço, em uma composição híbrida, complexa e polissêmica, composição esta que transita por múltiplos campos discursivos e espaços enunciativos. Compreendemos história ensinada como o ato de ensinar história. Assim, na perspectiva adotada, o ensinado é um ato permeado pela linguagem de um ou mais sujeitos. O espaço do ensino não necessariamente precisa ser face a face; os livros didáticos, os filmes históricos, as revistas dedicadas à história ou os artigos de história também carregam em si uma história a ensinar que demanda outras inter-relações sociais distintas daquela existente na sala de aula. As práticas de letramento escolar estão reguladas, isto é, submetidas a regras constituídas no tempo-espaço sócio-histórico em que a escola está situada. Dessa forma, as práticas de oralidade, leitura e escrita estão circunstanciadas por alguns aspectos desse letramento. Buscamos pensar as práticas de letramento escolar circunstanciadas pelas relações de poder que constituem a identidade sócio-histórica da escola e de suas seleções culturais que se desdobram no currículo. Dessa maneira, compreendemos práticas de letramento como ações individuais ou coletivas marcadas pelo uso da leitura e da escrita. Assim, as pessoas estão permeadas pelo situado de tais práticas e pela valoração e compreensão que essas ações possuem em suas dinâmicas sociais e culturais. Em suma, as práticas de letramento estão inseridas nas atividades cotidianas da vida, e não somente na escola e no trabalho, sendo tratadas de formas múltiplas por seus vários usuários (BARTON, 2007) e ocorrendo de formas distintas de pensar e fazer a leitura e a escrita em diferentes situações sócio-culturais (STREET, 2003, s/p). Na perspectiva adotada, o letramento escolar se estrutura em diálogo com o tempoespaço que o situa e o constitui de sentido. Em vista disso, o currículo desdobra-se em práticas pedagógicas e seleção letrada que estruturam a história ensinada impactada pelas questões 12 Já que nosso texto usa como principal arcabouço teórico o diálogo com o Círculo de Bakhtin, a palavra ideologia assume um sentido próprio, o qual, neste artigo/ensaio, pode ser compreendido na explicação apresentada por Faraco (2009, p. 46): “Como ideologia é uma palavra ‘maldita’ (pelas incontestáveis significações sociais que pode veicular), é importante – para evitar costumeiros mal-entendidos [...] [A] palavra ideologia é usada, em geral, para designar o universo dos produtos do ‘espírito’ humano, aquilo que algumas vezes é chamado por outros autores de cultura imaterial ou produção espiritual (talvez como herança de um pensamento idealista); e, igualmente, de forma da consciência social (num vocabulário de sabor materialista). ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3302 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino sócio-históricas, se estendendo em práticas de leitura e escrita materializadas no espaço da sala de aula. Prática de letramento escolar Historicamente, a escola assumiu o papel de principal agência de promoção e difusão de práticas de leitura e escrita, isto é, promotora primeira de modelos e práticas do como deveríamos falar, ler e escrever na sociedade. O processo de “alfabetização” das massas se constituiu em correlações de forças e tensões entre concepções de sociedade de direitos sociais, marcando os debates do terceiro triênio do século XIX (GRAFF, 1994, p. 66-67). E a escola, a esse espaço de disputa de visões e concepções sobre o papel e a função da leitura e escrita, incorpora-se como um lugar estratégico de disseminação de uma cultura letrada “específica” e “escolhida” por uma parcela da sociedade e por uma vertente teórica de caráter liberal, marcada pela concepção moderna. Historicamente, muitos logo perceberam a importância da imprensa e a possibilidade de avanço individual e social adviria da realização da alfabetização em massa, embora a discordância prevalecesse de modo acirrado até quase o final do primeiro terço do século XIX [...] Esta tendência reacionária, que temia a escolarização para os pobres e para as classes trabalhadoras, sucumbiu ao triunfo da promoção da escala progressista liberal na primeira metade do século XIX. Os conservadores foram calados e vencidos pela grande maioria, bem como pelo fato e pelas forças da rápida mudança social e também pelos problemas e pela necessidade urgente de solução [...]. (GRAFF, 1994, p. 66-67) Nesse sentido, salientamos que o texto de Graff e suas considerações acerca da “alfabetização13” estão marcados historicamente pelos debates teóricos do tempo-espaço, isto é, pela década de 1970 e 1980. Dessa forma, tanto a escola como o currículo são definidos como um lugar de “inculcação” a serviço da sociedade urbana e industrial (GRAFF, 1994, p. 69). Nesse contexto, o referido autor apresenta uma questão de fundamental importância para este artigo/ensaio “o mito do letramento”, isto é, a pretensão de que a competência de ler e escrever elevaria a capacidade de cognição dos indivíduos, além de promover maior igualdade social. Graff denuncia essa pretensão que, segundo ele, não se comprovou na prática. Essa perspectiva se aproxima do que Sttret define como “letramento autônomo”: 13 Acreditamos ser fundamental neste ponto destacar o título original do livro de Graff “The labyrinths of literacy”, traduzido no início da década de 90 como “Os labirintos da alfabetização”. Dessa forma, a escolha por alfabetização, e não por letramento, se constitui no tempo-espaço sócio histórico, visto que o termo letramento, nesse momento histórico, ainda estava em suspensão e com seus significados e sentidos sendo tecidos pela academia e sua validação em disputa por aceitação. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3303 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino [...] O modelo “autônomo” de letramento funciona com base na suposição de que em si mesmo o letramento – de forma autônoma – terá efeitos sobre outras práticas sociais e cognitivas. Entretanto, o modelo disfarça as suposições culturais e ideológicas sobre as quais se baseia, que podem então ser apresentadas como se fossem neutras e universais [...]. (2003, s/p) O modelo de “letramento autônomo” constitui profundamente a concepção de oralidade, leitura e escrita que estrutura tais práticas no espaço escolar. As práticas de letramento na história ensinada, em sua maioria, têm essa concepção no alicerce das atividades desenvolvidas em sala de aula e, ainda, têm, como pressuposto, que o aluno “alfabetizado14” possui capacidade de ouvir a explicação e transformar a informação dada em respostas corretas, isto é, em sínteses expressas na escrita de um texto. Nessa perspectiva, compreende-se que o domínio da tecnologia da escrita por si só habilita o aluno a percorrer as práticas sociais da língua escrita. Esta concepção está próxima ao que Sttret (2003) define como modelo “autônomo de letramento”: Embora correndo o risco de uma excessiva simplificação, pode-se dizer que a inserção no mundo da escrita se dá por meio da aquisição de uma tecnologia – a isso se chama alfabetização, e por meio do desenvolvimento de competências (habilidades, conhecimentos, atividades) de uso efetivo dessa tecnologia em práticas sócias que envolvem a língua escrita – a isso se chama letramento. (SOARES, 2004a, p. 90) Como alternativa ao “modelo autônomo de letramento,” Street (2003) propõe o “modelo ideológico de letramento”: [...] O modelo ideológico alternativo de letramento oferece uma visão com maior sensibilidade cultural das práticas de letramento, na medida que elas variam de um contexto para outro. Esse modelo parte de premissas diferentes das adotadas pelo modelo autônomo – propondo por outro lado que o letramento é uma prática de cunho social, e não meramente uma habilidade técnica e neutra, e que aparece sempre envolto em princípios epistemológicos socialmente construídos [...]. (s/p) Por esse lado, as práticas de letramento são sócio-historicamente situadas, impactadas pelo tempo-espaço que constitui a escola como lugar de ensino das técnicas de leitura e escrita, isto é, não se pode compreender as práticas de letramento como algo exterior ao currículo em seu sentido lato15. As práticas de letramento escolar se constituem no tempo- 14 [...] define-se alfabetização – tomando a palavra em seu sentido próprio – como o processo de aquisição da “tecnologia da escrita”, isto é, do conjunto de técnicas – procedimentos, habilidades – necessárias para a prática da leitura e da escrita, as habilidades de codificação de fonemas em grafemas e de decodificação de grafemas em fonemas, isto é, o domínio do sistema de escrita (alfabético, ortográfico); as habilidades motoras de manipulação e decodificação se realizem [...] (SOARES, 2004a, p. 91) 15 Compreendemos que todas as ações, desde as mais simples às mais complexas, são parte integrante do processo educativo e, dessa forma, integrantes do currículo em suas múltiplas dimensões sociais e políticas. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3304 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino espaço sócio-histórico em que os “modelos” de letramento estão sempre em disputa por supremacia e legitimação. O que a história da educação nos ensina é que esta herança é sempre objeto de conflito e de negociação no decorrer do tempo. A cada geração, corporações, grupos de interesses e de negociações, militantes e especialistas discutem para fazer prevalecer seu ponto de vista, impor seus objetivos ou seus saberes disciplinares. Outros querem manter seus privilégios ou fazer reconhecer seus direitos [...]. (CHARTIER, 2005, p. 25) São múltiplas as concepções de competência letrada. A escola, em sua matriz homogênea, tende a indicar uma vertente de leitura e escrita, e esta é apresentada como correta e apropriada – a norma padrão16 –, desqualificando e, muitas vezes, ignorando outras práticas de letramento de caráter mais próximo ao cotidiano. Esse processo de legitimação e constituição do currículo tanto incorpora novas formas de ler e escrever quanto incorpora gêneros discursivos antes negados, os quais se tornam parte do espaço escolar e, assim, são incorporados aos processos de ensino, em várias disciplinas, tomando de assalto as tradicionais concepções do que é legítimo e importante ensinar. As práticas de letramento estão nesse emaranhado de legitimação e significação, sendo tecidos o sentido e a hierarquia do que se lê e escreve. Dessa maneira, tais práticas de letramento estão imersas no tempo-espaço historicamente constituído e nas lutas sociais que as constrói enquanto legítimas e validadas. A escola − e a incursão no universo das práticas letradas, em uma concepção de cunho moderno − ainda é vista como a grande panaceia da sociedade, como capaz de solucionar os males do mundo. [...] A educação formal, o único meio de divulgar a alfabetização às massas de modo seguro, tenciona exaltar a população e assegurar a paz, a prosperidade e a coesão social. Uma eficiente substituição à condescendência e ao paternalismo (um conceito-chave), a educação produziria disciplina e auxílio à inclusão dos valores e hábitos exigidos em uma sociedade urbana industrial [...] (GRAFF, 1994, p. 69). A concepção de “letramento” de cunho moderno, urbano e industrial ainda encontrase presente no processo de constituição do currículo em suas múltiplas dimensões, servindo como elemento de estruturação e de concepção das práticas de letramento que constituem o 16 O que é considerado padrão está condicionado pela validez social imputada. Essa validez é condicionada sócio-historicamente, estruturando o conceito de “bem falar” e normatizando o uso da língua, seja escrita ou falada. A normatização foi historicamente elaborada pelas estruturas de poder vigentes e, assim, o que é considerado “certo” está permeado por uma prática letrada socialmente determinada e difundida como de maior valor e legítima (CHARTIER, 2005, 2007; GRAFF, 1994; MOLLICA, 2007; SOARES, 2005; STREET, 2003). ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3305 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino ensinado nas escolas brasileiras. A concepção de letramento, com base no “modelo autônomo”, permeia de forma significativa os processos avaliativos17 implementados pelo governo, fundamentando o estilo de múltiplas práticas de mensuração aplicadas na e pelas escolas. Desse modo, a escola, como um campo discursivo, está ligada ao uso da linguagem, isto é, se compõe em enunciados orais ou escritos que refletem o tempo-espaço sóciohistórico dessa atividade humana. Esse processo de enunciação se constitui enquanto conteúdo temático, estilo, recursos fraseológicos e construção composicional (BAKHTIN, 2003, p. 261), e, dessa forma, estabelece práticas de letramento que constituem o currículo em suas várias dimensões e possibilidades de práticas. Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política, etc.). (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002, p. 126). As práticas de letramento que se estruturam no ensinado são parte de uma corrente de comunicação a qual, portanto, possui sentidos do tempo-espaço que constitui o historicamente situado. As práticas, nessa perspectiva, produzem conhecimentos de fala, leitura e escrita que são significados no espaço escolar e social mais amplo. Vale então ressaltar que todo sentido constituído traz em si um conhecimento que se estrutura no tempoespaço sócio-histórico que o constitui de sentido. Ensino de história como prática de letramento Compreendemos a cultura letrada escolar como um emaranhado de enunciados, oriundos de diversos espaços constitutivos, o professor de história na sala de aula é desafiado a conjugar e articular a história e o seu ensino, buscando construir sentidos permeados por diferentes campos discursivos. Nesse ínterim, o aluno também traz consigo concepções enunciativas formadas sócio-historicamente. O professor, diante disso, muitas vezes vê sua desenvoltura tolhida18, constrangendo e limitando suas práticas de letramento na história 17 “[...] A construção dos itens de prova do SAEB baseia-se em uma matriz de descritores concebidos e formulados como uma associação entre conteúdos curriculares e operações mentais desenvolvidas pelos alunos, que se traduzem em certas competências e habilidades (MEC, INEP, 2001); o pressuposto que orienta a construção das provas é, pois, que elas devem avaliar habilidades que resultem de uma articulação entre conteúdos curriculares na área de leitura e operações intelectuais. Decorre daí que, como afirmam Boanmino, Coscarelli e Franco (2002:100), essa concepção (do SAEB) reflete uma visão muito escolar da leitura, que utiliza como parâmetro o que o aluno consegue fazer com o texto e não exatamente uma concepção voltada para a valorização dos usos sociais da linguagem [...]” (SOARES, 2004a, p. 103). 18 A produção de sentido na história ensinada tem como destino o “outro”. Logo, compreender o ambiente que cerca esse “outro” – em nosso caso, o aluno – é importante para a construção arquitetônica da explicação. Quando o professor não compreende esse ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3306 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino ensinada, e lança mão do seu repertório cultural de elementos que o subsidiam para a difícil tarefa de ensinar história. Posto que as práticas de uso são dependentes da situação e da instituição, diversos grupos profissionais desenvolvem diversos modos socialmente sancionados de usar a escrita, que fazem parte de suas identidades profissionais. Aprender a ler como um historiador lê e a valorizar os documentos e fontes primárias que o historiador valoriza é competência do professor de História: as macrorrelações que o historiador estabelece entre períodos históricos, a análise causal de fenômenos contemporâneos que ele constrói com base em grandes cadeias inferenciais são modos de ler que o professor de história já aprendeu; daí ele poder modelá-los à medida, através de perguntas e comentários, os textos de sua área [...]. (KLEIMAN e MORAES, 1999, p. 99-100) A tarefa de ensinar história, considerando as questões do letramento, é um desafio para os professores – afinal, eles não foram formados para ensinar história e correlacionar este conhecimento com o processo de letramento. Durante a formação no bacharelado, alguns historiadores compreendem e apreendem as formas como a escrita da história se realiza. Vivenciado pelos alunos na graduação de história, esse processo de se tornar historiador perpassa seu período de formação, o que tradicionalmente transcorre em quatro anos. Na licenciatura, as questões de leitura e escrita em diferentes momentos da vida humana poderiam fazer parte da formação, ao se reconhecer que ensinar história demanda ensinar a falar, a ler e a escrever textos historiográficos. Maria de Lourdes Matencio (1994), discutindo a formação dos professores de língua portuguesa, argumenta: Se a formação do professor não chega, muitas vezes, a aprofundar-se em questões polêmicas nos estudos sobre o ensino aprendizagem de uma língua materna, ou nos confrontos entre diferentes abordagens de questões cruciais que daí decorreriam, como esperamos que os alunos de primeiro e segundo graus possuam um conhecimento amplo de sua língua e da linguagem, o que certamente seria o objetivo de grande parte dos educadores brasileiros? (MATENCIO, 1994, p. 82) A reflexão da autora tem como referência a formação dos professores de língua portuguesa, destacando o distanciamento entre os estudos desenvolvidos na academia e a formação dos professores, e acaba por salientar as nossas afirmações nos parágrafos anteriores. A formação dos professores de história, em sua grande maioria, não toca o ponto fundamental que permeia a história ensinada e não estabelece a relação existente entre ambiente situado, sua produção de sentido muitas vezes é tolhida, dificultando e às vezes impedindo o processo de apreensão de sentido por parte do aluno. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3307 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino história/historiografia e as práticas de oralidade, leitura e escrita, quer sejam elas existentes no ofício de historiador quer na ação do mesmo no ensino de história. Diante do desafio de ensinar, os professores acabam por repetir práticas tradicionais ou buscar solitariamente ações que possibilitem o processo de ensinar por tentativa e erro. Não compreendemos a escola como o único lugar de letramento e muito menos de conhecimento e apropriação de leitura e escrita que permeia a história. O que queremos salientar é que a escola é um espaço privilegiado de difusão do conhecimento histórico a partir da historiografia escolar. Muito embora a escola não seja a única agência de letramento em nossa sociedade, é certo que ela tem sido a responsável por colocar crianças, jovens e adultos em contato com a ciência de maneira sistematizada e intencional. A construção de sentido histórico na história ensinada exige do professor um exercício que transita entre história, oralidade, leitura e escrita. Nessa busca por dar sentido à história ensinada, o professor faz um percurso didático que perpassa pela sua compreensão de história e pelos subsídios que ele possui, pela cultura letrada que permeia a historiografia acadêmica e escolar e pela compreensão situada do tempo-espaço em que a sua sala de aula está inserida. Nesse sentido, quando afirmamos que a historiografia é uma prática de letramento, estamos também destacando que o ensino de história é atravessado pelas questões de oralidade, leitura e escrita presentes nesse constructo científico. Logo, ensinar história em qualquer nível escolar é letrar o aluno em história, desafio que se amplia no 6º ano do ensino fundamental, pois os alunos veem pela primeira vez essa prática de letramento: a historiografia escolar. A historiografia escolar se constitui em bases diferentes se comparada à escrita da história no processo constituído pelo historiador. Entretanto, não estamos afirmando que o texto do livro didático não é historiográfico, apenas estamos salientando que as bases que o compõem possuem diferenças consideráveis em relação à historiografia acadêmica. Pensar história ensinada e letramento demanda reflexão e diálogo com os campos da linguagem e do currículo, permeados pelas questões inerentes à história, sua escrita e suas práticas na história ensinada. Ensinar história requer de seus agentes promotores uma relação com o mundo da vida e, logo, a construção de sentido se constitui como validade e valor no espectro situado do ensinado. Rüsen (2001) afirma que: A experiência do passado representa, nesse momento, mais que a matériaprima bruta de histórias produzidas para fazer sentido, mas algo que já ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3308 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino possui, em si, a propriedade de estar dotado de sentido, de modo que a constituição consciente de sentido da narrativa histórica se refere diretamente a ela e lhe dá continuação (decerto com todos os demais ingredientes que as operações conscientes do pensamento histórico engendram). O passado precisaria poder ser articulado, como estado de coisas, com as orientações de sentido, com as quais o agir humano organiza suas intenções e expectativas no fluxo do tempo, precisam também elas estar dadas como um fato da experiência. (p. 73) Fazer sentido na história ensinada requer mais que um conhecimento da matéria a ser ensinada; requer do professor uma imersão no tempo-espaço que constitui a sala de aula e as nuances que o ineditismo em ato exige cotidianamente. Nesse viés, conhecer o mundo da vida de seus alunos é fundamental na construção de suas explicações, pois possibilita que a escolha discursiva venha impregnada de significados de partida e agregados, elementos fundamentais na estruturação das práticas de letramento que se constituem no ensinado. A construção das analogias típicas da narrativa/argumentativa histórica que marcam a estética da historiografia na história ensinada solicita do professor um conhecimento situado denso. O movimento de presente-passado-presente na construção de sentido histórico se complexifica no ensinado, tendo em vista que cada sala e cada aula trazem consigo um grau de ineditismo considerável. [...] O historiador elabora sua argumentação por analogia com o presente e, para relatar o passado, transfere modos de explicação comprovados pela experiência social cotidiana do homem comum. É, aliás, uma das razões do sucesso da história entre o grande público: nenhuma competência específica é exigida do leitor para abordar um livro de história. (PROST, 2008, p. 145) Para fazer sentido, a explicação deve ecoar no leitor e sua escrita deve ser compreendida. Logo, não é qualquer construção analógica que servirá como explicação na construção de sentido histórico, pois o leitor deve comungar de significados partilhados. É importante ressaltar que a argumentação de Prost traz consigo o arcabouço social francês, uma vez que, na França, a história goza de um prestígio que não ocorre no Brasil e no restante do mundo ocidental. Ao afirmar que “nenhuma competência específica é exigida”, Prost faz uma generalização que cremos não ecoar na realidade brasileira, muito menos se a aproximarmos do ensinado. Muitas vezes, o aluno/leitor, diante da historiografia presente em seu livro didático, percebe-a como um texto cifrado e enigmático, ou seja, as analogias presentes nele não fazem sentido. Esse fato, muitas vezes, é uma das razões do “fracasso” da história. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3309 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino O professor no processo de analogia e construção de sentido da história ensinada tem um papel fundamental. Como um transeunte nos dois espaços – historiografia e realidade situada –, ele vai construindo analogias e significações mais próximas do mundo da vida do aluno, situando a explicação e, assim, ajudando na construção e compreensão dos alunos acerca da história. Retornemos à nossa afirmação anterior – fazer sentido na história ensinada requer mais que um conhecimento da história. Na verdade, o professor de história necessita compreender a realidade situada que cerca o ensinado e, assim como um historiador necessita de um conhecimento de seu tempo-espaço para fazer sentido e ser compreendido, ao professor também é necessário operar com essa premissa. [...] esse raciocínio por analogia supõe, evidentemente, a continuidade do tempo e, simultaneamente, sua objetivação. O movimento de vaivém entre presente e passado [...] revela-se, aqui, fundamentalmente. Por outro lado, ele baseia-se no postulado de uma continuidade profunda entre os homens através dos séculos; por último, faz apelo a uma experiência prévia da ação da vida dos homens em sociedade. Aspecto em que se encontra, de novo, o vínculo entre compreensão e a experiência vivida. (PROST, 2008, p. 145) Buscamos em Prost uma aproximação entre a construção estilística da história e o processo que se desenvolve na história ensinada. As práticas de oralidade, leitura e escrita na sala de aula estão imersas na produção de uma narrativa/argumentação sobre o passado que o aluno deve aprender. Nesse processo, os professores, em sua maioria, buscam na experiência prévia dos alunos elementos que possibilitem a produção de sentido no ensinado e a compreensão da narrativa/argumentação proferida. A aula apresenta regras e tradições que estão além do micro espaço que a compõe. Essas tradições constituídas nas escolas estão imersas em um tempo-espaço sócio-histórico, compostas pelo currículo em suas múltiplas dimensões. [...] A relação do nosso dizer com as coisas (em sentido amplo do termo) nunca é direta, mas se dá sempre obliquamente: nossas palavras não tocam as coisas, mas penetram na camada de discursos sociais que recobrem as coisas. Essa relação palavra/coisa, diz este autor, é complicada pela interação dialógica das várias inteligibilidades socioverbais que conceitualizam as coisas. (FARACO, 2009, p. 50) Não há ensinado sem intenção e não há intenção que não esteja forjada no processo discursivo semiótico que permeia e interpenetra nossa inteligibilidade. Dessa forma, “[...] todo dizer não pode deixar de se orientar para o ‘já dito’. Neste sentido, todo enunciado é uma ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3310 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino réplica, ou seja, não se constitui do nada, não se constrói fora daquilo que chamamos hoje de memória discursiva [...]” (FARACO, 2009, p. 59). E ainda: [...] todo dizer é orientado para a resposta. Nesse sentido, todo enunciado espera uma réplica e – mais – não pode esquivar-se à influência profunda da resposta antecipada. Neste sentido, possíveis réplicas de outrem, no contexto da consciência socioaxiológica, têm papel constitutivo, condicionante, do dizer, do enunciado. Assim, é intrínseco ao enunciado o receptor presumido, qualquer que seja ele: o receptor empírico entendido em sua heterogeneidade verboaxiológica, o “auditório social” [...] (FARACO, 2009, p. 59). Podemos assim afirmar que todo ensinado está situado em um horizonte social e busca em sua composição interagir com seu “auditório social”. O professor não constrói seu enunciado em sala de aula – sua explicação – sem um procedimento avaliativo que pressuponha uma resposta de seus alunos, e estes, “auditório social” que compõe a aula, direcionam organização enunciativa do professor e sua potencialidade criadora e criativa. Dessa forma, “[...] todo dizer é internamente dialogizado: é heterogeneamente, é uma articulação de múltiplas vozes sociais (no sentido em que hoje dizemos ser todo discurso heterogeneamente constituído) é o ponto de encontro e confronto destas múltiplas vozes [...]” (FARACO, 2009, p.60). A aula não se constitui isoladamente, pois ela está situada no mundo da vida e nas múltiplas vozes que a permeiam e a interpenetram. A aula se compõe, nessa perspectiva, como um gênero enunciativo carregado de tradições e “memórias discursivas” que constrangem e delimitam sua organização, estética e estrutura. Ao mesmo tempo, possui em si uma oferta de contra-palavra e de uma nova plasticidade possível, trazendo consigo “significados de partida” (PONZIO, 2008, p. 99), que originarão novas práticas enunciativas. A construção de sentido no processo da história ensinada é a ação que mais consome os esforços dos professores e encaminha seus atos. Tendo essa afirmação como base, as práticas de letramento na história ensinada são contingenciados por essa prerrogativa. Desse modo, oralidade, leitura e escrita na disciplina escolar história são o meio pelo qual o professor constrói sua narrativa/argumentativa, buscando estabelecer uma relação entre presentepassado-presente, tecendo suas explicações e construindo o sentido histórico no ensinado. Ensinar história na perspectiva que pensamos é um processo de letramento que o professor realiza transitando por práticas híbridas e construindo gêneros discursivos autênticos do espaço da sala de aula. É importante a ressalva de que os gêneros são difíceis de compreender e analisar, justamente porque habitam esse espaço cujo elemento fundamental ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3311 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino de caracterização é o ineditismo em ato. Já que cada aula traz referências de outras aulas – significados agregados –, efetiva-se de forma única. Breves conclusões provisórias As práticas de letramento escolares são interações sociais integradas pelo texto escrito e constituídas pelas participações dos sujeitos nos processos interpretativos. A marca da escrita esculpe a face dessas práticas, sendo assim a sociedade brasileira19, no recorte do tempo-espaço que investigamos, compreendida como grafocêntrica, pois é estruturada pelos elementos gráficos – fonemas e grafemas – que formam as palavras escritas em seu sentido composto sócio-historicamente. Por evento de letramento designam-se as situações em que a língua escrita é parte integrante da natureza da interação entre os participantes e de seus processos de interação (Hearth, 1982:93), seja uma interação face a face, em que pessoas interagem oralmente com a mediação da leitura ou da escrita (por exemplo: discutir uma notícia do jornal com alguém, construir um texto com a colaboração de alguém), seja uma interação à distância, autor-leitor ou leitor-autor (por exemplo: escrever uma carta, ler um anúncio, um livro). (SOARES, 2004a, p. 105) Nessa perspectiva, a sala de aula é historicamente um evento de letramento, de caráter distinto e socialmente constituído de valor e validade que se estruturam mediante condicionantes sociais situados nas práticas de letramento desenvolvidas no processo de ensino. “É a pedagogização do letramento [...] processo pelo qual a leitura e escrita, no contexto escolar, integram eventos e práticas sociais específicas, associadas à aprendizagem [...]” (SOARES, 2004a, p. 107). A especificidade das práticas de letramento que se efetuam nos ciclos finais do ensino fundamental tem um marcador fundamental: os campos discursivos das disciplinas escolares que compõem o currículo. Neste artigo, do mesmo modo, as práticas pedagogizadas de letramento são compreendidas como circunstanciadas pelos campos discursivos que constituem a disciplina escolar história. 19 Não estamos negando a existência de sociedades ágrafas no Brasil. Apenas destacamos que nosso tempo é o século XXI, ano de 2009, no espaço do Rio de Janeiro/Baixada Fluminense, e, dessa forma, nossa realidade é marcada pelas práticas letradas em seu cotidiano. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3312 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino O letramento na história ensinada é eminentemente hibridizado, criando um novo texto, “[...] uma nova síntese, a partir de práticas de ensino especializadas, que levam em conta questões relacionadas às necessidades dos processos de aprendizagem20” (MONTEIRO, 2007a, p. 86). As práticas de letramento possuem uma singularidade significativa do tempo-espaço que as constitui de sentido e validade − o aqui e o agora que fomentam a capacidade responsiva do enunciado −, porém não podemos esquecer que esses elementos do ato em si estão posicionados historicamente. O reconhecimento do outro é fundamental para que a resposta ocorra, pois o enunciado conclama o outro para uma resposta, mesmo que esta seja o silêncio. Referências bibliográficas BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). 4ª ed. São Paulo: Unesp, 1998. _______. Estética da criação verbal. 4ª ed. São Paulo, Martins Fonte, 2003. ________. VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 9. ed. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002. BARTON, D. Literacy – an Introduction to the Ecology of Written Language. Oxford: Blackwell. 2007. CHARTIER, A. M. Escola, culturas e saberes. In. XAVIER L. N., CARVALHO, M. C. de. MENDONÇA, A. W. e CUNHA, J. L. Escola, culturas e saberes. Rio de Janeiro: FGV, 2005. FARACO, C. A. Linguagem e dialogo: as idéias do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009. FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. GRAFF, H. J. 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São Paulo: Global, 2004. STREET, B. (2003). Abordagens alternativas ao letramento e desenvolvimento, http://www.media-anthropology.net/drackle_comment.pdf, acessado em 02.10.2010. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3314 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino A FALSA DICOTOMIS ESPAÇO ESCOLAR/NÃO ESCOLAR: ALGUNS ELEMENTOS PARA CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE Zacarias Marinho21 [email protected] RESUMO Este artigo tem por objetivo trazer uma contribuição em torno do debate sobre espaços escolares/não-escolares. Fundamentado em Santos (2008) e Callai (1999) trazemos à discussão a importância do espaço na sociedade e em Viñao Frago e Escolano (1998) sua importância na educação. Vários são os autores, Graciolli e Toitio (2009); Congilio (2011); Coutinho (2005); Trilla e Ghanem (2008), nos quais buscamos apoio para apreendermos a proliferação do terceiro setor, enquanto espaços não-escolares, como um fenômeno da globalização. Por fim traçamos um comparativo entre esses espaços apontando suas diferenças e semelhanças. Concluímos considerando-os como híbridos culturais e lugares de disputa de significação. PALAVRAS-CHAVE: Educação; Espaços Escolares; Espaços Não-Escolares. THE FALSE DICHOTOMY BETWEEN SCHOOL/NON-SCHOOL SPACE: some elements to the contribution of the discussion. ABSTRACT: This paper has the objective to bring a contribution on the discussion about school/non-school space. Based in Santos (2008) and Callai (1999) we bring to the discussion the importance of the space in society and in Viñao Frago e Escolano (1998) your importance on education. Some are the authors, Graciolli and Toitio (2009); Congilio (2011); Coutinho (2005); Trilla and Ghanem (2008), in which we take support to apprehend the proliferation of the third sector, like non-school space, a phenomenon of globalization. At the end we draw a comparative between those spaces showing their differences and similarities. We finish considering them as cultural hybrids and places of signification argument. KEY-WORDS: Education; School Space; Non-school Space. Introdução Este artigo surgiu das discussões geradas a partir da pesquisa “As Condições Físicas e Pedagógicas de Escolas de Mossoró: um diagnóstico sobre a organização do trabalho desenvolvido em escolas do projeto Programa de Criança Petrobras”, desenvolvida pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículo e Práticas Educativas, da Faculdade de Educação da 21 Doutorando do Programa de Pos-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - PROPED/UERJ. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3315 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN22. O lócus da pesquisa foram as escolas que tinham alunos(as) inscritos no Programa de Criança Petrobras23. A necessidade dessa discussão se apresentou ao Grupo por dois motivos: 1) devido a pesquisa ter como requisito a presença de sujeitos comuns aos espaços escolar e não-escolar e 2) por termos constatadas algumas confusões24, entre alunos(as) e professores(as), a respeito da atuação do pedagogo(a) em espaços não-escolares, evidentes na indefinição sobre quais são esses espaços e sobre alguns conceitos que estão, geralmente, relacionados a estes – Educação Formal, Não-Formal e Informal. Essa demanda fez com que fossem organizados alguns momentos de debates, entre os membros do Grupo, dedicados à temática dos espaços nãoescolares25. O que entendemos então por espaço escolar e não-escolar? Espaço escolar é compreendido aqui como uma instituição educativa, que em sua constituição formal é reconhecida como pública ou privada (ou filantrópica), cuja dimensão pedagógica está organizada em diferentes níveis e modalidades, a fim de propiciar uma formação geral e/ou profissionalizante, para os quais se requer uma proposta curricular específica e sistematizada. E, por sua natureza, está submetida ao sistema nacional de educação. Ou seja, as instituições que são tradicionalmente conhecidas como escolas. Por espaço não-escolar compreendemos toda instituição ou organização nãoinstitucional que, mesmo tendo por finalidade uma ação educativa, desenvolve suas atividades de forma complementar às escolas: estudos em determinadas áreas; cursos profissionalizantes e/ou de outra natureza etc26. Em sua função educativa apresentam maior autonomia em relação ao Estado por não estarem, necessariamente, submetidas ao sistema nacional de educação e também não precisarem de uma proposta curricular sistematizada, seja esta oficial ou alternativa. Em sua organização, este texto constitui-se de três pontos: a importância do espaço no processo educativo, no qual procuro mostrar que o espaço não pode ser negligenciado nesse processo, devido influenciar o ato educativo, seja na escola, seja em outros espaços; 22 Esta pesquisa foi financiada pela FAPERN (Fundação de Apoio a Pesquisa do Rio Grande do Norte). Realizada em 2010 envolveu professores e alunos do Curso de Pedagogia da Uern. 23 Este programa desenvolve atividades educativas com alunos de escolas públicas localizadas nos bairros mais próximos à base da PETROBRAS na cidade de Mossoró-Rn. 24 Anterior as discussões no grupo de estudos, algumas dessas confusões foram constatadas por Vitorino (2011) em trabalho de pesquisa, lato sensu, que teve como objeto a nova proposta curricular do Curso de Pedagogia do Campus Central da Uern. 25 Trabalharemos com os conceitos de espaço escolar e de espaço não-escolar, por entendermos que esclarecem e especificam melhor o fenômeno da educação em diferentes espaços-tempos, que os conceitos de educação formal, não-formal e informal, apesar das justificativas empreendidas por alguns estudiosos (GOHN, 2010), confundem mais que esclarecem sua complexidade. 26 Não incluímos aqui aquelas instituições que oferecem esses cursos, mas se constituem tipicamente em escolas, mesmo que não sejam vinculadas ao Estado. Entre as quais podemos citar as instituições do sistema “S”, algumas ONGs e confessionais que se mantêm como escolas. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3316 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino depois me detenho em discutir a proliferação dos espaços não-escolares no contexto da globalização e, por fim, procuro traçar um comparativo entre espaços não-escolares e escolares, considerando-os como espaços de hibridez cultural, portanto, com distanciamentos e aproximações em suas configurações educativas. A Importância do Espaço no Processo Educativo Considerando que a sociedade humana é produtora de espaço, esta condição nos remete à preocupação de como e por que determinados espaços são construídos diferentemente de outros. Baseado em Santos (2008), podemos dizer de antemão que essa diferenciação ocorre em virtude das funções sociais, políticas e econômicas, as quais estão na base dos processos de construção dos espaços, bem como o tempo-espaço onde acontece essa construção espacial. Por sua vez, espaços construídos não são estáticos, construção e reconstrução se dão permanentemente numa dialética espacial de conservação e mudança contínuas que acompanham a dinâmica da própria sociedade. Como diz Santos (2008, p. 77), “o espaço responde às alterações na sociedade por meio de sua própria alteração”. Considerando que os espaços são construídos culturalmente, pois nem sempre tiveram a configuração e a função que tem hoje, podemos afirmar que são passíveis de mudanças, em curtos ou longos períodos, a depender das dinâmicas em curso, ou seja, são contingentes. E ainda, o uso do espaço se dará de forma pública ou privada, conforme a condição de cada um deles, público ou privado, a despeito de podermos identificar limitações no primeiro e permissões no segundo. De acordo com CALLAI (1999, p. 23), 1.1 O espaço é o palco onde acontecem os fatos, mas é também ao mesmo tempo resultado da vida dos homens, das lutas sociais, dos interesses econômicos e políticos. E assim ele se torna um dado a mais na definição de como as coisas podem acontecer, interferindo nas dinâmicas sociais, colocando limites, ou favorecendo situações. Na verdade o espaço é ao mesmo tempo sustentáculo material do que se sucede nos lugares e um dos elementos definidores ou facilitadores do que pode acontecer ali. Nesse sentido, a importância do espaço no processo educativo se constitui primeiro pelo fato do ato educativo, como qualquer outra ação humana, não poder prescindir do espaço. Contudo, o espaço não é apenas palco onde se desenvolve o ato educativo. Ele exerce ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3317 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino influências nesse processo e é influenciado por este. Santos (op. cit.), por exemplo, considera que o espaço contém e é contido por diferentes instâncias da sociedade. Podemos nos referir à relação espaço-educação considerando a indissociabilidade de ambos, uma vez que estão imbricados de tal forma que sua separação só é possível de modo arbitrário27. A própria arquitetura dos ambientes espaços escolares se reveste de grande importância no processo educativo28. Pois esta pode se constituir como educadora, acolhedora, inclusiva ou repressiva. E isto vale tanto para os espaços escolares quanto para os não-escolares, os quais, aos poucos, estamos conhecendo de forma mais sistemática. Se pensarmos na estrutura do espaço das antigas aldeias indígenas, este revelava uma sociedade pouco complexa, cujos membros tinham papeis bem definidos, contrastando com o espaço social que comportava ao mesmo tempo diferentes funções. A aldeia era moradia e escola, templo religioso e palco de festas. Essa configuração multifuncional do espaço em nada devia, em termos educativos, as exigências do seu momento histórico, ao tempo que atendia as exigências de aprendizagem desse momento e as necessidades do grupo, o qual tinha o papel de educar as novas gerações pelo exemplo da tradição e pelas oportunidades dadas aos poucos, de acordo com a idade de cada membro, até serem reconhecidos como aptos àquilo que lhes cabiam. À medida que as relações sociais vão tornando a sociedade humana cada vez mais complexa, a organização espacial acompanha essa complexidade. Até um determinado momento o espaço educativo permaneceu em casa, mas principalmente na casa do outro, cujas crianças eram entregues para aprenderem uma profissão. Havia nesse momento a compreensão de que a casa alheia seria mais disciplinadora que a da família e a função educativa exercida com maior precisão. Contudo, novas exigências sociais exigiram novos espaços, uma vez que requeriam maior especialização. Em algumas sociedades, por exemplo, o espaço da moradia ficou praticamente isolado em sua função doméstica, enquanto o espaço religioso e o educativo se reencontraram, haja vista a preocupação com os ensinamentos religiosos ter um peso significativo naquele contexto. Novamente vamos perceber que o espaço educativo se adéqua e ao mesmo tempo influencia, revela e contribui com o momento histórico da sociedade, mantendo a simbiose tempo-espaço. Ao contrário do que temos hoje, o processo educativo 27 Nessa perspectiva, seria melhor falarmos em espaços educativos escolares e não-escolares. Com isso descontruímos o caráter essencialista presente em outros conceitos. Desenvolveremos essa questão em outra oportunidade, uma vez que agora queremos apenas demarcar características diversas e comuns entre espaço escolar e não-escolar. 28 A respeito da importância da arquitetura dos espaços no processo educativo ver Viñao Frago e Escolano (1998) e Bencosta (2005). Vale salientar que estas obras tratam especificamente do espaço escolar. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3318 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino não tinha um caráter laico. Assim, as escolas eram territórios da igreja católica e, dessa forma, o espaço escolar revelava os interesses desta, sua doutrina e o seu papel na sociedade. Em nossos dias, ainda percebemos a influência da religião em alguns espaços escolares, haja vista existirem escolas pertencentes a diferentes denominações religiosas. Mesmo em escolas públicas é possível se ver, ainda, a presença de imagens sacras e o uso de orações na rotina de algumas delas, como permanências de um período de maior influência da igreja romana nesses espaços29. Na sociedade moderna, com a perda de hegemonia da igreja, o espaço escolar vai aos poucos se desvencilhando da ingerência religiosa. A escola laica passa a ser o lócus privilegiado do processo educativo e o seu espaço vai requerer características próprias para exercer o papel para o qual foi pensado, em suas normas, funções e configurações. Por sua vez, o grau de complexidade dessa nova sociedade requer também que o espaço escolar seja organizado de modo mais complexo e assim atender necessidades cognitivas e também outras apresentadas pela sociedade no atual contexto: questões de inclusão, étnica, gênero, sociais e culturais demandadas dos sujeitos escolares ali presentes ou potencialmente presentes. Apesar de considerar que a dimensão espacial da educação não era estudada nem sistemática, nem profundamente, Viñao Frago (1998, p. 11) afirmavam: ...o uso e a distribuição do espaço escolar, sua transformação em lugar, começa a estar na mira tanto daqueles que se preocupam com as questões organizativas, curriculares e didáticas, quanto daqueles que, a partir das ciências sociais, analisam os tipos de organização e distribuição espacial que as instituições educacionais oferecem e as outras, fechadas ou demarcadas, com as quais elas guardam certas semelhanças. Percebemos, portanto, que a dimensão espacial tem uma grande importância, a ser levada em consideração, no processo educativo, sem descuidarmos das intencionalidades existentes nesta dimensão, pois sempre há relações de poder implicadas na organização do espaço. Podemos dizer também que essas relações de poder acompanham os espaços educativos de forma contínua, havendo mudanças contextuais, conforme as questões que são demandadas, como é o caso do momento atual com a configuração das novas relações internacionais ou globalização, como se tornou mais conhecido o fenômeno. Isto vale tanto para os espaços escolares quanto para os não-escolares, daí a importância de conhecermos melhor estes últimos, como já estamos fazendo, a fim de se ter 29 Da mesma forma, em outros espaços públicos, não-escolares, essa presença também é percebida, por exemplo, nos hospitais públicos e presídios. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3319 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino uma melhor inserção em cada um deles, inserção esta que também não será neutra, mas carregada de nossas subjetividades, preconceitos, visões de mundo e interesses próprios e do grupo ao qual pertencemos. Ou seja, estes espaços, a exemplo dos espaços escolares, são espaços de disputas de significação. A Proliferação de Espaços Não-Escolares em Tempos de Globalização Pretendemos nesta parte do artigo problematizar a proliferação dos espaços nãoescolares no contexto de tentativa de homogeneização econômica e cultural, fenômeno o qual conhecemos como globalização. Ao mesmo tempo em que esse processo busca homogeneizar o espaço, revela sua ambivalência pelo fato de fortalecer o local que reage a essa homogeneização. Tal fortalecimento não inviabiliza a incorporação daquilo que vem de fora, no entanto, a resistência local evidenciada pelas particularidades de cada lugar, faz com que ocorra uma ressignificação da globalização e não uma homogeneização supostamente pretendida. Se considerarmos a globalização como um fenômeno antigo, podemos destacar, para fins explicativos, três grandes momentos: o período das grandes navegações até a independência das colônias europeias; da independência dessas colônias até a segunda guerra mundial e desta até os dias atuais. Por outro lado, podemos considerar também a globalização como um fenômeno muito recente, devido o grau de abrangência que tomou as relações de interdependência entre as nações30. Saímos, assim, de um período em que tínhamos uma globalização primitiva, passando a outras configurações nas relações entre os povos, até se evidenciar, de forma mais explicita, um novo momento histórico das relações entre as diversas partes do globo, da ciência, da econômica e da política. Esta nova fase começou a se gestar, particularmente, no período pós segunda guerra mundial e se caracterizou pela expansão de grandes empresas europeias e americanas por todo o globo terrestre, as chamadas multinacionais, as quais foram beneficiadas pela política econômica que ficou conhecida, no Brasil, como “substituição de importações”. Essas empresas, uma vez instaladas passavam a influenciar política e economicamente as relações internas dos países receptores. Contudo, se antes as riquezas exploradas eram remetidas necessariamente aos países sedes, hoje circulam globalmente, em diferentes formas de 30 O aporte temporal que temos aqui não tem um caráter de precisão, mas tão somente a finalidade de termos uma ideia mais geral de alguns contextos do processo de globalização. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3320 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino capital, uma vez que atualmente convém nos referirmos mais a grupos econômicos que especificamente a empresas. Essa circulação é potencializada por uma das coisas que mais caracteriza o atual contexto: a sofisticação das comunicações. Utilizando-se da informática e da cibernética, as diversas partes do nosso planeta estão em contato permanente, com transmissão de som e imagem em tempo real, conexão de mercados e ajustes dos sistemas, à medida que assim requer a economia. Além disso, as tecnologias mais avançadas estão presentes em todos os âmbitos das relações sociais, desde a produção extrativa aos serviços em geral; das atividades coletivas as mais particulares; da pornografia à cultura mais elitista. Essa característica de generalização não significa que a sociedade esteja preparada para absorver esta realidade em todos os lugares, nem que as novas tecnologias estejam distribuídas igualitariamente, o que nos remete a apreensão dos conflitos próprios desse momento histórico, incluindo-se aqui aqueles relativos à educação. Muitos diriam então que a escola não está preparada para atender a tais exigências. Coincidência ou não, os organismos internacionais também tem essa compreensão e, nesse sentido, procuram influenciar a educação dos países desenvolvidos e principalmente dos países em desenvolvimento. O Banco Mundial, a Unesco e a Cepal, por exemplo, estendem suas influências sobre as diretrizes educacionais em diversas partes do planeta31. Não obstante, diríamos que não se trata de uma questão simplesmente de preparação ou não. Pois ao se atribuir à escola o rótulo de não preparada, o que está por trás disto pode ser um processo de deslegitimação do espaço escolar enquanto espaço mais consolidado para a construção e disseminação do saber científico e autonomia do conhecimento, haja vista nesse mesmo contexto se fortalecer o chamado terceiro setor32 como estratégia do capital. Frente à reorganização do capital e da contra-reforma do Estado, o “terceiro setor” se torna funcional ao projeto neoliberal de retirada paulatina do Estado no que tange às ações e políticas sociais, levando à refilantropização da questão social. O discurso dominante do “terceiro setor”, ao ampliar sua influência, contribui para a desorganização e desmobilização dos trabalhadores e para a despolitização do debate sobre as causas e reprodução das desigualdades, sendo engendrada uma cultura do possibilismo. (GRACIOLLI; TOITIO, 2009, p. 168) 31 32 A respeito dessas influências ver Castro e Lauande (2009). Sobre o papel do terceiro setor na reforma do Estado ver Montaño (2002). ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3321 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino A educação, por sua vez, é privilegiada enquanto setor de atuação das ONGs, seja no sentido destas atuarem como instituições complementares aos direitos fundamentais das pessoas; prevenção para evitar que crianças e jovens entrem no mundo das drogas ou na ressocialização de dependentes destas; cuidados com a saúde e a preparação para o mercado de trabalho, entre outras ações. Enfim, de forma direta ou indireta, atuam na educação de crianças, jovens e adultos, constituindo-se, por essas ações, em espaços educativos nãoescolares. Com isso o Estado se desreponsabiliza cada vez mais com a educação pública de qualidade, abre programas de políticas compensatórias, financia o terceiro setor e instituições de capital privado. No caso das ONGs, Congilio (2011, p. 41) mostra-nos como estas instituições se beneficiaram com a política de descentralização das responsabilidades, por parte da União, para com a educação: Apresentada como descentralizadora, a municipalização transfere aos municípios, deixando ao desígnio dos governantes locais – submetidos à Lei de Responsabilidade Fiscal - gerir os recursos, estes centralizados e redistribuídos pelo poder Central. Isto, em tempos de refluxo, exaustivamente analisado, dos sindicatos e dos movimentos populares, tem apenas servido a práticas clientelistas e proliferação de ONGs, num claro movimento de repasse de recursos públicos para a iniciativa privada [... ]. Nesse sentido podemos afirmar que a disseminação de tais instituições educativas cumpre um papel de legitimação dos espaços não-escolares em detrimento do espaço escolar, uma vez que o Estado ao invés de ampliar seus investimentos para fortalecer a educação pública, possibilita que recursos públicos sejam redirecionados para outros espaços. Outra questão relativa à disseminação das ONGs, diz respeito ao vínculo que se estabelece entre a instituição e os seus mantenedores, como nos chama a atenção Coutinho (2005, p. 64): As ONGs que se imaginam no campo progressista acreditam na possibilidade de conciliar pragmatismo com conscientização e, por isso, se diferenciariam daquelas que colaboram com as políticas neoliberais. Mas a linha que as separa é muito tênue. Muita ONG “progressista” sucumbe ao apelo do assistencialismo/filantropia para se manter na ativa, mesmo porque é essa a lógica de seus financiadores. Esse apelo à filantropia ganha eco na grande mídia e faz com que cada vez mais se fortaleçam a defesa de propostas de voluntariado, como amigos da escola, e de movimentos sociais, como todos pela educação. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3322 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Trilla e Ghanem (2008, p. 20) ao elencarem alguns fatores que justificam a proliferação dos espaços não-escolares incluem a: Crescente sensibilidade social para a necessidade de implementar ações educativas em setores da população em conflito, socioeconomicamente marginalizados, deficientes etc., seja como aspiração de avanço na justiça social e no Estado de bem-estar, seja buscando a pura funcionalidade do controle social. (grifos nossos) Nesse sentido podemos indagar se a escola realmente não dá conta das exigências desse novo contexto, ou se não dá conta de uma exigência específica deste? Qual seja, o controle eficiente que se quer da escola. Nessa perspectiva, se já não se confia no controle da escola, nada mais lógico que se fortalecer outras instituições a fim de que estas atendam a uma das missões para a qual a escola de massas foi criada e já não responde suficientemente bem. Noutra perspectiva, poderíamos indagar se a solução para os problemas atribuídos à escola se daria nos espaços não-escolares, ou seja, se a questão não for o controle social, os problemas de aprendizagem aos quais a escola não os responde com a eficiência que se supõe querer, seriam resolvidos nesses novos espaços, particularmente nas ONGs? Esta e outras indagações, para as quais não temos respostas definitivas, mas tão somente representações diante do quadro que se evidencia no campo empírico, deverão servir para pensarmos sobre a realidade educacional que temos em disputa, tomando a escola e os espaços não-escolares como espaços de enunciação para além dos seus próprios espaços, considerando influências e recontextualizações que ocorrem nesses espaços, o que os constituem enquanto espaços híbridos. Espaços Escolares e Não-Escolares: encontros e afastamentos Neste terceiro momento vamos articular, de modo comparativo, os aspectos que aproximam e distanciam os espaços escolares e não-escolares. Entendemos que a função de educar é, ao mesmo tempo, condição sine qua non de semelhanças e diferenças que podemos encontrar entre os dois espaços. Contudo, outros aspectos que se encontram incluídos no primeiro, devem ser levados em consideração para uma comparação com mais elementos. Compreender os espaços escolares e não-escolares implica em compreender como estes espaços estão instituídos. Ou seja, é importante conhecermos normas e regras que ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3323 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino permeiam esses espaços. Tão importante quanto isto é conhecermos também os sujeitos que constroem e reconstroem permanentemente tais espaços. Desses primeiros elementos compreensivos inferimos que tanto os espaços escolares, quanto os não-escolares, trazem em si a condição de instituição, compostos por leis e agentes que os conduzem33. Nesse sentido, afirmamos que a exemplo dos espaços escolares, enquanto espaços educativos, os espaços não-escolares constroem e se pautam por um currículo. Isto significa que tanto os espaços escolares quanto os não-escolares, por estarem sujeitos as múltiplas influências advindas dos seus agentes, do lugar onde estão situados e do contexto temporal em que se encontram, são espaços de culturas hibridas, terão limites e também possibilidades de leituras diversas, em suas respectivas ações. Assim, tomamos ambos como texto e como discurso, no sentido empregado por Ball ao discutir as políticas públicas (LOPES e MACEDO, 2011), o que significa que, como texto, estão abertos a diferentes interpretações e como discurso não se permitem a qualquer interpretação. Certos discursos nos fazem pensar e agir de forma diferente, limitando nossas respostas a mudanças e nossas possibilidades de recriar os textos. (p. 248). Entre os agentes, podemos considerar o Estado como o principal destes, tanto no caso dos espaços escolares, quanto dos não-escolares. Este rege as escolas pública e privada, normatizando seu funcionamento dentro de um sistema organizado hierarquicamente, que vai do próprio Estado, passando pelo Ministério da Educação até o espaço escolar local, o qual se constitui em um microssistema. Mas, também, normatiza os espaços não-escolares, permitindo seu funcionamento nos locais requeridos; dando o aval para suas finalidades e reconhecendo a função social destes. Ou seja, de uma forma ou de outra, espaços escolares e não-escolares se encontram respaldados pelo Estado. Isto não significa que haja uma determinação verticalizada entre macro e micro-espaços. Outra semelhança entre esses espaços educativos, diz respeito à organização hierárquica das funções. Em muitos casos os espaços não-escolares são organizados de forma semelhante aos escolares. Geralmente são compostos de direção, coordenação e professores/educadores, entre outras. Com papeis diferenciados na organização institucional, estabelecem-se também relações de poder assimétricas entre esses agentes, a exemplo do que ocorre nas instituições escolares. Além disso, o público alvo, seja alunos/estudantes em diferentes situações de aprendizagem, está, num e noutro caso, no final dessa cadeia. 33 Os termos normas, regras e leis utilizados aqui, não têm necessariamente um sentido jurídico. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3324 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Para não nos estendermos mais nas semelhanças, consideremos apenas mais uma destas: o espaço físico propriamente dito. É comum uma organização espacial em que os espaços são distribuídos de acordo com as funções que lhes são atribuídas. Por exemplo, com algumas exceções, tanto nos espaços escolares quanto nos não-escolares, percebemos a existência de ambientes próprios para aulas, secretaria, coordenação, direção etc. Isto mostra a importância dessa dimensão para as instituições, independente do caráter que lhe é imprimido: escolar ou não-escolar. Quanto às diferenças, a exemplo das semelhanças, podemos dizer que também são muitas. Deter-nos-emos, portanto, apenas em algumas delas uma vez que nosso propósito não tem caráter exaustivo. A primeira e talvez a mais importante seja o caráter complementar ou de especialização dos espaços não-escolares em relação aos escolares. No primeiro caso, aqueles buscam dá conta daquilo que foi considerado insuficiente por estes, tentando corrigir as lacunas deixadas pela escola em algumas áreas, como por exemplo, na matemática ou na língua portuguesa. No segundo caso, dedicam-se a uma formação especializada ou profissional, como são os casos das instituições que trabalham com teatro, música ou outras especificidades no campo das artes. Outra diferença importante pode ser encontrada na composição dos sujeitos aprendentes, pois enquanto as instituições escolares estabelece formas de ingresso e categorias mais definidas para esses sujeitos, por idade, por nível de seriação por exemplo, a forma de ingresso e agrupamento feitos nos espaços não-escolares são menos rigorosos em muitos casos34. Por fim, como também apontamos semelhanças no que diz respeito ao espaço físico, também percebemos diferenças neste entre as instituições escolares e não-escolares. De um modo geral, os espaços escolares têm uma organização físico-espacial planejada para a função educativa e de formação geral. Nisto são mobilizados os conhecimentos de engenharia e arquitetura e os profissionais dessas áreas pensam e executam um projeto o qual deve levar em consideração aspectos naturais como circulação do ar e luminosidade para um maior conforto dos usuários desse espaço. Já os espaços não-escolares, em muitos casos, são espaços adaptados, os quais tinham originalmente outras funções que não aquela para a qual está sendo apropriada no 34 Isto não significa uma regra geral desses espaços. O que ressaltamos é o fato de haver uma variação maior nestes, diferenciando-os das escolas onde tais regras são mais homogêneas. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3325 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino momento, ou seja, a função educativa, o que pode trazer desconforto aos sujeitos ali presentes, pelo improviso da finalidade espacial. Elencamos, assim, algumas semelhanças e diferenças, contudo, sem a intenção de esgota-las, pois se perscrutarmos etnograficamente encontraremos outras semelhanças e diferenças, uma vez que mesmo em espaços de natureza similar iremos encontrar aspectos que aproximam e diferenciam as instituições, como afirma Tura (2000, p. 11): [...] cada escola é uma unidade de vida e trabalho, que está inserida em um conjunto complexo de situações concretas, repletas de estratégias pessoais de sobrevivência, contextos históricos e especificidades regionais e locais [...], o que também é válido para os espaços não-escolares, uma vez que estes em suas heterogeneidades comportam aspectos comuns entre si, mas principalmente especificidades regionais e locais constituindo-se em unidades de vida e trabalho. Portanto, portadores de relações de poder e de contingências contextuais, a exemplo do que ocorre com os espaços escolares. Considerações Finais Procuramos aqui, até o momento, traçar uma análise comparativa que alimentasse o debate espaço escolar/não-escolar. Nessa perspectiva, abordamos a importância do espaço para o fenômeno educativo e, com isso, percebemos que essa dimensão influenciou e foi influenciada pelas peculiaridades de cada momento histórico em suas contingencias contextuais política e culturalmente. Foi importante também mostrarmos que, apesar de não terem surgidos no atual momento, os espaços não-escolares se expandiram quantitativa e qualitativamente no contexto atual. Tal expansão ganhou maior expressão com o chamado terceiro setor através das Ongs. Nesse sentido, passaram a atuar no fenômeno educativo desenvolvendo cursos específicos e atividades complementares às instituições escolares. Contudo, tais ações não passaram despercebidas a critica politica, uma vez que as instituições não-governamentais também se constituíram como espaço de captação de recursos públicos, em detrimento das aplicações desses recursos em instituições governamentais, como as escolas públicas. Apesar de não se confundirem, pois, os espaços escolares e não-escolares, têm suas especificidades, estes guardam aspectos comuns em sua diversidade. Atuam sob a legitimidade do Estado; organizam seus espaços internos de acordo com a distribuição de suas funções e aportam relações de poder e hierarquias semelhantes. Por outro lado, enquanto os ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3326 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino espaços escolares, em sua tradição, mantem questões de acesso e permanência de forma mais rigorosas, os espaços não-escolares se apresentam mais maleáveis nesses aspectos. No que diz respeito as suas finalidades, nas escolas ocorre uma formação geral. Já nos espaços nãoescolares teremos uma formação mais especifica ou como complementar à escola. Por fim, podemos concluir que cada um desses espaços é organizado de forma que se aproximam e se distanciam. Compõem contextos contingentes e construções curriculares próprias que precisam ser compreendidas como enunciação em suas particularidades e decorrentes da hibridez cultural presentes nos espaços escolares e não-escolares. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENCOSTA, Marcus Levy Albino (org.). História da Educação, Arquitetura e Espaço Escolar. São Paulo: Cortez, 2005. CALLAI, Helena Copetti. O Espaço e a Pesquisa em Educação. In: ________. ZARTH, Paulo Afonso (orgs.). Os Conceitos de Espaço e Tempo na Pesquisa em Educação. Ijuí: Editora Unijuí, 1999. (col. Ciências Sociais). CASTRO, Alda Maria D. A. LAUANDE, Maria de Fátima R. F. 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O referido estudo trata-se de uma análise bibliográfica respaldada em livros que tratam a cultura popular, a Educação de Jovens e Adultos e a Educação Popular, buscando respaldo teórico para a exploração do tema abordado. Buscaremos ainda, contextualizar a literatura de cordel no espaço da sala de aula, possibilitando estabelecer as novas tendências metodológicas a partir das orientações de estudiosos de como devem acontecer esses novos procedimentos metodológicos. Objetivamos, enfim, apresentar uma forma de abordar os conteúdos da EJA partindo da realidade dos educando, idealizando finalmente, a possibilidade de um currículo vivo, dinâmico e facilitador de uma aprendizagem significativa para os alunos da EJA. Palavras-chave: Cordel. Currículo. Educação de Jovens e Adultos. Introdução Observamos as diversas discussões sobre currículo nos variados espaços sociais e com isso, nos debruçaremos sobre uma específica: o currículo da EJA. O objetivo desse texto é contribuir, através de uma reflexão baseada em estudos do campo do currículo, sobre a relevância da literatura de cordel na Educação de Jovens e Adultos. Pretendemos com esse estudo abordar a importância do currículo vivo, significativo, e para tanto, nos remeteremos a um importante instrumento de fomentação da identidade regional: o cordel. Não pretendemos em momento algum, apresentar o cordel como uma solução mágica para a aprendizagem do aluno da EJA. Pretendemos abordar a significância do cordel para os alunos da EJA, as especificidades contidas no material, que estão instrísicamente relacionadas aos fatos cotidianos da vida desse indivíduo, e que são de primordial importância para a construção de uma aprendizagem significativa. O referido estudo trata-se de uma ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3329 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino análise bibliográfica respaldada em livros que tratam a cultura popular, a Educação de Jovens e Adultos e a Educação Popular, buscando embasamento teórico para a exploração do tema abordado. Buscaremos ainda, contextualizar a literatura de cordel no espaço da sala de aula, possibilitando estabelecer ás novas tendências metodológicas a partir das orientações de estudiosos de como devem acontecer esses novos procedimentos Na análise dos cordéis utilizados, a cultura regional aparece de forma clara e convincente, os diversos aspectos de vida social e econômica do povo nordestino são apresentados de forma fidedigna, retratando a realidade das lutas, vitórias, sucessos e insucessos de um povo que, apesar das adversidades regionais e climáticas encontradas, vivem e sobrevivem de forma natural. Objetivamos, enfim, apresentar uma forma de abordar os conteúdos da EJA partindo da realidade dos educando, idealizando finalmente, a possibilidade de um currículo vivo, dinâmico e facilitador de uma aprendizagem significativa para os alunos da EJA. Inicialmente, abordaremos um pouco da história da EJA, por percebê-la imprescindível para nos situarmos no debate. Em seguida, discutiremos á partir de situações reais, algumas das especificidades da literatura de cordel e as suas contribuições para o cenário educacional como instrumento curricular. Finalmente, apresentaremos algumas das principais concepções sobre currículo para chegarmos á proposição de uma discussão sobre as possibilidades de novas proposituras curriculares que possam ser melhores adequadas aos alunos da EJA. Retomando a história da EJA A Educação de Jovens e Adultos no Brasil tem sido um tema polêmico e controvertido desde os seus primórdios. Inicialmente focada numa perspectiva excludente, voltada prioritariamente para a alfabetização daqueles indivíduos a quem o acesso á escolarização regular foi negado, a EJA trilhava um caminho sem horizontes, com uma visão compensatória, na qual o objetivo de alfabetizar não trazia nenhuma reflexão crítica, sem um reconhecimento da especificidade do alfabetizando. Tratava-se de um mero processo de codificação e decodificação, um simples assinar o nome para votar.Os primeiros ensaios de Educação de jovens e Adultos em nosso país foram pautados na mera utilização das classes populares como instrumento ideológico, fator esse, que até os dias atuais, ainda macula essa modalidade de ensino, apesar dos avanços nas políticas públicas para a EJA. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3330 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino O grande marco da Educação de Jovens e Adultos surgiu quando, o educador Paulo Freire no estado do Pernambuco e o também educador Moacir Góes no Rio Grande do Norte, iniciaram seus trabalhos de educação fundamentados em métodos e objetivos que buscavam adequar o trabalho de alfabetização às especificidades do educando, emergindo então a consciência de que alfabetizar adultos deferia em muito de alfabetizar crianças, se fazia necessário propostas educacionais adequadas as realidades dos alunos. Uma nova visão surgia na EJA por aqueles educadores: uma educação problematizadora e crítica, onde a alfabetização e a escolarização eram definidas sob um olhar político, dialógico e desafiador. Emerge um novo momento da EJA no país, novos desafios são propostos e alcançados, graças ao empenho e as ideias do mestre Paulo Freire. Enquanto ato de reconhecimento, a alfabetização deve ter como objeto também desvelar as relações dos seres humanos com seu mundo. Dizer a palavra é o direito de expressar o mundo, de criar e criar, de decidir, de optar. (PAULO FREIRE, 1981, P.09) Infelizmente esse glorioso momento da EJA durou pouco, apesar da grandeza dos seus frutos, a educação de Paulo Freire foi podada com o golpe militar de 1964. Os governantes não almejavam esse tipo de educação, principalmente para as classes populares e trataram logo de elimina-la.Durante o período militar, sucessivos programas de alfabetização de adultos foram propostos, no entanto, todos com caráter emergencial e assistencialista, sem o menor cunho político, sem adequações curriculares ou metodológicas à faixa etária e ao perfil socioeconômico e cultural dos educando, desconsiderando as múltiplas especificidades regionais, levando mais uma vez aos alunos propostas vazias, sem teor problematizadora ou crítica impedindo o indivíduo de refletir ou questionar. Em 1990, a UNESCO institui o Ano Internacional da Alfabetização e o Brasil, como resposta a essa iniciativa, omite-se do cenário de financiamento para a Educação de Jovens e Adultos, acabando com os programas existentes de alfabetização. Com a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a Lei 9.394-96, a EJA é considerada uma modalidade da Educação Básica nas etapas do Ensino Fundamental e Médio assumindo especificidade própria. Surge então uma luz no fim do túnel, a EJA sai do cenário de exclusão e passa a fazer parte efetivamente do cenário educacional brasileiro. Na segunda metade da década de 90, evidencia-se uma articulação dos diversos segmentos da sociedade em busca de debater e propor políticas públicas para a Educação de ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3331 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Jovens e Adultos em nível nacional. Desenha-se então um novo cenário para a EJA, onde movimentos sociais, universidades, organizações empresariais, provocados pelas discussões da V Conferência Internacional de Adultos (CONFITEA), articulam-se através de fóruns da EJA em Encontros Nacionais de Educação de Jovens e Adultos (ENEJAs), levantam questionamentos e proposituras acerca de alargar a visão sobre EJA. Em 2000, com o processo de discussão e experiências em EJA construídos na década anterior, foram promulgadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos, elaborada pelo Conselho de Educação. O olhar preconceituoso do analfabeto é superado e o aluno da EJA é visto em sua pluralidade e diversidade regional, portador de uma vasta e importante cultura oral, que como tal deve ser valorizada e perpetuada. Atualmente, a EJA assume uma nova roupagem, supera-se a visão da alfabetização como ponto final do processo. Alfabetização agora é ponto de partida, o adulto que hoje busca a EJA, anseia por uma inserção no mercado de trabalho, inserção essa que deve ser feita de forma igualitária e justa, reconquistando então a sua autonomia. A educação é vista como um instrumento de mudança, e como tal, se faz jus que seja permeada pela resignificação, pelo ato de ler nas entrelinhas, de buscar sempre algo mais. As Políticas Públicas que inserem o aluno da EJA no mundo da profissionalização já são uma realidade, os currículos estão atentos para o sentido da EJA sob a ótica do trabalho e da realização pessoal e profissional, subsidiando uma educação que oferece mudanças efetivas na vida do aluno da Educação de Jovens e Adultos. A literatura de cordel – breve ensaio O cordel, esse gênero tão brasileiro e popular de poesia, não é uma invenção do povo brasileiro. Essa literatura, que tem o nome de cordel porque os folhetos ficavam pendurados em cordões nos locais de venda, foi trazida por portugueses e espanhóis. Sua origem remonta à Idade Média quando nas praças, os trovadores divulgavam velhas histórias, especialmente, os romances de cavalaria que contavam as epopeias do rei Carlos Magno e dos Doze Pares de França ou de Amadis de Gaula. Narrativas de amor, guerra, heroísmo, viagens e conquistas marítimas, além dos fatos mais recentes do dia-a-dia, eram os temas preferidos do público. Por volta dos séculos XVI e XVII, trazidas para o Brasil, as histórias eram decoradas, transmitidas de forma oral e enriquecidas pela memória do povo. Aqui, o cordel chegou junto com os colonos e encontrou um solo fértil. Tanto que até hoje é uma tradição forte e viva, ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3332 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino principalmente no nordeste do país e continua sendo uma das formas de comunicação mais autênticas nas pequenas cidades daquela região. Quando não havia jornais, rádio ou televisão, a poesia popular ocupou esse espaço por meio de cantorias e, mais tarde, também através da forma escrita, os folhetos eram impressos, ilustrados em tipografias rústicas e vendidos nas feiras pendurados em cordões. Ficavam prontos em poucas horas. Assim que um fato relevante acontece - como a vitória do Brasil em uma Copa do Mundo, a morte de alguém famoso, secas, uma grande enchente ou mesmo um caso de adultério-, os cordelistas produzem um relato extraoficial, popular e poético dos fatos. Temas como a história do Brasil, de lutas, de assombrações, de fé são, também, comuns na literatura de cordel. Outro assunto muito divulgado nessa literatura são as dificuldades enfrentadas pelo povo nordestino, a questão da seca que assola a região e que ocasiona a imigração daquele povo para os grandes centros urbanos, causando dor e lamento para o sertanejo, que sem alternativas de sobrevivência é obrigado a abandonar suas origens e buscar outros meios de vida em terras distantes. Após a incorporação e a difusão da Literatura de cordel nos meios de comunicação de massa – rádio e TV-,a partir da década de 1970, esse gênero artístico despertou o interesse de pesquisadores e educadores para a sua utilização em sala de aula como recurso didáticometodológico.No momento atual, diversas contribuições são ofertadas para a concretização desse tema, pensadores, professores, artistas e intelectuais propõem uma verdadeira revolução na educação de maneira que se possa contemplar as especificidades locais e resgatar a cultura regional, a exemplo do cordelista MANOEL MONTEIRO (2007), naturalizado em Campina Grande, defende a introdução do cordel nas escolas como instrumento educacional de suma importância para a valorização da cultura da região Esse gênero textual contempla diversos aspectos de importante relevância para o processo de ensino-aprendizagem, existe um vasto conteúdo já publicado em cordel que pode ser utilizado como recurso didático, temas de aulas e dinâmicas, viagens e descobertas, atualidades, lendas, ficções e fenômenos naturais que tão bem representam a história e as peculariedades da cultura do povo nordestino. Porque não associar uma leitura fácil e prazerosa que é o cordel com as disciplinas do currículo. Além da socialização do conhecimento, essa junção poderá perpetuar por gerações um estilo-artístico cultural que é próprio de um povo, estar arraigado ao modo de ser e viver de uma comunidade, de uma sociedade, e como tal, possui elementos fundamentais para a construção de um saber ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3333 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino significativo, que faz parte do cotidiano dos envolvidos no processo de ensino-aprendizado, possibilitando um significado maior aos conhecimentos. O currículo da EJA – perspectivas e desafios Ao analisarmos a etimologia da palavra currículo observamos que a mesma deriva do latim scurere, refere-se à corrida, curso a ser seguido. Logo nos remetemos a algo prédeterminado, que deve ser cumprido. No contexto educacional, visualizamos o currículo como uma sequência estruturada, ou disciplina, o que nos leva a pensar em controle, terminologia que até os dias atuais permeiam o sentido de currículo, isto na perspectiva aqui por nós abordada, a escolaridade. Com o processo de industrialização surgido nas primeiras décadas do século XX, o currículo emerge como campo de estudo, voltado para uma abordagem tecnicista, onde a abordagem eminente é: Qual conhecimento deve ser ensinado. Inúmeras definições do termo currículo são propagadas, e nas teorias tradicionais refere-se basicamente aos critérios de seleção do que se deve ensinar e os modos de ensinar. Existe uma parcialidade total nas inferências ao currículo, é algo pronto e acabado. Nas teorias críticas o viés é diferente, ao invés de se propor um currículo para ser executado a preocupação está em discutir e analisar o que vem a ser realmente os conhecimentos transmitidos através do currículo. É justamente nesse viés que focamos o currículo de EJA. A priori o situaremos nessa perspectiva, de transmissor de conhecimentos. E para subsidiar essa teoria, utilizaremos os ideais de Paulo Freire com relação ao currículo. (“...) se não superarmos a prática de educação como pura transferência de um conhecimento que somente observe a realidade, bloquearemos a emergência da consciência crítica”. (FREIRE, 1981; 62). Ainda que não desenvolva uma teoria específica sobre currículo, Freire em sua genialidade demonstra uma preocupação em teorizar e buscar alternativas para questões eminentemente curriculares. Ao criticar a “educação bancária”, Freire nos alerta para os currículos aplicados nas escolas, onde os conteúdos são “selecionados e transmitidos” de forma homogênea. Todos “necessitam” de receber os mesmos conhecimentos, independente de qualquer coisa, devem ser “formados” para o mesmo fim. Todos são concebidos como seres homogênios, passíveis de um saber único, pronto e acabado. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3334 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino A expressão “grade curricular”, tão comumente utilizada nas escolas, nos remete a esse sentimento de aprisionamento, o educando é aprisionado em um currículo estável, imutável, inatingível. O potencial de criação do aluno é anulado, sufocado, cidade, esse estimulando a sua ingenuidade e nunca o seu poder de criticidade De acordo com Freire (1984), só existe saber na inovação, na reinvenção, na inquietação que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. É nessa relação dialógica, de construção e desconstrução que Paulo freire nos presenteia com a educação problematizadora, respaldada na essência da consciência, onde o indivíduo é sujeito do seu próprio conhecimento. Assim, esse estudioso nos define a educação libertadora. A educação libertadora, problematizadora, (...) [ é ] um ato cognoscente .Como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser, o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador de um lado, educando do outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da contradição educador-educandos.Sem esta, não é possível a relação dialógica indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível. (FREIRE, 1984.78). No sentido de educação problematizadora, os educando são críticos se mantêm em constante diálogo com o educador, que proporciona ao educando a superação do conhecimento. Para que essa superação ocorra, é viável e pertinente num currículo elaborado e reelaborado, em parceria com os educando, levando em consideração os conhecimentos e saberes que estes possuem, evidenciando a cultura popular como elemento básico da construção do conhecimento significativo. Atualmente, o currículo é visto sob a ótica de diferentes significados. Existe uma pluralidade de saberes que devem ser valorizados, e para que ocorra essa valorização, faz jus a tomada de consciência de que não existe um som método, único, eficaz e seguro.Existem vária facetas da construção do conhecimento que devem ser vivenciadas. Considerações finais Compreender o currículo como reflexão é prática, pressupõe entender o cotidiano como efetivo lugar de criação e recriação. Em se tratando de Educação de Jovens e Adultos, essa compreensão abre um horizonte promissor no tocante á aprendizagem dos educando. Um novo olhar direcionado ao currículo possibilita uma aproximação real do que deve ser ensinado e do que deve ser apreendido, proporcionando uma maior elaboração no fazer ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3335 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino pedagógico, relevando o conhecimento de mundo do aluno da EJA em um saber cientifico, propiciando uma aprendizagem significativa, que tão somente é um processo contínuo de ressignificação dos saberes. A literatura de cordel possui elementos que permitem essa aproximação entre o formal e o informal, referência uma cultura própria do educando que deve ser valorizada e perpetuada. São fatos inerentes ao cotidiano que são apresentados de forma lúdica e verdadeira. Cabe à escola, como palco de instituição formal, abrir suas portas para acolher esse saber cultural primeiro que o educando traz em sua trajetória e transformálo, recria-lo. Isso se faz possível através de uma reflexão profunda acerca do currículo, buscando transformá-lo em um currículo vivo e autêntico, integrando a cultura popular aos conhecimentos formais, construindo as relações de aprendizagem significativa e transformadora, passível de reflexão e de problematização, levando o sujeito a ser ator principal do seu aprendizado não um mero coadjuvante. Referências ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas, SP: Mercado de Letras/ Associação de Leitura do Brasil, 1999. (Histórias de Leitura). BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da literatura de cordel. Natal: Fundação José Augusto, 1977. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário de folclore brasileiro. 10. ed. rev. atual. e ilust. São Paulo: Global, 2001. BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da literatura de cordel. Natal: Fundação José Augusto, 1977. FAVERO, Osmar. 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Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo. Cortez, 1999. OLIVEIRA, Inês Barbosa de. O Currículo como criação cotidiana. São Paulo. Mauad, 2012. PEREGRINO, Umberto. Literatura de cordel em discussão. Rio de Janeiro: Presença Edições, 1984. (Coleção atualidade crítica, 04). ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3337 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino LITERATURA INFANTO JUVENIL E CURRÍCULO: EDUCANDO PARA A SENSIBILIDADE Rute Pereira Alves de Araújo35 Universidade Federal da Paraíba – UFPB [email protected] RESUMO O presente trabalho tem por objetivo apresentar algumas discussões sobre literatura infantil e currículo, percebendo, mediante a contextualização histórica de inserção da literatura infantil no mundo o contributo desta arte à formação do homem. Nesse sentido, as discussões, que ora se travam, acerca da política de currículo estão fortemente ligadas à questões de diversas ordens, dentre elas podemos destacar: as de origem social e econômica; as discussões étnicoraciais e culturais; dentre tantos outros dilemas que também são tratados de maneira leve e artisticamente produzida pelos textos literários infanto-juvenis. Diante das constatação, nos baseamos em estudiosos da área de literatura infantil (CANDIDO, 2004/CADEMARTORI, 2012/LIMA, 2002) e currículo (ARROYO, 2011/LOPES E MACEDO 2011/PEREIRA, 2010), para refletirmos algumas questões como: identidade, educação, ensino, currículo e literatura infanto-juvenil. PALAVRAS-CHAVE: Literatura infanto-juvenil. Educação. Currículo. ABSTRACT This paper aims to present some discussion on children's literature and curriculum , perceiving through the historical context of integration of children's literature in the world of this art contribution to the formation of man . In this sense , the discussions , which sometimes are waged , about politics curriculum are strongly linked to issues of various orders, among which we highlight: the origin of social and economic ; discussions ethno- racial and cultural , among many other dilemmas are also treated lightweight and artfully produced literary texts for children and teenagers. Given the finding, we rely on scholars in the field of children's literature (CANDIDO, 2004/CADEMARTORI, 2012/LIMA , 2002) and curriculum (ARROYO, 2011/LOPES And MACEDO 2011/PEREIRA, 2010) , to reflect such issues as : identity , education, teaching , curriculum and children's literature . KEYWORDS : Children’s literature. Education . Curriculum. 35 Aluna do doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com pesquisa em andamento na linha de Políticas Educacionais. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3338 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Palavras iniciais A literatura infantil tem sua origem marcada pelo autoritarismo e função pedagogizante, que no final do século XVIII e início do século XIX, foi responsável por “educar” crianças e jovens dentro de um viés acrítico e submisso, de uma geração adulta que pretendia, a partir desses textos, legar a geração mais nova seus valores e princípios. (ZILBERMAN, 1994). É nessa época, no entanto, que surge na Europa os clássicos infantis, adaptados por nomes consagrados e imortalizados a exemplo de Charles Perrault (1628-1703), na França; os irmãos Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), na Alemanha; o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875); Collodi (1826 – 1890), na Itália; Lewis Carrol (1832 1898), na Inglaterra; o americano Frank Baum (1856 – 1919); além do escocês James Barrie (1860 – 1937). Esses e outros ícones da literatura clássica infantil são responsáveis por tornar popular as histórias que embalaram e ainda encantam a infância de muitas pessoas no mundo, a exemplo de: O Patinho Feio, Cinderela, Pele de Asno, Branca de Neve e os sete anões, Chapeuzinho Vermelho, João e Maria, Pinóquio, Alice no País das Maravilhas O mágico de Oz, Rapunzel, Peter Pan, dentre tantas outras histórias e contos que mexeram e ainda mexem com o imaginário infantil e adulto na atualidade. (ABRAMOVICH, 1991). É importante lembrar que, a literatura destinada a crianças e jovens, nesse período, quando não eram escritas por pedagogos, com um intuito educativo e moralizante, eram consideradas, refúgio de escritores fracassados, todavia, a escola dos séculos XVIII e XIX começa a substituir as obras clássicas, até então utilizadas com objetivos de ensino da linguagem e ensinamentos morais, por uma literatura produzida especialmente para as crianças, mas que estava respaldada sobremaneira nos “vieses científicos” e “classistas” de uma pedagogia e psicologia que não conseguiam compreender a infância em si mesma e estavam arraigadas aos interesses da classe burguesa, funcionando com o intuito de conservação e supremacia desta. (MAGNANI, 2001) Nesse contexto, a literatura infantil assume um papel relevante na “formação” da criança, pois como afirma Aguiar (2001, p. 17), ela “é uma forma literária escrita num léxico especial, que procura estar de acordo com as características psíquicas da criança e responder às suas exigências intelectuais e espirituais”. Ainda, segundo Aguiar (2001), só com o passar dos anos é que a literatura infantil, aos poucos, abandona seu “pedagogismo” e “moralismo” para assumir e ocupar um status artístico. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3339 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Com o passar do tempo essas obras além de adquirirem um caráter mais artístico, baseado numa linguagem estética que além de respeitar a faixa etária à ela destinada, realizava através de seu conteúdo denúncias sociais, reflexões sobre identidades, gênero, etnia e outros temas que foram ganhando espaço na produção contemporânea. Nessa perspectiva, mediante a trajetória histórica de surgimento da Literatura infantil e das temáticas nela abordadas, que nem sempre respeitavam os sujeitos em sua diversidade humana, histórica e cultural, refletimos com Eduardo C. B. Bittar (2011) as possibilidades inerentes à leitura literária como um todo, e aqui mais especificamente as leituras literárias destinadas à crianças e jovens e sua potencialidade humanizadora e sensível, capaz de despertar nas pessoas o sentido de solidariedade, alteridade, ética, e tantos outros valores pouco valorizados ou escamoteados em nosso universo contemporâneo. Assim, organizamos o presente artigo da seguinte forma: num primeiro momento apresentamos um breve histórico do surgimento da literatura infantil no mundo afunilando ao percurso nacional de introdução da literatura destinada às crianças no país, destacando os ranços históricos de sua inserção social, bem como os avanços já conquistados em sua trajetória. Defendemos aqui a leitura literária como importante instrumento de reflexão que sensibiliza através de seus mais variados temas. Num segundo momento, pensamos uma educação de envergadura mais humanística, que sensibiliza. Uma educação sensível, que acontece via texto literário, percebendo o outro em sua inteireza e diferença que se move com intuito de resistir a insensibilidade do cotidiano, trilhando novos passos, na tentativa de construção de uma sociedade mais justa e solidária. Em seguida buscamos, ainda que, de forma sumária e sintética, fazer uma breve reflexão acerca de alguns títulos da produção nacional destinada a crianças e a jovens que, a nosso ver, possibilitam momentos de interação, fruição e prazer. Temas que ainda geram polêmica em nosso contexto social e por essa razão carecem de uma reflexão mais cuidadosa. Acreditamos, assim, que através da força encantatória da leitura literária é possível romper com alguns estereótipos negativos que legitimam determinados tipos de violência que atingem alguns grupos, ferindo o direito que lhes constitui cidadãos. Nessa perspectiva, vislumbramos no currículo espaço de luta e reflexão capaz de alavancar processos reflexivos mais aprofundados e passíveis de mobilização entre os saberes que vagueiam as histórias infantis e estão intrinsecamente relacionados a uma educação que preza pela sensibilidade. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3340 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Concluímos na esperança que as exposições aqui tecidas possam suscitar em alguns educadores a necessidade de reflexões perenes sobre o tema, além de motivá-los na busca de alternativas literárias/metodológicas mais dinâmicas e integradoras que respeitem os direitos humanos, gerando um espírito mais sensível e acolhedor nas crianças e jovens, tornando-os capazes de acolher com respeito e dignidade as diferenças e belezas que constituem o nosso universo social. Nos orientam na tessitura dessa produção as reflexões de Zilberman (1994), Magnani (2001), Arroyo (2011) , Bittar (2011), dentre outros. 1 Literatura Infantil: Entre os ranços históricos e os desafios contemporâneos Conforme vimos no início desse trabalho a Literatura Infantil surge na Europa no final do século XVIII e início do século XIX, com objetivos pedagogizantes e moralizantes que deixavam em segunda ordem os interesses das crianças e sua sensibilidade. Mediante esse marco histórico a produção nacional brasileira de literatura infantil foi se consolidando paulatinamente a partir da Proclamação da República, pois antes consumíamos apenas as traduções e adaptações dos livros que faziam sucesso na Europa, a exemplo de As mil e uma noites, Dom Quixote, Viagens de Guliver, dentre outros (ZILBERMAN, 1994/AGUIAR, 2001). A partir do exposto vemos que a literatura infantil no Brasil esteve moldada nos padrões portugueses e europeus no período entre a última década do século XIX e os anos vinte do século XX. Desse modo, de 1921 até 1940 foi a época de auge do escritor Monteiro Lobato e de suas obras, do final dos anos quarenta até quase 1970 ocorreu o período dos textos infantis criados à luz do modelo lobatiano e, a partir dos anos setenta, a etapa de reescritura dos contos de fadas e a produção de obras que polemizam a realidade social e o cotidiano infantil, algumas destas caracterizadas pela profundidade psicológica de seus personagens. (AGUIAR, 2001) É importante lembrar que Monteiro Lobato, além de produzir obras destinadas as crianças, em 1934 ele também se destacou nas traduções dos clássicos da literatura infantil, como Grimm, Andersen e Perrault. (ARROYO, 2011). Porém, antes de Monteiro Lobato, Zilberman (1994) aponta o aparecimento de alguns livros com características didáticas, produzidos, sobretudo por educadores e religiosos, com intuito puramente pedagógico e introdutores de valores e normas de conduta. Diante disso, a autora observa a importância de Monteiro Lobato no quadro da produção literário infantil ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3341 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino nacional, por começar a romper com o ideário dos padrões europeus até então propalados no país. Em síntese, a obra literária de Monteiro Lobato rompe com os estereótipos sancionados na época, questiona a aceitação do que estava em vigor, além de permitir ao leitor estímulo e formação de sua consciência crítica, relativizando o lugar ideológico em que o leitor se situa (CADEMARTORI, 1986). Nessa perspectiva de mudança de paradigma e relativização do lugar ideológico, Eduardo C. B. Bittar (2011) nos elucida ainda, que através da literatura é possível desenvolver em nós uma “quota” de humanidade, na proporção que nos permite abertura para às questões que envolvem a natureza, a própria sociedade e por que não o semelhante, Assim: Como seres que somos, carecemos delas, como pássaros carecem do ar para voar. Por isso, mutilar as asas de um pássaro é cercear-lhe de um potencial de liberdade que está contido em sua própria condição de animal dos ares. Na mesma medida, para seres de palavras, ‘negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade’, e, por isso, retirar-nos parte de nossa liberdade. Se a luta pelos direitos humanos é uma luta pela liberdade humana, fica claro que ‘a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da cultura... (BITTAR, 2011, p. 72-73) De acordo com o autor, para que uma sociedade assuma posturas mais justas e coesas, se requer em primeira instância respeito aos direitos dos seres humanos e um desses direitos é o direito à arte, e a fruição que emana da arte literária constitui um direito inalienável capaz de abrir a perspectiva do educando/leitor à uma melhor compreensão de seu mundo interior e o mundo que o circunda. É mediante as reflexões suscitadas no indivíduo, a partir das leituras literárias que realiza, que ele é inevitavelmente conduzido a pensar o outro, refletindo a condição humana através da linguagem artística, imaginação e fantasia. Nesse sentido, Bittar (2011) assevera que uma das atribuições do educador em direitos humanos é a de sensibilizar a provocar, valendo-se para isso de materiais artísticos os mais diversos. No entanto, contrariando o que ora defendemos, vislumbramos em nossas escolas um clima de hostilidade e aversão a arte, em sua concepção mais plena, bem como a própria educação em direitos humanos fica relegada, pois ainda se faz contraditório o que é proclamado na legislação sobre os direitos humanos e o que temos contemplado nas experiências e dizeres do cotidiano escolar. O atual clima de violência desenfreada que temos observado nos últimos anos no interior das escolas é contraditório com o que se espera da educação em direitos humanos, diante dessa constatação Vera Candau (2006) adverte que essas experiências têm conduzido ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3342 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino muitas pessoas a afirmarem que os direitos humanos na atualidade constituem um discurso vazio que têm servido mais para reforçar as situações de violência, que propriamente para fazer refletir e servir de instrumento na promoção da paz, da justiça e da democracia. Com base nessa constatação, que desola e desanima, a autora nos apresenta algumas estratégias metodológicas que poderão ser utilizadas pelos educadores na promoção da dignidade e solidariedade humana, através da educação em direitos humanos, que deverão estar alicerçadas em metodologias ativas e participativas, utilizando para isso as diferentes linguagens. É nesse campo de diálogos e metodologias participativas e interativas que a literatura infanto-juvenil ganha sentido e se faz oportuna, pois através dos títulos escolhidos o educador poderá fomentar junto aos educando fóruns de debates, círculos de palestras com os autores dos livros lidos, recontextualização das histórias lidas fazendo link com a atualidade e as próprias situações dinamicamente vivenciadas na comunidade escolar, dentre tantas outras atividades que o cotidiano oportunizará. No entanto, para que essa realidade se torne presente nos espaços escolares, urge que a educação formal construa uma cultura escolar diferenciada, capaz de superar as estratégias puramente frontais e expositivas, buscando produzir materiais adequados capazes de promover uma maior interação entre o saber sistematizado acerca dos direitos humanos e os saberes socialmente produzidos. (CANDAU, 2006). Nesse sentido, Candau (2006) chama a atenção para que a cultura dos direitos humanos permeie todo campo educativo, se fazendo presente no cotidianos escolar e tendo como referência a própria realidade. Sob esse prisma, acreditamos que por intermédio das artes de um modo geral, e de forma mais especial a partir da própria literatura infantil o educador encontrará meios para aprofundar reflexões acerca dos aspectos constitutivos do ser humano, sua natureza, direitos, deveres, suas necessidades lutas e, sobretudo a ética e os valores constitutivos de cada ser humano que deve ser respeitado em suas diferenças. Todavia, reconhecemos que a atual estrutura curricular tem se preocupado mais na doutrinação curricular que tenta à todo custo homogeneizar as massas, desconsiderando com isso a diversidade cultural intrínseca a cada povo, comunidade e/ou grupo social. É com base nessa constatação que refletimos a estruturação curricular de nossas escolas e questionamos quais conhecimentos tem sido validados nesses contextos? Quais saberes são priorizados em detrimentos dos demais? A quem serve determinado conhecimento? Que tipo de pessoa é ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3343 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino formada com base nos currículos que dispomos? É possível se formar para a sensibilidade, alteridade e respeito à diversidade com o atual currículo que temos? Sabemos que esses questionamentos não serão respondidos a curto nem a médio prazo, mas são questões que precisam ser cuidadosamente pensadas. 2 Educação Humanística e Literatura Infantil: resistindo a insensibilidade do cotidiano Eduardo C. B. Bittar, nos evidencia que ao comunicar verdades que não poderiam ser ditas em outras linguagens, a obra de arte se faz transgressora, e isso ocorre porque ela opera num léxico de liberdade que contraria a lógica da realidade, ensinando que é possível galgar novos caminhos além do circunscrito no cotidiano. Nesse sentido, a arte existe como uma força de resistência, por falar o indizível de forma sedutora, sem imposições autoritárias. (BITTAR, 2011) Na visão de Bittar (2011) um dos maiores desafios da educação em direitos humanos seria o de gerar sensibilização. Nesse sentido, seria oportuno questionar em que a educação em direitos humanos tem se esforçado para alcançar esse objetivo? A partir de quais elementos seria possível educar para a sensibilidade? Será possível a partir da arte e compreensão estética ser mais sensível? A literatura pode contribuir nessa tarefa? De que modo? Essas e outras questões, possivelmente suscitados a partir do tema, não têm a pretensão de serem respondidas, mediante respostas estanques que cristalizam determinados modelos, mas refletidas, maturadas e analisadas no intento de tecer caminhos que conduzam à uma nova metodologia de trabalho, a partir de uma educação para a sensibilidade, através da estética, especialmente, as artes literárias. Assim, pensando com Marcel Proust, defendemos que: Se o gosto pelos livros cresce com a inteligência, seus perigos, como vimos, diminuem com ela. Um espírito original sabe subordinar a leitura à sua atividade pessoal. Ela não é para ele senão a mais nobre das distrações,sobretudo a mais enobrecedora, pois, somente a leitura e o saber dão as ‘belas maneiras’ do espírito. O poder de nossa sensibilidade e de nossa inteligência, não podemos desenvolvê-lo senão em nós mesmos, nas profundezas de nossa vida espiritual. (PROUST, 2011, p.52) Nesse sentido, começar um trabalho de educação para a sensibilidade com crianças e jovens seria de importante valia, uma vez que é a partir desses sujeitos que se constrói e se pensa melhoria para a sociedade vindoura, através da formação para o espírito de ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3344 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino solidariedade, exercício da liberdade responsável, respeito à diversidade e conseguinte construção de uma sociedade mais democrática, crítica e sensível. Sendo assim, a leitura de obras literárias realizada com crianças e jovens pode despertar a sensibilidade, abrir horizontes de humanidade e solidariedade junto aos seus pares, mediante a identificação do leitor com as personagens e tramas das histórias lidas. Assim, a leitura de obras literárias se constitui um recurso importante no exercício da tarefa de sensibilização, pois é mediante a vastidão de temas tratados na literatura em suas múltiplas criações, sejam elas poéticas, ficcionais e/ou dramáticas que a humanidade e sua cultura é refletida. É diante dos textos literários que o homem pode se ver representado perante a humanidade e perante si mesmo. Pois conforme assinala Michèle Petit (2009, p.108), os textos literários lidos “abrem caminho em direção à interioridade, aos territórios inexplorados da afetividade, das emoções, da sensibilidade; tristeza ou a dor começam a ser denominadas.” Assim, ao dividir sentimentalidades com a voz da narrativa, o autor que empresta a voz para dar vida ao enredo por ele narrado, poetizado, problematizado, questionado e/ou descrito, abre passagem à intimidade do leitor e suas subjetividades. (PETIT, 2009) As artes, especialmente a literária, também contribuem para que o homem conheça a si mesmo e outras culturas mediante a linguagem nela utilizada que é capaz de ampliar o vocabulário de seu leitor, sendo fator imprescindível à humanização, confirmando o homem em sua humanidade, através do alcance do saber, exercício da reflexão, afinamento das emoções, sentido de beleza, cultivo do amor, capacidade de adentrar nos problemas da vida cotidiana, apresentando o microcosmo das relações, enfim o direito à literatura: “desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade e o semelhante”. (CÂNDIDO, 2004, p.180) 3. Literatura humana e Currículo Em artigo sobre Direitos Humanos e currículo escolar, o educador chileno Abraham Magendzo (2002), afirma que: Intentando redefinir el sentido de la educación en derechos humanos, hay que decir con mucha claridad que ésta debe constituirse en un factor de democratización y modernización de nuestras sociedades. El respeto y vigencia de los derechos humanos forma parte no sólo el área de la democracia política, sino que también Del área de la democracia cultural y educacional. Si se desea ‘ingresar’ y ‘transitar’ hacia una sociedad ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3345 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino democrática hay que reconocer que la dignidad humana es central y que hay necesidad de potenciar el tejido intercultural de nuestra sociedad. Estos rasgos son las condiciones necesarias para la apertura al mundo globalizado. Sobre dicha base, es posible la construcción de una moderna ciudadanía, en la cual ‘el sujeto, es ser productor y no solamente consumidor de su experiencia y de su entorno social’ y en donde la modernidad, además de progreso económico, tecnológico y social, será sobre todo ‘exigencia de libertad y defensa contra todo lo que transforma al ser humano en instrumento o en objeto’( MAGENDZO, 2002, p.05) Tomando por base o que expõe Magendzo (2002), percebemos que o outro não se configura mais como objeto de uma relação que outrora se fez na verticalidade autoritária, mas o outro é também sujeito, e portanto, interlocutor em diálogo, construto de uma relação em que ambos se dão a conhecer. Assim, “Na literatura de hoje, no entanto, referências políticas, sociais, culturais ganham multiplicidade e voltam-se à afirmação da diferença e do lugar do outro.” (CADEMARTORI, 2012, p. 53). É com base nessa perspectiva mais atual acerca das relações estabelecidas entre o texto e o leitor, elencadas por Lígia Cademartori, que visualizamos que a identidade do leitor é reconfigurada, portanto não é fixa, mas instável; não inata, mas construída a cada dia no decurso de nossa história que também se reconfigura e toma relevos e matizes plurais, móveis, em perene processo construtivo. Essa vertente da literatura infantil contemporânea, segundo Lígia Cademartori (2012) está mais voltada ao reconhecimento das múltiplas identidades dos leitores, bem como da consideração dos diferentes grupos sociais como sujeitos mensageiros de uma cultura em que os olhares se misturam, numa dança mágica que não permite mais ideias cristalizadas e imagens estereotipadas produzidas sobre o outro e repassadas como verdades inquestionáveis e absolutizadas que desrespeitam a diferença, silenciando por vezes o discurso alheio. Nessa dança múltipla de sentidos outras leituras ganham espaço, e não apenas as do cânone, mas as nossas próprias histórias, os “causos” do cotidiano, do imaginário popular e do folclore vão se reconfigurando e ganhando novas nuances, reconstruindo novos sentidos e permitindo cada vez mais que outras janelas se abram para que novas e /ou velhas e repetidas histórias entrem na roda e se abram à multiplicidade cultural, anteriormente velada; às vozes antes silenciadas, em síntese à diferença, pois a “A obra literária deixa vazios por onde podemos ingressar com nossa imaginação, nossa experiência, nossa capacidade para completar e refazer o narrado.” (CADEMARTORI, 2012, p.50). Na busca incessante de construirmos um currículo para a diferença que considere a diversidade imanente dos sujeitos, se faz pertinente compreendermos a própria condição de ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3346 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino sujeitos que temos construído contemporaneamente, por essa razão refletimos com Lopes e Macedo (2011), que a pré-condição para a ação política é considerarmos o sujeito não mais em sua inteireza como antes se via, ou seja de identidades sólidas, cristalizadas em um tempo histórico, onde não se cogita a dinâmica dos processos políticos, sociais, culturais e todas as outras dimensões que nos identificam e nos constroem, mas um sujeito cindido, cuja falta se constitui em condição lacunar que nos move na construção perene de novas dinâmicas processuais da política escolar, que não destoa em momento algum dessa pré-condição do sujeito, desse modo: “A ação de mudança é o horizonte da estrutura, o excesso de sentido que não pode ser simbolizado a não ser como lugar vazio.” (LOPES e MACEDO, 2011, p. 253). Com base nessa perspectiva, tomamos por base uma parte da estética da recepção que considera relevante a interação entre o texto e o leitor na estrutura dos textos narrativos, a partir das estruturas vazias que compõem a própria trama desses textos. Assim, é mediante essas estruturas vazias contidas nos textos que o leitor é convidado a preencher no ato da leitura com aspectos de sua experiência social, afetiva, política, enfim mediante aspectos de sua conjuntura identitária que entrelaçadas à essas leituras dão sentido a obra, permitindo que o leitor interaja com ela, recriando a própria obra de modo particular, livre, portanto impossível de controlar, mas dinamicamente produzido (LIMA, 2002). Nessa ótica Lopes e Macedo (2011, p. 253) alertam que: [...] não havendo estruturas fixas e centradas, a ordem social só pode ser criada por relações hegemônicas precárias. A sociedade como um todo estruturado e fixo, pré-discursivo ou extradiscursivo, não existe, pois sempre há um excesso de sentido a ser simbolizado, algo do que não se consegue dar conta, jogos de linguagem que podem produzir novas significações contingentes. A leitura destinada a crianças e jovens, em sua multiplicidade de títulos e temas, cumpre com essa tarefa de não fechar em ideias fixas as identidades dos sujeitos, mas trabalhá-la com base no vazio que opera de forma criativa e permite ao leitor interagir de modo particular com a obra, ressignificando e contextualizando os assuntos ali tratados mediante aspectos intrínsecos a sua própria cultura e identidade. Por essa razão a obra literária, nunca se dará no fechamento conclusivo das respostas prontas e previamente elaboradas, mas dinamicamente produzidas, a partir do ato da leitura, as obras ganham novos relevos e se renovam perenemente, graças ao leitor e seu contexto que a ela se entrecruza. O escritor mineiro Bartolomeu de Campos Queirós, em memória às experiências de leitura realizadas em sua infância, declara que: ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3347 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Eu abria o livro e soletrava, vagarosamente, cada palavra. Elas invadiam o mais fundo de mim instalando novos anseios, diferentes obstáculos e tantas paredes. Mas com o livro eu atravessava os muros, rompia com o caminho dos fantasmas, penetrava no entendimento possível a mim. Todo livro era uma parede que ao me revelar o escondido me propunha outros encontros. A leitura me desequilibrava. Cada metáfora estreava mais ambiguidades e, consequentemente, mais escolhas. (QUEIRÓS, 2012, p.45) Nessa perspectiva, apontada pelo autor e através das variadas modalidades de leitura e ficção como os mitos, os contos, as lendas, a poesias, as peças de teatro, os romances e muitos outros é possível visualizar os pontos que unem a humanidade em seus mais variados contextos, pois: “as paixões humanas, os desejos e os medos ensinam às crianças, aos adolescentes, aos adultos também, não pelo raciocínio, mas por meio de uma decifração inconsciente, que aquilo que os assusta pertence a todos” (PETIT, 2009, p.116). A partir do exposto, podemos vislumbrar em algumas obras nacionais destinadas as crianças e aos jovens, matizes dessas dores e amores que unem as pessoas através da leitura de alguns títulos da produção nacional que rompem com os estereótipos que se criam. A guisa de uma primeira reflexão podemos ver no título: “O Menino maluquinho” , do mineiro Ziraldo, escrita em 1980, o rompimento com o estereótipo da criança comportada, mas que por outra via recebe o nome de “Maluquinho” por não se adequar e/ou se enquadrar as estruturas fechadas de uma sociedade, que reprime e tende a homogeneizar comportamentos e atitudes. Nessa luta em busca do desbravamento e conquista de seu espaço o menino consegue romper com alguns paradigmas, transgredindo, por muitas vezes normas e conceitos que tendem a reprimir a criatividade nata da criança em fase de desenvolvimento. Figura 1 – capa do livro “O menino Maluquinho” de Ziraldo, ver: http://www.ziraldo.com/menino/mm7.htm ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3348 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Nessa produção o cartunista, escritor e jornalista Ziraldo, consegue transmitir via imagem e texto escrito a figura de um menino esperto e criativo que resiste ao que está posto socialmente como normalidade, e mostra através de sua presença forte, alegre, divertida, livre e diferente de ser que o mundo é um lugar para todos. A história mostra, também o lado sentimental desse menino que em meio a tantas peraltices, brincadeiras e estripulias, chora escondido, escreve bilhetinhos e compõe canções para suas dez namoradas, e mesmo em meio as travessuras e “maluquices” preserva seus segredos e intimidade. A produção de Ziraldo, nos ajuda a refletir os direitos da criança e através da força encantatória da palavra nos conclama a construção de um mundo mais humano e justo para com a infância, que tem o direito de viver sua liberdade de forma criativa e dinâmica, enfim de ser ela mesma, de ser feliz. Já na narrativa infantil “Raul da ferrugem azul”, escrito em 1979, pela escritora Ana Maria Machado – a insatisfação com injustiças e atitudes desumanas e agressivas, nos instiga a mudarmos as nossas atitudes e retirarmos as ferrugens que nos impedem de tomarmos atitudes diferenciadas; lutando contra a violência do cotidiano, não calando diante das injustiças e dos maus tratos que a minoria social sofre. Figura 2 – Capa do livro: “Raul da ferrugem azul” de Ana Maria Machado Ver: http://www.leituracritica.com.br/apoioprof/aprecia/021anamachadoraul.asp Diferente do “menino Maluquinho” de Ziraldo, Raul é um menino tímido e quieto que começa a enfrentar um grande dilema quando começa a perceber que manchas azuis estão tomando conta do seu corpo: ora essas manchas aparecem, nos braços, ora nas pernas, ora na língua e até na garganta. Raul insatisfeito com isso e intrigado porque não sabe o que ocasiona ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3349 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino essas manchas que ninguém parece ver, apenas ele, começa a procurar ajuda e nesse estágio ele também começa a perceber que determinadas acontecimentos do cotidiano estão fortemente imbricados a essas pintas azuis que se espalham em seu corpo. Assim, num estágio de reflexão e intimidade com ele mesmo, o menino Raul atenta para o fato de que apenas quando situações de injustiça, covardia e violência ocorrem em sua presença e ele se cala, mesmo sentindo vontade de retrucar ou questionar o que ocorre, é que as manchas então aparecem. É nesse momento que Raul encontra a chave para a cura desse mal e descobre que estas estranhas manchas tratam-se de ferrugens, ou seja, toda vez que ele se depara com situações de injustiça, que, requerem dele, tomada de atitude e ele se cala e/ou não se manifesta, as manchas aparecem, e ele enferruja. Enferruja sua capacidade de contestar e questionar o que acontece, de tomar atitudes mais práticas em prol dos que a sua frente sofrem algum tipo de injustiça. É nesse momento que Raul começa a fazer a diferença e não sufoca mais a sua vontade de lutar pelo o que é justo, de falar pelos que estão em situação de inferioridade e percebe com satisfação que as ferrugens começam a desaparecer. Através dessa história carregada de imagens conflitantes e desafios sociais o leitor mirim é convidado a reagir diante das dificuldades do cotidiano, a não se acovardar diante de situações de conflito, preconceito e injustiça, pois através dessa tomada de atitudes é que poderemos vencer as nossas inseguranças e medos e é justamente por essa razão que essa história é um título recomendável à uma educação que se pretende sensibilizadora e humanística, pois constitui uma narrativa sensível, bela, criativa e ao mesmo tempo instigante e desafiadora. Outra história, também da professora, jornalista e escritora Ana Maria Machado, que merece o nosso olhar crítico e reconhecimento de seu contributo incontestável à literatura infantil, é: “Menina Bonita do laço de fita”, que mediante uma linguagem simples e por vezes poética, apresenta com singeleza ideias que rompem com o preconceito racial ao se reconhecer a beleza negra. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3350 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Figura 3 - Capa do livro: “Menina bonita do laço de fita” de Ana Maria Machado. Ilustrações de Walter Ono. Assim, através das palavras do coelho que se repetem ao longo da narrativa ao questionar: “Menina bonita do laço de fita, qual o teu segredo para ser tão pretinha?” as crianças enveredam em mão oposta, ao que se propala numa sociedade com fortes influências ocidentais de branqueamento e preconceitos raciais, pelo insistente desejo do coelhinho de se tornar negro. É possível verificar logo no início dessa narrativa que a beleza da menina é enaltecida. O texto inicia com a força encantadora do “era uma vez” e enfatiza a beleza da menina através de afirmativas, como: “Era uma vez uma menina linda, linda.”, “Os olhos pareciam duas azeitonas pretas brilhantes”, “os cabelos enroladinhos e bem negros.”, “A pele era escura e lustrosa, que nem o pelo da pantera negra na chuva”, e para dar sentido ao título da história a autora completa afirmando que “a mãe gostava de fazer trancinhas no cabelo dela e enfeitar com laços de fita coloridas.”, complementa afirmando que “Ela ficava parecendo uma princesa das terras da áfrica, ou uma fada do Reino do Luar.” (MACHADO, 1997) Seguindo essa trilha de valorização da negritude está o livro “O menino Marrom” de Ziraldo, que mesmo intitulado de marrom é perceptível, em todas as belíssimas ilustrações que compõem a obra, a negritude do menino, que tendo a cor da pele igual ao mais puro chocolate se acostumou em chamar-lhe de “preto”. A beleza desse menino é retratada no teor da história, em que se enaltece os seus olhos bem pretos e os dentes claros e certinhos que até parecem teclas de piano; a beleza, ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3351 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino simpatia e inteligência do menino são descritas no decurso de toda narrativa através de adjetivos afetuosos que valorizam a cor do menino. Figura 4 – Capa do livro: “O menino marrom” de Ziraldo Os livros “O menino marrom” e “Menina bonita do laço de fita”, são títulos que podem ser trabalhados com as crianças pequenas com intuito de divertir, apreciar, brincar e ao mesmo tempo desmitificar os estereótipos que foram se configurando ao longo de nossa trágica história nacional de escravidão, bem como dos ranços que amargamos até os dias atuais através de histórias de preconceito racial, que se propalam nos mais variados contextos. É por essas e outras razões, aqui destacadas, que a leitura desses títulos se fazem relevantes ao trabalho de sensibilização e reflexão política e por essa razão são importantes a um modelo de educação mais sensível, se forem trabalhadas dinamicamente valorizando-se os processos interativos que o leitor poderá estabelecer com o texto lido. Outra narrativa dedicada a crianças e jovens que também rompe com alguns estereótipos é “O gato que gostava de cenouras” de Rubem Alves, que numa linguagem humana, encantadora e carregada de afetos trata da temática da homoafetividade, rompendo com termos pejorativos, excludentes e preconceituosos que “normalmente” se veiculam aos relacionamentos e identidades homossexuais nos mais variados contextos sociais. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3352 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Figura 5 - Capa do livro: “O gato que gosta de cenouras” – Rubem Alves, ilustração André Ianni. Ver: http://www.rubemalves.com.br/ Nessa história o gato Gulliver, também chamado de “Gulinho”, se mostrava diferente dos outros gatos, que costumeiramente são apreciadores de peixes, ratos e passarinhos, contrariando esse modelo tido como “normal”, o que “Gulinho” gosta mesmo é de comer cenouras, o que numa terra de gatos é considerado aberração, motivos de chacotas e gracinhas na escola e vergonha para os pais. Os pais de Gulinho não são conhecedores desse seu gosto e comer cenoura se torna um ato secreto. No entanto, os pais de Gulinho sofriam, pois não o viam se alimentado do que os outros gatos se alimentavam e padeciam com isso, pois achavam seu filho diferente, e é mediante essa percepção da diferença que eles o seguem e descobrem o seu “estranho” gosto por cenouras. Diante dessa descoberta o pai de Gulinho vai procurar ajuda as mais diversas, que em nada conseguem “sanar” esse “estranho” gosto, no entanto o professor de Gulinho ao perceber o drama que ele enfrenta tem com ele uma longa conversa e o faz perceber que a sua diferença está no DNA e ninguém tinha nada com isso. Nesse fragmento resumido da história percebemos a dolorida trajetória do gato que ao se perceber diferente e certamente tendo conhecimento do contexto de preconceito e exclusão que enfrentaria, caso assumisse sua condição identitária, opta por velar seu desejo, reprimindo e/ou ocultando seu desejo. No entanto seus pais o descobrem e procuram “sanar” essa diferença como se ela fosse uma doença que tivesse que ser ocultada, porém com a ajuda do professor esse gato compreende melhor sua diferença e consegue, aliviado, assumir sua identidade. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3353 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Outra história que corrobora com essa é da escritora Márcia Leite, intitulada: “Olívia tem dois papais”. A narrativa trata com delicadeza, beleza e sentimento a história da menina Olívia que é adotada por dois homens – Raul e Luís que mantém uma relação homoafetiva. A história se desdobra na descrição de fatos do cotidiano de uma menina em fase de desenvolvimento que tem dúvidas, anseios e sabe conseguir o que deseja de seus pais, com um jeitinho inteligente e meigo que só ela sabe fazer. No entanto, Olívia tem dúvidas e deseja ardentemente saber como aprenderá a se maquiar, usar salto e outras coisas que as mulheres fazem, se não há em sua casa nenhuma mulher para ensiná-la? Figura 6 – Capa do livro: “Olívia tem dois papais” de Márcia Leite Em “O menino que brincava de ser” de Georgina da Costa Martins, visualizamos questões da diversidade humana, heterossexualidade e formação identitária infanto-juvenil, que se prefiguram em contextualizações híbridas, de imanente busca de respeito à diversidade, procura da liberdade e reivindicação do direito de livre expressão. A narrativa também assegura que a escola e a família são lugares de afeto e apoio para as crianças. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3354 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Figura 7 – Capa do livro: “O menino que brincava de ser” de Georgina da Costa Martins O menino Dudu, personagem principal de: “O menino que brincava de ser”, junto com seus amigos gostam de brincar e interpretar vários papéis, e no faz-de-conta, peculiar da infância, eles descobrem a maravilha da diversidade e se desdobram nos mais variados papéis, no entanto os pais e avós próximos das crianças começam a estranhar essa liberdade de expressão de Dudu, pois o garoto em muito se identifica com os papéis femininos. A partir desse olhar adulto e desconfiança dos mesmos em relação ao seu comportamento, Dudu, passa a ser vítima de gozações e preconceitos, simplesmente por encarar a cor do mundo de um jeito diferente e livre. Assim, como os pais de Gulinho, em “O gato que gostava de cenouras”, os pais de Dudu o levam à psicólogos e endocrinologistas, na tentativa de “curar” essa possível doença. Nas questões aqui tratadas, especialmente, nas três últimas obras, brevemente descritas, percebemos a possibilidade de se trabalhar na escola junto as crianças a temática da homoafetividade, muito embora esse ainda seja um tema polêmico, pois: Existe uma tendência de instituições e indivíduos negarem ou tentarem esconder da sociedade, e principalmente da criança, a sexualidade, sobretudo a homoafetividade. Percebemos que há certo receio em relação à criação de obras infantis que abordem a homoafetividade, e talvez certo temor, por parte de alguns autores, de que suas obras, quando analisadas, sejam rotuladas de homoafetivas. (MACHADO, 2009, p.20) Questões dessa envergadura desembocam no tipo de currículo que construímos e concebemos, entendendo que as questões que envolvem currículo numa educação de cunho mais humanítica, são caracterizadas pela complexidade, sendo assim uma zona de conflitos, ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3355 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino tensão, e por essa razão problemática, pois: “Establecer una relación estrecha entre el curriculum y la educación en derechos humanos, significa, entre otras cosas, incorporar en el proceso de seleccionar, organizar transferir y evaluar el conocimiento curricula” (MAGENDZO, 2002, p.1-2), assim, os sentidos do currículo e seu estado de permanente construção desembocam na compreensão do homem como sujeito de direitos, comprometido com a vida. Pois o currículo pode ser entendido não apenas numa visão fragmentada, mas como “... uma síntese de elementos culturais (conhecimento, valores, hábitos, crenças, etc.) que formam uma proposta político-educacional, elaborada e sustentada por diversos setores sociais, com interesses diferentes e também contraditórios.” (SOUTHWELL, 2008, p 126) Considerações inconclusivas Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado pasar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido. (Marcel Proust, 2011, p.9) Com base no que temos nos debruçado no percurso desse artigo é possível refletir com Magendzo (2002) que a Pedagogia Crítica e a Educação em Direitos Humanos são capazes de produzir mudanças significativas na educação, sem obrigatoriamente assumir uma posição radical, mas procurando manter um posicionamento crítico, que contribuirá inevitavelmente à uma mudança de cunho mais global, capaz de permear as esferas da educação e do currículo com a justiça social, através da discussão e empoderamento dos que cultural, social e politicamente sofrem descriminações que atentam a sua condição humana e cidadã à exemplo da pobreza, os processos de discriminação e preconceito, a paz, conceituações de gênero e etinia, racismo, homofobia, etc. Nessa ótica, pensamos que uma educação de envergadura mais humana, não poderá acontecer no ambiente escolar, no campo dos conhecimentos disciplinares, mas tomada como parte integral de todo campo educacional que não se bitola única e exclusivamente a sala de aula, mas se amplia as dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais, na democratização social e no respeito e exercício efetivo dos direitos humanos como princípio norteador da democracia. (MAGENDZO, 2012) Corroborando com o autor acreditamos que as temáticas supracitadas são de uma envergadura política social complexa, que carecem serem permanentemente discutidas e ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3356 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino refletidas desde a mais tenra idade, por essa razão defendemos, nesse trabalho a leitura de textos literários infanto-juvenis circunscritos nesse patamar de discussões que podem contribuir à sensibilidade do leitor diante de temas polêmicos e atuais através de uma linguagem artística, produzida num léxico de respeito à idade da criança e do jovem. Defendemos uma literatura que não “pedagogiza”, mas sensibiliza através do poder encantatório das palavras, conclamando o indivíduo a tomada de decisões mais respeitosas e humanas em relação ao outro. É através da força imaginativa e criativa despertada nas leituras literárias que a criança e o jovem realiza, que se pode adentrar num mundo mais humano e sensível. É por intermédio da majoritária produção literária infanto-juvenil e seus títulos que convocam à solidariedade e humanidade, convidando o leitor a se ver na obra lida e através dessa identificação – autopoiesis - resignificar suas antigas práticas. (BITTAR, 2011). Pois conforme alerta Bartolomeu de Campos Queirós (2012, p.91): “Ter em mãos um livro literário é defrontar-se com o desequilíbrio.” E é esse desequilíbrio que nos move na busca da estabilidade, e é nessa busca que temos noção da nossa fragilidade, tão humana, tão presente, enfim é no limiar de nossa frágil condição de ser que também nos abrimos aos afetos e a sensibilidade imanentes da arte literária. Referências ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. 2. ed. São Paulo: Scipione, 1991. AGUIAR, Vera Teixeira de (Coord.). 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O trabalho tem como base de sustentação autores do campo da História e do campo da Educação. Para entender os desdobramentos de uma política do conhecimento escolar, autores como Lopes (1995; 2011); Ball (1994; 2008); Sacristàn (2000), entre outros referenciam o estudo. Os resultados indicam que a materialidade das fontes expressa dimensões de uma política do conhecimento escolar na institucionalização da política educacional estadual. Assim, as estratégias educativas estabelecidas pelas políticas públicas da educação estadual que consolidaram a reforma educativa expressam diferentes sentidos e significados na construção histórica da política curricular. Introdução O presente trabalho resulta de uma pesquisa sobre o estabelecimento de uma política curricular estadual realizada a partir de uma pesquisa documental. Investiga sentidos e significados constituintes e constituidores do processo de efetivação de uma reforma educativa estadual, seus entraves e possibilidades na consecução de uma política curricular. O trabalho procura desvelar sentidos imanentes ao processo de consolidação de uma política educacional e dos desdobramentos gerados a partir da efetivação da reforma educativa, cuja culminância foi a deliberação de uma política do conhecimento escolar. Nesse sentido, o trabalho busca entender a trajetória percorrida pela política educacional, vislumbrando traçados e delineamentos da efetivação da proposta curricular. Expressam-se sentidos e significados que envolvem os percalços de elaboração e divulgação da 36 Professora da Universidade Federal de Campina Grande. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3359 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino reforma educativa, com destaque às formas de persuasão, de investimento ou de deslinde da política curricular. Faço, então, uma narrativa do processo de divulgação da proposta tentando compreender, em uma primeira instância, os alinhavos que foram se constituindo na similaridade discursiva da Secretaria Estadual de Educação, da Regional de Ensino e da Escola. Assim, focalizo a trajetória da reforma educativa estadual, com suas percursos, percalços e roteiros entrelaçados no mapa educacional, ao tempo em que tento situar a organização administrativa do Estado naquele momento histórico, as modificações sociais, políticas, econômicas e culturais e sua relação com a política do conhecimento escolar. Sentidos constituidores de uma política educacional estadual Para compreender o processo histórico de institucionalização de uma política do conhecimento escolar apresento aspectos da política educacional que deram origem à proposta curricular. O êxito de uma proposta de mudança na educação depende de muitos fatores que envolvem relações de poder, de finalidades éticas e políticas, mas também da adesão e envolvimento dos educadores. Detentora de uma retórica inovadora, a proposta pautou-se pela via da gestão, quer na condição de diretriz norteadora de uma política do conhecimento escolar, quer na forma de divulgação e implementação do currículo, o que reforça a noção de que ‘forma e conteúdo’ não se separam. O conteúdo está sempre envolto numa certa forma e esta pode ser tão importante quanto os possíveis efeitos dos conteúdos. A gestão, de acordo com Ball (2001) tem sido mecanismo chave tanto na reforma política quanto na reengenharia cultural e representa a introdução de um novo modelo de poder no setor público. No rol dos novos paradigmas dos processos de reforma, a gestão desempenha uma nova cultura de desempenho como forma de gerar uma reconfiguração institucional. Segundo Ball (2001:105) os processos de reforma não se prendem simplesmente à introdução de novas estruturas e incentivos, mas também exigem e trazem consigo novas relações, culturas e valores. As condições nas quais aconteceu o estabelecimento da reforma curricular trazem na sua configuração continuidades e descontinuidades, permanências e rupturas pelas quais foi passando a história da educação ao longo dos anos. Tem como marco de sua construção um ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3360 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino projeto administrativo estadual no qual, dentre outros aspectos, a educação ganhou visibilidade. Ainda que a referida política sinalize ou contemple outros pontos de destaque, a proposta curricular constitui o eixo referencial da política do conhecimento escolar. A edição de uma proposta curricular desseminando uma política cultural aconteceu quase que paralelamente ao advento dos parâmetros nacionais às escolas, causando um certo empanturramento de proposições. O que poderia conferir à escola uma diversidade de propostas para discussão sobre o currículo depara-se com a informação textual de que a proposta incorpora e ou adapta os PCNs (Ceará, SEDUC, 1997:01), e com a deliberação de sua efetivação. Além disso, o fato de a proposta estabelecer o formato de organização do ensino em ciclos, que, pela natureza da mudança, altera a dinâmica da escola, rouba a cena da discussão sobre a reforma em si. A reforma curricular passa a ser objeto de preocupação apenas no que se refere ao sistema de organização do ensino. O empenho dos idealizadores da proposta em persuadir os professores e diretores dando destaque a aspectos sociais, políticos, pedagógicos e administrativos reforçam os princípios da administração pública naquele período: sustentabilidade, visão de longo prazo, participação e transparência. Esses princípios destacados com ênfase pelos gestores, como parte do convencimento para assegurar a implantação da proposta, traziam embutidos outros discursos de instâncias nacionais e internacionais definidoras de políticas educacionais, revigorados pelo ‘discurso da mudança’ estadual, tão em voga naquela gestão administrativa e, difundido também pelas práticas educacionais locais. Associo as táticas da produção da política do conhecimento escolar à interatividade a que se refere Lingard (2004), no sentido de que há confluência entre as esferas de implementação das políticas mediadas pelas práticas locais. Tais confluências ocorrem simultaneamente configurando sentidos diversos concorrendo para o entendimento de que as políticas influenciam as práticas e estas contribuem para o fortalecimento das políticas (Lopes, 2011), na inter-relação entre as políticas e as práticas (Lima, 2012), em que há imbricamento de textos e discursos na configuração curricular tanto do texto prescrito quanto do texto em ação. A prescrição curricular ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3361 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Nesta parte do trabalho destaco aspectos relacionados com a prescrição a partir da qual a política do conhecimento escolar foi estabelecida. Trata-se do Projeto Escola Viva: a organização do ensino em ciclos levado a efeito na educação estadual. A reforma curricular estabelecida, embora relacionada com acordos e negociações da política educacional nacional e internacional, resulta também de uma perspectiva interna fomentada pelo discurso de mudança, sintonizado também com a escola, confirmando a tese de que os processos macro e micro se articulam formando interfaces com outras políticas setoriais, conforme a abordagem do ciclo de políticas (Ball, 1994). O lançamento de uma propositura curricular envolve textos, contextos e atores sociais acarretando desdobramentos que relacionam-se a formas muito específicas em torno do processo de escolarização. Para Sacristàn (2000:35): o condicionamento cultural das formas de conceber o currículo tem importância determinante na concepção própria que se entende por tal e nas formas de organizá-lo. Não se pode esquecer que em torno de determinadas ações estão envolvidos projetos sociais dirigidos, crenças coletivas e marcos institucionalizados, como afirma Sacristàn (1999:30). Para este autor o que acontece no mundo educativo tem muito a ver com os agentes que dão vida, com suas ações, às práticas sociais que acontecem nos sistemas educacionais. Tais ações deixam vestígios, geram expectativas, uma vez que, como diz Arendt (1993) agir é condição do ser humano, o que potencializa a expressividade da pessoa que age. De acordo com Sacristàn (2000:118) a ordenação e a prescrição de um determinado currículo por parte da administração educativa é uma forma de propor o referencial para realizar um controle sobre a qualidade do sistema educativo. Ainda que seja salutar a diversidade de opiniões em torno de questões educativas, a variedade de discursos ressignifica o debate de forma a atender às finalidades educacionais naquele momento. A estranheza diante da inovação curricular é diluída em meio à concretude da política educacional e ao fluxo de comunicação entre as instâncias educacionais contribuindo para a mediação realizada em torno da implantação da reforma. Essa mediação em torno do currículo torna-o, nas palavras de Sacristàn (2000:34), uma opção cultural, um projeto seletivo de cultura, cultural, social, política e administrativamente condicionado, que preenche a atividade escolar e que se torna realidade dentro das condições da escola tal como se acha configurada. ISSN 18089097 GT 23: CURRÍCULO E CULTURA E ESPAÇOS ESCOLARES 3362 VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES Currículo: (re)construindo os sentidos de educação e ensino Referências: BALL, Stephen J. Education Reform: a critical and post-structural approach. Buckingham: Open University Press, 1994. _______. (2001). Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. 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