Material Didático

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PAIR
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PROGRAMA DE AÇÕES INTEGRADAS E REFERENCIAIS
DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL
INFANTOJUVENIL NO TERRITÓRIO BRASILEIRO – PAIR
2 Conteúdos para Capacitação
PAIR
PROGRAMA DE AÇÕES INTEGRADAS E REFERENCIAIS
DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL
INFANTOJUVENIL NO TERRITÓRIO BRASILEIRO – PAIR
2 Conteúdos para Capacitação
Sumário
Presidenta da República
Dilma Vana Rousseff
Vice-Presidente da República
Michel Miguel Elias Temer Lulia
Apresentação ......................................................................................................................................... 07
A proteção dos direitos humanos e o enfrentamento da violência sexual contra crianças
e adolescentes: algumas reflexões
Ministra de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Maria do Rosário Nunes
Secretário Executivo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Ramaís de Castro Silveira
Maria de Lourdes Contini
Sandra Amorim ........................................................................................................................................ 09
Violência sexual – Conceitos
Leila Paiva................................................................................................................................................. 31
Defesa dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes
Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente
Carmen Silveira de Oliveira
Diretora do Departamento de Políticas Temáticas dos Direitos da Criança e do Adolescente
Marcia Ustra Soares
Jalusa Silva de Arruda............................................................................................................................... 42
O sistema de garantia dos direitos de crianças e adolescentes
Graça Gadelha
Eliane Bispo
Fernando Luz ............................................................................................................................................ 68
Coordenadora do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes
Leila Regina Paiva de Souza
Reitora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Célia Maria da Silva Correa Oliveira
Redes de proteção social à criança e ao adolescente: limites e possibilidades
Antonio José Ângelo Motti
Joseleno dos Santos ....................................................................................................................... 84
Proteção dos direitos sexuais a partir da perspectiva do público-sujeito
Rebeca Ribas ............................................................................................................................................ 95
Pró Reitora de Extensão e Assuntos Estudantis
Thelma Lucchese Cheung
Coordenador do Programa Escola de Conselhos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Antonio José Angelo Motti
Metodologia do PAIR
Eliane Bispo
Fernando Luz
Graça Gadelha
Leila Paiva .............................................................................................................................................. 105
Copyright@2011 – Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente
Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual de Crianças e Adolescentes
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Esta publicação é resultado de Convênio 702221/2008 entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e a Fundação Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul.
A reprodução do todo ou parte deste documento é permitida somente para fins não lucrativos e com a autorização prévia e formal da SDH/PR.
Título original: PAIR Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil no Território Brasileiro
Conteúdo disponível também no site da SDH www.direitoshumanos.gov.br
Tiragem desta edição: 1.000 exemplares
Impresso no Brasil
Organização
Ângelo Motti
Eliane Bispo
Fernando Luz
Graça Gadelha
Leila Paiva
Revisão
Edmilson Nascimento da Silva
Diagramação
Rogério Anderson
Ilustração
Rodrigo Mafra
Apresentação
O Pair – Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil
no Território Brasileiro - é um programa implementado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República desde 2003.
Integrar políticas e desenvolver metodologias adequadas que possam ser disseminadas e replicadas
foram (e estão sendo) objetivos centrais do Programa. O PAIR tem como base de intervenção o município e está
pautado nos eixos do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil.
A metodologia do PAIR teve sua ação experimental desenvolvida em seis municípios/estados no período
de 2003 a 2005, tendo como marco orientador e como base para intervenção os eixos do Plano Nacional de
Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil. Atualmente, a metodologia do PAIR está em franco processo
de expansão, hoje atingindo mais de 500 municípios, em 22 Estados brasileiros.
A metodologia do PAIR prevê algumas etapas para o desenvolvimento de seus objetivos e metas
estratégicas, destacando-se: a articulação política de cada município; a formação de um grupo intersetorial em cada
cidade; a realização de um Diagnóstico Rápido Participativo que desvele a ocorrência do fenômeno da violência
sexual; a realização de um grande Seminário Municipal para debater o problema e construir coletivamente um
Plano Operativo Local – POL, que operacionalize o Plano Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual contra
crianças e Adolescentes; a escolha da Comissão Local que cuidará da efetivação do POL por meio de um processo
de monitoramento; a Capacitação da Rede; e o Assessoramento Técnico sistemático.
Esta Publicação está organizada em dois volumes:
1- Apresenta textos que descrevem de forma direta o passo a passo da metodologia do PAIR;
2- Apresenta os conteúdos produzidos para os processos de capacitação da rede na área violência sexual.
Esperamos que estes Cadernos possam ser instrumentos facilitadores da implementação da metodologia
do PAIR e do processo de especialização das redes de atenção a crianças e adolescentes no Brasil.
Instituto Aliança
Escola de Conselhos - UFMS
Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República
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A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E O ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA
CRIANÇAS E ADOLESCENTES: ALGUMAS REFLEXÕES
Maria de Lourdes Jeffery Contini
Sandra Maria Francisco de Amorim
Programa Escola de Conselhos/PREAE/UFMS
Curso de Psicologia/CCHS/UFMS
Apresentação
A violência sexual contra crianças e adolescentes em suas mais diferentes faces é um fenômeno
historicamente construído e multideterminado, devendo ser considerado sempre em sua complexidade.
Sem a pretensão de esgotar o tema, o presente texto procura, em um primeiro momento, contextualizar
a violência sexual contra crianças e adolescentes, a partir de questões mais amplas sobre a violência estrutural
em nossa sociedade. Discute também a compreensão histórica das concepções de infância e adolescência, os
novos desenhos de família e as questões ligadas à sexualidade de crianças e adolescentes, a fim de subsidiar a
compreensão da construção do modo de pensar e agir da sociedade em relação a essas populações. Na sequência,
aborda a violência sexual contra crianças e adolescentes como violação de direitos humanos, e, por fim, apresenta
algumas sugestões de estratégias para a prevenção e o enfrentamento da violência sexual contra crianças e
adolescentes.
Violência Estrutural e Vulnerabilidade Acrescida
A violência sexual contra crianças e adolescentes é um problema mundial, e está presente em todas
as classes sociais, apresentando dimensões que até podem ser analisadas separadamente, mas que, para
uma verdadeira compreensão do fenômeno, devem ser entendidas articuladamente. São diversos os fatores
determinantes do fenômeno, dialeticamente relacionados na composição da intrincada estrutura social. A
violência, portanto, deve ser compreendida como produto de um complexo sistema de relações, historicamente
construído e multideterminado, que envolve diferentes realidades de uma sociedade (familiar, social, econômica,
ética, jurídica, política, etc.), assentada em uma cultura permeada por valores e representações (AMORIM, 2005).
Há que se atentar para a diversidade existente no país, em função de sua dimensão territorial, que determina
diferenças na forma de manifestação do fenômeno em cada região.
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Ao serem analisados os diferentes contextos e configurações da violência sexual contra crianças e
adolescentes, há que se considerar também que estão sustentadas no que Marcondes Filho (2001) denominou
“violência fundadora”. Segundo esse autor, a nossa cultura padece de uma deterioração radical em suas bases,
e não apenas no aspecto econômico. Nas sociedades marcadas por relações de violência, como a brasileira, a
violência torna-se uma linguagem organizadora das relações de poder, de território, de autodefesa, de inclusão
e exclusão, e institui-se como paradigma. Caracteristicamente tolerante diante dos excessos, vemos em nossa
cultura que arbitrariedades são protegidas, que desvios podem ser fonte de lucro, que há perseguição, isolamento
ou punição para aqueles que não “fazem o jogo”.
A implementação do paradigma da proteção integral, mediante reconhecimento e estímulo à autonomia
e ao protagonismo de nossas crianças e adolescentes, apresenta-se, portanto, como uma luta ideológica, cultural
e simbólica contra esses valores presentes em nossa sociedade; uma contradição social que mostra uma de suas
facetas mais perversas na violência sexual, na imposição de uma relação de dominação e subjugação do adulto
contra a criança ou o adolescente, que despreza e aniquila seu lugar de sujeito de direitos. E que, segundo Teixeira
(2001), apesar de o Brasil possuir uma legislação avançada quanto à proteção e garantia dos direitos de crianças
e adolescentes, mantém um sistema de Justiça que, via de regra, tolera a impunidade de abusadores e violadores
desses direitos.
Na mesma perspectiva de Marcondes Filho, Minayo (1994) chama de “violência estrutural” aquela que
oferece um marco de violência do comportamento e se aplica às estruturas organizadas e institucionalizadas que
conduzem à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos aos quais são negadas as conquistas da sociedade,
colocando-os em situação de vulnerabilidade. Tende a ser “naturalizada” e influi diretamente nas práticas
socializadoras. Também é importante destacar que a denominada violência estrutural não está relacionada apenas
ao aspecto econômico, a fim de que possamos desconstruir a ideia do binômio pobreza-violência presente no
imaginário social, associando as violências apenas aos grupos economicamente desfavorecidos da população.
Para que se possa fazer uma reflexão da concepção que embasa o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e em condições peculiares de
desenvolvimento, é fundamental tornar claro qual a direção teórica e epistemológica que tal princípio traz em
seu escopo. Para tanto, torna-se necessário não perder de vista que tanto a infância como a adolescência
são construções sociais, históricas, culturais e relacionais, no sentido de dar visibilidade e voz a um segmento
da população que durante séculos foi visto e falado pela voz e olhar do adulto.
A sociedade brasileira apresenta uma estrutura perversa de desigualdades, constituída não apenas pela
dominação de classes, mas também pela questão de gênero e raça/etnia. Por exemplo, a grande maioria das
vítimas de exploração sexual pertence ao sexo feminino, tem a pele negra ou é mulata.
Construção histórica da infância e adolescência1
Historicamente, a sociedade brasileira é marcada também pela relação de autoritarismo entre adultos e
crianças, como reflexo de uma compreensão autoritária do denominado “pátrio poder”.
A criança e o adolescente não têm sido considerados sujeitos, mas objeto da dominação dos
adultos, tanto através da exploração de seu corpo no trabalho, quanto de seu sexo e da sua
submissão. (LEAL, 1999, p. 20)
A violência sexual manifesta-se como fruto de relações de poder, produto de relações sociais construídas
de forma desigual. O poder do adulto (ou um não adulto, porém mais forte) sobre a criança e o adolescente, que se
manifesta “num processo de apropriação e dominação não só do destino, do discernimento e da decisão livre destes,
mas de sua pessoa enquanto outro” (FALEIROS apud LEAL; CÉSAR, 1998, p. 15). Esse uso do poder, exercido pela
força, é a antítese do exercício do poder legítimo. Este último se afirma quando fundado na proteção e no respeito,
cultivado em relações permeadas pelo diálogo e pelas trocas afetivas, em consonância com o estado de direito.
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A criança recebe o estatuto de “criança” instituído por meio de políticas sociais introduzidas pelo
Estado, apenas a partir do século XVIII. Essa infantilização da criança não é natural nem generalizável a todas
as sociedades. Ariès (1988) nos apresenta um estudo aprofundado das políticas e motivações governamentais
na instituição histórico-social da criança e da família, apontando que na civilização medieval, ou até o início da
Era Moderna, a criança passava a ser independente, cuidar de si mesma e frequentar o mundo dos adultos como
uma igual por volta dos sete anos de idade.
O processo de infantilização se inicia a partir de um interesse acentuado pela educação da criança,
desenvolvido pelo Estado, com o objetivo de assegurar uma população adulta saudável, adaptada e produtiva.
Essa política aguça o interesse dos eclesiásticos e higienistas, que se apresentavam, antes de tudo, como
moralistas. A família deixa de ser capacitada a educar os filhos, e estes passam a ser educados sob a tutela
da escola. “A aprendizagem tradicional foi substituída pela escola, uma escola transformada, instrumento de
disciplina severa, protegida pela justiça e pela política” (ARIÈS, 1988, p. 277). A criança deixa de ser educada no
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Parte desse texto compõe o original: CONTINI, M. L. J.; AMORIM, S. F. Crianças e adolescentes. Sujeitos de direitos e em condições peculiares de desenvolvimento. Algumas reflexões.
In: KASSAR, M. C. M. (Org,) Diálogos com a diversidade: Sentidos da inclusão. Campinas: Editora Mercado de Letras, 2011, p. 241-267.
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coletivo da “grande família” medieval, pois os pais passam a assumir a responsabilidade de enviar as crianças
bem cedo para a escola, incorporando as lições dos moralistas.
cultura contemporânea, a sociedade parece ansiosa para subestimar o potencial das crianças, na medida em que
aceita, sem maiores questionamentos, a naturalização dessa impotência e seu consequente fatalismo.
A partir desse momento, a criança passa a ser considerada um ser inacabado, objeto de normas
submetidas a uma hierarquia rigorosa, a fim de se tornar, amanhã, um adulto completo e bem conformado.
“Passou-se a admitir que a criança não estava madura para a vida, e que era preciso submetê-la a um regime
especial, a uma espécie de quarentena antes de deixá-la unir-se aos adultos” ( ARIÈS, 1988, p. 277).
Segundo Jobim e Souza (1994), faz-se necessária uma ruptura com a representação desqualificadora
de que a criança é alguém incompleto, alguém que constitui um vir-a-ser no futuro. Trata-se, antes, de situá-la
Essa concepção de criança permanece viva na atualidade, e permeia teorias psicológicas, pedagógicas,
educacionais e outras, que subsidiam as políticas, projetos e ações governamentais nas sociedades ocidentais
( VILHENA, 1992).
As teorias psicológicas tendem a construir e reforçar essa imagem da infância como um “ainda não”,
na medida em que traz uma ideia de ascensão gradual em sentido qualitativo, com passagem de estados de
imperfeição a estados de perfeição, de imaturidade para maturidade e de incapacidade para capacidade. Nesse
sentido, a psicologia funcionou como importante aliada do Estado moderno, quando este, em função da
industrialização, retira a criança do mercado de trabalho. Ao retirar da criança seu poder de trabalho, o Estado
reforça a ideia de proteção e controle da infância, assim como a ideologia de que a criança pertence aos
pais, cabendo a estes a principal responsabilidade sobre aquele futuro adulto. A criança nunca é considerada
individualmente, mas é condenada a uma situação de menoridade, baseando-se em um juízo coletivo, que, por
sua vez, se baseia em postulados do modelo psicológico de criança. Trata-se de uma zona de difícil atuação
junto às crianças, pois há u m a pequena distância entre a proteção à criança por parte da sociedade e a
proteção da sociedade contra a criança.
De acordo com Qvortrup (1992), os historiadores e observadores contemporâneos veem as crianças como
vítimas inocentes e indefesas de forças que elas não entendem e sobre as quais não têm a menor influência. Às
vezes, elas ainda são descritas como instrumentos de forças políticas, econômicas e sociais incontroladas, que
abusam das crianças por problemas de adultos (desde o simples abandono, passando pela prostituição, trabalho
infantil e outros, até formar grupos revolucionários ativos com armas nas mãos). Diante dessa combinação de
vulnerabilidade e exploração, é compreensível que os movimentos e organizações políticas e humanitárias
tenham se comprometido com uma causa e um denominador comum: a proteção das crianças.
Nos últimos anos, observa-se um movimento no sentido de considerar a criança um sujeito portador
dos direitos humanos. A crescente atenção aos direitos da criança fez surgir uma novidade na atual
preocupação com o mundo infantil: a importância da participação dessa população no que tange aos programas
e intervenções psicossociais. Sem a participação das crianças, os programas geram marginalidade e controle. Na
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[...] no espaço em que o tempo se entrecruza entre presente, passado e futuro,
rompendo, desse modo, com a noção de tempo vazio e linear que flui numa direção
única e preestabelecida. A criança não se constitui no amanhã: ela é hoje, no seu
presente, um ser que participa da construção da história e da cultura de seu tempo
(JOBIM; SOUZA, 1994, p. 159).
Pensar a criança como um cidadão com direitos e deveres, e não como um “vir-a-ser”, implica,
no entanto, outro modo de conceber a sociedade e a vida humana. A sociedade ocidental tem um modo de
pensamento predominantemente modelar; ou seja, pensa a vida a partir de modelos criados como ideais, e
utilizados tanto para explicar os comportamentos humanos como para sustentar valores como bom, mau,
saúde, doença, normal e marginal. Entretanto, esse pensamento somente se sustenta quando se concebe o
outro enquadrado em referenciais identitários fixos e socialmente predeterminados. A Teoria da Evolução, assim
como algumas teorias psicológicas, não somente reforçam esse modo de conceber a vida, como instituem
modos de estar no mundo, condizentes com esse pensamento modelar.
Assim, tudo que escapa aos padrões, é considerado desvio, ou “um menos” ou “ainda não”, que precisa
se enquadrar ou evoluir até o modelo estabelecido como ideal. As tribos indígenas são consideradas grupos
sociais primitivos em processo civilizatório de evolução; elas “ainda não são”; as crianças são concebidas de
modo parecido, e, finalmente, aquele que não se pauta pelos comportamentos modelares, é considerado louco
ou desprovido de razão. Destaque-se, aqui, que todos os conceitos e valores são criações sociais, e não fatos
naturais. São interpretações criadas por seres humanos em determinados contextos sócio-históricos, e,
como tais, podem e devem ser frequentemente questionados e transmutados.
Em contraposição a esse pensamento, podemos nos remeter a um pensamento processual, em que não
há uma forma prefixada, mas uma construção permanente. A vida é concebida como um processo de embate,
em que, a cada momento, forças diferentes dominam e instituem determinada configuração. Esta não é eterna,
mas contextual e transmutável. Não se trata de um processo evolutivo – do menos ou primitivo para o completo
ou maduro –, já que esses conceitos são apropriações de forças instituindo valores sociais. Trata-se, antes, de uma
processualidade que experiencia a diferença como imanente à vida e não como transcendente e/ou consequente.
Assim, se se conceber a produção de diferença como imanente à vida, os modelos vêm somente capturar essa
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produção, para que o humano possa se constituir; para que se tornem possíveis comunicação e vida social.
Se esses valores são fundamentais para a sobrevivência social, eles não são verdades imutáveis, devendo ser
transmutados no momento em que surjam outras sensibilidades ou outros modos de estar no mundo.
A criança nos surpreende, frequentemente, com modos criativos e inesperados de abordar uma série de
questões. Entretanto, os consideramos modos ingênuos ou primitivos do pensamento, algo diferente dos padrões
formais de elaboração de questões e/ou explicações para os acontecimentos. O que a criança faz ou diz é,
quando muito, interessante, curioso, pois se trata de um “ainda não”.
Da mesma forma, a adolescência adquiriu diferentes configurações no decorrer da história das civilizações.
Ariès (1978) nos mostra como na sociedade tradicional, até o século XVIII, o indivíduo passava da condição
de criança para a f a s e adulta, sem passar pela etapa considerada, posteriormente, como adolescência. Esse
indivíduo crescia misturado aos adultos, aprendia sobre a vida e como comportar-se socialmente, por meio do
contato direto com eles. Somente a partir do século XIX a adolescência passou a ser definida com características
específicas, que a diferenciam da infância e da idade adulta.
Nessa época, a aprendizagem de um ofício passou a ocupar um período de tempo maior na vida
do indivíduo, enquanto a expectativa de vida na população foi prolongada. Esses fatores tiveram como
consequência uma separação gradual entre a adolescência e o conjunto da sociedade, já que a escola de um
lado (formação) e a família de outro (tutela prolongada) foram as instituições responsáveis pela acomodação do
jovem às exigências da sociedade que se modernizava (SNYDERS apud CLÍMACO, 1991).
À medida que essas sociedades foram se tornando mais complexas e diferenciadas, o conceito de
adolescência também foi se modificando. Ultrapassando-se o modelo de produção econômica e social de
natureza mais simples, que exigia apenas força física e aprendizagem calcada na observação e na imitação, as
sociedades modernas passaram a requerer mais tempo de formação, oferecido prioritariamente em instituições
educativas, especializadas para esse fim. Clímaco (1991, p. 19) observa que, dada a crescente complexidade
da própria organização social, a exigência de maior formação e conhecimento “não é uma exigência somente
para o exercício do trabalho, mas para o próprio exercício de cidadania e para a participação social e cultural”.
Essa mesma autora refere-se à concepção de Rama (1988), quando considera que
(...) a juventude só começa a existir como fenômeno social nos grupos que, por disporem
de tempo, passam a preparar-se para assumir papéis mais complexos. E é também em
relação a esses grupos que se formulam as primeiras caracterizações de adolescência
como fenômeno psicológico. (CLÍMACO, 1991, p.18)
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Apresenta uma caracterização mais recente, sob o aspecto histórico (século XX), ainda segundo Rama,
ao colocar que o adolescente, embora apto para a procriação, em função de sua maturação sexual, e apto para
a produção social, devido a sua maturação física e mental para trabalhar, não se encontra reconhecido nem
habilitado pela sociedade para desempenhar esses papéis. Vive então um período de latência social, caracterizado
pela ambivalência entre a potencialidade e a possibilidade de fato, permeadas por grandes contradições.
Importante ressaltar, para nosso estudo, sua análise quanto às diferenças de representação da adolescência
entre classes de uma mesma sociedade. Sua reflexão parte da noção de que se a juventude implica um tempo de
moratória, esse tempo apresenta um custo econômico que apenas setores mais favorecidos da sociedade podem
sustentar. Essa limitação discriminatória resulta em desdobramentos sociais importantes, já que
(...) cada fração de classe social — trabalhadores rurais, classe operária, classe média,
média alta, extratos superiores — estará afetada e parcialmente definida, pelos níveis
culturais e educativos de suas famílias e pelo sistema institucionalizado de socialização de
sua própria classe social; por outro lado, porém, cada um dos diferentes agrupamentos
concretos de jovens se encontra condicionado e definido pelo padrão de juventude de
maior relevância social (CLÍMACO, 1991, p. 21).
Oportuno destacar a realidade social de adolescentes que logo cedo abandonam a escola para
desenvolver estratégias mais imediatas de sobrevivência, sem qualificação nem possibilidade econômica para
aquele tempo de espera. Suas famílias, na maioria, não podem ou não conseguem oferecer o cuidado necessário
para consolidação de sua formação pessoal e profissional. São adolescentes que, além de sofrer o impacto da
fragilidade de sua formação, convivem com o conflito adicional de não corresponder ao padrão de adolescência
tido como de maior relevância social. Sem dúvida, esses fatores são determinantes na constituição de sua
identidade, e revelam-se na expressão de sua subjetividade.
Entendemos que o social adquire sua dimensão histórica precisamente na configuração da subjetividade.
Na busca da compreensão do que seja a adolescência, há que se perguntar sobre a constituição
histórica
desse período do desenvolvimento, porque, para a teoria sócio-histórica, só é possível compreender qualquer
fato a partir de sua inserção na totalidade onde ele foi produzido (AGUIAR; BOCK; OZELLA, 2001, p. 169).
Em seu estudo intitulado A Emergência da Concepção Moderna de Infância e Adolescência,
Santos (1996, p. 151) afirma que
[...] os conteúdos e significados sociais — papéis, funções e atributos — da infância
e adolescência são singulares e dotados de características próprias em cada época,
sociedade e cultura. [...] Concorrem para o estabelecimento de variações intraculturais
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os cortes de gênero, etnia, contexto urbano/rural e mesmo o porte das cidades.
Cada sociedade e cultura constroem uma escala de valores que confere importâncias
distintas a cada fase da vida e define as idades privilegiadas ou paradigmáticas.
Até que ponto nos deixamos afetar e nos transformar a partir desses encontros? Ou, ao contrário,
esperamos sempre que a criança ou o adolescente se transforme, para se adequar àquilo que habituamos a
considerar bom ou ideal para o ser humano?
A concepção moderna de infância e adolescência, fundada no pressuposto de que são pessoas
em desenvolvimento, portanto objetos de proteção especial e sujeitos de direitos, alcançaram um grau de
universalidade bastante hegemônico nos países com sociedades industriais modernas de culturas ocidentais
e economia “desenvolvida” (SANTOS, 1996). Apesar de ter sido adotada como paradigma oficial na definição
de normativas legais em âmbito internacional, essa concepção não vem se efetivando de forma igualitária junto
a todas as populações. Nas palavras do autor:
Nos trabalhos de intervenção junto às crianças, adolescentes e familiares, parece-nos fundamental que
nos despojemos do lugar de especialista, do lugar de quem sabe o que é bom para o outro. Ao permanecermos
nesse lugar, não acolhemos a participação, não funcionamos como agentes de proteção, mas como agentes
reprodutores da exclusão social.
Assim, em várias sociedades do Terceiro Mundo, há um descompasso entre essa
concepção moderna de infância e as condições objetivas de existência das crianças:
a pretensa universalidade do conceito moderno de infância não foi acompanhada
da universalização das condições objetivas que levaram à sua criação e propagação
(SANTOS, p. 194).
Entretanto, a dimensão da infância e adolescência como tempo de brincar e estudar, de aprender a
participar da sociedade e de se preparar profissionalmente transformou-se, em nossa sociedade, em direito
adquirido. Hoje, o Estatuto da Criança e do Adolescente materializa exatamente a expressão legal do ser
criança e adolescente.
Para que possamos efetivar a participação da criança nos programas de transformação social, precisamos
questionar esses valores que levam em conta a diferença como algo menor ou um desvio. Ou seja, devemos
nos perguntar se o nosso pensamento dominante, modelar e excludente, tem conduzido à conformação de uma
sociedade justa e igualitária. O conceito de participação implica uma potencialização conjunta em que não há
um objeto a ser estudado e/ou transformado, mas todos os envolvidos produzem algo a partir dos encontros.
Para que possamos funcionar como dispositivos de transformação social, junto às comunidades, precisamos,
em nossas intervenções, acolher a produção do outro em sua diferença, e não transformá-la naquilo que
valorizamos como adequado. Estar nesse lugar significa estarmos em um movimento de mudança permanente,
em que afetamos e somos afetados e, nesse processo, todos somos instituídos.
Nosso pensamento contemporâneo tende a funcionar a partir de ideais e modelos generalizáveis.
Entretanto, ao nos situarmos nesse modo de representação, perdemos o movimento e a riqueza do inesperado,
cristalizamos a nós mesmos e ao outro. O mundo da criança e do adolescente não está ainda sedimentado nas
“verdades eternizadas” do mundo adulto.
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Jobim e Souza (2008) ressalta que nessa nova concepção de infância, se por um lado podemos
perceber a criança ou o adolescente como sujeito de direitos, abrindo espaço para uma participação efetiva
desse segmento social, por outro, esse é um campo minado por controvérsias que precisam ser enfrentadas
principalmente pelo aparelho jurídico-legal, levando em conta situações práticas que podem se tornar
objeto de questionamentos, tais como: A criança tem responsabilidade penal pelos seus atos? A criança pode
requerer a reparação de danos físicos e morais? A criança pode decidir se irá frequentar uma escola, com quem
morar, onde morar? Concordamos também com Jobim e Souza (2008, p. 12) quando ele afirma que, no contexto
atual, crianças e adolescentes têm que ser compreendidos em termos processuais e como seres relacionais “a
partir dos posicionamentos assimétricos a que são submetidos no confronto com as expectativas e demandas do
mundo dos adultos em relação a elas”.
Novas configurações familiares e seus desafios
Nesse contexto, faz-se necessário refletir também sobre as concepções de família, visto que grande
parte das violações dos direitos de crianças e adolescentes envolve membros de suas próprias famílias.
Ao longo da história, a família assume características e formas extremamente diversificadas em cada
cultura, dependendo dos sistemas sociais, políticos, econômicos e religiosos. Nesse sentido, Bruschini (1997,
p. 50) alerta que, para se estudar a família, o primeiro passo consistiria em “dissolver sua aparência de
naturalidade, percebendo-a como uma criação humana mutável”. Afirma que a família assume configurações
diversas em sociedades e grupos sociais heterogêneos, e que o modelo de família nuclear, que ainda hoje nos
parece ideal, só se consolidou por volta do século XVIII.
Osório (2002, p. 13) aponta que não há um conceito unívoco de “família”, e que podemos encontrar
conceitos advindos da sociologia, da antropologia e da psicologia, devendo eles ser compreendidos numa
perspectiva histórica. Há uma multiplicidade de dimensões contidas nesse grupo social, e a compreensão do
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conceito pode variar conforme a dimensão enfocada. Assinala ainda que dizer que a família é a u nidade
básica de interação social não basta para situá-la como grupamento humano no contexto histórico-evolutivo do
processo civilizatório.
Bruschini destaca que em Freud – que revolucionou o campo científico quando mostrou que a mente não
é algo previamente dado – encontramos o ponto de partida para a apreensão da família como uma “complexa
teia de vínculos e de emoções”. Complementa ainda que “depois de Freud, os estudos de família não podem
mais analisar as relações familiares sem levar em conta o nível psicológico das relações sociais que se passa
em seu interior” (BRUSCHINI, 1997, p. 62).
Segundo Pichon-Riviére (apud OSÓRIO, 2002, p. 14), a família é responsável por proporcionar o “marco
adequado para a definição e a conservação das diferenças humanas, dando forma objetiva aos papéis
distintos, mas mutuamente vinculados, do pai, da mãe e dos filhos, que constituem os papéis básicos em todas
as culturas”.
Ceccarelli (2007) faz uma discussão extremamente interessante sobre os chamados novos arranjos
familiares. Inicia com uma reflexão sobre os fundamentos que sustentam a noção de família, apontando para
o fato de que:
[...] a transformação dos genitores em pais não é atrelada ao fato físico que dá lugar
ao nascimento de uma criança. Ou seja, nascer da união de um homem com uma
mulher não basta para ser filho, ou filha, daquele homem e daquela mulher. Ou ainda:
colocar uma criança no mundo não transforma os genitores em pais. O nascimento
(fato físico) tem que ser transformado em filiação (fato social e político), para que,
inserida em uma organização simbólica (fato psíquico), a criança se constitua como
sujeito. Esses três fatos - físico, social e psíquico - guardam cada vez menos relações de
dependência entre eles (CECCARELLI, 2007, p. 93).
Se entendermos que o que define o sistema representativo “família” pode variar segundo a sociedade,
então é possível concluir que a representação “família” compõe-se de significantes conscientes e/ou inconscientes,
materializados nas categorias que organizam o nosso mundo social. Na visão de Ceccarelli (2007, p. 95),
“qualquer modelo de família é tributário da ordem social que o produz”, em oposição a uma visão ideológica
que apresenta a família não como um construto social arbitrário e convencional, mas, antes, como algo natural,
por vezes sagrado, universal e imutável (SOUSA FILHO, 2003).
leitura sobre os fundamentos que sustentam determinada ordem social. Ceccarelli (2007) diz que, não sem razão,
essas novas configurações familiares são, na maioria das vezes, sentidas como ameaças à estabilidade social,
evidenciando talvez uma ilusão, no imaginário, de que, se fosse fixa, nada a ameaçaria, e não haveria mudanças.
Mas basta olhar essa questão do ponto de vista histórico, para se perceber a fragilidade dessa “ilusão”.
A partir dos séculos XVI e XVII, o Estado começa a participar mais de perto da vida dos indivíduos dentro
da ordem política que ele queria manter (LENOIR apud CECCARELLI, 2007). É o momento em que o discurso
ideológico produzido apresentava a ordem familiar instituída como algo natural, logo, inquestionável. Para
Ceccarelli (2007), pode-se dizer que a família é uma coisa “estádica”, ou seja, criada pelo Estado, na medida
em que é o Estado que controla a produção simbólica que determina a família. Por meio de critérios que
ele mesmo estabelece, o Estado moderno está sempre “fabricando” a família e produzindo dispositivos que
garantam a sua estabilidade - regulamentações patrimoniais, de sucessão, de sobrenome - segundo uma moral
rigorosa: demarcação entre filhos legítimos e naturais, o lugar da concubina, etc.
Esse modelo de família, centrado no poder patriarcal, encontra ressonância em uma moral cristã que, a sua
maneira, defende esses valores - a indissolubilidade do casamento, a monogamia, a fidelidade -, posicionandose contra tudo que os ameaça: contracepção, aborto, união livre, uso de preservativo, homopaternidade e outros
tipos de organização familiar. A história nos mostra que as famílias nem sempre foram como são hoje, e as
uniões de duas pessoas nem sempre tiveram o caráter sagrado como o é para o cristianismo. Os primeiros
séculos depois de Cristo foram marcados por intensas lutas político-econômicas entre a moral cristã incipiente
e as práticas ditas “pagãs”, de concubinato e divórcio, tão comuns no mundo antigo.
Ceccarelli (2007) discute outro caminho, procurando responder por que as novas organizações familiares
se tornam ameaças à hegemonia do modelo de família tradicional, muitas vezes provocando reações tão
truculentas. Diz o autor que
[...] o que está, no fundo, sendo ameaçado é a posição libidinal que sustenta a representação de
família no imaginário judaico-cristão, ou seja, os ideais culturais. Os novos modelos de família, além das
“ameaças” que provocam, não encontram (ainda) nenhuma representação (Vorstellung) pulsional
no discurso social para respaldar-se (CECCARELLI, 2007, p. 96).
Dessa forma, j á n ã o m a i s s e s u s t e n t a o argumento segundo o qual a presença do par homem/
mulher é indispensável para a produção de “subjetividades sadias”. Significa dizer que não há uma forma de
organização familiar ideal que, inequivocamente, garantiria um desenrolar mais sadio, ou mais patogênico, para
a constituição do sujeito: no aspecto psíquico, as famílias são sempre construídas e os filhos sempre adotivos,
pois são os laços afetivos que, como todo investimento, vão organizar o significante família.
Desse ponto de vista, é necessário fazer indagações mais profundas sobre a família, implicando uma
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Infância, Adolescência e Sexualidade
Ao longo da vida, todos passamos pela grande aventura do desenvolvimento para podermos alcançar
autonomia. No que tange ao desenvolvimento da sexualidade, crianças e adolescentes não constituem um grupo
homogêneo. Na realidade, eles crescem em diferentes culturas, o que torna necessário considerarmos formas
variadas para poder compreender os seus diferentes momentos de vida e busca de autonomia. Na convivência
com os adultos, as crianças vão participar das suas relações afetivas significativas, observando os modelos mais
aceitos socialmente. Inicialmente, esses modelos são imitados, para, num segundo momento do desenvolvimento
psíquico, poder construir a sua identidade, que é produto de diferentes escolhas que marcam a sua história de
vida. Esse é o momento do processo de adolescer do indivíduo.
A adolescência é marcada, portanto, como uma época da afirmação social da identidade e da consolidação
da orientação sexual. Sobre essa temática, Barros (2002) faz uma interessante discussão, abordando a identidade,
os papéis e a escolha sexual do adolescente. Para a autora, a identidade sexual é o sentimento e a convicção
interna de ser homem ou mulher. Essa formação de identidade de gênero torna-se um processo complexo que
abarca tanto elementos conscientes e inconscientes associados ao sexo biológico, como qualidades produzidas
pela sociedade como adequadas à condição do masculino ou do feminino.
Já os papéis sexuais estão mais na dependência de padrões culturais, e são os conjuntos de comportamentos
e condutas esperados do indivíduo, conforme seu gênero. Esses papéis modificam-se de acordo com a época,
local e grupo, ainda que dentro de uma mesma cultura. Têm havido grandes mudanças nos últimos anos quanto
aos papéis de gênero; mas ainda há muitos estereótipos sendo perpetuados na educação (transferidos de pai
para filho ou por instituições). Os estereótipos sempre acompanham a crise de identidade, e a necessidade de
corresponder a eles pode gerar mais conflitos.
Nogueira Neto (2008) afirma que a sexualidade humana deve ser reconhecida e garantida como um dos
direitos fundamentais da pessoa humana, e, consequentemente, os direitos à afetividade e à sexualidade da
criança devem ser garantidos. Destaca ainda que a liberdade afetivossexual de crianças e adolescentes
[...] tem o seu exercício limitado pelas leis em função da sua peculiar condição de
desenvolvimento biopsicossocial, mas que os direitos sexuais devem ser garantidos
de maneira emancipatória e não castradora (2008, p. 57).
A sexualidade humana possui uma ampla dimensão, e, em cada etapa evolutiva, apresenta características
singulares. A sexualidade infantil, negada por séculos, e ainda hoje em muitos contextos, embora apresente
diferenças em relação às manifestações da sexualidade adulta, não pode ser desconsiderada. Da mesma forma
que a sexualidade de adolescentes deve ser compreendida em toda a sua amplitude, e não reprimida ou tratada
de forma negativa.
Freud, criador da psicanálise, introduziu a expressão sexualidade infantil, que desde logo gerou
polêmicas e confusão conceitual. Na atualidade, prevalece o entendimento de que a sexualidade não designa
apenas as atividades e o prazer que dependem do funcionamento do aparelho genital, mas também toda uma
série de excitações e de atividades presentes desde a remota infância, e que proporcionam uma satisfação de
alguma necessidade fisiológica fundamental (ZIMERMAN, 2001).
É a partir da psicanálise freudiana que tomam corpo as reflexões acerca da sexualidade infantil, e surgem
as preocupações acerca do desenvolvimento psicossexual de crianças e adolescentes. Cada momento desse
desenvolvimento é marcado por características peculiares, que são processadas de acordo com a maturidade
biopsicossocial da criança ou do adolescente, produzindo registros psíquicos das suas vivências.
Ao direcionamento do desejo chamamos de orientação sexual. O desejo sexual pode ter como objeto
pessoas do mesmo sexo (homossexualidade), do outro sexo (heterossexualidade) ou de ambos os sexos
(bissexualidade). A orientação sexual não pode ser a medida do valor de uma pessoa, nem deve influenciar o
julgamento moral de alguém. O adolescente deve compreender que, independentemente da escolha sexual, o
mais importante é viver a sexualidade respeitando a si e ao outro.
A não-diferenciação entre vivência e expressão da sexualidade em diferentes faixas etárias,
desconsiderando que crianças, adolescentes e adultos apresentam distintas características físicas, psicológicas
e sociais, interferem no desenvolvimento de uma sexualidade saudável. As expressões da sexualidade e
a s interações compatíveis com a idade da criança e do adolescente, sem violências e discriminações, são
fundamentais para a dinâmica societária, em que sujeitos possam interagir com a diversidade de visão de
mundo, de escolhas e de construção do seu projeto de vida, pautados nos direitos e deveres de cidadão.
É muito comum presenciarmos grandes sofrimentos psíquicos quando o comportamento do jovem não
corresponde às expectativas sociais para o seu gênero. Sentimentos de angústia, rejeição, exclusão e menos valia
estão presentes quando a crítica, o deboche ou a recriminação não permitem espaço para a discussão sobre a
definição sexual e a elaboração interna desse processo.
Nesse sentido, Libório e Castro ( 2 0 0 8 ) afirmam que a sociedade brasileira mostra-se permissiva ao
deixar parecer que crianças e adolescentes p o s s u e m “desejos sexuais” similares aos dos adultos, o que
reforça a fantasia daqueles que negam a diferença entre os seus desejos e os da população infantojuvenil.
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Referindo-se a o t e m a , Leal (2001) afirma que o projeto societário hegemônico atual também
convive e é conivente com relações sociais explicitamente desiguais, fundamentadas na repressão sexual,
no patriarcalismo, na violência de gênero, etnia e raça, na apartação social, na supremacia do mercado, na
propriedade e no abuso do poder do adulto contra a criança e o adolescente. Essa sociedade possibilita tanto
a comercialização do sexo de crianças e adolescentes, como a s u a banalização, tendo como produto de
consumo crianças e adolescentes (LIBÓRIO; CASTRO, 2008).
Em seu artigo 3º, determina o ECA que
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,
sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros
meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Portanto, tanto a negação da sexualidade, como a desconsideração de suas características compatíveis
com as diferentes idades, caracterizam-se como violação de direitos de crianças e adolescentes.
A violência sexual contra crianças e adolescentes como violação de direitos
A violência sexual contra crianças e adolescentes está inserida em um cenário ambivalente, entre a
legislação instituída e o desrespeito institucionalizado.
Como visto anteriormente, retomemos a ideia de que a violência sexual contra crianças e adolescentes
manifesta-se de forma complexa, apresentando dimensões que podem ser analisadas separadamente, mas que,
para uma verdadeira compreensão do fenômeno, devem ser entendidas articuladamente (AMORIM, 2005).
São
diversos os fatores determinantes do fenômeno, todos dialeticamente relacionados na
composição da intrincada estrutura social.
Seja na forma de abuso ou de exploração, a violência sexual repercute na vida de crianças e adolescentes,
causando danos que não podem ser generalizados em sua forma e extensão. Há consenso de que o impacto
no desenvolvimento desses sujeitos é sempre presente, em maior ou menor amplitude.
Neste contexto, consideramos que devemos refletir sobre como enfrentar esse fenômeno tão complexo
de forma a garantir a participação social na promoção da igualdade e valorização da diversidade: gênero, raça,
etnia, deficiência, orientação sexual e procedência regional, que atravessam a violência sexual.
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No Brasil, que ocupa um dos primeiros lugares quando se trata de desigualdades sociais, temos assistido
a situações extremas de violação de direitos em diversos grupos – crianças, adolescentes, mulheres, indígenas,
negros, homossexuais, portadores de deficiência, portadores de transtornos mentais e outros. Embora
reconheçamos que haja especificidades em cada um deles, o que os torna mais ou menos vulneráveis,
além de haver sobreposição de situações de vulnerabilidade, a reflexão proposta será centrada no conjunto
dos “diferentes” e na interpelação do papel da sociedade no trato da diversidade e na garantia dos direitos
humanos, especialmente quando pensamos em nossas crianças e adolescentes.
Os índices de iniquidade no país são alarmantes e falam por si mesmos quando apontam as condições
desumanas em que vivem os segmentos historicamente vulnerabilizados pela exclusão e pela discriminação.
Nesse cenário, nossas crianças e adolescentes são expostos a todo tipo de expropriação de direitos, o
que exige do Estado e da sociedade uma mobilização e uma articulação que atentem para essas realidades.
A implantação e implementação de políticas públicas e o controle social devem ser o caminho utilizado pela
sociedade e governos em todos os níveis para promover a igualdade e a valorização da diversidade brasileira.
Não é tarefa nada fácil, pois, para enfrentar, na prática, a exclusão e a violação dos direitos humanos
das diferentes situações aqui referidas, faz-se necessário, partindo da nossa “humanidade”, pensar no direito à
diferença e à igualdade e no respeito à diversidade. No nosso caso, levando-se em conta ainda as especificidades
e as vulnerabilidades que envolvem a realidade das crianças e dos adolescentes brasileiros. Pela primeira vez
esse tema vem sendo enfocado de modo explícito.
A V Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente apontou, como uma das dificuldades
na implementação do ECA, a incipiente mobilização da sociedade para o exercício do controle social, e indicou
como estratégia “envolver a sociedade civil para o exercício qualificado do controle social na universalização
dos direitos da criança e adolescente”. É essa mobilização que pretendemos quando abordamos de modo
provocativo e reflexivo um tema que a sociedade tem insistido em “olhar sem ver”. O silêncio e as negações
perpetuam a violência e o sofrimento daqueles cujos direitos são expropriados, por não terem o “status” de
pertencimento a algum grupo.
Após a Segunda Guerra Mundial, na esteira da tragédia do holocausto, o mundo tomou conhecimento do
sofrimento de um povo por não fazer parte de uma “raça superior” idealizada por um governante perverso.
As organizações internacionais tanto pressionaram que, em 10/12/1948, a Organização das Nações Unidas
(ONU) promulgou a Declaração Universal dos Diretos Humanos, como o ideal comum a ser atingido por
todos os povos e todas as nações.
23
Assentada nos princípios liberdade, igualdade e fraternidade, a Declaração Universal dos Diretos Humanos
dispõe, em seu artigo II:
Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração,
sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra
natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Esse artigo nos coloca diante de um paradoxo: “somos ao mesmo tempo iguais e diferentes” ou, “mesmo
diferentes, somos iguais em dignidade”. Ser igual não é sinônimo de ser idêntico. Somos iguais em direitos,
mas diferentes em singularidades.
O ECA, tanto no seu artigo 5º – nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão – como no capítulo II – Do Direito à
Liberdade, ao Respeito e à Dignidade, garante às nossas crianças e adolescentes o princípio da igualdade. São
essas as bases da nossa reflexão.
O desenvolvimento de uma cultura de direitos humanos na sociedade brasileira esbarra em desafios
de diversas ordens, especialmente no que tange à superação do abismo das desigualdades e do desrespeito à
diversidade, na contramão do que preconizam a Declaração Universal dos Diretos Humanos e o ECA.
Toda forma de preconceito – racismo, homofobia, sexismo, etc. – deve ser fortemente enfrentada. O
respeito às diferenças deve tomar o lugar da estranheza e da discriminação. Temos o dever de identificar fatores
que interferem na promoção da igualdade.
Na análise dessa questão, convém enfatizar a dimensão subjetiva sobre a qual se assentam valores,
ideias, sentimentos e atitudes que legitimam ou invalidam as práticas sociais que, como tais, favorecem ou
mutilam os direitos humanos. Isso nos remete à reflexão “pessoal” sobre quais práticas temos assumido
em nossos contextos de trabalho e inserção social que coadunam com a proliferação da cultura do respeito à
diversidade, na perspectiva dos direitos humanos, e quais aquelas que direta ou indiretamente colaboram para
a manutenção do preconceito e da discriminação de pessoas ou grupos.
Portanto, pensar em mecanismos de controle social requer desvendar as bases (inclusive subjetivas)
sobre as quais se assentam nossos modos de pensar e determinam nossos modos de agir. Sempre criticamos
o Estado como “mau agente” dos direitos humanos, mas também estamos implicados, toda sociedade está
implicada.
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Como seres vivos, diferenciamo-nos por nossa capacidade de dar significados às coisas,
construir uma cultura. Um conjunto de crenças e costumes que vão criar olhares específicos próprios de cada
grupo social, étnico, que demanda princípios de conduta, isto é, uma ética que possibilite e garanta a cada um
dos indivíduos participantes de determinado grupo a noção de pertencimento. A diferença pode tanto aproximar
como distanciar grupos.
Como seres humanos, contraditórios e instáveis, temos a capacidade de estabelecer princípios, leis e
declarações, como também de contradizê-los. Conceber o outro diferente de nós, como detentor de direitos
iguais, parece ser muito difícil em nossa cultura, na qual discursos prescritivos, normativos e higienistas se
mantêm atrelados às ações voltadas para o controle, especialmente das populações de crianças e adolescentes.
Entramos no século XXI sob o legado de uma sociedade neoliberal, globalizante, homogeneizante, que
deseja apagar as diferenças, produzir a sensação de que todos somos iguais e que aqueles que são “menos
iguais” são “piores”. Desenvolvemos aí a noção de preconceito, que, segundo Mezan (1998, p. 226) é “o
conjunto de crenças, atitudes e comportamentos que consiste em atribuir a qualquer membro de determinado
grupo característica negativa, pelo simples fato de pertencer àquele grupo”.
Na sociedade atual, o “diferente” de nós não tem a humanidade plenamente reconhecida, porque só
é visto como humano aquele com o qual posso me identificar plenamente. Gostamos mais daqueles que mais
se parecem conosco. O comprometimento desse processo identificatório produz um desconfortável silêncio e
uma perigosa omissão, que pode constituir-se nas bases de uma intolerância generalizada com tudo que possa
representar diferença.
Nesse sentido, Bento (2002, p. 71) questiona “o que se pode esperar da identidade de um país que
se mantêm silencioso sobre quatro séculos da sua história e tem vergonha da metade de sua população que é
mestiça ou negra?”.
Devemos nos preocupar com crianças e adolescentes que, em sua peculiar condição de desenvolvimento,
encontram-se em processo de formação da identidade, de princípios e valores. Temos que nos preocupar com o
que a sociedade vem passando para as futuras gerações, principalmente, de modo silencioso e omisso, o trato
com a diversidade.
Como, então podemos garantir os direitos de uma menina ou adolescente negra, portadora de deficiência,
residente em um quilombo? Como garantir os direitos da criança e do adolescente índios? Como abordar
a orientação sexual dos nossos jovens? Como incluir essa discussão nas agendas do governo e da sociedade?
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Temos que sair do imobilismo individualista e deixar de ser coniventes com formas atrozes de violação
de direitos – especialmente com os grupos vulnerabilizados aqui mencionados – que muitas vezes assumem
a “pecha” de renovadas formas de controle social, a exemplo dos grupos de extermínio de adolescentes
construído no interior de instituições publicamente reconhecidas.
As ideias de desigualdade e preconceito remetem-nos inevitavelmente à ideia de exclusão. A exclusão não é
uma coisa ou um estado, é processo complexo e multifacetado que envolve o homem por inteiro e suas relações com
os outros. Não tem uma única forma, e não é uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba
a ordem social; pelo contrário, ela é produto do funcionamento do sistema (SAWAIA, 1999).
A Declaração Universal dos Diretos Humanos e o ECA não têm funcionado como “antídotos” da lógica
de exclusão que permeia a sociedade. Estamos sendo convocados a explorar a nossa “humanidade”, não só no
que tange às nossas capacidades organizativas, ainda que com avanços e recuos. Temos o dever de sensibilizar
e mobilizar a sociedade para a construção e monitoramento de políticas que rompam com a lógica excludente a
que temos assistido em muitos contextos. Mas, sobretudo, estamos convocados a explorar nossos sentimentos,
pensamentos, atitudes, comportamentos diante da diversidade.
As questões acima r e f e r i d a s nos ajudam a compreender um pouco o contexto em que emerge a
violência sexual de crianças e adolescentes diante de um emaranhado de fatores tão complexos e desafiantes.
A partir dessa nossa reflexão, cabe então a pergunta: Como todos nós – sociedade, família e atores da rede de
proteção – devemos enfrentar essas questões? Não há respostas simples e uma delas pode ser a Psicologia, ao
descrever os fenômenos psicológicos por meio da categoria “subjetividade”.
A subjetividade é constituída e constantemente ressignificada nas e pelas mediações sociais, presentes
ao longo da vida do homem, por meio do processo de internalização. Ao nascermos, entramos em contato
com um mundo socialmente organizado, num determinado tempo histórico, que provoca um mergulho num
mar de significados que nos chegam, ao longo da nossa vida, através do outro. Tornamo-nos nós mesmos
através dos outros. Será por meio das relações que vamos estabelecendo em nossa história de vida, que teremos
a possibilidade de nos integrar progressivamente nas relações sociais e, por meio delas, aprendermos a nos
reconhecer como sujeitos.
Segundo Bakthin (1985, p. 360),
Tudo que me diz respeito, a começar pelo meu nome, e que penetra na minha consciência, vem-me do
mundo exterior, da boca dos outros (da mãe, etc.), e me é dado com a entonação, com o tom emotivo
dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros.
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Quem é para nós, então, essa criança, esse adolescente que se constrói por meio das relações da sua
vida com os outros? É o sujeito concreto que se caracteriza basicamente por sua condição de ser social,
de ser histórico, e finalmente sua condição de pertencer à natureza, mas poder se diferenciar dela, através das
suas possibilidades de produzir meios de sobrevivência, que serão as matrizes geradoras de todas as relações
humanas estabelecidas e, consequentemente, da produção da cultura e do conhecimento.
Se temos essa compreensão sobre a construção da subjetividade na criança e no adolescente, torna-se
necessário enfrentar com clareza e coragem o fenômeno violência sexual.
Considerações Finais
No que se refere à prevenção e ao enfrentamento da violência sexual, merecem destaque algumas
estratégias:
o
elaboração de políticas públicas mais eficientes para o segmento da população que se encontra em
situação de extrema pobreza e exclusão social, já que a violência estrutural é um dos fatores
responsáveis pelo grande número de crianças e adolescentes envolvidos em casos de exploração
sexual no país;
o
construção de uma Rede de Proteção Social articulada;
o
manutenção das crianças e adolescentes no sistema educacional;
o
análise dos fatores psicossociais das famílias;
o
incentivo do protagonismo infantojuvenil;
o
compreensão da educação como parte fundamental de um conjunto mais amplo de medidas
preventivas no âmbito das políticas públicas;
o
formação e capacitação continuada dos profissionais da área da saúde, do judiciário, da
educação e da assistência social;
o
promoção de trabalhos na área da orientação sexual para crianças e adolescentes nos diferentes
níveis de ensino;
o
enfrentamento das práticas culturais e tradicionais que autorizam e banalizam a exploração sexual
de crianças;
o
reflexão permanente sobre a matriz moral e religiosa que direciona o comportamento de muitos
profissionais em dissonância com as normativas legais, especialmente no que tange aos direitos
sexuais e reprodutivos;
27
o
revisão e reformulação de valores socioculturais associados à sexualidade e aos papéis sexuais,
passando a ver a sexualidade não mais como genitalidade, mas sim como expressão da personalidade
humana;
Referências
o
os processos educativos e formativos devem priorizar a perspectiva de gênero, de classe social e
etnia, e, dessa forma, desarticular a violência em suas diversas manifestações;
o
dentro do processo de escolarização formal, é lembrado que as propostas de educação sexual não
devem privilegiar somente o conhecimento objetivo, mas sim a experiência vivencial que subsidie
modificações efetivas na maneira de lidar com a sexualidade;
AGUIAR, W. M. J.; BOCK, A. M. B.; OZELLA, S. A orientação profissional com adolescentes: um
exemplo de prática na abordagem sócio-histórica. In: BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. da G. M.;
FURTADO, O. Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em Psicologia. São Paulo: Cortez, 2001.
o
adequação da educação formal aos novos desenhos de família brasileira (monoparental, formada a
partir de dois adultos do mesmo sexo);
o
inserção da discussão da sexualidade na perspectiva dos direitos humanos.
AMORIM, S. M. F. Reflexões sobre o enfrentamento da exploração sexual comercial de crianças e
adolescentes. In: SILVA, A. S.; SENNA, E.; KASSAR, M. (Org.) Exploração sexual comercial de crianças
e adolescentes e tráfico para os mesmos fins: contribuições para o enfrentamento a partir da
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proyectos/ipec/documentos/esci_trafico_br.pdf>. Acesso em: 10.08.2011.
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
Em nossa cultura ainda prevalecem as concepções adultocêntrica, f ocada no desejo do adulto e no
controle das populações infantojuvenis; e androcêntrica (centrada na figura masculina). Nesse contexto,
talvez o maior dos desafios seja equacionar a tensão entre proporcionar maior autonomia a crianças e
adolescentes, especialmente na expressão da sexualidade, considerando as peculiaridades do desenvolvimento,
e possibilitar práticas que facilitem a omissão daqueles que deveriam proteger e/ou a impunidade daqueles que
violam os direitos de crianças e adolescentes, muitas vezes responsabilizando-os por isso.
BAKHTIN, M. Estética de la creácion verbal. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Argentina Editores, 1985.
Como é possível constatar, essa não é uma tarefa fácil, nem que dependa de apenas alguns segmentos
sociais, mas é de todos nós, comprometidos com o ECA, segundo o qual todas as crianças e adolescentes devem
ter uma proteção especial, portanto a vivência de um processo de desenvolvimento e socialização satisfatórios,
na sua comunidade de origem, que possibilite a eles a elaboração de sua identidade, autonomia e capacidade
de ação, para q u e , n a v i d a a d u l t a possa usufruir plenamente da sua sexualidade.
BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispóe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá
outras providências.
Precisamos ter a clareza de que proteger é permitir a emancipação. É necessário que crianças e
adolescentes sejam sujeitos ativos das suas histórias, e não meros objetos de intervenção por parte daqueles
que tutelam, ou de satisfação daqueles que violam os seus direitos, incluindo os direitos sexuais.
BARROS, M. N. S. Saúde sexual e reprodutiva. In: CONTINI, M. L. J. et al. Adolescência e psicologia:
concepções, práticas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Psicologia, 2002.
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Leila Paiva1
1 – Apresentação
O presente texto aborda aspectos conceituais da violência sexual cometida contra crianças e adolescentes. Para tanto,
divide-se em duas partes:
I – o processo histórico no Brasil que culminou com a adoção do enfrentamento da violência sexual contra crianças e
adolescentes como prioridade na agenda da sociedade civil e das políticas públicas; e
II – análise das definições relativas à violência sexual, comumente utilizadas nas discussões sobre o tema, entendendose este como um conceito sociojurídico, que não pode ser abordado isoladamente ou, pelo menos, fora do contexto de
afirmação dos direitos sexuais de crianças e adolescentes.
2–
Breve Histórico
Considerando-se o período desde a instituição do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil,
no ano 2000, até os dias atuais, o país assinala uma década de avanços importantes na área do reconhecimento e do
enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. O Plano Nacional serviu como referência para
organizações não-governamentais, especialmente no âmbito da mobilização e do monitoramento de políticas públicas e
para sua formulação por parte das três esferas governamentais.
Dentre as realizações previstas no Plano Nacional de 2000, destacam-se as seguintes conquistas: instituição do Comitê
Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e da Comissão Intersetorial de Enfrentamento
da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes; fortalecimento das redes locais/estaduais; realização de diversas
campanhas de sensibilização sistemáticas (Carnaval e 18 de maio – Dia Nacional de Luta Contra a Exploração e o Abuso
Sexual); crescente adesão de organizações públicas e privadas ao enfrentamento da violência sexual; visita do Relator
Especial das Nações Unidas sobre venda, prostituição infantil e utilização de crianças na pornografia2; adoção da experiência
de Códigos de Conduta contra a Exploração Sexual em diferentes segmentos econômicos (turismo, transporte etc.); criação
do serviço de disque denúncia nacional gratuito – Disque 100; e realização do III Congresso Mundial de Enfrentamento da
Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, no Rio de Janeiro, em 2008.
MINAYO, M.C.S. A violência social na perspectiva da saúde pública. In: Cadernos de Saúde Pública,
10 (supl.1) p. 7-18. Rio de Janeiro, 1994.
Mais recentemente, o relatório de 2010 do Instituto Interamericano del Niño, la Niña y Adolescentes, da Organização dos
Estados Americanos (OEA), destacou ações da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) do
Brasil como referência no enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes. O documento se referiu ao
NOGUEIRA NETO, W. Direitos afetivo-sexuais da infância e da adolescência: o papel dos conselhos de direitos.
In: ABMP; CHILDHOOD. Criança e adolescente: direitos e sexualidade. Caderno de Fluxos e de Textos. São
Paulo, 2008, p. 56-67.
1
Advogada, especialista em processo penal, foi advogada do Cedeca-CE, uma das sistematizadoras do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil, e
coordenou o Programa Global de Combate ao Tráfico de Seres Humanos, do Ministério da Justiça / UNODC, o Programa de Assistência a Crianças e Adolescentes Vítimas de Tráfico para Fins
Sexuais, da Partners of the Americas e da Usaid, e o Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República.
2
O relator da Organização das Nações Unidas (ONU) Juan Miguel Petit esteve no Brasil em 2003, para fazer um levantamento sobre crimes contra crianças e adolescentes,
especialmente os casos de abuso e exploração sexual comercial e pornografia na internet.
30
31
serviço Disque 100 – canal de denúncias de violência contra crianças e adolescentes. “Este serviço se configura como a
principal fonte de dados quantitativos relativos à violência contra crianças e adolescentes”, diz o relatório.
3– Os Conceitos da Violência Sexual
Segundo Faleiros (2000), a literatura sobre o tema assinala uma preocupação em dividir (classificar) a violência em três
modalidades: física, psicológica e sexual. A isso se acrescem referências à violência estrutural e à violência institucional.
Trata-se de uma tentativa de se compreender o fenômeno em suas diferentes manifestações. Porém, quando da análise de
situações concretas de violência, verifica-se que as suas variadas formas não são tão excludentes como uma classificação
levaria a crer (...). Por exemplo, a violência física é uma violência psicológica que pode ser também institucional e estrutural;
a violência sexual é também violência física e psicológica.
Para melhor entendimento, porém, é importante conceituar as chamadas expressões da violência, como forma de facilitar
a compreensão e o desenho das diversas metodologias de enfrentamento do fenômeno. Assim, o presente texto trata
os conceitos de violência utilizados na Cartilha do Disque 100, publicada pelo Programa Nacional de Enfrentamento da
Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, da SDH/PR, em parceria com o Centro de Referência, Estudos e Ações
sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), como uma macrocategoria que envolve violência física, violência psicológica e
violência sexual, assim definidas:
·
O Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, da SDH/PR, utiliza, em suas publicações, esse
gráfico, que consegue traduzir de forma mais didática as várias expressões da violência sexual cometida contra crianças e adolescentes.
Violência Física – Uso da força física de forma intencional, não-acidental, por um agente agressor adulto (ou
mais velho que a criança ou o adolescente). Geralmente, esses agentes são os próprios pais ou responsáveis, que
muitas vezes machucam a criança ou adolescente sem a intenção de fazê-lo. A violência física pode deixar marcas
evidentes e, em casos extremos, até causar a morte (Fonte: Guia Escolar, 2004).
·
Violência Psicológica – Conjunto de atitudes, palavras e ações para envergonhar, censurar e pressionar a criança
de modo permanente. Ela ocorre quando xingamos, rejeitamos, isolamos, aterrorizamos, exigimos demais das
crianças e dos adolescentes, ou, mesmo, os utilizamos para atender a necessidades dos adultos (Fonte: Guia Escolar,
2004).
·
Violência Sexual – É uma violação dos direitos sexuais, porque abusa do corpo e da sexualidade, seja pela força
ou outra forma de coerção, ao envolver crianças e adolescentes em atividades sexuais impróprias para a sua idade
cronológica, ou para seu desenvolvimento psicossexual. Trata-se de toda ação na qual uma pessoa, em situação de
poder, obriga outra à realização de práticas sexuais, por meio da força física, da influência psicológica (intimidação,
aliciamento, sedução) ou do uso de arma ou droga.
De acordo com o conceito usado pelo Estudo Proteger e Responsabilizar, publicado pelo Comitê Nacional de Enfrentamento
da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes3,
[...] a sexualidade é própria e inerente às pessoas, sendo impossível dissociá-la da existência humana,
vinculada a processos biológicos, psicológicos e sociais intrínsecos aos seres humanos. Nesse sentido,
os direitos sexuais, enquanto direitos humanos, dizem respeito exatamente ao direito da pessoa
desenvolver e exercitar de maneira sadia e segura a sua sexualidade, livre de qualquer discriminação,
coação ou violência.
Assim, o texto trata dos conceitos das diversas formas de desrespeito ao direito de crianças e adolescentes ao exercício da
sua sexualidade, consideradas como expressões da violência sexual.
O Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil conceitua violência sexual como uma violação de
direitos, que se subdivide em exploração sexual e abuso sexual.
3.1. Abuso Sexual
O abuso sexual se caracteriza pela utilização do corpo de uma criança ou adolescente para a prática de qualquer ato de
natureza sexual. Nesse tipo de violência não há qualquer intuito de lucro, qualquer relação de compra ou troca. No abuso
sexual, o agressor visa unicamente satisfazer seus desejos por meio da violência sexual. Uma característica que costuma
compor a violência é a relação de confiança entre o agressor e a vítima, ainda que momentânea e enganosa, e geralmente
é praticada por alguém que participa do mesmo convívio. Isso não necessariamente significa que seja convívio familiar,
podendo ser comunitário.
O abuso sexual pode expressar-se de duas formas: intrafamiliar e extrafamiliar:
a. O abuso sexual intrafamiliar é assim considerado quando a agressão ocorre dentro da família, ou seja, a
vítima e o agressor possuem alguma relação de parentesco. Aqui é importante considerar o contexto familiar
ampliado, já que a diferença estabelecida sob o aspecto conceitual objetivou apenas diferenciar as estratégias
e metodologias de prevenção, proteção e responsabilização. Assim, quando o agressor compõe a chamada
família ampliada ou possui vínculos afetivos familiares, o abuso deve ser caracterizada como intrafamiliar.
b. O abuso sexual extrafamiliar se dá quando não há vínculo de parentesco entre o agressor e a criança ou adolescente.
3
Proteger e responsabilizar. O desafio da resposta da sociedade e do Estado quando a vítima da violência sexual é criança ou adolescente – Algumas propostas para reflexão por
ocasião do dia 18 de maio de 2007. Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes – Fernando Luz, Leila Paiva e Renato Roseno.
32
33
3.2. Exploração Sexual
A exploração sexual caracteriza-se pela utilização sexual de crianças e adolescentes com a intenção do lucro, seja financeiro
ou de qualquer outra espécie. Nesse caso, pode haver a participação de um agente entre a criança ou adolescente e o
usuário ou cliente. É por isso que se diz que a criança ou adolescente foi explorada, e nunca prostituída, pois ela é vítima de
um sistema de exploração de sua sexualidade.
A partir de uma proposição do Instituto Interamericano del Niño, la Niña y Adolescentes, da OEA, em 1998 passou-se
a classificar a exploração sexual em quatro modalidades4: a pornografia, o turismo com fins sexuais, a prostituição
convencional e o tráfico para fim sexual.
Posteriormente, a partir das discussões do III Congresso Mundial Contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes,
esses conceitos foram atualizados para:
·
·
·
·
exploração sexual no contexto de prostituição
tráfico para fins de exploração sexual
exploração sexual no contexto do turismo
pornografia infantil (ver item d, adiante)
a. Exploração sexual no contexto de prostituição
É a expressão mais próxima do contexto do comércio da exploração sexual de crianças e adolescentes. É muito comum
aparecerem adultos como intermediários nessa forma de exploração sexual, rede de aliciadores, agenciadores, facilitadores,
pessoas que lucram com a exploração sexual. Porém, esse tipo de exploração sexual pode ocorrer sem intermediários.
Ainda que a princípio possa parecer uma atividade autônoma, como no caso de crianças ou adolescentes que oferecem
seus corpos nas ruas, caracteriza-se como exploração, já que o usuário pagará pela utilização de seu corpo com dinheiro ou
outros elementos de troca.
Os artigos 244-A e 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), incluídos pelas leis n. 9.975, de 23/06/2000, e n.
12.015, de 07/08/2009, tratam da exploração sexual com maior especificidade.
Art. 244-A. Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2º desta Lei, à
prostituição ou à exploração sexual: (Incluído pela Lei n. 9.975, de 23.6.2000)
Pena – reclusão de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º- Incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se
verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas referidas no caput deste artigo. (Incluído
pela Lei n. 9.975, de 23/06/2000)
§ 2º- Constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de
funcionamento do estabelecimento. (Incluído pela Lei n. 9.975, de 23/06/2000)
4
34
Em http://www.recrianacional.org.br/glossary/exploração- sexual. Acesso em 14/02/2012.
Art. 244-B. Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando
infração penal ou induzindo-o a praticá-la: (Incluído pela Lei n. 12.015, de 07/08/2009)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Incluído pela Lei n. 12.015, de 07/08/2009)
§ 1º- Incorre nas penas previstas no caput deste artigo quem pratica as condutas ali tipificadas
utilizando-se de quaisquer meios eletrônicos, inclusive salas de bate-papo da internet. (Incluído pela
Lei n. 12.015, de 07/08/2009).
§ 2º- As penas previstas no caput deste artigo são aumentadas de um terço no caso de a infração
cometida ou induzida estar incluída no rol do art. 1º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990. (Incluído
pela Lei n. 12.015, de 07/08/2009)
A partir da alteração trazida pela Lei n. 12.015, de 7 de agosto de 2009, o Código Penal (CP) foi acrescido de um artigo
específico que define o crime de exploração sexual contra crianças e adolescentes5.
O comércio sexual em todas as suas modalidades (bares, motéis, hotéis, boates) desenvolve diferentes ações encontradas
nos artigos do CP e do ECA. Os autores desses crimes podem submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de
exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos. Importante salientar que no caso de pessoas maiores de dezoito
anos, o exercício da prostituição não constitui crime, pelo menos no Brasil.
b. Tráfico para fins de exploração sexual
É a promoção ou facilitação da entrada, saída ou deslocamento no território nacional, ou para outro país, de crianças e
adolescentes com o objetivo de exercerem a prostituição ou outra forma de exploração sexual.
O Protocolo de Palermo6 unificou o conceito de tráfico de pessoas (art. 3°, “a”), deixando claro que o consentimento
dado pela vítima de tráfico é irrelevante, e o simples fato de recrutar, transportar, transferir ou alojar a criança para fins de
exploração sexual será considerado “tráfico de pessoas” (art. 3°, “b”).
Os bens jurídicos que se quer proteger nesse crime são a liberdade e a dignidade sexual, podendo cometer o delito qualquer
pessoa (sujeito ativo), podendo a vítima também ser qualquer ser humano (sujeito passivo). O crime é consumado com a
prática efetiva de uma destas três condutas: promover, intermediar e facilitar.
5 Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não
tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. § 1o Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. § 2o Incorre nas mesmas penas: I - quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste artigo; II - o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas referidas no caput deste artigo. § 3o Na hipótese do inciso II do § 2o, constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.
6
Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial
Mulheres e Crianças
35
Por meio da Lei n. 11.106/2005 e da Lei n. 12.015/2009, o art. 231 do CP foi alterado. O crime “tráfico de
mulheres” passou a ser “tráfico de pessoas”, o que trouxe a possibilidade de o homem também ser vítima
(sujeito passivo) do delito. Ao lado dessa alteração, foi inserida a figura do “tráfico interno” (art. 231-A). Com
a alteração de 2009, o capítulo V do título VI do CP, em que está inserido o artigo 231, mudou a denominação para
“DO LENOCÍNIO E DO TRÁFICO DE PESSOA PARA FIM DE PROSTITUIÇÃO OU OUTRA FORMA DE EXPLORAÇÃO SEXUAL 7“.
As condutas para tipificação do delito de tráfico foram expandidas, pela legislação atual, para “promover ou facilitar a
entrada, agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada e, ainda, tendo conhecimento de que a pessoa está na condição de
tráfico, transportá-la, transferi-la ou alojá-la”. Para um país continental como o Brasil, a alteração efetuada em 2005 foi
fundamental, porquanto enquadrou o tráfico interno como delito8.
Antes de 2005, somente o tráfico internacional era previsto, o que constituía uma lacuna na legislação penal brasileira. O
movimento de proteção dos direitos de crianças e adolescentes foi muito importante para o reconhecimento do tráfico
interno. A Pesquisa Nacional sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes (Pestraf), realizada em 2002, que mapeou
241 rotas de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, incluindo 78 interestaduais e 32 intermunicipais, alertou
para a necessidade de tipificação dessa forma de violência. Assim como no artigo anterior, o tráfico interno deve ser para
o exercício da prostituição ou outra forma de exploração.
ou com o fito de obter lucro”. Diferenciam-se, porém, dos artigos 231 e 231-A do CP, já que estes abordam especificamente
o tráfico para fins de prostituição.
c. Exploração sexual no contexto do turismo
É a exploração sexual de crianças e adolescentes por visitantes de países estrangeiros ou turistas do próprio país, geralmente
com o envolvimento, cumplicidade ou omissão de estabelecimentos comerciais de diversos tipos.
A conceituação desse tipo de exploração é uma tarefa complexa, pois muitos discursos o confundem com abuso de crianças
e adolescentes ou tráfico internacional de pessoas. “Em certos discursos, o estrangeiro, pelo mero contato sexual com algum
brasileiro ou brasileira, é qualificado de “turista sexual”, mesmo quando ausente qualquer violência sexual9” .
A exploração sexual no contexto do turismo, enquanto violação aos direitos sexuais, não pode ser entendida como a vinda
de pessoas estrangeiras ao território brasileiro com o objetivo de se relacionarem sexualmente com brasileiros ou brasileiras,
mas, sim, como a vinda dessas pessoas visando à realização de alguma conduta que constitua violência sexual. Em outras
palavras, a relação sexual entre um estrangeiro e uma brasileira, se não houver agressão ao exercício de sua sexualidade,
não poderá configurar exploração sexual. É importante salientar a noção de que a exploração sexual no contexto do
turismo “parece ser definido no campo legal-jurídico brasileiro de forma diferente [do senso comum], como algo muito mais
específico: a violação por estrangeiros das leis brasileiras que regulam o comportamento sexual10”.
Em tais casos, cabe ao Ministério Público a responsabilidade pela instauração da ação penal.
Outros tipos penais também caracterizam o crime de tráfico de crianças e adolescentes, no CP e no ECA, como no artigo 245
do CP, que trata da entrega de filho menor a pessoa inidônea, e os artigos 238 e 239 do ECA, que tratam respectivamente
de “prometer ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa” e “promover ou auxiliar a
efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais
7
Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual
Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la
no estrangeiro. Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. § 1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la. § 2o A pena é aumentada da metade se: I – a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II – a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato; III – se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação
de cuidado, proteção ou vigilância; ou IV – há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. § 3o Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.
8
Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. § 1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar, vender ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la. § 2o A pena é aumentada da metade se: I – a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II – a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato; III – se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação
de cuidado, proteção ou vigilância; ou IV – há emprego de violência, grave ameaça ou fraude.
§ 3o Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.
36
A exploração sexual no contexto do turismo não é em si uma expressão da violência sexual, pois ele é apenas uma qualificação
dada a certas práticas quando o agressor é estrangeiro e vem ao país visando à violência, sozinho ou agenciado por uma
empresa do ramo, ou, mesmo não a desejando anteriormente, por meio de sua conduta acaba por agredir o exercício sexual
de alguma pessoa no país.
d. Pornografia infantil
Pornografia infantil é a expressão da exploração sexual que se caracteriza por qualquer representação, por qualquer meio,
de uma criança envolvida em atividades sexuais explícitas reais ou simuladas, ou qualquer representação dos órgãos sexuais
de uma criança para fins primordialmente sexuais, de acordo com o Decreto n. 5.007, de 8 de março de 2004, que promulga
o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de crianças, à prostituição infantil e à
pornografia infantil.
A legislação brasileira vigente tipifica como crime:
Apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação,
inclusive rede mundial de computadores ou Internet, fotografias ou imagens com pornografia ou
cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente.
9
SILVA, Ana Paula da; BLANCHETTE, Thaddeus. “Nossa Senhora da Help”: sexo, turismo e deslocamento transnacional em Copacabana, Cadernos Pagu, Campinas, n. 25, p. 253. 2005.
10
SILVA, Ana Paula da; BLANCHETTE, Thaddeus. “Nossa Senhora da Help”: sexo, turismo e deslocamento transnacional em Copacabana, Cadernos Pagu, Campinas, n. 25, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332005000200010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 14.02.2012.
37
O Sexting é a palavra originada da união de duas palavras em inglês: “sex” (sexo) com “texting” (envio de mensagens). O
Sexting é um fenômeno recente, no qual adolescentes e jovens usam celulares, e-mail, salas de bate-papo, comunicadores
instantâneos e sites de relacionamento para enviar fotos sensuais de si nus ou seminus, mensagens de texto eróticas ou com
convites sexuais para namorado(a), pretendentes e amigos(as).
3.3. Novas formas de violência sexual
O abuso sexual e a exploração sexual também podem ocorrer via internet. Várias práticas têm sido caracterizadas como tal,
ou muitas vezes iniciam um processo de abuso ou exploração. Algumas já vêm ocorrendo com maior frequência, tornandose, portanto, imperativo conhecê-las.
Infelizmente, não são apenas nossos amigos que podem ter acesso ao que divulgamos via online. Atuais e futuros colegas
de escola e de trabalho, parentes, inimigos, estranhos e até criminosos podem ver, copiar e manipular o que divulgamos no
ciberespaço. Uma vez online, perdemos completamente o controle da foto, texto ou dado que publicamos.
O sexting12 é uma expressão de abuso sexual recente, no qual adolescentes, jovens ou adultos usam celulares, e-mail,
salas de bate-papo, comunicadores instantâneos e sites de relacionamento, para enviar fotos sensuais, mensagens de
texto eróticas ou com convites sexuais para conhecidos. Algumas vezes essa prática, ao cair na rede, pode configurar abuso
sexual ou exploração sexual, a depender da forma como será utilizada.
Segundo o artigo 241-E do ECA (link para o artigo no próprio glossário), esse tipo de mensagem pode ser considerado
pornografia infantil, e, portanto, crime.
O sexcasting consiste na troca de mensagens sexuais em serviços de conversas instantâneas.
No caso em que haja imagens de crianças ou adolescentes, configura-se como abuso ou exploração, já que não se trata de
imagens de pornografia, e sim de um crime/violência praticado.
O sextosión se configura a partir do “sexting”. É a prática de chantagens com fotografias ou vídeos da criança ou
adolescente sem roupa ou em relações íntimas que foram compartilhados por “sexting” com fins de exploração sexual13;
O ECA também prevê crimes de exploração sexual em seus artigos 240 a 24311.
O grooming, caracterizado pela ação de um adulto ao se aproximar de crianças ou adolescentes via
internet, por meio de chats ou redes sociais, com o objetivo de praticar abuso sexual ou exploração sexual.
11
Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. § 1o Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage, ou de qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou
ainda quem com esses contracena. § 2o Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o agente comete o crime: I – no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la; II – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou III – prevalecendo-se de relações de parentesco consanguíneo ou afim até o terceiro grau, ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou de quem, a qualquer outro título,
tenha autoridade sobre ela, ou com seu consentimento. Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro
registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: § 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo; II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores
às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.
§ 2o As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1o deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao
conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo.
4– Conclusão
Embora o debate esteja longe de encontrar consensos ou certezas quanto às classificações e definições, é de suma
importância entender o tráfico de seres humanos, as ações, condições e finalidades que o caracterizam, pois, sem essa
compreensão, não nos é possível pensar em políticas de caráter preventivo e repressivo, bem como em medidas de apoio e
atendimento às suas vítimas, especialmente no caso de crianças e adolescentes.
O Brasil tem caminhado nesse sentido, com a criação do Plano e da Política Nacional de Enfrentamento do Tráfico de
Pessoas14, com metas específicas para o caso de crianças e adolescentes vítimas, prevendo correspondentes políticas de
atendimento e proteção.
Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente.
Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer
outra forma de representação visual:
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma
do caput deste artigo.
O III Congresso Mundial Contra a Exploração de Crianças e Adolescentes foi uma importante mobilização, que trará
soluções mais efetivas para a redução do tráfico de crianças e adolescentes, especialmente porque, em se tratando de tráfico
internacional, as soluções precisam ser delineadas por todos os países envolvidos.
Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso:
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso;
II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita.
Art. 241-E. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades
sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais.
É extremamente importante a mobilização da sociedade para saber reconhecer como se prevenir contra esse tipo de delito.
Nesse sentido, campanhas podem descortinar essa realidade. Fundamental é pensar a abordagem ao tema e as políticas
Art. 242. Vender, fornecer ainda que gratuitamente ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente arma, munição ou explosivo:
Art. 243. Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos
componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida:
38
12
Sexting – Neologismo originado da união de duas palavras em inglês: “sex” (sexo) com “texting” (envio de mensagens).
13
Luz María Velázquez Reyes, Boletim da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), do Instituto Superior de Ciências da Educação do Estado do México. 11/2011.
14
Decreto n. 5.948, de 26 de outubro de 2006. Aprova a Política Nacional de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de
elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas (PNETP).
39
voltadas para a área, entendendo o tráfico para fins sexuais como mais um delito com forte componente de violência
de gênero. Os dados oficiais dão conta de que 83% das vítimas crianças ou adolescentes que figuram nas denúncias do
serviço Disque 100 são meninas. Portanto, é impossível avançar nas soluções sem a necessária abordagem da demanda que
sustenta essa prática.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Nessa perspectiva, uma metodologia como a do Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento da
Violência Sexual Infantojuvenil no Território Brasileiro (PAIR), que propõe a formulação de políticas públicas
de forma integrada, pode se aproximar de um real enfrentamento da violência sexual contra crianças e
adolescentes no Brasil. É fundamental reconhecê-la como uma violência multifacetada, e que, portanto,
para ser vencida, pressupõe a união de diversos saberes e competências.
BRASIL. Código Penal Brasileiro. 1940.
III CONGRESSO MUNDIAL CONTRA A EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES, Declaração do Rio de Janeiro
e Chamada para Ação para Prevenir e Eliminar a exploração Sexual de crianças e Adolescentes. 2008.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8069 de 13/07/1990.
CECRIA. Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual no Brasil. Brasília. 2001.
FALEIROS, Eva. Conceitos de Violência, Abuso, e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Relatório Final de Pesquisa
- CECRIA - 1999
INSTITUTO INTERAMENRICANO DA CRIANÇA- INN – La protección de los Derechos de los Niños, Niñas y Adolescentes
frente a la Violencia sexual. INN, 2003
LUZ, Fernando e ROSENO Renato. Estudo Proteger e Responsabilizar. O desafio da resposta da sociedade e do Estado
quando a vítima da violência sexual é criança ou adolescente. Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual
contra Crianças e Adolescentes - 2007
Luz María Velázquez Reyes, Boletim da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), do Instituto Superior de
Ciências da Educação do Estado do México. 11/2011.
NOGUEIRA, Wanderlino. In: ANCED. Abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes: defesa e responsabilização na
perspectiva dos direitos humanos. A defesa de crianças e adolescentes vítimas de violências sexuais. São Paulo: ANCED, 2009.
Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil. 3 ed. Brasília: EDH/DCA, 2002. 59 p. (Série Subsídios,
5). 1. Violência Contra Menor, Brasil. 2. Abuso Sexual, Brasil. .
Política Nacional de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de
elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas (PNETP), 2006.
SDH-PR – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Cartilha Disque 100, 2010.
SILVA, Ana Paula da; BLANCHETTE, Thaddeus. “Nossa Senhora da Help”: sexo, turismo e deslocamento transnacional em
Copacabana, Cadernos Pagu, Campinas, n. 25, p. 253. 2005.
40
41
DEFESA DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Jalusa Silva de Arruda1
1. Introdução
Um dos pressupostos para a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes parte
do reconhecimento de que são direitos humanos, fundados na dignidade e na liberdade, respeitadas a autonomia e a
autodeterminação (NOGUEIRA NETO, 2009). Muitas vezes, temos dificuldade de reconhecer que crianças e adolescentes
detêm direitos sexuais e reprodutivos, muito em virtude de nossa cultura adultocêntrica, mas também pelo fato de tratarmos
questões afetas ao desenvolvimento e ao exercício da sexualidade como assuntos “proibidos” e de difícil diálogo.
Considerando que temos dificuldade de reconhecer o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos por crianças
e adolescentes, quase sempre somos levados a tratar o tema em perspectiva unidimensional: tendemos a percebê-lo e
reconhecê-lo mais facilmente quando o segmento infantojuvenil sofre violações sexuais. Mas crianças e adolescentes,
contudo, têm o direito de exercer seus direitos sexuais e reprodutivos, livres de estigmas, discriminação, violência ou coerção
(NOGUEIRA NETO, 2009).
Para iniciarmos nossa compreensão sobre o tema, havemos de travar esse diálogo e reconhecer, preliminarmente,
que autonomia não é antagonismo de proteção. A imposição da prioridade absoluta, do reconhecimento de
crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e na condição peculiar do desenvolvimento – a tríade de Doutrina da
Proteção Integral –, não exclui a autonomia.
Desde a ratificação da Convenção Internacional pelos Direitos da Criança, do advento da Constituição Federal ora
vigente e, especialmente, do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estado brasileiro reconhece que crianças e adolescentes
possuem os mesmos direitos de que são detentoras as pessoas adultas, com a peculiaridade de que devem corresponder
à sua idade, grau de desenvolvimento físico e/ou mental e ao seu discernimento, bem como passaram a ser titulares de
direitos e não mais meros objetos passivos de direitos e de medidas judiciais. O sentido da proteção integral significa que
a família, a sociedade e o Estado devem garantir que crianças e adolescentes exerçam essa titularidade de direitos livres
de quaisquer violências e de opressão; e que, dentre esses direitos, estão os direitos sexuais e reprodutivos, alicerçados na
autonomia e na autodeterminação, como dito anteriormente. Para as questões que pretendemos pautar, essa compreensão
se torna elementar.
Adiante, refletiremos um pouco sobre a defesa de crianças e adolescentes em situação de violências sexuais e
1
Advogada. Mestra em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM/FFCH/UFBA). Especialista em Relações Internacionais (NPGA/EAUFBA). Assessora
técnica do Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil no Território Brasileiro (PAIR), com expertise no eixo Defesa e Responsabilização.
Consultora jurídica nas áreas de Direitos Humanos e Direito da Criança e do Adolescente. Atuou como advogada no Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Yves de Roussan
(CEDECA/BA) e no Juspopuli – Escritório de Direitos Humanos. Tem experiência na execução de medidas socioeducativas em meio aberto e no atendimento de crianças e adolescentes em situação
de violências sexuais. 42
a responsabilização dos autores dessas violações. Seguiremos, de forma instrumental, discorrendo sobre as principais
mudanças trazidas pela Lei nº 12.015/2009, e relacionaremos os crimes contra a dignidade sexual com as macrocategorias
de violência sexual. Por fim, pontuaremos algumas questões pertinentes ao segmento infantojuvenil no que tange ao
abortamento legal.
2. Refletindo sobre defender e responsabilizar
Muitas vezes, nossa intervenção no âmbito da responsabilização está vinculada única e individualmente ao autor
da violação sexual, o que dificulta a percepção exata da dimensão macro e multifacetada da problemática que envolve a
perpetração das violências sexuais. Quando falamos de impunidade e “fazer justiça”, na grande maioria das vezes isso
significa apenas “pôr o autor da violência sexual na cadeia”. Essa formulação é frequentemente reforçada e amplamente
explorada e divulgada, e traz alguns equívocos. Passemos a discutir alguns pontos.
Em concordância com Nogueira Neto (2009), entendemos que a impunidade é funcional-conjuntural, mas
sobremaneira estrutural, pois faz parte da própria lógica do sistema de responsabilização jurídico penal. A prova de que esse
argumento está correto é o fato de que nem todos os crimes cometidos são “punidos”. O que temos em nosso sistema penal
é uma espécie de filtro, que seleciona crimes e autores que serão mais facilmente responsabilizados e, conscientemente ou
não, nós sabemos disso. Se solicitarmos a alguém que descreva o perfil sociodemográfico da população carcerária, ainda
que nunca tenha entrado num presídio ou delegacia, essa pessoa certamente arriscará dizer que, em sua maioria, compõese de negros de baixa escolaridade oriundos de classes economicamente menos abastadas – exatamente o que dizem os
dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça.
A seletividade do sistema penal tende a funcionar melhor para a criminalidade desorganizada, bem como a alcançar
aquelas pessoas que ocupam lugares menos privilegiados na sociedade. Quando pensamos as violências e sobre como elas
são ou não responsabilizadas pelo Estado, não há como nos furtar de fazer essa reflexão, sob pena de produzirmos reflexões
rasas e desatentas sistêmica e estruturalmente.
Assim, a “punição” não pode ser vista apenas como uma resposta negativa a um mal praticado, mas como uma
forma de responsabilização que atinja a sociedade e o Estado, e que protagonize a pessoa que sofreu a violência e não
quem a cometeu.
É preciso entender que responsabilizar não é meramente o mesmo que “punir”; é garantir a reparação da violação
de direito sofrida, por meio de ações jurídico-judiciais, cujas respostas podem vir do âmbito penal, mas também do civil. É,
sobretudo, por meio dos órgãos e instituições do sistema de responsabilização, possibilitar que a pessoa(e sua família) com
seu direito violado seja sujeito ativo nesse processo, e possa ser protagonista de sua história, ressignificando a violência
sofrida (ARRUDA, 2011).
Nesse sentido, o “Estado precisa ser chamado a se responsabilizar pela garantia dos direitos sexuais de crianças
43
e adolescentes e a combater todas as formas de violações desses direitos” (NOGUEIRA NETO, 2009, p. 76). Ao se falar em
impunidade, urge que se enxergue para além da figura do autor, e se pense, por exemplo, nos atores do Sistema de Garantia
de Direitos (SGD) que deveriam agir para prevenir e combater as violações sexuais, e não o fazem. Urge que enfrentemos a
violência estrutural e sistêmica (o Módulo 1 aborda esse conceito) que emerge em outras modalidades de violência que se
apresentam e perpetram nas relações sociais.
Já a defesa de crianças e adolescentes em situação de violências sexuais se dá na garantia do acesso à Justiça
e na proteção jurídico-social de seus direitos. Por certo, consideramos que o ponto de partida compreende exatamente
o artigo 227 da Constituição Federal e a estruturação do SGD. Costa (2009, p. 173) sugere que o SGD é como “uma
chave interpretativa do Estatuto da Criança e do Adolescente”, que, articulado e devidamente complementado com outros
sistemas (SUS, SUAS, sistema educacional etc.), proporciona a garantia, a promoção e a efetividade dos direitos humanos
de crianças e adolescentes.
Não à toa, no âmbito da defesa, as políticas públicas assumem relevância singular, já que é por seu intermédio que
o Estado organiza suas ações. As políticas públicas representam o compromisso dos governos (federal, estadual, municipal
e distrital) e das instituições públicas para com a concretização dos direitos humanos coletivos e sociais previstos na lei
(COMPARATO, 1998). Assim, a título exemplificativo, constitui a proteção sócio-jurídica de crianças e adolescentes em
situação de violências sexuais a implementação de medidas como a adoção de procedimentos especiais de inquirição, a
fim de se evitar revitimizações; o atendimento especializado na saúde, inclusive com serviço de referência ao abortamento
legal; a criação de delegacias e varas especializadas, com instalações e equipamentos adequados, bem como com equipes
multidisciplinares de atendimento; o delineamento de estratégias de participação e empoderamento de crianças e
adolescentes; a formulação de política de formação continuada dos profissionais que atuam na área da infância e juventude;
a estruturação dos conselhos tutelares; dentre outros.
Ainda que seja alcançado um modelo de responsabilização adequado e eficaz, de nada valerá se não se colocar a
defesa da pessoa que sofreu a violência. Na verdade, defesa e responsabilização podem ser representadas analogicamente
como faces de uma mesma moeda, devendo caminhar sempre juntas. Não serve à Doutrina da Proteção Integral que apenas
se responsabilize ou que apenas se defenda – é necessário que ambas as ações sejam viabilizadas paralelamente.
3. Crimes contra a dignidade sexual
Com o advento da Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, grandes mudanças ocorreram na definição, na conceituação
e na penalização dos crimes de natureza sexual. Foram modificados e inseridos dispositivos no Código Penal e na Lei dos
Crimes Hediondos2. O Título VI da Parte Especial do Código Penal, antes denominado “Dos crimes contra os costumes” foi
redenominado para “Dos crimes contra a dignidade sexual”, o que há muito era questionado por juristas e militantes pelos
2
A Lei nº 12.015/2009 não promoveu nenhuma modificação nos crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos. A única
alteração foi o acréscimo do artigo 244-B, que trata da corrupção ou da facilitação da corrupção de pessoas menores de 18 anos para a prática criminosa. 44
direitos de vários segmentos (feministas, infância e juventude e outros), por se considerar que o bem jurídico tutelado era o
costume, e não as pessoas, a dignidade sexual ou a liberdade sexual.
Como ocorre em praticamente todas as reformas legais, a Lei nº 12.015/2009 traz acertos e erros: há, de forma
inconteste, a modernização dos delitos sexuais, mas nem todos os problemas no cenário dos crimes sexuais foram sanados
com a referida lei. Tentaremos expor um panorama sobre as mudanças, e refleti-las, considerando a proteção dos direitos
sexuais de crianças e adolescentes. Os quadros adiante apresentados, trazem no lado esquerdo a redação revogada e do
lado direito a atual, seguidos de comentários referentes às principais características das mudanças introduzidas no texto
legal, a fim de instrumentalizá-los na identificação dos delitos contra a dignidade sexual. A abordagem tem início pelo
Código Penal, seguindo-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, e finalizando-se pela Lei dos Crimes Hediondos3.
3.1 Modificações no Código Penal – Parte Especial (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940)
Redação anterior à Lei nº 12.015/2009
Redação atual (desde a vigência da Lei nº 12.015/2009)
Título VI
Dos Crimes Contra os Costumes
Título VI
Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual
Artigo 213, estupro: Constranger mulher à
conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça: Pena – reclusão, de 06 (seis) a 10 (dez)
anos.
Artigo 214, atentado violento ao pudor
(REVOGADO): Constranger alguém, mediante
violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir
que com ele se pratique ato libidinoso diverso da
conjunção carnal: Pena – reclusão, de 06 (seis) a
10 (dez) anos.
Artigo 213, estupro: Constranger alguém, mediante violência ou
grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que
com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 06 (seis) a 10 (dez) anos.
§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a
vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: Pena–
reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § 2o Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a
30 (trinta) anos.
Como dito acima, pela nova denominação do Título, o bem jurídico tutelado passa a ser a dignidade sexual, e não
mais os costumes. Os crimes de estupro e atentado violento ao pudor possuíam dois tipos penais, o primeiro dos quais se
caracterizava pela conjunção carnal (sexo pênis/vagina), enquanto o segundo se referia à prática de atos libidinosos (toque
físico, sexo oral, anal etc.). Na redação anterior (e revogada), apenas mulher poderia ser vítima de estupro, no qual o homem
3
Considerando o escopo deste texto, intencionalmente não tratamos das modificações que implicam de maneira mais próxima o procedimento judicial em si, bem como das questões
que dialogam mais diretamente com o saber-fazer do atendimento jurídico. A ideia é apresentar um panorama das modificações que devem ser conhecidas de todos os profissionais que atuam
na defesa dos direitos sexuais de crianças e adolescentes.
45
era o sujeito ativo; atualmente não há essa distinção, pois os tipos penais foram unificados, e, por conseguinte, o homem e
a mulher podem ser autores e vítimas desse crime.
As qualificadoras pelo resultado lesão corporal grave e morte passaram a compor os parágrafos primeiro
e segundo, respectivamente4. Houve também aumento de cinco anos de pena na hipótese do parágrafo segundo. Na
redação anterior, essas qualificadoras estavam presentes no artigo 223, que foi revogado. Ainda no parágrafo primeiro foi
acrescentada outra qualificadora, consistente na prática do crime contra pessoa menor de 18 ou maior de 14 anos.
Vale ressaltar que o estupro é considerado crime hediondo (Lei nº 8.072/1990), e possui uma pena mais gravosa
que as dos demais, acarretando também uma execução penal mais rigorosa, sem os benefícios geralmente concedidos a
pessoas condenadas pela Justiça Criminal.
Redação anterior à Lei nº 12.015/2009
Redação atual (desde a vigência da Lei nº 12.015/2009)
Artigo 215, posse sexual mediante fraude: Ter
conjunção carnal com mulher, mediante fraude:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Parágrafo único – Se o crime é praticado contra
mulher virgem, menor de 18 (dezoito) e maior de
Artigo 215, violação sexual mediante fraude: Ter conjunção
14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 2 (dois) a
carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante
6 (seis) anos.
fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação
de vontade da vítima: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Artigo 216, atentado ao pudor mediante
fraude (REVOGADO): Induzir alguém, mediante
Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem
fraude, a praticar ou submeter-se à prática de ato
econômica, aplica-se também multa.
libidinoso diverso da conjunção carnal: Pena –
reclusão, de um a dois anos.
Parágrafo único. Se a vítima é menor de 18
(dezoito) e maior de 14 (quatorze) anos: Pena –
reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.
no artigo 217-A, parágrafo primeiro. A expressão “ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da
vítima” pode levar a confundir com o estupro de vulnerável. Isso porque, muito embora de rara configuração, é possível que
ocorra violação sexual mediante ardil, engano, engodo. Para Nucci (2009), a distinção daquele tipo penal com o estupro de
vulnerável repousa no grau de intelegibilidade da vítima: em havendo resistência nula, sem qualquer condição de entender
o que se passa, trata-se da figura prevista no artigo 217-A, parágrafo primeiro; se, porém, houver resistência relativa com
alguma condição de inteligência sobre o ato sexual, trata-se do tipo penal previsto no artigo 215. Uma diferença tênue que
uma redação mais adequada poderia ter sanado.
Redação anterior à Lei nº 12.015/2009
Redação atual (desde a vigência da Lei nº 12.015/2009)
Artigo 216-A, assédio sexual: Constranger
alguém com o intuito de obter vantagem ou Artigo 216-A, assédio sexual:..................
favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da
sua condição de superior hierárquico ou ascendência § 2º. A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de
inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. 18 (dezoito) anos.
Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
Manteve-se o teor do caput do artigo, mas criou-se o aumento de pena caso a vítima seja pessoa menor de 18 anos.
Observar que o delito em análise refere-se a relação empregatícia e também à relação professor/aluno.
Redação anterior à Lei nº 12.015/2009
Redação atual (desde a vigência da Lei nº 12.015/2009)
Capítulo II
Da Sedução e da Corrupção de Menores
Capítulo II
Dos Crimes Sexuais Contra Vulnerável
Artigo correspondente àquele criado pela
Artigo criado pela Lei nº 12.015/2009
Lei nº 12.015/2009
Aqui também houve unificação de tipos penais, no caso a posse sexual mediante fraude (artigo 215) e o
atentado ao pudor mediante fraude (artigo 216), substituídos por violação sexual mediante fraude. A Lei
nº 12.015/2009 acrescentou pena pecuniária para a ocorrência da modalidade criminosa com o fito de obtenção de lucro.
Chama-se a atenção para a criação do parágrafo único, que representa uma modalidade de exploração sexual.
Esse parece não ter sido um acerto da Lei nº 12.015/2009, já que o tipo penal pode se confundir com aquele previsto
4
46
O símbolo § significa parágrafo.
47
Artigo 224, presunção de violência:
(REVOGADO): Presume-se a violência, se a vítima:
a) não é maior de catorze anos;
b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia
esta circunstância;
c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer
resistência.
Artigo 217-A, estupro de vulnerável: Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de
14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. § 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no
caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não
tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por
qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. § 2o VETADO
§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. § 4o Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
No tocante à titulação do Capítulo, temos a criação da categoria “vulnerável” e a retirada dos termos “sedução”,
“corrupção” e “menores”. A “presunção de violência” dá lugar à “vulnerabilidade”.
As pessoas consideradas incapazes para consentir o ato sexual, quer sejam (1) menores de 14 anos de idade,
(2) possuidoras de enfermidade ou deficiência mental, (3) desprovidas do necessário discernimento sobre o ato sexual ou
(4) que por qualquer causa não possam oferecer resistência ao ato sexual, passam a ser considerados vulneráveis pela
legislação penal. Quem vier a praticar ato sexual com pessoa em uma das condições acima descritas cometerá estupro
de vulnerável, sujeitando-se às penas previstas no artigo 217-A, e não àquelas previstas no artigo 213. Isso porque as
penas relacionadas ao estupro de vulnerável são autônomas e superiores àquelas previstas para o estupro comum
(artigo 213).
Redação anterior à Lei nº 12.015/2009
Redação atual (desde a vigência da Lei nº 12.015/2009)
Artigo 218, corrupção de menores: Corromper
ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14
Artigo 218, corrupção de menores: Induzir alguém menor de 14
(catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, com ela
(catorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem: Pena – reclusão, de
praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a
2 (dois) a 5 (cinco) anos.
praticá-lo ou presenciá-lo: Pena – reclusão, de um
a quatro anos. 48
Artigo 218-A, satisfação de lascívia mediante presença de
criança ou adolescente: Praticar, na presença de alguém menor de
Sem correspondente para comparação, artigo
14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro
criado pela Lei nº 12.015/2009.
ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem: Pena
– reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.
Sem correspondente para comparação, artigo
criado pela Lei nº 12.015/2009.
Artigo 218-B, favorecimento da prostituição ou outra forma
de exploração sexual de vulnerável: Submeter, induzir ou atrair
à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor
de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental,
não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la,
impedir ou dificultar que a abandone: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. § 1o Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica,
aplica-se também multa. Sem correspondente para comparação, artigo
criado pela Lei nº 12.015/2009.
§ 2o Incorre nas mesmas penas: I – quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém
menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação
descrita no caput deste artigo; II – o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se
verifiquem as práticas referidas no caput deste artigo. § 3o Na hipótese do inciso II do § 2o, constitui efeito obrigatório da
condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento
do estabelecimento.
A modificação no artigo 218 se deu no sentido de ampliar o tipo penal, considerando também o disposto nos
artigos 218-A e 218-B. Vale observar que o artigo 218 em vigência considera o induzimento a mediação da lascívia para
abuso sexual; em caso de mediação à lascívia para exploração sexual, o delito está previsto no artigo 227,tratado adiante.
Veja que o artigo 218 trata da indução à satisfação da lascívia de alguém, enquanto o artigo 218-A fala do
induzimento para que o menor de 14 anos presencie, assista ao ato sexual. Nesta segunda modalidade, a pessoa menor
de 14 anos não pratica, mas presencia o ato sexual. Infelizmente, a redação do artigo 218 não parece muito adequada.
49
Segundo o artigo 29 do Código Penal, a pessoa que, de qualquer modo, concorrer (contribuir) para que um crime ocorra,
está sujeita às penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. Como exemplo, o crime de homicídio: quem induz
alguém a matar outrem, responde como partícipe do crime de homicídio. Nessa mesma lógica, aquele que induz pessoa
menor de 14 anos a satisfazer a lascívia (entendida aqui como qualquer ato de satisfação sexual), deveria responder como
partícipe do crime de estupro de vulnerável, e não por corrupção de menores (NUCCI, 2009). Esses problemas no texto do
artigo podem criar conflito na aplicação da lei, e atrapalhar os operadores do Direito.
O artigo 218-B refere-se a induzimento de vulnerável à exploração sexual. Convém atentar para a possibilidade de
aplicação de multa na hipótese do parágrafo primeiro, e para a incidência da mesma pena para quem praticar o ato sexual,
mas também para o proprietário ou gerente de estabelecimento que acolher e proporcionar a exploração sexual, conforme
previsto no parágrafo segundo. Importa destacar o disposto no parágrafo terceiro, que determina como efeito obrigatório
da sentença o fechamento e a cassação da licença de estabelecimento que facilitar a ocorrência de exploração sexual de
crianças e adolescentes. Mais uma vez, cabe observar que o legislador optou pela adoção da macrocategoria “exploração
sexual”; e deve-se ficar atento a todas as suas modalidades. O artigo se refere a qualquer estabelecimento, mas nossa
atenção volta-se especialmente para hotéis, pensões, motéis, boates, bares e afins.
Por fim, o artigo 218-B cria uma tipologia que contribui para suprir algumas lacunas do Código Penal referente às
situações de exploração sexual.
Redação anterior à Lei nº 12.015/2009
Redação atual (desde a vigência da Lei nº 12.015/2009)
No Capítulo IV – Disposições Gerais, uma mudança considerável: os crimes sexuais passam a ser de ação penal
pública incondicionada, caso as vítimas sejam pessoas menores de 18 anos. Nos termos da legislação nacional, a depender
do crime, a ação penal pode ser pública incondicionada, pública condicionada ou privada na forma a saber:
1) Ação Penal Pública Incondicionada: o crime é considerado contra toda a sociedade, podendo, por isso,
ser iniciado por qualquer meio, já que o “dono” da ação é o Estado. Basta uma simples notícia do crime para
que seja iniciada a ação penal.
2) Ação Penal Pública Condicionada: como o próprio nome sugere, nesse tipo de ação, o Estado permanece
na condição de “dono”, mas considera-se como de interesse geral, porém se espera que a pessoa vitimada por
violência ou seu representante legal comunique o fato formalmente ao Estado, para que seja instaurada a ação
penal, sob pena de ser considerada nula. É o respeito à vontade do ofendido em provocar o Estado.
3) Ação Penal Privada: nesse tipo de ação, o ofendido (ou seu representante legal), e não o Estado, é considerado
o “dono” da ação. Abrange crimes sem relevância para a sociedade em geral, por atingir tão-somente a esfera
privada do ofendido, cabendo a este decidir se o Estado deve apurar o fato para responsabilizar os violadores
(ARRUDA, 2011).
Como dito acima, com o advento da Lei nº 12.015/2009, os “crimes contra a dignidade sexual” passaram a ser de
Ação Penal Pública Incondicionada, nas situações em que a pessoa vitimada seja criança ou adolescente.
Artigo 225, ação penal: Nos crimes definidos
nos capítulos anteriores, somente se procede
mediante queixa.
§ 1º Procede-se, entretanto, mediante ação
pública:
I – se a vítima ou seus pais não podem prover às
despesas do processo, sem privar-se de recursos
indispensáveis à manutenção própria ou da
família;
II – se o crime é cometido com abuso do pátrio
poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou
curador.
Artigo 225, ação penal: Nos crimes definidos nos Capítulos I e II
deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada
à representação. Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal
pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou
pessoa vulnerável.
§ 2º No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação
do Ministério Público depende de representação.
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Redação anterior à Lei nº 12.015/2009
Redação atual (desde a vigência da Lei nº 12.015/2009)
Capítulo V
Do Lenocínio e do Tráfico de Pessoas
Capítulo V
Do Lenocínio e do Tráfico de Pessoa para Fim de Prostituição
ou Outra Forma de Exploração Sexual
Artigo 228, favorecimento da prostituição:
Induzir ou atrair alguém à prostituição, facilitá-la
Artigo 228, favorecimento da prostituição ou outra forma
ou impedir que alguém a abandone:
de exploração sexual: Induzir ou atrair alguém à prostituição ou
outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar
Pena – reclusão, de dois a cinco anos.
que alguém a abandone: § 1º Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. do artigo anterior: Pena – reclusão, de três a oito
anos.
§ 1º Se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado,
§ 2º Se o crime é cometido com emprego de
cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da
violência, grave ameaça ou fraude:
vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado,
Pena – reclusão, de quatro a dez anos, além da
proteção ou vigilância: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.
pena correspondente à violência.
§ 3º Se o crime é cometido com o fim de lucro,
aplica-se também multa.
Artigo 229, casa de prostituição: Manter, por
conta própria ou de terceiro, casa de prostituição
ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso,
haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta
do proprietário ou gerente: Pena – reclusão, de
dois a cinco anos, e multa.
Artigo 230, rufianismo: Tirar proveito da
prostituição alheia, participando diretamente de
seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou
em parte, por quem a exerça: Pena – reclusão, de
um a quatro anos, e multa.
§ 1º Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do
art. 227: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis)
anos, além da multa.
§ 2º Se há emprego de violência ou grave ameaça:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, além da
multa e sem prejuízo da pena correspondente à
violência.
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Artigo 229, casa de prostituição: Manter, por conta própria ou de
terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou
não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Artigo 230, rufianismo: ..............................
§ 1º. Se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze)
anos ou se o crime é cometido por ascendente, padrasto, madrasta,
irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou
empregador da vítima, ou por quem assumiu, por lei ou outra forma,
obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: Pena – reclusão, de 3
(três) a 6 (seis) anos, e multa. § 2º Se o crime é cometido mediante violência, grave ameaça,
fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação
da vontade da vítima: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos,
sem prejuízo da pena correspondente à violência.
O título do Capítulo V traz a ampliação para outras formas de exploração sexual, deixando de limitar-se ao lenocínio
(que basicamente quer dizer aliciamento para prostituição) e ao tráfico. Vale lembrar que exploração sexual, conforme
visto no módulo anterior, não é apenas prostituição. As mudanças dos artigos referidos acima seguem, em síntese, duas
mudanças: a contemplação de outras formas de exploração sexual e o rol das circunstâncias agravantes no corpo dos
artigos correspondentes (antes o aumento de pena se dava pela forma qualificadora prevista no artigo 223, revogado pela
Lei nº 12.015/2009).
Não trazemos no quadro acima o artigo 227, primeiro do Capítulo V, porque não houve qualquer alteração de
conteúdo (apenas de forma) com o advento da Lei nº 12.015/2009. Apenas ressalta-se que se trata de indução à lascívia
para fins de exploração sexual5. Por oportuno, traz-se à tona a mesma reflexão feita anteriormente sobre a aplicação do
artigo 218-A frente à situação de partícipe do crime de estupro (artigo 213): aquele que induz a satisfação da lascívia de
outrem para exploração sexual deve responder pelo delito previsto no artigo 227, ou como partícipe do crime tipificado no
artigo 218-B? Portanto, parece mais um conflito a ser sanado pela doutrina e pela jurisprudência.
Correndo o risco da redundância, mas com o fito de reafirmar nossa posição, destacamos que o exercício da
prostituição por pessoa maior de 18 anos no Brasil não constitui crime. Essa permissão reside no direito inalienável do
respeito à liberdade e a disposição do próprio corpo. Contudo, não é garantido às crianças e adolescentes (pessoas menores
de 18 anos) o direito de consentirem sobre a prostituição, em respeito ao princípio da proteção integral e de sua condição
peculiar de desenvolvimento. Sendo assim, o exercício da prostituição por pessoa menor de 18 anos é considerado crime, no
qual há o envolvimento de criança ou adolescente como sujeito passivo do delito, enquanto a pessoa que facilita, favorece,
induz, pratica, contrata etc. comete crime, sendo sujeito ativo do delito penal. O princípio é que crianças e adolescentes
não se prostituem – já que não podem consenti-lo –, mas são exploradas sexualmente, e a exploração sexual é o que
configura crime.
A legislação nacional pune, ainda, independentemente da modalidade, se na prostituição (pessoas adultas) ou na
exploração sexual (crianças e adolescentes), aqueles que mantenham casa de prostituição ou que explorem o exercício da
prostituição alheia. Este último tipo penal, denominado rufianismo, o autor será o rufião ou a rufiã, figuras popularmente
conhecidas como “cafetão” ou “cafetina”.
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Artigo 227, mediação para servir a lascívia de outrem: Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem: Pena – reclusão, de um a três anos.
§ 1o Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem
esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda: Pena – reclusão, de dois a cinco anos.
§ 2º Se o crime é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude: Pena – reclusão, de dois a oito anos, além da pena correspondente à violência.
§ 3º Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.
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Redação anterior à Lei nº 12.015/2009
Redação atual (desde a vigência da Lei nº 12.015/2009)
Artigo 231, tráfico internacional de pessoa para fim de
exploração sexual: Promover ou facilitar a entrada, no território
Artigo 231, tráfico internacional de pessoas:
nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra
Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no
forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la
território nacional, de pessoa que venha exercer a
no estrangeiro: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la
no estrangeiro: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8
§ 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar
(oito) anos, e multa.
a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição,
transportá-la, transferi-la ou alojá-la. § 1º Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do
art. 227: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez)
anos, e multa.
§ 2 º Se há emprego de violência, grave ameaça
ou fraude, a pena é de reclusão, de 5 (cinco) a 12
(doze) anos, e multa, além da pena correspondente
à violência.
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Artigo 231-A, tráfico interno de pessoa para fim de exploração
sexual: Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do
território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de
exploração sexual: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. § 2º A pena é aumentada da metade se: I – a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II – a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o
necessário discernimento para a prática do ato; III – se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado,
cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da
vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado,
proteção ou vigilância; ou IV – há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. § 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica,
aplica-se também multa.
Artigo 231-A, tráfico interno de pessoas:
Promover, intermediar ou facilitar, no território
nacional, o recrutamento, o transporte, a
transferência, o alojamento ou o acolhimento da
pessoa que venha exercer a prostituição: Pena –
reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar, vender ou
comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa
condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la. § 2º A pena é aumentada da metade se: I – a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II – a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o
necessário discernimento para a prática do ato; Parágrafo único. Aplica-se ao crime de que trata
III – se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado,
este artigo o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 231
cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da
deste Decreto-Lei.
vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado,
proteção ou vigilância; ou IV – há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. § 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica,
aplica-se também multa.
Nos artigos referentes ao tráfico de pessoas, verifica-se a ampliação do tipo penal, que incluiu outras modalidades
de exploração sexual além da prostituição convencional. Passou a explicitar no parágrafo primeiro o núcleo do
tipo, que engloba os crimes de tráfico de seres humanos (agenciar, aliciar etc.), aproximando a normativa interna
do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à
Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, conhecido como Protocolo
de Palermo, adotado pelas Nações Unidas em 2000 e ratificado pelo Estado brasileiro em 2004.
Houve uma redução da pena para o tráfico interno, que antes era a mesma do tráfico internacional, e as
situações de aumento de pena, assim como em outros artigos, passam a compor o corpo do artigo. Observa-se
que assim como na maioria dos outros delitos referentes à exploração sexual, houve aumento da pena, com a
determinação de aplicação de multa.
O crime de tráfico praticamente encerra as modificações introduzidas pela Lei nº 12.015/2009 no Código
Penal, faltando apenas tratar brevemente da criação do Capítulo VII – Disposições Gerais, do Título VI, ora em
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estudo, com inclusão dos artigos 234-A e 234-B, relacionados a aumento de pena. O primeiro fala de resultados
dos delitos do Título VI que podem gerar aumento de pena; o segundo trata da tramitação processual. Vejamos:
Aumento de pena Art. 234-A. Nos crimes previstos neste Título a pena é aumentada: I – (VETADO); II – (VETADO); III – de metade, se do crime resultar gravidez; e IV – de um sexto até a metade, se o agente transmite à vitima doença sexualmente transmissível de que sabe ou
deveria saber ser portador.
Art. 234-B. Os processos em que se apuram crimes definidos neste Título correrão em segredo de justiça.
No artigo 234-A o legislador agravou a pena levando em conta os resultados danosos à saúde sexual
e reprodutiva. De fato, não há como negar o agravamento dos resultados da violência sexual contra pessoa
que sofreu a agregação de gravidez ou uma DST. A intenção foi atribuir diferentes graus de aumento de pena,
entendendo-se ser o resultado gravidez mais grave que o resultado contaminação por DST. Sobre a ocorrência da
gravidez, recobramos que há a opção pelo aborto legal, conforme tratado adiante.
No artigo 234-B, a preocupação diz respeito à preservação da intimidade e da imagem da pessoa ofendida,
regra alinhada à reforma ocorrida no Código de Processo Penal, decorrente do advento da Lei nº 11.690/20086.
3.2 Modificações na Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990)
Segundo o dicionário, hediondo é algo sórdido e repugnante. A legislação brasileira adota tal nomenclatura
para os delitos que, pela forma de execução ou pela gravidade objetiva do resultado, são alvos de grande repulsa
pela sociedade. Os crimes considerados hediondos estão elencados na Lei nº 8.072/1990, cuja aplicação não pode
ser ampliada pela mera decisão do julgador. O tratamento dos crimes definidos como hediondos é mais severo,
especialmente no que diz respeito à execução penal.
Não cabe aqui aprofundar o debate sobre a Lei de Crimes Hediondos, que inclusive recebe severas críticas
de juristas e estudiosos do Direito Penal e da sociologia criminal, em sua maioria muito pertinentes. Cabe-nos
neste texto apenas trazê-la para o contexto dos crimes contra a dignidade sexual.
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56
Em especial, sugerimos leitura do parágrafo sexto do artigo 201, Código de Processo Penal. Assim, a Lei nº 12.015/2009 modificou apenas o artigo 1º da Lei de Crimes Hediondos, já que esta trazia
no rol de crimes definidos como hediondos o estupro, o atentado violento ao pudor e a presunção da violência.
Considerando que o atentado violento ao pudor e a presunção da violência foram revogados, obviamente havia a
necessidade de modificar a Lei de Crimes Hediondos para adequá-la aos novos tipos penais, quer seja o estupro,
previsto no artigo 213 (que, como dissemos, unificou as condutas conjunção carnal e atos libidinosos) quer seja o
estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A. Abaixo, transcreve-se o artigo 1º, com destaque nas modificações
ora tratadas:
Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:
I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por
um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V);
II – latrocínio (art. 157, § 3º, in fine);
III – extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º);
IV – extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lº, 2º e 3º);
V – estupro (art. 213, caput e §§ 1º e 2º); VI – estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1º, 2º, 3º e 4º);
VII – epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º);
VII-A – (VETADO)
VII-B – falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais
(art. 273, caput e § 1º, § 1º-A e § 1º -B, com a redação dada pela Lei nº 9.677, de 2 de julho de 1998).
4. Crimes contra os direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes previstos no Estatuto da
Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990)
Como dito no início, a Lei nº 12.015/2009 apenas acrescentou o artigo 244-B no Estatuto da Criança
e do Adolescente, que não se refere a crime contra os direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes. Os crimes previstos na referida legislação pertinentes ao presente debate são aqueles tipificados nos artigos 239,
240, 241, 241-A, 241-B, 241-C, 241-D, 241-E e 244-A. Pode parecer maçante trazê-los no corpo do texto, mas a
intenção é que todos conheçam e se familiarizem com a descrição dos tipos penais elencados na lei. Ressalta-se,
mais uma vez, que a correta identificação do delito é importante para se decidir quanto às estratégias de defesa
e responsabilização a serem adotadas. Por fim, como os tipos penais são praticamente autoelucidativos, faz-se
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adiante um comentário geral sobre eles.
Abaixo, portanto, transcreve-se o teor dos nove artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente
relacionados aos crimes contra os direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes, todos inseridos
na Seção II – Dos crimes em espécie, do Capítulo I – Dos crimes, do seu Título VII – Dos crimes e das infrações
administrativas:
Artigo 239. Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o
exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro:
Pena - reclusão de quatro a seis anos, e multa.
Parágrafo único. Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Artigo 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo
explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente: Artigo 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer
meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que
contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste
artigo; II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o
caput deste artigo.
§ 2o As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1o deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela
prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput
deste artigo.
Artigo 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de
registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. § 1o Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage, ou de qualquer modo intermedeia a participação
de criança ou adolescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena. § 1o A pena é diminuída de 1 (um) a 2/3 (dois terços) se de pequena quantidade o material a que se refere o caput
deste artigo.
§ 2o Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o agente comete o crime: I – no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la; II – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou III – prevalecendo-se de relações de parentesco consangüíneo ou afim até o terceiro grau, ou por adoção, de tutor,
curador, preceptor, empregador da vítima ou de quem, a qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela, ou com seu
consentimento. § 2o Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de comunicar às autoridades competentes a
ocorrência das condutas descritas nos arts. 240, 241, 241-A e 241-C desta Lei, quando a comunicação for feita por:
I – agente público no exercício de suas funções;
II – membro de entidade, legalmente constituída, que inclua, entre suas finalidades institucionais, o recebimento, o
processamento e o encaminhamento de notícia dos crimes referidos neste parágrafo;
III – representante legal e funcionários responsáveis de provedor de acesso ou serviço prestado por meio de rede de
computadores, até o recebimento do material relativo à notícia feita à autoridade policial, ao Ministério Público ou ao
Poder Judiciário.
Artigo 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo
explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:
§ 3o As pessoas referidas no § 2o deste artigo deverão manter sob sigilo o material ilícito referido.
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
Artigo 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica
por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de
representação visual:
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Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por
qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo.
Artigo 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o
fim de com ela praticar ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou pornográfica com o fim de com
ela praticar ato libidinoso;
II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança a se exibir de forma pornográfica
ou sexualmente explícita.
Os tipos penais previstos nos artigos 240 a 241-E são, na verdade, crimes contra a dignidade e a liberdade
sexual, pela disseminação da pornografia infantojuvenil7. Mas, em que pesem alguns artigos trazerem redação
um pouco confusa, as alterações foram relevantes para dar visibilidade ao problema, principalmente devido à
ampliação da utilização da internet em escala mundial.
Ademais, antes dessas modificações, apenas o artigo 241 tratava da pornografia infantojuvenil; com
a ampliação das figuras típicas, condutas antes não abarcadas passaram a compor o texto legal. Sugere-se,
portanto, uma minuciosa leitura dos artigos, e que se dispense especial atenção às circunstâncias que determinam
aumento de pena.
5. Violências sexuais e as tipificações correspondentes na legislação brasileira
Passa-se a relacionar as principais modalidades de violência sexual, conforme texto-base do módulo
anterior, com as tipificações no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente:
Artigo 241-E. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de sexo explícito ou
pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais
explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins
primordialmente sexuais.
Artigo 244-A. Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2o desta Lei, à
prostituição ou à exploração sexual:
Pena - reclusão de quatro a dez anos, e multa.
§ 1 Incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifique a submissão
de criança ou adolescente às práticas referidas no caput deste artigo.
ABUSO SEXUAL
Conceito-síntese
Qualquer tipo de atividade sexual com uma pessoa, a partir de uma
posição de poder ou autoridade (MOLINA, BARBICH, e FONTENLA,
2010).
Código Penal
Artigos: 213, 215, 216-A, 217-A, 218, 218-A
EXPLORAÇÃO SEXUAL
o
§ 2o Constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do
estabelecimento. Os artigos 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C, 241-D e 241-E foram alterados e/ou criados pela Lei nº 11.829,
de 25 de novembro de 2008. As alterações introduzidas por essa lei são fruto direto da Comissão Parlamentar de
Inquérito conhecida como CPI da Pedofilia, instalada em março de 2008. Decerto, a esta altura é de se reconhecer
que a utilização do termo “pedofilia” na CPI foi equivocada, o que infelizmente acabou por contribuir em muito
para a difusão de uma compreensão esvaziada de conteúdo e de fundamento técnico-teórico de um tema
extremamente complexo.
60
Conceito-síntese
É a vitimização sexual ligada a uma remuneração econômica ou outro
tipo de benefício ou vantagem de natureza econômica (MOLINA,
BARBICH, e FONTENLA, 2010).
Código Penal
Artigos: 215, parágrafo único, 218-B, 227, 228, 229, 230, 231, 231-A
Estatuto da Criança e do Adolescente
Artigos: 239, 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C, 241-D, 241-E, 244-A
7
Apenas para corroborar o que estamos dizendo, o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de crianças, à prostituição
infantil e à pornografia infantil, adotado pela ONU no ano 2000 e ratificado pelo Estado brasileiro em 2004, define pornografia infantojuvenil como “qualquer representação, por qualquer
meio, de uma criança no desempenho de atividades sexuais explícitas reais ou simuladas ou qualquer representação dos órgãos sexuais de uma criança para fins predominantemente sexuais”
(convém lembrar que, para a normativa internacional, criança é toda pessoa menor de 18 anos). 61
A adequação da tipificação penal ao caso concreto requer uma minuciosa análise da situação em tela,
para correta identificação da modalidade de violação sexual, já que os procedimentos e encaminhamentos para
defesa e responsabilização podem ser diferentes, a depender dos tipos de delito. Ademais, grande parte dos
delitos sexuais tem como sujeito passivo qualquer pessoa, razão pela qual deve-se atentar para os casos em que
o crime tem criança ou adolescente no polo passivo, ou se esse fato dá causa a agravamento de pena.
6. Aborto legal
A legislação brasileira autoriza o abortamento em apenas duas situações, previstas no artigo 128 do
Código Penal: 1) se houver risco de morte da gestante e não houver outro meio de salvá-la; e 2) se a gravidez
resultar de estupro, sendo que o aborto deve ocorrer mediante consentimento da gestante ou, quando incapaz,
de seu representante legal.
Destaca-se, neste texto, o aborto legal no caso de gestação resultante de estupro. Muitos podem considerar
o assunto polêmico e até “proibido”, mas é extremamente necessário abordá-lo ao se tratar de violência sexual.
Preliminarmente, vale destacar que o aborto legal – como sugere a própria definição – não é crime, mas sim um
direito garantido e previamente autorizado por lei.
Logo, não há necessidade de autorização do Poder Judiciário, pois (com perdão da redundância) se o
aborto é legal, em se configurando uma das duas situações descritas no artigo 128, a lei autoriza o procedimento
médico.
Para a realização do abortamento permitido em lei, o Estado tem o dever de manter, nos hospitais
públicos, profissionais que o realizem. Esse serviço deve ser realizado na rede do Sistema Único de Saúde (SUS),
garantindo-se respeito, dignidade e bom atendimento à pessoa que passará pelo procedimento.
Para a realização do aborto legal, o Código Penal não exige qualquer documento, nem a mulher violentada
sexualmente tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e
judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento. A realização do abortamento
não se condiciona à decisão judicial que sentencie e decida se ocorreu estupro ou violência sexual (BRASIL, 2010).
Caso revele-se posteriormente que a gravidez não resultou de violação sexual, o médico e os demais profissionais
de saúde responsáveis pelo procedimento não devem temer possíveis consequências jurídicas, pois “é isento de
pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria
a ação legítima” (artigo 20, § 1º, Código Penal) (BRASIL, 2011, p. 18)8.
8
Para melhor compreensão dos procedimentos de justificação e autorização para interrupção da gravidez, sugere-se a leitura das normas técnicas do Ministério da Saúde citadas no
texto e relacionadas nas referências.
62
Quando a mulher tiver mais de 18 anos, não pairam dúvidas: ela pode decidir sozinha pelo abortamento
legal. Mas, se o procedimento tiver que ser realizado em criança ou adolescente? Nesse caso, há que se considerar
os institutos do Direito Civil da representação e da assistência.
Se a gestante tiver entre 16 anos completos e 18 incompletos, deverá ser assistida pelos pais ou por seu
representante legal, que se manifestam com ela.
Caso tenha menos de 16 anos, a adolescente ou criança deverá ser representada pelos pais ou por seu
representante legal, que se manifestam por ela. Ressalta-se que a Portaria n° 1.508, de 1º de setembro de
2005, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da
Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do SUS, aponta para a necessidade de comunicação ao Conselho
Tutelar, em se tratando de menor de 14 anos.
Haverá necessidade de representação legal, se a mulher (ainda que adulta), por qualquer razão, não
tenha condição de discernimento e de expressar sua vontade (mulher com enfermidade mental, interditada
judicialmente etc.). Nesse caso, seu representante legal será seu tutor ou curador.
Importa destacar que “sempre que houver condições de discernimento e de expressão de sua vontade,
a adolescente deverá ser ouvida” (BRASIL, 2011, p. 19). Representada ou assistida, ela deve também consentir,
assim como deverá ser respeitada a sua vontade, se desejar continuar com a gravidez fruto da violência sexual.
O serviço de saúde deve respeitar o direito de escolha da adolescente, e não realizar nenhum encaminhamento
ou procedimento que se oponha a sua vontade. Em havendo discordância entre a vontade da adolescente e A de
seus pais ou responsável, deve ser oferecido o acompanhamento psicossocial à família e à adolescente. Caso haja
posicionamentos conflitantes, em que a adolescente (BRASIL, 2010, p. 73)
[...] deseja a interrupção da gravidez e a família não deseja, e estes não estejam
envolvidos na violência sexual, deve ser buscada a via judicial, através do Conselho
Tutelar ou Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude, que deverão, através do
devido processo legal, solucionar o impasse.
Deve-se destacar que nossos valores éticos, morais, culturais e/ou religiosos não devem interferir na
orientação sobre o abortamento legal. Vale lembrar que o Estado brasileiro é laico, o que significa, sucintamente,
a ausência da religião na esfera pública. A laicidade implica a neutralidade do Estado no que diz respeito aos
assuntos religiosos. Se a decisão de cada um sobre sua vida tem influência de dogmas e preceitos religiosos, essa
influência não pode recair no que é direito do outro, especialmente quando se ocupa uma função de natureza
pública, como é caso de profissionais da saúde, assistência social, educação etc.9
9
Um caso exemplar ocorreu em 2009 em Alagoinha (PE), quando uma menina de nove anos foi estuprada pelo padrasto e engravidou de gêmeos. Para melhor conhecimento sobre
63
7. Algumas considerações sobre procedimentos de proteção jurídico-social
É comum haver dúvida no momento de se decidir quais procedimentos devem ser realizados com prioridade
diante de um caso de violência sexual contra crianças e adolescentes. Qual deve ser o primeiro encaminhamento?
Leva-se ao conselho tutelar? À delegacia? Ou é necessário o exame de corpo de delito realizado pelo Instituto ou
Departamento Médico Legal (IML ou DML), para o exame de corpo de delito?
Como dito anteriormente, defesa e responsabilização são faces de uma mesma moeda, e os procedimentos
de um dos eixos têm relação direta com os de outro. Como exemplo, ao atender um caso de violência sexual,
o conselho tutelar dá início, paralelamente, à defesa, com aplicação das medidas de proteção cabíveis; e a
responsabilização, ao representar o caso junto ao Ministério Público e/ou ao encaminhar para a autoridade policial.
Mas há algum procedimento que deve ser privilegiado no atendimento de defesa e responsabilização?
A resposta é sim, pois os encaminhamentos de defesa devem ser viabilizados em primeiro lugar. A justificativa
para tal afirmativa repousa na premissa de que crianças e adolescentes são pessoas na condição peculiar de
desenvolvimento e sujeitos de prioridade absoluta (lembre-se do artigo 227 da Constituição Federal!). Protegêlos e deixá-los a salvo de situações de violência e do seu agravamento ajuda a nortear os procedimentos e
encaminhamentos iniciais do atendimento. Vejamos algumas considerações relevantes sobre os procedimentos
de proteção jurídico-social de crianças e adolescentes em situação de violências sexuais:
1) Crianças e adolescentes não são obrigados a depor imediatamente após o ocorrido, ainda que haja
flagrante da violência sexual. Deve-se respeitar seu tempo, considerar sua capacidade intelectual e
cognitiva, bem como respeitar sua condição emocional e de saúde mental. Quando chegar o momento
apropriado e oportuno para a criança ou adolescente, deve-se atentar para as técnicas especiais de
inquirição de crianças e adolescentes vítimas e/ou testemunhas de delitos10.
2) Independentemente de qual tenha sido o serviço, órgão ou instituição tenha sido o primeiro a tomar
conhecimento do caso de violência sexual, o conselho tutelar deve ser imediatamente notificado.
3) Os serviços de saúde têm a obrigação de notificar os casos de violência sexual11.
4) Importante observar o disposto no artigo 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Profissionais
da saúde e da educação têm a obrigação de notificar o conselho tutelar nos casos de confirmação
o caso e reflexão sobre o tema, indicam-se os documentários “Direito e saúde: o caso de Alagoinha” e “O aborto dos outros”.
10
Em consonância com a proposta do texto, julga-se de bom alvitre não aprofundar esse tema. Sugere-se a realização de pesquisa adicional, sobre “depoimento sem dano”,
“depoimento com redução de dano” e expressões mais adequadas, como “técnicas não-revitimizantes quando da tomada de declaração das vítimas” e “procedimentos de inquirição especial
de crianças e adolescentes”.
11
A Portaria n° 104, de 25 de janeiro de 2011, do Ministério da Saúde, estabeleceu a nova Lista de Notificação Compulsória (LNC). Nela, as violações sexuais estão contidas na relação
de doenças, agravos e eventos em saúde pública que são de notificação compulsória em todo o território nacional.
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ou suspeita de maus-tratos contra crianças e adolescentes, sob pena de incorrer em infração
administrativa. Nesse dispositivo, a expressão “maus-tratos” deve ser entendida extensivamente, ou
seja, considerando-se qualquer violência contra crianças e adolescentes.
5) O encaminhamento ao IML (ou DML) cabe à autoridade policial. Sempre que possível é importante
que o exame de corpo de delito seja viabilizado com a maior urgência possível, já que alguns vestígios
da violência sexual (como outros causados por delitos que deixam “marcas” no corpo) desaparecem
em pouco tempo. Contudo, em se tratando de violência sexual, destaca-se a emergência da proteção
dos direitos sexuais e reprodutivos. Logo, em havendo conhecimento de um caso de violência sexual
ocorrida há pouco tempo, deve-se encaminhar a criança ou adolescente primeiramente aos serviços
de saúde, para realização do atendimento de profilaxia.
8. Considerações finais
A pretensão de todas as considerações e reflexões contidas neste breve texto consiste, acima de tudo,
em provocar cada um de vocês, cursistas, a (re)pensar essas questões e dar continuidade aos estudos sobre
o tema. Não se pretende, em hipótese alguma, esgotar temáticas afetas aos direitos sexuais e reprodutivos
de crianças e adolescentes, mas, sim, dar algumas pistas e instrumentais para uma atuação que considere a
responsabilização dos autores de violações sexuais, mas que sobremaneira tenham como norte a proteção e
defesa dos direitos sexuais de crianças e adolescentes. Para tanto, é imprescindível que o SGD – tema do próximo
módulo – esteja articulado politicamente e integrado operacionalmente (NOGUEIRA NETO, 2011) desde os seus
três eixos estratégicos (promoção, controle e defesa).
Do mesmo modo, é necessário não se permitir que crianças e adolescentes em situação de violências sexuais
sejam meros objetos do aparato jurídico-penal e sejam tratados apenas como instrumentos de colhimento de
provas úteis para a persecução criminal. Deve-se aprofundar o debate em torno dos procedimentos revitimizantes,
assim como proporcionar, em todas as esferas e instâncias do SGD, atendimento e intervenção humanizados e
adequados à Doutrina da Proteção Integral.
É salutar que se consigam criar estratégias de protagonismo e empoderamento de crianças e adolescentes,
para que possam conhecer melhor a si, seus corpos e o desenvolvimento de sua sexualidade, o que certamente
contribuirá para o fortalecimento da autodefesa (NOGUEIRA NETO, 2011) no tocante aos direitos sexuais e
reprodutivos.
65
Nossa tarefa se apresenta como um desafio, mas, e sobretudo, um compromisso que se apresenta a cada
um de nós. Vocês estão dando um importante passo ao se apropriarem de conteúdos extremamente relevantes
para o enfrentamento das violências sexuais contra crianças e adolescentes. Sigamos em frente; ainda há muito
a caminhar.
9. Referências
ARRUDA, Jalusa S. Atendimento jurídico. In: GADELHA, G.; OLIVEIRA, I. (Orgs.) Disseminação da metodologia
de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de tráfico para fins de exploração sexual sistematização da experiência. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2011.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas
Estratégicas. Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde,
2011. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento_norma_
tecnica_2ed.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2012.
_________. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres
e adolescentes. 3. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/
publicacoes/prevencao_agravo_violencia_sexual_mulheres_3ed.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2012.
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. In: Revista de
Informação Legislativa, n. 138, abr./jun., Brasília, 1998, p. 39-48.
COSTA, Cláudio Hortêncio. Violência sexual contra crianças e adolescentes e a legislação protetiva. In: Anced. A
defesa de crianças e adolescentes vítimas de violências sexuais. São Paulo: Anced, 2009.
MOLINA, Maria Lourdes; BARBICH, Alejandra; FONTENLA, Marta. Explotación sexual: evaluación y
tratamineto. 2. ed. Buenos Aires: Librería de Mujeres Editoras, 2010.
NOGUEIRA NETO, Wanderlino. Abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes: defesa e responsabilização
na perspectiva dos direitos humanos. In: Anced. A defesa de crianças e adolescentes vítimas de violências
sexuais. São Paulo: Anced, 2009.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à lei 12.015 de 7 de agosto de
2009. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
66
67
O SISTEMA DE GARANTIA DOS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Graça Gadelha1
Fernando Luz
Eliane Bispo
As vigorosas disposições contidas na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), aprovado em 19902, estabeleceram uma nova configuração do ponto de vista jurídico em relação aos direitos da
infância, da adolescência e da juventude no Brasil. O ECA – mais do que uma lei – é um projeto de sociedade! Essa
inovadora legislação foi construída de forma coletiva e dispõe de todo um conjunto de regras, normas e procedimentos a
partir dos quais se materializam esses direitos. As disposições contidas no ECA devem ser analisadas, portanto, a partir de
uma dimensão ética, de pressupostos filosóficos e políticos que orientam toda a sua concepção, considerada paradigmática
em conteúdo e forma. Na sua primeira parte, que vai do artigo 1º até o artigo 85, o ECA traz uma síntese de toda a sua
essencialidade e riqueza, quando aponta caminhos (as políticas de garantia de direitos) como deveres da sociedade, do
Estado e da família. Esses dispositivos propõem e detalham os deveres de instituições e atores em relação ao tratamento
a ser dispensado a crianças e adolescentes no país. É importante destacar que os deveres estão vinculados a uma tríplice
responsabilidade, conforme determina o artigo 2273 da Constituição Federal. Esse conjunto de direitos deriva de normativas
internacionais, principalmente da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, promulgada em 1989, que a Constituição
de 1988, de forma antecipada, cuidou de incorporar como lições cidadãs.
Toda essa conquista, na verdade, decorre de um processo histórico cujo desfecho somente foi possível alcançar
na década de 1990. Durante vários anos, sobretudo na década de 1970, a construção da história social brasileira em relação
a esses segmentos foi sendo construída de forma bastante equivocada, adotando por referência a Doutrina da Situação
Irregular, que permeou todo o conjunto das políticas sociais brasileiras com um caráter paternalista, assistencialista e
tutelar. Essa doutrina considerava que crianças e adolescentes, hoje reconhecidos como sujeitos ou titulares de direitos,
eram apenas “portadores de necessidades”, cujas vidas ficavam quase sempre vinculadas ao “humor” dos então chamados
Juízes de Menores. Essas autoridades – dentro de uma nova concepção – passam a trabalhar com uma nova visão, não mais
considerando crianças e adolescentes como seres tutelados pela Justiça. A superação do assistencialismo e do paternalismo
ocorre quando se passa a encarar o atendimento das necessidades básicas dessa população não como um favor ou caridade,
mas como direitos assegurados por lei. Com a vigência do ECA, impõe-se uma outra forma de compreender e agir em
relação a crianças e adolescentes, sustentada pela inovadora concepção da Doutrina da Proteção Integral. Essa doutrina
1
2
3
68
Socióloga, especialista em Políticas Públicas na área da infância e da juventude.
Lei federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
Art.227 -
estabelece um novo paradigma nos campos jurídico e social, ao criar vínculos normativos que asseguram a efetividade dos
direitos públicos subjetivos dessa população.
Embora possam parecer uma reunião de conceitos com fortes características de natureza subjetiva, a Doutrina da
Proteção Integral impõe que seja afirmada a concepção de responsabilidade ante as violações praticadas contra crianças e
adolescentes.
Utilizando-se uma proposta didática desenvolvida pelo professor Antônio Carlos Gomes da Costa, é possível
compreender a dimensão da promoção de direitos, trabalhando-os a partir de três macroconceitos: o direito à sobrevivência,
o direito ao desenvolvimento e o direito à integridade, que, traduzidos, refletem, em diferentes momentos, o estabelecido
pelo Artigo 227 da Constituição e o artigo 4º do ECA:
· vida, saúde e alimentação são consideradas como direito à sobrevivência;
· educação, cultura, profissionalização e lazer são definidos como direito ao desenvolvimento pessoal e
social;
· liberdade, respeito e dignidade se enquadram como direito à integridade física, psicológica e moral.
Ao se agrupar os três macroconceitos, é possível construir todas as possibilidades de reconhecimento dos
direitos de crianças e adolescentes relacionados a uma perspectiva de desenvolvimento humano. Importante chamar
atenção especial quando as violações ocorrem no campo da sexualidade, e, nesse caso, a questão deve ser reportada
especificamente ao direito à integridade: física, psicológica, moral. E para que crianças e adolescentes tenham efetivo
acesso aos direitos fundamentais, impõe colocar à disposição desse segmento um bem estruturado Sistema de Garantia
de Direitos (SGD).
O ECA reúne todas as respostas possíveis quando se dá conta de que o Estado, a família e a sociedade não
favorecem o espaço necessário para a garantia dos direitos. O Brasil dispõe de instrumentos jurídicos eficazes para o
exercício de uma avaliação comparativa entre o que determina a lei e o que demonstra a realidade.
É essa dimensão jurídica que dá legitimidade e sustentação à Doutrina da Proteção Integral. Há sanções, normas,
impedimentos que todos os cidadãos devem conhecer e observar. Portanto, o não-cumprimento de um dever jurídico traz
como consequência uma sanção. É assim no Estado brasileiro. Para isso é que há leis e normas. E também cidadãos que, em
nome da comunidade, podem garantir a efetividade desses direitos. Começa-se, então, a compreender a força do exercício
da autoridade4.
O ECA reconhece que a criança e o adolescente são vulneráveis e merecem a proteção integral do Estado, da
família e da sociedade. É importante observar que, ao eleger essas três grandes figuras, o ECA impõe a cada uma delas
obrigações e responsabilidades: à família, a obrigação de criar, de educar; à sociedade, a obrigação de zelar por todas
4
No ECA, a palavra autoridade só é citada em relação ao Juiz, ao Promotor Público e ao Conselheiro Tutelar.
69
essas crianças e adolescentes; e ao Estado, a competência de executar e promover políticas públicas capazes de garantir o
atendimento dos direitos assegurados por lei.
Tratar do SGD à luz do ECA significa, portanto, assegurar que direitos fundamentais relacionados a crianças e
adolescentes sejam efetivamente operacionalizados por instituições e/ou atores que integram o referido sistema.
Qual a proposta do ECA? É construir um sistema de garantia de direitos. Sistema, aqui, deve ser entendido como
um conjunto ordenado de atores e instituições responsáveis pela garantia dos direitos previstos em lei. A partir do artigo 4º
do ECA, é feita toda uma incursão nesses direitos, definindo-se a quem cabe a responsabilidade de assegurá-los. Para isso,
o legislador, sabiamente, faz uma descrição a partir da estrutura de um sistema. Tudo deve funcionar de forma articulada
e integrada. Ao descrever o artigo 19, referindo-se ao direito à convivência familiar e comunitária, o legislador estabelece
um conjunto de situações que precisam ser destacadas. A criança nasce vocacionada para viver em família. É tão forte esse
sentimento em assegurar essa condição que se ela não puder ser criada pela família original, são definidas opções: adoção,
tutela ou guarda. Se ela não tiver quem a adote, quem a tutele ou quem a guarde, então cabe ao Estado funcionar como seu
guardião, para garantir a sua vocação natural de viver e conviver com a família.
Quando o ECA dispõe sobre o direito à educação, à saúde, ao lazer, à profissionalização, em cada um desses
artigos determina também a quem cabe fazer o quê. Ao Estado? Em que condições? Desde a creche? E ao Estado, quanto
à saúde? Em que condições? Desde quando está no ventre da mãe, antes de nascer? Ao lazer? À cultura? Desde que se lhe
garanta o direito de brincar, que é o mais universal para todas as crianças do mundo, cabendo ao Estado prover as condições
propícias, como disponibilização de praças e equipamentos culturais etc., além de estimular que tudo isso esteja realmente
ao alcance dessa população.
Direito à profissionalização. A lei estabelece limites para o exercício de atividade produtiva por crianças e
adolescentes, que não devem trabalhar até completar a idade de 14 anos. Entre 14 e 16 anos, o adolescente pode exercer
uma atividade, na condição de aprendiz, desde que se promovam condições para sua formação e inserção qualificada
produtiva no mundo do trabalho. A partir dos 16 anos, pode trabalhar, mas assegurando-se-lhe todos os direitos trabalhistas
e benefícios, dentre outros.
Todo esse conjunto de direitos está muito bem descrito, e se expressa no SGD, em que são definidos papéis,
limites, responsabilidades e competências, em diferentes níveis e âmbitos: Executivo, Legislativo, Judiciário; federal,
estadual, municipal. Essas definições estão expressas no artigo 86 do ECA, que trata da política de atendimento de crianças
e adolescentes. Nesse dispositivo, encontra-se todo o conjunto de atribuições para cada um dos atores que compõem o
SGD, construído exatamente para que haja uma dinâmica na aplicação dos instrumentos e uma total interação dos atores.
O SGD dispõe de uma arquitetura muito bem montada. Quando falha um ator, o outro chega, discute e corrige.
Tudo deve ser feito de maneira que esse segmento não venha a sofrer situações graves de violação dos seus direitos. O
SGD é formado por um conjunto inter-relacionado de princípios, regras e ações. Por que falar também de um sistema de
70
proteção especial? Porque no conjunto da população de crianças e adolescentes, encontram-se determinados segmentos
para os quais nunca foi garantido o acesso aos direitos básicos. São aquelas situações consideradas as mais graves, como,
por exemplo, crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual; ou submetidos às mais diferentes formas de tortura; ao
trabalho infantil precoce; ou envolvidas em situações que demandam medidas socioeducativas, por cometimento de atos
infracionais; ou ainda, crianças em situação de alta vulnerabilidade social, pessoal (crianças portadoras de HIV/aids, ou
envolvidas com drogadição, por exemplo).
O SGD tem a finalidade específica de promover a exigibilidade do direito, na hipótese em que o Estado, a
sociedade e a família deixarem de cumprir seus deveres. Nesse sentido, deve ser concebido exatamente para que possam
ser delimitadas as suas responsabilidades pessoais, familiares, profissionais e institucionais. Discutir essas responsabilidades
é também tratar dos direitos que foram ameaçados ou violados. No eixo de defesa, a lei propõe envolver os atores que
foram escolhidos pela sociedade ou pelo poder público, para garantir a validade, a legitimidade e a eficácia da lei. O SGD
também trata da construção da igualdade da organização política e social por meio dos espaços públicos e institucionais.
Qual é o papel do Juiz, do Promotor, do Conselho Tutelar, da Defensoria Pública, da Polícia Rodoviária Federal,
da Polícia Civil, da Polícia Militar? Todos esses são atores/instituições que compõem o Sistema de Justiça, no âmbito do
SGD. Antes da cobrança pelos desvios de comportamento de crianças e jovens, sejam infratores, drogadictos ou envolvidos
em situações de violência sexual, cabe perguntar se lhes foram assegurados todos os direitos previstos na lei: convivência
familiar e comunitária, educação, saúde, lazer, cultura, profissionalização. Então, antes de falar de obrigações, deve-se
conferir onde o SGD falhou e como reverter essa situação.
A responsabilidade pela correção do desvio da realidade social, econômica e política envolve toda a sociedade.
O SGD possibilita o exercício da efetividade, da eficiência e da eficácia na garantia dos direitos. Muitas vezes o poder
público considera que já está fazendo a sua parte. E acredita que com isso todos os problemas estão resolvidos. Mas é
preciso ir além. É o compromisso de fazer e fazer bem feito. É o compromisso da eficácia com a política pública, garantindo
que os recursos destinados a essa área efetivamente priorizem a população mais vulnerável. É o SGD que vai garantir a
democratização e a transparência das ações públicas, das políticas, para que elas se tornem mais eficazes. Por outro lado,
deve-se fazer um acompanhamento sistemático de todas as ações relacionadas aos direitos de crianças e adolescentes.
Nessa perspectiva, deve-se destacar que o SGD só funciona se a população de fato participar de todo o processo
de implementação das políticas públicas, inclusive na fiscalização da aplicação dos recursos destinados a essa população.
Até por comando constitucional, a comunidade deve se empoderar de tal forma que conheça como a lei pode se traduzir
na prática ou como é possível transformar um direito em uma política pública. Na medida em que a população se mobiliza,
saindo do nível da indignação e partindo para a proposição, a causa da criança ganha mais aliados e fica fortalecida.
Assim, toda a base do SGD está orientada para concretizar e operacionalizar a política de atendimento de direitos
à criança e ao adolescente.
71
A legislação determina que o município seja um ator privilegiado nesse processo. É no município que se constrói
e se consolida o direito.
Destacam-se também os segmentos que formam a opinião pública e a iniciativa privada, que devem ser
sensibilizados para participar em diferentes frentes, em especial para apoio e aporte de recursos nos fundos de direitos
de crianças e adolescentes. Representações políticas, entidades de atendimento, enfim, cada um desses atores com
papéis e limites definidos no ECA deve trabalhar de forma bem integrada. Especial destaque cabe aos responsáveis pela
imputação de sanções, por meio da aplicação de medidas judiciais cabíveis contra aqueles que praticam violências diversas
contra crianças e adolescentes. É também uma forma de propiciar às vítimas toda a garantia do devido processo legal.
Desestrutura-se toda a base do SGD quando o poder público não cumpre as suas obrigações, quando a família não assume
as suas responsabilidades, quando a sociedade muitas vezes violenta a criança pelo silêncio, pela cumplicidade e por não
denunciar fatos.
O ECA, portanto, organiza suas ações por meio de um sistema, denominado SGD, que desenha a ação
de vários órgãos ou instituições de forma integrada. Para desenhar melhor a atuação desses órgãos ou instituições, o ECA
os distribuiu em três eixos: promoção, defesa e controle.
O eixo da Promoção ou Atendimento caracteriza-se pelo desenvolvimento da “política de atendimento
dos direitos da criança e do adolescente” e subdivide-se em três tipos de programas, serviços e ações públicas:
I – serviços e programas das políticas públicas, especialmente das políticas sociais, afetos aos fins da
política de atendimento dos direitos de crianças e adolescentes;
II – serviços e programas de execução de medidas de proteção de direitos humanos; e
III – serviços e programas de execução de medidas socioeducativas e assemelhadas.
Portanto, de forma mais clara, como é possível reconhecer esse eixo?
É fácil. Pelos serviços, nas seguintes áreas:
- Assistência Social:
O Centro de Referência da Assistência Social (Cras) atua como a principal porta de entrada do Sistema Único
de Assistência Social (Suas), e é responsável pela organização e oferta de serviços da Proteção Social Básica nas áreas de
vulnerabilidade e risco social. O principal serviço ofertado pelo Cras é o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família
(Paif). O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) oferta serviços especializados e continuados a
famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos (violência física, psicológica e sexual, tráfico de pessoas,
cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, etc.). A oferta de atenção especializada e continuada deve ter
como foco a família e a situação vivenciada.
72
- Saúde
O Sistema Único de Saúde (SUS) abrange desde o simples atendimento ambulatorial até o transplante de órgãos,
garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. O SUS compõe-se de diferentes estruturas,
destacando-se: Programa Saúde da Família (PSF); Postos de Saúde; Unidades de Pronto Atendimento ou Pronto-Socorro;
Hospitais; Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
- Educação
A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizam, em regime de colaboração, os respectivos sistemas
de ensino. A educação escolar compõe-se de Educação Básica (Infantil, Fundamental e Ensino Médio) e Ensino Superior.
A Educação Infantil abrange as creches e pré-escolas (0 a 6 anos de idade). O Ensino Fundamental vai da 1ª à
9ª série (em 9 anos), e o Ensino Médio vai do 1º ao 3º ano. Há, ainda, a Educação Profissional Técnica de Nível Médio, a
Educação de Jovens e Adultos, a Educação Profissional e Tecnológica e o Ensino Superior.
- Serviços de Atendimento Socioeducativo
Verificado a prática de ato infracional, a autoridade competente pode aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviços à comunidade; IV – liberdade assistida; V –
inserção em regime de semiliberdade; VI – internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer uma das previstas
no ECA, art. 101, I a VI.
As medidas socioeducativas em meio aberto (III e IV) são executadas pela Prefeitura, enquanto as medidas V e VI
são executadas pelo Governo do Estado.
- Serviços de Acolhimento Institucional
- Disque Denúncia
Disque Direitos Humanos – Disque 100: O Disque 100 ampliou sua capacidade de atendimento,
incorporando outras áreas relacionadas à defesa de direitos humanos. Além do Módulo Criança e Adolescente, o
Disque 100 funciona atualmente com módulos que recebem denúncias de violação de direitos dos segmentos a
saber: população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros), pessoas idosas, pessoas
com deficiência e população de rua. Esse serviço recebe, encaminha e monitora denúncias de violação de direitos
humanos recebidas de todos os estados brasileiros. O serviço ampliou seu horário de funcionamento, atendendo
24 horas por dia, inclusive em domingos e feriados. Ao ligar para o Disque 100, a deve ser escolhida opção 1
para relato do caso de violência contra criança ou adolescente. As denúncias recebidas são anônimas, e o sigilo
é garantido, podendo ser feitas de todo o Brasil, por meio de discagem direta e gratuita para o número 100, ou
por mensagem eletrônica para o endereço [email protected]. Denúncias de pornografia infantil na internet
podem ser registradas por meio do endereço eletrônico www.disque100.gov.br.
73
O eixo defesa dos direitos de crianças e adolescentes caracteriza-se pela garantia do acesso à Justiça, ou
seja, pelo recurso às instâncias públicas e mecanismos jurídicos de proteção legal dos direitos humanos, gerais e especiais,
da infância e da adolescência. Compõe-se das seguintes instituições:
II – conselhos setoriais de formulação e controle de políticas públicas – dentre eles, destacam-se:
Conselho Municipal de Assistência Social, Conselho Municipal de Saúde, Conselho Municipal de Educação, Conselho
Municipal de Juventude etc.
Conselhos Tutelares – Segundo o artigo 136 do ECA, em cada município haverá, no mínimo, um Conselho
Tutelar composto de cinco membros, escolhidos pela comunidade local. Ao Conselho Tutelar compete acolher, denunciar,
averiguar, encaminhar e orientar todos os casos de violação dos direitos da criança e do adolescente e requisitar serviços
públicos nas áreas de saúde, educação, assistência social, previdência, trabalho e segurança. O Conselho Tutelar deve ser
acionado sempre que houver ameaça ou risco ou quando a violência já aconteceu.
Forças de Segurança (Polícia) – Responsáveis pela vigilância, prevenção e proteção das vítimas contra qualquer
tipo de violência, bem como pela investigação e responsabilização dos adolescentes em conflito com a lei. Entre estas,
destacam-se: Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal.
Defensoria Pública – Presta assistência judiciária gratuita, por meio de defensor público ou advogado nomeado,
assegurando o acesso à Justiça e garantindo a proteção dos direitos fundamentais desse público e mais especificamente dos
adolescentes em conflito com a lei.
Justiça – especialmente as varas da infância e da juventude e suas equipes multiprofissionais, as varas criminais especializadas, os tribunais do júri, as comissões judiciais de adoção, os tribunais de justiça, as corregedorias
gerais de Justiça.
Ministério Público – especialmente as promotorias de justiça, os centros de apoio operacional, as
procuradorias de justiça, as procuradorias gerais de justiça, as corregedorias gerais do Ministério Publico.
Ouvidorias – Trata-se de espaços onde o cidadão pode manifestar suas críticas, dar sugestões, fazer reclamações
e denúncias, pedir informações quanto aos serviços prestados por algum órgão público ou privado etc.
Centros de Defesa – São entidades de promoção e defesa de direitos de crianças e adolescentes pela intervenção
jurídico-social, por meio da articulação, mobilização e participação no controle social, para a garantia de sua proteção integral.
Essa proteção jurídico-social se dá mediante intervenções jurídico-judiciais, intervenções administrativas e intervenções
legislativas, focando, principalmente, ações nas violações de direitos cometidas pela ação ou omissão do Poder Público.
III – Tribunais de contas do Estado e municípios.
O que fazem os Conselhos de Direitos?
Os conselhos de direitos são responsáveis pela deliberação e controle das ações voltadas para a efetivação dos
direitos de crianças e adolescentes no Estado e municípios. Em nível federal, também há o Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente (Conanda).
Os conselhos dos direitos da criança e do adolescente devem acompanhar, avaliar e monitorar as ações públicas
de promoção e defesa de direitos de crianças e adolescentes, deliberando previamente a respeito, por meio de normas,
recomendações e orientações.
As deliberações dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente, no âmbito de suas atribuições e
competências, devem ser observadas pelos órgãos governamentais e pela sociedade civil organizada.
Como acompanhar as ações dos conselhos de direitos?
Tanto o Conselho Municipal quanto o Conselho Estadual se reúnem todos os meses para tratar de temas relativos
aos direitos das crianças e dos adolescentes.
O que fazem os conselhos setoriais?
Os conselhos setoriais são órgãos que reúnem representantes do governo e da sociedade civil para discutir,
estabelecer normas e fiscalizar a prestação de serviços públicos e privados no Município.
O que fazem os tribunais de contas?
Os tribunais de contas exercem jurisdição administrativa, julgando as contas dos administradores de recursos
públicos. Auxiliam os parlamentares (deputados e vereadores) na fiscalização das entidades da Administração Pública
(Governo do Estado e Prefeitura). Essa atividade é denominada controle externo.
Esses eixos atuam em diferentes instâncias de efetivação dos direitos. A população dispõe ainda de outros
instrumentos legais que podem ser utilizados: ações civis públicas, mandados de segurança, habeas corpus, etc.
Nesse sentido, reitera-se que as pessoas integrantes do SGD possam, cada vez mais, compreender a importância
de uma ação articulada. Somente com essa articulação e o seu fortalecimento será possível pensar na construção de uma
sociedade que se quer cada vez mais justa e saudável.
O controle das ações públicas de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente se dará
por meio de espaços de discussão coletiva, onde estejam presentes órgãos governamentais e entidades sociais.
Várias instâncias fazem parte desse eixo, destacando-se:
I – conselhos dos direitos de crianças e adolescentes – nesse caso, o Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente e o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, que atuam
também no eixo promoção.
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75
O SISTEMA DE GARANTIA DOS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Graça Gadelha1
Fernando Luz
Eliane Bispo
As vigorosas disposições contidas na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), aprovado em 19902, estabeleceram uma nova configuração do ponto de vista jurídico em relação aos direitos da
infância, da adolescência e da juventude no Brasil. O ECA – mais do que uma lei – é um projeto de sociedade! Essa
inovadora legislação foi construída de forma coletiva e dispõe de todo um conjunto de regras, normas e procedimentos a
partir dos quais se materializam esses direitos. As disposições contidas no ECA devem ser analisadas, portanto, a partir de
uma dimensão ética, de pressupostos filosóficos e políticos que orientam toda a sua concepção, considerada paradigmática
em conteúdo e forma. Na sua primeira parte, que vai do artigo 1º até o artigo 85, o ECA traz uma síntese de toda a sua
essencialidade e riqueza, quando aponta caminhos (as políticas de garantia de direitos) como deveres da sociedade, do
Estado e da família. Esses dispositivos propõem e detalham os deveres de instituições e atores em relação ao tratamento
a ser dispensado a crianças e adolescentes no país. É importante destacar que os deveres estão vinculados a uma tríplice
responsabilidade, conforme determina o artigo 2273 da Constituição Federal. Esse conjunto de direitos deriva de normativas
internacionais, principalmente da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, promulgada em 1989, que a Constituição
de 1988, de forma antecipada, cuidou de incorporar como lições cidadãs.
Toda essa conquista, na verdade, decorre de um processo histórico cujo desfecho somente foi possível alcançar
na década de 1990. Durante vários anos, sobretudo na década de 1970, a construção da história social brasileira em relação
a esses segmentos foi sendo construída de forma bastante equivocada, adotando por referência a Doutrina da Situação
Irregular, que permeou todo o conjunto das políticas sociais brasileiras com um caráter paternalista, assistencialista e
tutelar. Essa doutrina considerava que crianças e adolescentes, hoje reconhecidos como sujeitos ou titulares de direitos,
eram apenas “portadores de necessidades”, cujas vidas ficavam quase sempre vinculadas ao “humor” dos então chamados
Juízes de Menores. Essas autoridades – dentro de uma nova concepção – passam a trabalhar com uma nova visão, não mais
considerando crianças e adolescentes como seres tutelados pela Justiça. A superação do assistencialismo e do paternalismo
ocorre quando se passa a encarar o atendimento das necessidades básicas dessa população não como um favor ou caridade,
mas como direitos assegurados por lei. Com a vigência do ECA, impõe-se uma outra forma de compreender e agir em
relação a crianças e adolescentes, sustentada pela inovadora concepção da Doutrina da Proteção Integral. Essa doutrina
1
2
3
76
Socióloga, especialista em Políticas Públicas na área da infância e da juventude.
Lei federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
Art.227 -
estabelece um novo paradigma nos campos jurídico e social, ao criar vínculos normativos que asseguram a efetividade dos
direitos públicos subjetivos dessa população.
Embora possam parecer uma reunião de conceitos com fortes características de natureza subjetiva, a Doutrina da
Proteção Integral impõe que seja afirmada a concepção de responsabilidade ante as violações praticadas contra crianças e
adolescentes.
Utilizando-se uma proposta didática desenvolvida pelo professor Antônio Carlos Gomes da Costa, é possível
compreender a dimensão da promoção de direitos, trabalhando-os a partir de três macroconceitos: o direito à sobrevivência,
o direito ao desenvolvimento e o direito à integridade, que, traduzidos, refletem, em diferentes momentos, o estabelecido
pelo Artigo 227 da Constituição e o artigo 4º do ECA:
· vida, saúde e alimentação são consideradas como direito à sobrevivência;
· educação, cultura, profissionalização e lazer são definidos como direito ao desenvolvimento pessoal e
social;
· liberdade, respeito e dignidade se enquadram como direito à integridade física, psicológica e moral.
Ao se agrupar os três macroconceitos, é possível construir todas as possibilidades de reconhecimento
dos direitos de crianças e adolescentes relacionados a uma perspectiva de desenvolvimento humano. Importante chamar
atenção especial quando as violações ocorrem no campo da sexualidade, e, nesse caso, a questão deve ser reportada
especificamente ao direito à integridade: física, psicológica, moral. E para que crianças e adolescentes tenham efetivo
acesso aos direitos fundamentais, impõe colocar à disposição desse segmento um bem estruturado Sistema de Garantia de
Direitos (SGD).
O ECA reúne todas as respostas possíveis quando se dá conta de que o Estado, a família e a sociedade não
favorecem o espaço necessário para a garantia dos direitos. O Brasil dispõe de instrumentos jurídicos eficazes para o
exercício de uma avaliação comparativa entre o que determina a lei e o que demonstra a realidade.
É essa dimensão jurídica que dá legitimidade e sustentação à Doutrina da Proteção Integral. Há sanções, normas,
impedimentos que todos os cidadãos devem conhecer e observar. Portanto, o não-cumprimento de um dever jurídico traz
como consequência uma sanção. É assim no Estado brasileiro. Para isso é que há leis e normas. E também cidadãos que, em
nome da comunidade, podem garantir a efetividade desses direitos. Começa-se, então, a compreender a força do exercício
da autoridade4.
O ECA reconhece que a criança e o adolescente são vulneráveis e merecem a proteção integral do Estado, da
família e da sociedade. É importante observar que, ao eleger essas três grandes figuras, o ECA impõe a cada uma delas
obrigações e responsabilidades: à família, a obrigação de criar, de educar; à sociedade, a obrigação de zelar por todas
4
No ECA, a palavra autoridade só é citada em relação ao Juiz, ao Promotor Público e ao Conselheiro Tutelar.
77
essas crianças e adolescentes; e ao Estado, a competência de executar e promover políticas públicas capazes de garantir o
atendimento dos direitos assegurados por lei.
Tratar do SGD à luz do ECA significa, portanto, assegurar que direitos fundamentais relacionados a crianças e
adolescentes sejam efetivamente operacionalizados por instituições e/ou atores que integram o referido sistema.
Qual a proposta do ECA? É construir um sistema de garantia de direitos. Sistema, aqui, deve ser entendido como
um conjunto ordenado de atores e instituições responsáveis pela garantia dos direitos previstos em lei. A partir do artigo 4º
do ECA, é feita toda uma incursão nesses direitos, definindo-se a quem cabe a responsabilidade de assegurá-los. Para isso,
o legislador, sabiamente, faz uma descrição a partir da estrutura de um sistema. Tudo deve funcionar de forma articulada
e integrada. Ao descrever o artigo 19, referindo-se ao direito à convivência familiar e comunitária, o legislador estabelece
um conjunto de situações que precisam ser destacadas. A criança nasce vocacionada para viver em família. É tão forte esse
sentimento em assegurar essa condição que se ela não puder ser criada pela família original, são definidas opções: adoção,
tutela ou guarda. Se ela não tiver quem a adote, quem a tutele ou quem a guarde, então cabe ao Estado funcionar como seu
guardião, para garantir a sua vocação natural de viver e conviver com a família.
Quando o ECA dispõe sobre o direito à educação, à saúde, ao lazer, à profissionalização, em cada um desses
artigos determina também a quem cabe fazer o quê. Ao Estado? Em que condições? Desde a creche? E ao Estado, quanto
à saúde? Em que condições? Desde quando está no ventre da mãe, antes de nascer? Ao lazer? À cultura? Desde que se lhe
garanta o direito de brincar, que é o mais universal para todas as crianças do mundo, cabendo ao Estado prover as condições
propícias, como disponibilização de praças e equipamentos culturais etc., além de estimular que tudo isso esteja realmente
ao alcance dessa população.
Direito à profissionalização. A lei estabelece limites para o exercício de atividade produtiva por crianças e
adolescentes, que não devem trabalhar até completar a idade de 14 anos. Entre 14 e 16 anos, o adolescente pode exercer
uma atividade, na condição de aprendiz, desde que se promovam condições para sua formação e inserção qualificada
produtiva no mundo do trabalho. A partir dos 16 anos, pode trabalhar, mas assegurando-se-lhe todos os direitos trabalhistas
e benefícios, dentre outros.
Todo esse conjunto de direitos está muito bem descrito, e se expressa no SGD, em que são definidos papéis,
limites, responsabilidades e competências, em diferentes níveis e âmbitos: Executivo, Legislativo, Judiciário; federal,
estadual, municipal. Essas definições estão expressas no artigo 86 do ECA, que trata da política de atendimento de crianças
e adolescentes. Nesse dispositivo, encontra-se todo o conjunto de atribuições para cada um dos atores que compõem o
SGD, construído exatamente para que haja uma dinâmica na aplicação dos instrumentos e uma total interação dos atores.
O SGD dispõe de uma arquitetura muito bem montada. Quando falha um ator, o outro chega, discute e corrige.
Tudo deve ser feito de maneira que esse segmento não venha a sofrer situações graves de violação dos seus direitos. O
SGD é formado por um conjunto inter-relacionado de princípios, regras e ações. Por que falar também de um sistema de
78
proteção especial? Porque no conjunto da população de crianças e adolescentes, encontram-se determinados segmentos
para os quais nunca foi garantido o acesso aos direitos básicos. São aquelas situações consideradas as mais graves, como,
por exemplo, crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual; ou submetidos às mais diferentes formas de tortura; ao
trabalho infantil precoce; ou envolvidas em situações que demandam medidas socioeducativas, por cometimento de atos
infracionais; ou ainda, crianças em situação de alta vulnerabilidade social, pessoal (crianças portadoras de HIV/aids, ou
envolvidas com drogadição, por exemplo).
O SGD tem a finalidade específica de promover a exigibilidade do direito, na hipótese em que o Estado, a
sociedade e a família deixarem de cumprir seus deveres. Nesse sentido, deve ser concebido exatamente para que possam
ser delimitadas as suas responsabilidades pessoais, familiares, profissionais e institucionais. Discutir essas responsabilidades
é também tratar dos direitos que foram ameaçados ou violados. No eixo de defesa, a lei propõe envolver os atores que
foram escolhidos pela sociedade ou pelo poder público, para garantir a validade, a legitimidade e a eficácia da lei. O SGD
também trata da construção da igualdade da organização política e social por meio dos espaços públicos e institucionais.
Qual é o papel do Juiz, do Promotor, do Conselho Tutelar, da Defensoria Pública, da Polícia Rodoviária Federal,
da Polícia Civil, da Polícia Militar? Todos esses são atores/instituições que compõem o Sistema de Justiça, no âmbito do
SGD. Antes da cobrança pelos desvios de comportamento de crianças e jovens, sejam infratores, drogadictos ou envolvidos
em situações de violência sexual, cabe perguntar se lhes foram assegurados todos os direitos previstos na lei: convivência
familiar e comunitária, educação, saúde, lazer, cultura, profissionalização. Então, antes de falar de obrigações, deve-se
conferir onde o SGD falhou e como reverter essa situação.
A responsabilidade pela correção do desvio da realidade social, econômica e política envolve toda a sociedade.
O SGD possibilita o exercício da efetividade, da eficiência e da eficácia na garantia dos direitos. Muitas vezes o poder
público considera que já está fazendo a sua parte. E acredita que com isso todos os problemas estão resolvidos. Mas é
preciso ir além. É o compromisso de fazer e fazer bem feito. É o compromisso da eficácia com a política pública, garantindo
que os recursos destinados a essa área efetivamente priorizem a população mais vulnerável. É o SGD que vai garantir a
democratização e a transparência das ações públicas, das políticas, para que elas se tornem mais eficazes. Por outro lado,
deve-se fazer um acompanhamento sistemático de todas as ações relacionadas aos direitos de crianças e adolescentes.
Nessa perspectiva, deve-se destacar que o SGD só funciona se a população de fato participar de todo o processo
de implementação das políticas públicas, inclusive na fiscalização da aplicação dos recursos destinados a essa população.
Até por comando constitucional, a comunidade deve se empoderar de tal forma que conheça como a lei pode se traduzir
na prática ou como é possível transformar um direito em uma política pública. Na medida em que a população se mobiliza,
saindo do nível da indignação e partindo para a proposição, a causa da criança ganha mais aliados e fica fortalecida.
Assim, toda a base do SGD está orientada para concretizar e operacionalizar a política de atendimento de direitos
à criança e ao adolescente.
79
A legislação determina que o município seja um ator privilegiado nesse processo. É no município que se constrói
e se consolida o direito.
Destacam-se também os segmentos que formam a opinião pública e a iniciativa privada, que devem ser
sensibilizados para participar em diferentes frentes, em especial para apoio e aporte de recursos nos fundos de direitos
de crianças e adolescentes. Representações políticas, entidades de atendimento, enfim, cada um desses atores com
papéis e limites definidos no ECA deve trabalhar de forma bem integrada. Especial destaque cabe aos responsáveis pela
imputação de sanções, por meio da aplicação de medidas judiciais cabíveis contra aqueles que praticam violências diversas
contra crianças e adolescentes. É também uma forma de propiciar às vítimas toda a garantia do devido processo legal.
Desestrutura-se toda a base do SGD quando o poder público não cumpre as suas obrigações, quando a família não assume
as suas responsabilidades, quando a sociedade muitas vezes violenta a criança pelo silêncio, pela cumplicidade e por não
denunciar fatos.
O ECA, portanto, organiza suas ações por meio de um sistema, denominado SGD, que desenha a ação
de vários órgãos ou instituições de forma integrada. Para desenhar melhor a atuação desses órgãos ou instituições, o ECA
os distribuiu em três eixos: promoção, defesa e controle.
O eixo da Promoção ou Atendimento caracteriza-se pelo desenvolvimento da “política de atendimento
dos direitos da criança e do adolescente” e subdivide-se em três tipos de programas, serviços e ações públicas:
I – serviços e programas das políticas públicas, especialmente das políticas sociais, afetos aos fins da
política de atendimento dos direitos de crianças e adolescentes;
II – serviços e programas de execução de medidas de proteção de direitos humanos; e
III – serviços e programas de execução de medidas socioeducativas e assemelhadas.
Portanto, de forma mais clara, como é possível reconhecer esse eixo?
É fácil. Pelos serviços, nas seguintes áreas:
- Assistência Social:
O Centro de Referência da Assistência Social (Cras) atua como a principal porta de entrada do Sistema Único
de Assistência Social (Suas), e é responsável pela organização e oferta de serviços da Proteção Social Básica nas áreas de
vulnerabilidade e risco social. O principal serviço ofertado pelo Cras é o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família
(Paif). O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) oferta serviços especializados e continuados a
famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos (violência física, psicológica e sexual, tráfico de pessoas,
cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, etc.). A oferta de atenção especializada e continuada deve ter
como foco a família e a situação vivenciada.
80
- Saúde
O Sistema Único de Saúde (SUS) abrange desde o simples atendimento ambulatorial até o transplante de órgãos,
garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. O SUS compõe-se de diferentes estruturas,
destacando-se: Programa Saúde da Família (PSF); Postos de Saúde; Unidades de Pronto Atendimento ou Pronto-Socorro;
Hospitais; Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
- Educação
A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizam, em regime de colaboração, os respectivos sistemas
de ensino. A educação escolar compõe-se de Educação Básica (Infantil, Fundamental e Ensino Médio) e Ensino Superior.
A Educação Infantil abrange as creches e pré-escolas (0 a 6 anos de idade). O Ensino Fundamental vai da 1ª à
9ª série (em 9 anos), e o Ensino Médio vai do 1º ao 3º ano. Há, ainda, a Educação Profissional Técnica de Nível Médio, a
Educação de Jovens e Adultos, a Educação Profissional e Tecnológica e o Ensino Superior.
- Serviços de Atendimento Socioeducativo
Verificado a prática de ato infracional, a autoridade competente pode aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviços à comunidade; IV – liberdade assistida; V –
inserção em regime de semiliberdade; VI – internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer uma das previstas
no ECA, art. 101, I a VI.
As medidas socioeducativas em meio aberto (III e IV) são executadas pela Prefeitura, enquanto as medidas V e VI
são executadas pelo Governo do Estado.
- Serviços de Acolhimento Institucional
- Disque Denúncia
Disque Direitos Humanos – Disque 100: O Disque 100 ampliou sua capacidade de atendimento,
incorporando outras áreas relacionadas à defesa de direitos humanos. Além do Módulo Criança e Adolescente, o
Disque 100 funciona atualmente com módulos que recebem denúncias de violação de direitos dos segmentos a
saber: população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros), pessoas idosas, pessoas
com deficiência e população de rua. Esse serviço recebe, encaminha e monitora denúncias de violação de direitos
humanos recebidas de todos os estados brasileiros. O serviço ampliou seu horário de funcionamento, atendendo
24 horas por dia, inclusive em domingos e feriados. Ao ligar para o Disque 100, a deve ser escolhida opção 1
para relato do caso de violência contra criança ou adolescente. As denúncias recebidas são anônimas, e o sigilo
é garantido, podendo ser feitas de todo o Brasil, por meio de discagem direta e gratuita para o número 100, ou
por mensagem eletrônica para o endereço [email protected]. Denúncias de pornografia infantil na internet
podem ser registradas por meio do endereço eletrônico www.disque100.gov.br.
81
O eixo defesa dos direitos de crianças e adolescentes caracteriza-se pela garantia do acesso à Justiça, ou
seja, pelo recurso às instâncias públicas e mecanismos jurídicos de proteção legal dos direitos humanos, gerais e especiais,
da infância e da adolescência. Compõe-se das seguintes instituições:
Conselhos Tutelares – Segundo o artigo 136 do ECA, em cada município haverá, no mínimo, um Conselho
Tutelar composto de cinco membros, escolhidos pela comunidade local. Ao Conselho Tutelar compete acolher, denunciar,
averiguar, encaminhar e orientar todos os casos de violação dos direitos da criança e do adolescente e requisitar serviços
públicos nas áreas de saúde, educação, assistência social, previdência, trabalho e segurança. O Conselho Tutelar deve ser
acionado sempre que houver ameaça ou risco ou quando a violência já aconteceu.
Forças de Segurança (Polícia) – Responsáveis pela vigilância, prevenção e proteção das vítimas contra qualquer
tipo de violência, bem como pela investigação e responsabilização dos adolescentes em conflito com a lei. Entre estas,
destacam-se: Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal.
Defensoria Pública – Presta assistência judiciária gratuita, por meio de defensor público ou advogado nomeado,
assegurando o acesso à Justiça e garantindo a proteção dos direitos fundamentais desse público e mais especificamente dos
adolescentes em conflito com a lei.
Justiça – especialmente as varas da infância e da juventude e suas equipes multiprofissionais, as varas criminais especializadas, os tribunais do júri, as comissões judiciais de adoção, os tribunais de justiça, as corregedorias
gerais de Justiça.
Ministério Público – especialmente as promotorias de justiça, os centros de apoio operacional, as
procuradorias de justiça, as procuradorias gerais de justiça, as corregedorias gerais do Ministério Publico.
Ouvidorias – Trata-se de espaços onde o cidadão pode manifestar suas críticas, dar sugestões, fazer reclamações
e denúncias, pedir informações quanto aos serviços prestados por algum órgão público ou privado etc.
Centros de Defesa – São entidades de promoção e defesa de direitos de crianças e adolescentes pela intervenção
jurídico-social, por meio da articulação, mobilização e participação no controle social, para a garantia de sua proteção integral.
Essa proteção jurídico-social se dá mediante intervenções jurídico-judiciais, intervenções administrativas e intervenções
legislativas, focando, principalmente, ações nas violações de direitos cometidas pela ação ou omissão do Poder Público.
O controle das ações públicas de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente se dará
por meio de espaços de discussão coletiva, onde estejam presentes órgãos governamentais e entidades sociais.
Várias instâncias fazem parte desse eixo, destacando-se:
I – conselhos dos direitos de crianças e adolescentes – nesse caso, o Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente e o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, que atuam
também no eixo promoção.
82
II – conselhos setoriais de formulação e controle de políticas públicas – dentre eles, destacam-se:
Conselho Municipal de Assistência Social, Conselho Municipal de Saúde, Conselho Municipal de Educação, Conselho
Municipal de Juventude etc.
III – Tribunais de contas do Estado e municípios.
O que fazem os Conselhos de Direitos?
Os conselhos de direitos são responsáveis pela deliberação e controle das ações voltadas para a efetivação dos
direitos de crianças e adolescentes no Estado e municípios. Em nível federal, também há o Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente (Conanda).
Os conselhos dos direitos da criança e do adolescente devem acompanhar, avaliar e monitorar as ações públicas
de promoção e defesa de direitos de crianças e adolescentes, deliberando previamente a respeito, por meio de normas,
recomendações e orientações.
As deliberações dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente, no âmbito de suas atribuições e
competências, devem ser observadas pelos órgãos governamentais e pela sociedade civil organizada.
Como acompanhar as ações dos conselhos de direitos?
Tanto o Conselho Municipal quanto o Conselho Estadual se reúnem todos os meses para tratar de temas relativos
aos direitos das crianças e dos adolescentes.
O que fazem os conselhos setoriais?
Os conselhos setoriais são órgãos que reúnem representantes do governo e da sociedade civil para discutir,
estabelecer normas e fiscalizar a prestação de serviços públicos e privados no Município.
O que fazem os tribunais de contas?
Os tribunais de contas exercem jurisdição administrativa, julgando as contas dos administradores de recursos
públicos. Auxiliam os parlamentares (deputados e vereadores) na fiscalização das entidades da Administração Pública
(Governo do Estado e Prefeitura). Essa atividade é denominada controle externo.
Esses eixos atuam em diferentes instâncias de efetivação dos direitos. A população dispõe ainda de outros
instrumentos legais que podem ser utilizados: ações civis públicas, mandados de segurança, habeas corpus, etc.
Nesse sentido, reitera-se que as pessoas integrantes do SGD possam, cada vez mais, compreender a importância
de uma ação articulada. Somente com essa articulação e o seu fortalecimento será possível pensar na construção de uma
sociedade que se quer cada vez mais justa e saudável.
O ECA tem, portanto, regras claras e bem definidas. Mas uma lei só se legitima quando os cidadãos denunciam ou
provocam ações que possam fazer desencadear uma reação daqueles que legalmente devem restaurar direitos. É importante
compreender que não só o Poder Público, o Poder Judiciário ou o Ministério Público devem assegurar a plena cidadania de
crianças e adolescentes. Essa é uma tarefa que cabe a toda a sociedade brasileira, principalmente àqueles que acreditam
no vigor do ECA.
83
REDES DE PROTEÇÃO SOCIAL À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE: LIMITES E POSSIBILIDADES1
Antônio José Ângelo Motti2
Joseleno Vieira dos Santos3
A vida é feita da mesma substância de que são feitos os sonhos,
e dentre um sonho e outro ocorre nossa curta existência.
2. A doutrina alterativa
Tudo isso fez da Convenção um poderoso instrumento para modificação das maneiras de entender e agir de
indivíduos e comunidades, produzindo mudanças no panorama legal, suscitando o reordenamento das instituições e
promovendo a melhoria das formas de atenção direta. Isso ocorre porque a Convenção é um tratado de Direitos Humanos
que, ao ser ratificado pelos governos, implica o compromisso formal das respectivas nações de aceitar o que está enunciado
em seu conteúdo, assumindo ainda os deveres e obrigações que o novo instrumento lhes impõe.
·
A regra básica é que a criança e o adolescente devem ter todos os direitos que têm os adultos e que sejam aplicáveis
à sua idade. E, além disso, devem, ainda, ser-lhes garantidos direitos especiais decorrentes de sua caracterização
como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento pessoal e social.
W. Shakespeare
3. A proteção social de crianças e adolescentes no Brasil
1. A história da proteção social da criança e do adolescente no mundo
Em 1979, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, após examinar a proposta da Polônia, criou um
Grupo de Trabalho para, a partir dela, produzir um texto definitivo. Durante os dez anos seguintes, o texto foi intensamente
debatido pela comunidade internacional. Para participar desse esforço, um grupo de organizações não-governamentais
criou um Grupo ad hoc de ONGs, para auxiliar o Grupo de Trabalho encarregado pelas Nações Unidas de elaborar uma
proposta de texto final.
Em 1989, o Grupo de Trabalho apresentou a redação definitiva do Projeto de Convenção à Comissão de Direitos
Humanos da ONU. Em 20 de novembro desse mesmo ano, a Assembléia Geral aprovou, por unanimidade, o texto da
Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Nesse dia, o mundo comemorava a passagem do trigésimo aniversário da
Declaração Universal de 1959 e o décimo aniversário do Ano Internacional da Criança.
·
A Convenção é um instrumento de direito mais forte que a Declaração. A Declaração sugere princípios pelos quais
os povos devem guiar-se, no que diz respeito aos direitos da criança. A Convenção vai mais além: estabelece
normas, isto é, deveres e obrigações a serem observados pelos países que a ela formalizarem sua adesão. Ela
confere a esses direitos a força de lei internacional.
·
A Convenção trata de um amplo e consistente conjunto de direitos, fazendo das crianças titulares de direitos
individuais, como a vida, a liberdade e a dignidade, assim como de direitos coletivos: econômicos, sociais e culturais.
Após haver sido ratificada por vinte países, em 2 de setembro de 1990 a Convenção Internacional dos Direitos da
Criança, finalmente, entrava em vigor. Nascia ali o gérmen de uma rede de legislações nacionais voltadas para a proteção
de crianças.
A Constituição de 1988 consagra a luta de um grande número de pessoas interessadas e envolvidas na defesa dos
direitos das crianças e jovens brasileiros que, acompanhando as normativas internacionais, redirecionou o olhar dos poderes
públicos e da sociedade para esse segmento da população, tendo dois grandes princípios sobre os quais se assenta o novo
enfoque dos direitos da criança e do adolescente:
·
o interesse superior da criança e do adolescente; e
·
o reconhecimento, à criança e ao adolescente, do direito de expressar-se à medida que vão crescendo em idade
e em maturidade, sobre o modo como se aplicam os seus direitos na prática, estabelecendo o interesse maior de
todos pela infância e juventude.
O interesse superior das crianças e dos adolescentes, a partir da Convenção, passa a constituir-se num critério
essencial para o processo decisório em qualquer assunto capaz de afetar a população infantojuvenil. Vale a pena ressaltar
que, no Brasil, um ano antes de a Convenção ser aprovada pela ONU, nós aprovamos, em nossa Carta Constitucional
de 1988, um artigo que anunciava ao mundo nossa determinação para a instalação da Doutrina da Proteção Integral,
evidenciando a rede de responsáveis e o conjunto dos direitos:
·
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Em 1990, esse artigo da Constituição foi regulamentado por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
que reproduz esse artigo e inclui os deveres da comunidade, ou seja, a parte da sociedade mais próxima da criança.
O artigo 227 da Constituição, adicionado ao que estabelece o artigo 86 do ECA, configura o que denominamos
REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL, e deles podemos extrair o papel de cada um dos segmentos, papel esse que a lei estabelece
como dever. Dessa forma, vamos verificar:
1
2
3
84
Texto extraído da Publicação “Parâmetros de Atuação do Sentinela” CADERNO 2 – ORIENTAÇÃO À PRÁTICA – UFMS/MDS (no prelo).
Coordenador geral do Programa Escola de Conselhos/PREAE/UFMS.
Assistente da Universidade Católica de Goiás.
85
ECA, art. 86: “...conjunto articulado de ações governamentais, não-governamentais, da
União, dos Estados e dos Municípios.”
4. O que é Rede de Proteção Social?
6. Por que trabalhar em rede no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes? 55
Construir e trabalhar em rede, no que tange ao enfrentamento da violência sexual praticada contra crianças e
adolescentes, é imprescindível, não apenas porque essa possibilidade de gestão está posta para as sociedades e culturas,
nas primeiras décadas do terceiro milênio, mas também porque:
Antes de se avançar na conceituação de rede, é oportuno trazer a discussão dois modelos de rede44 bastantes
conhecidos em nossa cultura e, especialmente, em nossa história popular. O primeiro é a rede de pescar. Sim, aquela mesma
que o pescador utiliza na pescaria. Mas o que a rede de pescar tem a ver com a nossa Rede de Proteção Social? Ela pode
nos ajudar a visualizar que tipo de Rede de Proteção Social queremos construir. Primeiramente, nos interessa a atitude do
pescador, o cuidado do pescador que, antes de sair para o mar, verifica quais são as condições físicas da rede, se tem furos,
aberturas maiores que as previstas. Ele abre, estende a rede e verifica as suas condições... A forma da rede de pescar é muito
interessante, pois não tem início, meio nem fim, mas um entrelaçamento de pontos que dá a ideia de distribuição equitativa.
Tem flexibilidade para tomar a forma do peixe e resistência para suportar o balanço das águas e a força dos peixes. O
segundo modelo é a rede de dormir, muito usada no Centro-Oeste e, especialmente, no Norte e no Nordeste. A rede de
dormir nos dá a ideia de proteção, cuidado, acolhimento; por isso é uma rede muito forte e, também, resistente, que distribui
o peso, molda-se ao corpo de quem a está utilizando e, acima de tudo, é confortável. Esses dois modelos de rede nos dão
indicativos do tipo de Rede de Proteção Social que queremos construir. Portanto, são bastante ilustrativas e referenciais.
·
estamos lidando com um fenômeno, de rara complexidade, recorrente na história humana e, em especial, na
história brasileira, que se diversifica e ganha contornos diferentes em cada época, cada cultura, cada região e cada
território;
·
os fatores responsáveis pela sua ocorrência são múltiplos e se constituem em um “nó” de difícil resolução, segundo
Safiotti (1995);
·
lidamos com redes de exploração sexual com níveis diferenciados de organização, às vezes informais (taxistas,
vendedores ambulantes, recepcionistas de hotéis etc), e, em muitos casos, com níveis de organização que garantem
alta lucratividade, como no caso do tráfico doméstico e internacional para fins de exploração sexual comercial;
·
envolve a pedofilia e a pornografia infantil pela internet;
·
são diversos os atores envolvidos na sua ocorrência, tanto no ambiente doméstico (abuso sexual intrafamiliar),
quanto nas situações de exploração sexual comercial (pornografia infantojuvenil, turismo sexual, tráfico e
prostituição);
5. Então, afinal o que é uma rede?
·
o atendimento das crianças, dos adolescentes e famílias em situação de violência sexual exige uma equipe
multiprofissional, interdisciplinar, com o envolvimento das diversas políticas públicas setoriais e a construção de
serviços de referência e contrarreferência; e
·
a complexidade do fenômeno violência sexual exige a articulação e a integração efetiva de políticas na
perspectiva do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, que define
ações nos seguintes eixos: análise da situação, mobilização e articulação, prevenção, atendimento,
defesa e responsabilização e protagonismo juvenil.
Falar em rede é falar de algo muito antigo. Tão antigo quanto a história da humanidade, já presente, inclusive,
na forma de organização da natureza. Contudo, as mobilizações sociais, com o consequente processo de democratização
da sociedade brasileira, no final dos anos setenta e início dos anos oitenta, trouxeram à tona a reivindicação pela plena
participação, pela construção de uma cidadania que tem na base a garantia de direitos coletivos e individuais.
Dessa forma, podemos definir Rede de Proteção Social como uma articulação de pessoas, organizações e
instituições com o objetivo de compartilhar causas e projetos, de modo igualitário, democrático e solidário. É a forma de
organização baseada na cooperação, na conectividade e na divisão de responsabilidades e competências. Não é algo
novo, mas fundamentalmente uma concepção de trabalho (LÍDIA, 2002); é uma forma de trabalho coletivo, que indica a
necessidade de ações conjuntas, compartilhadas, na forma de uma “teia social”, uma malha de múltiplos fios e conexões.
É, portanto, antes de tudo, uma articulação política, uma aliança estratégica entre atores sociais (pessoas) e forças
(instituições), não hierárquica, que tem na horizontalidade das decisões, e no exercício do poder, os princípios norteadores
mais importantes.
A Norma Operacional Básica (NOB)/2005, do Sistema Único da Assistência Social, descreve a Rede
Socioassistencial como sendo “um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade que oferta e opera
benefícios, serviços, programas e projetos, o que supõe a articulação entre todas essas unidades de provisão de proteção
social, sob a hierarquia básica e especial e ainda por níveis de complexidade.” (p. 22)
4
4
A primeira vez que ouvimos a comparação das redes de pescar e de dormir com a Rede de Proteção Social foi no II Encontro da Comissão Interestadual da Região Centro-Oeste
de Combate à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (Circo), realizado em Cuiabá-MT, em julho de 1999, que teve como tema As Redes de Proteção Social, numa palestra de Neide
Castanha, do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) e atualmente Secretária Executiva do Comitê Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração
Sexual de Crianças e Adolescentes.
86
Na temática violência sexual e, talvez, em todos os temas com essa dimensão, trabalhar articulando redes
significa que as pessoas, os atores sociais e as organizações se reconhecem com limitações e, também, com possibilidades.
Ninguém e nenhuma organização é suficiente para responder e implementar ações totalmente resolutivas em seu próprio
âmbito de atuação. São competências e responsabilidades legais, institucionais, constitucionais, definidas pela missão, pela
finalidade e pelos objetivos de cada instituição e organização. Contudo, cada instituição ou pessoa em seu raio de ação tem
algo a falar, a fazer, a propor e, especialmente, a contribuir para melhor compreensão do fenômeno e para proteção das
crianças, dos adolescentes e das famílias em situação de violência sexual.
Trabalhar em rede é, antes de tudo, reconhecer que todos os indivíduos e organizações são dotados de recursos, de
capacidades, de possibilidades, e que, também, são possuidores de fragilidades, de carências e de limitações.
5
5
Vide texto “Marcos conceituais”. Caderno 1 – Aspectos Teóricos, 2006.
87
7. Como se organiza uma Rede de Proteção Social?66
·
Construir uma Rede de Proteção Social não constitui tarefa simples, pois envolve muita participação, assunção de
responsabilidades, divisão de tarefas e, especialmente, mudança de mentalidade. Não é um investimento que
Intervenção: deve ser planejada, tomando-se as medidas cabíveis de acordo com a gravidade de cada caso. Áreas
de intervenção: saúde (física e mental), social e jurídica.
·
Formação: é muito importante para o aumento da qualidade do atendimento. A formação contínua pode ser feita
por meio de cursos, seminários, supervisões, etc.
·
Pesquisa: é importante para construir estatísticas e teorias confiáveis, que vão subsidiar o planejamento das ações
de intervenção (políticas públicas).
·
Prevenção: é a estratégia privilegiada para combater a (re)produção da violência contra crianças, adolescentes e
mulheres.
[...] se restringe somente a uma oficina, um seminário ou uma reunião, com certeza, o trabalho não vai decolar. Poderá
até sensibilizar as pessoas e as instituições para a importância de um trabalho em Rede, mas o “fazer acontecer” exige
um processo continuado, passo a passo, temperado com muita paciência e persistência (CARTILHA CONSTRUINDO
REDES DE ATENÇÃO, 2005).
E, entre os passos importantes, são fundamentais:
. estabelecer uma Agenda de Trabalho comum;
. definir um calendário de reuniões;
. constituir um processo permanente de mobilização para os encontros e reuniões;
. ter uma condução democrática que envolva todos;
. definir que organização será responsável pela secretaria executiva da Rede de Proteção Social;
. registrar todos os eventos, reuniões e encontros; e
. estabelecer um calendário de visitas para sensibilizar os gestores das diversas políticas públicas e organizações
da sociedade civil.
Muitas vezes, nem todas as instituições têm condições ou estão sensibilizadas para participar da Rede. O
jeito é começar com quem pode e está a fim e depois ir envolvendo outras instituições e outros grupos.
Pode também ser uma boa opção priorizar um município ou uma região para mostrar o impacto de um
trabalho em Rede (CARTILHA CONSTRUINDO REDES DE ATENÇÃO, 2005),
·
·
realizar o levantamento de todas as organizações e instituições governamentais e da sociedade civil que, direta
ou indiretamente, têm a ver com o enfrentamento, no caso, da violência sexual contra crianças e adolescentes. Um
dos primeiros passos e etapas consiste no mapeamento dos serviços ofertados, das lacunas, das carências e das
deficiências.
As redes se estruturam/organizam a partir de múltiplos níveis de operacionalização, e devem dispor de equipes
multiprofissionais e interinstitucionais, atuando nas seguintes áreas:
·
·
6
88
Notificação: procedimento básico para a identificação do tipo de violência. Possibilita o planejamento das políticas
de ação e intervenção.
Diagnóstico: caracteriza a natureza da violência, verificando a gravidade e o risco de quem está submetido a essa
situação. Norteia as medidas mais adequadas de intervenção nos planos social, jurídico, psicológico e/ou médico.
6
8. O lugar das pessoas (facilitadores) na organização das Redes de Proteção Social
Para descrever o papel e o perfil do Ponto Focal, figura muito adotada pelos movimentos sociais e pelas organizações,
para estabelecer o processo de mediação e articulação das instâncias, no sentido da construção da Rede de Proteção Social,
a Cartilha Construindo Redes de Atenção (2005, p. 12) diz:
O Ponto Focal tem o papel de dinamizar as relações entre os integrantes e de criar condições
para que a Rede vá se fortalecendo enquanto um modelo de gestão compartilhada. Para isso,
é necessário que os Pontos Focais sejam pessoas com perfil de liderança facilitadora. Uma
instituição ou grupo pode até ter legitimidade para mobilizar o processo, mas se a pessoa ou as
pessoas que “encabeçam” essa mobilização forem centralizadoras, não tiverem capacidade de
articulação, entre outras limitações, o processo obviamente terá mais dificuldades para decolar.
O Ponto Focal, o Facilitador, ou, ainda, o Articulador, deve ser aquela pessoa que cria as condições favoráveis para
o processo de mobilização; deve ser político, para saber negociar, para fazer avançar a legitimação política e social do
processo de construção da Rede de Proteção Social (CADERNO REFLEXÃO E PRÁTICA, 2002).
No processo de construção da Rede de Proteção Social, as relações devem se pautar pelo profissionalismo, pelas
atribuições e competências de cada instituição. Contudo, as relações sempre serão crivadas por relações sociais, portanto,
humanas (limites e possibilidades), e, assim, as marcas, a forma de fazer, o nível de qualificação/formação, a concepção de
mundo, de criança, de vida etc, das pessoas também estarão presentes, e demarcarão todo o processo.
Como já mencionado, Rede de Proteção Social é uma aliança estratégica entre atores sociais (pessoas) e forças
(instituições), que deve potencializar e contribuir para que os conselhos de defesa de direitos elaborem políticas públicas
intersetoriais de atendimento; sejam implementados serviços/ações, programas e projetos; estabeleçam-se formas de
controle social efetivos; e se adotem estratégias que fomentem a participação das organizações da sociedade civil e da
comunidade local.
Tão importante quanto o Ponto Focal, ou até mais, é a Organização Focal, que pode ser o CREAS/Sentinela, a
Secretaria de Saúde, a Secretaria de Educação, algum dos conselhos (de direitos ou da assistência) ou o Fórum/Comitê/
Comissão de Enfrentamento da Violência Sexual, escolhida de comum acordo entre as organizações e pessoas participantes,
respeitando-se a trajetória, a história e o nível de organização e mobilização de cada localidade.
Vide Texto: “Integração de ações para o enfrentamento á violência sexual infanto-juvenil.” Caderno 2 – Orientação e Prática, 2006.
89
Além de articular e integrar serviços e ações já implementados, que organizadamente fiquem mais visíveis e
disponíveis para as pessoas que delas necessitarem, a Rede de Proteção Social, com certeza, requererá investimentos
humanos, materiais e financeiros que deverão ser assumidos pelo poder público.77
9. Como a Rede de Proteção deve estar organizada ou composta?
·
Atenções Primária, Secundária e Terciária: os níveis de atenção devem ser diferenciados, de acordo com o estágio
de desenvolvimento da criança ou adolescente, da dinâmica familiar e dos níveis de violência (tipo de violência,
duração, pessoas envolvidas etc).
·
Referência e Contrarreferência: atendimento e encaminhamento para outras organizações que atuam em áreas
específicas, de acordo com a necessidade da criança, do adolescente e da família, do tipo e da complexidade da
violência vivenciada.
·
Proteção Jurídico-social – defesa dos direitos das crianças e adolescentes em situação de violência sexual. Buscar
organizações que atuam na defesa de direitos, escritórios-modelo de universidades e outras parcerias, se não
houver profissionais da área jurídica no serviço de enfrentamento à violência sexual.
·
Atendimento, de qualidade, de todos os casos de violência, sem exceção. Deve buscar a descentralização e a
regionalização do atendimento, de forma a possibilitar que as crianças e os adolescentes sejam atendidos o mais
próximo possível de suas residências.
Redução do número de crianças, adolescentes e famílias envolvidos com violência.
11. O que a Rede de Proteção Social deve proporcionar?
·
Conhecimento crescente, por meio de estudos e pesquisas, do fenômeno abuso sexual e exploração
sexual praticados contra crianças e adolescentes (locais de ocorrência, perfis dos envolvidos, tipos de violência,
características etc).
·
Mapeamento e organização dos serviços, das ações, dos programas e projetos por nível de complexidade.
·
Fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos.
·
Construção de Fluxos: de Denúncia e Notificação, de Atendimento e de Defesa e Responsabilização. O Fluxo da
Atenção, com as organizações participantes, com endereços, telefones, nomes dos responsáveis, deve ser divulgado
(por meio de fôlderes, cartazes e meios de comunicação de massa) para toda a comunidade local.
·
Integração dos programas, projetos, serviços e ações que direta ou indiretamente tenham relação com o
enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes.
·
Atenção e Proteção Integral.
·
Construção e implantação de instrumentais comuns para atendimento, encaminhamento e acompanhamento dos
casos (fichas, banco de dados e informações).
Proteção imediata às crianças e aos adolescentes em situação de violência sexual, bem como de suas famílias.
·
Imediato afastamento da situação de violência. Como define o artigo 130 do ECA, o agressor deve ser afastado no
caso em que a moradia for comum.
·
·
Promoção da família: encaminhamento das famílias em situação de violência para serem atendidas pelas demais
políticas sociais públicas, de acordo com o Plano de Intervenção, elaborado com a plena participação dos usuários,
como protagonistas. O atendimento deve proporcionar autonomia e independência crescente das famílias nas
dimensões econômica, social e cultural.
Produção de materiais informativos para mobilizar e articular a comunidade local no enfrentamento da violação
dos direitos de crianças e adolescentes e materiais formativos para os profissionais e operadores da Rede de
Proteção Social.
·
Melhoria do fluxo de comunicação e de informações.
·
Capacitação e qualificação permanente de todos os operadores e profissionais que atuam nas diversas organizações
e entidades que compõem a Rede de Proteção Social local.
·
Otimização dos recursos humanos e materiais, quase sempre escassos, compartilhando-os.
·
Definição de competências (de acordo com o interesse e a missão das organizações participantes).
·
Atribuição de responsabilidades, a partir do planejamento coletivo e do estabelecimento de uma agenda comum
de trabalho.
·
Descentralização do atendimento, especialmente evitando a concentração da maioria das ações/atividades numa
única organização, seja pública ou não-governamental.
Mobilização e articulação.
10. O que a Rede de Proteção Social deve alcançar?
90
·
·
·
7
o processo de atendimento não deve, no seu desenvolvimento, perpetuar ou mesmo causar mais traumas.
·
Resolubilidade: interrupção do ciclo de violência sofrida por crianças e adolescentes, bem como a superação dos
traumas, dos danos secundários e demais sequelas deixadas pela vivência na situação de violência.
·
Fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários e garantia da continuidade do crescimento físico, emocional,
psicológico e sexual, protegido e resguardado de qualquer tipo de violência, de maus tratos e de negligência.
·
Não revitimização: além de interromper o ciclo de violência em que a criança ou o adolescente estejam envolvidos,
7
Vide Texto: “A Política Nacional de Assistência Social e o Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes.” Caderno 2 – Orientação e Prática, 2006.
91
Evitar despolitização dos conflitos em nome da “união e harmonia”, nem sempre é o melhor caminho, pois as redes
são compostas por organizações e pessoas com diferentes entendimentos, visões, prioridades e concepções. Isso deve ser
visto como elementos qualificadores.O caminho tem que ser sempre do diálogo, da busca do entendimento, da negociação
e da construção do consenso, a partir da aceitação das diferenças.
OS CAMINHOS DA DENÚNCIA
12. Capacitação: a palavra de ordem
Segundo Lídia (2002), que aborda a experiência de Curitiba na organização da Rede de Proteção Social, “a
implantação de uma Rede de Proteção não implica necessariamente em grandes investimentos do setor público ou privado.
Tem como base a mudança de forma de olhar dos profissionais que prestam assistência às crianças e adolescentes e suas
famílias, no sentido de estar orientando, acompanhando, diagnosticando precocemente e prestando assistência às vítimas
em situações de risco para violência, com o apoio dos meios de proteção legal”.
O primeiro e maior desafio talvez seja sensibilizar os profissionais para mudarem a lógica do atendimento que vem
sendo desenvolvido; ter um olhar em que a prioridade seja a defesa, a proteção e a atenção à criança e ao adolescente em
situação de violência. E esse “olhar”, investigador e acolhedor, só será possível num processo permanente de capacitação,
formação e qualificação conjunta dos profissionais que atuam nos diversos serviços e políticas setoriais.
CONFIGURAÇÃO DA REDE DE PROGRAMAS, SERVIÇOS E AÇÕES DE PROTEÇÃO SOCIAL ÀS CRANÇAS E
ADOLESCENTES
A FORÇA NUCLEADORA DA CRIANÇA
A cidadania da criança e do adolescente
pressupõe a atuação de um conjunto
articulado de políticas, programas e
serviços, formando uma Rede de
Proteção Integral aos
seus direitos e atenção
de suas necessidades
básicas.
LEI nº 8.069/1990
Art. 86:
O ATENDIMENDO AOS
DIREITOS DA CRIANÇA
E DO ADOLESCENTE
DAR-SE-Á POR MEIO DE UM
CONJUNTO ARTICULADO
DE AÇÕES
GOVERNAMENTAIS,
NÃO-GOVERNAMENTAIS,
DA UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS.
92
93
13. BIBLIOGRAFIA
Cartilha Construindo Redes de Atenção à Mulher em Situação de Risco Social e Violência. Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura
de Goiânia. Goiânia, 2005.
PROTEÇÃO DOS DIREITOS SEXUAIS A PARTIR DA PERSPECTIVA DO PÚBLICO-SUJEITO
Rebeca Ribas1
Cartilha da Rede de Atenção a Mulheres, Crianças e Adolescentes em situação de violência. Goiânia, 2003.
Protagonismo juvenil – dos adolescentes como problema aos adolescentes como solução.
CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. Gestão municipal dos serviços de atenção à criança e ao adolescente. São Paulo: IEE PUC-SP/
CBIA, 1995.
Todo processo de decisão ou de formulação de políticas, em qualquer âmbito, deve levar em conta a participação dos
públicos aos quais se refere. Esse paradigma, que hoje parece tão óbvio, é uma construção nova no Brasil, e tem origem
num árduo percurso de luta pela democracia e pelo reconhecimento da cidadania, que tem como marcos mais expressivos
o movimento contra a dit adura, na década de 1960, e a mobilização pela Constituição aprovada em 1988.
Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – ONU, 1989.
Constituição Federal de 1988.
COSTA, Antônio Carlos Gomes. Mais que uma lei. São Paulo: IAS, 1998.
BRASIL. Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras providências.
LÍDIA, Vera. Redes de proteção: novo paradigma de atuação. Experiência de Curitiba. Curitiba, 2002. (mimeo).
OLIVEIRA, Maria Luíza Moura. Atenção a mulheres, crianças e adolescentes em situação de violência. Redes de atenção: a experiência
de Goiânia. Goiânia, 2004. (mimeo).
PLANO Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil. Ministério da Justiça. Brasília, 2002.
SAFFIOTI, H. I .B. A exploração sexual de meninas e adolescentes: aspectos históricos e conceituais. In: BONTEMPO, Denise et al (Orgs.).
Exploração sexual de meninas e adolescentes no Brasil. Brasília: UNESCO/CECRIA, 1995.
SANTOS, Joseleno Vieira. A exploração sexual comercial de adolescentes na região metropolitana de Goiânia: um estudo de
depoimentos da CEI. Goiânia: UFG, 2002. (Dissertação de Mestrado).
SEDA, Edson. A proteção Integral. Campinas: Editoras Adês, 1998.
SEDA, Edson; MOTTI, Antônio J. A. A criança e seu estatuto no Brasil. Campinas: Editoras Adês, 1998.
No caso dos adolescentes, esse processo teve início ainda mais recentemente, no final dos anos 80, e culminou com a
aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/1990). Até aquele momento, o olhar da sociedade
em geral refletia uma percepção a respeito dos meninos e meninas como um problema social, expressa em políticas de
caráter assistencialista/paternalista ou ainda coercitivo/repressivo.
Nesse sentido, a aprovação do ECA representou um grande avanço. A princípio, por ser um marco legal importante, que se
tornou uma ferramenta fundamental para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Depois, porque provocou uma
discussão mais ampliada sobre o tratamento dado a esse segmento, que gerou uma série de novas iniciativas, voltadas para
responder às novas demandas, especialmente nos campos da educação, da saúde e da cidadania.
É nesse cenário que surge o conceito de protagonismo juvenil. A palavra “protagonista” vem do grego protagonistés,
que significa “o principal lutador”2 expressão também apropriada pelo teatro para representar o personagem principal de
uma trama. Presente em publicações e programas de organismos internacionais, organizações não governamentais (ONGs),
órgãos de governo e nos discursos de educadores, o conceito traz em si duas dimensões.
A primeira, na definição de Gomes da Costa (apud ABRAMO, 2004), enfatiza uma forte perspectiva educativa, um processo
pedagógico que leva à preparação para a cidadania e à formação de adolescentes protagonistas, por meio do seu
desenvolvimento pessoal, social e político, como afirmam Vieira e Oliveira (2007).
No âmbito pessoal, as citadas autoras destacam a construção da autonomia, que envolve a ressignificação da relação do
adolescente consigo mesmo, de modo a estimular a sua capacidade de fazer escolhas e de assumir consequências advindas
de cada decisão.
No aspecto social, observa-se uma grande ênfase na solidariedade, que provoca uma reconstrução na relação do adolescente
com o outro, resultando num diferenciado olhar e postura frente às pessoas e à vida, mais voltado para a responsabilidade,
a partilha e a cooperação.
1
Psicóloga, mestranda em Desenvolvimento e Gestão Social, pela Universidade Federal da Bahia.
2
Expressão citada no texto Protagonismo Juvenil: perspectiva no Brasil, organizado por Talita Meireles Flores e Ronilce Cavichioli de Santana (Capacitação de Redes Locais – Caderno
de Textos PAIR, 2009, p.161).
94
95
No componente político, destaca-se o processo de construção da cidadania e da participação, do empoderamento e da
apropriação, pelos adolescentes, do seu espaço e do seu lugar no mundo. A partir da realidade vivenciada e percebida por
eles, estabelece-se uma relação de parceria efetiva, rompendo com o antigo paradigma de uma atuação “para” adolescentes,
que dá lugar a uma relação “com” (OLIVEIRA, VIEIRA; 2007).
Na segunda dimensão, é chamada a atenção para a maneira como os jovens podem
[...] influir no curso dos acontecimentos na vida comunitária e social mais ampla. Ou seja, o
protagonismo juvenil é uma forma de reconhecer que a participação do adolescente pode gerar
mudanças decisivas na realidade social, ambiental, cultural e política em que estão inseridos
(ABRAMO, 2004, p. 23).
Após uma década de experimentação, alguns questionamentos foram levantados em relação ao termo, sendo relatados
por Castro e Abramovay (2009). Alguns deles pontuam que a expressão pode sugerir uma pseudoliberdade de ação dos
adolescentes e jovens, sem nenhum apoio adulto, nem aportes materiais, de conhecimentos ou de reflexão crítica. Entretanto,
esses argumentos parecem, muito mais, ser frutos de práticas pedagógicas equivocadas, do que propriamente um problema
conceitual.
As citadas autoras afirmam que, independentemente das críticas feitas, é impossível negar a importância que o protagonismo
juvenil teve e ainda tem no Brasil.
Chamados a participar, os jovens desenvolvem habilidades importantes na defesa de direitos,
bem como interagem com diversas linguagens e tipos de engajamento, utilizando ferramentas
que lhes permitem acessar outras informações à luz de perspectivas transformadoras (CASTRO;
ABRAMOVAY, 2009, p. 31-32).
De fato, nos anos 90, a discussão em torno do protagonismo juvenil recebeu uma contribuição fundamental, que gerou a
ressignificação do papel da juventude como agente de transformação social e o surgimento de inúmeras experiências de
formação cidadã para adolescentes e jovens, sobretudo no âmbito das ONGs.
Esse primeiro momento abre caminho para um período posterior, nos anos 2000, que coloca em foco a efetivação da
participação juvenil como um direito. Este, segundo o Conselho Nacional de Juventude, seria fruto de um conjunto de
políticas públicas promotoras de autonomia e empoderamento, enfatizando, como afirmam Castro e Abramovay (2009),
postos de decolagem, que devem incluir iniciativas nas áreas de educação e trabalho.
96
Rabello (apud FLORES; SANTANA, 2009) complementa, sugerindo que, o Estado, a família e os adultos em geral deveriam
abrir espaços de escuta para que os jovens, enquanto cidadãos, expressem suas expectativas em relação à escola, à saúde,
ao lazer etc. Segunda a autora, “só assim podem desenvolver-se, agregar valores e atuar em prol da coletividade”.
Esse debate é reforçado por um desejo da própria juventude por oportunidades e condições de participação. Ao contrário do
senso comum, que a enxerga como alienada e descompromissada, vários estudos, no país, têm apontado, segundo Brenner
e Carrano (apud CASTRO; ABRAMOVAY, 2009), que
[...] o interesse e a participação dos jovens na vida pública não se esvaziou, ainda que os
contextos sociais e econômicos estejam cada vez mais encurralando jovens para o precário
mercado de trabalho, tomando o tempo livre para agrupações (apud CASTRO; ABRAMOVAY,
2009, p. 39).
Um exemplo disso foi a pesquisa realizada com 47,8 milhões de jovens brasileiros, em que 27,3% deles declararam que
participam ou já participaram de alguma organização associativa, como “ONGs, movimentos sociais, partidos políticos,
grupos religiosos, ecológicos, sindicatos, agremiações esportivas, grupos de dança, de música e congêneres” (CASTRO;
ABRAMOVAY, 2009, p. 39).
Formas e espaços de participação
Como já visto acima, as suposições acerca da atual apatia juvenil não são reforçadas pelas pesquisas sobre o tema. Existe
certo consenso entre diversos autores de que a omissão e/ou dificuldade de participação de adolescentes e jovens não
é uma característica intrínseca à condição juvenil, nem é maior do que para o conjunto do povo brasileiro. O cenário a
que assistimos hoje, no nosso país, é resultado de um ainda incipiente processo de democratização, que impõe uma série
de aprendizados e desafios, principalmente para os mais jovens. Nesse contexto, Abramo (2004, p. 11) lembra que essa
aparente recusa de participação também pode conter
[...] a emissão de recados críticos à sociedade, que também pode ser interpretada como
impugnação, como repulsa a um sistema do qual se sentem excluídos.
Segundo essa autora, é difícil saber se, em termos numéricos, há mais ou menos jovens participando em algum tipo de
ação coletiva do que em gerações passadas, como na da década de 1960, que, com grande frequência, é referenciada
para comparativos com a atual. O que se sabe, segundo Castro e Abramovay (2009), é que há uma mudança qualitativa
nas formas de participação, que a cada dia mais se afasta de modelos mais tradicionais, como o dos partidos, sindicatos e
97
grêmios estudantis. Abramo (2004, p. 11) aponta algumas dessas formas, que passariam:
[...] pela participação individual ou grupal em organizações comunitárias, ou em torno dos mais
diferentes tipos de causas, [...] como voluntários em distintos tipos de atividades organizadas
por diferentes tipos de instituições; participação em movimentos informais dos mais distintos
tipos, em grupos de lazer, em movidas culturais, em “tribos”, assim também [...] em formas
violentas e destrutivas com relação à ordem e segurança social, como no caso de pandillas e
algumas torcidas organizadas de esporte.
Castro e Abramovay (2009, p. 30) acrescentam que há
uma preferência dos jovens por campos identitários como gênero, raça, ecologia, direitos sexuais
e digitais e o movimento Hip-Hop. Esses, assim como as redes virtuais, grupos de estudos,
fóruns mundiais e ONGs, para muitos, têm representado uma nova configuração da prática
juvenil.
Finalmente, Abramo (2004, p. 13) ressalta o destaque que muitos analistas têm dado às atuações coletivas juvenis nos
campos da cultura e da comunidade, e reafirma a natureza distinta das ações contemporâneas:
[...] poucas das organizações aspiram a uma representatividade generalizante e unitária da
categoria juvenil, poucas empunham projetos de transformação global; muitas delas também
não aspiram a nenhum tipo de institucionalização nem mesmo a um grau mais acabado de
formalização. A maior parte dessas ações se realiza em torno de projetos concretos, ou ações de
curto prazo, e de resultados palpáveis e tangíveis.
Outra mudança, apontada por Carrano e Dayrell (2003, p. 19), está no perfil do jovem atuante:
Se na década de 60, falar em juventude era referir-se aos jovens estudantes de classe média e
ao movimento estudantil, nos anos 90 implica incorporar os jovens das camadas populares e
a diversidade dos estilos culturais existentes, protagonizada pelos punks, darks, roqueiros,
clubers, rappers, funkeiros etc. Muitos desses grupos culturais apresentam propostas de
intervenção social, como os rappers, desenvolvendo ações comunitárias em seus bairros de
origem.
A participação de jovens mais desfavorecidos tem avançado, como mencionam Carrano e Dayrell (2003), a despeito dos
inúmeros limites que enfrentam em sua atuação, por se tratar de segmento cuja inserção social encontra-se ameaçada.
98
Durston (apud ABRAMO, 2004) apresenta alguns desses limites: a primeira situação seria a “cidadania denegada”, que
atinge os setores mais excluídos, como no caso de etnias, setores rurais pobres, marginalizados urbanos, etc. Para estes não
seriam ofertados espaços concretos, nem acessíveis.
A segunda situação seria a “cidadania da segunda classe”, na qual estariam inseridos adolescentes e jovens com baixa
escolaridade, especialmente do sexo feminino. Para esse segmento, não seria negada explicitamente a oportunidade de
participação, mas a imposição de barreiras dificultaria o seu exercício.
Essa situação nos leva a refletir sobre a realidade de adolescentes e jovens vítimas de violência sexual, fenômeno cada
vez mais comum nesse segmento, sobretudo no que diz respeito à exploração sexual. Segundo Vieira e Oliveira (2007), ao
propor o exercício da participação e da cidadania, colocamos os meninos e meninas numa outra dinâmica, em que eles têm
direito à voz e vez, por meio da qual se tornam mais conscientes das suas forças e potencialidades e se colocam a serviço
do seu desenvolvimento e de sua comunidade.
Abramo (2004) destaca que a primeira condição para participação de jovens marginalizados ou em situação de risco,
como são colocadas as vítimas de violência sexual, seria o fortalecimento da sua subjetividade e da sua autoestima. Outra
dimensão importante seria integrar sua experiência de vida com os projetos pessoais e o meio social, ou seja, fazer com
que eles percebam que a mudança do entorno pode contribuir na realização dos projetos pessoais, e vice-versa. Todo esse
processo passaria pelo fortalecimento dos indivíduos e de sua capacidade de serem atores da sua própria vida, por meio de
uma socialização qualificada (ABRAMO, 2004).
Independentemente da sua condição de vítima, adolescentes e jovens podem ser importantes vetores para atuar,
principalmente junto a seus pares, no enfrentamento da violência sexual.
Da orientação à denúncia e/ou notificação de um caso de violência sexual, tanto a sua contribuição em ações preventivas
como a participação, por exemplo, na elaboração do Plano Operativo Local (POL)3, há diferentes formas para se envolvê-los
nessa causa, com o cuidado que o tema demanda.
O estímulo ao protagonismo e a importância da educação e do educador
Já se viu que, apesar de a participação juvenil ainda constituir um desafio, há uma disposição de adolescentes e jovens para
atuação e interesse por certos temas, dentre eles os direitos sexuais e humanos. Então, pergunta-se: qual seria a explicação
para a sua aparente apatia?
Um primeiro entrave seria o próprio estágio do Brasil na construção da democracia, em que ainda persiste uma cultura
3
Um dos instrumentos utilizados no processo de implementação do PAIR.
99
política com alguns preconceitos cristalizados, como o discurso de que não adianta lutar pelos direitos e um completo
descrédito nas instituições e agentes públicos, o que afasta as pessoas das ações coletivas e da possibilidade de participar
do controle público.
Para isso, é preciso que a escola enfatize a educação para valores éticos e que também promova a democratização das suas
práticas, que, muitas vezes, refletem posturas autoritárias, as quais desestimulam o protagonismo dos jovens (ABRAMO,
2004, p. 22).
Quando se fala no protagonismo juvenil, os empecilhos são ainda maiores, pois ainda predomina o imaginário coletivo
segundo o qual os adolescentes são desinteressados, descomprometidos e não sabem o que querem. Para a maior parcela
da sociedade, a adolescência e a juventude são apenas fases transitórias, caracterizadas pela rebeldia ou pela relação
com alguns problemas, como criminalidade, drogadição e gravidez indesejada (CARRANO; DAYRELL, 2003). Essas ideias
são repetidas pelas próprias famílias, pela mídia e pela sociedade em geral e acabam por desmobilizar as já limitadas
oportunidades de participação.
Entender a participação em processos pedagógicos, formais ou informais, articulada com o desenvolvimento integral, é um
meio de possibilitar a transformação de todos os atores envolvidos – educadores, educandos e comunidade –, e tem, na
adolescência e na juventude, momentos privilegiados para isso, pois é nessas fases que o indivíduo se constitui como sujeito
e como ator social (VIEIRA; OLIVEIRA, 2007: ABRAMO, 2004).
A falta de espaços de participação constitui outro fator que também tem contribuído para restringir o protagonismo juvenil.
Segundo Abramo (apud CARRANO; DAYRELL, 2003), são raras as iniciativas que consideram adolescentes e jovens como
interlocutores na formulação das políticas e programas, que, frequentemente, são construídos sob a ótica dos problemas do
mundo adulto, e não a partir das suas demandas.
Algumas instituições governamentais e ONGs têm realizado experiências interessantes nessa área, estimulando o
protagonismo juvenil por meio do trabalho voluntário, do envolvimento de jovens em programas de serviço comunitário
e do fomento a projetos implementados por indivíduos ou grupos juvenis (através de concursos, prêmios, fundos, etc.)
(ABRAMO, 2004).
Outra questão que também tem influenciado sobremaneira a atuação dos jovens é a pequena oferta de espaços de formação,
que possibilitem a aprendizagem de certas habilidades específicas. Nesse sentido, Durston (1998 apud ABRAMO, 2004, p.
22) aponta a importância de fomentá-las em todos os ambientes de socialização de adolescentes e jovens, principalmente
no âmbito do sistema escolar:
[...] devem-se criar processos de educação em que os jovens aprendam a resolver problemas com
independência e em que se ensinem habilidades de interação social: isso inclui a aprendizagem da prática
democrática e exige que ‘se integrem a todos os planos de estudo elementos que promovam a tomada
de decisões em grupo, o desempenho do papel de lideranças na representação do grupo, a solução
de controvérsias através da mediação e da negociação e o debate sobre a ética social e os direitos e
responsabilidades inerentes ao exercício da cidadania.
Vieira e Oliveira (2007; 73/74, Caderno 3) apontam ainda três grandes ganhos ao se trabalhar o protagonismo juvenil nos
processos de formação, apresentados sinteticamente a seguir:
1) Fortalecimento da identidade pessoal: possibilita aos participantes a reflexão sobre si mesmos e o fortalecimento
da autoestima, por meio da identificação de suas potencialidades e limites e da ressignificação das experiências
vivenciadas. Uma vez disponibilizado espaço para que essas trajetórias sejam colocadas e as suas opiniões respeitadas,
isso pode levar ao empoderamento.
2) Fortalecimento da identidade sociocultural: à medida que refletem sobre sua identidade pessoal, os participantes
se dão conta de que sua trajetória foi construída a partir da história da comunidade e do município. Esse processo leva
os jovens a refletir sobre as potencialidades e riquezas locais, e resulta numa (re)valorização do lugar em que vivem, bem
como numa apropriação do seu espaço e da sua cultura.
3) Construção dos projetos de vida pessoal e coletivo: os participantes também são provocados a fazer uma
reflexão sobre o passado, o presente e o futuro, de modo a ampliar as suas próprias expectativas e se projetar para a
concretização dos planos para a vida pessoal e coletiva (da escola, comunidade, município). Esse processo leva ainda à
identificação das competências necessárias à realização dos projetos construídos e que precisam ser buscadas.
Para que tudo isso aconteça, ressalta-se a importância do educador social como adulto-referência na formação de
adolescentes e jovens protagonistas. É nessa relação de parceria, compartilhamento e troca, construída entre educadores e
educandos, que a autonomia vai se construindo gradualmente e que o ambiente de transformação vai se tornando possível.
Nesse processo, é importante que o educador esteja atento às demandas, aspirações e características dos educandos e
construa um espaço de escuta e criação coletiva. De acordo com Vieira e Oliveira (2007), é fundamental que haja uma
reflexão crítica permanente sobre a prática, de forma a evitar ou dirimir a reprodução de preconceitos e posturas que
condenamos, mas que muitas vezes estão presentes em nossas ações cotidianas.
É preciso ainda que o educador perceba a diversidade de contextos de cada educando. Um jovem do campo não participa da
mesma maneira que um do meio urbano, e assim também acontece com fatores como diferença de gênero, raça, deficiência
100
101
e faixa de idade. Cada um tem características distintas e que demandam estratégias pedagógicas com objetivos adequados
a cada tipo de atuação.
Por fim, também é necessário considerar que, se é verdade que o protagonismo juvenil se dá de maneira mais qualificada
numa complementaridade de papéis com o educador, também é preciso admitir que adolescentes e jovens podem se
articular entre si, sem a mediação de adultos, e realizar uma ação que produza bons resultados. E isso tem acontecido
intensamente, sobretudo nos campos da cultura e da tecnologia, como já visto brevemente. É preciso reconhecer que essas
iniciativas espontâneas podem acontecer, sendo interessante saber como se aproximar delas e potencializá-las, respeitando
o percurso já trilhado.
A participação de crianças
A faixa etária do segmento com o qual se trabalha tem influência direta no nível de desenvolvimento do protagonismo e da
autonomia passível de ser alcançado. Nesse sentido, as crianças constituem um grupo bem diferenciado dos adolescentes e
jovens, razão pela qual lhes é dedicado um tópico específico neste estudo.
A Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), referendada pelo ECA, assegura às crianças o direito à participação, o
que implica que elas devem ter voz e ser ouvidas em seus interesses, sendo “dever das instâncias que se relacionam com
a infância promover e garantir esse direito” (GOULART, 2008, p. 17), ou seja, devem ser ofertados às crianças espaços
apropriados, que considerem as suas diferenças (idade, etnia, gênero, região de origem, etc.), de maneira que possam
construir habilidades, identificar suas prioridades, comunicar-se e aprender com seus pares.
Na visão do Unicef (2003), isso significa promover a participação dentro das escolas e das famílias, sempre que estejam em
discussão definições sobre temas pertinentes à criança, o que não significa uma simples transferência de todo o poder de
decisão para elas.
No âmbito familiar, a participação fortalece a relação entre pais e filhos, estimulando o diálogo e gerando uma maior
confiança e respeito; favorece o estabelecimento e cumprimento de regras de convivência em casa e fora dela; e promove
um ambiente familiar mais equitativo. O conjunto desses resultados, seja no nível individual, seja no familiar, sem dúvida,
estabelece um contexto de prevenção de situações de risco e vulnerabilidade.
Para a sociedade, a participação infantil também traz benefícios, pois influencia a visão dos adultos sobre as crianças e gera
um maior apoio governamental às iniciativas destinadas a esse segmento. Também promove relações mais simétricas entre
adultos e crianças, criando condições para uma maior presença delas em organizações comunitárias.
Entretanto, são essas mesmas vantagens que, numa direção inversa, constituem entraves para a participação infantil,
formando um ciclo vicioso. O conceito social da criança como objeto e propriedade dos pais, a pequena oferta de metodologias
e espaços de escuta para as crianças e a insuficiência de recursos humanos capacitados para atendê-las são alguns dos
fatores que impedem uma maior atuação infantil (REDE NÃO BATA, EDUQUE, 2008).
Outro preconceito que tem atrapalhado bastante a abertura de espaços de participação infantil é a falsa ideia de que a
proteção integral (preconizada pela Convenção Internacional) seria paradoxal ao desenvolvimento da autonomia. O fato
de a criança precisar de cuidados não é incompatível com o seu protagonismo. Ao contrário, a promoção da participação
pode apoiar na defesa contra violências às quais as crianças são expostas, “por meio da informação e da possibilidade de
expressar sua opinião” (GOULART, 2008, p. 14).
Em casa, na escola ou nos diferentes espaços onde circulam, crianças que crescem aprendendo a tomar decisões e que
são verdadeiramente ouvidas, têm mais chances de serem adolescentes e jovens mais responsáveis e comprometidos e,
consequentemente, adultos mais solidários e conscientes do seu papel na sociedade.
Em qualquer etapa do seu desenvolvimento, ao contrário do que em geral acreditamos, meninos e meninas são capazes
de opinar de forma compatível com o seu momento de vida e de assumir mais responsabilidades nas decisões, desde que
seja respeitado o seu ritmo e seus esforços sejam apoiados. Esses desafios lhes possibilitarão um crescimento saudável e
um envolvimento com o mundo que os cerca, bem como lhes darão condições de tomar mais decisões a cada dia mais
independentes e responsáveis (UNICEF, 2003).
Segundo a Rede “Não Bata, Eduque”, do ponto de vista do processo educativo, a participação das crianças também auxilia no
desenvolvimento da sua autoestima, segurança, autonomia, capacidade de expressão de sentimentos e ideias e habilidades
para assumir responsabilidades, assim como reforça valores de solidariedade e democracia e promove a aquisição de mais
conhecimento sobre os seus direitos.
102
103
METODOLOGIA DO PAIR
REFERÊNCIAS
Eliane Bispo1
Fernando Luz2
Graça Gadelha3
Leila Paiva4
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Educação / UFF – Projeto Redes e Juventude / W. R. Kellogg Foudation, Rio de Janeiro: 2004.
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oeste do Rio de Janeiro. 2008. Trabalho de conclusão de curso. Fundação Getúlio Vargas. Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC – Curso de Mestrado Profissionalizante em Bens
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VIEIRA, Adenil; OLIVEIRA, Ilma. Protagonismo juvenil, Resiliência e educação social com vistas à
trabalhabilidade de adolescentes vítimas de tráfico para fins de exploração sexual. Fortaleza,
Expressão Gráfica, 2007.
VIEIRA, Adenil; OLIVEIRA, Ilma. Reflexões Sobre a Função e Papel dos Educadores Sociais e Equipes
Pedagógicas dos Espaços de Acolhimento. Fortaleza, Expressão Gráfica, 2007.
1. A trajetória histórica do PAIR
A garantia dos direitos sociais das crianças e adolescentes tem seu fundamento na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948. Desde então, o cumprimento e a
implementação dessas garantias se dão por meio de lutas, tanto no plano das relações de produção da sociedade quanto
no plano ideológico.
Pautado na Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989) e na Constituição Federal (1988), o Brasil tem se
organizado, especialmente a partir de 1990, para estabelecer o cumprimento dos direitos sociais de seus cidadãos, elegendo
o segmento infantojuvenil como prioritário para o desenvolvimento de políticas e programas. Essa preocupação levou a
sociedade civil e a sociedade política à aprovação de uma legislação específica: o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA – Lei nº 8.069/1990), cujo conteúdo baseia-se na Doutrina da Proteção Integral. A promulgação do ECA traz à tona o
problema crônico da exclusão social de crianças e adolescentes, em relação à garantia de seus direitos fundamentais.
A realidade da sociedade brasileira tem revelado que, dentre as situações mais graves de exclusão, vulnerabilidade e risco
social a que estão sujeitos crianças e adolescentes, destacam-se a exploração sexual e o abuso sexual. A violência sexual
contra crianças e adolescentes, nas suas mais diferentes formas, é reconhecidamente um fenômeno que requer diferentes
estratégias de enfrentamento, por estar inserido num contexto histórico-social de violência estrutural e de profundas
raízes culturais. Esse fenômeno tem sido debatido sob o paradigma dos direitos humanos, e, por ser multifacetado, leva a
considerar que as dimensões culturais, sociais, políticas e jurídicas articulam-se dialeticamente, concretizando-se como um
crime e uma grave violação de direitos humanos universais.
Levando-se em conta essa complexidade, construir políticas públicas de enfrentamento que deem conta da abrangência
desse fenômeno tem sido um desafio para o Estado brasileiro (sociedade civil e segmentos governamentais), especialmente
na presente década, quando todos vem sendo convocados para pensar políticas públicas com estratégias que indiquem
integração e organicidade entre si.
1
2
3
4
104
Assistente Social. Mestra em Serviço Social na área de Políticas Públicas e Direitos Sociais. Consultora na área de promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
Advogado, com atuação na área de direitos de crianças e adolescentes.
Socióloga, especialista em Políticas Públicas, na área da infância e da juventude.
Advogada, especialista em Processo Penal, com atuação em direitos humanos, notadamente de crianças e adolescentes.
105
Em 1993, em decorrência da instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara Federal, foi significativamente
intensificado o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no país, tanto pela sociedade civil quanto
pelos setores governamentais. Deu-se maior visibilidade ao fenômeno por meio de estudos, pesquisas, mapeamentos,
campanhas e estratégias de registro de informações. O tema passou a ocupar mais espaço na imprensa nacional,
constatando-se também o aprimoramento das ações de intervenção jurídica e social, sobretudo iniciativas como elaboração
de legislações específicas, implementação de programas de atendimento e maior sistematicidade no processo de formação
de agentes sociais.
Embora seja possível constatar a adoção de estratégias diferenciadas no enfrentamento da violência sexual, por outro
lado observam-se também significativas dificuldades em sua integração. Os atores sociais envolvidos na questão se veem
permanentemente diante do desafio de garantir maior eficiência, mais eficácia e crescente efetividade aos programas e
serviços voltados para enfrentamento dessa problemática.
Dentre as iniciativas resultantes da mobilização da sociedade brasileira, impulsionada pelos compromissos políticos
firmados pelo Estado brasileiro durante o I Congresso Mundial Contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças, em
1996, destaca-se a elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil, homologado pelo
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), em julho de 2000. Com o objetivo de promover
a articulação dos principais atores que trabalham com crianças e adolescentes vulneráveis à violência sexual, servindo
como instrumento de defesa e garantia, o plano aponta para a criação, fortalecimento e implementação de um conjunto
articulado de ações e metas fundamentais para assegurar a proteção integral da criança e do adolescente em situação ou
risco de violência sexual.
O referido plano materializa a necessária articulação entre governo e sociedade civil, em consonância com o Plano
Nacional de Segurança Pública5, remetendo a ações do Programa Nacional dos Direitos Humanos6. As condições objetivas
para a efetivação desse plano fundamentam-se na exigibilidade dos deveres da família, da comunidade, da sociedade civil
em geral e do poder público, sustentada por um conjunto articulado de forças e atores governamentais, não governamentais
e organismos internacionais (BRASIL, 2002).
O Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil tem como referência fundamental o ECA, e se
estrutura em torno de seis eixos estratégicos:
5
O Plano Nacional de Segurança Pública (2000-2002) constitui um conjunto de propostas cujo objetivo é aperfeiçoar o sistema de segurança pública brasileiro, visando à integração
de políticas de segurança, políticas sociais e ações comunitárias, de forma a reprimir e prevenir o crime, como também reduzir a impunidade e aumentar a segurança e a tranquilidade do cidadão
brasileiro.
6
Lançado em maio de 1996 com o objetivo de identificar os principais obstáculos à promoção e proteção dos direitos humanos no país, eleger prioridades e apresentar propostas
concretas de caráter administrativo, legislativo e político-cultural que busquem equacionar os mais graves problemas que hoje impossibilitam ou dificultam sua plena realização.
106
Análise da Situação – visa ao conhecimento do fenômeno violência sexual contra crianças e adolescentes; ao diagnóstico
da situação do enfrentamento da problemática; à definição das condições e garantia do financiamento do plano; ao seu
monitoramento e avaliação; e à divulgação de todos esses dados e informações para a sociedade brasileira.
Mobilização e Articulação – objetiva fortalecer articulações nacionais, regionais e locais de combate e pela eliminação
da violência sexual; comprometer a sociedade no enfrentamento dessa problemática; e avaliar os impactos e resultados das
ações de mobilização.
Defesa e Responsabilização – visa à atualização da legislação sobre crimes sexuais, ao combate à impunidade, à
disponibilização de serviços de notificação e à capacitação de profissionais da área jurídico-policial.
Atendimento – objetiva garantir o atendimento especializado e em rede às crianças e aos adolescentes em situação de
violência sexual e respectivas famílias.
Prevenção – visa assegurar ações preventivas contra a violência sexual e que crianças e adolescentes sejam educados para
o fortalecimento da autodefesa.
Protagonismo Infantojuvenil – tem por objetivo promover a participação ativa de crianças e adolescentes na defesa de
seus direitos e comprometê-los com o monitoramento da execução desse plano nacional.
O Conanda e os conselhos estaduais e municipais de direitos da criança e do adolescente são as instâncias de deliberação,
controle e acompanhamento do referido plano7. O Governo Federal vem operacionalizando algumas das ações previstas
no Plano Nacional, em especial no que tange ao atendimento psicossocial especializado, por meio do Centro de Referência
Especializado de Assistência Social –Creas (inicialmente através do Programa Sentinela8); ao atendimento de saúde
especializada, por meio da rede de referência do Sistema Único de Saúde (SUS); e à defesa de direitos, com ações de
fortalecimento dos conselhos tutelares, delegacias de proteção à infância e a juventude e defensorias públicas.
Por outro lado, pesquisas vêm apontando a existência de redes organizadas de exploração sexual de crianças e adolescentes,
em diversas regiões do país, sobretudo na modalidade tráfico, tanto interno quanto para outros países. A ocorrência desse
fenômeno foi bem caracterizada na Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração
Sexual Comercial no Brasil (Pestraf), realizada em 2002, sob a coordenação do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre
Crianças e Adolescentes (Cecria)9.
7
Nesse contexto também merece destaque o Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil, instalado como uma instância nacional representativa da
sociedade, dos poderes públicos e das cooperações internacionais, para monitoramento da implementação do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil. Para os
encaminhamentos políticos e operacionais do Comitê Nacional, foi criada uma coordenadoria colegiada com 14 membros.
8
Programa de Enfrentamento à Violência, Abuso e Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes, criado em maio de 2001, pelo Governo Federal, atualmente no âmbito do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Com a implantação do Centro de Referência Especializado da Assistência Social (Creas), a partir do reordenamento da Política Nacional
da Assistência Social, o programa passa a ser um serviço continuado, encontrando-se em processo de expansão.
9
Maiores informações sobre a Pestraf podem ser acessadas no site do Ministério da Justiça: www.mj.gov.br/trafico/servicos/publicacoes, e do Cecria: www.cecria.org.br/pub.
107
Como resposta às orientações contidas na Pestraf, a então Secretaria de Estado de Assistência Social, vinculada ao Ministério
da Previdência e Assistência Social (atual Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS), e a Secretaria
de Estado dos Direitos Humanos, à época vinculada ao Ministério da Justiça, em articulação com a Agência dos Estados
Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), por meio da Partners of the Americas, elaborou em 2002 o Programa
de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infantojuvenil no Território Brasileiro (PAIR).
O PAIR tem sua fundamentação na Constituição Federal e no ECA, bem como em outros documentos decorrentes
de compromissos assumidos pelo Estado brasileiro (normativas internacionais que tratam dos direitos da criança).
- No artigo 227 da Constituição Federal (1988):
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
- Na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989):
Tratado que visa à proteção de crianças e adolescentes em todo o mundo, aprovada por meio da
Resolução 44/25 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, ratificada pelo
Brasil em 20 de setembro de 1990. Dentre os princípios consagrados pela Convenção, destacam-se o
direito à vida e à liberdade; e as obrigações dos pais, da sociedade e do Estado em relação à criança
e ao adolescente. Os estados signatários ainda se comprometem a assegurar a proteção contra as
agressões, ressaltando em seu artigo 19 o combate à sevícia, exploração e violência sexual.
- No artigo 86 do ECA (1990):
A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto
articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios.
- No Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil (2000);
- Nas diretrizes estabelecidas no Congresso Mundial Contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças, em
Estocolmo (1996), Yokohama (2001) e Rio de Janeiro (2008).
108
Em outubro de 2002, foi estabelecido um Memorando de Entendimento entre a então Secretaria Especial dos
Direitos Humanos (SEDH), o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e a Usaid, visando
à coordenação e execução das ações previstas no PAIR. Além de se providenciar a alocação dos recursos, foram
constituídos um Comitê Gestor, formado por dirigentes dos respectivos organismos, e um Grupo Técnico, composto
por profissionais indicados pelos três órgãos responsáveis pela operacionalização do programa.
Numa primeira etapa, o PAIR foi implantado nos seguintes municípios:
o Região Norte: Pacaraima (RR), Manaus (AM), Rio Branco (AC);
o Região Centro-Oeste: Corumbá (MS); e
o Região Nordeste: Feira de Santana (BA) e Campina Grande (PB).
Esses municípios foram selecionados a partir do cruzamento de informações de duas pesquisas referenciais,
desenvolvidas com apoio financeiro da Usaid: a Pestraf, já citada, e a A Aids nas Fronteiras do Brasil (BRASIL,
2003).
Após a seleção desses municípios, foram implementadas diversas articulações junto às autoridades federais,
estaduais e municipais, para apresentação do programa e a integração de políticas e ações locais. Nessas
localidades, foram contatadas autoridades das três esferas governamentais, bem como organizações da sociedade
civil e de setores empresariais e membros da Justiça da Infância e da Juventude.
Todo o processo preparatório serviu de base para a construção de uma proposta metodológica alicerçada na
busca da efetiva participação, tanto dos parceiros federais quanto dos segmentos e instituições dos respectivos
estados e municípios. A construção do PAIR, seja na esfera federal, estadual ou municipal, foi pautada pela
participação da sociedade civil, pioneira no enfrentamento da violência sexual no Brasil. Nessa perspectiva, os
principais parceiros do programa foram:
· Conanda;
· conselhos estaduais e municipais dos direitos da criança e adolescente;
· Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes;
· ONGs com experiência na área;
· organizações juvenis.
109
O Memorando de Entendimento assinado em 2002 foi reafirmado em novembro de 2004, com o propósito de
dar continuidade à implementação e execução das ações do PAIR. A partir de 2005, a metodologia do PAIR
vem se expandindo para outros municípios. Recompor a história do PAIR não é tarefa simples. Ao longo de sua
implantação, o programa sofreu alterações, foi se expandindo e se consolidando, sem, no entanto, abandonar
seus pressupostos originais.
2. Princípios e objetivos do PAIR
Como referido anteriormente, o PAIR tem como marco teórico-conceitual o artigo 86 do ECA, e como
referência metodológica o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil. No que tange
ao enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, a realidade brasileira aponta para o necessário
fortalecimento da rede de proteção e de integração de políticas. Diante desse desafio, o PAIR se propôs oferecer
uma metodologia de integração em rede, a partir da seguinte pergunta orientadora:
Como construir nos municípios ações referenciais/metodologias de enfrentamento das situações
de violência sexual contra crianças e adolescentes, para tornar operativo o Plano Nacional de
Em síntese, o PAIR foi construído tendo como base de intervenção o município; como eixo norteador a articulação em rede; e
como referência metodológica o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil. Na lógica dos marcos
do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, no âmbito da promoção, controle e defesa, distribuem-se
os seus eixos de intervenção.
3. Passo a passo metodológico do PAIR
- DIAGNÓSTICO RÁPIDO
PARTICIPATIVO (DRP)
AÇÃO ESTRATÉGICA
- Encontros com gestores federais, estaduais, municipais, conselhos e
sociedade civil
- Apresentação da proposta de trabalho e mobilização das forças
locais
- Pesquisa para dar visibilidade sobre a violência sexual contra
crianças e adolescentes no município e mapear a rede local
(programas, serviços, etc.)
- SEMINÁRIO DE
CONSTRUÇÃO DO PLANO
OPERATIVO LOCAL (POL)
-
-
-
-
Apresentação do DRP
Construção do POL
Constituição da Comissão Local (COL)
Sondagem Inicial
-
-
-
-
-
Geral e Específica
Revisão do POL
Sondagem Final
Estabelecimento do Fluxo da Rede Local
Pacto com a Sociedade
- ARTICULAÇÃO POLÍTICOINSTITUCIONAL
Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil?
Para responder a essa questão e contemplar os desafios inicialmente propostos, o PAIR definiu como objetivos
estratégicos:
· integrar políticas para a construção de uma agenda comum de trabalho entre governos, sociedade civil e
organismos internacionais, visando ao desenvolvimento de ações de proteção a crianças e adolescentes
vulneráveis ou vítimas de violência sexual e tráfico para fins sexuais; e
· desenvolver metodologias de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, que
possam ser disseminadas para outras regiões brasileiras, referenciadas na organização, no fortalecimento
e na integração dos serviços locais, possibilitando a construção de uma política municipal de proteção
integral à criança e ao adolescente, assegurada a participação social na construção de todos os processos.
110
- CAPACITAÇÃO DA REDE
- ASSESSORIA TÉCNICA
- Fortalecimento técnico das ações de atendimento integral a crianças
e adolescentes e respectivas famílias a partir do estímulo ao
desenvolvimento de estratégias locais
- MONITORAMENTO E
AVALIAÇÃO
- Avaliação de todas as ações
- Monitoramento do POL e do Pacto com a Sociedade
111
4. O PAIR e as diferentes realidades do país
de governo: federal, estadual e municipal. Mais ainda, é fundamental que, ao se propor a replicação de metodologias e
parâmetros para implementação de políticas públicas, se levem em conta as diversas realidades municipais.
Dos 5.565 municípios atualmente existentes no país, cerca de 70% têm população inferior a 20 mil habitantes. O tamanho
da população de um município vai além de uma questão numérica, devendo ser considerado ao se pensar em estratégia de
No processo de disseminação da metodologia do PAIR, que sintetiza a formulação e execução integrada de políticas
formulação, implementação e descentralização de políticas públicas.
públicas para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, o que se busca não é a padronização
das experiências. Ao contrário, procura-se apresentar um percurso metodológico que deve ser pautado pelas peculiaridades
Ser um “grande” ou um “pequeno” município (no que tange ao porte populacional) revela ainda diferenças: na capacidade
de cada estado e de cada município, resguardando-se, assim, a autonomia e a criatividade de cada sujeito envolvido no
de produzir e consumir bens e serviços; na gestão e na estruturação dos serviços e das políticas sociais. Essas diferentes
processo.
realidades demandam formulação e aprimoramento de políticas diferenciadas, pois impõem a necessidade de compreender
a dinâmica dos fenômenos na escala local.
4.1. A construção metodológica do processo de implementação do PAIR nos municípios com até 20 mil habitantes
A estratégia do PAIR se diferencia em cada município de acordo com as peculiaridades dos diferentes perfis e segundo as
No período de 2003 - quando o PAIR foi implantado nos municípios-piloto – a 2010, 202 municípios brasileiros com
faixas populacionais: até 20.000 habitantes; de 20.001 a 100.000 habitantes; e acima de 100.000 habitantes.
população até 20 mil habitantes participaram da disseminação ou desenvolveram a metodologia proposta pelo PAIR.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os municípios brasileiros são assim agrupados:
A referência metodológica do PAIR prevê a realização de um percurso consubstanciado em seis etapas que se entrelaçam.
·
Municípios pequenos 1: com população até 20.000 habitantes
·
Municípios pequenos 2: com população entre 20.001 e 50.000 habitantes
Cada etapa possui pressupostos, princípios, estratégias de construção e implementação próprias, com previsão de
·
Municípios médios: com população entre 50.001 e 100.000 habitantes
instrumentos, produtos e resultados específicos. O percurso metodológico foi construído e testado a partir da realidade
·
Municípios grandes: com população entre 100.001 e 900.000 habitantes
do município, tendo este como locus da ação. Entretanto, diante das especificidades dos diferentes municípios brasileiros,
·
Metrópoles: municípios com população superior a 900.000 habitantes
podem e devem ser feitos alguns ajustes que objetivem contribuir no processo de implementação da metodologia.
O processo de municipalização ganhou força no país a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que preconiza
Reconhecer e compreender as dinâmicas e peculiaridades dos municípios considerados “pequenos” é fundamental para
a descentralização como um princípio básico na gestão das políticas públicas; políticas públicas setoriais, territorializadas,
proposição de ações e políticas públicas integradas. Nesse contexto, para implementar a proposta metodológica do PAIR,
executadas a partir de articulações entre as esferas nacional, estadual e municipal, mas com uma “leitura territorial”,
que busca o fortalecimento das políticas e ações públicas municipais e o empoderamento da sociedade civil, é primordial:
implementando uma nova forma de pensar sobre as capacidades do Estado e as relações entre este e a sociedade, nas
·
diversas escalas territoriais.
proativa;
·
Nesse cenário, gerenciar numerosas competências configura-se como um grande desafio para os municípios. Não se trata
de tarefa simples. As dificuldades são inúmeras, principalmente no tocante ao processo de gestão de políticas públicas com
o fim de reconhecer e garantir os direitos de toda a população.
que o gestor local e o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente assumam uma posição mais
planejar e desenvolver ações estruturadoras, já que não basta oferecer ações pontuais ligadas ao atendimento de
demandas de caráter mais urgente;
·
vontade política para se trabalhar de forma integrada, reconhecendo as várias faces da violência sexual e a
consequente impossibilidade de impacto na situação de forma isolada.
Com base nessas premissas, pode-se optar entre desenvolver o percurso metodológico adotando como referência o
É, portanto, primordial, o compartilhamento de responsabilidades (já definidas na Constituição Federal) entre as três esferas
112
município como um todo ou fazer algumas adaptações para que o percurso metodológico proposto pelo PAIR possa dar
113
conta das especificidades locais:
alguns serviços e programas, ou que estruturam a rede de atendimento contando com o apoio e parceria de municípios
vizinhos, ou ainda cuja situação de violência sexual esteja atrelada à realidade de municípios vizinhos, é muito importante
Assim, a referência metodológica do PAIR prevê um percurso consubstanciado nas seguintes etapas:
que o seminário seja realizado em parceria, tendo, portanto, caráter intermunicipal.
Um seminário intermunicipal poderá possibilitar a visualização da situação da violência sexual contra crianças e adolescentes
1. Estruturar a rede de atendimento e construir fluxos de forma regionalizada em parceria com outros municípios.
por município, como também viabiliza a construção de planos operativos locais com previsão de atividades estratégicas que
poderão ser desenvolvidas de forma intermunicipal (construção de parcerias estratégicas e fluxos intermunicipais).
2. Em alguns casos, pode-se realizar duas ou três etapas da metodologia de forma simultânea, potencializando o uso dos
recursos disponíveis (materiais e humanos) e os resultados.
É fundamental que esse processo seja protagonizado pelos conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente.
1 e 2. Articulação Político-institucional e Diagnóstico Rápido Participativo (DRP) – O processo de articulação político-
4 e 5. Capacitação da Rede e Assessoria Técnica – Com vistas a garantir o fortalecimento da rede e a qualificação de suas
institucional é viabilizado por meio da realização de reuniões de articulação com gestores locais e sociedade civil nas
ações, estão previstos no percurso metodológico do PAIR: a capacitação de todos os profissionais que atuam na rede local,
regiões administrativas, para apresentação da proposta metodológica do PAIR e para promover a mobilização das forças
nos âmbitos da prevenção, da proteção, da atenção, da defesa e da responsabilização; e o suporte técnico e metodológico
locais em torno da problemática. Essa fase do percurso metodológico pode ser realizada concomitantemente ao processo
de forma continuada.
de realização do DRP. O DRP possibilita a identificação do panorama da situação da violência sexual contra crianças e
adolescentes no município, bem como dos serviços e programas disponíveis para o enfrentamento na rede de atendimento,
Com a perspectiva de contribuir para a troca de experiências, potencializar recursos (humanos, financeiros e materiais) e
prevenção e responsabilização. Em municípios com menos de 20.000 habitantes, é necessário reconhecer a liderança de
congregar esforços conjuntos, essas duas etapas podem ser realizadas de forma simultânea e em parceria intermunicipal.
atores locais que possam formar a rede de proteção, para que eles participem do processo desde o diagnóstico, mesmo que
Essa integração pode viabilizar inclusive o fluxo de proteção entre municípios vizinhos. Nesse caso, a capacitação deverá
não estejam indicados no ECA como componentes do Sistema de Garantia de Direitos. Como, por exemplo, líderes religiosos,
trazer para discussão conjunta casos concretos que envolvam instituições de dois ou mais municípios (a integração das
associações ou sindicatos corporativos, áreas de responsabilidade social de grandes empresas e as primeiras-damas, a fim
redes será fundamental, por exemplo, para garantir a proteção e o atendimento de crianças e adolescentes de um município
de que possam ser ouvidos já no momento do DRP. Outros atores importantes são as crianças e adolescentes em situação
que se encontrem em situação de exploração em outro).
de violência sexual, especialmente exploração sexual, e que muitas vezes não estão inseridos nos serviços de proteção.
Nos casos de municípios que sejam sedes de grandes obras de desenvolvimento, é fundamental que os responsáveis pelos
6. Monitoramento e Avaliação dos Pactos – acompanhamento periódico da implementação do POL, na perspectiva de rever
empreendimentos participem do processo de articulação e do DRP, trazendo os dados sociais e econômicos oriundos das
e propor procedimentos e estratégias para qualificação das ações de enfrentamento da violência sexual contra crianças e
respectivas obras, antes, durante e após a sua finalização.
adolescentes. É muito importante que haja uma instituição responsável pelo monitoramento, de preferência designada pelo
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Recomenda-se que a escolha se dê dentre as instituições que
compõem o referido conselho, como forma de se garantir a sustentabilidade da ação.
3. Seminário para Construção dos Planos Operativos Locais (POL) – Momento estratégico de mobilização da rede local para
apresentação do DRP, construção do POL e constituição da Comissão Local do PAIR. Possibilita que a rede se organize e se
4.2. Nos municípios com população entre 20.001 e 100.000 habitantes
estruture para construir respostas para as questões e fragilidades identificadas no DRP.
A classificação utilizada pelo IBGE agrupa os municípios com população entre 20.001 e 100.000 habitantes como pequenos
2 (até 50.000) e médios. Do universo desses municípios, 193 vivenciaram, no período de 2003 a 2010, a experiência de
Considerando a realidade dos municípios com população de até 20 mil habitantes, que muitas vezes sofrem a ausência de
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implementar a metodologia do PAIR.
115
4. Capacitação da Rede – Capacitação regionalizada de todos os profissionais que atuam na rede local, nos âmbitos da
Entretanto, não é fácil planejar, executar, gerir e avaliar a ação pública no enfrentamento da violência sexual contra crianças
prevenção, da proteção, da atenção, da defesa e da responsabilização.
e adolescentes. A tarefa requer, principalmente:
a) um diagnóstico compartilhado por parte dos atores governamentais e não governamentais acerca das causas
5. Assessoria Técnica – Com vistas à qualificação das ações implementadas, deve-se garantir suporte técnico e metodológico
e consequências do problema, da sua distribuição e configuração em termos espaciais e dos recursos potenciais e
de forma continuada. Isto é, sempre que possível, fazer reuniões com os parceiros da comissão local, preferencialmente
disponíveis a serem mobilizados e utilizados; e
com a participação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, para se avaliar a metodologia de
b) uma estreita articulação intra e intergovernamental, para o desenvolvimento das ações.
atendimento implementada no município.
Diante desse cenário, o percurso metodológico do PAIR pode ser desenvolvido tomando como referência todo o município,
6. Monitoramento e Avaliação do POL – Acompanhamento periódico e por região da implementação do POL, na perspectiva
ou, numa perspectiva mais estratégica, pode-se considerar a subdivisão do município em regiões administrativas, e replicar
de rever e propor procedimentos e estratégias para qualificação das ações de enfrentamento da violência sexual contra
a metodologia de forma regionalizada:
crianças e adolescentes.
1. Articulação Político-institucional – Com o objetivo de apresentar a proposta metodológica do PAIR e mobilizar os atores
4.3. Nos municípios com população acima de 100.000 habitantes
e forças locais, deve-se realizar reuniões de articulação com gestores locais e a sociedade civil nas regiões administrativas
Em diferente momentos, 145 municípios com população acima de 100.000 habitantes vivenciaram, ao longo de sete anos
do município.
(2003 a 2010), a experiência de implementar a metodologia do PAIR. Significa dizer que 53% dos municípios brasileiros
com população acima de 100.000 habitantes já experimentaram e testaram o percurso metodológico de formação e
2. Diagnóstico Rápido Participativo (DRP) – Possibilita a identificação do panorama da violência sexual contra crianças e
fortalecimento de redes locais proposto pelo PAIR.
adolescentes em cada região do município, bem como dos serviços e programas disponíveis para o enfrentamento na rede
de atendimento, prevenção e responsabilização. Mesmo que nos municípios com esse perfil seja mais produtiva a aplicação
As complexidades (política, econômica, física, social e cultural) presentes nas grandes cidades e nas metrópoles demandam
do DRP por região ou por bairro, é importante mapear os diagnósticos eventualmente já produzidos no município como
o planejamento e a implementação de ações e políticas públicas de forma localizada espacialmente. A experiência de
um todo. Outra questão relevante consiste em verificar a existência de Estudo de Viabilidade Econômica, ou se é necessário
replicação da metodologia do PAIR em Fortaleza procurou inovar nesse sentido: desenvolveu a metodologia utilizando os
desenvolvê-lo agregado ao DRP. Isso principalmente para a disponibilização de alternativas para as meninas e os meninos
territórios como parâmetros e focos geográficos.
envolvidos com prostituição.
3. Seminário para Construção dos Planos Operativos Locais (POL) – Pode ser realizado em cada região do município, para
mobilização da rede local. Durante o seminário, deve ser apresentado o DRP, construído o POL e constituída a Comissão
Local do PAIR. O seminário deve, portanto, viabilizar a organização e a estruturação da rede local, de forma integrada. É
fundamental que o Plano Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes seja a base do
POL. É fundamental também que esse processo seja protagonizado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente.
O mapeamento dos territórios nas grandes cidades: a experiência desenvolvida em Fortaleza
Assim como em outras experiências de relevância em grandes cidades, em 2008 foi realizada uma pesquisa sobre a
exploração sexual de crianças e adolescentes em Fortaleza, que revelou a existência de territórios com maior incidência de
exploração sexual. A partir dos dados e realidades desvendados pela pesquisa, foi desenvolvido um projeto com o objetivo
de fortalecer as redes comunitárias para o enfrentamento da violência sexual em dez territórios específicos, adotando como
estratégia central a implantação e disseminação da metodologia do PAIR.
A inovação do projeto residia exatamente em contextualizar e circunscrever a metodologia do PAIR em territórios específicos,
possibilitando, assim, o profundo conhecimento da problemática e articulação das microrredes locais.
116
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A metodologia do PAIR adaptada aos territórios tem demonstrado a necessidade de se olhar o “local” como base para o
5. Estratégia Regional de Enfrentamento ao Tráfico de Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual
desenho das políticas públicas. Nessa metodologia, a face dos atores fica circunscrita à região. Isso pode significar que
no Mercosul (PAIR Mercosul)
em determinadas regiões da cidade não haja necessidade de implementação do PAIR quando a violência sexual não se
apresenta como um fator a ser superado com prioridade. Dessa forma, o gestor público consegue concentrar sua atuação
A metodologia do PAIR Mercosul encontra-se em desenvolvimento em quinze cidades gêmeas de fronteiras do Brasil com
por meio do PAIR nas regiões mapeadas como de alta incidência desse tipo de violência.
Argentina, Paraguai e Uruguai. Esse projeto foi denominado Estratégia Regional de Enfrentamento ao Tráfico de Crianças e
Adolescentes para Fins de Exploração Sexual no Mercosul.
4.4. O que têm em comum as diversas experiências na implementação da metodologia do PAIR nos diferentes
municípios? Lições aprendidas.
A partir da adesão desses países à Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1989, e da adoção de legislações
A proposta metodológica do PAIR tem constituído uma experiência significativa no campo político-institucional, na medida
nacionais regulamentando os compromissos ali assumidos, as crianças e os adolescentes dos países signatários passaram a
em que consegue promover a concentração de esforços (nacional, regional, local), estabelecendo níveis de priorização no
ser considerados sujeitos de direitos.
âmbito das políticas de enfrentamento da violência sexual.
A superação desse tipo de violência passou a compor a agenda social da luta nacional e internacional pelos direitos de
Por meio da implementação da metodologia do PAIR, tem sido possível romper com as práticas de atuação isolada,
crianças e adolescentes.
segmentada e fragmentada dos operadores de políticas, programas e ações relacionados à violência sexual.
No âmbito da Reunião de Altas Autoridades de Direitos Humanos e Chancelarias do Mercosul (RAADH), a temática de
Entretanto, a experiência vivenciada nos diferentes municípios do país tem revelado que o processo de desenvolvimento da
crianças e adolescentes é discutida de forma mais aprofundada pela Comissão Permanente Niñ@sur, que reúne gestores dos
metodologia pode ser potencializado ou enfrentar entraves.
países integrantes do Mercosul e dos Estados Associados atuantes nessa área, para pensar estratégias e agendas comuns
da região.
Aspectos favoráveis:
·
poder público municipal com vontade política para adotar e implementar a proposta metodológica do PAIR com
A iniciativa Niñ@sur compreendeu, como uma das agendas a ganhar mais destaque, o enfrentamento do tráfico de crianças
participação efetiva da Comissão Local;
e adolescentes para fins sexuais, sobretudo nas regiões de fronteira.
·
Comissão Local comprometida e atuante;
·
segmentos juvenis envolvidos e atuantes, tornando operativo o eixo do protagonismo juvenil;
Pelo fato de o Brasil vir, desde 2002, desenvolvendo e implementando a metodologia do PAIR como estratégia de articulação
·
equipes técnicas locais comprometidas e competentes;
e fortalecimento das redes, foi proposta a adaptação dessa metodologia para ser utilizada como referência nesse processo,
·
rede de parceiros bem articulada;
o que foi bem aceito.
·
correta definição das relações institucionais entre os diferentes níveis de gestão (federal, estadual e municipal);
·
formalização de parcerias com as universidades enquanto espaços de produção do conhecimento e sistematização
Surgiu, portanto, o projeto PAIR Mercosul a partir de 2008, envolvendo quinze cidades da fronteira, com o objetivo de
de práticas.
fortalecer a articulação e qualificar a intervenção das redes locais de proteção a crianças e adolescentes nos casos de tráfico
de crianças e adolescentes, na perspectiva de consolidar um Bem Público Regional, ou seja, uma experiência de referência
que possa ser replicada em outros lugares da região.
118
119
5.1. Por que implementar uma iniciativa de enfrentamento do tráfico de crianças e adolescentes nas regiões de
No âmbito do PAIR Mercosul, espera-se estabelecer, em âmbito regional, um mecanismo permanente de consulta e de
fronteira?
cooperação para melhor controle das fronteiras, a fim de evitar a duplicidade de esforços e recursos e gerar um intercâmbio
As regiões de fronteira são, muitas vezes, palco de inúmeros conflitos, pelas especificidades que, naturalmente, são colocadas
de informações sobre o assunto; consolidar um fluxo de atendimento na área de prevenção, controle e acompanhamento à
entre duas nações, como características e culturas, observadas nos modos de vida das pessoas, seus costumes, crenças, além
vítima dessa violação de direito, de forma a compartilhar serviços nas quinze cidades; desenvolver e divulgar metodologias
da legislação específica de cada país.
de enfrentamento do tráfico de crianças e adolescentes baseadas em experiências avaliadas como eficazes; e consolidar
um processo que possa ser replicado em outras partes da região.
A própria concepção de fronteira guarda em si um sentido ambíguo, pois se trata de zona ou região cujas especificidades
trazem um potencial para gerar conflitos, mas onde também há trocas, intercâmbios e cooperação.
Essa faixa de terra pertencente a mais de um país, pode possuir uma memória formada pelas características geográficas,
pela história e pela organização social, comum às partes envolvidas. Portanto, esses conflitos não são apenas divergências,
envolvendo formas complexas da própria constituição da fronteira.
Nesse sentido, mediante potencialização das ações conjuntas, o PAIR Mercosul atua nas referidas regiões de fronteira, por
se entender fundamental o enfrentamento do tráfico de crianças e adolescentes nessas localidades e pela crença de que a
melhor estratégia para tanto compreende a atuação em rede e o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos
de direitos.
5.2. A cooperação
No enfrentamento dessa realidade, depara-se com conflitos legais e conceituais entre os países, que pretendem ser
resolvidos na construção de uma Estratégia Regional, que contemple atividades de prevenção, atenção e defesa, mediante
mobilização, organização, fortalecimento e integração de redes de serviços e locais de atenção, tendo um fluxo de rotina
comum entre as cidades de fronteira.
A construção de uma estratégia, por meio de planos operativos que respeitem as peculiaridades de cada cidade, visa ao
estabelecimento de um mecanismo de cooperação internacional que possibilite a construção coletiva de soluções efetivas, a
troca de informações e experiências, a coordenação das intervenções nacionais e o estímulo a ações conjuntas que atraiam
e racionalizem o investimento público dos diferentes países envolvidos com o fenômeno.
A cooperação entre os Estados enquanto rede pretende ser um modelo de relação institucional que abranja organizações
de diferentes naturezas (públicas, privadas e não governamentais) dos países envolvidos, com objetivos comuns e
complementares que visem à garantia dos direitos de crianças e adolescentes.
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5.3. Parceiros
O processo de coordenação política e mobilização institucional está a cargo das instituições governamentais dos países
envolvidos, a saber:
·
Brasil – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) / Secretaria Nacional de Promoção
dos Direitos da Criança e do Adolescente / Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra
Crianças e Adolescentes;
·
Argentina – Secretaría de Derechos Humanos del Ministerio de Justicia y Derechos Humanos;
·
Paraguai – Secretaría Nacional de la Niñez y Adolescencia de la Presidencia de la República / Unidad de Trata de
Personas y Explotación Sexual de Niños, Niñas y Adolescentes;
·
Uruguai – Instituto del Niño y Adolescente de Uruguay (INAU) de la República Oriental Del Uruguay.
O projeto é executado pela Fundação de Apoio à Pesquisa, ao Ensino e à Cultura, da Universidade do Mato Grosso do Sul
(Fapec) sob a coordenação técnica da equipe do Programa Escola de Conselhos / UFMS.
A execução técnica se dá em parceria com as seguintes instituições:
·
Brasil – Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Câmpus Foz do Iguaçu; Universidade Federal do Paraná
(UFPR); Universidade Federal do Rio Grande (FURG);
·
Argentina – Comité Argentino de Seguimiento y Aplicación de la Convención Internacional sobre los Derechos del
Niño (CASACIDN);
·
Paraguai – Centro de Estudios en Derechos Humanos, Niñez y Juventud (Ceniju);
·
Uruguai – Universidad de la Republica (Udelar) e Asociación Pró-Fundacion para las Ciencias Sociales (APFCS).
O financiamento das ações provém do Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID), além do aporte de contrapartida
de cada um dos quatro países.
121
5.4. Abrangência do PAIR Mercosul
fronteira (Foz do Iguaçu, Ciudad del Este e Puerto Iguazu), realiza-se um Plano Transnacional.
Uma vez que o projeto nasceu no âmbito do Mercosul (Niñ@sur, RAADH), e por se tratar de iniciativa-piloto que se pretende
Capacitação da Rede e Pactuação de Fluxos – Capacitação de todos os profissionais envolvidos na rede, treinamentos
expandir, sua abrangência inicial ficou restrita a quinze cidades de fronteira dos quatro países criadores do Mercosul,
em oficinas específicas e pactuação de fluxos de procedimentos diante dos casos de tráfico identificados.
consideradas estratégicas para tal intervenção.
Construção da Estratégia Regional – Definição e pactuação de uma Estratégia Regional entre os países envolvidos no
projeto, no âmbito do Mercosul, para enfrentamento do tráfico de crianças e adolescentes nas regiões de fronteira, a partir
Considerando que a metodologia adotada pela iniciativa teve origem no Brasil, todas as cidades selecionadas se localizam
dos Planos Operativos Locais, Binacionais e Transnacional.
na fronteira entre este e os demais países – Argentina, Paraguai e Uruguai. A expectativa é de que, uma vez consolidado
Monitoramento dos Planos Operativos Regionais – Avaliação periódica das ações junto aos municípios, para
esse processo, a metodologia seja amplamente utilizada em toda a região.
acompanhamento da implementação dos Planos Operativos.
BRASIL (7 municípios) Foz do Iguaçu (PR)
Fronteira (8 municípios)
Ciudad del Este (PY) e Puerto Iguazu (AR)
São Borja (RS)
Uruguaiana (RS)
Barra do Quaraí (RS)
Chuí (RS)
Jaguarão (RS)
Santana do Livramento (RS)
Santo Tomé (AR)
Paso dos Libres (AR)
Bella Unión (UY)
Chuy (UY)
Río Branco (UY)
Rivera (UY)
5.6. Resultados esperados
Espera-se que, a partir da experiência do PAIR Mercosul, sejam alcançados os seguintes resultados:
• melhoria na integração da rede regional;
• qualificação, capacitação e aproximação de todos os agentes participantes da rede;
• maior visibilidade da violência sexual contra crianças e adolescentes, especialmente do tráfico para fins de
exploração sexual;
• articulação e mobilização de políticas públicas, principalmente nas áreas de Educação, Assistência Social, Saúde,
Justiça, Direitos Humanos e Segurança Pública;
• melhoria nas ações e serviços de atendimento às vítimas da violência sexual;
5.5. Fases da implementação da metodologia do PAIR Mercosul
• aumento da quantidade de denúncias;
Articulação político-institucional – Reuniões de articulação com gestores locais e a sociedade civil das cidades gêmeas,
• consolidação de um Bem Público Regional, com capacidade de disseminação da experiência na região.
para apresentação da proposta de trabalho do PAIR Mercosul e para promover a mobilização das forças locais e nacionais
envolvidas.
Diagnóstico Rápido Participativo (DRP) – Análise das demandas e reconhecimento dos serviços e programas relacionados
ao enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes do município. Os resultados devem ser apresentados
durante a realização dos Seminários para Construção dos Planos Operativos Locais, para análise das informações obtidas e
para que estas possam nortear o estabelecimento coletivo de estratégias de superação das fragilidades.
Seminário para Construção dos Planos Operativos Locais (POL) – Momento em que se levam em conta os principais
problemas do local verificados no diagnóstico, e em que a rede se organiza para estruturar, de forma coletiva, respostas a
esses problemas no seu POL.
Planos Binacionais e Transnacional – No momento seguinte, cada dupla de cidades gêmeas realiza seu Plano Binacional,
ou seja, estruturando num único documento o que há de comum entre os municípios correspondentes; no caso da tríplice
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Realização:
Estratégia Regional de Enfrentamento ao
Tráfico de Crianças e Adolescentes para
Fins de Exploração Sexual no Mercosul
Parceria:
Apoio:

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