A política de Aristóteles

Transcrição

A política de Aristóteles
A POLÍTICA DE ARISTÓTELES
Ramiro Marques
A Política é uma das obras de Aristóteles mais importantes. Era, por isso,
estranha a ausência de uma tradução da obra, em Português, realizada a partir do grego.
A editorial Vega apoiou os esforços intelectuais de uma equipa de académicos,
constituída por João Bettencourt da Câmara (que assina a nota prévia), Raul Rosado
Fernandes (que assina o prefácio e a revisão literária), Mendo Castro Henriques (que
assina a introdução e a revisão científica), António Campelo Amaral e Carlos de
Carvalho Gomes ( que assinam a tradução e notas) e Manuel Silvestre (que assina o
índice de conceitos e nomes), colocando ao dispor do público de língua portuguesa o
notável tratado de Aristóteles, cuja leitura e estudo se revelam imprescindíveis aos
estudantes de Ciência Política, Filosofia, História, Sociologia e Educação.
Embora haja várias versões, em Português, da Política, nenhuma dessas versões
foi traduzida directamente do grego para o português, incluindo o original de referência.
Por outro lado, as versões anteriores são relativamente pobres em notas e índices, ao
contrário desta edição que inclui não só uma excelente tradução, mas também uma
rigorosa introdução e um aparato de notas muito informativas e clarificadoras.
A partir de agora, passa a ser indesculpável a não inclusão deste tratado de
Aristóteles como objecto de leitura e de estudo obrigatório nas licenciaturas em Ciência
Política, Filosofia, História e Sociologia. É que a leitura das obras de Aristóteles
constitui um imprescindível exercício de rigor intelectual e conceptual, um manancial
de ricas informações sobre a cultura clássica e uma fonte inesgotável de elementos de
reflexão que nos ajudam a encontrar respostas para os problemas políticos, éticos e
sociais do presente. Não é por acaso que, em épocas de crise, se assistiu a um regresso a
Aristóteles: foi assim nos séculos XII, XIII e XIV (veja-se a obra de Averróis e Tomás
de Aquino e continuadores) e foi, também, na segunda metade do século XX (veja-se a
obra de Alasdair MacIntyre). O número crescente de traduções e comentários às obras
de Aristóteles faz prever um movimento semelhante no século XXI.
A propósito da importância desta publicação, não resisto a citar a nota prévia de
João Bettencourt da Câmara: "segundo uma tradição já corrente na antiguidade, tanto a
biblioteca como a obra inédita de Aristóteles (384-322 a C.), incluindo a Política,
teriam ficado sepultadas numa cave de Scepsis, desde a sua morte, em 322, até serem
recuperadas por Sula, em 80, o que explicaria o relativo esquecimento a que foi votada,
mesmo pelos seus sucessores no Liceu de Atenas, durante esses mais de duzentos anos.
Os países também têm as suas caves, onde jazem descuradas as obras dos seus mestres e
daqueles que mestres desses mestres foram. Não que Aristóteles não tenha sido lido e
comentado em Portugal desde a Idade Média - e muito bem - ou que não haja versões
em Português da Política, que as há várias: mas todas descendentes por via de outras
línguas do original, esquecido em Scepsis pelos descendentes de Nuleu" (1).
Raul Rosado Fernandes, que assina o prefácio e a revisão literária, começa por
referir que "é um acto de coragem traduzir para o Português um texto grego com
matéria tão difícil como é a Política de Aristóteles"(2). Desde logo porque este tratado
não foi escrito de uma só vez, antes resulta da compilação das lições que Aristóteles
deu, no Liceu, durante várias dezenas de anos. Os oito livros que compõem o tratado
são o resultado, não de uma redacção sistemática, por aquela ordem, mas sim uma
compilação de apontamentos das lições do estagirita dadas ao longo dos seus anos de
docência. Como se verifica, pelas últimas linhas do livro VIII, o tratado ficou
incompleto, não se sabendo, ao certo, o que aconteceu à parte restante.
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Aristóteles procede, ao longo dos 8 livros, à descrição e análise do aparecimento
da sociedade humana representada pela cidade-estado, sistematiza, de uma forma
comparada, as diferentes constituições conhecidas na época, estabelece
correspondências entre as constituições e os diferentes regimes políticos, confronta as
vantagens e desvantagens de cada um dos regimes políticos e, por último, no livro VIII,
estabelece um plano geral de educação que, infelizmente, ficou inacabado.
A Política sintetiza quarenta anos de investigações, levadas a cabo por
Aristóteles, enquanto ensinava e dirigia o Liceu. Embora o texto esteja incompleto e
haja nele algumas imperfeições e repetições, é, sem dúvida, a par de O Príncipe de
Maquiavel e talvez do Leviatã de Thomas Hobbes, a maior obra de ciência política
alguma vez escrita e publicada. Pouco sabemos dos quatro livros da Justiça e dos dois
livros do Político, a que Platão faz referência nos diálogos. Não restam dúvidas que
foram escritos por Aristóteles ou pelos seus discípulos e que foram lidos e apreciados
no século IV a C. Infelizmente perderam-se. O mesmo poderemos afirmar das obras,
igualmente perdidas, Alexandre ou a Colonização e o Da Monarquia. E que dizer,
então, das desaparecidas 157 constituições do mundo helénico, recolhidas pelos
discípulos de Aristóteles? Se essas 157 constituições tivessem, como seria de esperar, o
valor informativo e formativo da Constituição de Atenas, escrita pelo punho do
estagirita e a única que chegou até nós, é fácil constatar a imensa perda cultural que o
desaparecimento dessas obras representou.
A recuperação do manuscrito da Política ocorreu, graças a um feliz acaso, no
ano de 80 a C., tendo estado, perdido durante cerca de 200 anos. A recuperação do
tratado foi seguido de numerosos comentários, o primeiro dos quais terá sido assinado
por Andrónico de Rodes, no século I a C. e, mais de dois séculos depois, um segundo
comentário, da autoria de Alexandre de Afrodísias, no final do século II d. C. A partir
destes comentários, as obras de Aristóteles tornaram-se, de novo, textos de estudo
fundamentais, tanto nas escolas judaicas e árabes, como em algumas escolas cristãs.
Importa referir, a bem da verdade, que a filosofia de Aristóteles foi aceite, primeiro nas
escolas árabes e judaicas e, só mais tarde e no meio de muita controvérsia, nas escolas
cristãs. Assim, por ironia do destino, a filosofia de Aristóteles foi conhecida e estudada
na Idade Média cristã, graças ao trabalho dos tradutores e comentadores árabes e judeus.
O maior dos comentadores árabes de Aristóteles foi, sem dúvida, Averróis, nascido em
Córdova, em 1126 e falecido em Marrocos, em 1198, e que, no século XII, tanta
influência iria ter na expansão da filosofia do estagirita.
Importa ter presente que o manuscrito original não seguia a ordem que acabou
por ficar estabelecida nas primeiras edições ocorridas nos primórdios da Idade Média.
Assim, os 8 livros surgem pela seguinte sequência: o livro I trata da natureza da cidade
e os seus elementos; o livro II faz a crítica das instituições políticas; o livro III analisa a
teoria da cidadania e a sua relação com os vários tipos de regime; o livro IV compara
vários regimes constitucionais; o livro V enuncia uma teoria das revoluções e golpes de
estado; o livro VI compara as democracias com as oligarquias; o livro VII trata da
felicidade e do regime melhor; o livro VIII trata da educação dos jovens.
A perspectiva global de Aristóteles, presente também na Ética a Nicómaco e na
Ética a Eudemo, é que a natureza de qualquer realidade, seja criatura viva, instrumento
ou comunidade, deve ser procurada na sua finalidade (telos). Assim, a natureza do
Homem só é realizável na comunidade social e política, porque o "Homem é, por
natureza, um ser vivo político" (3). O indivíduo isolado comporta-se ou como um Deus
ou como uma besta, mas isso não significa que o homem seja um animal gregário, como
o são as formigas ou as abelhas. O Homem é, pelo contrário, um politikon zoon (animal
político) porque dotado de liberdade e imerso numa comunidade assente no
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discernimento do bem e do mal. Os autores marxistas e, em geral, os partidários do
socialismo, costumam criticar a teoria política de Aristóteles e, em particular, a
organização da sociedade que ele defende, pelo facto de o estagirita ter aceite a
escravatura. Importa, no entanto, precisar que Aristóteles não legitimou todos os tipos
de escravatura: recusou a escravatura por convenção, criticando o direito de escravizar
prisioneiros de guerra, e menos ainda, a legitimidade para escravizar Gregos. Nas suas
obras, há várias alusões à necessidade de os escravos serem bem tratados e, ele próprio,
libertou, em testamento, os seus escravos, o que, numa sociedade baseada
economicamente na escravatura, não era uma decisão fácil de tomar. Provavelmente, o
facto de a teoria política de Aristóteles ser tão mal aceite pelos pensadores políticos
socialistas - que sempre que puderam condicionar o poder político e académico
eliminaram a leitura da Política e da Ética a Nicómaco dos curricula - reside na forte
crítica que o estagirita faz ao regime da propriedade comum dos bens e das mulheres
proposto, com leviandade, por Platão, na República. É certo que Platão teve
oportunidade de emendar essa leviandade quando escreveu, uns anos mais tarde, As
Leis, mas, não certamente por acaso, pouca gente se refere a este último tratado e
muitos se ficam pela descrição que Platão nos dá, na República, de uma comunidade
utópica, onde os bens e as mulheres eram tidos em comum.
A crítica que Aristóteles faz ao socialismo e ao comunismo no livro II da
Política é, provavelmente, a maior defesa intelectual da liberdade e da sociedade aberta
que alguma vez foi feita. Com efeito, a crítica do comunitarismo platónico, do
comunismo familiar e da propriedade comum dos bens, feita ao longo de todo o livro II,
constitui o mais certeiro ataque intelectual alguma vez feito aos regimes socialistas.
Depois de refutar, ponto por ponto, a teoria comunitarista de Platão, o estagirita lança
um derradeiro e demolidor argumento: "existem duas coisas que fazem com que os
seres humanos sintam solicitude e amizade exclusiva: a propriedade e a afeição" (4). A
propriedade comum dos bens é contrária ao amor próprio que irradia da noção de
individualidade que a propriedade privada é capaz de fazer florescer.
Sobre a propriedade comum dos bens, denominada, nos regimes comunistas, de
propriedade colectiva dos meios de produção e, nos regimes socialistas, de propriedade
pública, Aristóteles faz a seguinte crítica: "quanto mais uma coisa é comum a um maior
número, menos cuidado recebe. Cada um preocupa-se sobretudo com o que é seu;
quanto ao que é comum, preocupa-se menos, ou apenas na medida do seu interesse
particular. Aliás, desleixa-se ainda mais ao pensar que outros cuidam dessas coisas" (5).
A propriedade privada é encarada, por Aristóteles, não como uma coisa vil, mas sim
como um bem instrumental, necessário, até certo ponto, à felicidade do indivíduo: "além
disso, no que se refere ao prazer, não há palavras para exprimir a importância de
considerar uma coisa como sua; não é em vão que cada um goste de si próprio; pelo
contrário, é uma coisa natural. O egoísmo é justamente condenável, embora o egoísmo
não consista em amar-se a si próprio, mas em amar-se mais do que se deveria, tal como
no caso do amor ao dinheiro; porque todos gostam, com certeza, de coisas deste tipo.
Por outro lado, é um grande prazer ajudar e obsequiar os amigos, estrangeiros e
companheiros; e isto só é possível se a propriedade for privada" (6).
Aristóteles procede à defesa intelectual da pluralidade de formas de governo,
argumentando com a existência de diferentes tipos humanos, embora portadores de uma
natureza comum, que buscam a felicidade de diferentes modos. Se todos partilhassem o
mesmo modo de busca da felicidade, ficaria justificada a existência de uma única forma
de governo. Como imperam diferentes modos de busca da felicidade, temos de aceitar
como legítimos as diferentes formas de governo. Fiel à sua teoria do justo meio,
Aristóteles mostra a preferência por um governo assente nas classes médias e que não
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esteja ao serviço, nem apenas dos ricos, nem apenas dos pobres. O melhor regime será
aquele em que o grupo de governantes exibir a excelência humana, ou seja, as virtudes
éticas e dianoéticas. Uma constituição justa é aquele que tem como critério a defesa do
bem comum. Ao invés, as constituições injustas são as que promovem interesses
particulares. O regime que melhor convém ao conjunto das cidades deve reflectir uma
vida moderada, defender o bem comum e agir de acordo com as virtudes. Ou seja, o
melhor regime é aquele que permite a plena actualização da natureza humana, em
ordem a tornar possível a realização de uma vida boa.
Aristóteles dá, no livro III, um importante contributo para o estudo das
concepções de justiça. Não é fácil resumir os conceitos de justiça em Aristóteles. Para
uma correcta interpretação dos vários conceitos, é preciso ler atentamente a Ética a
Nicómaco, a Ética a Eudemo, a Magna Moralia e, claro está, o livro III da Política.
Reconhecendo a existência de várias espécies de justiça, Aristóteles começa por
apresentar uma primeira definição: a justiça consiste na igualdade de tratamento para os
iguais e no tratamento desigual para os que têm méritos desiguais.
Há diferentes espécies de justiça, pois a justiça proporcional não é a mesma
coisa que a justiça distributiva. E Aristóteles avisa que quando um princípio parcial de
justiça é aplicado isoladamente, surgem conflitos, sendo necessário tomar em
consideração que o conflito entre pobres e ricos não pode ser resolvido em favor
exclusivo de uma das partes. Reconhecendo que não existe uma solução final dos
conflitos sociais, as soluções possíveis assentam no estabelecimento de uma ordem justa
que beneficie a cidade e cada cidadão, sem perder de vista o bem comum, a harmonia, o
equilíbrio e a justa medida.
O tratado Política, em edição bilingue, posto à disposição do público de língua
portuguesa, pela Editorial Vega, é um livro de cabeceira, que merece ser lido e relido
por todos os que se interessam pela ciência política, pela ética e pela educação. É um
livro para estudantes, para professores e para os cidadãos em geral que, embora já não
sejam alunos, nunca quiseram deixar de ser estudantes.
Notas
1) Bettencourt da Câmara, J. (1998). "Nota Prévia", in Política - Edição Bilingue.
Lisboa: Vega, p. 7
2) Rosado Fernandes, R., op. cit. p. 11
3) Aristóteles (1998). Política. Lisboa: Editorial Vega, 1,2, 1253 a 2-3
4) Aristóteles, op. cit., 1262 b 23-25
5) Aristóteles, op. cit., 1262 a 35-40
6) Aristóteles, op. cit., 1263 b 1-5
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