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UFPB CORAÇÃO ROUBADO ‐MARCOS REY Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, nasceu e morreu em São Paulo (1925‐ 1999), cidade que sempre foi cenário de suas crônicas, contos, novelas e romances. Sua carreira, repleta da glória, foi marcada por um drama pessoal dos mais violentos, que permaneceu oculto até a sua morte. Marcos Rey era portador de hanseníase, doença conhecida até meados do século XX como lepra e que desde os tempos bíblicos carrega o estigma de maldição. A partir dos anos 30, a hanseníase passou a ser combatida com ferocidade pelas autoridades sanitárias paulistas, que internavam os doentes à força em sinistros leprosários. Depois de uma segunda denúncia anônima, em 1941, o jovem Edmundo, que contraíra a doença aos dez ou doze anos, foi levado por uma ambulância enquanto jogava bilhar, em um bar na Praça Marechal Deodoro, no Centro de São Paulo. Começava um pesadelo que duraria seis longos anos, até a sua última fuga do sanatório, em 1945. Sobre a obra Coração Roubado é um livro de crônicas. Você sabe o que é uma crônica? O autor, no prefácio, ajuda você a entender um pouco melhor esse gênero literário tão gostoso de ler e cultivado no Brasil por excelentes escritores como Machado de Assis (1839 ‐1908), Cecília Meireles (1901‐1964), Rubem Braga (1913 ‐1990), Fernando Sabino (1923 ‐2004), Ignácio de Loyola Brandão (1936), Moacyr Scliar (1937) e tantos outros ... Vamos ler um trechinho do prefácio. O que é mesmo uma crônica? Muitos supõem, também erradamente, que a crônica, ramo econômico das letras, sem espaço para alinhavar e aprofundar conclusões, nem tamanho para conferir finais apoteóticos, não passa de malabarismo de entreato, cortina ou número para entretenimento ligeiro, show de bolso, sem grandiosidade. Um quase ‐ literatura de consumo dietético. Mas a crônica é mais, muito mais que isso, mesmo as que não têm fim nem começo. Escritas de maneira inteligente e instigante, as 26 crônicas de Marcos Rey apresentam uma série de tipos inesquecíveis, vivendo situações as mais diversas. Nas páginas de Coração roubado, você encontrará cenas hilariantes, absurdas, constrangedoras, delicadas... presentes no dia‐a‐dia de qualquer pessoa, em qualquer lugar. Marcos Rey agrupou as crônicas em três subtítulos: Situações embaraçosas O coração roubado Narrada em primeira pessoa, esta crônica relembra o tempo da infância do autor: o momento da conclusão do antigo curso primário. O autor ganhara um livro do pai (O coração, do escritor italiano Edmondo de Amicis), um best‐seller infanto‐juvenil. Na festa de formatura o seu livro desapareceu e ele sofreu uma grande decepção. Encontrou‐o sob a pasta escolar de Plínio, o aluno mais comportado da escola. Com verginha de denunciá‐lo, pegou o livro de volta sem dizer nada ao ladrão. Mas, a partir daquele dia, perdeu a fé nos seres humanos e passou a vida toda dando o exemplo de Plínio para demonstrar a corrupção humana. Um dia, caíram alguns livros de sua estante, entre eles, o famoso O coração, de Amicis... Procurou a dedicatória de seu saudoso pai e... surpresa! Encontrou a dedicatória do pai de Plínio. Gnomos na gaveta Misturando ficção e realidade o narrador nos conta que atravessava um período de dificuldades financeiras quando a mulher lhe deu a ideia de escrever sobre coisas esotéricas. Afirmava ela, que o povo estava cansado da dura realidade da vida e que escrever sobre gnomos poderia lhes dar um bom dinheiro. Ele afirmou que era materialista e que tudo isso era besteira, ilusão, piração. Então, a mulher insistiu: escreva contra os duendes. Nosso problema é financeiro, não importa se o livro é contra ou a favor. Ele aceitou a sugestão da esposa e ligou para o editor, este lhe deu sinal verde... pode escrever. O título saiu fácil: NÃO ACREDITO EM GNOMOS. E DAÍ? Até adiantamento em cheque ele recebeu. Quando começou a escrever, não saía nada além do título... e o pior, um homenzinho de cinco centímetros não para de dar voltas de bicicleta ao redor de sua máquina de escrever: “...Olha para mim gozador e, com a mão direita, faz gestos obscenos... Quer me enlouquecer. Uso o aspirador.” A última entrevista Um homem sonha em ser um grande repórter, daqueles que fazem entrevistas extraordinárias e perigosas. Imagina entrevistas com marcianos, Santos Dumont, Van Gogh... Acaba entrevistando um perigoso fugitivo de penitenciária que se distrai e é preso pela polícia. Um dia, vai entrevistar um maluco que vai voar num avião até a gasolina acabar. Em terra ele pergunta: O que sente um aviador que sabe que vai morrer quando acabar a gasolina? Depois, entra no avião e decola com o suicida. “Ganhou o primeiro prêmio de reportagem do ano. Seu pai recebeu o troféu por ele. Beleza. Todo banhado a ouro.” Ah! Ah! Ah! Esta crônica tece reflexões sobre o RISO. Desde o mais simples até a risada mais intensa. “O humor machadiano, por exemplo, é tão imaterial como o perfume. Exige refinamento do leitor.. Há, na outra ponta, o riso manual, obtido com os dedos através de cócegas. Com habilidade se faz até o conde Drácula dar risada. O riso pode também ser forçado artificialmente por processo mecânico, como se fazia nos circos e parques de diversão, com o antiquíssimo Disco das Gargalhadas. Criava‐se um clima postiço de alegria, com efeito mágico sobre os idiotas”. (p. 32) Depois, o narrador passa a discorrer sobre o riso embaraçoso, aquele que não deveria ocorrer. O riso durante um velório, durante o casamento, dentro de um elevador... Por fim, a sua própria experiência: fora dar uma palestra sobre Contos. A noite chuvosa, pouca gente escutando.. começou a rir da situação e de si mesmo... a plateia foi contagiada, todos começam a rir. Ao final, o prefeito lhe parabeniza: “Volte sempre. Confesso não ter entendido muita coisa, mas nunca se riu tanto por aqui. O senhor é um show!” (p. 33) A missivista suicida O assunto é o ofício de cronista. O autor relembra um tempo em que produziu crônicas “melosas” para um programa de rádio, nada especial, tanto é que rasgava todas ao final do programa. De repente, começou a receber cartas esquisitas: “Diga para o Luís voltar já para casa senão tomo veneno. Ele ouve o programa. Assinado: Julinha da Bela Vista. Letra tremida, papel umedecido de lágrimas.” (p. 39) Emocionado, o cronista decidiu escrever uma crônica para o Luís. Liga um Luís: “... tudo bem, estou voltando pra casa”. Alívio do cronista. Liga outro Luís: “... já estou chamando um táxi para voltar aos braços da Julinha.” O cronista sente uma sensação de dever cumprido. Liga mais um Luís: “... não adianta ficar escrevendo besteiras, por mim ela pode tomar um tonel de veneno... Não estou nem aí.” O cronista fica perplexo: e agora, qual é o Luís da Julinha? Outro momento hilário: Alguém escreveu uma carta dizendo chamar‐se Leão, que era o ser mais solitário do mundo, que ligassem pra ele. Comovido, o cronista fez o que não era normal no programa. Deu o telefone do tal Leão. Resultado, o pessoal do zoológico ligou revoltado com tantos telefonemas para falar com o leão. Flashes da vida moderna Ele comprou tudo que Van Gogh pintou Crônica dibertida, lembra o filme Efeito Borboleta, pois trata da volta no tempo. Um cientista inventara uma máquina para voltar no tempo, mas não divulgara nada. Tinha uma ideia: voltar no tempo e comprar todos os quadros de Van Gogh. Depois voltaria e venderia todos ficando milionário. Começou a fazer testes. Botou uma garrafa de vinho na máquina e atrasou o relógio em um ano. Resultado: voltou um cacho de uvas; experiência 2: colocou uma galinha na máquina... quando a máquina voltou, lá estava um ovo. Pensou em se a máquina funcionava com seres humanos. Convenceu um bêbado (Gera) a entrar na geringonça e atrasou o relógio 50 anos... Gera voltou cantando marchinhas de 50 anos atrás. Deu tudo certo. Comprou francos velhos (moeda do tempo de Van Gogh) e embarcou na máquina. Encontrou Van Gogh, pobre, desiludido, sem conseguir vender nenhum dos seus quadros. Comprou todos e ainda deu conselhos ao pintor: “Desista de pintar, moço, não nasceu para isso, em seu lugar compraria ações do novo invento, o telefone. Vai ser o maior estouro.” (p. 48) Ao regressar ao seu tempo, o cientista colocou os quadros à venda... SURPRESA! Ninguém queria os quadros, ninguém conhecia Van Gogh... ao mexer no passado, ele apagara o famoso pintor da história. O que restara era um tal de Van Gogh que ficara rico como acionista da Companhia telefônica. Essa mocidade de hoje Reflexão irônica sobre a preocupação dos pais de antigamente e a dos pais de hoje. A crônica é datada como se fosse de 1893, o que é, evidentemente, uma etratégia do cronista para nos surpreender. Em uma família, os pais estão preocupados. O filho está viciado em cheirar... Quando pensamos em nossos dias, vem à tona: COCAÍNA! Naquela época, o perigo era cheirar rapé, e a consequência era meramente social, já que os viciados em rapé espirravam muito. Por causa disso, o jovem perdia empregos e casamento. O segundo filho saia no meio da madrugada e os pais, preocupados investigam. O jovem fazia serenatas para as namoradas. O terceiro vicou‐se numa tal de lanterna mágica, os pais ficam alucinados. Era apenas um brinquedo que tentava imitar a magia do cinema e que feez muito sucesso ente as crianças do final do século XIX. E os pais preocupados dizem: “Este fim de século ameaça destruir nossos jovens.” (p. 53) Marketing oportunista Crônica que nos chama a atenção para o oportunismo de algumas pessoas. A história acontece na década de 90, tempo em que os dinossauros e os duendes estão na moda. A Xuxa até chegou a ver alguns, lembra? O narrador se espanta pela facilidade com que o homem daquele tempo caminha pelos extremos. OU é o duende (minúsculo) ou o dinossauro (gigantesco). Um amigo pergunta se ele está esecrevendo alguma coisa e ele diz que está escrevendo uma história que envolve um triângulo amoroso, o amigo não gosta: “− A ideia é velha. Meta um dinossauro carnívoro, feroz, perseguindo esses três tarados. − Como posso fazer isso? O romance se passa nos tempos de hoje, entendeu? − Não faz mal, ponha o dinossauro assim mesmo. − Ora, é uma história urbana, não acontece em nenhuma floresta desconhecida. − Melhor ainda! Já imaginou o tal dinossauro no viaduto do chá, na hora do rush, pisando nos carros, derrubando postes, engolindo marreteiros?” (p. 57‐58) O cronista vai para casa impressionado com o mau gosto. Comenta com a mulher esperando uma risada. Ela diz: dá dinheiro... De noite, o cronista sonha com dinossauros. Um senador que fez propaganda no pescoço de um dinossauro, Iguanodontes andando na rua e sendo alugados... e algumas pessoas defendendo os dinossauros, preocupados com a sua extinção. De repente ele vê um enorme Tiranossauro Rex amarrado e pergunta por que o imobilizaram daquela maneira. Resposta dos defensores de dinossauros: foi imobilizado assim como marketing sensacionalista de um romance que tratava de um triângulo amoroso. Pergunta se a história fez sucesso. E a resposta é: fez, o inescrupuloso escritor ganhou milhões. Nesse momento o escritor acorda, vai à cozinha e encontra a mulher somando as contas a pagar e diz: “− Sabe de uma coisa querida? Aquela ideia do dinossauro no viaduto é coisa de louco, sim, mas quem não é hoje em dia?” (p. 60) Figurinhas carimbadas A primeira figurinha carimbada é o próprio autor. Nasceu pobre, mas seu pai disse que nascera na cidade deserta (São Paulo). Devido ao seu anonimato, brinca com o recenseador, pedindo que ele apareça mais vezes. O homem do censo faz a gente lembrar quem é. Nas primeiras décadas da vida, não fez nada e aí, por falta de tempo e cansado do esforço de não fazer nada, começou a escrever. Escreveu um romance imenso, chamado Ulisses, mas descobriu que havia um com o mesmo nome e com a mesma história. Atribui isso às coincidências. Começou a escrever sobre Paris, mas lhe deram uma ideia: fale sobre São Paulo, é mais perto e, quando chove, é só ficar olhando da janela. Fez um filme sem sucesso nenhum, e brinca: “Se tivéssemos vendido saídas, no lugar de entradas, teria ficado rico.” (p. 78) Alga que fez anúncios e brinca com a história de Van Gogh (pintor que cortou a orelha); O anúncio era de cola tudo, portanto fez a orelha de Van Gogh sendo colada ao contrário com os dizeres: “Agora não tem mais jeito, ruivo!”. Na televisão também não deu certo. O primeiro livro foi um fracasso, só não desistiu por insistência da mãe. Ao acabar de escrever o vigésimo, tinha chegado ao completo anonimato. Afirma que, atualmente, está escrevendo um livro de memórias e aconselha a que ninguém perca. Começa assim: “No mês em que nasci São Paulo estava coberta de neve.” E para que ninguém duvide, não coloquei o ano. Adão Flores, o detetive Adão é um detetive diferente. Misto de empresário de cantores e mulheres para casas noturnas e detetive, Adão tem seu escritório no próprio carro (um Corcel 69) que fica estacionado em frente a boate. Sua secretária (Maralice) trabalha no banco traseiro, com uma máquina de escrever sobre as pernas. Resolvera ser detetive quando um pai aflito lhe pedira que localizasse suas duas filha gêmeas, loiríssimas, que sonhavam em cantar em dupla. Ele as havia contratado, pintava elas com a cor negra e as apresentava como “as irmãs fulô”. Quando a plateia cansava, retornava‐lhes a cor original e elas cantavam como uma dupla de loiras. Também tivera um caso com uma delas antes de se pintarem e com a outra depois de pintada. Os pais chorarm com a apresentação das filhas. Adão Flores era gordo (120 quilos, a maior parte na barriga) e Maralice, sua secretária, magra (45 quilos). Um dia um homem lhe procurou para encontrar um cantor que lhe dera um cano. Adão conhecia todos. Era um tal de Ramon Diaz.. Adão o prendeu, mas antes lhe pediu que cantasse o famoso bolero Sabra Dios. Gente que vai à feira O autor começa narrando a mistura de personagens que frequentam às feiras populares. O rico, o pobre, e, às vezes, até mesmo gente famosa. Ele não gosta de feira, lembra do tempo de criança, quando era obrigado a carregar as compras. Sua esposa adora. Um dia uma menina gorducha lhe pediu um autógrafo. Ficou todo feliz, havia acabado de publicar um livro e era bom ser reconhecido. Juntou gente, e ele cada vez mais feliz... até que uma senhora da fila perguntou: quem é? E a outra informou: “− Não conhece? É o doutor Lilico da novela das 7, o pai da moça... Vai deixar que eles se casem no final? Conte pra gente, conte.” (p. 91) Procurando Telma Ternura Um jovem repórter está procurando um assunto que emocione os leitores. Lá está, nos arquivos: Telma ternura, a ex‐rainha do sexo em São paulo, a mãe do espetáculo pornô, sumira. Ninguém sabia do seu paradeiro. Ninguém sabia nem do seu verdadeiro nome. Procurou em todos os lugares e... NADA. Um dia ligaram para a redação e deram o endereço. Encontrou uma velhinha magra (40 quilos), ela não dava entrevistas sem receber um bom dinheiro. Desesperado para não perder o furo de reportagem, ele vendeu a eletrola, o casaco, obras de Eça de Queirós.. até um papagaio. Pagou e a velhinha começou a entrevista. Não tinha nenhuma vergonha, contava tudo, figurões e famosos com quem tivera casos... tudo. O repórter pediu uma foto e ela provocou: com roupa ou sem roupa? Terminada a entrevista, o repórter corre para o jornal, está bem feliz e ansioso. Quando mostra o trabalho ao editor, este começa a rir e informa: Telma morreu há 20 anos. Alguém te enganou. Ele corre atrás da velhinha que o enganara, mas, chegando lá, não encontra ninguém, ela já se mudara. Informam que a velha era uma grande inventadora de histórias e que gostava de se passar por uma ex‐atriz: Greta Garbo. Envergonhado, ele sabe que todos ali já sabem que caíra nas mentiras da velhinha. Os furtos do furtado Furtado era um home sério, respeitado, sempre bem vestido. Todos o achavam careta. Mas o cronista o conhecia desde a infância. Um fino ladrão, era isso que o Furtado era. Estava sempre de olho nos pertences alheios. Jogava o boné e, junto já vinha o compasso. O cronista avisava: Furtado, devolva, eu vi você roubar. E ele corrigia: Roubo é quando se usa violência. Eu apenas furto. Quando o autor ameçava denunciar à professora ele dizia: Não faça isso que eu devolvo. Mas não era o compasso que queria devolver, já era a caixa de lápis de cor do denunciante que ele roubara e que devolveria em troca de seu silêncio. Cresceu dessa maneira, sempre com modos finos e sempre roubando. Já adulto, não resistia ao desejo de contar ao amigo de infância seus furtos. Na feira, no supermercado, nas livrarias... e ainda pedia: Cuidado! Não vá umdia falar de mim em sua crônica. RESOLVENDO JUNTOS 01. Marque a opção a seguir que corresponde ao gênero crônica: a) A crônica é similar à notícia de jornal, por ser rápida, de curta permanência e verídica, ou seja, baseada em dados concretos; b) A crônica não precisa ser uma história completa, com começo, meio e fim; c) A crônica é como um conto, pelo seu caráter de fantasia; d) A crônica é sempre escrita por uma pessoa de motivações políticas elevadas, sendo considerada um gênero extremamente ideológico; e) A crônica apresenta uma estrutura e discurso bastante claros e é de fácil definição. 02. Leia o excerto de crônica a seguir, pondo‐o em diálogo com texto anterior, para marcar a opção correta: O espaço de um cronista muitas vezes vira confessionário ou caixa postal para pedidos de conselhos, favores ou mesmo dinheiro. Já assinei no rádio uma página de fim de noite, que acabou me dando muito susto e trabalho. Lida com fundo musical abolerado, por um profissional de voz aveludada, destinava‐se aos corações solitários. Nada de antológico. Semanalmente costumava picá‐la e soltar os pedacinhos da janela da emissora, no velho centrão paulistano. Mas o programa, devido à interpretação apaixonada do locutor, fez algum sucesso. Quanto à minha redação, de uma única lauda, desdobrava‐se em farta adjetivação e reticências. Assim: Como está você nessa fria madrugada? Foi aquela música o motivo dessa melancólica lembrança? Então, só hoje ficou sabendo da infame traição do homem que dizia amá‐la? (REY, 2007) a) No texto, o cronista aparece como narrador observador, ou seja externo aos fatos; b) A crônica é apresentada como um gênero 'sem compromisso com a posteridade', mas neste texto há uma necessidade do autor de conservar suas crônicas para posterior publicação; c) O texto confirma um aspecto da crônica como um discurso marcado na primeira pessoa, revelando as experiências e observações do próprio escritor sobre o seu cotidiano; d) Neste texto, o forte uso de adjetivos que o cronista reconhece como sua marca pessoal demonstra a aproximação entre a crônica e a notícia de jornal; e) O cronista mostra um estilo adocicado e não revela nenhuma capacidade de autocrítica. 03. “Gnomos na gaveta” mostra um escritor que decide escrever um livro sobre gnomos para ganhar dinheiro. Assinale as afirmativas verdadeiras sobre esse escritor, personagem do texto. I. Ele é materialista, não acredita em nada que seja sobrenatural; II. Ele considera a Ciência limitada, incapaz de explicar todos os fenômenos; III. Ele acredita que pode haver outros mundos, já que esse é tão cheio de problemas. Está(ão) correta(s): a) Apenas III b) Apenas II c) Apenas I d) I e II e) II e III UFPB CARTAS CHIlENAS – TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA O CONTEXTO HISTÓRICO‐SOCIAL A segunda metade do século XVIII na Europa apresenta, de modo geral, uma importante fase de transformação cultural. Seu ponto de partida foi a França, onde, em 1751, é publicada a Enciclopédia, símbolo de renovação cultural que tinha à frente D'Alembert, Diderot e Voltaire. Os enciclopedistas deram grande impulso ao desenvolvimento das ciências, valorizando a razão como agente propulsor do progresso social e cultural. Essa onda de racionalismo opôs‐
se às idéias religiosas da época, que são atacadas e consideradas retrógradas. Todo esse movimento de renovação, chamado Iluminismo, espalhou‐se pela Europa e atingiu Portugal. Coube ao marquês de Pombal, ministro de D. José I, levar a cabo a tarefa de renovação cultural, tentando colocar Portugal em dia com o progresso do resto da Europa. Em 1759, os jesuítas são expulsos de Portugal e o ensino, que estava quase todo em suas mãos, torna‐se então leigo. Fundam‐se escolas e academias, e respira‐se em Portugal um clima de novidade e mudanças no campo da arte, da ciência e da filosofia. A ESCOLA LITERÁRIA Dentro desse panorama de renovação cultural, surge um novo estilo poético: o Arcadismo. Reagindo contra os exageros do estilo barroco, os autores da segunda metade do século XVIII propõem uma literatura que seja mais simples e espontânea. Vivendo numa época de euforia e confiantes no progresso científico, esses novos autores não foram tão religiosos nem expressaram tantos problemas metafísicos quanto os barrocos. O Arcadismo expressa uma visão mais sensualista da existência, propondo uma volta à natureza e um contato maior com a vida simples do campo. Em pleno século XVIII, os poetas arcádicos recriam em seus textos as paisagens campestres de outras épocas, com pastores e pastoras cantando e vivendo uma existência sadia e amorosa, preocupados apenas em cuidar de seus rebanhos; esse tipo de recriação da vida é chamado de bucolismo e constitui uma das características marcantes da poesia arcádica. Aliás, o desejo de identificação com a figura de pastores levou os poetas arcádicos a adotarem para si pseudônimos gregos e latinos e a se referirem, em suas poesias, a elementos da mitologia clássica (ninfas, deuses etc.). O próprio nome Arcadismo foi tirado de Arcádia, região da Grécia onde, segundo a mitologia, pastores e poetas viveriam uma existência de amor e poesia. Valorizando a razão e a simplicidade, os arcádicos inspiraram‐se na sobriedade dos poetas clássicos do Renascimento (sobretudo Camões) e da antigüidade grega e latina. Daí o nome de Neoclassicismo com que também se costuma designar esse período. SOBRE O AUTOR Tomás Antônio Gonzaga ‐ Nasceu em Portugal em 1744 e morreu em 1810, na África, para onde tinha sido desterrado por seu envolvimento na Inconfidência Mineira. Viveu alguns anos no Brasil, depois foi estudar Direito em Portugal, regressando em 1782 como ouvidor de Vila Rica. Sob o pseudônimo árcade de Dirceu, escreveu poesias líricas em que fala de seus amores por Marília, nome criado por ele para se referir à jovem Maria Dorotéia de Seixas. Essas poesias formam o livro Marília de Dirceu, em que aparece freqüentemente o desejo de uma vida em contato com a natureza, entre pastores, numa existência simples e feliz. Insiste na brevidade da vida, na passagem do tempo que tudo destrói, acentuando a busca do prazer e o gozo do momento presente. Além disso, escreveu ainda uma obra satírica em versos: Cartas chilenas, que circularam sob forma manuscrita em Vila / Rica, e cuja autoria só recentemente foi atribuída a Tomás Antônio Gonzaga. Nessas cartas, o autor satiriza Luís da Cunha Meneses por suas arbitrariedades como governador da capitania de Minas. Os nomes das pessoas e da região são substituídos por outros: Minas Gerais é o Chile; Vila Rica é Santiago; o autor se dá o nome de Critilo e o destinatário é Doroteu; o governador é chamado de Fanfarrão Minésio. SOBRE A OBRA As Cartas Chilenas encontram‐se entre os melhores textos satíricos da língua portuguesa. Poema incompleto, o livro trata da corrupção de Luís da Cunha Meneses, governador da Capitania de Minas Gerais entre 1783 e 1788. Escrita sob anonimato ‐ para evitar represálias, evidentemente ‐ e permanecida inédita até 1845, durante muito tempo polemizou‐se sobre a sua autoria, que um certo consenso atribui a Tomás Antônio Gonzaga (1744‐1810). Nela, Chilenas querem dizer Mineiras: Chile seria Minas Gerais; Santiago, Vila Rica. Os personagens também tentam despistar a inspiração: o governador ficou ilustrado por Fanfarrão Minésio; o autor se autodenomina de Critilo; o destinatário das cartas chama‐se Doroteu: Amigo Doroteu, prezado amigo, Abre os olhos, boceja, estende os braços E limpa, das pestanas carregadas, O pegajoso humor, que o sono ajunta. Critilo, o teu Critilo é quem te chama; Ergue a cabeça da engomada fronha Acorda, se ouvir queres coisas raras” São 13 cartas escritas em decassílabos brancos (sem rimas). Os costumes da cidade de Vila Rica são expostos de modo caricato e impiedoso, sobretudo os atos grosseiros e os desmandos da aristocracia. Seus temas se anunciam a cada carta: a entrada de Fanfarrão no Chile; a fingida piedade inicial deste a fim de angariar negócios; suas violências e injustiças; o casamento do futuro rei d. João 6o e Carlota Joaquina; as desordens e brejeirices de Fanfarrão. Autor revolucionário em certa medida, Gonzaga faz da literatura aqui um modo de combate, um meio que julga capaz de transformar a ordem que não lhe é conveniente: "Um D. Quixote pode desterrar do mundo as loucuras dos cavaleiros andantes; um Fanfarrão Minésio pode também corrigir a desordem de um governador despótico”, diz o poeta no prefácio. A influência dos iluministas franceses se mostra clara aqui. Gonzaga teria se inspirado no estilo satírico de Voltaire e nas Cartas Persas (1721), do Barão de Montesquieu (1689‐1755), para intitular seu poema. Nesta obra, um dos manuais do Iluminismo, um persa visita a França e tenta entender os hábitos e as instituições do país. Na comparação entre culturas e costumes diferentes residem as ironias de Montesquieu. Tomás Antônio Gonzaga teve participação ao lado de outros poetas na Inconfidência Mineira, contrária à cobrança de impostos altíssimos sobre a exploração do ouro. Seu conjunto de liras Marília de Dirceu se enquadra como uma das melhores obras do período e faz par com as Cartas Chilenas na alta produção do poeta. Cartas Chilenas é um conjunto de poemas, escritos em versos decassílabos e brancos, com uma metrificação parecida com a da epopéia, e circularam anonimamente em Vila Rica, entre 1787 e 1788, seus versos assumem um tom satírico. É uma obra satírica, constituindo poema truncado e inacabado (13 cartas), na qual um morador de Vila Rica ataca a corrupção do Governador Luís da Cunha Menezes. Aponta as irregularidades de seu governo, configurando o ambiente de Vila Rica ao tempo da preparação política da Inconfidência Mineira. Em julho deste ano de 1878, Cunha Menezes deixaria o governo de Minas, em favor do Visconde de Barbacena. Onde se deveria ler Portugal, Lisboa, Coimbra, Minas e Vila Rica, lê‐se Espanha, Madrid, Salamanca, Chile e Santiago. Os nomes aparecem quase sempre deformados: Menezes é Minésio. Há apelidos e topônimos inalterados, como: Macedo, a ermida do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, a igreja do Pilar. O autor se dá o nome de Critilo e chama o destinatário de Doroteu. Finalmente, os fatos aludidos são facilmente identificados pelos leitores contemporâneos. A matéria é toda referente à tirania e ao abuso de poder do Governador Fanfarrão Minésio, versando a sua falta de decoro, venalidade, prepotência e, sobretudo, desrespeito à lei. Afirmam alguns que o poema circulava largamente em Vila Rica em cópias manuscritas. Critilo (Tomás Antônio Gonzaga) aplica‐se de tal modo na sátira, que a beleza mal o preocupa. Os versos brancos concentram‐se no ataque. Sente‐se um poeta capaz de escrever no tom familiar que caracteriza o realismo dos neoclássicos, com certa inclinação para a pintura da vida doméstica. Para Critilo, o arbitrário Governador constituía, de certo modo, atentado ao equilíbrio natural da sociedade. Entretanto, não se nota nas Cartas nenhuma rebeldia contra os alicerces do sistema colonial, nem mesmo uma revolta contra o colonizador; apenas se critica a má administração do governador Cunha Menezes. Seu significado político, todavia, permanece. Literariamente, é a obra satírica mais importante do século XVIII brasileiro e continua sendo o índice de uma época. Sendo anônimo o poema e tendo permanecido inédito até 1845, houve dúvida quanto à sua autoria, embora a tradição mais antiga apontasse Gonzaga sem hesitação. Falou‐se depois em Cláudio, em Alvarenga Peixoto, em colaboração etc. Estudos empreendidos neste século, culminando pelos de Rodrigues Lapa, vieram dar praticamente a certeza da atribuição a Gonzaga. É tida como uma das mais curiosas sátiras de todos os tempos em Literatura Brasileira. Quem assina essas cartas é um certo Critilo, que escreve a um amigo, Doroteu. O contexto também era diverso, já que o clima de opressão e a tensão política deveriam se asilar no apócrifo. As Cartas têm em Cunha Menezes (no texto, batizado com o singelo nome de Fanfarrão Minésio) o seu protagonista. Além do viés satírico, a obra constitui um interessante quadro dos costumes daquela época e um registro precioso do que era a corrupção no Brasil já desde os tempos da Colônia. Critilo, por sua vez, escreve do Chile. A intenção do autor Carta 1ª (fragmentos) Não cuides, Doroteu, que vou contar‐te por verdadeira história uma novela da classe das patranhas, que nos contam verbosos navegantes, que já deram ao globo deste mundo volta inteira. Uma velha madrasta me persiga, uma mulher zelosa me atormente e tenha um bando de gatunos filhos, que um chavo não me deixem, se este chefe não fez ainda mais do que eu refiro. [...] Tem pesado semblante, a cor é baça, o corpo de estatura um tanto esbelta, feições compridas e olhadura feia; tem grossas sobrancelhas, testa curta, nariz direito e grande, fala pouco em rouco, baixo som de mau falsete; sem ser velho, já tem cabelo ruço, e cobre este defeito e fria calva à força de polvilho que lhe deita. Ainda me parece que o estou vendo no gordo rocinante escarranchado, as longas calças pelo embigo atadas, amarelo colete, e sobre tudo vestida uma vermelha e justa farda. RESOLVENDO JUNTOS INSTRUÇÃO: As questões de números 01 a 03 tomam por base um trecho do poema satírico Cartas Chilenas, do poeta neoclássico Tomás Antônio Gonzaga (1744‐1810), e um fragmento do poema João Boa‐Morte, cabra marcado para morrer, do poeta neoconcretista Ferreira Gullar (1930). Cartas Chilenas Os grandes, Doroteu, da nossa Espanha têm diversas herdades: umas delas dão trigo, dão centeio e dão cevada; as outras têm cascatas e pomares, com outras muitas peças, que só servem, nos calmosos verões, de algum recreio. Assim os generais da nossa Chile têm diversas fazendas: numas passam as horas de descanso, as outras geram os milhos, os feijões e os úteis frutos, que podem sustentar as grandes casas. (...) Amigo Doroteu, és pouco esperto; as fazendas que pinto não são dessas que têm para as culturas largos campos e virgens matarias, cujos troncos levantam, sobre as nuvens, grossos ramos. Não são, não são fazendas onde paste o lanudo carneiro e a gorda vaca, a vaca, que salpica as brandas ervas com o leite encorpado, que lhe escorre das lisas tetas, que no chão lhe arrastam. Não são, enfim, herdades, onde as loiras, zunidoras abelhas de mil castas, nos côncavos das árvores já velhas, que bálsamos destilam, escondidas, fabriquem rumas de gostosos favos. Estas quintas são quintas só no nome, pois são os dois contratos que utilizam aos chefes, ainda mais que o próprio Estado. Cada triênio, pois, os nossos chefes levantam duas quintas ou herdades, e, quando o lavrador da terra inculta despende o seu dinheiro, no princípio, fazendo levantar, de paus robustos, as casas de vivenda e, junto delas, em volta de um terreiro, as vis senzalas, os nossos generais, pelo contrário, quando estas quintas fazem, logo embolsam uma grande porção de loiras barras. (Tomás Antônio Gonzaga, Cartas Chilenas. 1.ª edição: 1788‐1789.) João Boa‐Morte Vou contar para vocês um caso que sucedeu na Paraíba do Norte com um homem que se chamava Pedro João Boa‐Morte, lavrador de Chapadinha: talvez tenha morte boa porque vida ele não tinha. Sucedeu na Paraíba mas é uma história banal em todo aquele Nordeste. Podia ser em Sergipe, Pernambuco ou Maranhão, que todo cabra da peste ali se chama João Boa‐Morte, vida não. Morava João nas terras de um coronel muito rico. Tinha mulher e seis filhos, um cão que chamava “Chico”, um facão de cortar mato, um chapéu e um tico‐tico. Trabalhava noite e dia nas terras do fazendeiro. Mal dormia, mal comia, mal recebia dinheiro; se recebia não dava pra acender o candeeiro. João não sabia como fugir desse cativeiro. (Ferreira Gullar, João Boa‐Morte, cabra marcado para morrer. 1.edição: 1962.) 01. Unesp No fragmento das Cartas Chilenas, a identidade das personagens censuradas pelo eu‐poemático é fragmentada em expressões como “os grandes”, “os generais” e “os chefes”. Em João Boa‐Morte, embora o enunciador revele ter um nome, sua identidade também se coletiviza e ele perde a individualidade, absorvida pela situação descrita no poema. Com base nessa opção, a) explique por que motivo essa personagem deixa de ser individualizada e acaba assumindo uma dimensão tipicamente coletiva; b) transcreva os dois versos de João Boa‐Morte, em que o eu‐poemático reconhece essa coletivização da identidade. 02. Unesp Aspectos da métrica e da rima costumam ser diferenciais de certos períodos literários. Esses recursos podem ligar os poemas de Gonzaga e de Ferreira Gullar com o Neoclassicismo, de um lado, e com a transposição de temas para a literatura de cordel, de outro. Tendo em vista essas possibilidades, a) aponte as diferenças entre os dois poemas, quanto ao número de sílabas métricas e quanto ao emprego de rimas; b) identifique um par de expressões rimadas, na segun a estrofe do poema de Ferreira Gullar, que remete à região onde é típica a literatura de cordel. 03. Unesp Em João Boa‐Morte, o vocábulo “cativeiro” enfatiza o tipo de tratamento, próprio da escravidão, dispensado pelo fazendeiro ao seu empregado. Nas Cartas Chilenas, o eu‐poemático denuncia a corrupção das autoridades, mas, em certo momento, faz também uma referência à escravidão. Relendo o texto de Gonzaga, a) destaque o verso desse poema que contém essa alusão a elementos ligados à escravidão; b) indique a palavra, no verso encontrado, que resume a opinião do eu‐poemático quanto à escravidão, justificando sua escolha. O POETA DESCREVE O QUE ERA NAQUELE TEMPO A CIDADE DA BAHIA. A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar cabana e vinha; Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um bem freqüente olheiro, Que a vida do vizinho e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha, Para o levar à praça e ao terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos sob os pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia, Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam muito pobres: E eis aqui a cidade da Bahia. 4. Por que é possível relacionar o primeiro quarteto deste soneto à caracterização de Luís da Cunha Meneses (o Fanfarrão Minésio) em Cartas Chilenas? 5. Leia, com atenção, o texto abaixo, selecionado das Cartas Chilenas. “Chegou à nossa Chile a doce nova de que real infante recebera bem digna do leito, casta esposa. Reveste‐se o baxá de um gênio alegre E, para bem furtar os seus desejos, Quer que, a despesas do Senado e do povo, Arda em grandes festins a terra toda.” GONZAGA, T. A. Cartas Chilenas. p. 829. No texto das Cartas Chilenas, há críticas severas e bem atuais à forma de organização política do Brasil, na qual não se estabelecem limites entre o público e o privado. Explique como o fragmento da Carta V, citado acima, deixa clara essa crítica. 6. Sobre Cartas Chilenas, assinale a única afirmativa correta. a) Obra satírica, publicada e assinada por Tomás Antônio Gonzaga, fala das arbitrariedades de Luís da Cunha Meneses, governador de Minas. b) De autoria duvidosa, a obra já foi atribuída a Cláudio Manuel da Costa, mas estudos aprofundados atribuíram‐na, definitivamente, a Tomás Antônio Gonzaga. c) Na obra, Tomás A. Gonzaga aparece como Doroteu; o governador de Minas, como Fanfarrão Minésio. d) Por causa dessa obra, Tomás Antônio Gonzaga foi mandado para a África. e) A obra, apesar de se constituir de textos em prosa, possui qualidades poéticas. UFPB JUDAS EM SÁBADO DE ALELUIA Martins Pena “Judas em sábado de aleluia” é uma típica comédia de costumes do Romantismo. A peça caracteriza o cotidiano de modo cômico, apresentando as personagens de modo caricatural, bem como apontando para valores culturais da classe média, funcionários públicos e militares do Rio de Janeiro no século XIX, o que agradava ao público e refletia alguns motivos da proposta romântica de produção artística. A peça de Martins Pena está estruturada em apenas um ato, o que é típico dos textos do funsdador do teatro romântico. A estrutura é simples e o enredo apresenta uma situação cômica central a qual se ligam várias outras, havendo uma visão bem humorada sobre as relações amororosas e sociais nas vidas das personagens. ENREDO, PERSONAGENS E CULTURA A peça apresenta as seguintes personagens: JOSÉ PIMENTA, cabo‐de‐esquadra da Guarda Nacional. Suas filhas CHIQUINHA e MARICOTA. LULU (10 anos). FAUSTINO, empregado público. AMBRÓSIO, capitão da Guarda Nacional. ANTÔNIO DOMINGOS, velho, negociante. Meninos e moleques. Na primeira cena, algumas crianças preparam um boneco de Judas para realizar a malhação. Veja‐se aqui a representação típica da cultura brasileira o que confere valor cultural à peça. Em seguida, surgem as personagens Chiquinha e Maricota, que discutem sobre namoros e cotidiano. CHIQUINHA, para Maricota ‐ Maricota, ainda te não cansou essa janela? MARICOTA, voltando a cabeça ‐ Não é de tua conta. CHIQUINHA ‐ Bem o sei. Mas, olha, o meu vestido está quase pronto; e o teu, não sei quando estará. MARICOTA ‐ Hei‐de aprontá‐lo quando quiser e muito bem me parecer. Basta de seca ‐ cose, e deixa‐me. CHIQUINHA ‐ Fazes bem. (Aqui Maricota faz uma mesura para ai rua, como a pessoa que a cumprimenta, e continua depois a fazer acenos com o lenço.) Lá está ela no seu fadário! Que viva esta minha irmã só para namorar! É forte mania! A todos faz festa, a todos namora... E o pior é que a todos engana... até o dia em que também seja enganada. (...) MARICOTA ‐ Os anos passam depressa, quando se namora. Ouve: (lendo:) "Vi teu mimoso semblante e fiquei enleado e cego, cego a ponto de não poder estudar minha lição." (Deixando de ler:) Isto é de criança. (Continua a ler.) "Bem diz o poeta latino: Mundus a Domino constitutus est." (Lê estas palavras com dificuldade e diz:) Isto eu não entendo; há‐de ser algum elogio... (Continua a ler.) "...constitutus est. Se Deus o criou, foi para fazer o paraíso dos amantes, que como eu têm a fortuna de gozar tanta beleza. A mocidade, meu bem, é um tesouro, porque senectus est morbus. Recebe, minha adorada, os meus protestos. Adeus, encanto. Ego vocor ‐ Tibúrcio José Maria." (Acabando de ler:) O que eu não gosto é escrever‐me ele em latim. Hei‐de mandar‐lhe dizer que me fale em português. Lá dentro ainda tenho um maço de cartas que te poderei mostrar; estas duas recebi hoje. CHIQUINHA ‐ Se todas são como essas, é rica a coleção. Quem mais passou? Vamos, dize... MARICOTA ‐ Passou aquele amanuense da Alfândega, que está à espera de ser segundo escriturário para casar‐se comigo. Passou o inglês que anda montado no cavalo do curro. Passou o Ambrósio, capitão da Guarda Nacional. Passou aquele moço de bigodes e cabelos grandes, que veio da Europa, aonde esteve empregada na diplomacia. Passou aquele sujeito que tem loja de fazendas. Passou... CHIQUINHA, interrompendo ‐ Meu Deus, quantas!... E a todos esses namoras? MARICOTA ‐ Pais então! E o melhor é que cada um de per si pensa ser o único da minha afeição. CHIQUINHA ‐ Tens habilidade! Mas dize‐me, Maricota, que esperas tu com todas essas loucuras e namoros? Que planos são as teus? (Levanta‐se.) Não vês que te podes desacreditar? MARICOTA ‐ Desacreditar‐me por namorar! E não namoram todas as moças? A diferença está em que umas são mais espertas do que outras. As estouvadas, como tu dizes que eu sou, namoram francamente, enquanto as sonsas vão pela calada. Tu mesma, com este ar de santinha ‐ anda, faze‐te vermelha! ‐ talvez namores, e muito; e se eu não passo assegurar, é parque tu não és sincera como eu sou. Desengana‐te, não há moça que não namore. A dissimulação de muitas é que faz duvidar de suas estrepolias. Apontas‐me porventura uma só, que não tenha hora escolhida para chegar à janela, ou que não atormente ao pai ou à mãe para ir a este ou àquele baile, a esta ou àquela festa? E pensas tu que é isto feito indiferentemente, ou por acaso? Enganas‐te, minha cara, tudo é namoro, e muito namoro. Os pais, as mães e as simplórias como tu é que nada vêem e de nada desconfiam. Quantas conheço eu, que no meio de parentes e amigas, cercadas de olhos vigilantes, namoram tão sutilmente, que não se pressente! Para quem sabe namorar tudo é instrumento: uma criança que se tem ao cala e se beija, um papagaio com o qual se fala à janela, um mico que brinca sabre o ombro, um lenço que volteia na mão, uma fiar que se desfolha ‐ tudo, enfim! E até quantas vezes o namorada desprezada serve de instrumento para se namorar a outrem! Pobres tolas, que levam a culpa e vivem logrados, em proveito alheia! Se te quisesse eu explicar e patentear as ardis e espertezas de certas meninas que passam par sérias e que são refinadíssimas velhacas, não acabaria hoje. Vive na certeza, minha irmã, que as moças dividem‐se em duas classes: sonsas e sinceras... Mas que todas namoram. CHIQUINHA ‐ Não questionarei contigo. Demos que assim seja, quero mesmo que o seja. Que outro futuro esperam as filhas‐famílias, senão o casamento? É a nossa senatoria, como costumam dizer. Os homens não levam a mal que façamos da nossa parte todas as diligências para alcançarmos este fim; mas o meio que devemos empregar é tudo. Pode ele ser prudente e honesto, ou tresloucado como o teu. A personagem Maricota representa o estereótipo da moça casadeira, que tem vários pretendentes e por isso vai ser punida no final, para assim representar a moral romântica. Diferent de Maricota, temos Chiquinha, que acredita no mor verdadeiro, é contida e será beneficiada pelo poder do amor ao final da história. Duas novas personagens aparecem na história. A primeira é Faustino, um dos pretendentes de Maricota. Ele acredita ser o grande amor de Maricota, mas na verdade é apenas mais um entre tantos outros. Faustino estava sendo perseguido por Ambrósio, que era capitão da guarda e queria Maricota para si, por isso tentava afastar o jovem de sua pretendida. Quando Maricota, após fazer juras de amor a Faustino, retira‐se para a cozinha, Ambrósio bate a porta de Faustino temeroso vê como única saída, tomar o lugar do boneco do Judas, que estava estava a um canto da sala, vestindo suas roupas e ficando imóvel. Essa é a principal peripécia cômica da peça, uma vez que durante toda a ação, Faustino presenciará as conversas das personagens, como na cena em que Maricota declara seu amor a Ambrósio, como o fizera ao próprio Faustino, o que faz com que esse fique desisludido e com desejo de vingança. FAUSTINO ‐ Sim, sim, por tua causa! O capitão da minha companhia, o mais feroz capitão que tem aparecido na mundo, depois que se inventou a Guarda Nacional, persegue‐me, acabrunha‐me e assassina‐me! Como sabe que eu te amo e que tu me correspondes, não há pirraças e afrontas que me não faça. Todas os meses são dous e três avisos para montar guarda; outros tantos para rondas, manejos, paradas... E desgraçado se lá não vou, ou não pago! Já o meu ordenado não chega. Roubam‐me, roubam‐me com as armas na mão! Eu te detesto, capitão infernal, és um tirano, um Gengis‐Kan, um Tamerlan! Agora mesmo está um guarda à porta da repartição à minha espera para prender‐me. Mas eu não vou lá, não quero. Tenho dito. Um cidadão é livre... enquanto não o prendem. MARICOTA ‐ Sr. Faustino, não grite, tranqüilize‐se! FAUSTINO ‐ Tranqüilizar‐me! Quando vejo um homem que abusa da autoridade que lhe confiaram para afastar‐me de ti! Sim, sim, é para afastar‐me de ti que ele manda‐me sempre prender. Patife! Porém o que mais me mortifica e até faz‐me chorar, é ver teu pai, o mais honrado cabo‐de‐esquadra, prestar o seu apoio a essas tiranias constitucionais. (...) MARICOTA ‐ O Faustino serve‐me de divertimento, e se algumas vezes lhe dou atenção, é para melhor ocultar o amor que sinto por outro. (Olha com ternura para o Capitão. Aqui aparece na porta do fundo José Pimenta. Vendo o Capitão com a filha, pára a escuta.) CAPITÃO ‐ Eu te creio, porque teus olhos confirmam tuas palavras. (Gesticula com entusiasmo, brandindo a espada.) Terás sempre em mim um arrimo, e um defensor! Enquanto eu for capitão da Guarda Nacional e o Governo tiver confiança em mim, hei‐de sustentar‐te como uma princesa. (Pimenta desata a rir às gargalhadas. Os dous voltam‐se surpreendidos. Pimenta caminha para a frente, rindo‐se sempre. O Capitão fica enfiado e com a espada levantada. Maricota, turbada, não sabe como tomar a hilaridade do pai.) Faustino, por estar disfarçado de Judas, acaba por presenciar três situações. A primeira é quando, sem ser notado, presencia a conversa entre Pimenta e Ambrósio, o que faz com que ele saiba mais sobre a estrutura na guarda nacional. Na sequência, Faustino escuta a confissão de Chiquinha para si mesmo sobre o como amava Faustino. CHIQUINHA entra e senta‐se é costura ‐ Deixe‐me ver se posso acabar este vestido para vesti‐lo amanhã, que é Domingo de Páscoa. (Cose.) Eu é que sou a vadia, como meu pai disse. Tudo anda assim. Ai, ai! (Suspirando.) Há gente bem feliz; alcançam tudo quanto desejam e dizem tudo quanto pensam: só eu nada alcanço e nada digo. Em quem estará ele pensando! Na mana, sem dúvida. Ah, Faustino, Faustino, se tu soubesses!... FAUSTINO, à parte ‐ Fala em mim! (Aproxima‐se de Chiquinha pé ante pé.) CHIQUINHA ‐ A mana, que não sente por ti o que eu sinto, tem coragem para te falar e enganar, enquanto eu, que tanto te amo, não ouso levantar os olhos para ti. Assim vai o mundo! Nunca terei valor para fazer‐lhe a confissão deste amor, que me faz tão desgraçada; nunca, que morreria de vergonha! Ele nem em mim pensa. Casar‐me com ele seria a maior das felicidades. (Faustino, que durante o tempo que Chiquinha fala vem aproximando‐se e ouvindo com prazer quanto ela diz, cai a seus pés.) FAUSTINO ‐ Anjo do céu! (Chiquinha dá um grito, assustada, levanta‐se rapidamente para fugir e Faustino a retém pelo vestido.) Espera! CHIQUINHA, gritando ‐ Ai, quem me acode? FAUSTINO ‐ Não te assustes, é o teu amante, o teu noivo... o ditoso Faustino! Depois que Faustino percebe o valor de Chiquinha, volta a condição de Judas no canto da parede e acabapor escutar sobre os crimes de Antônio e Pimenta, o que lhe dá uma arma para vingança contra Chiquinha. ANTÔNIO ‐ Chegou nova remessa do Porto. Os sócios continuam a trabalhar com ardor. Aqui estão dous contos (tira da algibeira dous maços de papéis), um em cada maço; é dos azuis. Desta vez vieram mais bem feitos. (Mostra uma nota de cinco mil‐réis que tira do bolso do colete.) Veja; está perfeitíssima. PIMENTA, examinando‐a ‐ Assim é. ANTÔNIO ‐ Mandei aos sócios fabricantes o relatório do exame que fizeram na Caixa da Amortização, sobre as da penúltima remessa, e eles emendaram a mão. Aposto que ninguém as diferençará das verdadeiras. A cena de maior comicidade da peça ocorre quando as crianças decidem realizar a malhação do Judas e Faustino tem que correr para não ser linchado, mesmo tendo assustado a todos. Quando capiturado, Faustino usa seu conhecimento sobre as ações das outras personagens para realizar sua vingança, obrigando Maricota a casar‐se com um velho, enquanto Chiquinha casaria‐se com ele. Meninos ‐ Apareceu a Aleluia! Vamos ao judas!... (Faustino, vendo os meninos junto de si, deita a correr pela sala. Espanto geral. Os meninos gritam e fogem de Faustino, o qual dá duas voltas ao redor da sala, levando adiante de si todos os que estão em cena, os quais atropelam‐se correndo e gritam aterrorizados. Chiquinha fica em pé junto à porta por onde entrou. Faustino, na segunda volta, sai para a rua, e os mais, desembaraçados dele, ficam como assombrados. Os meninos e moleques, chorando, escondem‐se debaixo da mesa e cadeiras; o Capitão, na primeira volta que dá fugindo de Faustino, sobe para cima da cômoda; Antônio Domingos agarra‐se a Pimenta, e rolam )untos pelo chão, quando Faustino sai: e Maricota cai desmaiada na cadeira onde cosia.) (...) Meninos ‐ Apareceu a Aleluia! Vamos ao judas!... (Faustino, vendo os meninos junto de si, deita a correr pela sala. Espanto geral. Os meninos gritam e fogem de Faustino, o qual dá duas voltas ao redor da sala, levando adiante de si todos os que estão em cena, os quais atropelam‐se correndo e gritam aterrorizados. Chiquinha fica em pé junto à porta por onde entrou. Faustino, na segunda volta, sai para a rua, e os mais, desembaraçados dele, ficam como assombrados. Os meninos e moleques, chorando, escondem‐se debaixo da mesa e cadeiras; o Capitão, na primeira volta que dá fugindo de Faustino, sobe para cima da cômoda; Antônio Domingos agarra‐se a Pimenta, e rolam )untos pelo chão, quando Faustino sai: e Maricota cai desmaiada na cadeira onde cosia.) PIMENTA, rolando pelo chão, agarrado com Antônio ‐ É o demônio!... ANTÔNIO ‐ Vade‐retro, Satanás! (Estreitam‐se nos braços um do outro e escondem a cara.) CHIQUINHA chega‐se para Maricota ‐ Mana, que tens? Não fala; está desmaiada! Mana? Meu Deus! Sr. Capitão, faça o favor de dar‐me um copo com água. CAPITÃO, de cima da cômoda ‐ Não posso lá ir! CHIQUINHA, à parte ‐ Poltrão! (Para Pimenta:) Meu pai, acuda‐me! (Chega‐se para ele e o chama, tocando‐lhe no ombro.) PIMENTA, gritando ‐ Ai, ai, ai! (Antônio, ouvindo Pimenta gritar, grita também.) CHIQUINHA ‐ E esta! Não está galante? O pior é estar a mana desmaiada! Sou eu, meu pai, sou Chiquinha; não se assuste. (Pimenta e Antônio levantam‐se cautelosos.) ANTÔNIO ‐ Não o vejo! CHIQUINHA, para o Capitão ‐ Desça; que vergonha! Não tenha medo. (O Capitão principia a descer.) Ande, meu pai, acudamos a mana. (Ouve‐se dentro o grito de Leva! leva! como costumam os moleques, quando arrastam os judas pelas ruas.) PIMENTA ‐ Aí vem ele!... (Ficam todos imóveis na posição em que os surpreendeu o grito, isto é, Pimenta e Antônio ainda não de todo levantados; o Capitão com uma perna no chão e a outra na borda de uma das gavetas da cômoda, que está meio aberta; Chiquinha esfregando as mãos de Maricota para reanimá‐la, e os meninos nos lugares que ocupavam. Conservam‐se todos silenciosos, até que se ouve o grito exterior ‐ Morra! ‐ em distância.) CHIQUINHA, enquanto os mais estão silenciosos ‐ Meu Deus, que gente tão medrosa! E ela neste estado! O que hei‐
de fazer? Meu pai? Sr. Capitão? Não se movem! Já tem as mãos frias... (Aparece repentinamente á porta Faustino, ainda com os mesmos trajos; salta no meio da sala e vai cair sentado na cadeira que está junto à mesa. Uma turba de garotos e moleques armados de paus entram após ele, gritando: Pega no judas, pega no judas! ‐ Pimenta e Antônio erguem‐se rapidamente e atiram‐se para a extremidade esquerda do teatro, )unto aos candeeiros da rampa; o Capitão sobe de novo para cima da cômoda: Maricota, vendo Faustino na cadeira, separado dela somente pela mesa, dá um grito e foge para a extremidade direita do teatro; e os meninos saem aos gritos de debaixo da mesa, e espalham‐se pela sala. Os garotos param no fundo )unto à porta e, vendo‐se em uma casa particular, cessam de gritar.) FAUSTINO, caindo sentado ‐ Ai, que corrida! Já não posso! Oh, parece‐me que por cá ainda dura o medo. O meu não foi menor vendo esta canalha. Safa, canalha! (Os garotos riem‐se e fazem assuada.) Ah, o caso é esse? (Levanta‐se.) Sr. Pimenta? (Pimenta, ouvindo Faustino chamá‐lo, encolhe‐se e treme.) Treme? Ponha‐me esta corja no olho da rua... Não ouve? (...) Maricota: Então, quer que continue, ou quer casar‐se? MARICOTA, à parte ‐ Estou conhecida! Posso morrer solteira... Um marido é sempre um marido... (Para Pimenta:) Meu pai, farei a sua vontade. FAUSTINO ‐ Bravíssimo! Ditoso par! Amorosos pombinhos! (Levanta‐se, toma Maricota pela mão e a conduz para junto de Antônio, e fala com os dous à parte:) Menina, aqui tem o noivo que eu lhe destino: é velho, baboso, rabugento e usurário ‐ nada lhe falta para sua felicidade. É este o fim de todas as namoradeiras: ou casam com um gebas como este, ou morrem solteiras! (Para o público:) Queira Deus que aproveite o exemplo! (Para Antônio:) Os falsários já não morrem enforcados; lá se foi esse bom tempo! Se eu o denunciasse, ia o senhor para a cadeia e de lá fugiria, como acontece a muitos da sua laia. Este castigo seria muito suave... Eis aqui o que lhe destino (Apresentando‐lhe Maricota:) É moça, bonita, ardilosa, e namoradeira: nada lhe falta para seu tormento. Esta pena não vem no Código; mas não admira, porque lá faltam outras muitas cousas. Abracem‐se, em sinal de guerra! (Impele um para o outro.) Agora nós, Sr. Capitão! Venha cá. Hoje mesmo quero uma dispensa de todo o serviço da Guarda Nacional! Arranje isso como puder; quando não, mando tocar a música... Não sei se me entende?... CAPITÃO ‐ Será servido. (À parte:) Que remédio; pode perder‐me! FAUSTINO ‐ E se de novo bulir comigo, cuidado! Quem me avisa... Sabe o resto! Ora, meus senhores e senhoras, já que castiguei, quero também recompensar. (Toma Chiquinha pela mão e coloca‐se com ela em frente de Pimenta, dando as mãos como em ato de se casarem.) Sua bênção, querido pai Pimenta, e seu consentimento! PIMENTA ‐ O que lhe hei‐de eu fazer, senão consentir! FAUSTINO ‐ Ótimo! (Abraça a Pimenta e dá‐lhe um beijo. Volta‐se para Chiquinha:) Se não houvesse aqui tanta gente a olhar para nós, fazia‐te o mesmo... (Dirigindo‐se ao público:) Mas não o perde, que fica guardado para melhor ocasião. UFPB O NOVIÇO ‐ Martins Pena TRECHOS DA PEÇA PARA ANÁLISE E LEITURA Personagens Ambrósio Florência ‐ sua mulher Emília ‐ sua filha Juca ‐ 9 anos, dito Carlos ‐ noviço da Ordem de S. Bento Rosa ‐ provinciana, primeira mulher de Ambrósio Padre – Mestre dos Noviços Jorge José ‐ criado 1 meirinho, que fala 2 ditos, que não falam Soldados de Permanentes, etc. ,etc. (A cena passa‐se no Rio de Janeiro) Ato Primeiro Sala ricamente adornada: mesa, consolos, mangas de vidro, jarras com flores, cortinas, etc., etc. No fundo, porta de saída, uma janela, etc., etc. Cena I AMBRÓSIO, só de calça preta e chambre — No mundo a fortuna é para quem sabe adquiri‐la. Pintam‐na cega... Que simplicidade! Cego é aquele que não tem inteligência para vê‐la e a alcançar. Todo homem pode ser rico, se atinar com o verdadeiro caminho da fortuna. Vontade forte, perseverança e pertinácia são poderosos auxiliares. Qual o homem que, resolvido a empregar todos os meios, não consegue enriquecer‐se? Em mim se vê o exemplo. Há oito anos, eu era pobre e miserável, e hoje sou rico, e mais ainda serei. O como não importa; no bom resultado está o mérito... Mas um dia pode tudo mudar. Oh, que temo eu? Se em algum tempo tiver que responder pelos meus atos, o ouro justificar‐me‐á e serei limpo de culpa. As leis criminais fizeram‐se para os pobres COMENTÁRIOS E ENREDO O noviço traz basicamente a história de Carlos, rapaz endiabrado, que é enviado a um convento por decisão de sua tia e tutora. Não tendo vocação para a vida religiosa, Carlos foge do convento e dedica‐se a desmascarar o ambicioso Ambrósio, segundo marido de sua tia. A seguir organiza‐se a seqüência de ações que desenvolvem a essência dessa narrativa. A peça inicia‐se com Ambrósio Nunes em uma sala ricamente decorada. Preparando‐se para ir à igreja com sua mulher Florência, o personagem afirma em tom cínico que mudara sua vida de homem pobre em oito anos. Fora miserável, mas valendo‐se de determinação, perspicácia e destituído de qualquer escrúpulo tornara‐se rico, condição que lhe conferia poder e lhe garantia plena impunidade. É interrompido por Florência que lhe apressa, dizendo que é necessário chegar cedo para sentarem‐se nos primeiros bancos e, assim, poderem assistir confortavelmente à missa de Ramos. Ambrósio, com delicadeza de fala e gestos, pergunta à esposa como anda o projeto de encaminhar a enteada Emília para o convento e satisfaz‐se com a notícia de que tudo corre como ele desejaria. Com muita habilidade, Ambrósio enfatiza a idéia de que a herança deixada pelo primeiro marido de Florência nunca o atraiu, revela que sua paixão sempre foi espontânea e pura e, de certo modo, lhe é até um tanto penoso administrar a fortuna do nobre falecido, no entanto, cabe ao marido zelar pela esposa amada. Desse modo, toma para si a incumbência de cuidar do dinheiro. Florência cede às propostas aparentemente sinceras do marido e concorda em encaminhar não somente a filha para o claustro, mas também incentivar seu filho Juca de nove anos para ser frade, acreditando que dessa maneira estaria proporcionando aos dois uma vida virtuosa e verdadeiramente feliz. Ambrósio, com a intenção deliberada de controlar toda a situação familiar, mostra‐se preocupado com a possibilidade de Carlos, sobrinho tutelado de Florência, vir a se revoltar contra o noviciado que lhe fora imposto há seis meses e causar aborrecimentos ao casal _ . Encerra‐se a conversa. Ambrósio retira‐se para acabar de vestir‐se. Florência está a agradecer a Deus o marido que tem, quando Emília entra na sala. A mãe aproveita o momento para expor à filha as vantagens que a vida de freira proporciona, Emília chora e, contrariada, declara não ter inclinação para o claustro. A mãe, insensível à dor da filha, abandona a sala e sobe ao sótão para aprontar‐se para a missa. Inesperadamente, Carlos, vestido de frade, entra afobado e conta à Emília que havia fugido do convento, após discussão que acabara com uma barrigada no Abade Mestre. Irado, manifesta o desejo de ser militar, de envolver‐se em lutas com espadas e não se submeter a jejuns prolongados e a coros e rezas infindáveis. A moça, comovida, ouve o relato dos martírios sofridos pelo noviço rebelde e lhe conta que também ela deverá entrar para um convento. Carlos revolta‐se, declara o seu amor pela prima, acusa severamente Ambrósio de estar conspirando contra todos. Promete que não descansará enquanto não vingar‐se do velhaco Ambrósio. Em meio a conversa, o garoto Juca, desajeitado em um hábito de frade, corre para o colo de Carlos, que percebe claramente o plano do marido da tia: filhos e enteados dedicados à vida religiosa seriam obrigados a fazer votos de pobreza, o que garantiria a posse de todos os bens por parte de Ambrósio. Emília e Juquinha saem da sala. Batem à porta. Rosa entra na sala e com muita reverência dirige‐se a Carlos, imaginando ser ele um frade. Conta‐lhe que está à procura de seu marido Ambrósio Nunes, que há seis anos a abandonara em Maranguape, de posse de sua fortuna, a pretexto de investimentos lucrativos em Montevidéu. Sem notícias, ela chegou a pensar que ele tivesse morrido, mas uma pessoa informara‐lhe de que estava o fujão na corte, e estava ela ali, no momento, após longa viagem e andanças pelo Rio de Janeiro. Carlos, aproveita‐se do engano da mulher e, fingindo ser bom capuchinho, investiga detalhes da história e recebe, como prova da veracidade dos fatos relatados, uma cópia da certidão de casamento de Rosa e Ambrósio. Promete ajudá‐la e pede‐lhe que aguarde alguns momentos em um quarto da casa. Florência, o marido e a filha, prontos para saírem, deparam‐se com Carlos. Ambrósio cobra de Carlos obediência. O moço ironicamente desafia o marido da tia por meio de frases ambíguas, dando a entender que conhecia a história pregressa de Ambrósio. Este se enfurece e passa a fazer‐lhe exigências. Carlos o toma pelo braço, abre a porta do quarto e mostra‐lhe Rosa. O tio desorganiza‐se, corre e arrasta violentamente para fora da casa mulher e enteada . Carlos diverte‐se com a aflição do cínico tio e expõe à Rosa a atual condição de Ambrósio. A mulher traída não resiste. Desmaia. Cria‐se um alvoroço. Juquinha é chamado a ajudar; apanha um galheteiro, Carlos a faz cheirar vinagre, azeite, tentado‐lhe restituir os sentidos. Em meio a intensa agitação, ouvem‐se meirinhos aproximarem‐se. Dirigem‐se eles a casa para efetuarem a prisão do travesso noviço. Carlos faz a mulher acreditar que Ambrósio é poderoso e que os oficiais batiam à porta para prendê‐la. Propõe a ela que trocassem vestimentas. Rosa vestiria seu hábito de religioso, e ele, suas vestes de mulher. Desse modo, estaria ela a salvo da fúria dos meirinhos e ele seria preso em seu lugar. Rosa ingenuamente aceita a proposta. Juca a encaminha para um quarto. Carlos, travestido de mulher, recebe dissimuladamente o Mestre de Noviços e os meirinhos. Faz‐se passar por tia do noviço endiabrado, aponta o esconderijo e orienta a maneira segura de surpreender e prender o sobrinho. Os oficiais entram no quarto, capturam o falso noviço e o levam para o convento. Carlos diverte‐se imaginando a confusão que aconteceria quando o Abade percebesse que uma mulher fora presa em seu lugar. Pede a Juca que ficasse à janela e o avisasse da chegada do padrasto. Ambrósio, perturbado, invade a sala. Havia deixado Florência e Emília na igreja. A sua agitação é tamanha que se dirige a Carlos, pensando ser ele Rosa. O sobrinho aproveita‐se do engano e diverte‐se, respondendo às perguntas de Ambrósio como sendo sua primeira esposa. Chega inclusive a atirar‐se aos pés de Ambrósio em pranto exagerado. Nesse instante, o tratante Ambrósio percebe o equívoco. Irrita‐se com o descaramento do sobrinho, que imediatamente lhe contém a fúria, mostrando a certidão que estava em seu poder. O tom da cena inverte‐se: Ambrósio humilha‐se, implora a Carlos que nada revele à Florência. Dono da situação, o rapaz faz exigências: abandonará o noviciado, receberá a herança deixada pelo pai; Emília não será freira, e ele terá o consentimento para casar‐se com a prima. Ambrósio, de joelhos, aceita as imposições e suplica piedade de Carlos. Subitamente, Florência e Emília entram na sala e há novo equívoco: Florência acredita ter flagrado o marido em traição. Sente‐se desgraçada e num assombro se dá conta de que é o sobrinho que subjuga Ambrósio. Pede explicações para aquela patifaria e, cinicamente, Carlos afirma que estavam encenando uma comédia para o sábado de Aleluia. A tia, atônita, ouve ainda o rapaz trapalhão declarar o acordo que fizera com Ambrósio. Este vai interrompendo a fala de Carlos com argumentos incontestáveis. Diz à mulher que fora um erro encaminhá‐lo ao convento, pois não se pode impedir que os jovens possam realizar o amor tão genuíno que sentem. Carlos acrescenta que como prova de agradecimento cederá metade de seus bens em favor do tio bondoso e lhe entrega a certidão de casamento como se entregasse o termo de cessão de parte da fortuna. Ambrósio rasga o papel, dissimulando total desinteresse pela doação. Florência sente‐se abençoada por ter casado com um homem tão honrado e chega a vangloriar‐se da própria capacidade de distinguir o amante sincero entre tantos pretendentes que tivera logo após a viuvez. Elogia as qualidades do marido, que insiste não ser merecedor de tanta reverência. Felizes, Emília e Carlos acertam o casamento para dali a quinze dias. Nem bem confirmam o enlace matrimonial, o Mestre dos Noviços surge para efetuar a prisão do noviço fujão. O religioso declara enraivecido o constrangimento que passara diante do Abade ao cair novamente em uma cilada de Carlos, quando levou ao convento uma mulher. Diante das declarações do Mestre, Ambrósio perturba‐se e tenta saber do paradeiro da tal mulher. Florência desconfia das intenções do marido. A confusão está armada: o Mestre arrasta o noviço para fora da casa; a tia não consegue impedir a prisão do sobrinho, mesmo dizendo que Carlos abandonaria a vida religiosa e que ela mesma diria isso ao Abade. O clima na casa é de confusão. Ambrósio mostra‐se atordoado, Florência pede explicações para ter sido levada apressadamente para a igreja e ter sido lá deixada. Ambrósio rapidamente dissimula a própria aflição. Tenta abraçar a esposa que se revela arredia, exigindo que se esclareça a identidade da mulher que fora presa em lugar do sobrinho. Acuado, Ambrósio inventa ser a tal mulher uma antiga namorada, que não se conformara com o fato de ter ele se casado. Confessa o erro cometido ao envolver‐se na juventude com aquela moça. Diz‐lhe, no entanto, que a causa da separação fora o amor incontido que sentiu desde o primeiro momento que viu Florência. O discurso amoroso de Ambrósio é interrompido por Rosa, vestida de frade. Esta, entregando a certidão a Ambrósio, interpõe‐
se ao casal, gritando que aquele homem lhe pertencia. Ambrósio corre pela casa, tentando escapar. Nesse momento, ouve‐se a ordem de prisão ao bígamo. Enquanto isso se passa, Florência, estarrecida, lê a certidão de casamento de Rosa Lemos e Ambrósio Nunes. Muda‐se o cenário. Florência, recolhida no quarto de Carlos, para evitar contato com o ambiente em que vivera momentos felizes ao lado do marido farsante, chora convulsivamente e é confortada pela filha. Está assim prostrada há oito dias. Nada a anima, nem mesmo os remédios receitados por um médico da família. Emília afirma ser necessário que a mãe reaja e, desse modo, vingue‐se de tanta traição. Florência diz que seu procurador está encaminhando um mandado de prisão e que quer enviar uma carta ao Abade, explicando‐lhe os fatos e pedindo‐lhe o favor de mandar um representante do convento para que ela se justificasse pessoalmente pelos transtornos causados. Decide, então, que o criado José fosse o portador da carta. Nova surpresa: Carlos mais uma vez havia fugido do claustro. Apressado, invade os fundos da casa, com o hábito roto e sujo, as mãos esfoladas, joelhos machucados. Entra em seu antigo quarto. Ouve a voz do padre‐
mestre, esconde‐se embaixo da cama em que está deitada a tia. Emília acompanha o padre até os aposentos onde está Florência, que acorda meio atordoada. Estava ele incumbido novamente de efetuar a prisão do noviço indomável. Florência e Emília surpreendem‐se com a notícia de que Carlos tivesse escapado novamente das grades do convento. Enquanto Florência expõe a sua decisão de livrar Carlos do noviciado, Emília percebe a presença do amado embaixo da cama. O padre‐mestre retira‐se da casa, aliviado por não ter mais que se haver com as diabruras de Carlos. Florência lamenta‐se da tragédia que lhe acometera. Emília se mostra comovida e comporta‐se como se não soubesse o paradeiro do primo, mesmo este lhe puxando as saias e fazendo‐lhes cócegas nas pernas. Chega a casa Ambrósio, trajando‐se como um frade, seguindo o criado José até o quarto de Florência. Há novo equívoco. Florência imagina ser o frade o representante que requisitara ao Abade e passa a lhe contar a trama de que fora vítima. Ambrósio, não suportando ouvir tantas acusações, denuncia‐se, retirando o capuz, revelando, assim, a sua real identidade. Revela à mulher que as portas da casa estão trancadas e que ninguém poderá lhe socorrer os gritos. Impõe que lhe entregue dinheiro e jóias, enfim, tudo que ela possuísse; caso contrário, só restaria a alternativa de matá‐la. Nesse momento, se esclarece mais um mal‐entendido: José, fiel a Ambrósio, não tinha enviado a carta ao Abade, na verdade, tinha facilitado os planos de seu patrão. Florência corre aos gritos pela casa, esconde‐se em um canto coberta por uma colcha. Ambrósio, na correria, encontra Carlos, puxa‐lhe pelo hábito, pensando tratar‐se das saias de Florência. Carlos revida com uma bofetada. A tia permanece imóvel , coberta por uma colcha. Em seguida, entram quatro homens armados e o vizinho Jorge que vinha em socorro aos gritos que da rua se ouviam. Florência diz que um ladrão travestido de frade tinha invadido a casa, mas já havia fugido. Os homens vasculham a casa e acabam dando com Carlos, que aos berros, sai debaixo da cama, e, tentando proteger‐se das agressões, mete‐se atrás de um armário e o atira ao chão. O vizinho, ferido na perna, grita à Florência que o ladrão se escondia no quarto e havia escapulido por uma porta. Emília desvencilha‐se do vizinho, agradece a ajuda e mando‐o embora. Insiste com a mãe que o frade era Carlos. A mãe retruca, afirmando que era o padrasto. A tensão aumenta com a chegada de Rosa, que é recebida com certa amabilidade por Florência. As duas conversam a sós. Lamentam‐se da inocência com que se entregaram ao vilão Ambrósio. Rosa apresenta à Florência a ordem de prisão contra o bígamo e queixa‐se ao saber que Ambrósio há instantes escapara daquela casa. De modo inesperado, arrebenta‐se uma tábua do armário e Ambrósio, quase asfixiado, põe a cabeça de fora. Ambas mulheres atacam‐no aos socos e pauladas. O farsante, aos gritos, suplica compaixão às duas esposas. Entra no quarto Carlos, preso por Jorge e os soldados. Florência desfaz o engano, dizendo que era seu sobrinho o que tomavam por ladrão. Ambrósio esconde‐se novamente no armário. Rosa, acompanhada de oficiais de justiça, entrega o mandado lavrado de prisão. O bígamo é retirado do armário e recebe a sentença de prisão. O Mestre de Noviços retorna a casa com a permissão de livrar Carlos do convento. Antes de retirar‐se, o religioso abençoa a futura união de Emília e Carlos. Ambrósio sai lamentando‐se da punição recebida. RESOLVENDO JUNTOS 1. UNICAMP a) Sabendo que O NOVIÇO, de Martins Pena, é caracterizado por uma seqüência de qüiproquós*, relate um episódio explicitando o equívoco que resulta numa situação cômica. b) Em muitos momentos, no decorrer de O NOVIÇO, o personagem dirige‐se diretamente ao público da peça teatral. No texto esta indicação vem expressa pela locução "à parte". Qual é a função de tal recurso? *qüiproquó: situação cômica resultante de equívocos 2. UFG Martins Pena foi o fundador da comédia de costumes do teatro brasileiro, da qual faz parte a peça "O Noviço". Nessa obra, pode‐se encontrar (___) o predomínio da caricatura na concepção das personagens, baseada na exploração de tipos sociais facilmente identificados, o que leva ao efeito cômico desejado. (___) o Brasil Colonial como pano de fundo histórico‐social, época em que a influência jesuítica foi decisiva na política, na economia e principalmente na educação dos jovens, direcionando‐os para a vida religiosa. (___) a utilização de recursos dramáticos considerados primários, como o esconderijo, o disfarce e o erro de identificação, demonstrando a ingenuidade e a simplicidade que permeiam a edificação da trama. (___) uma vinculação nítida com o contexto romântico, uma vez que a resolução dos conflitos se encaminha para o final feliz e a conseqüente realização amorosa dos dois jovens e, ainda, a punição do vilão, recursos ostensivamente colhidos nos romances de folhetim da época. 3. UFLAVRAS Relacione características e personagens de "O Noviço", de Martins Pena. 1. Juca 2. Rosa 3. José 4. Florência 5. Ambrósio ( ) o vilão ambicioso e sem escrúpulos. ( ) a viúva alegre, rica e assanhada. ( ) a esposa abandonada. ( ) o criado venal. ( ) a criança inocente e manipulada. A relação CORRETA está na alternativa a) 5, 4, 2, 3, 1. b) 5, 2, 1, 3, 4. c) 5, 3, 2, 1, 4. d) 5, 4, 3, 2, 1. e) 1, 2, 3, 4, 5. 4. UFLAVRAS Especificamente sobre "O Noviço", de Martins Pena, assinale a alternativa que contém a(s) afirmação(ões) CORRETA(S): I. "O escritor fotografa o seu meio com uma espontaneidade de pasmar, e essa espontaneidade, essa facilidade, quase inconsciente e orgânica, é o maior elogio de seu talento. Se se perdessem todas as leis, escritos, memórias da história brasileira dos primeiros cinqüenta anos deste século XIX e nos ficassem somente as comédias de Pena, era possível reconstruir com elas a fisionomia moral de toda essa época." (Silvio Romero) II. "Nas comédias de Martins Pena não existem a poesia da natureza, o vago, o sonho, as fugas para o ideal, que os próprios cômicos gregos não deixavam de mesclar às suas bufonerias. Não há no autor fluminense a poesia de Aristófanes nem as máximas morais de Menandro; existe, em compensação, o intenso realismo dos observadores modernos." (Silvio Romero) III. "O título básico de Martins Pena era fazer rir pela insistência na marcação de tipos roceiros e provincianos em contato com a Corte. O tom passa do cômico ao bufo, e a representação pode virar farsa a qualquer momento: o labrego de Minas ou o fazendeirão paulista seriam fonte de riso fácil para o público fluminense, e o nosso autor não perde vaza para explorar‐lhes a linguagem, as vestes, as abusões." (Alfredo Bosi) a) Apenas a afirmativa I é correta. b) Apenas a afirmação II é correta. c) Apenas a afirmação III é correta. d) Apenas as afirmações I e II são corretas. e) Apenas as afirmações II e III são corretas. UFPB CASA DE PENSÃO ‐ ALUÍSIO DE AZEVEDO SOBRE O AUTOR Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalvez de Azevedo), irmão do teatrólogo Arthur Azevedo, nasceu em S. Luís do Maranhão, em 14 de abril de 1857 e morreu, com 56 incompletos, em 21 de janeiro de 1913, na capital argentina. Era diplomata, por concurso, desde 1895, tendo exercido funções em várias partes do mundo. Enredo de Casa de Pensão Amâncio (Da Silva Bastos e Vasconcelos), rapaz rico e provinciano, abandona o Maranhão e segue de navio para o Rio de Janeiro (a Corte) a fim de se encaminhar nos estudos e na vida. É um provinciano que sonha com os deslumbramentos da Corte. Chega cheio de ilusões e vazio de propósitos de estudar... A mãe fica chorosa e o pai, indiferente, como sempre fora no trato meio distante com o filho. O rapaz tinha que se tornar um homem. Amâncio começa morando em casa do sr. Campos, amigo do Pai, e, foçado, se matricula na Escola de Medicina. Ia começar agora uma vida livre para compensar o tempo em que viveu escravizado às imposições do pai e do professor, o implacável Pires. Por convite de João Coqueiro, co‐proprietário de uma casa de pensão, junto com a sua velhusca mulher Mme. Brizard, muda‐se para lá. É tratado com as maiores preferências: os donos da pensão queriam aproveitar o máximo de seu dinheiro e ainda arranjar o seu casamento com Amélia, irmã de Coqueiro. Um sujo jogo de baixo interesses, sobretudo de dinheiro. Naquele ambiente, tudo concorreria para fazer explodir a super‐sensualidade do maranhense. "Ele, coitado, havia fatalmente de ser mau, covarde e traiçoeiro: Na ramificação de seu caráter e sensualidade era o galho único desenvolvido e enfolhado, porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores." (pág. 166) A casa de pensão era um amontoado de gente, em promiscuidade generalizada, apesar da hipócrita moralidade pregada pelo seu dono: havia miséria física e moral, clara e oculta. Com a chegada de Amâncio, a pensão passou a arapuca para prender nos seus laços o jovem, inesperto e rico estudante: pegar o seu dinheiro e casá‐lo com a irmã do Coqueiro. Para alcançar o fim, todos os meios eram absolutamente lícitos. Amélia, principalmente quando da doença do rapaz, se desdobrou nos mais íntimos cuidados. Até que se tornou, disfarçadamente, sua amante. Sempre mantendo as aparências do maior respeito exigido dentro da pensão pelo João Coqueiro... O pai de Amâncio morre no Maranhão. A mãe chama o filho. Ele pretendo voltar, logo que terminarem os seus exames de medicina. Era preciso que o filho voltasse para vê‐la e ver os negócios que o pai deixara. Mas o rapaz está preso à casa de pensão e a Amélia: este o ameaça e só permite sua ida ao Maranhão, depois do casamento. Amâncio prepara sua viagem às escondidas. Mas, no dia do embarque, um oficial e justiça acompanhado de policiais o prende para apresentação à delegacia e prestação de depoimentos. Amâncio é acusado de sedutor da moça. João Coqueiro prepara tudo: o caso foi entregue ao famigerado e chicanista Dr. Teles de Moura. Aparecem duas testemunhas contra o rapaz. Começa o enredado processo: uma confusão de mentiras, de fingimentos, de maucaratismo contra o jovem rico e desfrutável para os interesses pecuniários de Mme. Brizard e marido. Há uma ressonância geral na imprensa e, na maioria, os estudantes se colocam ao lado de Amâncio. O senhor Campos prepara‐se para ajudar o seu protegido, mas Coqueiro lhe faz chegar às mãos uma carta comprometedora que Amâncio escrevera à sua senhora, D. Hortênsia. E se coloca contra quem não soube respeitar nem a sua casa... Três meses depois de iniciado o processo, Amâncio é absolvido. O rapaz é levado em triunfo para um almoço, no Hotel Paris. "Amâncio passava de braço a braço, afagado, beijado, querido, como uma mulher famosa." (317). Todo mundo olhava com curiosidade e admiração o estudante absolvido. E lhe atiravam flores, Ouviam‐se vivas ao estudante e à Liberdade. Os músicos alemães tocaram a Marselhesa. Parecia um carnaval carioca. Em outro plano, Coqueiro, sozinho, vendo e ouvindo tudo. A alma envenenada de raiva. Em casa o destampatório da mulher que o acusava de todo o fracasso. As testemunhas reclamavam o pagamento do seu depoimento. Um inferno dentro e fora dele. Chegaram cartas anônimas com as maiores ofensas. Um homem acuado... Pegou, na gaveta, o revólver do pai. E pensou em se matar. Carregou a arma. Acertou o cano no ouvido. Não teve coragem. Debaixo da sua janela, gritavam injúrias pela sua covardia e mau caráter... No dia seguinte, de manhã, saiu sinistro. Foi ao Hotel Paris. Bateu no quarto II, onde se encontrava o estudante com a rapariga Jeanete. Esta abriu a porta. Amâncio dormia, depois da festa e da bebedeira, de barriga para cima. Coqueiro atirou a queima‐
roupa. Amâncio passa a mão no peito, abre os olhos, não vê mais ninguém. Ainda diz uma palavra: "mamãe" ... e morre. Coqueiro foi agarrado por um policial, ao fugir. A cidade se enche de comentários. Muitos visitam o necrotério para ver o cadáver de Amâncio. Vendem‐se retratos do morto. Um funeral grandioso com a presença de políticos, notícias e necrológicos nos jornais, a cidade toda abalada. A tragédia tomou conta de todos. A opinião pública começa a flutuar, a mudar de posição: afinal, João Coqueiro tinha lavado a honra da irmã... Quando D. Ângela, envelhecida e enlutada, chega ao Rio de Janeiro, se viu no meio da confusão, procurando o filho. Numa vitrine, ela descobriu o retrato do filho "na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue. Uma legenda: "Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro, no Hotel Paris..." O Estilo da Época A obra de Aluísio de Azevedo que ficou na literatura brasileira é o seu romance naturalista. "Dominava a cena artística brasileira o sistema de idéias estéticas implantado pela poderosa geração de 1870, e que constituíram o complexo estilístico do Realismo‐Naturalismo‐Parnasianismo." (Afrânio Coutinho – Introdução à Literatura Brasileira – Rio de Janeiro – 1964 – 2ª ed.‐pág. 207). O realismo tende para uma visão biológica do homem; o naturalismo, para uma visão patológica: um homem dominado pelo animalesco, marcado por taras e degenerecências, produto fatal da hereditariedade, uma apenas máquina sujeita às leis físico‐químicas. Os greco‐latinos acreditavam na fatalidade (Moira) a quem estavam sujeitos os mesmos deuses. A ciência pseudo‐ciência do século XIX ensinou ao naturalistas a crença na hereditariedade. O personagem de tragédia que era escravo da fatalidade se torna escravo da hereditariedade para os naturalistas. Uma das confusões mais comuns entre eles era a da ciência com a literatura. Se o realismo nos deu um romance‐documental, o naturalismo ‐ verdadeiro laboratório – nos deu um romance‐experimental, na mesma linha do Roman expérimental de Zola (1880). "Entendemos que um romancista deve ser ao mesmo tempo um observador e um experimentador. O observador expõe os fatos tais quais os observou, estabelece o terreno sólido em que se vão mover os personagens e acontecimentos; em seguida surge o experimentador e faz experiências, isto é, faz seus personagens se movimentarem em determinado enredo, de modo a patentear que a sucessão dos fatos é a exigida pelo determinismo das coisas estudadas." (Zola – apud Nelson Werneck Sodré – O Naturalismo no Brasil – Edit. Civilização Brasileira – Rio de Janeiro – 1965 – pág. 33). Nessa fidelidade a uma pseudo‐realidade está o erro fundamental de um naturalista como Aluísio de Azevedo. A pressa com que realizou a sua obra romanesca – apesar do seu inegável talento – o fez fiel demais às formas e fórmulas do naturalismo a tal ponto que o romance mostre nitidamente os andaimes e as outras marcas de sua fabricação. Os personagens se movem dentro do romance como verdadeiros robôs, teleguiados por forças mecânicas, dentro do seu meio, obedientes às forças atávicas, sem nenhuma liberdade de ser e de agir. O naturalista se esqueceu de "que os sinais exteriores são apenas uma parte da realidade, não podendo a literatura, pois, pelo levantamento apenas dos dados colhidos pela observação, dos dados exteriores, reproduzir a realidade; em segundo lugar, não compreendia que a realidade humana, que é o domínio de que a literatura se ocupa, não está nos indivíduos, mas na sociedade; finalmente, que a realidade não está no patológico, no anormal, no excepcional, mas no normal, no comum, no típico." (Nelson Werneck Sodré – ib. pág. 37‐38). Dentro do naturalismo, cabem afirmações tão dogmáticas quanto incompletas e, hoje, erradas, para uma concepção moderna do homem, como estas: "O romance deve ser um estudo de um curioso caso fisiológico"; "dados um homem forte e uma mulher insatisfeita, procurar neles as besta..."; "fazer em dois corpos vivos o que o cirurgião faz em cadáveres..." (Zola – Apud Nelson Werneck Sodré – ib. pág. 19). Ou: "o vício e a virtude são os produtos químicos como o açúcar e o vitríolo" (Taine); "precisamos acanalhar a arte" (Courbet) (apud id. Ib. pág. 19). O naturalismo está plenamente representado em Casa de Pensão: Desde a abertura do romance, Amâncio aparece marcado fatalisticamente pela escola e pela família: uma e outra o encheram de revolta. Por causa de um castigo justo ou injusto, "todo o sentimento de justiça e da honra que Amâncio possuía, transformou‐se em ódio sistemático pelos seus semelhantes..." (Casa de Pensão – pág. 25). O leite que o menino mamou na ama negra também está contagiado e irá marcá‐lo. O médico dizia: "Esta mulher tem reuma no sangue e o menino pode vir a sofrer para o futuro." (ib. pág. 28). Amâncio é uma cobaia, um campo de experimentação nas mãos do romancista. Nele o fisiológico é muito mais forte do que o psicológico. É o determinismo que vai acompanhar toda a carreira do personagem. O sentido documental e experimental do romance naturalista, renunciando ao sentimentalismo e à evasão, procura construir tudo sobre a realidade. A estória do romance se baseia num caso real, o caso do estudante Capistrano, até nos pormenores. Leiamos um resumo dos acontecimentos. "O emocionante caso de polícia, logo conhecido e popularizado sob a epígrafe de "Questão Capistrano", envolve dois jovens e estudantes da Escola Politécnica, antes da tragédia, grande e inseparáveis amigos: João Capistrano da Cunha e Antônio Alexandre Pereira. O tão debatido "Affaire Capistrano", que o povo e os jornais da época consagram, divide o público e nascem então acesas polêmicas. O carioca da época não fala noutra coisa, não discute outro assunto , não se preocupa senão com os dois processos criminais apesar de rotineiros, em que se misturam a honra de uma moça e o homicídio do seu sedutor. O caso principia trivialmente assim: dona Júlia Clara Pereira é modesta professora de piano, que, naquele ano de 1875, mora com os dois filhos Antônio Alexandre Pereira, estudante de engenharia, e Júlia Pereira, de 20 anos, em pequena casa da Rua Silva Manuel, nº 10. A pobre viúva baiana luta com inauditas dificuldades para prover a pequena família. As aulas de piano é que lhes mantêm as despesas da casa e dos estudos. A habitação apresenta‐
se em péssimo estado e resolvem alugar outra, no ano seguinte, bem maior e mais cômoda, na Rua do Alcântara, nº 71, e que, além do pavimento térreo, tem o sótão em forma de chalé. Como a nova moradia possui alguns quartos a mais, deliberam alugá‐los, montando assim uma casa de pensão, muito comum naqueles tempos. Dessa maneira podem auferir outros lucros para os gastos sempre crescentes. Os dois primeiros pensionistas são colegas do filho: Mariano de Almeida Torres e João Capistrano da Cunha, rapazes procedentes do Paraná, tidos e haviados como de bom comportamento e acolhidos no seio da família Pereira sob o maior carinho e confiança. Em pouco, no convívio diário, nasce o namoro entre o estudante Capistrano e a jovem Júlia. O idílio pega fogo... Voraz concupiscência encarrega‐se do resto... Uma noite – naquela de 13 para 14 de janeiro de 1876 – acontece o imprevisto: o rapaz não se contém e demanda o quarto da moça, desonrando‐a às brutas, violentado‐a... Na manhã seguinte, a jovem, entre lágrimas, conta à mãe o que lhe acontecera. A viúva não tem dúvidas: vai às falas com o moço. Este, como sói acontecer em casos desse jaez, dá um pretexto qualquer, procura adiar o compromisso do enlace para data bem remota, quando, então, reparará o dano causado. Enquanto isso, dias e meses decorrem sem nenhuma atitude do namorado, frio e indiferente ao cumprimento da palavra empenhada. Quando menos se espera, sai de casa e não volta mais. Some de uma vez. Todos ignoram‐lhe o paradeiro. Deixa, apenas, na pensão a roupa, os livros, a mala... A mãe e o tutor da vítima apressam‐se em procurar a delegacia de polícia mais próxima para a respectiva queixa. Comparecem acompanhados do advogado dr. Jansen de Castro Júnior, e exigem 50 contos de indenização pelos danos causados! O inquérito tem o seu seguimento natural. Concluído, é enviado a Juízo. Os jornais se encarregam de divulgá‐lo num noticiário pormenorizado e profuso, enchendo colunas e colunas, dias e dias seguidos, a explorar morbidamente a curiosidade pública. A população apaixona‐se pelo caso, tornado assim de repente, para conseguir fácil casamento... Outros, mais exaltados, são de opinião contrária, julgam‐no digno de pena severíssima. O indiciado João Capistrano da Cunha, acolitado por três bons advogados, drs. Busch Varela e Duque Estrada Teixeira e conselheiro Saldanha Marinho, comparece à barra do Tribunal, no dia 17 de novembro. Figura como promotor público interino o dr. Ferreira de Oliveira, que produz veemente acusação. A colossal massa popular, que enche o salão, vibra. Contradita‐se o defensor do réu, dr. Busch Varela. À réplica do promotor, respondem os outros dois patronos: dr. Duque Estrada Teixeira e conselheiro Saldanha Marinho, que conseguem a absolvição do seu constituinte, após calorosos debates, ovacionando os diversos advogados, e, à saída, prorrompe em palmas ao absolvido, carregado em triunfo pelos colegas. Oferecem‐lhe ainda um banquete em regozijo, no Hotel Paris O desfecho tem viva repercussão na sociedade fluminense. A viúva e o irmão da vítima não se conformam com tão injustiça e iníqua sentença. Desesperado, o jovem Antônio Alexandre Pereira passa três dias pensando no que deve fazer. Precisa tomar atitude. A idéia fixa aflige‐o, mortifica‐o: necessita lavar a honra da família tão rudemente ofendida. Resolve fazer justiça com as próprias mãos. Impõe‐se uma lição de mestre ao impune autor da desgraça da irmã, que chora, dia e noite, envergonhada e entre a profunda prostração. O acadêmico adquire uma arma de 25 cápsulas por 22$000 – uma tragédia atrai outra tragédia – e sai à procura do amigo da véspera. Encontra‐o em olena na Rua da Quitanda, fronteiro ao nº 128, cerca das 10 da manhã, quando se dirige à casa do seu correspondente, um negociante da Rua de São Pedro. Pelas costas alveja‐o com cinco tiros e fere‐o gravemente com apenas um no pulmão esquerdo. O rapaz corre para o interior do armazém, fugindo a novo disparo e logo cai sem forças ao chão. Está morto! O agressor tenta, em vão, escapar, quando é preso em flagrante por Augusto César de Mascarenhas, que passa na ocasião, e entrega‐o à Justiça. O pulmão da vítima achava‐se atrofiado, podendo morrer em breve tempo, constataram os médicos na autópsia. A rapaziada da Politécnica exalta‐se e promove uma série de homenagens ao colega morto: veste‐se de luto, chora, vai incorporada ao enterro, que se transforma em apoteose pública, carregado a mão, por estudantes e políticos que comparecem concitados pela astúcia partidária de Saldanha Marinho, um dos advogados do morto. O próprio Visconde do Rio Branco, diretor da Escola, suspende as aulas por dois dias. O processo de homicídio corre os trâmites legais. O acadêmico Antônio Alexandre Pereira senta‐se no banco dos réus a 20 de janeiro de 1877. É defendido pelo mesmo advogado que figurara no caso da irmã, o dr. Jansen de Castro Júnior. Os debates atraem mais gente que no episódio anterior do defloramento. Agora a coisa é outra: as antipatias populares, até ontem contra a família Pereira, transforma‐se então em simpatias pelo assassino... O mesmo júri, que absolve o primeiro, absolve o segundo! Inocenta‐o por unanimidade de votos! Também uma salva de palmas acolhe o veredictum no Tribunal. É o acusado carregado em triunfo pelos mesmos colegas, que ovacionaram o morto da véspera... Em rápidos traços, eis as duas tragédias que abalam o Rio de Janeiro daqueles tempos: a famosa "Questão Capistrano", que vai, sete anos depois, inspirar o romancista Aluísio Azevedo no enredo do livro a que dará a epígrafe de "Casa de Pensão". (Raimundo de Menezes – Aluísio de Azevedo – Uma vida de romance – Liv. Martins Editora – S. Paulo – 1958 – pág. 147 a 150). 3) As personagens, na sua totalidade, são retratadas sob o ângulo patológico: são casos anormais. Amâncio aparece como um super‐excitado sexualmente, condicionando proximamente pelo ambiente da casa de pensão e remotamente pelo sangue e pela educação; Mme. Brizard e Coqueiro se apresentam como gananciosos a ponto de fazerem negócio à base da cunhada e irmã; Nini sofre de crises agudas de loucura histérica, estrebuchando e caindo diante de Amâncio; Lúcia e o marido se mostram também tipos esquisitos, ela pelo sexo e ele por estranho alheamento. Amélia também se mete, de cambulhada, nessa enxurrada de sujeiras tentando um bom negócio de sexo e dinheiro... A própria D. Hortênsia, mulher do Campos, manifesta sinais de insatisfação sexual: apesar das negativas iniciais diante das propostas... Essas personagens, quase todas, poderiam mudar‐se da Casa de Pensão para outro romance do autor, mais exagerado, ao sentido naturalista: O Homem. E se dariam muito bem no novo ambiente ainda mais patológico. A casa de pensão não se parece com um pequeno e confuso hospital? Os seus moradores são, em geral, verdadeiros doentes; 4) Quebra‐se o esquema romântico da vitória do bem sobre o mal, do triunfo do(s) herói(s). Tudo se mistura na vida, trigo e joio, ninguém consegue separá‐los, perde‐se a consciência do bem e do mal. Afinal, quem é o bom e quem é o mau? Se, até certo momento, a opinião pública esteve ao lado de Amâncio, quem nos garante que, para o final, não estaria já mudando para o apoio a João Coqueiro? Se o assassino for a julgamento, defendido pelo inteligente e chicanista Dr. Teles, certamente será também absolvido... Além disso, não existem ideais a que aspiram os personagens: eles ficam reduzidos ao terra a terra, aos aspectos, fisiológicos e animalescos, aos grandes egoísmos que fazem os homens sórdidos e vis. Não há, em ninguém, traço algum de grandeza, nem nos personagens principais, nem nos secundários. Essa visão negativista e materialista exclui qualquer consciência moral no julgamento dos atos e personagens. E, dentro do quadro de pensamentos e ações do casal Mme. Brizard e João Coqueiro, o que se faz é praticar o princípio de que os fins justificam os meios. Assim, o homem ficar reduzido a um amontoado de contradições, de secreções, de completo materialismo e mecanicismo. Tudo é esquematizado de acordo com uma obediência cega à lei de causalidade: ficam eliminadas as ações e reações pessoais para dar lugar às reações de massa, sem liberdade. Os personagens não se movem, são movidos e levados, cada um, para o seu desenlance. 5) Uma técnica comum ao escritor naturalista é o abuso dos pormenores descritivo‐narrativos de tal modo que a estória caminha devagar, lerda e até monótona. É a necessidade de ajuntar detalhes para se dar ao leitor uma impressão segura de que tudo é pura realidade. Essas minúcias se estendem a episódios, a personagens e a ambientes. Num episódio, por exemplo, há minúcias de tempo, local e personagens. E móveis de uma sala até os objetos mais miúdos. "Campos entrou no seu escritório e foi sentar‐se à secretária. Defronte dele, com uma gravidade oficial, empilhavam‐se grandes livros de escrituração mercantil. Ao lado, uma prensa de copiar, um copo de água, sujo de pó, e um pincel chato; mais adiante, sobre um mocho de madeira preta muito alto, via‐se o Diário deitado de costas e aberto de par em par..." (pág. 13). Um retrato: "Seus olhos, pequenos e de cor duvidosa, conservavam a mesma penetração e a mesma fluidez incisiva de ave de rapina; sua boca, estreita, bem guarnecida e quase sem lábios, tinha o mesmo riso arqueado, mal seguro e frio, de quem escuta e observa. Era de altura regular, compleição ética, rosto comprido, de um moreno embaciado, pouca barba, pescoço magro, nariz agudo, mãos pálidas e secas, voz doce e cabelo muito crespo, de colorido incerto, entre castanho e ruivo. Tinha vinte e sete anos, mas aparentava, quando muito, vinde e dois..." (pág. 55, 56 – É João Coqueiro). Descrição da casa de pensão: "A casa tinha dois andares e uma boa chácara no fundo. O salão de visitas era no primeiro. Mobília antiga, um tanto mesclada; ao centro, grande lustre de cristal, coberto de filó amarelo. Três largas janelas de sacada, guarnecidas de cortinas brancas, davam para a rua; do lado oposto, um enorme espelho de moldura dourada e gasta, inclinava‐se pomposamente sobre um sofá de molas; em uma das paredes laterais, um detestável retrato a óleo de Mme. Brizard, vinte anos mais moça, olhava sorrindo para um velho piano, que lhe ficava fronteiro; por cima dos consolos, vasos bonitos de louça da Índia, cheios de areia até à boca..." (pág. 96). E a descrição continua pela página seguinte. Ainda um outro retrato: Amélia em dia de festa: "E de fato Amélia nesse dia estava encantadora. Vestia fustão branco, sarapintado de pequenas flores cor‐
de‐rosa. O cabelo, denso e castanho, prendia‐se‐lhe no toutiço por um laço de seda azul, formando um grande molho flutuante, que lhe caía elegantemente sobre as costas. O vestido curto, muito cosido ao corpo, enluvava‐lhe as formas, dando‐lhe um ar esperto de menina que volta do colégio a passar férias com a família. Era muito bem feita de quadris e de ombros. Espartilhada, como estava naquele momento, a volta enérgica da cintura e a suave protuberância dos seios, produziam nos sentidos de quem a contemplava de perto uma deliciosa impressão artística..." (pág. 97 – E a descrição continua...) E o tísico do quarto nº 7: "O homem estava muito aflito, debatendo‐se contra os lençóis, no desespero da sua ortopnéia. A cabeça vergada para trás, o magro pescoço estirado em curava, a barba tesa, piramidal, apontando para o teto; sentiam‐se‐lhe por detrás da pele empobrecida do rosto os ângulos da caveira; acusavam‐lhe os ossos por todo o corpo; os olhos, extremamente vivos e esbugalhados, de uma fixidez inconsciente, pareciam saltar das órbitas, e, pelo esvazamento da boca toda aberta, via‐se‐lhe a língua dura e seca, de papagaio, e divisavam‐se‐lhe as duas filas da dentadura..." (pág. 219 – A descrição continua...) O capítulo XVI começa com um longo e minucioso pesadelo de Amâncio... O naturalista manifesta tendência reformadoras: quando apresenta um mundo inferior, cheio de taras e doenças, com os seus personagens marcantemente anormais, a sua preocupação é a melhoria das condições sociais e geradoras de todo esse quadro clínico muito ruim. O narrador em terceira pessoa, onisciente e onipotente, de vez em quando faz seus comentários à margem. "O que se lança ao peito da amante desde logo arde e evapora, porque aí o fogo é por demais intenso; o que se atira ao de um estranho gela‐se de pronto na indiferença e na aridez; mas, tudo aquilo que um filho semeia no coração materno, brota, floreja e produz consolações. Neste não há chama que devore, nem frio que enregele, mas um doce amornecer, suave e fecundo, como a palidez de um seio intumescido e ressumbrante de leite..." (pág. 43). "Assim sucede sempre aos filhos educados à portuguesa, cujos pais sentem vexames de lhes patentear o seu amor." (pág. 167) 7) Com relação ao vocabulário o romancista naturalista manifesta preferências por palavras científicas ou pseudo‐científicas na busca de exprimir‐se com o máximo de exatidão. Vejamos alguns exemplos: "Conseguiram fazê‐lo viver, mas sempre fraquinho, anêmico, muito propenso aos ingurgitamentos escrofulosos..." (pág. 29). "... não se contrai ao fartum insalubre das variolóides..." (190) "... no desespero de sua ortopnéia..." (219) "... na sua distanasia." (220) "... desde a ponta dos dedos até os bíceps" (237) "... boca devastada por uma anodontia horrorosa." (299) Aspectos Sociais Como em O Cortiço, Aluísio de Azevedo se torna excepcionalmente rico na criação de personagens coletivos: a casa de pensão, tão comum ainda hoje, no Brasil inteiro, tem vida, uma vida estudante, nas páginas do romance. Aluísio conhecia, de experiência própria, esse ambiente feito de tantos quartos e tantos inquilinos, tão numerosos e tão diferentes, nivelados pela mediocridade e em fácil decadência moral. O autor faz alguns retratos com evidentes traços caricaturais (a sua velha mania ou vocação para a caricatura...), mas fiéis e verdadeiros. Tudo se movimenta diante do leitor: a casa de pensão é um mundo diferente, gente e coisas tomam aspectos novos, as pessoas adquirem outros hábitos, informadas ou deformadas por essa vida comunitária tão promíscua. Aí se encontram e se desencontram, se amontoam e se separam tantos indivíduos transformados em tipos, conhecidos, às vezes, apenas pelo número do quarto. No "Cortiço" o meio social é mais baixo; na "Casa de Pensão" é médio. Às doenças morais (promiscuidades, hipocrisia, desonestidades, sensualismos excitados e excitantes, ódios, baixos interesses, dinheiro...) se misturam também doenças físicas (o tuberculoso do quarto 7 que morre na casa de pensão, a loucura e histerismo de Nini...). Foi o que encontrou Amâncio na "Casa de Pensão" de Mme. Brizard. Fora para o Rio de Janeiro, para estudar. E, num ambiente como esse, quem seria capaz de estudar? É verdade que o rapaz já trazia a sua mentalidade burguesa do tempo: o que ele buscava não era uma profissão, mas apenas um diploma e um título de doutor. Ele, sendo rico, não precisaria da profissão, mas, por vaidade, de um status, de um anel no dedo e de um diploma na parede. Essa mania de doutor, doença que pegou no Brasil, já foi magistralmente caricaturada em deliciosa carta de Eça de Queirós ao nosso Eduardo Prado: "A nação inteira se doutorou. Do norte ao sul do Brasil, não há, não encontrei senão doutores! Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções!! Doutores com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira, fundando bancos: doutores com uma sonda, capitaneando navios; doutores com uma apito, comandando a polícia; doutores com uma lira, soltando carnes; doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças, ministrando drogas; doutores sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores..." (A Correspondência de Fradique Mendes – Lello e Irmão Edit. Porto – 1952 – pág. 235). O próprio Aluísio de Azevedo abandonou a Província para buscar sucessos na Corte (Rio de Janeiro) e, certamente também, um título de doutor... Que vocação tinha Amâncio para a medicina? "Não se trata aqui de fazer um médico, trata‐se de fazer um doutor, seja ele do que bem quiser! Não se trata de ganhar uma profissão, trata‐se de obter um título. Tu não precisas de meios de vida, precisas é de uma posição na sociedade." (Casa de Pensão – pág. 43). A saída de Amâncio de seu meio provincial, por necessidade de estudar, produz uma pletora no Rio de Janeiro de tantos e tão diversos tipos de estudantes, provenientes dos mais variados pontos do nosso imenso país: no Rio eles aprendem com facilidade, com verdadeiros professores, as artes não de estudar, mas de passar de ano. Coqueiro foi quem instruiu seu protegido Amâncio nos truques dos apadrinhamentos e protecionismos especiais (pistolões) para ser aprovado, apesar da maré cheia de sua ignorância. Como conseqüência do meio e das intenções dos donos da pensão, acontece, de modo fatalístico, a sedução de Amélia. O fato tem repercussões sociais: quase toda a classe estudantil fica a favor do estudante, vítima do meio, dos ardis de todos (Mme. Brizard e Coqueiro), da própria Amélia... dos camarões. No apoio a Amâncio estava um apoio também ao machismo, mas de ... conquistador. Amâncio aparece sempre condicionado e pré‐determinado para o seu final trágico, por causa do extremo sensualismo. É o erótico que tenta conquistar até a mulher de seu protetor, o Campos. O erotismo é apontado como um dos nossos defeitos, por excesso, em Bandeirantes e Pioneiros (Paulo Prado). Sobre os excessos sexuais e suas doenças, Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala) faz um trocadilho muito significativo: "no Brasil, antes da civilização, tivemos a sifilização..." Mme. Brizard e João Coqueiro são apresentados ao leitor como antipáticos e condenáveis, pela sua ganância de dinheiro, pelo seu mau caráter: ambos estão comprometidos gravemente no verdadeiro negócio de vender ou alugar Amélia. Ela era o meio de arrancar dinheiro fácil do rico Amâncio. A culpa principal é, sem dúvida, a própria Amélia, pivô da tragédia. Refletindo os seus próprios problemas familiares, Aluísio Azevedo aponta também erros da educação caseira e escolar. O pai do autor o tratava com certa distância, como o pai de Amâncio que era secarrão, sem diálogo, duro em apoiar os métodos coercitivos e antipedagógicos do prof. Pires. Tanto o pai como o professor ficaram como verdadeiros espantalhos e deixaram marcas na formação do rapaz, tornando‐o recalcado e hipócrita. Por seu lado, D. Ângela se mostra sempre muito submissa ao marido, à moda antiga, e muito sentimental no relacionamento com seu filho. Então, os extremos, materno e paterno, se juntam para deformar para sempre a educação de Amâncio. Outro fator decisivo na corrupção final do estudante é o dinheiro fácil com que ele se engolfa em farras e boêmia e se afasta dos livros. É com razão que Lúcia Miguel Pereira sintetiza toda a dinâmica do romance em duas palavras fundamentais: "Na Casa de Pensão, tudo gira em torno da cupidez da carne ou do dinheiro, inoculada em todas as personagens pela herança mórbida ou pela sociedade". (Prosa de Ficção – Liv. José Olympio Edit. – Rio de Janeiro – 1957 – 2ª ed. – pág. 152). Ainda como exemplo desse vento social que sopra por todo o romance e pelos outros melhores do autor, note‐se o estudo que faz dos movimentos de massa, as flutuações da opinião pública, a posição a favor de Amâncio e, para o fim, uma clara insinuação de que já começa a tomar partido a favor de Coqueiro e sua irmã. O autor não aprofunda esse seu estudo de psicologia de massa, mas apresenta, apesar de superficial, um quadro interessante e válido. Se o romance continuasse..., o leitor pode deduzir, com bastante garantia, a massa popular estaria pressionando o júri para a absolvição de João Coqueiro, por legítima defesa da honra da irmã. Linguagem Não se pode dizer que a lingua(gem) do romance é regionalista; pelo contrário, o padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfo‐sintática é completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa. Como Machado de Assis, Aluísio Azevedo também usa alguns recursos desconhecidos da língua portuguesa do Brasil, principalmente na língua oral. Assim, por exemplo, o caso da apossínclise. É uma posição especial do pronome oblíquo que não escutamos no Brasil, mas é comum até na língua popular de Portugal. São exemplos de apossínclise: "Há anos que me não encontro com o amigo." (Há anos que não me...) "Se me não engano, você está certo." Creio que este lusitanismo reflete o tempo: era moda brasileira imitar a sintaxe portuguesa. Tenho exemplos de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Martins Pena, Machado de Assis... Em Casa de Pensão essa posição pronominal é um hábito comum. Pode‐se definir o fenômeno de colocação como o faz Caldas Aulete: "Apossínclise: intercalação de alguma ou algumas palavras entre o verbo e o pronome complemento átono, como, por exemplo: "o que lhe eu contei, em vez de: o que eu lhe contei..." (Edit. Delta S.A. – Rio – 1964 – 5ª ed. in verbete). O hoje esquecido gramático português, antigamente muito em voga, Cândido de Figueiredo, publicou uma obra em três volumes com este título: "O que se não deve dizer". O tratamento usado pelo autor também é diferente do comum no Brasil (exceto Rio Grande do Sul, por exemplo): tu em vez de você. Os personagens, quando se ratam por iguais, empregam sempre a Segunda pessoa do singular. "Bem, de acordo, respondeu Coqueiro, mas é preciso deixar esse tratamento de senhor. Entre rapazes não deve haver cerimônias mal entendidas; somos colegas, temos de ser amigos, por conseguinte tratemo‐nos desde já por tu" (56). "Mesmo escrevendo o diálogo quase sempre em norma culta, Aluísio soube fixar algumas características dos níveis mais baixos..." (Dino Preti – Siciolinguística – Cia Edit. Nacional – S. Paulo – 1974 – pág. 137). Conforme a situação e o status do personagem, a linguagem desce a níveis inferiores. O vocabulário do autor, às vezes, soa esquisito aos nossos ouvidos. Maria de Lourdes Teixeira cita alguns exemplos: À página 56 encontramos esta frase: "... continuava a parolar com embófia". Ora, o substantivo embófia ou sua variante, empófia, de origem asiática e muito encontrável em frei João dos Santos, em sua obra Etiópia Oriental, não me parece usado no Brasil. Da mesma forma, o verbo aiar (gemer), particularmente caro a Castilho, e que jamais vi em nossos autores, lá está na página 63: "Amâncio, muito prostrado, mole, a virar‐se de uma para outra banda, aia‐va sempre". Na página 65 aparece o adjetivo retardia (empregado com freqüência por Filinto Elíseo), em lugar de retardatário, tardo, vagaroso. Na página 66: "o homem do lixo entrava, e saía, familiarmente, com o seu gigo às costas". Gigo, em vez de cesto ou cabaz, vocábulo aquele muito usado por Ramalho Ortigão nas Farpas. Na mesma página se refere a "uma escova de fato", em lugar de escova de roupa, forma aquela não brasileira e que dá azo a duplo sentido. E linhas abaixo: "encontrou uma rapariguita de alguns dezesseis anos", frase cuja construção nada tem de brasileira, parecendo antes coligida de autor português. Na página 105 o romancista menciona uma "corbelha de farinha"; isto é, a nossa familiar e nacionalíssima farinheira. Lembre‐se a propósito que tal expressão, corbelha, de boa linhagem vernácula mas admitida em uso no Brasil através do francês, é encontrada em Diniz, no Hissope, e em Castilho, nas Geórgicas. Na página 121 lá está, por sinal que na boca de uma francesa – Madame Brizard – certo ditado arcaico português que se encontra na Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos: "por aí não irá o fato às filhoses". No clássico citado: "não vay por ahi o gato aos filhós." Logo na página seguinte Aluísio emprega o substantivo godilhão, em lugar de nó, grumo, ou qualquer outro sinônimo de uso corrente no Brasil: "formar‐lhe godilhões na garganta". Na página 192 ressalta em certa frase outro vocábulo estranho e ouvidos nacionais: "A sua primeira idéia foi chamar o Pereira e mostrar‐lhe a mulher no latíbulo do amante". O substantivo latíbulo, que me lembre nunca encontrado em outro autor brasileiro (e que significa "antro de pecado, esconderijo da perdição), é muito usado por Bernardes da Nova Floresta e por outros clássicos portugueses. (Esfinges de Papel – Edart – S. Paulo – 1966 – pág. 138). "A obra de Aluísio Azevedo, portanto, revela‐se útil, sobretudo como documento da língua e da cultura de nossa sociedade, nas décadas de 80 e 90, ainda muito impregnadas da influência portuguesa. Além disso a rudeza dos temas que abordou nos permite o conhecimento de uma linguagem afetiva popular, que em muito contribui para a retratação dos níveis de fala de suas personagens". (Dino Preti – ib. pág. 140). Técnicas Narrativas O problema da criação de um personagem romanesco vira mistério até para o próprio autor. Criado o personagem, ninguém sabe, nem o seu criador, até onde trabalhou a sua imaginação e onde começa a simples observação da realidade circunstante. O personagem se pode identificar com esta ou aquela pessoa real? Ou nasceu totalmente da imaginação onipotente do romancista? Nem um extremo nem outro pode corresponder à realidade da criação literária "O ficcionista pode usar uma pessoa que conheceu como ponto de partida para a composição duma personagem, mas tendo o cuidado de evitar a fotografia servil. É justamente durante esse processo de despistamento ou então no minuto em que o autor resolve criar uma personagem sua, sua mesmo, que o computador insidiosamente começa a mandar‐lhe mensagens, e o autor corre o risco de usar esses elementos com orgulho demiúrgico, convencido de que está mesmo criando do nada..." (Érico Veríssimo – Aguilar – vol. III – pág. 83). Note‐se que o computador a que se refere Érico Veríssimo é o fantástico inconsciente... Em Casa de Pensão, o autor escolheu o seu ponto‐de‐vista narrativo: a terceira pessoa do singular, um narrador onisciente e onipotente, fora do elenco dos personagens. Como um observador atento e minucioso dentro das próprias fórmulas apertadas do naturalismo. No caso deste romance, Aluísio Azevedo trabalhou muito servilmente sobre os fatos absolutamente reais. (Ver Estilo de época). Temos portanto um romance à clef, romance de chave, porque os personagens, sob nomes fictícios, escondem pessoas reais. Assim podemos identificar os figurantes principais. Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos = João Capistrano da Silva, estudante, acusado de sedução. Foi absolvido. Amélia ou Amelita = Júlia Pereira, a moça seduzida, pivô da tragédia. Mme. Brizard = é uma viúva, dona da casa de pensão: D. Júlia Clara Pereira, mãe da moça e do rapaz, assassino. João Coqueiro = Janjão = Antônio Alexandre Pereira, irmão da moça Júlia Pereira e assassino de João Capistrano. Foi também absolvido. Dr. Teles de Moura = Dr. Jansen de Castro Júnior, advogado da família da moça. João Capistrano foi acusado como incurso nas penas do art. 222, do Código Criminal do Império: "Ter cópula carnal por meio violento ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas: de prisão por três ou doze anos, e de dotar a ofendida." O autor toma visível posição a favor de Amâncio e contra Amélia, João Coqueiro e Mme. Brizard: (Raimundo de Menezes – Aluísio Azevedo – Uma vida de romance – Liv. Martins Edit. – S. Paulo – 1958 – pág. 151). O mesmo autor me informa que o romance já estava, em semente, em Casa de Cômodos (pág. 342). A narrativa não obedece a uma ordem cronológica: o cap. I coloca o leitor diante de Amâncio e Campos, já no Rio de Janeiro. Depois é que o autor volta ao Maranhão para contar alguma coisa, o que é fundamental dentro das fórmulas naturalistas, da vida e da educação do personagem. Recorda a escola e a família, o leite que mamou da ama negra, leite contaminado, a dura opressão do professor e do pai... tudo para condicionar fatalisticamente o personagem e fazê‐lo chegar, sem liberdade, aonde tinha que chegar. São os truques repetidos pela escola naturalista. (Veja‐se, por exemplo, o mesmo determinismo em O Missionário de Inglês de Sousa). Essa volta é uma técnica comum que hoje se chama flash back, palavra tomada de empréstimo ao cinema. Depois, a narrativa caminha, de modo geral linearmente e os episódios se passam só no Rio de Janeiro. Amâncio não faz viagens, planeja apenas a volta à Província: viagem que não chega a realizar pelos incidentes que o leitor conhece. Um pequeno paralelo que se fizesse entre o autor e Machado de Assis (lembrem‐se de que Memórias Póstumas de Brás Cubas é da mesma data que O Mulato (1881) mostraria que Aluísio, diferente do romancista carioca, não faz descidas em profundidade na alma dos personagens. Eles se forma superficialmente sem pesquisas psicológicas, uma das características do autor de D. Casmurro. Sem desvalorizar o maranhense, pode‐
se afirmar que Machado de Assis realizou uma obra muito mais orgânica, até mesmo por vocação, por maior talento. Aluísio escreveu sob pressão ou opressão, enquanto tinha necessidade de sobreviver e até contrariado porque, segundo sua própria confissão, tina a vocação da pintura, do desenho, da caricatura, não da literatura. Acabada a necessidade premente de sobreviver, parou de escrever, definitivamente, engolfando‐se na diplomacia. Como narrador fora da estória, como já foi observado em outro lugar, o autor costuma fazer algumas observações marginais, inclusive como intenções críticas, sobre educação, sobre os personagens, sobre os fatos. Pareceu‐me feliz o corte final na narrativa para fechar o romance: não fez nenhum comentário a mais, o que seria excrescente. Já no Cortiço, Aluísio Azevedo ainda acrescenta à tragédia final de Bertoleza um pequeno e inútil comentário. Terminando como terminou deixa ao leitor o trabalho de perguntar o que irá acontecer ainda, como ficarão as coisas, sobretudo a situação de João Coqueiro. Será ou não absolvido? Se os fatos reais nos dão uma resposta (o assassino foi absolvido), o romance deixa em aberto. A mãe de Amâncio também desaparece com o final do romance numa atitude indecifrável: quais foram as suas reações diante do retrato do filho morto? Indecifrável no texto da narrativa e mito fácil para o sentimento e a imaginação de qualquer leitor. Como um naturalista jura fidelidade à vida e à realidade, segundo as suas concepções de vida e de realidade, o final está de acordo: não há uma vitória do(s) herói(s), não há um fecho feliz. Quem é que diz que a vida obedece aos nossos desejos planos? (Maria de Lourdes Teixeira – ibidem – pág. 139). RESOLVENDO JUNTOS 1. “Defronte dele, com uma gravidade oficial, empilhavam‐se grandes livros de escrituração mercantil. Ao lado, uma prensa de copiar, um copo d água, sujo de pó, e um pincel chato; mais adiante, sobre um mocho de madeira preta, muito alto, via‐se o Diário deitado de costas e aberto de par em par. Tratava‐se de fazer a correspondência para o Norte. Mal, porém, dava começo a uma nova carta, lançando cuidadosamente no papel a sua bonita letra, desenhada e grande,[...] (p.01) ” Nesse trecho do livro Casa de Pensão, pode‐se afirmar que: a) existe um desprezo pela técnica descritiva. b) predomina a descrição sobre a narração no trecho “Tratava‐se de fazer a correspondência para o Norte.” c) é clara na passagem “Ao lado, uma prensa de copiar, um copo d’ água, sujo de pó, e um pincel chato” a presença da zoomorfização. d) o fragmento é revestido pela técnica narrativa‐descritiva, característica marcantenos textos Realistas/Naturalistas. e) predomina a narração sobre a descrição no trecho “Ao lado, uma prensa de copiar, um copo d água, sujo de pó, e um pincel chato”. 2. “Era de vinte anos, tipo do Norte, franzino, amornado, pescoço estreito, cabelos crespos e olhos vivos e penetrantes, se bem que alterados por um leve estrabismo.”(p. 01‐02) No livro Casa de Pensão, essa é a primeira descrição que se tem sobre: a) o antagonista João Coqueiro. b) o protagonista Sr. Campos. c) o antagonista Amâncio Vasconcelos. d) o protagonista João Coqueiro. e) o protagonista Amâncio Vasconcelos. 3. “‐ Foi há seis anos, observou o moço, limpando o suor que lhe corria abundantemente pelo rosto.” (p. 02). A oração sublinhada: a) faz parte da fala da personagem. b) trata‐se de uma oração intercalada, referindo‐se a onisciência do narrador. c) trata‐se de uma oração reduzida, referindo‐se a onisciência do narrador. d) trata‐se da fala do narrador provando a sua participação como personagem. e) classifica‐se como um aposto numerativo. 4. “A casa de Luís Campos era na Rua Direita. Um desses casarões do tempo antigo, quadrados e sem gosto, cujo ar severo e recolhido está a dizer no seu silêncio os rigores do velho comércio português.” (AZEVEDO, Aluizio. Casa de Pensão. p‐03). Na parte sublinhada, percebe‐se uma figura de linguagem predominante: a) metonímia b) catacrese c) sinestesia d) prosopopéia e) paronomásia 5. Sobre a “Questão Capistrano”, é falsa a alternativa: a) O caso principia trivialmente assim: dona Júlia Clara Pereira é modesta professora de piano, que mora com os dois filhos Antônio Alexandre Pereira, estudante de engenharia, e Júlia Pereira, de 20 anos, em pequena casa. A pobre viúva baiana luta com inauditas dificuldades para prover a pequena família. As aulas de piano é que lhes mantêm as despesas da casa e dos estudos. A habitação apresenta‐se em péssimo estado e resolvem alugar outra, no ano seguinte, bem maior e mais cômoda, e que, além do pavimento térreo, tem o sótão em forma de chalé. b) É o emocionante caso de polícia, logo conhecido e popularizado sob a epígrafe, envolve dois jovens e estudantes da Escola Politécnica, antes da tragédia, grande e inseparáveis amigos: João Capistrano da Cunha e Antônio Alexandre Pereira. c) O tão debatido "Affaire Capistrano", que o povo e os jornais da época consagram, divide o público e nascem então acesas polêmicas. O carioca da época não fala noutra coisa, não discute outro assunto, não se preocupa senão com os dois processos criminais apesar de rotineiros, em que se misturam a honra de uma moça e o homicídio do seu sedutor. d) Foi o namoro entre o estudante Capistrano e a jovem Júlia. Uma noite, no ano de 1876, acontece o imprevisto: o rapaz não se contém e demanda o quarto da moça, violentado‐a brutalmente. e) Caso ocorrido no Rio de Janeiro e recriado por Aluizio Azevedo como forma de alongar o enredo do livro. O fato real é trágico, porém o autor de Casa de Pensão, transforma‐o num fato irônico, o que distancia o real do fictício. 6. Associe as personagens de Casa de Pensão com as personagens do caso Capistrano, acontecimento base para a criação do livro. (1) Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos (2) Amélia (Amelita) (3) Mme. Brizard (4) João Coqueiro (Janjão) (5) Dr. Teles de Moura (___) Dr. Jansen de Castro Júnior: advogado da família da moça. (___) João Capistrano da Silva: estudante, acusado de sedução. Foi absolvido. (___) D. Júlia Clara Pereira: mãe da moça e do rapaz, assassino. É uma viúva, dona da casa de pensão. (___) Antônio Alexandre Pereira: irmão da moça Júlia Pereira e assassino de João Capistrano. Foi também absolvido. (___) Júlia Pereira: a moça seduzida, pivô da tragédia. 7. “Acho apenas que devia estender a sua teoria até o estudo de certas ciências... como a Medicina... Sim! (...)”. A partir desse trecho do livro Casa de Pensão, revela‐nos que o autor observa: a) que naquele momento, ou seja, no século XIX, estava marcado pelo apogeu da ciência. Todas as ciências ganharam importância social. Só era levado em consideração aquilo que pudesse ser provado pelas teorias e hipóteses observáveis pela ciência. b) que naquele momento, ou seja, no século XVIII, estava marcado pelo apogeu da ciência. Todas as ciências ganharam importância social. Só era levado em consideração aquilo que pudesse ser teorizado pelas filosofias ou hipóteses observáveis pela ciência. c) a importância do aprofundamento intelectual por parte de cada indivíduo como forma de ascensão social e base para capitalismo. Isso é retratado no livro pelo interesse de João Coqueiro pela medicina. d) a importância do aprofundamento intelectual por parte de cada indivíduo, característico do Naturalismo, como forma de ascensão social e base para capitalismo. Isso é retratado no livro pelo interesse de Amâncio Vasconcelos pela medicina e sua busca pela faculdade no Rio de Janeiro para a sua formação tão desejada. e) a critica feita à Ciência, uma vez que o que vigorava na época era o estudo da Filosofia. Assim, o campo científico não tinha valor. Todas as correntes científico‐filosóficas surgidas no século XIX, principalmente o Determinismo, são criticadas no livro Casa de Pensão. 8. “Apesar de inteligente e de brasileiro, Campos nunca logrou espantar de sua casa o ar triste que a ensombrecia. À mesa, quando raramente se palestrava, era sempre com muita reserva; não havia risadas expansivas, nem livres exclamações de alegria. Os hóspedes, pobre gente de província, faziam uma cerimônia espessa; o guarda‐livros poucas vezes arriscava a sua anedota e, só se determinava a isso, tendo de antemão escolhido um assunto discreto e conveniente”. (p.03). No trecho: “Apesar de inteligente e de brasileiro...”, pode‐se examinar: I. que era um defeito Campos ser brasileiro. II. que ser brasileiro e inteligente são coisas incompatíveis. III. refere‐se, apenas, a nacionalidade de Campos. IV. busca, pelo meio da ironia, caracterizar Luís de Campos. V. faz uma crítica a sociedade da época, sendo esta, formada por homens reservados, como é o caso de Campos. Qual(is) está(ão) correta(s): a) I e IV b) II, III e V c) III e IV d) IV e) I, II, IV e V ‐Leia o texto que segue refere‐se as questões de 9 a 14. Aos sete anos entrou para a escola. Que horror ! O mestre, um tal Antônio Pires, homem grosseiro, bruto, de cabelo duro e olhos de touro, batia nas crianças por gosto, por um hábito do ofício. Na aula só falava a berrar, como se dirigisse uma boiada. Tinha as mãos grossas, a voz áspera, a catadura selvagem ; e quando metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava pior. Amâncio, já na Corte, só de pensar no bruto, ainda sentia os calafrios dos outros tempos, e com eles vagos desejos de vingança. Um malquerer doentio invadia‐lhe o coração, sempre que se lembrava do mestre e do pai. Envolvia‐os no mesmo ressentimento, no mesmo ódio surdo e inconfessável. Todos os pequenos da aula tinham birra do Pires. Nele enxergava o carrasco, o tirano, o inimigo e não o mestre ; mas, visto que qualquer manifestação de antipatia redundava fatalmente em castigo, as pobres crianças fingiam‐se satisfeitas ;riam muito quando o beberrão dizia alguma chalaça e afinal, coitadas ! iam‐se habitualmente ao servilismo e à mentira. Os pais ignorantes, viciados pelos costumes bárbaros do Brasil, atrofiados pelo hábito de lidar com escravos, entendiam que aquele animal era o único professor capaz de “endireitar os filhos”. Elogiavam‐lhe a rispidez, recomendavam‐lhe sempre que “não passasse a mão” pela cabeça dos rapazes e que, quando fosse preciso, “dobrasse por conta dele a dose de bolos”. Ângela, porém, não era dessa opinião :não podia admitir que seu querido filho, aquela criaturinha fraca, delicada, um mimo de inocência e de graça, um anjinho, que ela afagara com tanta ternura e com tanto amor, que ela podia dizer criada com os seus beijos ‐ fosse lá apanhar palmatoadas de um brutalhão daquela ordem “Ora ! isso não tinha jeito ! ” Mas o Vasconcelos saltava‐lhe logo em cima : “Que deixasse lá o pequeno com o mestre!... Mais tarde ele havia de agradecer aquelas palmatoadas!” Assim não sucedeu. Amâncio alimentou sempre contra o Pires o mesmo ódio e a mesma repugnância. Verdade é que também fora sempre tido e havido pelo pior dos meninos da aula, pelo mais atrevido e insubordinado. Adquiriu tal fama com o seguinte fato: Havia na escola um rapazito, implicante e levado dos diabos, que se assentava ao lado dele e com quem vivia sempre de turra. Um dia pegaram‐se mais seriamente .Amâncio teria então oito anos. Estava a coisa ainda em palavras, quando entrou o professor, e os dois contendores tomaram à pressa os seus competentes lugares. Fez‐se respeito. Todos os meninos começaram a estudar em voz alta, com afetação. Mas, de repente, ouviu‐se o estalo de uma bofetada. Houve rumor. O Pires levantou‐se, tocou uma campainha, que usava para esses casos, e sindicou do fato. Amâncio foi o único acusado. ‐ Sr. Vasconcelos !‐ gritou o mestre ‐ porque espancou o senhor aquele menino ? Amâncio respondera humildemente que o menino insultara sua mãe . ‐ É mentira ! protestou o novo acusado. Amâncio repetiu o insulto que recebera. Toda a escola rebentou em gargalhadas. ‐ Cale‐se, atrevido !berrou o professor encolerizado, a tocar a campainha.‐ Mariola! Dizer tal coisa em pleno recinto de aula! E, puxando a pura força o delinqüente para junto de si, ferrou‐lhe meias dúzia de palmatoadas. Amâncio, logo que se viu livre, fez um gesto de raiva. ‐ Ah ! ele é isso?! Exclamou o professor. ‐ Tens gênio, tratante ?! Ora espera ! isso tira‐se ! E voltando‐se para o rapazito que levou a bofetada, entregou‐lhe a férula e disse‐lhe que aplicasse outras tantas palmatoadas em Amâncio. Este declarou fortemente que se não submetia ao castigo. O professor quis submetê‐lo à força; Amâncio não abriu as mãos. Os dedos pareciam colados contra a palma. O professor, então, desesperado com semelhante contrariedade, muito nervoso, deixou escapar a mesma frase que pouco antes provocara tudo aquilo. Amâncio recuou dois passos e soltou uma nova bofetada, mas agora na cara do próprio mestre. Em seguida deitou a fugir, correndo. Um “ Oh “formidável encheu a sala . O Pires, rubro de cólera, ordenou que prendessem o atrevido. A aula ergueu‐se em peso, com grande desordem. Caíram bancos e derramaram‐se tinteiros. Todos os meninos abraçaram sem hesitar a causa do mestre, e Amâncio foi agarrado no corredor quando ia alcançar a rua. Mas, quatro pontapés puseram em fugida os dois primeiros rapazes que lhe lançaram os dedos. Dois outros acudiram logo e o seguraram de novo, depois vieram mais três, mais oito, vinte, até que todos os quarenta ou cinqüenta estudantes o levaram à presença do Pires, alegres, vitoriosos, risonhos, como se houvessem alcançado uma glória. Amâncio sofreu novo castigo; serviu de escárnio aos seus condiscípulos e, quando chegou à casa, o pai, informado do que sucedera na escola, deu‐lhe ainda uma boa sova e obrigou‐o a pedir perdão, de joelhos, ao professor e ao menino da bofetada Desde esse instante, todo o sentimento de justiça e de honra que Amâncio possuía, transformou‐se em ódio sistemático pelos seus semelhantes. Ficou fazendo um triste juízo dos homens. Pois se até seu próprio pai, diretamente ofendido na questão, abraçara a causa do mais forte!.... (AZEVEDO, Aluísio. Casa de Pensão. P. 8‐10) 9. No trecho “O mestre, um tal Antônio Pires, homem grosseiro, bruto, de cabelo duro e olhos de touro, batia nas crianças por gosto, por um hábito do ofício. Na aula só falava a berrar, como se dirigisse uma boiada. Tinha as mãos grossas, a voz áspera, a catadura selvagem ; e quando metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava pior.”, revela‐nos uma característica fundamental dos textos naturalistas: a) A introspecção psicológica na descrição da personagem. b) A comparação entre personagens com animais, a antropozoomorfização. c) A descrição das personagens sem mostrar seus defeitos físicos. d) As qualidades dadas às personagens nunca são ruins. e) Retoma os ideais românticos quanto à descrição. 10. Ainda sobre o trecho da questão anterior, percebe‐se a animalização, no seguinte trecho: a) O mestre, um tal Antônio Pires, homem grosseiro, bruto...”; b) “e quando metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava pior.” c) “Tinha as mãos grossas, a voz áspera...”; d) “...batia nas crianças por gosto, por um hábito do ofício.” e) “... e olhos de touro... Na aula só falava a berrar, como se dirigisse uma boiada.”; 11. “Assim não sucedeu. Amâncio alimentou sempre contra o Pires o mesmo ódio e a mesma repugnância”. O trecho que não explica a antipatia de Amâncio contra Pires é: a) “Nele enxergavam o carrasco, o tirano, o inimigo e não o mestre ;” b) “E, puxando a pura força o delinqüente para junto de si, ferrou‐lhe meias dúzia de palmatoadas. Amâncio, logo que se viu livre, fez um gesto de raiva.” c) “Amâncio foi o único acusado.” d) “E voltando‐se para o rapazito que levou a bofetada, entregou‐lhe a férula e disse‐lhe que aplicasse outras tantas palmatoadas em Amâncio.” e) “Amâncio respondera humildemente que o menino insultara sua mãe .” 12. “Desde esse instante, todo o sentimento de justiça e de honra que Amâncio possuía, transformou‐se em ódio sistemático pelos seus semelhantes. Ficou fazendo um triste juízo dos homens. ‐ Pois se até seu próprio pai, diretamente ofendido na questão, abraçara a causa do mais forte!...” A partir do trecho acima, julgue em verdadeiro (V) ou falso (F) as proposições a seguir: I. A reflexão feita, surge após as palmatoadas que Amâncio recebe do professor Pires. II. Amâncio decepciona‐se com sua mãe, pois ela o castiga após ter desrespeitado o Professor Pires. III. O menino despreza a figura paterna, a partir do momento em que ele “abraçara a causa do mais forte!...” IV. O fato modifica profundamente o seu caráter e visão de mundo, marcando na obra uma das teses naturalistas: o homem é um produto do meio. V. Para Amâncio, a figura paterna não perdeu o seu valor; aumentou, quando este apoiou o professor Pires, pois o menino sabia que tudo aquilo era para a formação de seu caráter. A sequencia correta é: a) F / F / V / F / V b) V / F / V / F / V c) V / F / V / V / F d) F / V / F / F / F e) F / F / V / V / F 13. A figura de linguagem predominante no trecho destacado: “... recomendavam‐lhe sempre que “não passasse a mão” pela cabeça dos rapazes...” é: a) Metonímia b) Catacrese c) Sinestesia d) Metáfora e) Paradoxo 14. A figura de linguagem predominante no trecho: “Os pais ignorantes, viciados pelos costumes bárbaros do Brasil, atrofiados pelo hábito de lidar com escravos, entendiam que aquele animal era o único professor capaz de “endireitar os filhos”. a) sinédoque b) ironia c) eufemismo d) prosopopéia e) alegoria 15. “O quarto respirava todo um ar triste de desmazelo e boêmia. Fazia má impressão estar ali: o vômito de Amâncio secava‐se no chão, azedando a ambiente; a louça, que servira ao último jantar, ainda coberta de gordura coalhada, aparecia dentro de uma lata abominável, cheia de contusões e comida de ferrugem”. A característica naturalista predominante nesse trecho é: a) Predileção por temas escabrosos; b) Denúncia da sociedade burguesa; c) Linguagem crua, chocante, sensorial e direta; d) Legitimação do discurso literário pelo científico; e) Determinismo. 16. “Na Casa de Pensão, tudo gira em torno da cupidez da carne ou do dinheiro, inoculada em todas as personagens pela herança mórbida ou pela sociedade". (Prosa de Ficção – Liv. José Olympio Edit. – Rio de Janeiro – 1957 – 2ª ed. – pág. 152). A partir da citação acima, pode‐se concluir que: a) Um dos fatores decisivos na corrupção final de Amâncio é o dinheiro fácil com que ele se engolfa em farras e boêmias e se afasta dos livros; b) Amâncio aparece sempre condicionado e pré‐determinado para o seu final trágico, por causa do extremo sensualismo É o erótico que Amâncio consegue conquistar até a mulher de seu protetor, o Campos. c) O autor aprofunda o seu estudo na psicologia de massa, e apresenta, com bastantes detalhes um quadro interessante e válido dos movimentos de massa. d) Amâncio não se preocupa em ganhar dinheiro no Rio de Janeiro, mas apenas em estudar e se tornar um bom profissional. e) Tudo parte da filosofia positivista, onde o homem se revela a partir do meio em que vive, do momento em que se encontra e por sua herança genética. 17. Sobre a linguagem de Casa de Pensão: a) pode‐se afirmar que predomina a linguagem regional. b) não pode‐se dizer que a lingua(gem) do romance é regionalista; pelo contrário, o padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfo‐sintática é completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa. c) não existe imitação no modo de falar do português europeu. d) a linguagem regionalista está presente em toda a obra, pois, trata‐se da mudança de um personagem da região Nordeste para o Sul do Brasil, o que interfere na sua comunicação. e) a linguagem do livro é científica, pois a obra é Naturalista, e com pouco teor literário. 18. Não percebe‐se a apossínclese em: a) "Que se não deixasse levar pelos pândegos..." (55) b) "... o que lhe não desejo" (56) c) "Amâncio já se não lembrava" (62) d) "... porque ela se não desprendesse logo" (73) e) “...o vômito de Amâncio secava‐se no chão” (38) 19. Em Casa de Pensão, os personagens, na sua totalidade, são retratados sob o ângulo patológico: são casos anormais. A alternativa que não condiz com essa característica é: a) Amâncio aparece como um super‐excitado sexualmente, condicionando proximamente pelo ambiente da casa de pensão e remotamente pelo sangue e pela educação; b) Mme. Brizard e Coqueiro se apresentam como gananciosos a ponto de fazerem negócio à base da cunhada e irmã; c) Nini sofre de crises agudas de loucura histérica, estrebuchando e caindo diante de Amâncio. Lúcia e o marido se mostram também tipos esquisitos, ela pelo sexo e ele por estranho alheamento; d) Amélia também se mete, de cambulhada, nessa enxurrada de sujeiras tentando um bom negócio de sexo e dinheiro... A própria D. Hortênsia, mulher do Campos, manifesta sinais de insatisfação sexual: apesar das negativas iniciais diante das propostas; e) Amélia é descrita em determinado momento como encantadora. Vestida de um fustão branco, sarapintado de pequenas flores cor‐de‐rosa. O cabelo, denso e castanho, prendia‐se‐lhe no toutiço por um laço de seda azul, formando um grande molho flutuante, que lhe caía elegantemente sobre as costas. 20. Sobre o livro Casa de Pensão, veja as proposições: I. Amâncio só mantém relações amorosas com Amélia; II. Existe uma afeição amorosa entre Amâncio e a Sra. Hortênsia; III. Janete, irmã de um dos seus colegas de faculdade, é o grande amor de Amâncio; IV. D. Ângela é retratada muitas vezes como uma mulher sensual; V. Amâncio não desonrou a irmã de Janjão. VI. Existe uma afeição amorosa entre Nini e Amâncio. Está(ao) correta(s): a) I, III e VI b) II, V e VI c) II e VI d) V e) III, IV e V f) V e VI 21. Dê a soma dos itens corretos: (01) O narrador‐observador, em 3ª pessoa, intercala fatos já acontecidos com comentários próprios sobre as ações das personagens; em algumas passagens esses ‘comentários’ se manifestam com linguagem bastante irônica. (02) O protagonista, Amâncio, acadêmico de medicina no Rio de Janeiro, evita com veemência dedicar‐se à leitura dos textos científicos, mas lê romances de José de Alencar e deseja produzir poesias byronianas, (04) Não há preocupação em descrever o cotidiano de agrupamentos humanos, porque a motivação deste enredo se baseia em um fato verídico que abalou o Rio de Janeiro em 1876, conhecido como a “Questão Capistrano”. (08) Amâncio esbofeteia um colega de classe e o professor em defesa de D. Ângela, sendo por isto severamente castigado. Este fato modifica profundamente o seu caráter e visão de mundo, marcando na obra uma das teses naturalistas: o homem é um produto do meio. (16) A carta do velho Vasconcelos, recebida por Amâncio na pensão, desencadeia uma reação extremamente emotiva no rapaz, até então movido por um profundo desprezo pela figura paterna. (32) O senhor Campos prepara‐se para ajudar o seu protegido, mas Coqueiro lhe faz chegar às mãos uma carta comprometedora que Amâncio escrevera à sua senhora, D. Hortênsia. E se coloca contra quem não soube respeitar nem a sua casa. Soma: _________ 22. O trecho: “E, pela manhã, quando Amâncio , ao seguir para as aulas, lhe foi dar o beijo favorito, ela muito amuada, voltou o rosto, resmungando “que a deixasse”. O rapaz prometeu que “ia pensar” e à noite daria uma resposta”. (AZEVEDO, Aluisio. Casa de Pensão) Os termos destacados, nos informa que o discurso é: a) Direto, pela fala da personagem ser pronunciada por ela mesma; b) Indireto – livre, por aparecer tanto a fala da personagem e sua reprodução por parte do narrador c) Indireto, pelo fato do narrador reproduzir o que a personagem falou. d) Indireto, por apresentar um diálogo entre o narrador e a personagem. e) Direto, por existir uma reprodução da fala da personagem. UFPB Os melhores contos ‐ MACHADO DE ASSIS Sobre o autor Machado de Assis é um dos mais impressionantes exemplos de autodidata. Mulato, filho de um operário e de uma lavadeira oriunda dos Açores, órfão muito cedo, só freqüentou a escola primária, ainda assim de forma deficiente. Mesmo assim, aprendeu francês, inglês e alemão, formando uma sólida cultura humanística, tornando‐se o mais perfeito prosador da língua portuguesa contemporânea. Foi um agudo, profundo, quase cruel analista da alma humana. Punha a nu os mais escondidos pensamentos, as mais secretas motivações de seus personagens. Numa palavra, mostrou a fragilidade moral dos homens. Sua obra se divide em duas fases: uma primeira, que coincide com a temperada adesão ao Romantismo; e uma segunda, a partir sobretudo de 1880, original, independente, realista, analista, fria, pontilhada de lances de humor. Se os romances de Machado de Assis são da melhor qualidade literária e lingüística, os contos são ainda superiores, talvez os melhores da língua portuguesa. É isso que pretendemos demonstrar na coletânea a seguir. SER E PARECER “Destaca‐se na obra de Machado de Assis, o conflito entre essência e aparência, isto é, entre aquilo que o indivíduo realmente é no seu íntimo e aquilo que a sociedade, com suas regras e convenções, o obriga a aparentar ser. É o grande drama da dissimulação, da hipocrisia, do disfarce. Neste campo, a opinião alheia é considerada de grande importância. Quando este conflito se torna insuportável, o resultado quase sempre é a loucura.” (BAGNO, Marcos. Machado de Assis para principiantes. Ed. Ática, 2ª. Edição, São Paulo. 1999) TEORIA DO MEDALHÃO (hipocrisia como forma de levar vantagem na vida) Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. (Memórias Póstumas de Brás Cubas) O pai ensina ao filho (Janjão) os meios de sempre levar vantagem sobre os outros. Para isso, é preciso, antes de qualquer coisa, não ter idéias próprias, nem ideologia ou filosofia, basta seguir o sabor dos ventos de acordo com as conveniências, com as vantagens. Um quase diálogo do pai com o filho ‐ Estás com sono? ‐ Não, senhor. ‐ Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são? ‐ Onze. Desejo do pai para o filho ... o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. O pai projeta sua realização no filho Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram‐me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Idade ideal para se fazer medalhão ‐ Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar‐se entre os quarenta e cinco e cinqüenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem entre os cinqüenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Medalhão precoce = gênio Há‐os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio. Quanto às idéias Uma vez entrando na carreira deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente. A aparência como artifício ... imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da platéia; Janjão é ideal para o ofício de medalhão ‐ Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste ofício. * inópia – pobreza, penúria, escassez absoluta A solidão é considerada nociva O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de idéias O efeito nocivo das livrarias As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; Necessidade de freqüentar as livrarias Não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Efeito das frases feitas Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustados na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Dos benefícios da publicidade O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado Científico da Criação dos Carneiros, compra um carneiro e dá‐o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. A necessidade de ser o alvo das atenções Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é útil mandá‐lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais. Percebeste? Nos dias de glória, repórteres por perto Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que pessoas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos repórteres dos jornais. Quando medalhão famoso Acabou‐se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesado e cru de substantivos desajetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. Da política Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos, e reconhecer‐lhe somente a utilidade do scibboleth bíblico. Entre o ser e o parecer Não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade. ‐ Farei o que puder.Nenhuma imaginação? ‐Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo. ‐ (...) proíbo‐te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade etc. etc. O ESPELHO (o esboço de uma nova teoria da alma humana) Cinco amigos debatem, à noite, “questões de alta transcendência”. Não há brigas, apesar das opiniões não serem comuns; “a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia‐se misteriosamente com o luar que vinha de fora.” Jacobina, o protagonista da narrativa, diz aos amigos, “investigadores de coisas metafísicas”, que há duas almas: a “alma interior” e a “alma exterior”. É com essa conclusão que o Jacobina rompe o seu silêncio e fala durante trinta ou quarenta minutos: “Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas (...) Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro.” O discurso do Jacobina sobre a alma exterior “A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação (...) Há casos em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas...” Para exemplificar o que é a alma exterior, Jacobina conta uma história que se passou quando tinha 25 anos. “Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. (...) Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava‐me o seu alferes. (...) a tia Marcolina, apenas me olhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. (...) era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda hora. Eu pedia‐lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o ‘senhor alferes’ (...) chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho (...) o certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação (...) o alferes eliminou o homem (...) ficou‐me uma parte mínima de humanidade.” A mudança de alma exterior “...a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem (...) No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes.” A perda da alma exterior Ocorre de a tia Marcolina precisar viajar e o alferes sente: “Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais.” Os escravos (espíritos boçais) fogem, reduzindo ainda mais a alma exterior. “Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; achei‐me só (...) Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico (...) Nos sonhos, fardava‐me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes... e tudo isso fazia‐me viver.” Desolado, o alferes tem medo de olhar o espelho. “...no fim de oito dias deu‐me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar‐me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. (...) Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. — Vou‐me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir‐me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo‐me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir‐me...” Então, assustado, decide vestir a roupa de alferes: “ Lembrou‐me vestir a farda de alferes. Vesti‐a, aprontei‐
me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior (...)Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia‐me de alferes, e sentava‐me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia‐me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir... Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.” O SEGREDO DO BONZO (opinião X realidade) TEMPO e ESPAÇO Fuchéu, capital do reino do Bungo, 1552 Nessa narrativa, a peripécia se dá ao nível do “fazer persuasivo”: o destinador do conhecimento faz com que o destinatário acredite no contrário daquilo que ele pensa. A “opinião”, que é o consenso geral, é forjada em detrimento da realidade das coisas: “A virtude e o saber têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que as ouvem ou contemplam (...) das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade”. Em outras palavras, o que importa na vida não é aquilo que é, mas o que a coletividade acredita ser. Esse é “o segredo do bonzo”, a doutrina ensinada pelo sábio Pomada, ancião de cento e oito anos. Para ele, a sabedoria consiste não em conhecer a verdade das coisas, mas na capacidade de convencer os outros sobre aquilo que é conveniente. É isso que dá fama, glória e dinheiro: O encontro com o sábio Patimau “...ele não queria outra coisa mais do que afirmar a origem dos grilos, os quais procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova; que este descobrimento, impossível a quem não fosse, como ele, matemático, físico e filósofo, era fruto de dilatados anos de aplicação, experiência e estudo, trabalhos e até perigos de vida... A multidão, tanto que ele acabou, levantou um tumulto de aclamações, que esteve a ponto de ensurdecer‐nos, e alçou nos braços o homem, bradando: Patimau, Patimau, viva Patimau que descobriu a origem dos grilos! E todos se foram com ele ao alpendre de um mercador, onde lhe deram refrescos e lhe fizeram muitas saudações e reverências ...” O sábio Languru também é levado ao alpendre Languru é considerado um herói nacional por ter descoberto “o princípio da vida futura”, que reside em “nada menos que uma gota de sangue de vaca; O sábio Titané afirma que ele e os outros dois sábios estão seguindo a teoria do bonzo Pomada Titané consegue grandes lucros convencendo o povo de que “as alparcas” que ele fabrica são as melhores do mundo: “Vede que obedeço ao principal da nossa doutrina, pois não estou persuadido da superioridade de tais alparcas, antes as tenho por obra vulgar, mas fi‐lo crer ao povo, que as vem comprar agora, pelo preço que lhes taxo”; O sábio Titané leva o narrador e Diogo Meireles à casa do bonzo — Mal podeis adivinhar o que me deu idéia da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprio olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. O narrador utiliza a teoria do bonzo O narrador convence os principais de Fuchéu de que é um músico fora do comum. Todos acreditam e o reverenciam Diogo Meireles coloca a teoria do bonzo em prática Diogo Meireles convence os doentes de nariz a extraírem o nariz inchado e a colocarem “um nariz metafísico”, inexistente na realidade, mas real na imaginação deles: “Diogo Meireles desnarigava‐os com muitíssima arte; depois estendia delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes substitutos, colhia um e aplicava‐o ao lugar vazio. Os enfermos, assim curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava o órgão substituto, e este era inacessível aos sentidos humanos, não se davam por defraudados e tornavam aos seus ofícios. Nenhuma outra prova quero da eficácia da doutrina e do fruto dessa experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles continuaram a prover‐se dos mesmos lenços de assoar. O ANEL DE POLÍCRATES A partir de um diálogo entre A e Z, Machado desenvolve um conto no qual, Xavier, homem sábio e afortunado, de tanto permitir que os outros se apossem de suas idéias, acaba perdendo‐as. A descreve Xavier “Era um saco de espantos. Quem conversava com ele sentia vertigens. Imagine uma cachoeira de idéias e imagens, qual mais original, qual mais bela, às vezes extravagante, às vezes sublime.” Xavier aprende com a sociedade, mas despreza o saber do indivíduo “Gostava da sociedade, mas não amava os sócios. Um amigo nosso, o Pires, fez‐lhe um dia esse reparo; e sabe o que é que ele respondeu? Respondeu com um apólogo, em que cada sócio figurava ser uma cuia d'água, e a sociedade uma banheira. — Ora, eu não posso lavar‐me em cuias d'água, foi a sua conclusão.” Pires utiliza a idéia de Xavier como se fosse sua “O Pires achou o apólogo tão bonito que o meteu numa comédia, daí a tempos. Engraçado é que o Xavier ouviu o apólogo no teatro, e aplaudiu‐o muito, com entusiasmo; esquecera‐se da paternidade; mas a voz do sangue... Isto leva‐me à explicação da atual miséria do Xavier... Ele espalhava idéias à direita e à esquerda, como o céu chove, por uma necessidade física, e ainda por duas razões. A primeira é que era impaciente, não sofria a gestação indispensável à obra escrita. A segunda é que varria com os olhos uma linha tão vasta de coisas, que mal poderia fixar‐se em qualquer delas. Se não tivesse o verbo fluente, morreria de congestão mental... Viveu assim longos anos, despendendo à toa, sem cálculo, sem fruto, de noite e de dia, na rua e em casa, um verdadeiro pródigo. Com tal regime, que era a ausência de regime, não admira que ficasse pobre e miserável. Meu amigo, a imaginação e o espírito têm limites... O Xavier não só perdeu as idéias que tinha, mas até exauriu a faculdade de as criar; ficou o que sabemos. Que moeda rara se lhe vê hoje nas mãos?” Relação com a história de Polícrates “Polícrates governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a recear alguma viravolta da Fortuna, e, para aplacá‐la antecipadamente, determinou fazer um grande sacrifício: deitar ao mar o anel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna andava tão apostada em cumulá‐lo de obséquios, que o anel foi engolido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei, que assim voltou à posse do anel.” Angustiado com a perda das idéias, Xavier espera que voltem às suas mãos como voltara o anel de Polícrates “...disse ele; vejamos se a minha idéia, lançada ao mar, pode tornar ao meu poder, como o anel de Polícrates, no bucho de algum peixe, ou se o meu caiporismo será tal, que nunca mais lhe ponha a mão. As idéias não voltam “Cerca de três semanas depois, o Xavier jantava pacificamente no Leão de Ouro ou no Globo, não me lembro bem, e ouviu de outra mesa a mesma frase sua, talvez com a troca de um adjetivo. "Meu pobre anel, disse ele, eis‐te enfim no peixe de Polícrates." Mas a idéia bateu as asas e voou, sem que ele pudesse guardá‐la na memória. Resignou‐se. Dias depois, foi convidado a um baile: era um antigo companheiro dos tempos de rapaz, que celebrava a sua recente distinção nobiliária. O Xavier aceitou o convite, e foi ao baile, e ainda bem que foi, porque entre o sorvete e o chá ouviu de um grupo de pessoas que louvavam a carreira do barão, a sua vida próspera, rígida, modelo, ouviu comparar o barão a um cavaleiro emérito. Pasmo dos ouvintes, porque o barão não montava a cavalo. Mas o panegirista explicou que a vida não é mais do que um cavalo xucro ou manhoso, sobre o qual ou se há de ser cavaleiro ou parecê‐lo, e o barão era‐o excelente. "— Entra, meu querido anel, disse o Xavier, entra no dedo de Polícrates." Mas de novo a idéia bateu as asas, sem querer ouvi‐lo... Daí em diante foi sempre a mesma coisa. Quando ele supunha pôr a mão em cima da idéia ela batia as asas, plás, plás, plás, e perdia‐se no ar, como as figuras de um sonho. Outro peixe a engolia e trazia, e sempre o mesmo desenlace.” As idéias do Xavier circulam, mas não voltam ao seu dono “Uma semana depois da comédia cai o amigo doente, com tal gravidade que em quatro dias estava à morte. O Xavier corre a vê‐lo; e o infeliz ainda o pôde conhecer, estender‐lhe a mão fria e trêmula, cravar‐lhe um longo olhar baço da última hora, e, com a voz sumida, eco do sepulcro, soluçar‐lhe: "Cá vou, meu caro Xavier, o cavalo xucro ou manhoso da vida deitou‐me ao chão: se fui mau cavaleiro, não sei; mas forcejei por parecê‐lo bom." Não se ria; ele contou‐me isto com lágrimas. Contou‐me também que a idéia ainda esvoaçou alguns minutos sobre o cadáver, faiscando as belas asas de cristal, que ele cria ser diamante; depois estalou um risinho de escárnio, ingrato e parricida, e fugiu como das outras vezes, metendo‐se no cérebro de alguns sujeitos, amigos da casa, que ali estavam, transidos de dor, e recolheram com saudade esse pio legado do defunto. Adeus.” UMA SENHORA (a busca da eterna juventude) Por que é que uma mulher bonita olha muitas vezes para o espelho, se não porque se acha bonita, e porque isso lhe dá certa superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos bonitas ou absolutamente feias? (Memórias Póstumas de Brás Cubas) “Dia virá em que as pedras serão plantas, as plantas animais, os animais homens e os homens deuses.” Com esta citação do poeta Heine, Machado inicia o conto que traduz a grande ânsia dos seres humanos: beleza e juventude perenes. Logo no primeiro parágrafo, uma referência à Hebe, deusa da juventude, companheira desejada de Dona Camila. O conto é atualíssimo! Nunca se investiu tanto na produção de cosméticos que garantem retardar ou, até mesmo, retroagir a ação do tempo sobre a pele humana. As mulheres, maiores consumidoras, são seguidas de perto pelo homem moderno, colocando a indústria de cosméticos entre as mais prósperas e lucrativas. A senhora é D. Camila, uma mulher que “amou tanto a mocidade e a beleza, que atrasou o seu relógio. (...) Cor de leite, fresca, inalterável, deixava às outras o trabalho de envelhecer. Só queria o de existir.” Ela sempre aparenta ter uma idade inferior àquela que realmente tem. Ernestina: a filha que lhe serve de comparação Em sua primeira aparição, Ernestina tem 14 ou 15 anos, mas D. Camila deseja que ela brinque com crianças de oito, nove anos. Aos quarenta anos, D. Camila aparenta ter trinta e poucos e, por mais que se procure, nela não se acha um só cabelo branco. É um engano! “O fio branco estava ali; era a filha de D. Camila que entrava nos dezenove anos (...) D. Camila prolongou quanto pôde, os vestidos adolescentes da filha, conservou‐a no colégio até tarde, fez tudo para proclamá‐la criança. (...) A natureza, porém, que não é só imoral, mas também ilógica, enquanto sofreava os anos de uma, afrouxava a rédea aos da outra. (...) D. Camila entrou a dizer a todos que casara muito criança.” O primeiro namorado de Ernestina “Um dia, poucos meses depois, apontou no horizonte o primeiro namorado. D. Camila pensara vagamente nessa calamidade, sem encará‐la, sem aparelhar‐se para a defesa. Quando menos esperava, achou um pretendente à porta. (...) D. Camila viu iminente o primeiro neto, e determinou adiá‐lo. Está claro que não formulou a resolução, como não formulara a idéia do perigo. A alma entende‐se a si mesma; uma sensação vale um raciocínio. As que ela teve foram rápidas, obscuras, no mais íntimo do seu ser, donde não as extraiu para não ser obrigada a encará‐las. — Mas que é que você acha de mau no Ribeiro? perguntou‐lhe o marido, uma noite, à janela. D. Camila levantou os ombros. — Acho‐lhe o nariz torto, disse.” O segundo namorado de Ernestina “Meses depois despontou a orelha de um segundo namorado. Desta vez era um viúvo, advogado, vinte e sete anos. Ernestina não sentiu por ele a mesma emoção que o outro lhe dera; limitou‐se a aceitá‐lo. D. Camila farejou depressa a nova candidatura. Não podia alegar nada contra ele; tinha o nariz reto como a consciência, e profunda aversão à vida diplomática. Mas haveria outros defeitos, devia haver outros.” Namoricos de Ernestina “Houve um trimestre de respiro. Depois apareceram alguns namoricos de uma noite, insetos efêmeros, que não deixaram história. D. Camila compreendeu que eles tinham de multiplicar‐se, até vir algum decisivo que a obrigasse a ceder; mas ao menos, dizia ela a si mesma, queria um genro que trouxesse à filha a mesma felicidade que o marido lhe deu.” D. Camila descobre o primeiro cabelo branco “Era de manhã. D. Camila estava ao espelho, a janela aberta, a chácara verde e sonora de cigarras e passarinhos. Ela sentia em si a harmonia que a ligava às coisas externas. Só a beleza intelectual é independente e superior. A beleza física é irmã da paisagem. D. Camila saboreava essa fraternidade íntima, secreta, um sentimento de identidade, uma recordação da vida anterior no mesmo útero divino. Nenhuma lembrança desagradável, nenhuma ocorrência vinha turvar essa expansão misteriosa. Ao contrário, tudo parecia embebê‐la de eternidade, e os quarenta e dois anos em que ia não lhe pesavam mais do que outras tantas folhas de rosa. Olhava para fora, olhava para o espelho. De repente, como se lhe surdisse uma cobra, recuou aterrada. Tinha visto, sobre a fonte esquerda, um cabelinho branco. Ainda cuidou que fosse do marido; mas reconheceu depressa que não, que era dela mesma, um telegrama da velhice, que aí vinha a marchas forçadas. O primeiro sentimento foi de prostração. D. Camila sentiu faltar‐lhe tudo, tudo, viu‐se encanecida e acabada no fim de uma semana. — Mamãe, mamãe, bradou Ernestina entrando na saleta. Está aqui o camarote que papai mandou. D. Camila teve um sobressalto de pudor, e instintivamente voltou para a filha o lado que não tinha o fio branco. (...) Ficando só, tornou a olhar para o espelho, e corajosamente arrancou o cabelinho branco, e deitou‐o à chácara. Out, damned spot! Out! (Sai, maldita mancha! Sai!).” O retorno dos cabelos brancos “Mas, se os remorsos voltam, por que não hão de voltar os cabelos brancos? Um mês depois, D. Camila descobriu outro, insinuado na bela e farta madeixa negra, e amputou‐o sem piedade. Cinco ou seis semanas depois, outro. Este terceiro coincidiu com um terceiro candidato à mão da filha, e ambos acharam D. Camila numa hora de prostração. A beleza, que lhe suprira a mocidade, parecia‐lhe prestes a ir também, como uma pomba sai em busca da outra. Os dias precipitavam‐se. Crianças que ela vira ao colo, ou de carrinho empuxado pelas amas, dançavam agora nos bailes. Os que eram homens fumavam; as mulheres cantavam ao piano. Algumas destas apresentavam‐
lhe os seus babies, gorduchos, uma segunda geração que mamava, à espera de ir bailar também, cantar ou fumar, apresentar outros babies a outras pessoas, e assim por diante.” O terceiro namorado de Ernestina (a rendição de D. Camila) “D. Camila se entrega: “Que remédio, senão aceitar um genro?” Sem saída decide fazer da festa de casamento da filha, um momento para o seu brilho pessoal. “Preparou‐se galhardamente, e o efeito correspondeu ao esforço. Na igreja, no meio de outras damas; na sala, sentada no sofá (...) vestida a capricho, sem o requinte da extrema juventude, mas também sem a rigidez matronal, um meio‐termo apenas, destinado a pôr em relevo as suas graças outoniças, risonha, e feliz, enfim, a recente sogra colheu os melhores sufrágios. Era certo que ainda lhe pendia dos ombros um retalho de púrpura.” A chegada do neto “Púrpura supõe dinastia. Dinastia exige netos. (...) D. Camila acostumara‐se à idéia; mas era tão penoso abdicar, que ela aguardava o neto com amor e repugnância. Esse importuno embrião, curioso da vida e pretensioso, era necessário na terra? Evidentemente, não; mas apareceu um dia, com as flores de setembro. Durante a crise, D. Camila só teve de pensar na filha; depois da crise, pensou na filha e no neto. Só dias depois é que pôde pensar em si mesma. Enfim, avó. Não havia que duvidar; era avó. Nem as feições que eram ainda concertadas, nem os cabelos, que eram pretos (salvo meia dúzia de fios escondidos), podiam por si sós denunciar a realidade; mas a realidade existia; ela era, enfim, avó.” O relacionamento com o neto “Quis recolher‐se; e para ter o neto mais perto de si, chamou a filha para casa. Mas a casa não era um mosteiro, e as ruas e os jornais com os seus mil rumores acordavam nela os ecos de outro tempo. D. Camila rasgou o ato de abdicação e tornou ao tumulto. Um dia, encontrei‐a ao lado de uma preta, que levava ao colo uma criança de cinco a seis meses. D. Camila segurava na mão o chapelinho de sol aberto para cobrir a criança. Encontrei‐a oito dias depois, com a mesma criança, a mesma preta e o mesmo chapéu de sol. Vinte dias depois, e trinta dias mais tarde, tornei a vê‐la, entrando para o bonde com a preta e a criança. — Você já deu de mamar? dizia ela à preta. Olhe o sol. Não vá cair. Não aperte muito o menino. Acordou? Não mexa com ele. Cubra a carinha, etc., etc. Era o neto. Ela, porém, ia tão apertadinha, tão cuidadosa da criança, tão a miúdo, tão sem outra senhora, que antes parecia mãe do que avó; e muita gente pensava que era mãe. Que tal fosse a intenção de D. Camila não o juro eu. ("Não jurarás", Mateus, V, 34). Tão‐somente digo que nenhuma outra mãe seria mais desvelada do que D. Camila com o neto; atribuírem‐lhe um simples filho era a coisa mais verossímil do mundo.” D. BENEDITA (dissimulação e veleidade) Capítulo 1 – um perfil de mulher O narrador traça o perfil de uma mulher que aparenta ser mais jovem do que realmente é e, além do mais, é “um padrão dos bons costumes”. Um corretor de seguros diminui, com segundas intenções, a idade de D. Benedita — ela tem 42 anos e o corretor afirma que tem 29 —, o que “não fez mais do que indigná‐la, embora momentaneamente; digo momentaneamente.” A discussão é estéril, já que D. Benedita não nega a idade a ninguém. Tempo cronológico bem demarcado “...domingo, dezenove de setembro de 1869. São seis horas da tarde.” É a festa de aniversário dos 42 anos de D. Benedita, que dá uma atenção toda especial a “uma senhora gorda, simpática, muito risonha, mãe de um bacharel de vinte e dois anos, o Leandrinho, que está sentado defronte delas.” O esposo de D. Benedita, Desembargador Proença, está ausente e Leandrinho o homenageia, emocionando‐
a. Ela não o acompanhou e comenta‐se que o Desembargador tem um relacionamento com uma viúva. Os filhos de D. Benedita D. Benedita tem dois filhos: um rapaz e uma moça. Curiosamente, a moça aparenta ser mais velha do que é (tem 18 e parece ter 21 anos). A veleidade (inconstância) de D. Benedita Ao saber da possível traição do marido, D. Benedita chora a noite inteira, marca viagem ao Pará, mas desiste após três dias. Leandrinho se interessa por Eulália, filha de D. Benedita. Capítulo 2 – a indecisão continua. D. Benedita acorda às nove da manhã com a intenção de escrever uma carta para o marido. Encontra um presente (uma chinela) que ganhara de uma grande amiga no ano passado, mas a abandona rapidamente. Hora do almoço: D. Bendita só iniciou a carta. D. Maria dos Anjos — a amiga predileta de D. Bendita — chega e a carta só vai ficar pronta às duas horas. Capítulo 3 – inconstância nas leituras D. Benedita lê vários livros, mas não termina nenhum. Ao contrário da mãe, Eulália tem vontade forte. Não quer casar com o Leandrinho, mesmo que a mãe o queira. D. Benedita afirma que Eulália será nora de D. Maria dos Anjos e está acabado. A amizade com D. Maria dos Anjos começa a esfriar D. Benedita sente uma leve indisposição mas já não quer ir ao jantar na casa de D. Maria dos Anjos. Por fim vai, mas já não esboça uma grande satisfação. “Os modos de D. Benedita não eram os do costume; eram frios, secos, ou quase secos; ela, porém, explicou de si mesma a diferença, noticiando o ameaço da enxaqueca, notícia mais triste do que alegre, e que, aliás, alegrou a alma de D. Maria dos Anjos, por esta razão fina e profunda: antes a frieza da amiga fosse originada na doença do que na quebra do afeto.” D. Benedita decide visitar o marido. Tudo está devidamente preparado e o tratamento com D. Maria dos Anjos vai se tornando cada vez mais frio. Capítulo IV – a viagem é desfeita “A viagem não se fez por um motivo supersticioso. D. Benedita, no domingo à noite, advertiu que o paquete seguia na sexta‐feira, e achou que o dia era mau. Iriam no outro paquete. Não foram no outro; mas desta vez os motivos escapam inteiramente ao alcance do olhar humano, e o melhor alvitre em tais casos é não teimar com o impenetrável. A verdade é que D. Benedita não foi, mas iria no terceiro paquete, a não ser um incidente que lhe trocou os planos.” Eulália arranja um noivo Ao mesmo tempo em que se afasta de D. Maria dos Anjos, D. Benedita conhece o pretendente de Eulália, o tenente Mascarenhas e fica encantada. O Desembargador, por carta, autoriza o casamento. D. Maria dos Anjos nem é convidada e fica inquieta por não saber o motivo da frieza da amiga. A morte do Desembargador 15 dias após o casamento, o Desembargador morre. D. Bendita chora muito e planeja ir ao Pará para erigir um túmulo ao finado. Foi? Não foi. D. Bendita começa a desgostar‐se do genro. Aparece um pretendente. D. Bendita aceita a proposta de casamento. Casou? Não. Nasce o neto. Paixão de D. Benedita nos primeiros meses. O genro, a filha e o neto vão para o Norte. D. Benedita sente‐se sozinha. Pensa em casar‐se, surge um pretendente, um advogado viúvo. Ela se enche de indecisão: “— Casarei? não casarei?” A visão da fada Veleidade Uma noite, D. Benedita tem uma visão: “apareceu‐lhe uma figura vaga e transparente, trajada de nevoas, toucada de reflexos, sem contornos definidos, porque morriam todos no ar. A figura veio até ao peitoril da janela de D. Benedita; e de um gesto sonolento, com uma voz de criança, disse‐lhe estas palavras sem sentido: — Casa... não casarás... se casas... casarás... não casarás... e casas... casando ... D. Benedita ficou aterrada, sem poder, mexer‐se; mas ainda teve a força de perguntar à figura quem era. A figura achou um princípio de riso, mas perdeu‐o logo; depois respondeu que era a fada que presidira ao nascimento de D. Benedita: Meu nome é Veleidade, concluiu; e, como um suspiro, dispersou‐se na noite e no silêncio.” VERBA TESTAMENTÁRIA (A inveja e o desejo de aparecer) Neste conto, Machado utiliza o flashback para apresentar a inveja humana e o desejo que as pessoas sentem de se destacarem em relação às outras. Nicolau morre e deixa uma verba para que um modesto fabricante de caixões elabore o seu "... Item, é minha última vontade que o caixão em que o meu corpo houver de ser enterrado, seja fabricado em casa de Joaquim Soares, à rua da Alfândega. Desejo que ele tenha conhecimento desta disposição, que também será pública. Joaquim Soares não me conhece; mas é digno da distinção, por ser dos nossos melhores artistas, e um dos homens mais honrados da nossa terra..." Nicolau é considerado magnânimo por ter chamado a atenção para um operário sem destaque “...acharam que aquela mão, saindo do abismo para abençoar a obra de um operário modesto, praticara uma ação rara e magnânima.” A efemeridade da fama “não se falou de outra coisa. O nome do Nicolau reboou por muitos dias na imprensa da Corte, donde passou à das províncias. Mas a vida universal é tão variada, os sucessos acumulam‐se em tanta multidão, e com tal presteza, e, finalmente, a memória dos homens é tão frágil, que um dia chegou em que a ação de Nicolau mergulhou de todo no olvido.” Início do flashback: as razões da ação de Nicolau “Venho dizer que a verba testamentária não é um efeito sem causa; venho mostrar uma das maiores curiosidades mórbidas deste século. Sim, leitor amado, vamos entrar em plena patologia. Esse menino que aí vês, nos fins do século passado (em 1855, quando morreu, tinha o Nicolau sessenta e oito anos), esse menino não é um produto são, não é um organismo perfeito. Ao contrário, desde os mais tenros anos, manifestou por atos reiterados que há nele algum vício interior, alguma falha orgânica. Não se pode explicar de outro modo a obstinação com que ele corre a destruir os brinquedos dos outros meninos, não digo os que são iguais aos dele, ou ainda inferiores, mas os que são melhores ou mais ricos. Menos ainda se compreende que, nos casos em que o brinquedo é único, ou somente raro, o jovem Nicolau console a vítima com dois ou três pontapés; nunca menos de um. Tudo isso é obscuro. Culpa do pai não pode ser. O pai era um honrado negociante ou comissário (...), que viveu com certo luzimento, no último quartel do século, homem ríspido, austero, que admoestava o filho, e, sendo necessário, castigava‐o.” O vice‐rei vende títulos/ Um pai compra título de alferes para o filho de sete anos/ Nicolau se remói de inveja e parte para a agressão “...o pai de Nicolau só teve notícia do caso no domingo próximo, na igreja do Carmo, ao ver os dois, pai e filho, vindo o menino com uma fardinha, que, por galanteria, lhe meteram no corpo. Nicolau, que também ali estava, fez‐se lívido; depois, num ímpeto, atirou‐se sobre o jovem alferes e rasgou‐lhe a farda, antes que os pais pudessem acudir. Um escândalo.” Inveja das roupas e das caras dos outros meninos “Nicolau apanhou então muita pancada, curtiu muita dor, chorou, soluçou; mas de emenda coisa nenhuma. Os brinquedos dos outros meninos não ficaram menos expostos. O mesmo passou a acontecer às roupas. Os meninos mais ricos do bairro não saíam fora senão com as mais modestas vestimentas caseiras, único modo de escapar às unhas de Nicolau. Com o andar do tempo, estendeu ele a aversão às próprias caras, quando eram bonitas, ou tidas como tais. A rua em que ele residia, contava um sem‐número de caras quebradas, arranhadas, conspurcadas. As coisas chegaram a tal ponto, que o pai resolveu trancá‐lo em casa durante uns três ou quatro meses.” Um professor rígido toma conta de Nicolau / Ele passa a ter inveja dos alunos mais inteligentes “...não perdoou aos que se mostravam mais adiantados no estudo; espancava‐os, tirava‐lhes os livros, e lançava‐os fora, nas praias ou no mangue. Rixas, sangue, ódios, tais eram os frutos da vida, para ele, além das dores cruéis que padecia, e que a família teimava em não entender.” Morre o pai, a mãe e a irmã casa / Nicolau passa a morar sozinho /Passa a viver como petimetre (janota, mauricinho) e tem inveja de todo petimetre que se destaca por algum motivo “Morreu‐lhe o pai em 1807 e a mãe em 1809; a irmã casou com um médico holandês, treze meses depois. Nicolau passou a viver só. Tinha vinte e três anos; era um dos petimetres da cidade, mas um singular petimetre, que não podia encarar nenhum outro, ou fosse mais gentil de feições, ou portador de algum colete especial sem padecer uma dor violenta, tão violenta, que o obrigava às vezes a trincar o beiço até deitar sangue. Tinha ocasiões de cambalear; outras de escorrer‐lhe pelo canto da boca um fio quase imperceptível de espuma.” Nicolau oscila entre momentos de cólera e docilidade “Nicolau ficava então ríspido; em casa achava tudo mau, tudo incômodo, tudo nauseabundo; feria a cabeça aos escravos com os pratos, que iam partir‐se também, e perseguia os cães, a pontapés; não sossegava dez minutos, não comia, ou comia mal. Enfim dormia; e ainda bem que dormia. O sono reparava tudo. Acordava lhano e meigo, alma de patriarca, beijando os cães entre as orelhas, deixando‐se lamber por eles, dando‐lhes do melhor que tinha, chamando aos escravos as coisas mais familiares e ternas. E tudo, cães e escravos, esqueciam as pancadas da véspera, e acudiam às vozes dele obedientes, namorados, como se este fosse o verdadeiro senhor, e não o outro.” Nicolau vai arranjar um emprego diplomático, mas não resiste à visão de todos aqueles diplomatas bem‐
sucedidos / Volta para casa e desiste do emprego Nicolau passa a conviver com a escória da cidade “Os amigos eram os rapazes mais antipáticos da cidade, vulgares e ínfimos. Nicolau escolhera‐os de propósito. Viver segregado dos principais era para ele um grande sacrifício; mas, como teria de padecer muito mais vivendo com eles, tragava a situação.” Nicolau entra para a política “Veio o grito do Ipiranga; Nicolau meteu‐se na política. Em 1823 vamos achá‐lo na Constituinte (...) lhe era difícil encarar certos homens, especialmente em certos dias. Montezuma, por exemplo, parecia‐lhe balofo, Vergueiro, maçudo, os Andradas, execráveis. Cada discurso, não só dos principais oradores, mas dos secundários, era para o Nicolau verdadeiro suplício. (...) Não afirmo; mas há bons fundamentos para crer que o Nicolau, apesar das mostras exteriores, gostou de ver dissolvida a assembléia. (...) a deportação de alguns dos chefes constituintes, declarados inimigos públicos, veio aguar‐lhe aquele prazer. Nicolau, que padecera com os discursos deles, não menos padeceu com o exílio, posto lhes desse um certo relevo. Se ele também fosse exilado!” O casamento de Nicolau / família planeja curá‐lo “...receberá o Nicolau um jornal que vou mandar imprimir com o único fim de lhe dizer as coisas mais agradáveis do mundo, e dizê‐las nominalmente, recordando os seus modestos, mas profícuos trabalhos da Constituinte, e atribuindo‐lhe muitas aventuras namoradas, agudezas de espírito, rasgos de coragem. Já falei ao almirante holandês para consentir que, de quando em quando, vá ter com Nicolau algum dos nossos oficiais dizer‐
lhe que não podia voltar para a Haia sem a honra de contemplar um cidadão tão eminente e simpático, em quem se reúnem qualidades raras, e, de ordinário, dispersas. Você, se puder alcançar de alguma modista, a Gudin, por exemplo, que ponha o nome de Nicolau em um chapéu ou mantelete, ajudará muito a cura de seu mano. Cartas amorosas anônimas, enviadas pelo correio, são um recurso eficaz... Mas comecemos pelo princípio, que é casá‐lo.” Nicolau passa a ter inveja dos elogios que a mulher recebe “Um dos meios de agradar ao Nicolau era elogiar a beleza, a elegância e as virtudes da mulher; mas a moléstia caminhara, e o que parecia remédio excelente foi simples agravação do mal. Nicolau, ao fim de certo tempo, achava ociosos e excessivos tantos elogios à mulher, e bastava isto a impacientá‐lo, e a impaciência a produzir‐lhe a fatal secreção. Parece mesmo que chegou ao ponto de não poder encará‐la muito tempo, e a encará‐
la mal; vieram algumas rixas, que seriam o princípio de uma; separação, se ela não morresse daí a pouco.” Nicolau, o revolucionário (1831) / Em busca do destaque “Tanto os que diziam bem, como os que diziam mal do imperador, tinham enchido as medidas ao Nicolau. Esse homem, que inspirava entusiasmos e ódios, cujo nome era repetido onde quer que o Nicolau estivesse, na rua, no teatro, nas casas alheias, tornou‐se uma verdadeira perseguição mórbida, daí o fervor com que ele meteu a mão no movimento de 1831. A abdicação foi um alívio. Verdade é que a Regência o achou dentro de pouco tempo entre os seus adversários; e há quem afirme que ele se filiou ao partido caramuru ou restaurador, posto não ficasse prova do ato. O que é certo é que a vida pública do Nicolau cessou com a Maioridade.” Nicolau adoece / Os aplausos, até no teatro, o aborrecem “A doença apoderara‐se definitivamente do organismo. Nicolau ia, a pouco e pouco, recuando na solidão. Não podia fazer certas visitas, freqüentar certas casas. O teatro mal chegava a distraí‐lo. Era tão melindroso o estado dos seus órgãos auditivos, que o ruído dos aplausos causava‐lhe dores atrozes. (...) os aplausos ao Gonçalves Dias, por exemplo, deram‐lhe idéia de um povo trivial e de mau gosto. Esse sentimento literário, fruto de uma lesão orgânica, reagiu sobre a mesma lesão, ao ponto de produzir graves crises, que o tiveram algum tempo na cama. O cunhado aproveitou o momento para desterrar‐lhe da casa todos os livros de certo porte. Com inveja do alfaiate e do cabeleireiro, Nicolau passa a se vestir de forma descuidada “Explica‐se menos o desalinho com que daí a meses começou a vestir‐se. Educado com hábitos de elegância, era antigo freguês de um dos principais alfaiates da Corte, o Plum, não passando um só dia em que não fosse pentear‐se ao Desmarais e Gérard, coiffeurs de la cour, à rua do Ouvidor. Parece que achou enfatuada esta denominação de cabeleireiros do paço, e castigou‐os indo pentear‐se a um barbeiro ínfimo.” Não suportando os elogios que o seu cozinheiro recebe, demite‐o “Nicolau, por insinuação do cunhado, que o queria distrair, dava dois jantares por semana; e os convivas eram unânimes em achar que o cozinheiro dele primava sobre todos os da capital. Realmente os pratos eram bons, alguns ótimos, mas o elogio era um tanto enfático, excessivo, para o fim justamente de ser agradável ao Nicolau, e assim aconteceu algum tempo. Como entender, porém, que um domingo, acabado o jantar, que fora magnífico, despedisse ele um varão tão insigne, causa indireta de alguns dos seus mais deleitosos momentos na terra? Mistério impenetrável. — Era um ladrão! foi a resposta que ele deu ao cunhado.” Nicolau definha e morre “Os últimos anos foram crudelíssimos. Quase se pode jurar que ele viveu então continuamente verde, irritado, olhos vesgos, padecendo consigo ainda muito mais do que fazia padecer aos outros. A menor ou maior coisa triturava‐lhe os nervos: um bom discurso, um artista hábil, uma sege, uma gravata, um soneto, um dito, um sonho interessante, tudo dava de si uma crise. Quis ele deixar‐se morrer? Assim se poderia supor, ao ver a impassibilidade com que rejeitou os remédios dos principais médicos da Corte; foi necessário recorrer à simulação, e dá‐los, enfim, como receitados por um ignorantão do tempo. Mas era tarde. A morte levou‐o ao cabo de duas semanas.” A SERENÍSSIMA REPÚBLICA (Sátira política) Com sua contumaz ironia, o autor critica o sistema de governo humano, comparando a sua organização com as das aranhas. O cônego Vargas alega ter descoberto a organização social das aranhas “Senhores, vou assombrar‐vos, como teria assombrado a Aristóteles, se lhe perguntasse: Credes que se possa dar um regime social às aranhas? Aristóteles responderia negativamente, com vós todos, porque é impossível crer que jamais se chegasse a organizar socialmente esse articulado arisco, solitário, apenas disposto ao trabalho, e dificilmente ao amor. Pois bem, esse impossível fi‐lo eu.” Em seu favor, o cônego cita as autoridades científicas, negando‐lhes, porém, o materialismo “...tenho, entre eles, esta excelente monografia de Büchner, que com tanta subtileza estudou a vida psíquica dos animais. Citando Darwin e Büchner, é claro que me restrinjo à homenagem cabida a dois sábios de primeira ordem, sem de nenhum modo absolver (e as minhas vestes o proclamam) as teorias gratuitas e errôneas do materialismo.” O surgimento das aranhas “O primeiro exemplar dessa aranha maravilhosa apareceu‐me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão colorida, dorso rubro, com listras azuis, transversais, tão rápida nos movimentos, e às vezes tão alegre, que de todo me cativou a atenção. No dia seguinte vieram mais três, e as quatro tomaram posse de um recanto de minha chácara. (...) Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas; no mês seguinte cinqüenta e cinco; em março de 1877 contava quatrocentas e noventa.” A presença alienante dos líderes “A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram‐lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram‐me. E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com muita atenção e miudeza, lançando em um livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus pecados, e fortaleceram‐se ainda mais na prática das virtudes. A flauta também foi um grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, elas são doidas por música.” Concedendo‐lhes um modo de eleger seus governantes “Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam‐se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía‐se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. (...) A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu‐lhes um título magnífico, roçagante, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular.” Fabricando as urnas eleitorais “O fabrico do saco foi uma obra nacional. Era um saco de cinco polegadas de altura e três de largura, tecido com os melhores fios, obra sólida e espessa. Para compô‐lo foram aclamadas dez damas principais, que receberam o título de mães da república, além de outros privilégios e foros. Uma obra‐prima, podeis crê‐lo. O processo eleitoral é simples. As bolas recebem os nomes dos candidatos, que provarem certas condições, e são escritas por um oficial público, denominado "das inscrições". No dia da eleição, as bolas são metidas no saco e tiradas pelo oficial das extrações, até perfazer o número dos elegendos. Isto que era um simples processo inicial na antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos os cargos.” A fraude eleitoral “A eleição fez‐se a princípio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores declarou que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembléia verificou a exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de três polegadas de largura, tivesse agora duas; limitando‐se a capacidade do saco, restringia‐se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi‐la. Aconteceu, porém, que na eleição seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na competente bola, não se sabe se por descuido ou intenção do oficial público. Este declarou que não se lembrava de ter visto o ilustre candidato, mas acrescentou nobremente que não era impossível que ele lhe tivesse dado o nome; neste caso não houve exclusão, mas distração. A assembléia, diante de um fenômeno psicológico inelutável, como é a distração, não pôde castigar o oficial; mas, considerando que a estreiteza do saco podia dar lugar a exclusões odiosas, revogou a lei anterior e restaurou as três polegadas.” Hazeroth e Magog disputam vagas de magistrados que faleceram /A Disputa partidária “Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e três cidadãos apresentaram‐se candidatos ao posto, mas só dois importantes, Hazeroth e Magog, os próprios chefes do partido retilíneo e do partido curvilíneo. (...) Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; — outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, — é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado: — as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto‐curvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão política, o partido anti‐reto‐curvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma.” Nova fraude nas eleições “Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas saíram do saco, é verdade, mas foram inutilizadas, a do primeiro por faltar a primeira letra do nome, a do segundo por lhe faltar a última. O nome restante e triunfante era o de um argentário ambicioso, político obscuro, que subiu logo à poltrona ducal, com espanto geral da república...” Novas leis contra as fraudes “A devassa mostrou que o oficial das inscrições intencionalmente viciara a ortografia de seus nomes. O oficial confessou o defeito e a intenção; mas explicou‐os dizendo que se tratava de uma simples elipse; delito, se o era, puramente literário. Não sendo possível perseguir ninguém por defeitos de ortografia ou figuras de retórica, pareceu acertado rever a lei. Nesse mesmo dia ficou decretado que o saco seria feito de um tecido de malhas, através das quais as bolas pudessem ser lidas pelo público...” O processo eleitoral é fraudado / Mudanças na lei “...um certo Nabiga, que se conchavou com o oficial das extrações, para haver um lugar na assembléia. A vaga era uma, os candidatos três; o oficial extraiu as bolas com os olhos no cúmplice, que só deixou de abanar negativamente a cabeça, quando a bola pegada foi a sua. Não era preciso mais para condenar a idéia das malhas. A assembléia, com exemplar paciência, restaurou o tecido espesso do regime anterior; mas, para evitar outras elipses, decretou a validação das bolas cuja inscrição estivesse incorreta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o nome inscrito o próprio nome do candidato.” Nebraska e Caneca disputam uma vaga de coletor / Caneca perde, mas recorre “Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um certo Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe faltar a última letra; mas, cinco testemunhas juraram, nos termos da lei, que o eleito era o próprio e único Nebraska da república. (...) Caneca requereu provar que a bola extraída não trazia o nome de Nebraska, mas o dele. O juiz de paz deferiu ao peticionário. Veio então um grande filólogo, — talvez o primeiro da república, além de bom metafísico, e não vulgar matemático, — o qual provou a coisa nestes termos: a) a última letra omitida no nome de Nebraska, “ka” é, do ponto de vista fônico, a primeira sílaba do candidato derrotado Caneca; b) a primeira sílaba do nome do ganhador (Nebraska) é a continuação do nome do perdedor. Portanto, já temos CANE... c) “— Resta a sílaba do meio, bras, cuja redução a esta outra sílaba ca, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. E, todavia, não a demonstrarei, visto faltar‐vos o preparo necessário ao entendimento da significação espiritual ou filosófica da sílaba, suas origens e efeitos, fases, modificações, conseqüências lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas, simbólicas e outras.” Em virtude da confusão, novas leis são editadas “A lei emendou‐se, senhores, ficando abolida a faculdade da prova testemunhal e interpretativa dos textos, e introduzindo‐se uma inovação, o corte simultâneo de meia polegada na altura e outra meia na largura do saco. Esta emenda não evitou um pequeno abuso na eleição dos alcaides, e o saco foi restituído às dimensões primitivas, dando‐se‐lhe, todavia, a forma triangular. Compreendeis que esta forma trazia consigo, uma conseqüência: ficavam muitas bolas no fundo. Daí a mudança para a forma cilíndrica; mais tarde deu‐se‐lhe o aspecto de uma ampulheta, cujo inconveniente se reconheceu ser igual ao triângulo, e então adotou‐se a forma de um crescente, etc.” As “aranhas” são comparadas à Penélope “Encarregado de notificar a última resolução legislativa às dez damas incumbidas de urdir o saco eleitoral, Erasmus contou‐lhes a fábula de Penélope, que fazia e desfazia a famosa teia, à espera do esposo Ulisses. — Vós sois a Penélope da nossa república, disse ele ao terminar; tendes a mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência.” O ALIENISTA (discute os limites entre a razão e a loucura) Ambientado numa cidadezinha do interior fluminense, Itaguaí, no início do século XIX, esse conto tem como protagonista Simão Bacamarte, um grande cientista que decide investigar as fronteiras entre a razão e a loucura. Com essa finalidade, constrói um hospício, a Casa Verde, onde interna muitos moradores da cidade aparentemente normais. Para cada caso ele tem uma justificativa, chegando a prender amigos próximos e até a própria esposa. No final do conto, após ter internado no hospício quase toda a população da cidade, Simão Bacamarte conclui que a única pessoa diferente de todo mundo é ele mesmo. Liberta, então, a todos e se recolhe à Casa Verde, para se dedicar “ao estudo e à cura de si mesmo”. Simão Bacamarte, médico de Itaguaí, resolve dedicar‐se a pesquisas psiquiátricas e funda um hospital para cuidar dos dementes. Partindo do princípio de que qualquer atitude que foge à normalidade é sinal de loucura, começa a internar em sua clinica os cidadãos portadores de defeitos psíquicos. Mas, em breve tempo, esvazia‐se a cidade e lota‐se o hospício, pois a maioria sofre de desequilíbrio emocional. Verifica‐se, assim, a primeira peripécia, ao nível fabular: a ação consegue um resultado contrario do esperado, porque o médico constata com quase totalidade do povo sofre de loucura. Ora se o sintoma da demência é a anormalidade e é a maioria que fornece o parâmetro da regra, a dedução lógica é que a verdade está no contrário da sua teoria. Simão Bacamarte passa então, coerentemente, a considerar louca as poucas pessoas equilibradas, porque fogem da normalidade, cujo índice é o desequilíbrio emocional. Liberta, pois, a maioria e submete a minoria a um tratamento intensivo com a finalidade de conseguir que cada um, segundo sua tendência natural, pratique um vicio ou uma fraqueza, que o equipare à maioria. Em pouco tempo essa minoria é curada, porque não é difícil conseguir a prática interna no manicômio a si próprio único exempla irredutível de equilíbrio emocional. Dá‐se, assim, a segunda peripécia, desta vez ao nível da caracterização das personagens e da inversão dos valores ideológicos: o medico se torna paciente e os que reputa doidos lhe ensinam que a loucura reside em querer que os homens, vitimas de uma série de limitações biológicas e sociais, sejam imunes a paixões e contradições. A alienação é, portanto, um fenômeno social e não individual. Contraditoriamente, é a lucidez mental sintoma de loucura, pois faz com que o homem, na tentativa de ser autêntico e coerente com os postulados ideológicos, se isole da maioria que vive segundo a opinião, o parecer. A nosso ver, esse conto machadiano expressa em forma de arte a tese de que o homem verdadeiramente lúcido é um louco, porque é anormal. (Salvatore D’Onofrio. Teoria do texto – Prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1995) O ALIENISTA A primeira edição em livro de O Alienista é de 1882, quando aparece incorporado ao volume Papéis Avulsos. Anteriormente havia sido publicado em "A Estação" (Rio de Janeiro), de 15 de outubro de 1881 a 15 de março de 1882. É dessa época também o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas que se tornaria um verdadeiro ponto de irradiação da obra da segunda fase de Machado de Assis. O Alienista, sem dúvida, apresenta bastantes pontos de contato com esse romance monumental. CONTO ou NOVELA? Para muitos críticos, O Alienista se classifica como uma novela; sem dúvida, levados pelo número de páginas que em algumas edições, chega a mais de oitenta. "Outros, conduzidos pela análise íntima da narrativa", como observa o crítico Massaud Moisés, "classificam‐na entre os contos machadianos, no que estão certos" – conclui o crítico " (in O Alienista, Ed. Cultrix. S.P., 1966, p. 174). PERSONAGENS Para um conto, há personagens demais em O Alienista. Mas, é evidente que a ação se desenvolve em torno do Dr. Simão Bacamarte, não passando as outras de personagens referenciais. Vamos fazer, a seguir, uma relação das principais: Dr. Simão Bacamarte: é o protagonista da estória; morador de Itagaí. A ciência era o seu universo – o seu "emprego único", como diz. "Homem de Ciência, e só de Ciência, nada o consternava fora da Ciência. Entregou‐se de corpo e alma ao estudo da ciência”. Representa bem a caricatura do despotismo cientificista do século XIX (como está no próprio sobrenome). Acabou se tornando vítima de suas próprias idéias, recolhendo‐se à Casa Verde por se considerar o único cérebro bem organizado de Itaguaí. D. Evarista: é a eleita do Dr. Bacamarte para consorte de suas glórias científicas. Embora não fosse "bonita nem simpática", o doutor a escolheu para esposa porque ela "reuni condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem,digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso e excelente vista; estava assim apta para dar‐
lhes filhos robustos, são e inteligentes". Chegou a ser recolhida à Casa Verde, certa vez, por manifestar algum desequilíbrio mental. Crispim Soares: era o boticário. Muito amigo do Dr. Bacamarte e grande admirador de sua obra humanitária. Também passou pela Casa Verde, pois não soube "ser prudente em tempos de revolução", aderindo, momentaneamente, à causa do barbeiro. Padre Lopes: era o vigário local. Homem de muitas virtudes, foi recolhido à Casa Verde por isso mesmo. Depois foi posto em liberdade porque sua reverendíssima se saiu muito bem numa tradução de grego e hebraico, embora, ironicamente, não soubesse nada dessas línguas. Foi considerado normal apesar da auréola de santo. Porfírio, o barbeiro: sua participação no conto é das mais importantes, posto que representa a caricatura política na satírica machadiana. Representa bem a ambição de poder, quando lidera a rebelião que depôs o governo legal. Foi preso na Casa Verde duas vezes; primeiro, por ter liderado a rebelião; segundo, porque se negou a participar de uma Segunda revolução: "preso por ter cão, preso por não ter cão". Outros figurantes aparecem no conto. Cada um representando anomalias e possíveis virtudes do ser humano. Há loucos de todos os tipos no livro. Daí a presença de tanta gente... IMPORTANTES PONTOS DO ENREDO CAPÍTULO I(De como Itaguaí Ganhou uma Casa de Orates) A verdade e o tempo “As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos...” O poder político e o poder científico “o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas... não podendo el‐rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia. — A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.” Um casamento com bases científicas “Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, e não bonita nem simpática... reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar‐lhe filhos robustos, sãos e inteligentes...” Desiludido por não ter filhos, dedica‐se ao estudo da loucura – surge a Casa Verde CAPÍTULO II (Torrente de Loucos) A Casa Verde fica lotada em pouco tempo “Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou‐se anexar uma galeria de mais trinta e sete.” Experimentos científicos O doutor Bacamarte procede “a uma vasta classificação dos enfermos; Dividiu‐os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo acurado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade (...)”. CAPÍTULO III (Deus Sabe o que Faz) Jogo de interesses D. Evarista lamenta a solidão e culpa os lunáticos que absorvem a atenção do marido: “... atreveu‐se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como dantes. E acrescentou: ‐ Quem diria nunca que uma dúzia de lunáticos...”. Muda de idéia ao perceber quanto dinheiro o marido possui: “Deus! eram montes e montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados (...) Ela comia o ouro com os seus olhos negros”, com a certeza de que o marido vai financiar sua viagem ao Rio de Janeiro: “‐ Consinto que que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro. (...) Dou‐lhe o Rio de Janeiro, e consola‐se”. Paródia de D. Quixote Todos choram diante da partida de D. Evarista e a sua comitiva, menos o Dr. Simão Bacamarte: “As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista”. “E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.” CAPÍTULO IV (Uma Teoria Nova) A matraca (mídia da época) fazendo a cabeça das pessoas Por exemplo, um dos vereadores, ‐ aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde, desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador, afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema”. CAPÍTULO V (O Terror) O terror se instala. Dr. Simão recolhe pessoas sãs à Casa Verde “Quatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa fora recolhido à Casa Verde. (...) Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaquaí”. Crítica à bajulação. Crispim Soares e Martim Brito “Crispim Soares derretia‐se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos atônitos, era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande homem e das grandes coisas...” “Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. Deus, disse ele, depois de dar o universo ao homem e à mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista." CAPÍTULO VI (A Rebelião) As internações continuam, inclusive da esposa do Alienista. O barbeiro Porfírio comanda uma rebelião “Cerca de trinta pessoas ligaram‐se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação à Câmara”, que “recusou aceitá‐la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública”. CAPÍTULO VII (O inesperado) Canjicas X Dragões Os Dragões da Independência socorrem o Dr. Simão Bacamarte. A rebelião está dominada até que, inesperadamente, um terço dos Dragões passam para o lado dos Canjicas. Porfírio assume o poder mas não prende o Dr. Bacamarte. Amigos abandonam o Dr. Simão “O barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entravam na sala da vereança, e intimava à Câmara a sua queda. A Câmara não resistiu, entregou‐se, e foi dali para a cadeia. Então os amigos do barbeiro propuseram‐lhe que assumisse o governo da vila, em nome de Sua Majestade. Porfírio aceitou o cargo...”. CAPÍTULO VIII (As Angústias do Boticário) O boticário fica aterrorizado com a ida de Porfírio à casa do Dr. Bacamarte “ – Lá vai o Porfírio à casa do Dr. Bacamarte, disse‐lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da cama; vai acompanhado de gente. “vai prendê‐lo”, pensou o boticário”. CAPÍTULO IX (Dois Lindos Casos) O alienista acreditava na destruição da Casa Verde “O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento do hospício, a prisão dele, o desterro, tudo, menos...”. Cientificamente, os dois lindos casos patológicos “Eis aí os dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos”. CAPÍTULO X (A restauração) A ordem é restabelecida. Dr. Bacamarte interna Porfírio e mais uma infinidade de pessoas “Entrou na vila uma força mandada pelo vice‐rei, e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfírio, e bem assim de uns cinqüenta e tantos indivíduos”. CAPÍTULO XI (O Assombro de Itaguaí) Liberação de todos os reclusos na casa de saúde “... declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde. (...) O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos”. CAPÍTULO XII (O Final do 4º.) Dr. Bacamarte chega a uma nova conclusão científica: loucos são os sensatos. “Os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara plenamente ajuizados, sentiram‐se tomados de profundo reconhecimento e fervido entusiasmo”. CAPÍTULO XIII (Plus Ultra) Sendo o equilíbrio mental um sinal de loucura, o Dr. Simão vai liberando todos que são considerados desequilibrados. Ficando sozinho, já que não havia mais ninguém “equilibrado” em Itaguaí, o Alienista se tranca e morre buscando a cura pessoal. “ – Simão! Simão! meu amor! dizia‐lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas. Mas o ilustre médico, com olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou‐se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada”. CONTO DE ESCOLA (corrupção e delação) Um garoto, Pilar, como quase todos os meninos, odeia ir à escola. Prefere brincar na rua. No entanto, é aplicado e bom aluno. Um dia, um colega de sala, Raimundo, o filho do mestre‐escola, lhe faz uma proposta: oferece uma moeda em troca da lição. O colega Curvelo entra em ação e delata os dois colegas ao mestre. Depois desse dia, a visão de mundo de Pilar vai mudar muito. Conto que segue a tradição do estilo delicioso com que Machado de Assis se apresenta como memorialista. O narrador‐protagonista, Pilar, se considera um garoto de inteligência superior à dos seus companheiros de sala: “Custa‐me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção”. O problema é que o seu comportamento não é nada recomendável, principalmente pelo fato de estar acostumado a cabular aula. No momento tratado pela narrativa, só não tinha ido cabular porque havia apanhado do pai, que descobrira essa falha: “Na semana anterior tinha feito dois suetos, e descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. A rispidez com que são tratadas as crianças está na escola e dentro de casa: “As sovas do meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante”. Na sala de aula, entediado por já ter terminado a lição muito antes dos outros, recebe uma proposta de Raimundo, filho do professor Policarpo: em troca de umas explicações de sintaxe, daria uma moedinha de prata. Tudo às escondidas, já que o professor era extremamente severo, muito mais com o seu próprio filho, que, segundo Pilar, “era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinqüenta minutos”. O problema é que outro aluno, Curvelo, flagrou a transação e a denunciou ao professor, que reage: “ – Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! Clamou. O castigo foi severo: “Estendi‐lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze”.. Tremenda humilhação diante dos colegas: “Eu por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós”. O professor indignado atira a moedinha pela janela: “Ele examinou‐a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou‐a à rua”. Curvelo foge ao final da aula para se safar da vingança de Pilar. No dia seguinte, ainda preocupado com a moedinha (tinha esperança de encontrá‐la), “De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez‐me vestir depressa”. Pilar é atraído pelo som do tambor e pela marcha de um pelotão que destilava animado: “afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, cheio que cantarolando”. Nesse passeio, esquecido da escola, Pilar vai parar na Praia da Gamboa, de onde “voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento da alma”. Contudo, ficou a lição. Segundo Pilar “foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção (Raimundo) outro da delação (Curvelo). SINTESE ESQUEMÁTICA DE CONTO DE ESCOLA Personagens em situações: dilemas humanos atemporais; decisões que envolvem valores como a obrigação, o dever, a responsabilidade, a solidariedade, a amizade. Debate sobre contra‐valores como corrupção, delação e autoritarismo (dos mestres). Dilemas do cotidiano aflorando a essência da realidade humana. Uma essência permeada por conflitos de natureza moral, inerente à nossa vida em sociedade. Narrador adulto, maduro contando sua experiência, as impressões que o marcaram como aluno quando criança. Narrativa estruturada a partir dos pares: morro/escola, facilidade/dificuldade, ter/não‐ter, verdade/mentira, certo/errado. Primeiro dilema do protagonista – decidir entre o dever de ir à escola e os seus ímpetos infantis de ir brincar no morro. A decisão de Pilar de ir à escola (aparentemente resolve o dilema) é conseqüência das lembranças dos castigos que sofria do pai (rigidez do patriarca). A decisão leva à tortura: estar na escola com o “livro de leitura e a gramática nos joelhos” e “o campo e morro” na mente – prisão VERSUS liberdade. A decisão de Pilar (ir à escola) corresponde ao que se esperavam dele a sociedade e o pai. As normas da sociedade estão acima da felicidade pessoal (brincar no campo, no morro durante às aulas não é uma atitude moral). Drama de Raimundo: escapar aos castigos do mestre (seu pai, Policarpo) devido às dificuldades que tem na lição. Raimundo encontra a solução para seu drama: suborna Pilar ‐ uma moeda em troca da lição. Começa um jogo de sedução: o fraco (Raimundo) seduz o forte (Pilar) Segundo dilema de Pilar: decidir entre ter ou não ter a moeda em troca da lição. O desejo e a vontade podem “iludir” a razão ou colocá‐la em segundo plano – Pilar é envolvido, fica cego e decide aceitar a moeda. Pilar é um menino sem “virtudes”, aos olhos da sociedade, está na contra‐mão da moral ou virtude social. Drama de Pilar diante dos castigos do mestre, humilhação diante dos colegas. Sentimento de vergonha e sua relação com a moralidade humana. Pilar não ousava fitar ninguém, sentia vergonha pela ação imoral, pela exposição pública e pelo olhar dos colegas sobre ele – a vergonha como reguladora da moral. O desejo de vingança contra Curvelo, devido a delação. Desfecho pacífico, em liberdade, com prazer, sem ressentimento. O ENFERMEIRO (ingratidão – ser X parecer) Narrado em primeira pessoa: “Parece‐lhe então que o que se deu comigo em 1860 pode entrar numa página de livro?”, conta‐nos a história de Procópio, homem pobre do Rio de Janeiro, “que copiava os estudos de teologia de um padre”, aceita o emprego bem remunerado de enfermeiro do rico coronel Felisberto, rabugento, exigente, insuportável, que vive sozinho numa cidade do interior: “Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos”. O protagonista suporta pacientemente as ofensas físicas e morais do irascível e prepotente coronel que “gastava mais enfermeiros que remédios. A dois deles quebrou a cara”. Apesar disso, Procópio vive “uma lua de mel de sete dias”. Somente a partir do oitavo dia, “entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão, não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias”. Segundo o narrador, o coronel “era mau e, deleitava‐se com a dor e a humilhação dos outros”. A relação entre Procópio e o coronel é tensa, marcada por arranhaduras: O coronel “pegou da bengala e atirou‐me dois ou três golpes. Não era preciso mais; despedi‐me imediatamente, e foi aprontar a mala. Ele foi ter comigo, ao quarto, pediu‐me que não valia a pena zangar‐se por ma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei”. Por um tempo, as bengaladas diminuem, “mas as injúrias ficaram as mesmas, se não piores”. Procópio vai se acostumando: “fui calejando, e não dava mais por nada; era burro, camelo, pedaço d’asno, idiota, moleirão, era tudo”. O narrador pensa muitas vezes em ir embora, mas ia ficando por uma ou outra razão, mesmo tendo perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão” do coronel. Numa certa noite, “ameaçou‐me de um tiro, e atirou‐me um prato de mingau, que achou frio, o prato foi car na parede onde se fez em pedaços”. Passado esse momento, o enfermeiro pega de um livro e vai ler e “tinha de acordá‐lo à meia noite para lhe dar o remédio. Procópio adormece e só acorda “aos gritos do coronel (...) ele parecia delirar, continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá‐la contra mim (...) A moringa bateu‐me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei‐me ao doente, pus‐lhe as mãos ao pescoço, lutamos e esganei‐o”. Percebendo que o velho estava morto, restava ocultar o crime: “Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu”. Procópio entra em crise: “Era um atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia‐me que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas. (...) digo‐lhe que ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino!” (...) vi três ou quatro vultos de pessoas, no terreiro espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos esvaíram‐se no ar; era uma alucinação”. Agora é preciso fazer crer que a morte foi natural; “urgia fazer desaparecer os vestígios dele (...) Vi no pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo a ponto do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse‐lhe que o coronel amanhecera morto. (...) Eu mesmo amortalhei o cadáver, com o auxílio de um preto velho e míope”. A habilidade de Procópio no jogo da aparência começa a surtir efeito ainda no velório: “fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, disse a outra com piedade: ‐ Coitado do Procópio! apesar do que padeceu está muito sentido”. Mais tarde, quando o testamento do coronel se torna publico, é informado de que foi designado como herdeiro universal, mas “cogitei em recusar a herança, (...)” mas “no fim dos três dias, assentei num meio‐termo; receberia a herança e dá‐la‐ia toda, aos bocados e às escondidas” . o tempo vai deixando a mente de Procópio cinzenta: “Crime ou luta? Realmente, foi uma luta em que eu, atacado, defendi‐me (...) uma fatalidade”. O enfermeiro apega‐se às idéias de que a morte do coronel foi “uma fatalidade” e que a vida daquele homem era “um molambo de vida”. Nesse sentido, passa a usufruir da herança. Nesse conto, a ironia do destino, expressa através da técnica narrativa da peripécia, está presente várias vezes. 1) O processo de melhorar (adquirir dinheiro), iniciado por Procópio, tem como primeiro resultado uma degradação (aniquilamento de sua personalidade pelos maus‐ tratos do coronel). 2)Procópio que, na sua função de enfermeiro, fora à vila com a intenção de ajudar o coronel a sobreviver, sem querer causara‐lhe a morte. É a concepção trágica da existência humana, pela qual a força do destino subverte os desígnio do livre‐arbítrio. A essência do trágico reside na coexistência, no mesmo ato de, dois sentimentos opostos, a culpabilidade e a inocência: Procópio é culpado porque matou e é inocente porque não tivera a intenção de matar. 3)Procópio, que mata o coronel para livrar‐se , inconscientemente, de sua tirania, acaba assassinando seu bem feitor e entra mais rapidamente em posse da herança a ele predestinada. 4)O coronel que ao nível do “ser” é uma vitima, ao nível do “parecer” ( perante a opinião publica) é considerado um algoz, pois escraviza seu empregado. 5) Procópio, inversamente, ao nível de ser um assassino e ao nível de parecer é uma vitima. A hipocrisia desse “herói” machadiano faz com que a sociedade humana elogie os malvados e conspurque a memória dos justos: “Toda a gente me elogiava a dedicação e a paciência”. 6) Enfim a inversão ao nível dos valores ideológicos: ao provérbio que afirma que “o crime não compensa”, o conteúdo colocado no fim deste conto machadiano sugere o contrário: o crime compensa pois o protagonista goza da herança deixada por sua vitima e conclui: “Bem aventurados os que possuem, porque eles serão consolados”. O sentimento de gratidão ensejaria que Procópio se auto‐acusasse do crime, para fazer justiça à memória do coronel. Isso não acontece porque, segundo a axiologia machadiana, é a hipocrisia a norma do comportamento social. Machado afirma, alhures, que “o pecado, depois do pecado, é a revelação do pecado”. A gratidão, portanto, é tratada, nessa como em outras narrativas machadianas, segundo o modo irônico, afirmando‐se a realidade de seu contrário, que é a ingratidão. (Salvatore D’Onofrio. Teoria do texto – Prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1995‐ adadptado) NOITE DE ALMIRANTE Analisemos os recursos passionais mais importantes presentes neste conto. É um conto bastante complexo do ponto de vista dos estados de alma nele desenvolvidos. O marinheiro Deolindo, ao voltar de uma longa viagem de instrução, levava um grande ar de felicidade nos olhos, porque uma noite de almirante (= uma grande noite, uma noite muito especial) o esperava em terra. Três meses antes de começar a viagem, conhecera Genoveva, ambos apaixonaram‐se perdidamente e ele partira em viagem depois de um juramento de fidelidade. Temos aqui uma situação de espera: Deolindo crê que Genoveva lhe é fiel e que, logo, ele poderá usufruir do amor que ela lhe dedica. A espera não é tensa, pois Deolindo não apresenta o estado de alma de aflição. Ao contrário, é relaxada, pois o marujo está feliz. A felicidade é um efeito de satisfação produzida pela crença na possibilidade de que Genoveva cumpriria o contrato e de que o amor de ambos se realizaria. Quando Deolindo chega à casa em que morava Genoveva, a velha Inácia diz‐lhe que ela estava com outro, morando na Praia Formosa. Altera‐se, então, o estado de alma do marinheiro. Agora, sabe que Genoveva não cumpriu o contrato, que não o amava mais. De sujeito crédulo e confiante passa a insatisfeito e decepcionado. Esse sentimento evolui para a raiva. Passa a querer fazer mal a quem lhe infligiu o sofrimento que sente. Começa a maquinar uma vingança: As idéias maravilham‐lhe no cérebro, como em hora de temporal, no meio da confusão de ventos e apitos, entre elas rutilou a faca de bordo, ensangüentada e vingadora. Quando o marujo chega à Praia Formosa, Genoveva recebe‐o com maneiras francas. Diante disso, Deolindo volta a ter esperança, reassume a confiança, pois podia não ser verdade o que ficara sabendo ou poderia não mais estar com o outro. Genoveva, no entanto, não manifesta nenhuma comoção nem intimidade, ou seja, mantém‐se indiferente e distante. Diante desse estado de alma, Deolindo deixa de crer na possibilidade de ter o amor de Genoveva, perde a esperança. Com isso, ressurge o desejo de vingar‐se: Em falta de faca, gastavam‐lhe as mãos para estrangular Genoveva. Contém se desejo e diz‐lhe que sabe tudo. Ela não mente. Deolindo tem um ímpeto, a cólera, e com ela o desejo de vingança aflora novamente. Genoveva pára‐o com os olhos, diz‐lhe que, se lhe abrira a porta, é porque contava que era homem de juízo, isto é, que não se deixava levar por paixões momentâneas e violentas. Em seguida, conta‐lhe do amor que sentira por ele, mas diz que seu coração mudara. Altera‐se o objeto de seu querer. Sai cabisbaixo e lento, sem o ímpeto anterior. Seu estado de alma é de infelicidade, gerada por saber que alguma coisa que deseja é impossível. Mas, nesse momento, que é impossível? A resposta virá em seguida. Genoveva entrou em casa alegre e barulhenta. Tinha a satisfação pelo fato de saber que Deolindo a amava e lhe fora fiel. Conta à amiga que ele dissera que iria suicidar‐se. De certa forma, suicidar‐se era realizar a vingança desejada, pois infligiria a Genoveva a dor do remorso, reequilibrando, assim, a situação passional: faria sofrer aquela que é responsável pelo seu sofrimento. A vingança é, então, o desejo de infligir dor equivalente à sentida. Diante do espanto da amiga, Genoveva mostra que sabe que ele não é capaz de fazer o que prometera, pois ele não é dotado das paixões fortes que levam um sujeito a vingar‐se. Ao contrário, é dotado apenas das paixões fracas da malevolência, em que um sujeito quer fazer o mal, mas não passa à ação. Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as cousas, mas não faz. Você verá que não se mata. No dia seguinte, diante de seus colegas, Deolindo manifesta o estado de alma da satisfação, derivado do saber que o que ele desejava se realizou. Nota, no entanto, o narrador que se trata de uma mentira: Deolindo parece satisfeito, mas não está, a aparência não corresponde à realidade. Por que mentiu? Porque parece que teve vergonha da realidade. Vergonha é, “um sentimento penoso de inferioridade, de indignidade ou de humilhação diante de outrem, de rebaixamento na opinião dos outros”. Deriva da reprovação própria ou alheia, quando alguém, que aceita plenamente as normas do grupo social, não age de acordo com elas ou quando não possui as qualidades exigidas para um papel que deveria exercer. A vergonha é uma paixão da ordem do saber: um sujeito sabe que agiu em desacordo com as normas do grupo social ou não possui certas qualidades que deveria ter. É importante que o sujeito aceite, como um ideal a ser seguido, essas normas sociais ou o perfil que se exige dele, pois, se não dá nenhuma importância a eles, não será atingido pelo sentimento de vergonha. Se um sujeito viola ostensivamente comportamentos sociais, pois não lhes dá nenhuma importância, podemos ter a insolência, o atrevimento, não a vergonha. Voltemos a Deolindo. Diz o narrador: A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos companheiros bateram‐lhe no ombro, cumprimentando‐o pela noite de almirante, e pediram‐lhe noticias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na ausência dele etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir. A vergonha opera sob o signo do segredo. Ele não parece infeliz, mas está. Avalia negativamente o fato de não ter conseguido realizar sua vingança. Por que não o fez? Porque não foi capaz, não tem qualidades necessárias para passar do desejo de vingança à ação. No entanto, nas normas sociais que, naquele tempo, regiam as relações homem/mulher, um homem deveria matar a mulher que o traíra. Deolindo é dotado, porém, apenas das paixões fracas do querer. Não age, portanto de acordo com as expectativas do grupo social. Para não permitir que sua vergonha seja exposta, opta pela mentira, por aparentar o que não é. Na aparência, mostra a satisfação; no íntimo, sente insatisfação e decepção. A decepção, no entanto, não é com Genoveva, mas consigo mesmo, pois não fora capaz de responder à traição conforme a expectativa de seu grupo. (FIORIN, José Luiz & SAVIOLI, Francisco Platão – Lições de texto: leitura e redação. 4. ed. São Paulo: Ática, 1999) A IGREJA DO DIABO (contradições humanas) (indivíduo X sociedade) O conto narra que o Diabo, sentindo‐se inferiorizado, teve a idéia de fundar uma igreja: “Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja” (De uma idéia mirífica – CAPÍTULO I), cujos preceitos fossem exatamente opostos aos da Igreja cristã: “Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí‐las de uma vez”. O diabo quer exclusividade: “a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero”. Considerando que todas as virtudes pregadas pela religião eram maculadas pela coexistência de vícios, o demônio quis elevar os defeitos a norma de vida, passando então as antigas virtudes a serem consideradas como pecados. Em suma, (Entre Deus e o Diabo – CAPÍTULO II) o Diabo propõe a inversão dos valores ideológicos, em nome da coerência com a realidade da vida, visto que as virtudes são praticadas apenas ao nível do parecer, pois, ao nível do ser, todo ato virtuoso contém um motivo inconfessável: a caridade oculta a falta de justiça, a castidade mascara um desejo recôndito de luxúria, etc. Enfim, para usarmos a imagem machadiana, todo “manto de veludo” (virtude) tem por remate “uma franja de algodão” (vício). Em outras palavras, o Diabo investe: “eu proponho‐me a puxá‐las por essa franja, e trazê‐las todas para a minha igreja; atrás delas virão as de seda pura”. A Deus que, para contestar a veracidade dessa afirmação, lhe cita o caso do ancião que, num naufrágio, oferece sua tábua de salvação a um casal de noivos, o Diabo responde: “A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar à vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê‐los”. O novo evangelho (A boa nova aos homens – CAPÍTULO III), pregado pelo Diabo, reabilita os antigos vícios (a soberba, a luxúria, a ira, a avareza, a inveja (quanto a esta última, “pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas”; etc.) e condena as antigas virtudes (a humildade, a economia, o amor etc.), cuja prática passa a ser considerada nociva ao progresso social e à felicidade individual. O Diabo incita as pessoas a segui‐
lo: “Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo. Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si”. A nova religião, por sua maior aderência com a natureza humana, obtém um rápido e estrondoso sucesso em todas as nações do mundo: “e elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina”.; até que, passada a euforia do primeiro momento, os homens começam a sentir saudades das antigas virtudes e as praticam às escondidas, como outrora praticavam os vícios. Dá‐se, portanto, novamente a inversão: “Longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. As capas de algodão” (os vícios) têm agora “franjas de seda” (as virtudes) (Franjas e Franjas – CAPÍTULO IV). “A descoberta assombrou o Diabo”. Decepcionado, o Diabo “voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno”, e ouve de Deus: “É a eterna contradição humana”, inclinado sempre a fazer o que lhe é proibido. Não existindo valores absolutos, o indivíduo afirma o direito à sua liberdade pela oposição aos valores socialmente aceitos. (Salvatore D’Onofrio. Teoria do texto – Prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1995 ‐ adaptado) A SENHORA DO GALVÃO A CARTOMANTE ADULTÉRIO “O triângulo amoroso, composto em geral de dois homens e uma mulher casada com um deles, é o esquema básico dos grandes romances de Machado de Assis, bem como de alguns de seus contos. O adultério, porém, nem sempre fica explícito. Às vezes é apenas insinuado, sugerido, e não é raro o leitor ficar na dúvida: existiu realmente a traição?” BAGNO, op. Citado, p. 09 “A minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando‐se e enganando‐me”. (Dom Casmurro) Conto que surpreende pela excelente estrutura narrativa, dividida em três partes. Na primeira, introdutória, fica‐se sabendo que Rita, dotada de espírito ingênuo, havia consultado uma cartomante, achando que seu amante, Camilo, deixara de amá‐la, já que não visitava mais sua casa. Desfeito o mal‐entendido, faz‐se um flashback que vai explicar como se montou tal relação. Camilo era amigo, desde longínqua data, de Vilela. Tempos depois, este se casa com Rita. A amizade estreita a intimidade entre Camilo e Rita, ainda mais depois da morte da mãe dele. Quando sente sua atração pela esposa do amigo, tenta evitar, mas, enfim, cai seduzido. Até que recebe uma carta anônima, que deixava clara a relativa notoriedade da sua união com a esposa do seu amigo. Temeroso, resolve, pois, evitar contato com a casa de Vilela, o que deixa Rita preocupada. Terminada essa recapitulação, vai‐se para a parte crucial do conto. Camilo recebe um bilhete de Vilela apenas com a seguinte mensagem: “Vem já, já”. Seu raciocínio lógico já faz desconfiar que o amigo havia descoberto tudo. Parte de imediato, mas seu tílburi (espécie de carruagem de aluguel que equivaleria, hoje, a um táxi) fica preso no tráfego por causa de um acidente. Nota uma estranha coincidência: está parado justamente ao lado da casa da cartomante. Depois de um intenso conflito interior, decide consultá‐la. Seu veredicto é dos mais animadores, prometendo felicidade no relacionamento e um futuro maravilhoso. Aliviado, assim como o tráfego, parte para a casa de Vilela. Assim que foi recebido, pôde ver, pela porta que lhe é aberta, além do rosto desfigurado de raiva de Vilela, o corpo de Rita sobre o sofá. Seria, portanto, a próxima vítima do marido traído. Note neste conto sua estrutura em anticlímax, pois tudo nele (já a partir da citação inicial da famosa frase de Hamlet: “há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”) nos prepara para um final em que o misticismo, o mistério imperaria. No entanto, seu final é o mais realista e lógico, já engendrado no próprio bojo do conto. Reforça esse aspecto o ritmo da narrativa, que é lento em sua maioria, contrastando com seu desfecho, por demais abrupto. E não se esqueça da presença de um quê de ironia nesse contraste entre corpo da narrativa e o seu final. Análise do enredo a) reconstituição da história O enredo de A CARTOMANTE se constrói em torno de um caso de adultério entre um moço e a esposa de seu melhor amigo. É a história da paixão entre Camilo (o moço) e Rita (a esposa de Vilela). A antiga amizade aumenta após o casamento de Vilela com Rita dando oportunidade ao adultério. Camilo percebe que Vilela está desconfiando e se afasta, mas Vilela lhe escreve pedindo que o visite com urgência. Indo para a casa de Vilela, Camilo consulta uma cartomante. Ele não acreditava muito nestas coisas, mas ficou feliz com as boas previsões e rumou para a casa de Vilela. Chegando lá, foi surpreendido com a figura de Rita morta e ensangüentada e recebe dois tiros à queima‐roupa. b) começo e epílogo da narrativa A narrativa começa repentinamente, isto é, sem introduções de ordem histórica. O início é um diálogo indireto: “Hamlet observa a Horácio que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa Sexta‐feira de novembro de 1869, quando este ria dela por ter ido na véspera a consultar uma cartomante.” O epílogo é totalmente inesperado, causando choque no leitor, que não imagina a rapidez do assassinato, já que Camilo estava tranqüilo após a consulta com a cartomante. “Ao fundo, sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou‐o pela gola e, com dois tiros de revólver, estirou‐o morto no chão.” c) andamento da ação A ação de A CARTOMANTE está organizada de modo a conduzir o leitor ao acontecimento trágico do final do conto, que é o seu clímax. Análise do tempo A história se passa no ano de 1869. Começa numa sexta‐feira do mês de novembro e progride para acontecimentos futuros imprevisíveis. Destacamos em A CARTOMANTE, dois tipos de tempo: a) o tempo cronológico Inicia no ano de 1869 e, vagamente se cita o fluir dos dias: “as ausências prolongaram‐se e as visitas cessaram inteiramente. Correram ainda algumas semanas.” b) o tempo psicológico Representado pela angústia, irritação e ansiedade de Camilo, a partir do momento em que passa a receber cartas anônimas. Esse tempo se acentua quando recebe o recado de Vilela, exigindo a sua visita. É um tempo de espera cuja vivência – uma guerra de nervos – deixa‐o em estado deplorável. “Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas ou então – o que era ainda pior – eram‐lhe murmuradas ao ouvido com a própria voz de Vilela. ‘Vem já, já, à nossa casa; preciso falar‐te sem demora’. Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia minuto a minuto. (...) o tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo.” Análise do espaço O lugar dos acontecimentos é a cidade do Rio de Janeiro da metade do século XIX. Alguns lugares já mudaram de nome (rua da Guarda Velha, rua dos Barbonos, rua das Mangueiras). Rita mora no bairro de Botafogo, mas o lugar mais importante é a casa de Vilela, local do drama. A casa da cartomante também é citada com alguns detalhes físicos: “A luz era pouca, os degraus comidos de pé, o corrimão pegajoso. (...) Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.” Há uma única referência à paisagem do Rio de Janeiro: “Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação de futuro, longo, interminável.” A análise dos personagens São quatro os personagens do conto: Vilela, Camilo, Rita e a cartomante. Vilela quase não aparece – a não ser pela carta e pelos tiros – e a cartomante, embora carregue em si uma força dramática grande e sirva para nomear o conto, mal tem ação. Nada sabemos do aspecto físico de Vilela, a não ser que tinha 29 anos e “o porte fazia‐o parecer mais velho que a mulher”. Camilo é “ingênuo na vida moral e prática”, tem 26 anos. Rita tem 30 anos e é “dama formosa e tonta”. A cartomante é “uma mulher de 40 anos, morena e magra, olhos sonsos e agudos”. As descrições dos personagens são mínimas, apenas o suficiente para desenvolver o drama. Resumindo: Um homem precocemente envelhecido (Vilela), é traído por sua mulher Rita (dama formosa e tonta), que se apaixona pelo seu amigo Camilo (um ingênuo). A cartomante, mulher experiente e esperta, ilude Rita e Camilo, que, ao final, são mortos pelo marido traído (Vilela). Análise do foco narrativo ou ponto de vista Narrado em 3ª pessoa, o conto A CARTOMANTE tem um relato objetivo e direto. A narração é onisciente, ou seja, o narrador conhece todos os passos, pensamentos e ações de todos os personagens. Ele está em todos os lugares, a qualquer hora. Às vezes, o narrador se intromete na narrativa para dar uma opinião (uma característica de Machado de Assis e do Realismo): “E digo mal, porque negar é ainda afirmar”. “Cuido que ia falar, mas reprimiu‐se”. “A velha cabeça de praça em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada”. Esses três momentos, em 1ª pessoa ou dirigindo‐se ao leitor, quebram a natureza distanciada que o resto do relato transmite. Análise da linguagem discurso direto – ocorre quando os personagens falam diretamente e é representado graficamente pelo travessão ( ‐‐‐ ); discurso indireto – ocorre quando o narrador resume a fala dos personagens dentro da narração; discurso indireto livre (monólogo interior) – ocorre quando os personagens falam consigo mesmos sem se dirigir a ninguém em particular. Em A CARTOMANTE estão presentes as três formas de diálogo, sendo que há uma predominância do discurso direto e do discurso indireto. O indireto livre é usado quando Camilo vive a sua ansiedade (durante o tempo psicológico) A descrição da natureza e do ambiente está quase ausente. Reduzindo‐se a breves comentários, sendo que a casa da cartomante mereceu maiores detalhes. COMENTÁRIO FINAL O conto A CARTOMANTE oferece uma visão – ainda que trágica – da pequena burguesia dos fins do século XIX, com seus casos e seus costumes. Naquela época era costume ir ao teatro, jogar dama e xadrez. A sociedade vigiava os indivíduos, zelava pelos “bons costumes”, por isso, para punir o adultério, enviava cartas anônimas. A ingenuidade feminina é ressaltada, por isso o destaque a ida de Rita à cartomante. Nota‐se que o casal Vilela‐Rita era infeliz, do contrário Rita não teria procurado uma compensação, tornando‐se amante de Camilo. O modo como Vilela resolve o problema mostra que, na maioria das vezes, o marido traído prefere “lavar” com sangue a sua honra, o que denota a sua total incompetência para resolver a questão de outra maneira. A CAUSA SECRETA (sadismo: essência VERSUS aparência) Fortunato é um homem estranho: tem hábitos cruéis, como torturar cães, gatos e ratos em casa, para desespero de sua mulher, Maria Luísa. O homem alega que faz tudo em “nome da ciência”. Os desdobramentos da história, porém, revelam que ele o faz por um prazer mórbido que tem pelo sofrimento alheio. Aqui, veremos como a figura de um sádico aparece socialmente como a de um benemérito, e como são sutis e variadas as formas de extrair prazer do sofrimento alheio. Essa narrativa trata da análise de uma alma estranha que se apraz dos sofrimentos alheios. O protagonista, Fortunato, socorre um desconhecido ferido e passa dias e noites cuidando de sua saúde; mas quando o homem, curado, vai agradecer os longos cuidados que teve para com ele, o protagonista o trata mal. Fortunato, mais tarde, para tratar e aliviar os sofrimentos dos doentes funda uma casa de saúde. Apesar de não ser médico, Fortunato cuida dos pacientes com uma dedicação fora do comum, assistindo as operações, fazendo os curativos, velando dia e noite ao cabeçal dos doentes que mais sofrem. Não satisfeito com essas atividades, o protagonista dedica‐se ao estudo da anatomia e da fisiologia, montando em sua residência um laboratório para fazer a autópsia de gatos e cães. Os guinchos dos animais atormentam sua esposa, de saúde delicada, mas ele não desiste. Um dia, a esposa e o jovem médico, Garcia, assistem ao espetáculo horripilante de Fortunato torturar um rato, queimando‐o lentamente e cortando‐lhe as patas, uma por uma, devagarinho, e lêem em sua fisionomia um imenso prazer: “Garcia, defronte, conseguira dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão‐somente um vasto prazer, quieto e profundo. (...) O rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou‐o para cortar‐lhe o focinho e pela última vez chegar a carne logo ao fogo. (...) Então, mostrou‐
se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida”. O leitor atento deve perceber a condição de analista do médico Garcia, que mergulha no mundo interior de Fortunato: “ – Castiga sem raiva, pensou o médico, pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia pode dar: é o segredo deste homem”. A esposa adoece e Fortunato, como é de seu costume, lhe presta a melhor assistência, estando perto dela em todos os momentos da longa agonia: “fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima”. A jovem morre e Fortunato descobre, por um beijo casto depositado na fronte da defunta, que o médico Garcia, amigo da família, amava secretamente sua esposa. Passa então a gozar da dor emocional do jovem pela morte da mulher amada: “Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa”. O que é interessante revelar nessa narrativa não é tanto a psique patológica do protagonista, pois o conteúdo significativo se encontra expresso claramente no próprio texto, segundo o costume machadiano: “Castiga sem raiva”, pensou o médico, “pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem”. Mais importante é apontar o uso da mesma técnica narrativa, observada em outros contos, para o tratamento também do tema do sadismo: a inversão ao nível fabular, pela qual os resultados das ações são contrários aos esperados e a expectativa do leitor é constantemente frustrada. Vejamos: 1)no episódio do moço ferido, enquanto o leitor esperaria a satisfação de Fortunato por ter conseguido a cura, este se revela aborrecido; quer dizer, quando o homem sofre ele é feliz, quando o homem sara ele é infeliz; 2)a finalidade da fundação da clínica é tratar dos doentes, mas o objetivo oculto é o oposto: ver os doentes sofrerem; 3)a descoberta do amor secreto do amigo por sua esposa, em lugar de levar Fortunato a um sentimento de ciúme, de raiva ou de vingança, serve como motivo de prazer, de vaidade face ao sofrimento do jovem pela morte da pessoa amada. O arranjo das ações expositivas do caso patológico confere ao relato uma estrutura artística. (Op. cit.) UNS BRAÇOS (sensualidade e dissimulação) SENSUALIDADE “Machado de Assis é considerado um grande criador de personagens femininas. Suas mulheres são freqüentemente misteriosas, enigmáticas, sensuais, dotadas de grande senso de percepção, capazes de manipular psicologicamente o mais astuto dos homens.” (BAGNO, Marcos. Machado de Assis para principiantes. Ed. Ática, 2ª. Edição, São Paulo. 1999) Neste conto, Machado apresenta a sensualidade e a sedução através dos personagens Inácio, um molecote de 15 anos e D. Severina, esposa de Borges, casal com quem vive o garoto. Durante o café da manhã o Borges ameaça Inácio: “— Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco!” Conto tocante que narra a descoberta do amor e de toda a sensualidade que cerca o descortinar desse mundo novo. É a história de Inácio, jovem de 15 anos que vai trabalhar como ajudante do ríspido solicitador (funcionário do Judiciário, algo entre procurador e advogado) Borges, morando na casa deste. É lá que acaba se encantando com os braços de D. Severina, companheira do seu patrão. Deve‐se lembrar que na época em que se passa a história, 1870, não era comum uma mulher exibir tal parte do corpo. Mas, antes que se pense que ela era despudorada, deve‐se lembrar que só o fazia por passar por certas dificuldades que tornava o seu vestuário falto de peças mais adequadas. Ainda assim, os breves momentos em que via a mulher e principalmente os braços dela eram, para Inácio, o grande alívio diante de um cotidiano tão massacrante. Até que um dia D. Severina percebe o interesse que desperta no moço. Demora a aceitar, pois considera‐o apenas uma criança. Mas, quando vê o homem já na forma do menino, entra num sentimento conflitante, misto de vaidade e pudor. Por isso oscila entre tratar mal o rapaz e mostrar preocupação com o seu bem‐estar. Até que num domingo ocorre a cena mais importante da história. D. Severina encontra Inácio dormindo na rede. Dá‐lhe um leve beijo na boca. A senhora não sabe que naquele exato instante o garoto sonhava com o beijo dela e ele não sabe que era beijado realmente enquanto estava mergulhado na fantasia do seu sono. Pouco tempo depois, Borges dispensa o garoto de forma admiravelmente amistosa. O menino não vê mais D. Severina, guardando a sensação daquela tarde como algo que não ia ser superado em nenhum relacionamento de sua existência. Inácio admira os braços de D. Severina “Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá‐los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo. Também a culpa era antes de D. Severina em trazê‐los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam‐lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar (...) De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar‐lhe o busto. (...) Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.” Inácio cogita em fugir da casa dos Borges “Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada. — "Deixe estar, — pensou ele um dia — fujo daqui e não volto mais." Não foi; sentiu‐se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. (...) No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.” D. Severina desconfia dos olhares de Inácio “D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma cousa Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.” A dissimulação de D. Severina O marido desconfia que há alguma coisa errada, mas D. Severina nega: “— Que é que você tem? disse‐lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa. — Não tenho nada. — Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos . . . D. Severina interrompia‐o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal.” D. Severina confirma os olhares do Inácio “Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem... concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava‐lhe um desgosto, e outro à pobre criança.” A ambigüidade de D. Severina “...assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.” O “sonho” de Inácio “D. Severina tratava‐o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho (...) Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria (...) A agitação de Inácio ia crescendo (...) Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória.” “Um domingo, — nunca ele esqueceu esse domingo, — estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina (...) Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou‐se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler (...)Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu‐a desprender‐se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços.” D. Severina procura Inácio “D. Severina (...) estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu‐o descer; foi à janela vê‐lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. (...) Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando‐se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou‐a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve‐se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou‐se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou‐se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal. Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava‐se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude. D. Severina sentiu bater‐lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava‐lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. (...)E mirou‐o lentamente, fartou‐se de vê‐lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava‐o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá‐lo, viu que dormia profundamente. (...) D. Severina ter‐se‐ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter‐se‐ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar‐se, pegar‐lhe nas mãos, levá‐las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. (...). E tornando, inclinava‐se, pegava‐lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando‐se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou‐lhe um beijo na boca. Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram‐se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa.” Cheia de sentimentos de culpa, D. Severina evita Inácio “Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo (...) Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou‐lhe na alma e deu‐lhe um calafrio.” Inácio é enviado de volta à casa do pai Envergonhada pelo que fizera, D. Severina passa a evitar Inácio, cobre os braços e, por fim, decide pelo retorno de Inácio à casa do pai. “Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava‐lhe com tanta amizade! Como é que, de repente. . . Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana: E foi um sonho! um simples sonho!” MISSA DO GALO (sensualidade) O narrador começa contando que nunca pôde entender a conversa que teve com uma senhora, quando ele tinha dezessete anos, numa noite de natal em que havia combinado com um vizinho de irem juntos à missa do galo. O protagonista diz ter se hospedado em casa de Meneses, esposo de Conceição. Meneses costumava sair à noite e só chegava no dia seguinte, e o narrador confessa: Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação, isto é, Meneses traia a esposa: Trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Apesar da relação adúltera do marido, conceição padecera, a princípio, a esposa acaba por achar que é direito do marido, resignara‐se. Chamavam‐na de santa; não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar. Pode até ser que não soubesse amar. Meneses vai ao teatro. O narrador já estava de férias, mas ficara no Rio de Janeiro para ver “a missa do galo na Corte”. Nogueira, o narrador recorre à leitura de Os Três Mosqueteiros, a espera da hora da missa. É então que Conceição vai até a sala e começa um diálogo com Nogueira. O narrador desconfia que Conceição não dormira por sua causa, e a pedido dessa senhora cita livros que já havia lido, enquanto Conceição ouvia‐me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê‐los. Há um tom de insinuação, um certo ar de ambigüidade nos gestos – ações de Conceição. Quando o narrador sugere que já são horas e que vai sair, ela reage: ‐ Não, não ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Depois de tecer um elogio a Conceição, Nogueira admira os braços dessa senhora: tinha‐se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi‐lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderia supor. Extasiado, o narrador confessa: A presença de Conceição espertara‐me ainda mais que o livro. O tom de ambigüidade vai permeando a narrativa, visto que quando o narrador alterava um pouco a voz, ela reprimia‐me: ‐ Mais baixo! Mamãe pode acordar. Aquele parece ser, por excelência, um momento de eterno prazer para o narrador: E não saía daquela posição, que me enchia de gozo, tão perto ficavam as nossas caras. A conversa se alonga e o narrador vacila confessando a fragilidade das impressões daquela noite; uma porém, permanece fresca na mente do protagonista: em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. A conversa envolvente fazia o jovem esquecer a missa e a igreja. Finalmente, o vizinho grita do lado de fora: “Missa do galo! missa do galo!”. O narrador assiste a missa pensando na figura que deixara para trás: Durante a missa, a figura de Conceição interpôs‐se mais de uma vez, entre mim e o padre. Nogueira viaja para o interior, e quando retorna ao Rio de Janeiro fica sabendo que o escrivão tinha morrido de apoplexia e que Conceição se casara com o escrevente juramentado do marido. CAPÍTULO DOS CHAPÉUS Conto metonímico no qual a parte (o chapéu) é tomada pelo todo (o homem). Mariana representa a esposa submissa, romântica; Sofia, a esposa emancipada. Tempo cronológico: abril de 1879 Narração em terceira pessoa Mariana implica com o chapéu que o esposo (Conrado) usa... “...naquela singular manhã de abril, acabado o almoço, Conrado começou a enrolar um cigarro, e Mariana anunciou sorrindo que ia pedir‐lhe uma coisa. — Que é, meu anjo? — Você é capaz de fazer‐me um sacrifício? — Dez, vinte... — Pois então não vá mais à cidade com aquele chapéu. — Por quê? é feio? — Não digo que seja feio; mas é cá para fora, para andar na vizinhança, à tarde ou à noite, mas na cidade, um advogado, não me parece que...” Mariana é metódica, submissa, influenciada pelo meio “Conhecia a mulher; era, de ordinário, uma criatura passiva, meiga, de uma plasticidade de encomenda, capaz de usar com a mesma divina indiferença tanto um diadema régio como uma touca. A prova é que, tendo tido uma vida de andarilha nos últimos dois anos de solteira, tão depressa casou como se afez aos hábitos quietos. Saía às vezes, e a maior parte delas por instâncias do próprio consorte; mas só estava comodamente em casa. Móveis, cortinas, ornatos supriam‐lhe os filhos; tinha‐lhes um amor de mãe; e tal era a concordância da pessoa com o meio, que ela saboreava os trastes na posição ocupada, as cortinas com as dobras do costume, e assim o resto. Uma das três janelas, por exemplo, que davam para a rua vivia sempre meio aberta; nunca era outra. Nem o gabinete do marido escapava às exigências monótonas da mulher, que mantinha sem alteração a desordem dos livros, e até chegava a restaurá‐la. Os hábitos mentais seguiam a mesma uniformidade. Mariana dispunha de mui poucas noções, e nunca lera senão os mesmo livros: — a Moreninha de Macedo, sete vezes; Ivanhoé e o Pirata de Walter Scott, dez vezes...” A origem do metodismo de Mariana e as idéias naturalistas. “...o pai de Mariana veio à casa deles (...) ralado de saudades do tempo em que os empregados iam de casaca para as suas repartições (...) Acontecera‐lhe, porém, naquele dia, vê‐lo de relance na rua, de palestra com outros chapéus altos de homens públicos, e nunca lhe pareceu tão torpe. De noite, encontrando a filha sozinha, abriu‐lhe o coração; pintou‐lhe o chapéu baixo como a abominação das abominações, e instou com ela para que o fizesse desterrar. Conrado justifica o uso daquele chapéu. — A escolha do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é regida por um princípio metafísico. Não cuide que quem compra um chapéu exerce uma ação voluntária e livre; a verdade é que obedece a um determinismo obscuro. A ilusão da liberdade existe arraigada nos compradores, e é mantida pelos chapeleiros que, ao verem um freguês ensaiar trinta ou quarenta chapéus, e sair sem comprar nenhum, imaginam que ele está procurando livremente uma combinação elegante. O princípio metafísico é este: — o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça (...) ninguém o pode trocar sem mutilação. E uma questão profunda que ainda não ocorreu a ninguém. Os sábios têm estudado tudo desde o astro até o verme, ou, para exemplificar bibliograficamente, desde Laplace... Você nunca leu Laplace? desde Laplace e a Mecânica celeste até Darwin e o seu curioso livro das Minhocas, e, entretanto, não se lembraram ainda de parar diante do chapéu e estudá‐lo por todos os lados. Ninguém advertiu que há uma metafísica do chapéu (...) Quem sabe? pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu...” A ignorância feminina “Mariana venceu‐se afinal, e deixou a mesa. Não entendera nada daquela nomenclatura áspera nem da singular teoria; mas sentiu que era um sarcasmo, e, dentro de si, chorava de vergonha.” O marido sai com o dito chapéu e Mariana lembra amigas emancipadas “...se tivesse feito como tantas outras, a Clara e a Sofia, por exemplo, que tratavam os maridos como eles deviam ser tratados, não lhe aconteceria nem metade nem uma sombra do que lhe aconteceu. De reflexão em reflexão, chegou à idéia de sair. Vestiu‐se, e foi à casa da Sofia, uma antiga companheira de colégio, com o fim de espairecer, não de lhe contar nada.” Dize‐me com quem andas... Sofia tinha trinta anos, mais dois que Mariana. Era alta, forte, muito senhora de si (...) — Não seja tola, iaiá! Você tem sido muito mole com ele. Mas seja forte uma vez; não faça caso; não lhe fale tão cedo; e se ele vier fazer as pazes, diga‐lhe que mude primeiro de chapéu (...) Olhe a pamonha da Beatriz; não foi agora para a roça, só porque o marido implicou com um inglês que costumava passar a cavalo de tarde? Coitado do inglês! Naturalmente nem deu pela falta (...) Olhe; eu cá vivo muito bem com o meu Ricardo; temos muita harmonia. Não lhe peço uma coisa que ele me não faça logo; mesmo quando não tem vontade nenhuma, basta que eu feche a cara, obedece logo. Não era ele que teimaria assim por causa de um chapéu! Tinha que ver! Pois não! Onde iria ele parar! Mudava de chapéu, quer quisesse, quer não (...) Mariana ouvia com inveja essa bela definição do sossego conjugal. A rebelião de Eva embocava nela os seus clarins; e o contato da amiga dava‐lhe um prurido de independência e vontade. Para completar a situação, esta Sofia não era só muito senhora de si, mas também dos outros; tinha olhos para todos os ingleses, a cavalo ou a pé. Honesta, mas namoradeira; o termo é cru, e não há tempo de compor outro mais brando. Namorava a torto e a direito, por uma necessidade natural, um costume de solteira. Enquanto aguarda Sofia... “De uma das vezes que foi à janela, viu passar um rapaz a cavalo. Não era inglês, mas lembrou‐lhe a outra, que o marido levou para a roça, desconfiado de um inglês, e sentiu crescer‐lhe o ódio contra a raça masculina — com exceção, talvez, dos rapazes a cavalo (...) Os tacões de Sofia desceram a escada, compassadamente. Pronta! disse ela daí a pouco, ao entrar na sala. Realmente, estava bonita. Já sabemos que era alta. O chapéu aumentava‐lhe o ar senhoril; e um diabo de vestido de seda preta, arredondando‐lhe as formas do busto, fazia‐a ainda mais vistosa. Ao pé dela, a figura de Mariana desaparecia um pouco (...) O pior é que a outra dominava desde logo; e onde houvesse pouco tempo de as ver, tomava‐o Sofia para si. Este reparo seria incompleto, se eu não acrescentasse que Sofia tinha consciência da superioridade, e que apreciava por isso mesmo as belezas do gênero Mariana...” As “aulas” de Sofia. “Disse‐lhe que, embora fosse difícil, ainda era tempo de libertar‐se. E ensinava‐lhe um método para subtrair‐se à tirania. Não convinha ir logo de um salto, mas devagar, com segurança, de maneira que ele desse por si quando ela lhe pusesse o pé no pescoço. Obra de algumas semanas, três a quatro, não mais.” Acostumada à rotina, Mariana, se agonia com o movimento das ruas. “Chegaram à rua do Ouvidor. Era pouco mais do meio‐dia. Muita gente, andando ou parada, o movimento do costume. Mariana sentiu‐se um pouco atordoada, como sempre lhe acontecia. A uniformidade e a placidez, que eram o fundo do seu caráter e de sua vida, receberam daquela agitação os repelões do costume. Ela mal podia andar por entre os grupos, menos ainda sabia onde fixasse os olhos, tal era a confusão das gentes, tal era a variedade das lojas. Conchegava‐se muito à amiga, e, sem reparar que tinham passado a casa do dentista, ia ansiosa de lá entrar. Era um repouso; era alguma coisa melhor do que o tumulto.” Sofia caminha absoluta... “— Esta rua do Ouvidor! ia dizendo. — Sim? respondia Sofia, voltando a cabeça para ela e os olhos para um rapaz que estava na outra calçada. Sofia, prática daqueles mares, transpunha, rasgava ou contornava as gentes com muita perícia e tranqüilidade.” A prosopopéia: Mariana observa os chapéus... “E Mariana acudia a vê‐los, femininos ou masculinos, sem saber onde ficar, porque os demônios dos chapéus sucediam‐se como num caleidoscópio (...) Da janela podia gozar a rua, sem atropelo. Recostou‐se; Sofia veio ter com ela. Alguns chapéus masculinos, parados, começaram a fitá‐las; outros, passando, faziam a mesma coisa. Mariana aborreceu‐se da insistência; mas, notando que fitavam principalmente a amiga, dissolveu‐se‐lhe o tédio numa espécie de inveja. Sofia, entretanto, contava‐lhe a história de alguns chapéus, — ou, mais corretamente, as aventuras. Um deles merecia os pensamentos de Fulana; outro andava derretido por Sicrana, e ela por ele, tanto que eram certos na rua do Ouvidor às quartas e sábados, entre duas e três horas. Mariana ouvia aturdida. Na verdade, o chapéu era bonito, trazia uma linda gravata, e possuía um ar entre elegante e pelintra, mas...” Os “chapéus” observam Mariana e Sofia. “Havia agora mais três, de igual porte e graça, e provavelmente os quatro falavam delas, e falavam bem. Mariana enrubesceu muito, voltou a cabeça para o outro lado, tornou logo à primeira atitude, e afinal entrou.” O reencontro com o primeiro namorado. Entrando, viu na sala duas senhoras recém‐chegadas, e com elas um rapaz que se levantou prontamente e veio cumprimentá‐la com muita cerimônia. Era o seu primeiro namorado. Este primeiro namorado devia ter agora trinta e três anos. Andara por fora, na roça, na Europa, e afinal na presidência de uma província do sul. Era mediano de estatura, pálido, barba inteira e rara, e muito apertado na roupa. Tinha na mão um chapéu novo, alto, preto, grave, presidencial, administrativo, um chapéu adequado à pessoa e às ambições...” Confusa, Mariana retorna à janela. “...duas ou três vezes chegou a levantar‐se e ir à janela; mas os chapéus eram tantos e tão curiosos, que ela voltava a sentar‐se.” Na Câmara dos Deputados... “— Vamos à câmara? propôs ela à outra. — Não, não, disse Mariana; não posso, estou muito cansada. — Vamos, um bocadinho só; eu também estou muito cansada... Mariana teimou ainda um pouco; mas teimar contra Sofia, — a pomba discutindo com o gavião, — era realmente insensatez. Não teve remédio, foi (...) A alma de Mariana sentia‐se cada vez mais dilacerada de toda essa confusão de coisas.” A liberdade asfixia. Mariana deseja voltar para casa “Perdera o interesse da primeira hora; e o despeito, que lhe dera forças para um vôo audaz e fugidio, começava a afrouxar as asas, ou afrouxara‐as inteiramente. E outra vez recordava a casa, tão quieta, com todas as coisas nos seus lugares, metódicas, respeitosas umas com as outras, fazendo‐se tudo sem atropelo, e, principalmente, sem mudança imprevista.” Sofia paquera descaradamente... “Sofia sorriu, agitou o leque e recebeu em cheio o olhar de um dos secretários. Muitos eram os olhos que a fitavam quando ela ia à câmara, mas os do tal secretário tinham uma expressão mais especial, cálida e súplice. Entende‐se, pois, que ela não o recebeu de supetão; pode mesmo entender‐se que o procurou curiosa. Enquanto acolhia esse olhar legislativo ia respondendo à amiga, com brandura, que a culpa era dela, e que a sua intenção era boa, era restituir‐lhe a posse de si mesma.” Mariana se arrepende de ter irritado o esposo por causa do chapéu. “A dúvida começou mesmo a entrar nela. Tinha razão no pedido ao marido; mas era caso de doer‐se tanto? era razoável o espalhafato? Certamente que as ironias dele foram cruéis; mas, em suma, era a primeira vez que ela lhe batera o pé, e, naturalmente, a novidade irritou‐o.” De volta para casa. “...respirou quando viu que ia caminho de casa. Pouco antes de apear‐se a outra, pediu‐lhe que guardasse segredo sobre o que lhe contara; Sofia prometeu que sim. Mariana respirou. A rola estava livre do gavião. Levava a alma doente dos encontrões, vertiginosa da diversidade de coisas e pessoas. Tinha necessidade de equilíbrio e saúde. A casa estava perto; à medida que ia vendo as outras casas e chácaras próximas, Mariana sentia‐se restituída a si mesma. Chegou finalmente; entrou no jardim, respirou. Era aquele o seu mundo; menos um vaso, que o jardineiro trocara de lugar. (...) Depois de uma manhã inteira de perturbação e variedade, a monotonia trazia‐lhe um grande bem, e nunca lhe pareceu tão deliciosa. (...)Achou que, bem pesadas as coisas, a principal culpa era dela. Que diabo de teima por causa de um chapéu, que o marido usara há tantos anos? Também o pai era exigente demais... Mariana lê enquanto aguarda o marido “Sentou‐se ali mesmo com o Ivanhoe nas palmas, querendo ler e não lendo nada. Os olhos iam até o fim da página, e tornavam ao princípio, em primeiro lugar, porque não apanhavam o sentido, em segundo lugar, porque uma ou outra vez desviavam‐se para saborear a correção das cortinas ou qualquer outra feição particular da sala. Santa monotonia, tu a acalentavas no teu regaço eterno.” O marido chega com uma novidade “Enfim, parou um bond; apeou‐se o marido; rangeu a porta de ferro do jardim. Mariana foi à vidraça, e espiou. Conrado entrava lentamente, olhando para a direita e a esquerda, com o chapéu na cabeça, não o famoso chapéu do costume, porém outro, o que a mulher lhe tinha pedido de manhã. O espírito de Mariana recebeu um choque violento, igual ao que lhe dera o vaso do jardim trocado, — ou ao que lhe daria uma lauda de Voltaire entre as folhas da Moreninha ou de Ivanhoe... Era a nota desigual no meio da harmoniosa sonata da vida. Não, não podia ser esse chapéu. Realmente, que mania a dela exigir que ele deixasse o outro que lhe ficava tão bem? E que não fosse o mais próprio, era o de longos anos; era o que quadrava à fisionomia do marido... Conrado entrou por uma porta lateral. Mariana recebeu‐o nos braços.” — Então, passou? perguntou ele, enfim, cingindo‐lhe a cintura. — Escuta uma coisa, respondeu ela com uma carícia divina, bota fora esse; antes o outro.” CANTIGA DE ESPONSAIS Incluído no volume Histórias sem Data, publicado em 1884, Cantiga de Esponsais qualifica‐se entre as obras‐
primas de Machado de Assis em matéria de conto. Exemplo acabado do que seria essa forma literária, todo ele se estrutura, com um modelar economia de meio expressivos, em função do enigma contido no epílogo. Efetivamente, na circunstância de a recém‐casada entoar um símbolo que pode traduzir‐se do seguinte modo: para Machado, o cotidiano trivial reserva dramas intensos, embora anônimos ou sem voz; em segundo lugar, a felicidade da nubente corresponde ao encontro do inefável, que somente se comunica por vias indiretas ou obtusas, no caso representadas pelo cantarolar despreocupado. O contista parece descobrir, na moral que fecharia a história, que a vida não passa de “um vácuo atormentado, um sistema de erros” (Carlos Drummond de Andrade), preenchido pela ânsia de lograr um único objeto (plasmado na frase musical), que apenas se atingiria quando não fosse mais perseguido. Assim, a jovem é feliz porque ignora seu estado, mas conduz na garganta a expressão etérea dessa inconsciência, ao contrário do regente, que buscava exprimir a lembrança dum bem perdido pelo meio impróprio, a Arte. Esta, consistia na obsessiva procura de uma realidade inexprimível que a vida apenas permite surpreender involuntariamente: um abismo distancia as duas formas de estar‐aqui, confidencia‐nos, obliquamente, o narrador. De onde o ar de melancolia e desencanto que perlustra o conto, tão mais denso quanto mais antinômico da alegria incauta da jovem consorciada. Tal divergência revela que o drama do maestro, culminando no ouvir o trinado da vizinha, é desconhecido por todos quantos o cercam, inclusive o criado fiel (“trazia dentro de si muitas óperas e missas”, etc.). Mas nem por isso menos “real” ou menos profunda. Sem fazer introspecção, que conturbaria o andamento da narrativa, Machado sonda a intimidade de uma situação‐chave no continuum humano. Assim alcança a razoável parcela de objetivismo preconizado no tempo, dirigindo‐o para o mundo subjetivo. Realismo interior. (MOISÉS, Massaud – Literatura Brasileira Através dos Textos, Cultrix: São Paulo, 1984) UM HOMEM CÉLEBRE (entre a ambição e a vocação) A temática básica desse conto é a oposição entre vocação e ambição. Sua personagem principal, Pestana, é um famoso compositor de polcas, um estilo bastante popular de música de sucesso: “Tinha sido publicada (a polca) vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida”.. No entanto, seu grande sonho era produzir música erudita no nível dos grandes mestres, como Chopin, Mozart, Haydn. Por mais que se esforçasse, só conseguia compor o gênero popular: “Começou a tocar alguma coisa própria; uma inspiração real e pronta, uma polca buliçosa como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando‐as, meneando‐as”. Chega até a se casar com uma cantora lírica tísica, Maria, crendo que, convivendo com ela, finalmente teria a fatídica inspiração. Esforço inútil. Por fim, ela morre e pensa em compor para ela, já que estava imbuído da dor da perda, um réquiem. Outro fracasso. Espera conseguir inspiração para a missa de aniversário do falecimento, mas mais uma vez frustra‐se. É quando desiste e dedica‐se às polcas. Por fim adoece, não demorando muito para morrer em conseqüência de uma febre. De acordo com o próprio narrador, teve tempo para uma última piada. Seu editor vinha pedir uma polca em deferência à subida dos conservadores ao poder. O compositor disse que a faria e ainda deixaria outra pronta, para quando subissem os liberais. Há uma crítica que ainda é atual: o mercado está mais interessado em obras de qualidade fácil, que satisfazem de forma imediata e rasteira o gosto do público. Sintomático disso é o fato de o editor já ter títulos prontos para obras que ainda nem existem, aproveitando‐se de fatos do momento, da moda. Além disso, há um conflito interessante entre o efêmero (polca) e o eterno (música erudita), que pode ser também visto como entre o baixo e o sublime. EVOLUÇÃO (apropriação do discurso alheio) O CASO DA VARA (escravidão e egocentrismo) Damião foge do seminário, porque sabia que não seria um bom padre. Sabendo que seu pai o mandaria de volta ao seminário, procura Sinhá Rita, viúva que exercia grande influência sobre o padrinho de Damião, João Carneiro. Sinhá Rita exige que João Carneiro interceda junto ao pai de Damião para que este não volte mais ao seminário. Damião decide apadrinhar Lucrécia para livrá‐la dos castigos físicos, mas quando Sinhá Rita decide castigar a negrinha e pede a vara a Damião, este hesita; no entanto, entrega a vara para não perder credibilidade com Sinhá Rita e correr o risco de ter que voltar para o seminário. Fuga do seminário “Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta‐feira de agosto. Não sei bem o ano; foi antes de 1850”. Espantado pela rua “Não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo”. Indecisão após a fuga “Para onde iria? Para casa, não, lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. (...) Lembrou‐se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria coisa útil. Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor: ‐ Trago‐lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor”. A ajuda “‐ Vou pegar‐me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz‐lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...” Porque Sinhá Rita “Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias vagas dessa situação e tratou logo de a aproveitar”. Em casa de Sinhá Rita “Damião contou‐lhe tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu‐lhe que o salvasse”. Sinhá Rita recusa em princípio “Não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado. Damião viu‐se perdido. Ajoelhou‐se‐lhe aos pés, beijou‐lhe as mãos, desesperado”. Damião implora “Peço‐lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve‐me da morte, porque eu mato‐me, se voltar para aquela casa”. Sinhá Rita argumenta a favor do seminário “Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá‐lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse‐lhe ela”. Reação de Damião “Não, nada, nunca! redargüia Damião, abanando a cabeça e beijando‐lhe as mãos; e repetia que era a sua morte”. Sinhá Rita sugere que Damião fale com o padrinho “‐ Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...” Sinhá Rita decide intervir na situação “Não atende (...) Ora, eu lhe mostro se atende ou não... Chamou um moleque e bradou‐lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá‐lo, já e já”; Intrusão do narrador – comentário “Ela, para mascarar a autoridade com que lhe dera aquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara‐lhe algumas crias para ensinar”. Sinhá Rita tenta descontrair Damião “Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava‐lhe anedotas, e pedia‐lhe outras”. O riso de Lucrécia e a ameaça de Sinhá Rita “Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou‐a: ‐ Lucrécia, olha a vara! a pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume”. Damião resolve apadrinhar Lucrécia “Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá‐la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais ela rira por achar‐lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste”. Conversa de Sinhá Rita com João Carneiro “Disse‐lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim”. João Carneiro reage dizendo que castigará o afilhado. Mas Sinhá Rita se impõe: “‐ Qual castigar, qual nada! (...) Vá, vá falar a seu compadre. Ande, Senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo‐lhe que não volta... ‐ Mas minha senhora... ‐ Vá, vá.” Atente para o discurso ameaçador de Sinhá Rita para com João Carneiro. Esta passagem revela o poder que o ser feminino tem sobre os homens, a capacidade de manipular, aspecto recorrente na obra machadiana. João Carneiro conjetura saídas “Ah! se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução – cruel, é certo, mas definitiva”. João Carneiro não tendo outra saída, vai falar ao pai de Damião, todavia não consegue convencer o velho e comunica a Sinhá Rita a atitude furiosa e irredutível do velho. A resposta de Sinhá Rita é imediata: “Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos”. Lucrécia não termina a tarefa e será castigada “Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou‐se a ela, (...) agarrou‐
a por uma orelha. ‐ Ah! malandra! ‐ Minha senhora, me perdoe! Tossia a negrinha. ‐ Não perdoou, não. Onde está a vara?” Atitude egocêntrica de Damião “‐ Senhor Damião, dê‐me aquela vara, faz favor? Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou‐lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena. (...) A negrinha pediu‐lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado (...). ‐ Me acuda, meu sinhô moço! Cabe aqui uma reflexão acerca das atitudes humanas. As motivações de determinadas atitudes dentro de determinadas circunstâncias da vida em nosso próprio benefício. Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu‐se compungido, mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou a marquesa, pegou na vara e entregou‐a a Sinhá Rita”. PAI CONTRA MÃE (opressão em cadeia) A onça mato o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenso tanto melhor: eis o estatuto universal. (Memórias Póstumas de Brás Cubas) O narrador começa dando informações acerca do tempo da “escravidão que levou consigo ofícios e aparelhos. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; (...) A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. (...) aí ficavam dois pecados instintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Temos aqui a comovente e trágica história de Candido Neves e Arminda. Ele, protagonista do conto; homem sem profissão definida, que vive de expedientes, especialmente do ofício de encontrar, pegar e restituir ao dono os escravos fugidos, em troca de recompensas monetárias, porque “Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lhe levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido (...) e a quantia de gratificação”. Casado com a moça Clara, e sem estabilidade econômica, visto que “como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou‐se à caçada. A situação de Cândido se agrava: “Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar‐se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade”. Na iminência de levar à roda dos enjeitados seu único filho recém‐
nascido, por absoluta falta de meios para sustentar a família, Candinho sai a procura de algum sinal de escravo fugido, mas sem sucesso. A caminho da igreja, onde deixaria o nenezinho, avista uma escrava fugida, cujas características ele lera no jornal e por cuja captura o dono anunciava num jornal uma lauta recompensa: “ subia a cem mil‐réis”; era o meio dele não precisar se desfazer do filho que tanto amava. Deixa o nenê sob a custódia do dono de uma farmácia, e “No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cãndido Neves aproximou‐se dela. Era a mesma, era a mulata fujona. – Armanda! bradou, conforme a nomeava o anúncio. Arminda voltou‐se sem cuidar da malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir”. Amarra a escrava e, surdo às súplicas da jovem que anuncia: “Estou grávida, meus senhor! Cãndido a arrasta: “Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava‐se a si e ao filho”. As pessoas acompanhavam tudo “naturalmente e não acudiam. Candinho “foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor”. – “Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. (..) Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil‐réis. Diante dos olhos do algoz Cândido Neves, “levada do medo e da dor e apôs algum tempo de luta a escrava abortou”. A ironia do destino faz com que o jovem pai, para salvar seu filho, seja obrigado a causar a morte do filho da escrava, confirmando a lei trágica da natureza: a felicidade de uns é igual à desgraça para outros. As palavras finais do protagonista “Nem todas as crianças vingam” são uma pálida desculpa perante sua consciência. O conteúdo colocado no conto é a expressão artística da escala de opressões que existe na sociedade humana: o dono, pela força de seu dinheiro, domina a consciência moral de Candinho e este, por sua força física, domina a escrava. É a lei do mais forte que, em cadeia, pisa sobre o mais fraco: mors tua, vita mea. O amor filial é um sentimento válido apenas para Candinho, pois não reconhece o mesmo direito na jovem escrava. A peripécia reside no fato de que Candinho, de vítima da sociedade, se torna agressor. ENTRE SANTOS (ambigüidade e descrença) “Entre Santos” – Trata‐se de uma narrativa dentro de narrativa, que em determinado momento dá caminho para mais outra. Um discreto narrador em terceira pessoa abre, já no primeiro parágrafo, espaço para um narrador em primeira pessoa, testemunha de um acontecimento surpreendente. Enquanto era capelão na igreja de São Francisco de Paula, pôde surpreender, numa noite, o diálogo entre santos que durante o dia eram estátuas no templo. Discutiam o caráter humano, deslindado nas pessoas que vinham rezar diante deles. S. João Batista e S. Francisco de Paula eram os autores dos comentários mais ácidos em relação ao gênero humano. Um deles faz questão de lembrar uma adúltera “que aqui veio hoje prostrar‐se a meus pés, vinha pedir‐me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria”. Mas enquanto orava, rememorava momentos ardorosos, o que diminuía a fé a ponto de fazê‐la abandonar o recinto sem nem mesmo completar seu pedido. Tudo isso se contrapõe aos comentários de São Francisco de Sales. Para reforçar a sua teoria de que não se deve perder a esperança no ser humano, conta a história de um avaro que cai no desespero quando sua esposa desenvolve erisipela (doença que se manifesta pela inflamação da pele). Apesar de o pensamento corrente de que a sua agonia seria provocada pelo receio de despesas funerárias, na verdade é movido por amor. E para conseguir a graça da salvação, pede a intermediação do narrador divino, oferecendo em troca uma perna de cera. No entanto, seu raciocínio rápido se transfere para a idéia da moeda que iria custar tal artefato. Passa então a pensar em pagar em espécie mesmo. Mas, sovina como era, tal contribuição seria por demais custosa. Apesar disso, é uma opinião que não chega a formular por completo, deixando‐a no limbo de sua mente. Até que salta para um postulado um tanto cômodo: acredita, iludindo‐se convenientemente, que o espiritual é mais importante do que o material, por isso se propõe a, no lugar da moeda, rezar 300 padres‐nossos. Nesse ponto, o seu caráter materialista entranha‐se com o espiritualista, pois imagina ser muito mais lucrativo rezar 300 padres‐nossos e 300 ave‐marias. De 300 passa para 1000, mas, ao invés de expressar e, portanto, efetuar sua promessa, perde‐se, maravilhado, diante de cifra tão alta. Note nesse conto o esquema da narrativa. Um narrador lembra uma história que foi contada por um padre e que acaba relatando a história narrada por um santo. Essa trama dentro de trama lembra um outro tipo de texto que também usava esse mesmo procedimento e que também apresentava histórias mirabolantes: As Mil e Uma Noites. Repare também a postura dos santos, que se assemelha à de Machado de Assis, na medida em que são devassadores da alma humana. Tal atividade inspira ou o descrédito próximo da impaciência diante de nossas fraquezas, assim como uma atitude de tolerância misturada com esperança. Pode‐se acreditar que Machado tenha, em sua carreira, assumido um pouco das duas. Finalmente, observe como o conto consegue apresentar o caráter dilemático da mente humana pela maneira como o avaro lida com sua promessa. Mostra extremo materialismo ao entregar‐se ao fervor espiritualista, conseguindo, talvez cínica, talvez inconscientemente, conciliar esses opostos. TRIO EM LÁ MENOR (busca da perfeição) Maria Regina ama – “A verdade pede que diga que esta moça pensava amorosamente em dois homens ao mesmo tempo ‐ e é amada contemporaneamente pelos dois: Maciel, jovem de vinte e sete anos, belo, elegante, caridoso, mas fútil e maçante; Miranda, de cinqüenta anos, mau e egoísta, mas de espírito brilhante e com uma grande sensibilidade musical: “Miranda disse coisa pertinentes acerca da música moderna e antiga”. A moça gosta dos dois: “as palavras do Miranda e os belos olhos do Maciel”, porque se completam. Quando está com Maciel e sua conversa frívola a chateia, escuta mentalmente as palavras cultas e sensatas de Miranda; quando está com Miranda e se sente aflita por sua feiúra, pelos sinais de velhice e pelo espírito objetivo, pensa no entusiasmo, na generosidade, no heroísmo e na juventude de Maciel. Não se decide nem por um nem por outro namorado, porque não consegue renunciar a nenhuma das duas metades: “Maria Regina ia descambando da admiração no fastio; agarrava‐se aqui e ali, contemplava a figura moça do Maciel, recordava a bela ação daquele dia, mas ia sempre escorregando”. Busca a perfeição que para ela reside na soma das qualidades boas que existem nos dois: “Então recorreu a um singular expediente. Tratou de combinar os dois homens, o presente com o ausente, olhando para um, e escutando o outro de memória; recurso violento e doloroso, mas tão eficaz, que ela pôde contemplar por algum tempo uma criatura perfeita e única”. A indecisão na escolha acaba afastando os dois namorados: “Maciel e Miranda desconfiaram um do outro (...) A esperança ainda os fez relapsos, mas tudo morre, até a esperança, e eles saíram para nunca mais”. E ela, ficando sozinha, começa a sonhar com a existência de um astro composto de estrelas duplas. Imagina‐se voando em direção ao astro, que se desdobra em duas partes. Ela, então, inicia uma viagem alternada e interminável de uma estrela para outra. É uma voz do abismo que a adverte sobre a impossibilidade de sua pretensão, visto que o mundo nasceu imperfeito: “É a tua pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscilar por toda a eternidade entre dois astros incompletos, ao som desta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá...”. É interessante assinalar o comentário que o frio Miranda faz ao ato heróico de Maciel, que salvara a vida de um menino, prestes a ser atropelado por uma carroça: “Acho que ele salvou talvez a vida a um desalmado que algum dia, sem o conhecer, pode meter‐lhe uma faca na barriga”. É a concepção irônica do destino, onipresente nas narrativas machadianas. Quanto ao tema do desejo frustrado de perfeição, ela aparece não apenas nesse conto, mas também em outros, notadamente em Um homem célebre, onde o protagonista não gosta do que sabe fazer bem (polcas), desejando fazer o que não consegue fazer (uma peça de música clássica). Tema semelhante é desenvolvido no conto Cantiga de esponsais, em que Mestre Romão, excelente músico, morre com o desejo de ser compositor. É o antigo topos da insatisfação humana, brilhantemente tratado pelo poeta latino Horácio, que aflora aqui e acolá na narrativa machadiana. (Op. cit.) CONTO ALEXANDRINO (sátira e cientificismo) CAPÍTULO PRIMEIRO (No Mar) CAPÍTULO II (Experiência) CAPÍTULO III (Vitória) CAPÍTULO IV (Plus Ultra!) O CÔNEGO OU A METAFÍSICA DO ESTILO Conto metalingüístico que em alguns aspectos antecipa as sondagens introspectivas e intimistas da prosa modernista. É a história de um cônego que se dedicava à escritura de um sermão que o fizesse entrar para a história. Tem sua tarefa interrompida porque não conseguia achar um adjetivo que se ligasse adequadamente ao substantivo que havia colocado em seu texto. Esforçava‐se, mas a palavra não vem. Enquanto o protagonista espairece, para descansar a mente e buscar inspiração, o narrador mergulha no cérebro da personagem, defendendo a idéia de que as palavras têm sexo. Assim, o substantivo, masculino, que é nomeado como Sílvio, está procurando um adjetivo, feminino, designado Sílvia. É interessante nesse ponto como todo o universo de elementos que povoam nossa mente – sonhos, impressões, sensações, lembranças – é bem metaforizado ao ser apresentado como os obstáculos que o casal tem de suplantar até que finalmente consiga efetuar o seu encontro. Concretizada a união, o estalo mental surge para o cônego. Finalmente conseguia dar prosseguimento à redação de seu sermão, terminando‐o. O DICIONÁRIO (demagogia e autoritarismo) Bernardino reclama o trono para a multidão “Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino que pedia o trono para a multidão”. Atitudes demagógicas de Bernardino “Pedia o trono para a multidão. Com o fim de a pôr ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei”. Ação interesseira e maquiavélica de Bernardão Percebendo “que o trono só dava para uma pessoa, cortou a dificuldade sentando‐se em cima. – Em mim, bradou ele, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu”. Bernardão torna‐se um ditador Começa decretando que todos sejam iguais a ele: “Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que todos os seus súditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou este ato em uma razão de ordem política, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças”. Casamento de Estrelada “Esta senhora, que cultivava a música e a poesia, era requestada por alguns cavaheiros, e mostrava‐se fiel à dinastia decaída. Bernardão ofereceu‐lhe as coisas mais suntuosas e raras (...) Estrelada, porém, resistia à sedução”. Condições para o casamento Estaria pronta para o casamento, mas só seria com que lhe fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bajulação dos ministros “Bernardão, furioso, abriu‐se com os dois ministros, pedindo‐lhes um remédio pronto e enérgico (...) Os dois, tendo consultado algum tempo, voltaram com esta alvitre: ‐ Nós, Alfa e Ômega, estamos designados pelos nossos nomes para as coisas que respeitem à linguagem. A nossa idéia é que Vossa Sublimidade mande recolher todos os dicionários e nos encarregue de compor um vocabulário novo que lhe dará a vitória”. Crença da superioridade “Concorreram ao certame, que foi anônimo e secreto, vinte pessoas”, ao qual “venceu o poeta amado”, mas “Bernardão anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro”; e numa atitude maquiavélica, “ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer”. Autoritarismo de Bernardão Assim foram sendo anulados os concursos: “Bernardo anulou esse segundo concurso” cuja vitória, pelo “melhor madrigal”, foi do poeta amado. “Terceiro concurso e terceira vitória do poeta amado”. A arte prevalece sobre o autoritarismo despótico Estrelada “temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propôs‐lhe que fugissem”, ao que o poeta amado não concordou. Em “novo concurso recolheram‐se vinte madrigais. O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dois ministros, e foi a única vingança. Estrela era tão admiravelmente bela, que ele não se atreveu a magoá‐la, e cedeu”. COMENTÁRIOS ADICIONAIS Os personagens, em Machado de Assis, são marcados por impulsos contraditórios e, por isso, não podem ser classificados em bons ou maus. Então, no mundo machadiano tudo passa a ser relativo, variável de acordo com o ponto de vista que se assume diante das coisas; isso fica muito claro no comportamento de Camilo e na legião do conto A Igreja do Diabo. Quanto ao modo de narrar, os acontecimentos aparecem fragmentados e funcionam mais como pretexto para o autor desnudar a essência do ser humano nas diversas circunstãncias de sua vivência. Por isso, a narrativa machadiana não se prende à seqüência de começo, meio e fim, conforme se verifica em A Cartomante e A causa secreta. ******************************************** A obra de Machado de Assis traz aventura, emoção e suspense, mas tudo isso diluído em duas prioridades: a análise psicológica e a especulação filosófica acerca da condição humana. É preciso que sua leitura seja atenciosa, detida, experta. Machado não nutria grandes esperanças sobre a condição da humanidade: suas personagens masculinas são medíocres, de pouca inteligência e de objetivos superficiais, são salvos pelo status, revelando uma sociedade em que as pessoas valem pelo que têm, e não pelo que são. As personagens femininas não são melhores: vaidosas, fúteis, trazem em si o veneno da sedução. Um exemplo acabado disso é a personagem Rita, do conto “A Cartomante”, esposa de Vilela, melhor amigo de Camilo, de quem se tornaria amante. Veja que poder fulminante de sedução: Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi‐se acercando dele, envolveu‐o todo fez‐lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou‐lhe o veneno na boca. Ele ficou atormentado e subjugado. (Clenir Bellezi de Oliveira) RESOLVENDO JUNTOS 01. O tema da sensualidade feminina é recorrente em um dos contos citados abaixo, de Machado de Assis. Assinale a alternativa em que o conto esteja citado: a) A igreja do Diabo. d) Uns braços. b) Conto de escola. e) Conto Alexandrino. c) A causa secreta. 02. Os personagens Pilar e Inácio são destaques, respectivamente, nos contos: a) Conto de escola e O alienista. b) O alienista e Conto de escola. c) Conto de escola e Uns braços. d) O alienista e A igreja do Diabo. e) Conto de escola e A igreja do Diabo. 03. Todos os contos são de Machado de Assis, exceto: a) Teoria do medalhão. d) A causa secreta. b) Conto Alexandrino. e) Piabinha. c) A sereníssima República. 04. UEPB Leia as assertivas, a seguir, com relação ao conto A igreja do Diabo, de Machado de Assis: I. O conto está dividido em quatro capítulos: no primeiro, o Diabo tem a idéia de fundar uma igreja; no segundo, comunica a Deus sua resolução; no terceiro, expõe aos homens as regras da sua igreja e, no quarto, comprova que o homem é um ser desobediente por natureza. II. O sentido metafórico da expressão “capas de veludo com franjas de algodão” é responsável pela idéia difundida no conto. Tal expressão retoma o significado da “eterna contradição humana” que pode ser interpretada como sendo o homem um ser imperfeito, insatisfeito e instável. III. A velha dicotomia Bem x Mal é trabalhada no conto, confrontando Deus e o Diabo, de modo a enfatizar a supremacia daquele sobre este personagem. É o diabo que busca e reverencia a divindade, tratando‐o de senhor e subindo aos céus para prestar contas do seu fracasso. Assinale a alternativa correta. a) Apenas a proposição I está correta. b) Apenas a proposição II está correta. c) Apenas a proposição III está correta. d) Todas as proposições estão corretas. e) Apenas as proposições I e II estão corretas. 05. O tema da sensualidade e do sadismo é tônica, respectivamente, em dois dos contos citados: a) Missa do Galo ‐ Pai contra Mãe. b) Pai contra Mãe ‐ O caso da vara. c) Uns braços – A causa secreta. d) Uns braços ‐ Conto de escola. e) Uns braços ‐ O caso da vara. 06. Uma das alternativas se refere ao desfecho do conto O caso da vara. Assinale‐a: a) Damião não cumpre sua palavra: entre ver a negrinha apanhar (ele havia prometido que não permitiria isso) e salvar a sua pele (ver‐se na possibilidade de ter que cumprir o desejo do pai) ele decide em seu próprio benefício, entregando a vara para os castigos da jovem negrinha. b) Damião foge do seminário porque não tem vocação para cumprir o desejo do pai e procura ajuda ao padrinho. c) Damião contou uma anedota e fez rir uma negrinha que foi imediatamente castigada por Sinhá Rita. d) Sinhá Rita discute fervorosamente com João Carneiro e revela que se ele não atender seu pedido tudo estará terminado entre eles. e) João Carneiro consegue falar com o pai de Damião e dissuadir a idéia de fazer o jovem voltar ao seminário. 07. Assinale a alternativa em que o conto discute a idéia da atitude egocêntrica do homem, que age sempre em benefício próprio, mesmo que isso traga grandes sofrimentos para os outros. a) Missa do Galo. d) Uns braços. b) O caso da vara. e) Conto de escola. c) A causa secreta. 08. Assinale a alternativa em que os contos tematizam, respectivamente, delação e escravidão: a) Conto de escola – A causa secreta. b) O caso da vara – Missa do Galo. c) Pai contra Mãe – Conto de escola. d) Conto de escola – O caso da vara. e) Uns braços – Conto de escola. 09. Sadismo, adultério, contradições humanas, corrupção e delação, escravidão e egocentrismo são temas recorrentes em Machado de Assis presentes, respectivamente, nos contos: a) A cartomante, A causa secreta, A Igreja do Diabo, Conto de Escola, O enfermeiro. b) A causa secreta, A cartomante, Conto de escola, O enfermeiro, Pai contra mãe. c) A causa secreta, A cartomante, A Igreja do Diabo, Conto de escola, Pai contra mãe. d) Pai contra mãe, A causa secreta, A Igreja do Diabo, Conto de escola, A cartomante. e) O enfermeiro, Pai contra mãe, A causa secreta, A cartomante, Conto de escola. 10. É atitude tipicamente humana responsabilizar os outros ou até mesmo a natureza pelos nossos equívocos ou desastres (crimes, se você quiser). Assim se comportam as personagens em Machado de Assis, como faz Cândido Neves alegando que “‐ Nem todas as crianças vingam...”, depois de provocar uma situação na qual uma jovem aborta. Esse é o desfecho do conto: a) Conto de escola. b) Pai contra mãe. c) O enfermeiro. d) A cartomante. e) A causa secreta. 11. FUVEST (...) Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia‐se da abstenção com paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou‐lha um dos presentes, e desafiou‐o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina(assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu: ‐ Pensando bem, talvez o senhor tenha razão. (...) (Machado de Assis. O espelho) No trecho: “... e acrescentou que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna”, o termo aliás introduz: a) um esclarecimento, retificando a idéia defendida. b) uma oposição entre as idéias defendidas. c) uma contradição, negando a idéia defendida. d) uma progressão semântica, alterando a idéia apresentada. e) um argumento decisivo, reforçando a idéia apresentada. UFPB OS MELHORES POEMAS ‐OLAVO BILAC Os melhores poemas do Parnasianismo são de Olavo Bilac, mas os melhores poemas de Olavo Bilac não são parnasianos. Na verdade, o poeta que foi eleito pelos seus leitores como “O príncipe dos poetas”, apresenta‐se como o maior poeta parnasiano brasileiro, no entanto teve um estilo individual mais forte que a proposta do próprio movimento artístico ao qual estava filiado. Isso se deve principalmente ao fato de que Bilac voltou‐se para temas que estavam além do Parnasianismo, a saber: o lirismo amoroso mais profundo, o ufanismo, a exaltação dos heróis históricos brasileiros, sensualismo feminino e a reflexão existencial. Não obstante tudo isso, é claro que o poeta de “Via láctea” apresentava os traços fundantes do Parnasianismo, tais como a métrica clássica e a estrofação regular. Em “Melhores poemas de Olavo Bilac”, Marisa Lajolo realizou uma seleção de representativos poemas de Bilac, apontando os olhos do leitor para texto nos quais o poeta mostra a sua contribuição com a construção da identidade nacional, como em”A morte de Tapir”, ou mesmo quando conta a história da bela Frinéia e dos mitos gregos. A seleção de poemas ainda surpreende com textos como “Medicina”, no qual Bilac mostra uma vertente erótico‐humorística. “Se uma antologia obriga necessariamente a uma escolha, escolho o Bilac amoroso onde, a meu ver, estão seus melhores poemas: aqueles pelos quais ele pode, sem desdouro, dialogar com a sensibilidade do público contemporâneo e, de quebra, onde assomam alguns indícios da superação do figurino parnasiano...” SOBRE O AUTOR BIOGRAFIA 1 Fundador da Cadeira 15. Recebeu o Acadêmico Afonso Arinos. Olavo Bilac (O. Braz Martins dos Guimarães B.), jornalista, poeta, inspetor de ensino, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 16 de dezembro de 1865, e faleceu, na mesma cidade, em 28 de dezembro de 1918. Um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, criou a Cadeira nº. 15, que tem como patrono Gonçalves Dias. Eram seus pais o Dr. Braz Martins dos Guimarães Bilac e D. Delfina Belmira dos Guimarães Bilac. Após os estudos primários e secundários, matriculou‐se na Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro, mas desistiu no 4º. ano. Tentou, a seguir, o curso de Direito em São Paulo, mas não passou do primeiro ano. Dedicou‐se desde cedo ao jornalismo e à literatura. Teve intensa participação na política e em campanhas cívicas, das quais a mais famosa foi em favor do serviço militar obrigatório. Fundou vários jornais, de vida mais ou menos efêmera, como A Cigarra, O Meio, A Rua. Na seção “Semana” da Gazeta de Notícias, substituiu Machado de Assis, trabalhando ali durante anos. É o autor da letra do Hino à Bandeira. Fazendo jornalismo político nos começos da República, foi um dos perseguidos por Floriano Peixoto. Teve que se esconder em Minas Gerais, quando freqüentou a casa de Afonso Arinos em Ouro Preto. No regresso ao Rio, foi preso. Em 1891, foi nomeado oficial da Secretaria do Interior do Estado do Rio. Em 1898, inspetor escolar do Distrito Federal, cargo em que se aposentou, pouco antes de falecer. Foi também delegado em conferências diplomáticas e, em 1907, secretário do prefeito do Distrito Federal. Em 1916, fundou a Liga de Defesa Nacional. Sua obra poética enquadra‐se no Parnasianismo, que teve na década de 1880 a fase mais fecunda. Embora não tenha sido o primeiro a caracterizar o movimento parnasiano, pois só em 1888 publicou Poesias, Olavo Bilac tornou‐
se o mais típico dos parnasianos brasileiros, ao lado de Alberto de Oliveira e Raimundo Correia. Fundindo o Parnasianismo francês e a tradição lusitana, Olavo Bilac deu preferência às formas fixas do lirismo, especialmente ao soneto. Nas duas primeiras décadas do século XX, seus sonetos de chave de ouro eram decorados e declamados em toda parte, nos saraus e salões literários comuns na época. Nas Poesias encontram‐se os famosos sonetos de “Via‐Láctea” e a “Profissão de Fé”, na qual codificou o seu credo estético, que se distingue pelo culto do estilo, pela pureza da forma e da linguagem e pela simplicidade como resultado do lavor. Ao lado do poeta lírico, há nele um poeta de tonalidade épica, de que é expressão o poema “O caçador de esmeraldas”, celebrando os feitos, a desilusão e morte do bandeirante Fernão Dias Pais. Bilac foi, no seu tempo, um dos poetas brasileiros mais populares e mais lidos do país, tendo sido eleito o “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, no concurso que a revista Fon‐fon lançou em 1º. de março de 1913. Alguns anos mais tarde, os poetas parnasianos seriam o principal alvo do Modernismo. Apesar da reação modernista contra a sua poesia, Olavo Bilac tem lugar de destaque na literatura brasileira, como dos mais típicos e perfeitos dentro do Parnasianismo brasileiro. Foi notável conferencista, numa época de moda das conferências no Rio de Janeiro, e produziu também contos e crônicas. Nasceu no Rio de Janeiro, numa família de classe média. Estudou Medicina e depois Direito, sem se formar em nenhum dos cursos. Jornalista, funcionário público, inspetor escolar, secretário do prefeito do Distrito Federal, exerceu constante atividade republicana e nacionalista, realizando pregações cívicas em todo o país, inclusive pelo serviço militar obrigatório. Era um exímio conferencista e representou o país em vários encontros diplomáticos internacionais. Foi coroado como "príncipe dos poetas brasileiros", encarnando a liderança do grupo parnasiano. BILAC VISTO PELOS OUTROS: A melhor definição de Olavo Bilac é feita por Antonio Candido: "admirável poeta superficial". Admirável por sua habilidade técnica que o leva a versificar com meticulosa precisão: parece que jamais erra métrica ou rima. Superficial pelos quadros históricos e mitológicos, pelo erotismo de salão, as miniaturas descritivas e o nacionalismo ufanista. Os temas, em geral, não estão à altura do domínio técnico e dos recursos de linguagem. Como acentua o próprio Antonio Candido, o poeta transforma tudo, o drama humano e a natureza, em "espetáculo", em coisa, em matéria‐prima dos recursos esculturais do verso.Com algumas exceções, seus poemas nada aprofundam e ainda passam uma sensação de frieza. 1
FONTE: SITE DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (http://www.academia.org.br – ACESSADO EM 22 DE ABRIL DE 2009). Segundo Mário de Andrade, "Todas as suas emoções eram já metrificadas com exatidão e rimadas com abundância", entretanto, são inúmeros os sonetos que rompem com os mitos da impassibilidade e da objetividade absoluta ‐ indicando uma herança romântica da qual o poeta não pode ou não quer se livrar. TEMÁTICA Perfeição da forma poética; Lirismo amoroso; Reflexão existencial; Nacionalismo ufanista; Antigüidade greco‐romana; Sensualidade. LIRISMO AMOROSO “A lírica amorosa bilaquiana sobrevive e sobrenada em meio ao naufrágio geral de outras partes de sua obra. (...) Seus poemas de amor sobrevivem. E sobrevivem não por uma hipotética universalidade do sentimento amoroso, como podem pensar alguns ingênuos, mas porque Bilac era um bom poeta, como não gostam de admitir críticos engajados. Sobrevivem, do meu ponto de vista, por certos procedimentos modernos (ou modernizantes, vá lá...) que, talvez, à própria revelia, Bilac praticou aqui e ali, de permeio a amadas e estrelas, e apesar da riqueza da rima e da exatidão do metro." Lajolo, Marisa, apres. [1985]. In: Bilac, Olavo. Os melhores poemas. p.9‐10. Bilac trata do amor a partir de dois ângulos distintos: um mais filosófico e sentencioso; o outro, mais descritivo e sensual. O primeiro caso ocorre nos trinta e cinco sonetos que compõem o livro Via Láctea e que lhe granjearam imensa popularidade. Escritos em decassílabos, apresentam reflexões, lembranças, paixões concretas ou irrealizadas, cogitações sobre o caráter do afeto, etc., num conjunto de qualidade desigual, oscilando entre o gosto romântico e o gosto clássico. O soneto XIII (p. 44) tornou‐se antológico: Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi‐las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos toda a noite, enquanto A via láctea , como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: "Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?" E eu vos direi: "Amai para entendê‐las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e entender estrelas." XXX (Via Láctea, p. 53) Ao coração que sofre, separado Do teu, no exílio em que a chorar me vejo, Não basta o afeto simples e sagrado Com que das desventuras me protejo. Não me basta saber que sou amado, Nem só desejo o teu amor: desejo Ter nos braços teu corpo delicado, Ter na boca a doçura de teu beijo. E as justas ambições que me consomem Não me envergonham: pois maior baixeza Não há que a terra pelo céu trocar; E mais eleva o coração de um homem Ser de homem sempre e, na maior pureza, Ficar na terra e humanamente amar. Nel Mezzo del Camin... (p. 78) Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha. Tinhas a alma de sonhos povoada, E alma de sonhos povoada eu tinha... E paramos de súbito na estrada Da vida: longos anos, presa à minha A tua mão, a vista deslumbrada Tive da luz que teu olhar continha. Hoje segues de novo... Na partida Nem o pranto os teus olhos umedece, Nem te comove a dor da despedida. E eu, solitário, volto a face, e tremo, Vendo o teu vulto que desaparece Na extrema curva do caminho extremo. SENSUALIDADE Olavo Bilac tem o olho fremente do voyeur (sujeito que se excita apenas com a contemplação dos corpos ou do ato sexual) e se compraz na descrição nem sempre sutil da anatomia feminina. Se levarmos em conta que a nudez das mulheres era um tabu na sociedade brasileira, podemos imaginar o frêmito que os seus poemas causavam então. Em Satânia, a luz do meio‐dia cobre de carícias o seu esplêndido corpo. Nua, de pé, solto o cabelo às costas, Sorri. Na alcova perfumada e quente, Pela janela, como um rio enorme, Profusamente a luz do meio‐dia Entra e se espalha, palpitante e viva. (...) Como uma vaga preguiçosa e lenta, Vem lhe beijar a pequenina ponta Do pequenino pé macio e branco. Sobe...Cinge‐lhe a perna longamente; Sobe... ‐ e que volta sensual descreve Para abranger todo o quadril! ‐ prossegue, Lambe‐lhe o ventre, abraça‐lhe a cintura, Morde‐lhe os bicos túmidos dos seios, Corre‐lhe a espádua, espia‐lhe o recôncavo Da axila, acende‐lhe o coral da boca.(...) E aos mornos beijos, às carícias ternas Da luz, cerrando levemente os cílios, Satânia os lábios úmidos encurva E da boca na púrpura sangrenta Abre um curto sorriso de volúpia... XVII (p. 45 Via Láctea) Por estas noites frias e brumosas É que melhor se pode amar, querida! Nem uma estrela pálida, perdida Entre a névoa, abre as pálpebras medrosas... Mas um perfume cálido de rosas Corre a face da terra adormecida... E a névoa cresce, e, em grupos repartida, Enche os ares de sombras vaporosas: Sombras errantes, corpos nus, ardentes Carnes lascivas... um rumor vibrante De atritos longos e de beijos quentes... E os céus se estendem, palpitando, cheios Da tépida brancura fulgurante De um turbilhão de braços e de seios REFLEXÃO EXISTENCIAL E CONTEMPLAÇÃO DA NATUREZA Em alguns poemas, contudo, o autor de Tarde consegue mesclar uma visão sensual da vida com meditações carregadas de melancolia e desassossego sobre a proximidade da velhice e da morte. Possivelmente são as suas melhores criações. Não há como fugir da beleza da primeira estrofe de O vale, por exemplo: Sou como um vale, numa tarde fria Quando as almas dos sinos, de uma em uma, No soluçoso adeus da ave‐maria Expiram longamente pela bruma. Nem da força de In extremis, onde na hora da morte (imaginária), o poeta lamenta a perda das coisas concretas e eróticas da existência: Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia Assim! de um sol assim! Tu, desgrenhada e fria, Fria! postos nos meus os teus olhos molhados, E apertando nos teus os meus dedos gelados... E um dia assim! de um sol assim! E assim a esfera Toda azul, no esplendor do fim da primavera! Asas, tontas de luz, cortando o firmamento! Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo... E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto! e este medo! Nós dois...e, entre nós dois, implacável e forte, A arredar‐me de ti, cada vez mais, a morte... Eu com o frio a crescer no coração, ‐ tão cheio De ti, até no horror do derradeiro anseio! Tu, vendo retorcer‐se amarguradamente, A boca que beijava a tua boca ardente, A boca que foi tua! E eu morrendo! e eu morrendo Vendo‐te, e vendo o sol, e vendo céu, e vendo Tão bela palpitar nos teus olhos, querida, A delícia da vida! a delícia da vida!" Vila Rica (p. 105) O ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre; Sangram, em laivos de ouro, as minas, que ambição Na torturada entranha abriu da terra nobre: E cada cicatriz brilha como um brasão. O ângelus plange ao longe em doloroso dobre, O último ouro de sol morre na cerração. E, austero, amortalhando a urbe gloriosa e pobre, O crepúsculo cai como uma extrema‐unção. Agora, para além do cerro, o céu parece Feito de um ouro ancião, que o tempo enegreceu... A neblina, roçando o chão, cicia, em prece, Como uma procissão espectral que se move... Dobra o sino... Soluça um verso de Dirceu... Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove. As Ondas (p. 102) Entre as trêmulas mornas ardentias, A noite no alto‐mar anima as ondas. Sobem das fundas úmidas Golcondas, Pérolas vivas, as nereidas frias: Entrelaçam‐se, correm fugidias, Voltam, cruzando‐se; e, em lascivas rondas, Vestem as formas alvas e redondas De algas roxas e glaucas pedrarias. Coxas de vago ônix, ventres polidos De alabastro, quadris de argêntea espuma, Seios de dúbia opala ardem na treva; E bocas verdes, cheias de gemidos, Que o fósforo incendeia e o âmbar perfuma, Soluçam beijos vãos que o vento leva... NACIONALISMO UFANISTA Olavo Bilac também quebra a impassibilidade parnasiana com o patriotismo retumbante de seus versos. Transforma‐se numa espécie de poeta oficial da República Velha, fugindo do Brasil problemático e inventando um Brasil de heróis intrépidos, grandezas infinitas e símbolos a serem amados. Bandeirantes ferozes, como Fernão Dias Pais Leme, são transformados em agentes da civilização ("Violador dos sertões, plantador de cidades / Dentro do coração da pátria viverás!") A natureza, a exemplo do Romantismo, vira expressão da nacionalidade. Crianças são convocadas a amar a pátria com "fé e orgulho". E a poesia parece diluir‐se num manual de civismo. “De certo ponto de vista, podemos dizer que representamos, para o progresso intelectual do Brasil, na última metade do século XIX, o mesmo papel que para o seu progresso material representaram no século XVII os heróis das 'bandeiras': nós também varamos léguas e léguas de desertos morais, nós também desbravamos sertões, nós também fundamos cidades.” Bilac, Olavo. "Sobre a minha geração literária". In: Últimas conferências e discursos. São Paulo, Livraria Francisco Alves, 1924, p. 79. Mesmo assim ‐ descontados o tom declamatório e o excesso ufanista ‐ sente‐se aqui e ali a dimensão do verdadeiro criador. O caçador de esmeraldas, rápida e frustrada tentativa épica, tem um belo início: Foi em março, ao findar das chuvas, quase à entrada Do outono, quando a terra, em sede requeimada, Bebera longamente as águas da estação, Que, em bandeira, buscando esmeraldas e prata, À frente dos peões filhos da rude mata, Fernão Dias Paes Leme entrou pelo sertão. Um dos seus poemas patrióticos mais conhecidos é Língua portuguesa: Última flor do Lácio*, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga* impura A bruta mina entre os cascalhos vela... Amo‐te assim, desconhecida e obscura. Tuba* de alto clangor*, lira singela, Que tens o trom* e o silvo da procela* , E o arrolo* da saudade e da ternura! Amo o teu viço agreste e teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo‐te, ó rude e doloroso idioma, Em que da voz materna ouvi: "meu filho!" E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho! Vocabulário: Lácio: região que circunda Roma e onde se origina o latim. Ganga: resíduo inútil de minério. Tuba: instrumento de sopro, similar à trombeta Clangor: som forte Trom: som de trovão Procela: tempestade Arrolo: arrulho, acalanto POEMAS QUES FOGEM AO ESTILO POEMAS PARA LEITURA E ANÁLISE TEXTO I A MORTE DE TAPIR (fragmentos) Uma coluna de ouro e púrpuras ondeantes Subia o firmamento. Acesos véus, radiantes Rubras nuvens, do sol à viva luz, do poente Vinham, soltas, correr o espaço resplendente. Foi a essa hora, ‐ às mãos o arco possante, à cinta Do leve enduape a tanga em várias cores tinta, A aiucara ao pescoço, o canitar à testa, ‐ ‐ Que Tapir penetrou o seio da floresta. Era de vê‐lo assim, com o vulto enorme ao peso Dos anos acurvado, o olhar faiscando aceso, Firme o passo apesar da extrema idade, e forte. Ninguém, como ele, em face, altivo e hercúleo, a morte Tantas vezes fitou... Ninguém, como ele, o braço Erguendo, a lança aguda atirava no espaço. Quanta vez, do uapi ao rouco troar, ligeiro Como a corça, ao rugir do estrépito guerreiro O tacape brutal rodando no ar, terrível, Incólume, vibrando os golpes, ‐ insensível Às preces, ao clamor dos gritos, surdo ao pranto Das vitimas, ‐ passou, como um tufão, o espanto, O extermínio, o terror atras de si deixando! Quanta vez do inimigo o embate rechaçando Por si só, foi seu peito uma muralha erguida, Em que vinha bater e quebrar‐se vencida De uma tribo contrária a onda medonha e bruta! Onde um pulso que, tal como seu pulso, à luta Costumado, um por um, ao chão arremessasse Dez combatentes? Onde um arco, que atirasse Mais célere, a zunir, a fina flecha ervada? Quanta vez, a vagar na floresta cerrada, Peito a peito lutou com as fulvas onças bravas, E as onças a seus pés tombaram, como escravas, Nadando em sangue quente, e, em roda, o eco infinite Despertando, ao morrer, com o derradeiro grito!.. Quanta vez! E hoje velho, hoje abatido! (...) Juraci! Juraci! virgem morena e pura! Tu também! tu também desceste à sepultura!... III E Tapir caminhava... Ante ele agora um rio Corria; e a água também, ao crebro Da corrente, a rolar, gemia ansiosa e clara: ‐ "Tapir! Tapir! Tapir! Que é da veloz igara, Que é dos remos dos teus? Não mais as redes finas Vêm na pesca sondar‐me as águas cristalinas. Ai! não mais beijarei os corpos luxuriantes, Os curvos seios nus, as formas palpitantes Das morenas gentis de tua tribo extinta! Não mais! Depois dos teus de brônzea pele tinta Com os sucos do urucu, de pele branca vieram Outros, que a ti e aos teus nas selvas sucederam. Ai! Tapir! ai! Tapir! A tua raça é morta! ‐" E o índio, trêmulo, ouvindo aquilo tudo, absorta A alma em cismas, seguiu curvada a fronte ao peito. Agora da floresta o chão não mais direito E plano se estendia: era um declive; e quando Pelo tortuoso anfracto, a custo, caminhando Ao crepúsculo, pôde o velho, passo a passo, A montanha alcançar, viu que a noite no espaço Vinha a negra legião das sombras espargindo... Crescia a treva. A medo, entre as nuvens luzindo, No alto, a primeira estrela o cálix de ouro abria... Outra após cintilou na esfera imensa e fria... Outras vieram... e, em breve, o céu, de lado a lado, Foi como um cofre real de pérolas coalhado. IV Então, Tapir, de pé, no arco apoiado, a fronte Ergueu, e o olhar passeou no infinito horizonte: Acima o abismo, abaixo o abismo, o abismo adiante. E, clara, no negror da noite, viu, distante, Alvejando no vale a taba do estrangeiro... Tudo extinto!... era ele o último guerreiro! E do vale, do céu, do rio, da montanha, De tudo que o cercava, ao mesmo tempo, estranha, Rouca, extrema, rompeu a mesma voz: ‐ "É finda Toda a raça dos teus: só tu és vivo ainda! Tapir! Tapir! Tapir! morre também com ela! Já não fala Tupã no ulular da procela... As batalhas de outrora, os arcos e os tacapes, As florestas sem fim de flechas e acanguapes, Tudo passou! Não mais a fera inúbia à boca Dos guerreiros, Tapir, soa medonha e rouca. É mudo o maracá. A tribo exterminada Dorme agora feliz na Montanha Sagrada... Nem uma rede o vento entre os galhos agita! Não mais o vivo som de alegre dança, e a grita Dos pajés, ao luar, por baixo das folhagens, Rompe os ares... Não mais! As poracés selvagens, As guerras e os festins, tudo passou! É finda Toda a raça dos teus... Só tu és vivo ainda! ‐" V E num longo soluço a voz misteriosa Expirou... Caminhava a noite silenciosa, E era tranqüilo o céu; era tranqüila em roda, Imersa em plúmbeo sono, a natureza toda. E, no tope do monte, era de ver erguido O vulto de Tapir... Inesperado, um ruído Seco, surdo soou, e o corpo do guerreiro De súbito rolou pelo despenhadeiro... E o silêncio outra vez caiu. Nesse momento, Apontava o luar no curvo firmamento. TEXTO II “O JULGAMENTO DE FRINÉIA” Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia, Comparece ante a austera e rígida assembléia Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira Aquela formosura original, que inspira E dá vida ao genial cinzel de Praxíteles, De Hiperides à voz e à palheta de Apeles. Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam E das roupas, enfim, livres os corpos saltam, Nenhuma hetera sabe a primorosa taça, Transbordante de Cós, erguer com maior graça, Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio, Mais formoso quadril, nem mais nevado seio. Estremecem no altar, ao contemplá‐la, os deuses, Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis... Basta um rápido olhar provocante e lascivo: Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo... Nada iguala o poder de suas mios pequenas: Basta um gesto, ‐ e a seus pés roja‐se humilde Atenas... Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela Sua oculta nudez, mal os encantos vela, Mal a nudez oculta e sensual disfarça. cai‐lhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa... Queda‐se a multidão. Ergue‐se Eutias. Fala, E incita o tribunal severo a condená‐la: "Elêusis profanou! É falsa e dissoluta, Leva ao lar a cizânia e as famílias enluta! Dos deuses zomba! É ímpia! é má!" (E o pranto ardente Corre nas faces dela, em fios, lentamente...) "Por onde os passos move a corrupção se espraia, E estende‐se a discórdia! Heliastes! condenai‐a!" Vacila o tribunal, ouvindo a voz que o doma... Mas, de pronto, entre a turba Hiperides assoma, Defende‐lhe a inocência, exclama, exora, pede, Suplica, ordena, exige... O Areópago não cede. "Pois condenai‐a agora!" E à ré, que treme, a branca Túnica despedaça, e o véu, que a encobre, arranca... Pasmam subitamente os juizes deslumbrados, ‐ Leões pelo calmo olhar de um domador curvados: Nua e branca, de pé, patente à luz do dia Todo o corpo ideal, Frinéia aparecia Diante da multidão atônita e surpresa, No triunfo imortal da Carne e da Beleza. TEXTO III Medicina — Rita Rosa, camponesa, Tendo no dedo um tumor, Foi consultar com tristeza Padre Jacinto Prior. — O Padre, com gravidade De um verdadeiro doutor, Diz: "A sua enfermidade Tem um remédio: o calor... — Traga o dedo sempre quente... Sempre com muito calor... E há‐de ver que, finalmente, Rebentará o tumor!" — Passa um dia. Volta a Rita, Bela e cheia de rubor... E, na alegria que a agita, Cai aos pés do confessor: — "Meu padre! estou tão contente!... Que grande coisa o calor! Pus o dedo em lugar quente... E rebentou o tumor..." — E o padre: "É feliz, menina! Eu também tenho um tumor... Tão grande, que me alucina, Que me alucina de dor... — "Ó padre! mostre o dedo, (Diz a Rita) por favor! Mostre! porque há‐de ter medo De lhe aplicar o calor? — Deixe ver! eu sou tão quente!.... Que dedo grande! que horror! Ai! padre... vá... lentamente... Vá gozando... do calor... — Parabéns... padre Jacinto! Eu... logo... vi... que o calor... Parabéns, padre... Já sinto Que rebentou o tumor..." RESOLVENDO JUNTOS Questões de 1 a 4 ‐ Leia com atenção: “Torce, aprimora, alteia, lima A frase; e, enfim, No verso de ouro engasta a rima Como um rubim. Quero a estrofe cristalina, Dobrada ao jeito Do ourives, saia da oficina Sem um defeito”. (Olavo Bilac, “Profissão de Fé”, Poesias) 1. FUVEST Nos versos acima, a atividade poética é comparada ao lavor do ourives, porque, para o autor: a) a poesia é preciosa como um rubi; b) poeta é um burilador; c) na poesia não pode faltar a rima; d) o poeta não se assemelha a um artesão; e) o poeta emprega a chave de ouro. 2. FUVEST Pode‐se inferir do texto acima que, para Olavo Bilac, o ideal da forma literária é: a) a libertação b) a isometria c) a estrofação d) a rima e) a perfeição 3. FUVEST Dentre as seguintes passagens, extraídas de poemas de outros autores, assinale aquela que pode ser considerada uma reiteração da proposta contida no fragmento de “Profissão de Fé”. a) “Este verso, apenas um arabesco / em torno do elemento essencial ‐inatingível”. b) “Assim eu quereria o meu último poema / Que fosse terno dizendo as coisas, mais simples e menos intencionais” c) “Musa (...) dá‐me o hemistíquio d’ouro, a imagem atrativa,/ rima (...) / a estrofe limpa e viva” d) Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução” e) “Catar feijão se limita com escrever: / joga‐se os grãos na água do alguidar /e as palavras na folha de papel” 4. FUVEST Indique, dentre os versos abaixo, aquele que, sob o ponto de vista da métrica, tem a mesma contagem de sílabas do verso: Do ourives, saia da oficina: a) “A natureza apática esmaece” b) “Minha terra tem palmeiras” c) “Dobra o sino... soluça um verso de Dirceu...” d) “Não morrerás, Deusa sublime” e) “São Paulo! comoção de minha vida...” 5. UF‐ES O ideal parnasiano do culto da “arte pela arte” significa que o objeto do poeta é criar obras que expressem: a) um conteúdo social, de interesse universal. b) a noção do progresso de sua época. c) uma mensagem educativa, de natureza moral. d) uma lição de cunho religioso. e) o Belo, criado pelo perfeito uso dos recursos estilísticos. 6. CFET‐PA Todas as afirmações abaixo estão corretas, com exceção de: a) O Parnasianismo é a manifestação poética do Realismo, mais voltada para o concreto. b) Os parnasianos assumiram o sentimentalismo quanto à observação da realidade, pregando uma atitude pessoal. c) Os parnasianos, negando a emoção, cultuam a Razão e revalorizam a Antigüidade Clássica. d) O Parnasianismo é uma estética preocupada com a arte pela arte, a poesia pela poesia. e) Os parnasianos fixam‐se na observação de regras poéticas e têm, por isso, uma linguagem rebuscada e artificial. 7. UFPA À subjetividade romântica os parnasianos contrapuserem a impessoalidade objetiva; Bilac, parnasiano por excelência, por vezes foge do rigorismo objetivista de sua escola como, por exemplo, nos versos em que o eu do poeta se manifesta claramente. É o que se vê em: a) Fernão Dias Paes Leme agoniza. Um lamento / Chora largo, a rolar na longa voz do vento. b) Pára! Uma terra nova ao teu olhar fulgura! / Detém‐te! Aqui, de encontro a verdejantes plagas. c) E eu, solitário, volto a face, e tremo, / Vendo o teu vulto que desaparece. d) Chega de baile. Descansa! / Move a ebúrnea ventarola. e) E ei‐la, a morte! E ei‐lo, o fim! A palidez aumenta; Fernão Dias se esvai, numa síncope lenta. 8. UMSP Assinale a alternativa que não se aplica à estética parnasiana. b) predomínio da forma sobre o conteúdo. b) tentativa de superar o sentimento romântico. c) constante presença da temática da morte. d) correta linguagem, fundamentada nos princípios dos clássicos. e) predileção pelos gêneros fixos, valorizando o soneto. 9. Texto extraído da obra Via Láctea, de Olavo Bilac. Ao coração que sofre, separado Do teu, no exílio em que a chorar me vejo, Não basta o afeto simples e sagrado Com que das desventuras me protejo. Não me basta saber que sou amado, Nem só desejo o teu amor: desejo Ter nos braços teu corpo delicado, Ter na boca a doçura do teu beijo. E as justas ambições que me consomem Não me envergonham: pois maior baixeza Não há que a terra pelo céu trocar; E mais eleva o coração de um homem Ser de homem sempre e, na maior pureza, Ficar na terra e humanamente amar. BILAC, Olavo. Melhores poemas. Seleção Marisa Lajolo. 4ª ed. São Paulo: Global, 2003. p. 53 a) Qual a forma do poema em questão? b) Ao escolher uma forma de composição, o poeta optou por uma expressão: 1‐ racional 2‐ emocional c) Destaque do poema um exemplo de rima rica. d) De que exílio trata o eu‐lírico? e) Nesse exílio o poeta consola‐se apenas com a lembrança da mulher amada ? Justifique. 10. Nel mezzo del camin... Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha Tinhas a alma de sonhos povoada, E a alma de sonhos povoada eu tinha... E paramos de súbito na estrada Da vida: longos anos, presa à minha A tua mão, a vista deslumbrada Tive da luz que teu olhar continha. Hoje, segues de novo... Na partida Nem o pranto os teus olhos umedece, Nem te comove a dor da despedida. E eu, solitário, volto a face, e tremo, Vendo o teu vulto que desaparece Na extrema curva do caminho extremo. BILAC, Olavo. Melhores Poemas. Seleção Marisa Lajolo a) O emprego de ordem inversa é muito comum entre os parnasianos. Explique o porquê dessa opção. b) Faça o esquema de rimas do soneto. c) Indique a classe gramatical das palavras que rimam na segunda e na quarta estrofes e responda como se classificam. d) A idéia central do poema é o reencontro e a quase imediata separação de dois amantes. Graças à perfeição formal do poema, Bilac consegue insinuar o movimento desse fato, sobretudo na primeira e na última estrofes. Explique. Texto para a questão 11 Ao coração que sofre, separado Do teu, no exílio em que a chorar me vejo, Não basta o afeto simples e sagrado Com que das desventuras me protejo. Não me basta saber que sou amado, Nem só desejo o teu amor: desejo Ter nos braços teu corpo delicado, Ter na boca a doçura do teu beijo. E as justas ambições que me consomem Não me envergonham: pois maior baixeza Não há que a terra pelo céu trocar; E mais eleva o coração de um homem Ser de homem sempre e, na maior pureza, Ficar na terra e humanamente amar. (BILAC, Olavo. Obra reunida. Rio de Janeiro: Aguilar, 1996, p. 126). 11. PSS 2 Sobre o soneto de Olavo Bilac, é correto afirmar que a) os versos “Ter nos braços teu corpo delicado / Ter na boca a doçura do teu beijo” são um elogio ao amor carnal, em oposição ao amor espiritualizado do romantismo. b) o termo baixeza, empregado pelo poeta, sugere uma reprovação moral aos amores terrenos. c) os versos não primam pela riqueza das rimas. d) o soneto faz uso da liberdade formal. e) o poema apresenta uma imagem idealizada da mulher amada. 12. UFPE Olavo Bilac foi o autor brasileiro mais representativo do Parnasianismo no Brasil. Considerando sua obra, identifique a alternativa em que não se constata adequação entre o comentário e o texto citado. a) O poeta canta ‐ o amor platônico: E eu vos direi: Amai para entendê‐las. Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e entender estrelas. b) O poeta canta ‐ o ufanismo patriótico: Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste. Criança, não verás nenhum país como este c) O poeta canta ‐ o erotismo: Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia /Assim! De um sol assim !Tu, desgrenhada e fria. /Fria! postos nos meus os teus olhos molhados. E apertando nos teus os meus dedos gelados d) O poeta canta ‐ temas greco‐romanos: Não quero o Zeus Capitolino/ Hercúleo e belo e) O poeta canta ‐ o culto da forma: Torce, aprimora, alteia, lima / A frase e, enfim No verso de ouro, engasta a rima / Como um rubim Leia os versos de Olavo Bilac e responda às questões de números 13 e 14. Não se mostre na fábrica o suplício Do mestre. E, natural, o efeito agrade, Sem lembrar os andaimes do edifício: Porque a Beleza, gêmea da Verdade, Arte pura, inimiga do artifício, É a força e a graça na simplicidade. 13. UNIFESP Nos versos, apresenta‐se uma concepção de arte baseada____________, própria dos poetas _________ . Na frase, os espaços devem ser preenchidos por a) na expressão dos sentimentos ... românticos. b) na sugestão de sons e imagens ... parnasianos. c) na contestação dos valores sociais ... simbolistas. d) no extremo rigor formal ... parnasianos. e) na expressão dos conflitos humanos ... simbolistas. 14. UNIFESP Os versos denunciam a) vocabulário simples e pouca preocupação com as qualidades técnicas do poema, já que as sugestões sonoras não estão neles presentes. b) emoção expressa racionalmente, embora seja bastante evidente o caráter subjetivo na construção das imagens. c) a busca da perfeição na expressão, visando ao universalismo, como exemplificam os termos Beleza e Verdade, grafados com maiúsculas. d) o afastamento da realidade social, decorrente de uma visão idealizada do mundo, descrito por metáforas pouco objetivas. e) a forma de expressão pouco idealizada, resultante de uma concepção de mundo marcada pela complexidade que, nos versos, se manifesta em vocabulário seleto. UFPB e UEPB “MELHORES POEMAS” E “EDUCAÇÃO PELA PEDRA” ‐ JOÃO CABRAL DE MELO NETO Sobre o autor João Cabral de Melo Neto nasceu na cidade do Recife, a 6 de janeiro de 1920 e faleceu no dia 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro, aos 79 anos. Eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 15 de agosto de 1968, tomou posse em 6 de maio de 1969. Foi recebido por José Américo. Filho de Luís Antônio Cabral de Melo e de Carmen Carneiro Leão Cabral de Melo. Parte da infância de João Cabral foi vivida em engenhos da família nos municípios de São Lourenço da Mata e de Moreno. Aos dez anos, com a família de regresso ao Recife, ingressou João Cabral no Colégio de Ponte d’Uchoa, dos Irmãos Maristas, onde permanece até concluir o curso secundário. Em 1938 freqüentou o Café Lafayette, ponto de encontro de intelectuais que residiam no Recife. Dois anos depois a família transferiu‐se para o Rio de Janeiro, mas a mudança definitiva só foi realizada em fins de 1942, ano em que publicara o seu primeiro livro de poemas ‐ "Pedra do Sono". No Rio, depois de ter sido funcionário do DASP, inscreveu‐se, em 1945, no concurso para a carreira de diplomata. Daí por diante, já enquadrado no Itamarati, inicia uma larga peregrinação por diversos países, incluindo, até mesmo, a República africana do Senegal. Em 1984 é designado para o posto de cônsul‐geral na cidade do Porto (Portugal). Em 1987 volta a residir no Rio de Janeiro. A atividade literária acompanhou‐o durante todos esses anos no exterior e no Brasil, o que lhe valeu ser contemplado com numerosos prêmios, entre os quais ‐ Prêmio José de Anchieta, de poesia, do IV Centenário de São Paulo (1954); Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras (1955); Prêmio de Poesia do Instituto Nacional do Livro; Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro; Prêmio Bienal Nestlé, pelo conjunto da Obra e Prêmio da União Brasileira de Escritores, pelo livro "Crime na Calle Relator" (1988). Em 1990 João Cabral de Melo Neto é aposentado no posto de Embaixador. A Editora Nova Aguilar, do Rio de Janeiro, publica, no ano de 1994, sua "Obra completa". A um importante trabalho de pesquisa histórico‐documental, editado pelo Ministério das Relações Exteriores, deu João Cabral o título de "O Brasil no arquivo das Índias de Sevilha". Com as comemorações programadas neste final do século, relacionadas com os feitos dos navegadores espanhóis e portugueses nos anos que antecederam ou se seguiram ao descobrimento da América, e, em particular ao do Brasil, a pesquisa de João Cabral assumiu valor inestimável para os historiadores dos feitos marítimos, praticados naquela época. Da obra poética de João Cabral pode‐se mencionar, ao acaso, pela sua variedade, os seguintes títulos: "Pedro do sono", 1942; "O engenheiro", 1945; "O cão sem plumas", 1950; "O rio", 1954; "Quaderna", 1960; "Poemas escolhidos", 1963; "A educação pela pedra", 1966; "Morte e vida severina e outros poemas em voz alta", 1966; "Museu de tudo", 1975; "A escola das facas", 1980; "Agreste", 1985; "Auto do frade", 1986; "Crime na Calle Relator", 1987; "Sevilla andando", 1989. Em prosa, além do livro de pesquisa histórica já citado, João Cabral publicou "Juan Miró", 1952 e "Considerações sobre o poeta dormindo", 1941. Os "Cadernos de Literatura Brasileira", notável publicação editada pelo Instituto Moreira Salles ‐ dedicou seu Número I ‐ março de 1996, ao poeta pernambucano com selecionada colaboração de escritores brasileiros, portugueses e espanhóis e abundante material iconográfico. "Quando morei em Pernambuco eu não escrevi sobre Pernambuco. Afinal, estava lá dentro, compreende? Já quando morei fora, senti falta. Foi só aí que escrevi sobre a minha terra. Estava com saudades de certas coisas. Por isso, procurava registrar. Essa é uma cicatriz que não some. Até hoje penso na minha infância" (João Cabral) O que diz a crítica Morreu João Cabral, poeta (por Rachel de Queiroz) Morreu um poeta. Toda morte é um prejuízo, mas a morte de um poeta representa uma agressão ao patrimônio humano. Morrer um homem, já é um prejuízo. Mas o poeta, com ser poeta, além de ser homem, amplia enormemente a perda. Não é só a saudade não é só a pessoa que se perdeu. O poeta era em si uma riqueza, mas não riqueza comum, porém única e insubstituível. Aquela voz que deixou de se ouvir não tinha similar, não tinha companheiros, não se fazia em coros. Era uma voz de nota única pessoal e solitária. Ninguém podia cantar por ele, ninguém poderá cantar por ele. Aquela voz se acabou. É isso o que representa a perda de um grande poeta. O espaço ocupado por ele fica para sempre vazio. Podem brotar dezenas de poetas, novos, até mesmo de grandes poetas: o espaço ocupado por João Cabral de Melo Neto será para sempre dele. Uma vez que ele morreu, que não produzirá poesia nova, esse espaço ficará em branco, inocupado. Quando morre um poeta como João Cabral cria‐se um rombo, um vácuo. A gente fica sem ter o que dizer pois era ele que preenchia a nossa necessidade de expressão. Como vou falar de angústia, se eu procurava na poesia dele a expressão da minha própria angústia? O poeta é na verdade a nossa língua. Não para tudo, mas no que a era parte dele dentro de nós. Nossa tristeza, nosso amor, nossa consciência do mundo ‐ íamos procurar nele, nosso intérprete pessoal. Sempre sentimos isso quando perdemos um grande poeta que ao mesmo tempo fosse o nosso poeta. Ele que falava por nós, que preenchia nossa falta de inspiração. Como iria fazer, dar forma, feitio e expressão literária, se me falta o poeta que dizia isso por mim? De repente nos sentimos mudos. Verdade que ficou a obra escrita, ainda é o que nos salva. Mas já não temos as invenções do poeta que iriam dar corpo vivo às nossas invenções. Com ele calado, nós também nos calamos. João era um silencioso. Mas tinha uma maneira sutil de exprimir a irmandade com um toque de mão, com um sorriso calado. Ele estando junto era como se nos dissesse: "Conte comigo, eu estou aqui. Já passei tudo que você está passando." Isso que estávamos passando poderia ser a angústia de um momento, uma tristeza sem voz. Engraçado a dualidade que se estabelece entre os silêncios do poeta e tudo o que ele é capaz de dizer até com esses silêncios. É que, em poesia, as pausas também falam. Você ou eu, que escrevemos prosa, temos de falar tudo bem explicado, bem correto; prosa clara, define os mestres. Já o poeta pode se esconder em obscuridades. Nós seguimos procurando o fio da meada, já que a poesia é sempre um desafio. O que ela sugere a você não sugere a mim. E pode mesmo ter um terceiro segredo escondido. A poesia é um mistério, com todo o direito às suas nebulosidades. Cada leitura, ou cada leitor de um poema podem descobrir nele um sentido oculto, que varia a cada interpretação. Aliás, creio que será esse o grande segredo do poeta. O que ele fala ou o que ele canta procura os sentimentos, não propriamente a inteligência. Os poetas antigos cantavam os seus versos e os poetas populares de hoje ainda os cantam. Será que o hermetismo de um João Cabral poderia ser expresso em música? Claro. A sua obra mais conhecida Vida e Morte Severina é toda musicada. E talvez não pudesse ser entendida se não fosse a cantoria. E talvez João a tivesse recebido com surpresa pois não a concebera para cantar. Características A poesia de João Cabral se caracteriza pela objetividade na constatação da realidade e, em alguns casos, pela tendência ao surrealismo. No nível temático, podemos distinguir em sua poética três grandes preocupações, apresentadas a seguir. O Nordeste com sua gente: os retirantes, suas tradições, seu folclore, a herança medieval e os engenhos; de modo muito particular, seu estado natal, Pernambuco, e sua cidade, o Recife. São objeto de verificação e análise os mocambos, os cemitérios e o rio Capibaribe, que aparece, por mais de uma vez, personificado. A Espanha e suas paisagens, em que se destacam os pontos em comum com o Nordeste brasileiro. "Sou um regionalista também na Espanha, onde me considero um sevilhano. Não há que civilizar o mundo, há que 'sevilhizar' o mundo", afirma o poeta. A Arte e suas várias manifestações: a pintura de Miró, de Picasso e do pernambucano Vicente do Rego Monteiro; a literatura de Paul Valéry, Cesário Verde, Augusto dos Anjos, Graciliano Ramos e Drummond; o futebol de Ademir Meneses e Ademir da Guia; a própria arte poética ƒ Pedra do Sono (1942) ƒ Os Três Mal‐Amados (1943) ƒ O Engenheiro (1945) ƒ Psicologia da Composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947) ƒ O Cão sem Plumas (1950) ƒ O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaribe de Sua Nascente à Cidade do Recife (1954) ƒ Dois Parlamentos (1960) ƒ Quaderna (1960) ƒ A Educação pela Pedra (1966) ƒ Morte e Vida Severina (1966) ƒ Museu de Tudo (1975) ƒ A Escola das Facas (1980) ƒ Auto do Frade (1984) ƒ Agrestes (1985) ƒ Crime na Calle Relator (1987) ƒ Primeiros Poemas (1990) ƒ Sevilha Andando (1990) Antologia para Leitura e Discussão Paisagem pelo telefone (fragmento) (...) Pois, assim, no telefone tua voz me parecia como se de tal manhã estivesses envolvida, fresca e clara, como se telefonasses despida, ou, se vestida, somente de roupa de banho, mínima, e que por mínima, pouco de tua luz própria tira, e até mais, quando falavas no telefone, eu diria que estavas de todo nua, só de teu banho vestida, que é quando tu estás mais clara pois a água nada embacia, sim, como o sol sobre a cal seis estrofes mais acima, a água clara não te acende: libera a luz que já tinhas. Alguns toureiros (fragmento) Eu vi Manolo Gonzáles e Pepe Luis, de Sevilha: precisão doce de flor, graciosa, porém precisa (...) Mas eu vi Manuel Rodriguez Manolete, o mais deserto, o toureiro mais agudo, mais mineral e desperto, (...) o que melhor calculava o fluido aceiro da vida, o que com mais precisão roçava a morte em sua fímbria, (...) sim, eu vi Manuel Rodriguez, Manolete, o mais asceta, não só cultivar sua flor mas demonstrar aos poetas: como domar a explosão com mão serena e contida, sem deixar que se derrame a flor que traz escondida, e como, então, trabalhá‐la com mão certa, pouca e extrema: sem perfumar sua flor, sem poetizar seu poema. Compreendendo poemas escritos entre 1962 e 1965, A educação pela pedra ‐ obra dedicada a Manuel Bandeira, se configura, nas próprias palavras de Cabral, como uma antilira. Entenda‐se antilira como a opção por uma poética que abdica do subjetivismo em nome de uma postura distanciada dos assuntos de que trata, numa poesia declaradamente impassível, objetiva, cerebral. Isso fica evidente não só na temática ‐ seca, agreste ‐ mas também na linguagem dura, pedregosa utilizada na obra. Apaga‐se o "eu" pessoal do poeta em favor do conhecimento objetivo da realidade. Não aparecem traços psicologizantes individuais, mas um cortante quadro crítico da realidade. Nada existe de vago ou incerto: temos verdades sociais representadas no discurso lógico do poema. Coloca‐se, assim, João Cabral contra a tradição individualista romântica: sua poesia, nesse sentido, é uma "antipoesia" ‐ isto é, uma nova forma de poesia que rompe com o extravasamento emotivo tradicional. O livro possui uma composição quaternária: é estruturado em 4 partes: A, B, a, b, sendo que cada parte é formada por 12 poemas. Em cada um dos 4 blocos que estruturam a obra, encontramos poemas que aparecem espelhados, duplicados, reelaborados. Por vezes, o espelhamento é tão evidente, que o poema‐duplo será composto pelos mesmos versos que estruturam o poema‐primitivo, como se pode ver no par: "O mar e o canavial" e "O canavial e o mar". Neste par, o segundo poema ‐ de 16 versos ‐ é estruturado a partir de 15 versos extraídos do poema original, organizados de forma diferente, de modo a configurar outro texto. Quanto à estrutura, na primeira e na segunda partes, os poemas se constroem com 16 versos; já na terceira e na quarta, apresentam 24 versos. Cada poema se divide em duas partes [simétricas: com o mesmo número de versos; ou assimétricas: com um número diferente, mas sempre, qualquer que seja o caso, oscilando entre 6 e 16]. Poemas para análise O mar e o canavial O que o mar sim aprende do canavial: a alocução horizontal de seu verso; a geórgica de cordel, ininterrupta, narrada em voz e silêncio paralelos, O que o mar não aprende do canavial: A veemência passional da preamar; a mão de pilão das ondas na areia, moída e miúda, pilada do que pilar. O que o canavial sim aprende do mar: o avançar em linha rasteira da onda; o espraiar‐se minucioso, de líquido, alagando cova a cova onde se alonga. O que o canavial não aprende do mar: o desmedido do derramar‐se da cana; o comedimento do latifúndio do mar, que menos lastradamente se derrama. *geórgica: canto sobre trabalhos agrícolas O canavial e o mar O que o mar sim ensina ao canavial: o avançar em linha rasteira da onda; O espraiar‐se minucioso, de líquido, Alagando cova a cova onde se alonga. O que o canavial sim ensina ao mar: a elocução horizontal de seu verso; a geórgica de cordel, ininterrupta, narrada em voz e silêncio paralelos. O que o mar não ensina ao canavial: a veêmencia passional da preamar; a mão‐de‐pilão das ondas na areia, moída e miúda, pilada do que pilar. O que o canavial não ensina ao mar: O desmedido do derramar‐se da cana; O comedimento do latifúndio do mar, Que menos lastradamente se derrama. O processo de aprendizagem mútua é o foco central dos poemas, e deve nos levar a refletir sobre um aprender e um ensinar constantes que se evidencia nas interações humanas. O Sertanejo Falando A fala a nível do sertanejo engana: as palavras dele vêm, como rebuçadas (palavras confeito, pílula), na glace de uma entonação lisa, de adocicada. Enquanto que sob ela, dura e endurece o caroço de pedra, a amêndoa pétrea, dessa árvore pedrenta (o sertanejo) incapaz de não se expressar em pedra. Daí porque o sertanejo fala pouco: as palavras de pedra ulceram a boca e no idioma pedra se fala doloroso; o natural desse idioma fala à força. Daí também porque ele fala devagar: tem de pegar as palavras com cuidado, confeitá‐la na língua, rebuçá‐las; pois toma tempo todo esse trabalho. A Educação pela Pedra Uma educação pela pedra: por lições; Para aprender da pedra, freqüentá‐la; Captar sua voz inenfática, impessoal [pela de dicção ela começa as aulas]. A lição de moral, sua resistência fria Ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar‐se compacta: Lições da pedra [de fora para dentro, Cartilha muda], para quem soletrá‐la. Outra educação pela pedra: no Sertão [de dentro para fora, e pré‐didática]. No Sertão a pedra não sabe lecionar, E se lecionasse, não ensinaria nada; Lá não se aprende a pedra: lá a pedra, Uma pedra de nascença, entranha a alma. Na primeira estrofe, todas as lições da pedra também ensinam poesia, pois a dicção, a moral, a economia fazem parte de qualquer poética. O autor coloca‐se, assim como coloca o leitor, na posição hierarquicamente inferior de aluno, e aluno da pedra, o que há no mundo material de mais impassível e incomunicável. A intencionalidade humana que o eu‐lírico projeta na pedra evidentemente pertence ao próprio sujeito poético, e neste sentido a pedra continua a servir de espelho da subjetividade que a observa. A impessoalidade aparente ‐ a interioridade que se quer ausente não se elimina, mas se projeta em objetos ‐ sugere um exame mais minucioso da voz inenfática e impessoal da poesia de João Cabral. A figura retórica fundamental neste poema é a prosopopéia, dá vida e voz a coisas inanimadas e a idéias abstratas. Neste sentido, o poeta que aprende da pedra sua voz só aprende o que ele mesmo cede pelo próprio fazer de sua poesia. A impessoalidade na poesia de João Cabral fundamenta‐se, paradoxalmente, na personificação de objetos e animais. O aluno Motiva deve perceber que em sua nudez, a pedra ensina a ser e a fazer a pedra. O poeta que põe em prática as lições que recebe, constrói o poema‐pedra do qual o leitor, por sua vez, se faz aprendiz, soletrando sua "cartilha muda". Mas este poema, e a poesia que ele define e propõe, não são tão homogêneos quanto parecem, pois se elaboram a partir de ainda outros termos que se chocam. Para fazer a pedra, o poeta necessita moldar o material presente, subordinando‐o a seu controle, fazendo‐
se superior a ele. "A educação pela pedra" sugere, então, outro conflito fundamental ao projeto poético de João Cabral: a pedra propõe‐se como modelo exemplar de uma ética e uma poesia, mas manifesta também aquilo que escapa ao controle exterior e à comunicação, que resiste ser maleado e só fala com o silêncio. Se a pedra é modelo da linguagem poética, em um dos seus significados subjacentes representa o aspecto irredutível e incontrolável da linguagem, que se esquiva à vontade construtora e ao desejo de controle que orienta em outro nível a poética de João Cabral. A "outra educação" que a pedra oferece na segunda estrofe remete de fato à característica obstinada e opaca da pedra, inacessível à intencionalidade humana: "uma pedra de nascença entranha a alma" no sertão. Na superfície, a pedra se refere às qualidades hostis do ambiente geográfico e social, e à penúria do homem. Tecendo a Manhã Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. Comentário: Poema fundamental para definição da poética de João Cabral. A "tecedura" do poema obedece a um rigor estrutural: associa simultaneamente o sentido coletivo de sua construção e a solidariedade das ações humanas. Fábula de um Arquiteto A arquitetura como construir portas, de abrir; ou como construir o aberto; construir, não como ilhar e prender, nem construir como fechar secretos; construir portas abertas, em portas; casas exclusivamente portas e tecto. O arquiteto: o que abre para o homem (tudo se sanearia desde casas abertas) portas por‐onde, jamais portas‐contra; por onde, livres: ar luz razão certa. Até que, tantos livres o amedrontando, renegou dar a viver no claro e aberto. Onde vãos de abrir, ele foi amurando opacos de fechar; onde vidro, concreto; até refechar o homem: na capela útero, com confortos de matriz, outra vez feto. João Cabral de Melo Neto dedicou muitos de seus livros e poemas aos amigos, especialmente aos poetas. A Educação Pela Pedra tem uma dedicatória de auto‐definição: “A Manoel Bandeira esta anti‐lira para seus oitent´anos”. No poema‐título, ele nos remete ao conceito da “carnatura” da poética, sua matéria‐prima ou conteúdo, no caso, “pedagógico”, de intimidade com os objetos de Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, freqüentá‐la; captar sus voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a da poética, sua carnadura concreta (...) Nada é óbvio no poeta dos canaviais, na relação de sua poesia com o seu universo particular (que é, sem surpresa, universal). Está sempre exercitando a metapoesia, na maioria dos poemas que escreve, como a demonstrar que o ofício de poeta é esse mesmo. Poematiza: lá não se aprende a pedra: lá a pedra uma pedra de nascença, entranha a alma. Nesta linha de “poemizar” o poema, J.C. chega a produzir “DOIS P.S. A UM POEMA”. Certo poema imaginou que a daria a ver (sua pessoa, fora da dança) com o fogo. Porém o fogo, prisioneiro da fogueira, tem de esgotar o incêndio, o fogo todo; e o dela, ela o apaga (se e quando quer ou a mete vivo no corpo: então, ao dobro. A vivência do poema, sua possessão... E embora o poema estime que a imagem não conteria tudo dessa chama sozinha, que por si se ateia (se e quando quer) de quanto o mais‐que‐chama não estima; pois vale o duplo de qualquer chama: estas só dançam da cintura para cima. Poesia no poema, na convivência do poeta com suas imagens‐palavras (e não o contrário, muitas vezes), do leitor com seu poema‐digressão, metalinguística. Poeta cubista e barroco a um tempo, tenta aproximações sucessivas, fracionadas, do objeto, em seqüências circulares, reiterativas. As chamas que dançam apenas da cintura para cima, o poema que vale o duplo (expressão cabralina de sabor regional e arcaizante) do reverberar da chama. O poema que estima que a imagem não contém tudo que dela o poeta apreende... A poesia que ateia fogo mais‐que‐chama quando e quanto deseja... Uma sintaxe enviesada, de um barroquismo entranhado. Sem renunciar à ironia, ao sarcasmo (sempre muito depurado, pouco evidente) e até ao escatológico mas sem pretender ser esperpêntico Retrato de Poeta O poeta de que contou Burguess, que só escrevia na latrina, quando sua obra lhe saía por debaixo como por cima, volta sempre à lembrança quando em frente à poesia meditabunda que se quer filosofia, mas que sem a coragem e o rigor de ser uma ou outra, joga e hesita, ou não hesita e apenas joga com o fácil, como vigarista. Pois tal meditabúndia certa há de ser escrita a partir de latrinas e diarréias propícias. A poesia medieval ibérica tinha muito dessa linguagem entre chula e erudita, dessa diarréia verbal para glosar as situações grotescas que estão na origem do esperpentismo, embora João Cabral não seja um cultor dessa linha em tempo completo. Vê‐se uma combinação de opostos estilísticos, entre um quevedismo pelo grotesco e um gongorismo pelo tratamento enviesado das idéias. João Cabral vem de uma certa medievalidade literária que vai de Pernambuco à Espanha, num subconsciente cultural extensivo. Meditabunda... No seu Pernambuco de linguagem mais próxima às origens lusitanas, de feitio barroco, com vieses surrealistas e esperpênticos... Meditabúndia que certamente há de ser escrita numa verborréia (diarréia) oportuna. O barroco é mesmo esta conjunção de estilos e influências como, de resto, toda a cultura ibero‐americana. João Cabral está mais próximo das raízes, mas sempre propenso a um tipo de vanguarda “radical”. Radical naquele sentido de retorno às raízes... Não é gratuito lembrar, no tocante ao poema “RETRATO DO POETA”, que “obrar” – “quando sua obra lhe saia/ por debaixo como por cima” é usada, ainda hoje, no Nordeste, no sentido original de defecar... O que diz a crítica A metapoesia em João Cabral de Melo Neto Pedra do Sono (1940‐1941) O primeiro da grande série de metapoemas é o POEMA DA DESINTOXICAÇÃO, em que João Cabral revela: Eu penso o poema da face sonhada, metade de flor metade apagada. O poema inquieta o papel e a sala. Ante a face sonhada o vazio se cala. A intimidade ou a convivência do poeta com sua poesia é sempre artesanal, de construção obsessiva com as palavras e as idéias, palavras de uma concretude absoluta. Parece pintar em vez de escrever. A Porta Procuravam a esquecida chuva de inverno em sua boca de onde alguém soprara as palavras de fora do poema. Note‐se que João Cabral faz o poema dentro do poema. O tema‐título – A PORTA – funciona como metáfora. Naquela fase, com um certo automatismo imagético e vocabular próprio do surrealismo, mas sempre com a preocupação estruturalista da composição. Uma certa contradição entre o verso livre e visceral e o extremo formalismo. Não discursa sobre o poema, o poema é que faz referência ao poeta e aos seus temas. O Poeta No telefone do poeta desceram vozes sem cabeça desceu um susto desceu o medo da morte de neve. O telefone com asas e o poeta pensando que fosse o avião que levaria de sua noite furiosa aquelas máquinas em fuga. Ora, na sala do poeta o relógio marcava horas que ninguém vivera. O telefone nem mulher nem sobrado, ao telefone o pássaro‐trovão. Nuvens porém brancas de pássaros acenderam a noite do poeta e nos olhos, vistos de fora, do poeta vão nascer duas flores secas. Diferentemente de outros poetas que tentam definir o que é e o que não é poesia, João Cabral faz o poema acontecer como exemplo (ou, no sentido oposto, despistamento) de sua técnica de criação poética. As vozes líquidas do poema convidam ao crime ao revólver. O Engenheiro (1942‐1945) Em O ENGENHEIRO (1942‐1945) o poeta explicita que poetar é, em certo sentido, engenheirar... No poema O FIM DO MUNDO, ele elabora versos com a precisão de engenheiro numa linguagem de metáforas supra‐
realistas... Ninguém se espante. As palavras nele fluem como entidades independentes de seus significados originais, construindo sentidos nada gramaticais nem narrativos, não raras vezes contrários aos sentidos convencionais... O poema final ninguém escreverá Desse mundo particular de doze horas. Em vez do juízo final a mim me preocupa o sonho final. Outra vez, o poema é o centro de sua engenharia poética e não o Juizo Final, que é o pretexto (e nunca o texto): A tinta e a lápis escrevem‐se todos os versos do mundo. (...) Como o ser vivo que é um verso, um organismo com sangue e sopro pode brotar de germes mortos? (...) Mas é no papel, no branco asséptico, que o verso rebenta. Como um ser vivo pode brotar de um chão mineral? Desse branco que é gelo e febre. O verso é uma entidade vívida, que brota no papel, no branco asséptico. Regressando ao livro O ENGENHEIRO (1942‐1945), em A LIÇÃO DE POESIA, fica ainda mais claro o sentido do mundo cabralino, de sua obsessão pela página em branco, pela composição ou engenharia do poema. A noite inteira o poeta em sua mesa, tentando salvar da morte os monstros germinados em seu tinteiro. Monstros, bichos, fantasmas de palavras, circulando, urinando sobre o papel, sujando‐o com seu carvão. O poeta é um prestidigitador que tira do tinteiro seus entes, salvando‐os da morte, da inexistência. No poema dedicado A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE retoma o tema, de forma conclusiva: Não há guarda‐chuva contra o poema subindo de regiões onde tudo é surpresa como uma flor mesmo num canteiro. João Cabral reverencia PAUL VALÉRY, outro poeta de sua predileção: [ É o diabo no corpo ou o poema que me leva a cuspir sobre meu não higiênico? Um falso dilema, para expressar a dubiedade do ato criativo. O poema macula, “suja”, inscreve, é produto do estado de possessão do corpo por alguma forma demoníaca?. Psicologia da Composição (1946‐1947) Na obra seguinte – PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO, a “argumentação” metapoética do poema‐título – um de seus poemas mais célebres e recorrentes ‐, João Cabral consolida‐se. Saio de meu poema como quem lava as mãos. Algumas conchas tornaram‐se, que o sol da atenção cristalizou; alguma palavra que desabrochei, como a um pássaro. Uma nova versão para o sentido da criação: a palavra que desabrocha, ganha espaço próprio. João Cabral retorna à idéia inicial de sua criação: página em branco.: Esta folha branca me proscreve o sonho, me incita ao verso nítido e preciso. (...} O poema, com seus cavalos, quer explodir (...) Vivo com certas palavras, abelhas domésticas. A página em branco inquieta, suscita e incita a um versejar nítido e preciso, numa explosão verbal pela tessitura/textura do discurso – o texto. O poeta convive com as palavras como abelhas domesticadas, produtivas. Sempre em busca da forma nítida e precisa... O sentido apriorístico dado ao signo não é programado, mas é cultivado numa relação permanente do autor com sua obra. Uma vocação anafórica do poeta em sublinhar e definir formas e sentidos no discurso, que vira estilo por sua reiteratividade. Não admite a forma improvisada, deve ser o produto da atenção extremada. É mineral o papel onde escrever o verso; o verso que é possível não fazer. São minerais as flores e as plantas, as frutas e os bichos quando em estado de palavra. Mineral é uma metáfora que Cabral usará, por toda a vida, para referir‐se à “materialidade” do poema, como são “minerais” as coisas do mundo que o poeta interpreta ou expõe no seu estado de palavra. Drummond prefere aludir à palavra em estado de dicionário. João Cabral inverte o sentido, recorrendo à idéia das coisas em estado de poesia. No fundo, pretendem dizer a mesma coisa: que as palavras só têm significados no corpo do poema, que as coisas do mundo rematerializam‐se na poesia para serem significantes. É mineral a linha do horizonte, nossos nomes, essas coisas feitas de palavras. É mineral, por fim, qualquer livro: que é mineral a palavra escrita, a fria natureza da palavra escrita. A leitura de João Cabral não pode ser meramente pela semântica, no sentido etimológico rigoroso das palavras, porque ele violenta tanto a gramática quanto as significações ordinárias das palavras. Vai exigir, por parte do leitor, a já mencionada relação ou movimentação anafórica e metonímica na recepção, interpretação, decodificação, etc. Se temos as chaves do enigma, se estamos familiarizados com sua linguagem e formato, a leitura dá‐se mais escorreita mas sempre com as ambigüidades originais. Sua linguagem é sempre desconcertante, desorienta e sugere mais que explicita, que ao nominar pode querer disfarçar ou distorcer ou até mesmo confundir... É no “clima” ou na “atmosfera” do anti‐discurso que se pode apreender sua polissêmica mensagem. O poema, com seus cavalos, quer explodir teu tempo claro: romper seu branco fio, seu cimento O poema quer explodir as convenções do leitor, sua leitura viciada, seu “cimento” – experiência para novas formas de leitura e compreensão da poesia. Sem concessões, João Cabral quebra a tradição brasileira da poesia discursiva – arcádica, romântica e parnasiana e, ainda na vigência do modernismo (com seu discurso não raras vezes confessional e até descritivo, quando não descambava para o piadismo). Talvez só Oswald de Andrade tenha rompido com a sintaxe e com a semântica (causando reações de estranheza de seus colegas de 22, até mesmo de Mário de Andrade...) O grande mestre pernambucano João Cabral espanta com sua proposta agreste e, contraditória e paradoxolamente, surrealista e barroca a um tempo... Surrealista pela ousadia de suas metáforas desconcertantes e barroca pelo seu discurso circular, labiríntico, retorcido, até mesmo maneirista. Rompendo paradigmas formais poéticos em voga ‐ espaço de confessionismos, sentimentalismos, testemunhos vãos, beletristas mesmo, que ele repudia. Poesia, te escrevia: flor! Conhecendo que és fezes. Fezes como qualquer, gerando cogumelos (raros, frágeis, cogu melos) no úmido calor de nossa boca. Delicado, escrevia: flor! (Cogumelos serão flor? Espécie estranha, espécie extinta de flor, flor não de todo flor, mas flor, bolha aberta no maduro). Delicado, evitava o estrume do poema, seu caule, seu ovário, suas intestinações. Esperava as puras, transparentes florações nascidas do ar, no ar como as brisas. Evita agora a dissimulação: em vez de flor, fezes... A poesia é fezes, estrume, intestinação, em lugar da “espécie extinta de flor”, que esperava nascesse do ar. Estes versos enigmáticos ou emblemáticos constituem uma espécie de declaração de princípios ou manifesto, do poema ANTIODE, e fazem parte do livro PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO, que é quase todo exclusivamente metapoético. Em que o poeta pretendeu instaurar seu (anti)estilo. João Cabral exercita a quase impossível arte de fazer de sua poesia uma metapoesia. Enquanto que em João Cabral a metapoesia é a poesia, em outros poetas, o que se percebe, é a intenção de criar metapoemas para explicar sua visão da poesia. Pode parecer uma diferença excessivamente sutil, mas não o é, pois é nessa diferença que se percebe a originalidade do poeta pernambucano, sua singularidade nas letras brasileiras. Nada de dizer como se faz ou não se deve fazer poesia. Em vez disso, fazer metapoesia como poesia mesmo. Como não invocar o vício da poesia: o corpo que entorpece ao ar de versos? (...) Venha, mais fácil e portátil na memória, o poema, flor no colete da lembrança. E arremata, nesses fragmentos do longo e sugestivo poema ANTIODE: Poesia, não será esse o sentido em que ainda te escrevo: flor! (Te escrevo: flor! Não uma flor, nem aquela flor – virtude – em disfarçados urinóis. Flor é a palavra flor, verso inscrito no verso, com as manhãs no tempo. Flor é apenas uma flor, diria Fernando Pessoa, palavra no verso, com seu novo sentido: como a manhã no tempo. Flor, agora, é apenas flor como pedra é apenas pedra... É palavra no poema com as significações que se lhe queira atribuir – o “verso inscrito no verso”, lembrando‐nos que verso é uma composição poética. Como poeta, J. C. instaura‐se como um ser onipresente e onisciente em seus poemas, definindo e definindo‐se metalingüisticamente. Retorna, nosso grande poeta, em sua circularidade ou reiteratividade barroca, à luta com as palavras, em busca de novas significações. Poesia, te escrevo agora: fezes, as fezes vivas que és. Sei que outras Palavras és, palavras impossíveis, de poema. Te escrevo, por isso, fezes, palavra leve contando com sua 11 breve. Te escrevo cuspe, cuspe, não mais; tão cuspe como a terceira (como usá‐la num poema?) a terceira das virtudes teologais. Fica por conta do leitor lembrar‐se da terceira virtude teologal, dos pecados capitais. Inútil querer fazer uma interpretação literal de seu discurso, de sua construção ou – como ele prefere – composição verbal. Um exercício de formas e significados intuitivos, automáticos, de “engenheiro” de uma matéria em construção. Daí sua afinidade com a arquitetura e as artes plásticas. Com os pintores surrealistas, cubistas, geometristas em geral, tachistas, com a intimidade de um diplomata que viveu entre eles nos áureos tempos das revoluções estéticas, das correntes artísticas do século passado. Principalmente na França e mais profundamente na sua Espanha tão querida, venerada e versificada. Paisagens com figuras (1954‐1955) A Espanha que em tantos aspectos, o fazia rever/reviver seu Nordeste, revigorar sua pernambucanidade, aquela luminosidade de cemitérios caiados que reencontrava na região mediterrânea ou no norte africano...Quando se nutre do convívio e da leitura dos poetas e dos artistas de sua época – principalmente o monumental Miró – como do grande Miguel Hernández, que reverencia no poema ENCONTRO COM UM POETA (no livro PAISAGENS COM FIGURAS – outra obra de inspiração pictográfica, de paisagens humanas e arquitetônicas..} (...) vim surpreender a presença, mais do que pensei, severa, de certo Miguel Hernández, hortelão de Orihuda. A voz desse tal Miguel, entre palavras e terra indecisa, como em Fraga as casas o estão da terra, foi um dia arquitetura, foi voz métrica de pedra, tal como, cristalizada (...) E mais: Mas a voz que percebi (...) Não era a voz expurgada de suas obras seletas: era uma edição do vento, que não vai às bibliotecas, era uma edição incômoda, a que se fecha a janela, incômoda porque o vento não censura mas libera. Percebe‐se a contrafação das imagens, tão fortes, tão significativas e reveladoras da condição de constrangimento a que estava sujeito o grande poeta da reação ao franquismo vigente em seu país. Miguel Hernández, o grande poeta da resistência espanhola, da palavra libertária, no seu retiro à terra cáustica e sofrida: Vi então que a terra batida do fim da vida do poeta, terra que de tão sofrida acabou virando pedra, se havia multiplicado naquelas facas de areia e que, se multiplicando, multiplicara as arestas. Faca, pedra, areia, aresta. “O vento não censura mas libera”, em que o poeta se vê livre dos patrulhamentos ideológicos conservadores, de “janelas fechadas”, fugindo da censura e do expurgo. Imagino a delicadeza dos despistamentos. Por sorte, à época, o Brasil vivia um período de liberdade de expressão. Seria mais difícil para o poeta tratar do assunto, como diplomata, nos tempos da ditadura brasileira. Sua poesia, no entanto, também sempre foi política, sem um engajamento partidário e militante, mas nitidamente progressista e de denúncia social, que o tornou um ídolo entre as esquerdas dos anos 70. Não cabe aqui ver a metamorfose política da obra cabralina, como seu verso agreste se torna mais ácido pela questão da terra, do latifúndio, da exploração humana que ele, no seu estilo contido e indireto mas certeiro, denuncia. Linguagem cifrada, de aproximações. O poeta e a terra sofrida, o poeta sofrido e a terra, “naquelas facas de areia” ou versos que multiplicavam‐se na consciência de seus leitores solidários, principalmente naqueles desterrados e exilados pelo mundo. A terra sofrida bem podia ser a de origem do próprio João Cabral, em seu desterramento, escrevendo em sua própria língua – telúrica, presa à sua experiência ‐, evocando paisagens familiares de sua formação. Formação é a palavra certa. Forma de vida, formação/composição do poema. Serial (1959‐1961) Em ESCRITOS COM O CORPO, poema de SERIAL (1959‐1961) ele avança: Ela tem tal composição e bem extremada sintaxe, que só se pode apreendê‐la em conjunto: nunca em detalhe. Não se vê nenhum termo, nela, em que a atenção mais se retarde, e que, por mais insignificante, possua, exclusivo, sua chave. Nesses versos entrecortados, enviesados, intercalados, J.C. confirma que o poema se inscreve no mundo pelo corpo‐do‐poeta, como um sistema. É um todo, indivisível. Nem é possível dividi‐la, como a uma sentença, em partes; menos do que nela é sentido, se conseguir uma paráfrase. E assim como, apenas completa, ela é capaz de revelar‐se, apenas um corpo completo tem, de apreendê‐la, faculdade. Uma sintaxe enrevesada, arredondada, de circunferência, de circuito fechado. Apreender o poema com um corpo indivisível, por sua totalidade – podemos dizer? – ôntica, poética? Forma. Não apenas o poema concebe sistêmica e totalmente a realidade no poema como também a apreensão pelo leitor só poderá ser total, holística. Apenas um corpo completo tem a faculdade de apreendê‐la. Apenas um corpo completo e sem dividir‐se em análise será capaz do corpo a corpo necessário a quem, sem desfalque, queira prender todos os temas que pode haver no corpo frase: que ela, ainda sem se decompor, revela então, em intensidade Um corpo a corpo, completudes. Em certo sentido, o poeta condena qualquer digressão interpretativa do poema – como a que estamos a praticar ‐, temendo que a dissecação do poema transforme‐o em cadáver, em corpo estranho. O poema é uma entidade inteira, incontaminada, que pode ser desconstruída pelo leitor, numa empatia supra‐inteligível. Mais pela forma signficante do que pelo sentido sintagmático que pode levar à polissemia. Nada contra isso, que é também válido, mas já entraríamos em outras versões do poema... Chamamos a atenção para a gestalt do poeta, para sua concepção plástica do poema, como uma pintura com palavras e suas formas no espaço da página, e também de seu mondrianismo. É bom lembrar que Mondrian criava estruturas geométricas que extravasavam o espaço da tela, que superavam o espaço pictórico, que transcendiam o figurativismo enquadrado na pintura tradicional. De longe como Mondrians em reproduções de revista ela só mostra a indiferente perfeição da geometria. Porém de perto, o original do que era antes correção fria, sem que a câmara da distância e suas lentes interfiram, porém de perto, ao olho perto, sem intermediárias retinas, de perto, quando o olho é tato, ao olho imediato de cima, se descobre que existe nela certa insuspeita energia que aparece nos Mondrians se vistos na pintura viva. João Cabral povoou seus magistrais livros – publicados ao longo de décadas – com poemas sobre poesia, sobre os poetas de seu universo – Drummond, Vinicius, Bandeira, Murilo Mendes ‐, alguns pernambucanos, mas também franceses, espanhóis... Inclusive o angustiado Augusto dos Anjos, paraibano (para os pernambucanos, a Paraíba faz parte da pan‐geografia pernambucana desde os tempos coloniais...). Augusto dos Anjos não tinha dessa tinta água clara.. (...) E quando usadas como tinta escreveu negro tudo: dão um mundo velado por véus de lama, véus de luto. Assim é, na visão cabralina, a poesia monumental do livro Eu, desse poeta ímpar em nossas letras, afeito a uma geometria de enterro de sua poesia enfileirada. A Escola de Facas (1975‐1980) No primeiríssimo poema de A Escola das Facas ‐ um título tão emblemático!!!‐ J.C. insere o poema “pedagógico” O QUE SE DIZ AO EDITOR A PROPÓSITO DE POEMAS, dedicado aos seus editores José Olympio e Daniel. [É interessante notar como, ao longo de sua vasta obra, João Cabral vai textualizando seus poemas sobre seus relacionamentos com escritores, poetas, pintores, seja no discurso poético, seja em epígrafes e dedicatórias]. O poema em questão “funciona” como uma apresentação da obra, a pretexto de ser uma comunicação com o editor. “Eis mais um livro (fio que o último) de um incurável pernambucano; se programam ainda publicá‐lo, digam‐me, que com pouco o embalsamo.” Que outro gentilício serviria melhor ao grande poeta que o seu “pernambucano”?! Ela fia que seja o último, insinceramente, como‐que desculpando‐se por mais uma obra...E, se vão publicá‐lo, basta para tanto uns últimos retoques no seu “embalsamamento”... Um poema é sempre como um câncer: que química, cobalto, indivíduo parou os desse potro solto? Só o mumificá‐lo, pô‐lo em livro. Domar o processo criativo, em sua química de alucinação e forja, de materialização do poema... Há uma precisa ironia no “embalsamamento” do poema em forma de “livro”, posta a “livre” (de que etimologicamente a palavra deriva), independente... Um câncer que se extirpa.. Louva, depois, no mesmo livro, o mestiço Natividade Saldanha no poema UM POETA PERNAMBUCANO: “quem primeiro mostrou que um poema se podia sobre o ponche de caju, sobre o galo‐de‐campina”. O poeta fora um Pernambucano apressado, léguas à frente então”... João Cabral, outro criador à frente de seu tempo, não apenas no sentido de seu vanguardismo formal – quando os colegas de geração eram bem mais prolixos e discursivos... – mas pela visão de Pernambuco e do Brasil, de mundo. Uma poesia de profundas raízes ibero‐americanas, quem vai fazer a autocrítica (no poema seguinte) e faz também autobiografia: Autocrítica Só duas coisas conseguiram (des)feri‐lo até a poesia: o Pernambuco de onde veio e onde foi, a Andaluzia. Um, o vacinou do falar rico e deu‐lhe a outra, fêmea e viva, desafio demente: em verso dar a ver Sertão e Sevilha. Sertão e Sevilha são geografias desgeometrizadas, contíguas, assemelhadas em seu despatriamento de Pernambuco, em associações e combinações possíveis na experiência formal do poeta. Pernambuco e Andaluzia, sertões... Agrestes (1981‐1985) É óbvia a admiração das vanguardas brasileiras da metade do século passado por Cabral – dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, líderes do Concretismo, a Ferreira Gullar e os neoconcretos em geral. Mas o grande João Cabral jamais se engajou no formalismo geometrizante daquelas vanguardas e a nenhuma outra, salvo em sua essência minimalista e em sua vertente “concretizante” do verso, na busca de concretudes verbais. As mais permanentes de suas assimilações vanguardistas – que nunca assumiu plenamente mas que jamais abandonou... – foi a dos surrealistas e cubistas europeus, que absorveu mais na essência do que no formalismo, mais pela admiração das artes plásticas do que propriamente pela literatura. J. C é um cubista no sentido da construção facetada do discurso, nas abordagens laterais sucessivas de seus temas, numa engenharia que é mais pictórica quanto mais verbal se faz (se concretiza). A propósito de seus relacionamentos com o concretismo, valhamo‐nos de seu poema A AUGUSTO DE CAMPOS para entender a sua visão e posição diante da vanguarda em voga: “Ao tentar passar a limpo, refazer, dar mais decoro ao gago em que falo em verso e nem que tanto me rechovo, pensei que de toda a gente que a nosso ofício ou esforço, tão pra nada, dá‐se tanto que chega quase ao vicioso, você, cuja vida sempre foi fazer (catar o novo talvez veja no defunto coisas não mortas de todo”. Ironicamente se julga um “gago” (entendamos: cubista, reiterativo em sua temática, suas angulações verbais) e “defunto” (por estar anterior às vanguardas em voga, dos concretistas e por persistir em seu estilo...) Mas não morto de todo, produtivo. Você aqui reencontrará as mesmas coisas e loisas que me fazem escrever tanto e de poucas coisas: o não‐verso de oito sílabas (em linha vizinha à prosa) que raro tem oito sílabas, pois metrifica à sua volta; a perdida rima toante que apaga o verso e não soa, que o faz andar pé no chão pelos aceiros da prosa. João Cabral arredonda seus conceitos e se auto‐define de forma magistral! Faz octassílabos sem medir as sílabas... Versos que se sucedem – por isso são versos...‐ para construir seus uni(versos) que ele pretende sejam livres do formalismo – e ninguém foi tão formal quanto o poeta pernambucano! – mas num formalismo que não é precedente ao verso (como nos sonetistas, por exemplo) mas derivado das necessidades formais de seu discurso (“pelos aceiros da prosa”). Evita as rimas e os ritmos fáceis da poesia tradicional (que tarefa difícil para quem vem de uma tradição barda de cordel!!!) que ele reinventou em Morte e Vida Severina). Evita as rimas como quem anda num espaço árido de pedras, de caatinga... Mas, não raras vezes, a rima e o ritmo se lhe impõem mas, como sempre, à posteriori, no processo criativo... Ele não pratica formas como esqueletos. Confessa que também persegue o novo, foge do usual, quer fazer a sua própria vanguarda no sentido da descoberta e da renovação. Nada disso que você construiu durante a vida; muito aquém do ponto extremo ou seja, não foi ao radicalismo das rupturas de concretistas e neoconcretistas, que experimentaram os “extremos”... é a poesia oferecida a quem pode, como a sua, lavar‐se da que existia, levá‐la à pureza extrema em que é perdida de vista; Depurar, superar, transcender, “lavar‐se da que existia”, renovar, inventar. ela que hoje da janela vê que na rua desfila banda de que não faz parte, rindo de ser sem discípula. A poesia de J. C. não se instaura – como pretendeu a de Augusto de Campos – como uma “escola” (com discípulos), não vem precedida de manifestos. Basta a si mesma. No entanto, se manifesta metapoeticamente o tempo todo e seu modo de produzir influenciou uma geração inteira de poetas!!! Por que é então que este livro tão longamente é enviado a quem faz uma poesia de distinta liga de aço? J. C. estaria estranhando a recepção do livro do poeta paulista concretista, cujo trabalho era forjado em “distinta liga de aço”. Envio‐o ao leitor contra, envio‐o ao leitor malgrado e intolerante, o que Pound diz de todos o mais grato Ezra Pound era o paradigma dos vanguardistas. J.C. remete os versos do colega ao público.... àquele que me sabendo não poder ser de seu lado, soube ler com acuidade poetas revolucionados. J. C. não vai se engajar com os concretistas ‐ pressentindo um convite, na remessa do livro pelo colega paulista... ‐, mesmo depois da exegese da obra, “com muita acuidade”... E ironiza: “poetas revolucionados” seriam os concretistas! E não revolucionários como pretendiam... Reconhecendo Cabral como um verdadeiro diplomata (não só de profissão) não estaria ele inferiorizando os participantes de concretismo mas colocando‐os na categoria de criadores engajados num movimento revolucionário, de “escola literária”. O seguinte poema – A W. H. AUDEN – comenta a transmutação da poesia, ao converter prosa em verso ‐, indagando sobre a capacidade de “devolver” o “mundo de que se falou” (no poema). A poesia é mais sintética que a prosa, trabalha mais holisticamente seu discurso. A W. H. Auden Já não descontarei o cheque que certo dia me mandaste: “A João Cabral de Melo Neto, com dez mil amizades, Auden”. Como a morte encerrou tuas contas de libras, dólares, amizade, hoje só resta a conta aberta de teus livros de onde sacar‐se. E de onde há muito que sacar: como botar prosa no verso, como transmudá‐la em poesia, como devolver‐lhe o universo de que falou: como livrá‐la de falar em poesia, língua que se estreitou na cantilena e é estreita de coisas e rimas. Um discurso certinho, racional ao extremo, não é da lavra comum de J. C. que critica o “Escrever como em prateleiras, paralelas, claras, perfeitas; Em que cada coisa se veja posta em rigorosa fileira. Nitidamente e recortadas, com suas faces bem desenhadas; Onde não haja o mal‐entendido” (...) No entendimento do poeta pernambucano, há que deixar “...cada coisa livre na prateleira em que ela existe, em que está em si mesma, viva, e ao mesmo tempo escrita, inscrita. Glosa a boa‐aventurança da boa leitura, da oportunidade criada pelos bons autores – e cita alguns de sua preferência. A Literatura como Turismo Certos autores são capazes de criar o espaço onde se pode habitar muitas horas boas: um espaço‐tempo, como o bosque. Onde se ir nos fins de semana, de férias, até de aposentar‐se: de tudo há nas casas de campo de Camilo, Zé Lins, Proust, Hardy. Refere‐se à prosa de Camilo Castelo Branco, do José Lins do Rego, de Marcel Proust e Thomas Hardy, que fazem viajar e deleitar o leitor. A prosa tem a capacidade de criar o “espaço‐tempo” da leitura... A linha entre ler conviver se dissolve como em milagre; não nos dão seus municípios mas outra nacionalidade, até o ponto em que ler ser lido é já impossível de mapear‐se: se lê ou se habita Alberti? Se habita ou soletra Cádis? Sem dúvida, habita‐se, convive‐se. O poeta indaga sempre sobre o mistério da versão do pensamento no verso, ato de alucinação, de loucura. Vejamos o poema Debruçado sobre os cadernos de Paul Valéry Quem que poderia a coragem de viver em frente da imagem do que faz, enquanto se faz, antes da forma, que a refaz? Uma linguagem um tanto barroca, sem dúvida, mas desusada em versos emparelhados de rimas. Assistir nosso pensamento a nossos olhos se fazendo, Como um prestidigitador, o poeta encena ou cria as imagens a partir dos pensamentos que se vão fazendo. assistir ao sujo e ao difuso com que se faz, e é reto e é curvo. Só sei de alguém que tenha tido a coragem de ser ter visto nesse momento em que só poucos são capazes de ver‐se, loucos de tudo o que pode a linguagem: Valéry – que em sua obra, à margem, revela os tortuosos caminhos que partindo do mais mesquinho, vão dar ao perfeito cristal que ele executou sem rival. Sem nenhum medo, deu‐se ao luxo de mostrar que o fazer é sujo. Surpreendentes estes versos cabralinos, pelas rimas esparsas e pelo final. Perfeitos na sua análise... Volta ao tema da perfeição (do cristal da poesia). Versos mais discursivos, menos fracionados. A surpresa corre por conta do verso “que ele executou sem rival”, que é um elogio (bastante convencional) ao poeta Valéry. Mas ele volta à sua temática trivial em que “o fazer é sujo”. João Cabral é mais reconhecível no seguinte poema: O Último Poema Não sei quem me manda a poesia nem se Quem disso chamaria. Mas quem quer que seja, quem for esse Quem (eu mesmo, meu suor?) seja mulher, paisagem ou o não de que há preencher os vãos, fazer, por exemplo, muleta que faz andar minha alma esquerda, ao Quem que se dá a inglória pena peço: que meu último poema mande‐o ainda em poema perverso, de anti‐lira, feito em antiverso. Afortunadamente, não era o último poema nem o derradeiro metapoema do autor, nem mesmo seu último livro... No poema SOBRE ELISABETH BISHOP, que viveu um produtivo período de sua vida entre nós, continua: Quem falar como ela falou levará a lente especial: não agranda e nem diminui, essa lente filtra o essencial”... Em seguida, reacende a disputa com os baianos pela liderança regional. Salvador tornou‐se capital do nosso Reino Unido com Portugal quando Pernambuco era o celeiro do Brasil; a Bahia foi desmembrada da região Nordeste numa época recente mas voltou à geografia nordestina... que é o Nordeste, onde começamos a ser Brasil (talvez por erro). Estes versos são do poema CONVERSA EM LONDRES (1952) que não entram na categoria de metapoema e foram incluídos apenas fragmentos para atestar a problemática da nordestinidade/pernambucanidade, tema que mereceria outro ensaio... No poema UM PIOLHO DE RUI BARBOSA, Cabral reclama: Certo piolho de Rui Barbosa confiou a um memorialista que se nascer pernambucano é nascer ninguém, é sem chispa. E explicou: a paisagem pouca de Pernambuco não podia parir vulcões de Ruibarbosas, Castroalves (modesto, ele se excluía). Nesse libelo cabralino, ironiza sobre “o único discurso nacional:/ ler como discurso um soneto;/ não poder escrever sem fala;”, concluindo com sarcasmo: Ora, Rui falava apagado, nas horizontais que podia: são os piolhos que em seu piano põem vulcões na melodia. Os pernambucanos, além de seu ímpeto regionalista e revolucionário (de insurreições e proclamações nacionalistas e independentistas ao longo de nossa história), são famosos também por seu ímpeto polemizador. Ainda no livro Agrestes aparece o notável poema QUESTÃO DE PONTUAÇÃO, que entrelaça a idéia das fases da vida com os símbolos gramaticais, até ao “inevitável ponto final” de nossa existência. Todo mundo aceita que ao homem cabe pontuar a própria vida: que viva em ponto de exclamação (dizem: tem alma dionisíaca); Viva em ponto de interrogação (foi filosofia, ora é poesia); viva equilibrando‐se entre vírgulas e sem pontuação (na política); o homem só não aceita do homem que use a só pontuação fatal: que use, na frase que ele vive o ineludível ponto final. Um poema maneirista, curioso e incomum. Viver em ponto de interrogação, em suspenso, coberto de dúvidas, filosofando. Viver é uma breve frase, eludindo o ponto final. UFPB “O PAGADOR DE PROMESSAS” – DIAS GOMES Um homem percorre sete léguas do interior da Bahia até Salvador, carregando uma cruz nos ombros. Todo esse esforço tem apenas um objetivo: agradecer a Santa Bárbara pela recuperação do animal que lhe dá sustento na lavoura. Ao chegar à cidade grande, acompanhado de sua mulher, Zé‐do‐Burro, como passa a ser conhecido, se sente perdido, mas a obstinação de cumprir sua promessa o faz enfrentar qualquer obstáculo. Um estrangeiro em seu próprio país, Zé‐do‐Burro vem de um mundo distante da disputa de poder na qual repentinamente se vê envolvido. Para os poderosos de Salvador, a jornada do pagador de promessas é um perigo ou uma oportunidade. A igreja encara seu périplo como subversivo, pois chama a atenção da população para uma religiosidade não mediada por ela. Para os jornais, a história pode render boas manchetes e grande vendagem. Para a polícia, a inocência de Zé é uma oportunidade de demonstrar sua força. E, para o povo, a luta de um passa a ser a luta de todos. Sobre o autor Membro da Academia Brasileira de Letras, Dias Gomes começou a escrever para teatro aos 15 anos. Até a sua morte, criticou a atual situação da dramaturgia brasileira, que acreditava não ter a menor ligação com a realidade do país. O dramaturgo lamentava que a ditadura tivesse acabado com o crescimento da dramaturgia nacional iniciado nos anos 50. Nas décadas de 60 e 70, teve praticamente todas as peças censuradas pelo regime militar. A peça de Dias Gomes tem nítidos propósitos de evidenciar certas questões sócio‐culturais da vida brasileira, em detrimento do aprofundamento psicológico de seus personagens. Assim, ganha força no drama a visão crítica quanto: a) à intolerância da Igreja católica, personificada no autoritarismo do Padre Olavo, e na insensibilidade do Monsenhor convocado a resolver o problema; b) à incapacidade das autoridades que representam o Estado ‐ no episódio, a polícia ‐ de lidar com questões multiculturais, transformando um caso de diferença cultural em um caso policial; c) à voracidade inescrupulosa da imprensa, simbolizada no Repórter, um perfeito mau‐caráter, completamente desinteressado no drama do protagonista, mas muito interessado na repercussão que a história pode ter; d) ao grande fosso que separa, ainda, o Brasil urbano do Brasil rural: Zé do Burro não consegue compreender por que lhe tentam impedir de cumprir sua promessa; os padres, a polícia, a imprensa não conseguem compreender quem é Zé do Burro, sua origem ingênua, com outros códigos culturais, outras posturas. Além disso, a peça mostra as variadas facetas populares: o gigolô esperto, a vendedora de quitutes, o poeta improvisador, os capoeiristas. O final simbólico aponta em duas direções. Em primeiro lugar a morte do Zé do Burro mostra‐se com fim inevitável para o choque cultural violento que se opera na peça: ninguém, entre as autoridades da cidade grande, é capaz de assimilar o sincretismo religioso tão característico de grandes camadas sociais no Brasil, especialmente no interior nordestino. Em segundo lugar, a entrada dos capoeiristas na igreja, carregando a cruz com o corpo, sinaliza para rechaçar a inutilidade daquela morte: os populares compreenderam o gesto de Zé do Burro. Aspectos estruturais Trata‐se de um texto escrito para teatro, ou seja, para ser levado ao palco, ser encenado. A peça é dividida em três atos, sendo que os dois primeiros ainda são subdivididos em dois quadros cada um. Após a apresentação dos personagens, o primeiro ato mostra a chegada do protagonista Zé do Burro e sua mulher Rosa, vindos do interior, a uma igreja de Salvador e termina com a negativa do padre em permitir o cumprimento da promessa feita. O segundo ato traz o aparecimento de diversos novos personagens, todos envolvidos na questão do cumprimento ou não da promessa e vai até uma nova negativa do padre, o que ocasiona, desta vez, explosão colérica em Zé do Burro. O terceiro ato é onde as ações recrudescem, as incompreensões vão ao limite e se verifica o dramático desfecho. Personagens Zé‐do‐Burro; Rosa; Marli; Bonitão; Padre; Sacristão; Guarda; Beata; Galego; Minha Tia; Repórter; Fotógrafo; Dedé Cospe‐Rima; Secreta; Delegado; Mestre Coca; Monsenhor; Manoelzinho Sua‐Mãe e a Roda de Capoeira Ação: ‐ Salvador Época: ‐ Atual Primeiro ato. Primeiro quadro. A ação da peça tem início nas primeiras horas da manhã [4 e meia], numa praça, em frente a uma igreja, em Salvador. O personagem denominado Zé do Burro carrega uma cruz e se aloja na frente da igreja. A seu lado Rosa, sua mulher, apresentada como tendo 'sangue quente' e insatisfação sexual. Zé espera a igreja abrir para cumprir sua promessa, feita a Santa Bárbara. Aparecem no lugar, algum tempo depois, Marli e Bonitão: ela prostituta; ele, gigolô. Há uma clara relação de exploração e dependência entre eles. Encontrando Zé, Bonitão dirige‐se a ele e percebe ser alguém ingênuo. Rosa, por sua vez, conversando com o gigolô, queixa‐se de Zé, contando que ele, na sua promessa, dividiu suas terras com lavradores pobres. Percebendo a ingenuidade, Bonitão propõe‐se a providenciar um local para Rosa descansar. Zé não só aceita, como incentiva. Saem os dois, Bonitão e Rosa, de cena. Segundo quadro. Aos poucos, começa o movimento ao redor da praça. Aparecem a Beata, o sacristão e o Padre Olavo, titular da igreja. Zé explica a promessa: Nicolau foi ferido com a queda de uma árvore; estando para morrer, Zé fez a promessa. O burro ‐ Nicolau é um burro! ‐ salva‐se. Ingenuamente, Zé revela ter usado as rezas de Preto Zeferino e feito a promessa num terreiro de candomblé, a Iansã, equivalente afro de Santa Bárbara. O padre fica escandalizado. Estabelece‐se o conflito. O sincretismo Iansã‐Santa Bárbara, natural para Zé do burro, é um grandioso pecado para o padre. A situação agrava‐se com a revelação da divisão de terras. Impasse. O padre manda fechar a igreja e proíbe o cumprimento da promessa. Zé do burro fica atônico. Primeiro Ato Primeiro Quadro Ao subir o pano, a cena está quase às escuras. Apenas um jato de luz, da direita, lança alguma claridade sobre o cenário. Mesmo assim, após habituar a vista, o espectador identificará facilmente uma pequena praça, onde desembocam duas ruas. Uma à direita, seguindo a linha da ribalta, outra à esquerda, ao fundo, de frente para a platéia, subindo, encadeirada e sinuosa, no perfil de velhos sobrados coloniais. Na esquina da rua da direita, vemos a fachada de uma igreja relativamente modesta, com uma escadaria de quatro ou cinco degraus. Numa das esquinas da ladeira, do lado oposto, há uma vendola, onde também se vende café, refresco, cachaça etc.; a outra esquina da ladeira é ocupada por um sobrado cuja fachada forma ligeira barriga pelo acúmulo de andares não previsto inicialmente. O calçamento da ladeira é irregular e na fachada dos sobrados vêem‐se alguns azulejos estragados pelo tempo. Enfim, é uma paisagem tipicamente baiana, da Bahia velha e colonial, que ainda hoje resiste à avalancha urbanística moderna. Devem ser, aproximadamente, quatro e meia da manhã. Tanto a igreja como a vendola estão com suas portas cerradas. Vem de longe o som dos atabaques dum candomblé distante, no toque de Iansan. Decorrem alguns segundos até que Zé‐do‐Burro surja, pela rua da direita, carregando nas costas uma enorme e pesada cruz de madeira. A passos lentos, cansado, entra na praça, seguido de Rosa, sua mulher. Ele é um homem ainda moço, de 30 anos presumíveis, magro, de estatura média. Seu olhar é morto, contemplativo. Suas feições transmitem bondade, tolerância e há em seu rosto um “quê” de infantilidade. Seus gestos são lentos, preguiçosos, bem como sua maneira de falar. Tem barba de dois ou três dias e traja‐se decentemente, embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira. Rosa parece pouco ter de comum com ele. É uma bela mulher, embora seus traços sejam um tanto grosseiros, tal como suas maneiras. Ao contrário do marido, tem “sangue quente”. É agressiva em seu “sexy”, revelando, logo à primeira vista, uma insatisfação sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar. Veste‐se como uma provinciana que vem à cidade, mas também como uma mulher que não deseja ocultar os encantos que possui. Zé‐do‐Burro vai até o centro da praça e aí pousa a sua cruz, equilibrando‐a na base e num dos braços, como um cavalete. Está exausto. Enxuga o suor da testa. Segundo ato. Primeiro quadro. Duas horas mais tarde, já a movimentação no lugar é intensa. O Galego, dono do bar, abriu seu estabelecimento. Surgem Minha Tia, vendedora de acarajés, carurus e outras comidas típicas, Dedé Cospe‐Rima, poeta popular, ao estilo repentista e o Guarda. Zé do burro quer cumprir a promessa. O Guarda tenta intervir. Rosa reaparece com 'ar culpado'. Chega o Repórter. Seguindo a linha do oportunismo sensacionalista, o repórter quer tirar vantagens da história de Zé do Burro. Quer torná‐lo um mártir, para virar notícia. Enquanto isso descobre‐se que Rosa transou com Bonitão. Marli faz um pequeno escândalo, denunciando a história Rosa com Bonitão. Segundo quadro. Três da tarde, Dedé oferece poemas para Zé, a fim de derrotar o Padre. Aparecem, em momentos subseqüentes, o capoeirista Mestre Coca e o policial, o Secreta, chamado por Bonitão, ficando ambos, por enquanto, nas cercanias. Zé começa a perder a paciência e arma uma gritaria. O padre reage. Chega o Monsenhor, autoridade da igreja, propondo a Zé uma solução: ele, Monsenhor, na qualidade de representante da Igreja, pode liberar Zé da promessa, dando‐a por cumprida. Zé não aceita, dizendo que promessa foi feita à Santa e só ela poderia liberá‐lo. Segue o impasse. Zé explode novamente e avança com a cruz sobre a Igreja. O padre fecha a porta. Zé, já desesperado, bate com a cruz na porta. O drama é total. Segundo Ato Primeiro Quadro Aproximadamente, duas horas depois. Abriu‐se a vendola e o Galego aparece trepado num caixote, amarrando um cordão com bandeirolas vermelhas e brancas que vai da porta da venda ao sobrado do lado oposto. Zé e sua cruz continuam no meio da praça. Ouve‐se um pregão: “Beiju... olha o beiju!” Logo após, surge no alto da ladeira uma preta em trajes típicos, com um tabuleiro na cabeça. Ela desce a ladeira e ao passar pelo Galego saúda. Minha Tia Iansan lhe dê um bom‐dia. Galego (Espanhol) Gracias, Minha Tia. Minha Tia vai até à igreja e aí, junto dos degraus, pára. A critério da direção e em momentos em que não prejudiquem a ação, transeuntes cruzarão a praça, durante todo o ato. Minha Tia (Para o Galego) Quer vir aqui dar uma mãozinha pra sua tia, meu branco? Galego apressa‐se a ir ajudá‐la. Retira primeiro o cavalete que está sobre o tabuleiro, abre‐o, depois ajuda‐a a tirar o tabuleiro da cabeça e colocá‐lo em cima do cavalete. Minha Tia Santa Bárbara lhe pague. (Nota Zé‐do‐Burro) Oxente! Que é aquilo? Galego Não sei. Já estava acá quando abri a venda. Parece maluco. (Volta a pregar as bandeirolas, enquanto Minha Tia põe‐se a arrumar o fogareiro, procura acendê‐lo). Desce a ladeira, passo mole, preguiçoso, Dedé Cospe‐Rima. Mulato, cabeleira pixaim, sob o surrado chapéu de coco ‐ um adorno necessário à sua profissão de poetacomerciante. Traz, embaixo do braço, uma enorme pilha de folhetos: abecês, romances populares em versos. E dois cartazes, um no peito, outro nas costas. Num se lê: “ABC da Mulata Esmeralda ‐ uma obra‐prima” e no outro “Saiu agora, tá fresco ainda! O que o cego Jeremias viu na Lua”. Dedé (declama) Bom dia, Galego amigo! dia assim eu nunca vi; para saudar Iansan, não repare eu lhe pedi: me empreste por obséquio dois dedos de parati. Galego É, com esta história de hacer versos, usted sempre me leva na conversa. (entra na venda e dá a volta por trás do balcão) É boa mesmo essa do cego Jeremias? (Serve o parati). Terceiro ato. Entardecer. Muita gente na praça e nos arredores da Igreja. Há uma roda de capoeira. O Galego, oportunista, oferece comida grátis a Zé, pois a história está trazendo movimento ao seu bar. O Secreta, no bar, avisa que a polícia prenderá Zé, ameaçando os capoeiristas, caso eles interfiram. Marli volta. Ofende Rosa, ofende Zé. O protagonista parece mudar de atitude. Resolve ir embora 'à noite'. Rosa quer ir embora já. Conta que Bonitão avisou a polícia. Retorna o repórter, que tenta montar um verdadeiro circo em torno do Zé, com o objetivo de vender o jornal. Chega Bonitão e convida Rosa para ir com ele. Zé pede a ela para ficar. Rosa hesita, a princípio, mas, em seguida, vai com Bonitão. Mestre Coca avisa Zé sobre a chegada da polícia. Zé está perplexo: 'Santa Bárbara me abandonou'. Da igreja saem o Sacristão, o Guarda, o Padre e o Delegado. Tensão da cena acentua‐se. Zé ainda tenta, ingênua e inutilmente, explicar alguma coisa. Ao ser cercado, puxa uma faca. As autoridades reagem. Os capoeiristas também. Briga e confusão. De repente, um tiro espalha gente para todos os lados. Zé é mortalmente ferido. Mestre Coca olha para os companheiros, que entendem a mensagem. Os capoeiristas tomam o corpo do Zé colocam‐no sobre a cruz e, ignorando padre e polícia entram na igreja, carregando a cruz. Zé Me deixe, Rosa! Não venha pra cá! Zé‐do‐Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja. Sobe um ou dois degraus, de costas. O Padre vem por tráse dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a faca vá cair no meio da praça. Zé‐do‐Burro corre e abaixa‐se para apanhá‐la. Os policiais aproveitam e caem sobre ele, para subjugá‐lo. E os capoeiros caem sobre os policiais para defendê‐lo. Zé‐do‐Burro desapareceu na onda humana. Ouve‐se um tiro. A multidão se dispersa como num estouro de boiada, Fica apenas Zé‐do‐Burro no meio da praça, com as mãos sobre o ventre Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto Rosa (Num grito) Zé! (corre para ele) Padre (Num começo de reconhecimento de culpa) Virgem Santíssima! Delegado (Para o Secreta) Vamos buscar reforço (Sai, seguido do Secreta e do Guarda). O Padre desce os degraus da igreja, em direção do corpo de Zé‐do‐Burro. Rosa (Com rancor) Não chegue perto! Padre Queria encomendar a alma dele... Rosa Encomendar a quem? Ao Demônio? O Padre baixa a cabeça e volta ao alto da escada. Bonitão surge na ladeira. Mestre Coca consulta os companheiros com o olhar. Todos compreendem a sua intenção e respondem afirmativamente com a cabeça. Mestre Coca inclina‐
se diante de Zé‐do‐Burro, segura‐o pelos braços, os outros capoeiras se aproximam também e ajudam acarregar o corpo. Colocam‐no sobre a cruz, de costas, com os braços estendidos, como um crucificado. Carregam‐no assim, como numa padiola e avançam para a igreja. Bonitão segura Rosa por um braço, tentando levá‐la dali. Mas Rosa o repele com um safanão e segue os capoeiras. Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira. Intimidados, o Padre e o Sacristão recuam, a Beata foge e os capoeiras entram na igreja com a cruz, sobre ela o corpo de Zé‐do‐Burro. O Galego, Dedé e Rosa fecham o cortejo. Só Minha Tia permanece em cena. Quando uma trovoada tremenda desaba sobre a praça. Minha Tia (Encolhe‐se toda, amedrontada, toca com as pontas dos dedos o chão e a testa) Êparrei minha mãe! UFPB “USINA” JOSÉ LINS DO REGO Quarto ocupante da Cadeira 25, eleito em 15 de setembro de 1955, na sucessão de Ataulfo de Paiva e recebido pelo Acadêmico Austregésilo de Athayde em 15 de dezembro de 1956. José Lins do Rego (J. L. do R. Cavalcanti) foi romancista e jornalista. Nasceu no Engenho Corredor, Pilar, PB, em 3 de junho de 1901, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 12 de setembro de 1957. Filho de João do Rego Cavalcanti e de Amélia Lins Cavalcanti, fez os primeiros estudos no Colégio de Itabaiana, PB, no Instituto N. S. do Carmo e no Colégio Diocesano Pio X de João Pessoa. Depois estudou no Colégio Carneiro Leão e Osvaldo Cruz, em Recife. Desde então revelaram‐se seus pendores literários. É de 1916, o primeiro contato com O Ateneu, de Raul Pompéia. Em 1918, aos 17 anos, José Lins travou conhecimento com Machado de Assis, através do Dom Casmurro. Desde a infância, já trazia consigo outras raízes, do sangue e da terra, que vinham de seus pais, passando de geração em geração por pessoas ligadas ao mundo rural do Nordeste açucareiro. Passou a colaborar no Jornal do Recife. Em 1922 fundou o semanário Dom Casmurro. Formou‐se em 1923 na Faculdade de Direito do Recife. Durante o curso, ampliou seus contatos com o meio literário pernambucano, tornando‐se amigo de José Américo de Almeida, Osório Borba, Luís Delgado e Aníbal Fernandes. Sua amizade com Gilberto Freyre, na volta em 1923 de uma temporada de estudos universitários nos Estados Unidos, marcou novas influências no espírito de José Lins, através das idéias novas sobre a formação social brasileira. Nomeado em 1925 promotor em Manhuçu, MG, não se demorando. Casado em 1824 com D. Filomena (Naná) Masa Lins do Rego, transferiu‐se em 1926 para a capital de Alagoas, onde passou a exercer as funções de fiscal de bancos até 1930 e fiscal de consumo de 1931 a 1935. Em Maceió, tornou‐se colaborador do Jornal de Alagoas e passou a fazer parte do grupo de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Aurélio Buarque de Holanda, Jorge de Lima, Valdemar Cavalcanti, Aloísio Branco e Carlos Paurílio. Ali publicou o primeiro livro, Menino de engenho (1932), obra que se revelou de importância fundamental na história do moderno romance brasileiro. Além das opiniões elogiosas da crítica, sobretudo de João Ribeiro, o livro mereceu o Prêmio da Fundação Graça Aranha. Em 1933, publicou Doidinho, o segundo livro do "Ciclo da Cana‐de‐Açúcar". Em 1935, já nomeado fiscal do imposto de consumo, José Lins do Rego transferiu‐se para o Rio de Janeiro, onde passou a residir. Integrando‐se plenamente no ambiente carioca, continuou a fazer jornalismo, colaborando em vários jornais com crônicas diárias. Revelou‐se, então, por essa época, a faceta esportiva de sua personalidade, sofrendo e vivendo as paixões desencadeadas pelo futebol, o esporte de sua predileção, foi torcedor do Flamengo. Foi secretário geral da Confederação Brasileira de Desportos de 1942 a 1954. Romancista da decadência dos senhores de engenho, sua obra baseia‐se em memórias e reminiscências. Seus romances levantam todo um sistema econômico de origem patriarcal, com o trabalho semi‐escravo do eito, ao lado de outro aspecto importante da vida nordestina, ou seja, o cangaço e o misticismo. O autor desejaria que a sua obra romanesca fosse dividida: Ciclo da cana‐de‐açúcar: Menino de engenho, Doidinho, Bangüê, Fogo morto e Usina; Ciclo da cangaço, misticismo e seca: Pedra Bonita e Cangaceiros; Obras independentes: a) com ligações nos dois ciclos: Moleque Ricardo, Pureza, Riacho Doce; b) desligadas dos ciclos: Água‐mãe e Eurídice. Prêmios recebidos: Prêmio da Fundação Graça Aranha, pelo romance Menino de engenho (1932); Prêmio Felipe d'Oliveira, pelo romance Água‐mãe (1941), e Prêmio Fábio Prado, pelo romance Eurídice (1947). Obras Ciclo da cana‐de‐açúcar: Menino de engenho (1932); Doidinho (1933); Bangüê (1934); O moleque Ricardo (1935); Usina (1936); Fogo morto (1943). Ciclo do misticismo e do cangaço: Pedra Bonita (1938); Cangaceiros (1953). Temas diversos: Pureza (1937);Riacho doce (1939); Eurídice (1947). O ciclo da cana‐de‐açúcar Na obra de José Lins do Rego, a parte mais importante é a que corresponde ao chamado ciclo da cana‐de‐
açúcar. Partindo de experiências autobiográficas – a vida no engenho do avô –, o escritor encontra na memória o fundamento de seus romances, nos quais fixa melancolicamente a decadência do engenho‐de‐açúcar, substituído como modo de produção pela usina. Participante ou pelo menos observador deste processo, José Lins do Rego esforça‐se para registrar a verdadeira revolução social desencadeada pela nova tecnologia de produção açucareira que, em pouco tempo, levou um grande número de senhores de engenho a mais completa bancarrota econômica. Pesou também sobre o autor de Fogo morto, a influência de Gilberto Freyre, cujo Manifesto regionalista, de 1926, propugnava por uma arte voltada para as questões específicas da sociedade nordestina. No prefácio de Usina, o próprio José Lins do Rego delimitou o ciclo da cana‐de‐açúcar: A história desses livros é bem simples: comecei querendo apenas escrever umas memórias que fossem as de todos os meninos criados nas casas‐grandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço da vida o que eu queria contar. Sucede, porém, que um romancista é muitas vezes o instrumento apenas de forças que se acham escondidas no seu interior. Depois de Menino de engenho, veio Doidinho, em seguida Bangüê. Carlos de Melo havia crescido, sofrido e fracassado. Mas, o mundo do Santa Rosa não era só Carlos de Melo. Ao lado dos meninos de engenho havia os que nem o nome de menino podiam usar, os chamados “moleques de bagaceira”, os Ricardos. Ricardo foi viver por fora do Santa Rosa, a sua história que é tão triste quanto a de seu companheiro Carlos. Foi ele de Recife a Fernando de Noronha. Muita gente achou‐o parecido com Carlos de Melo. Pode ser que se pareçam. Viveram tão juntos um do outro, foram íntimos na infância, tão apegados (muitos Carlos beberam do mesmo leite materno dos Ricardos) que não seria de espantar que Ricardo e Carlinhos se assemelhassem. Pelo contrário. Depois de Moleque Ricardo veio Usina, a história do Santa Rosa, arrancado de suas bases, espatifado, com moendas gigantes devorando a cana madura que as suas terras fizeram acamar pelas várzeas. Carlos de Melo, Ricardo e o Santa Rosa se acabaram, têm o mesmo destino, estão intimamente ligados, a vida de um tem muito da vida de outro. Uma grande melancolia os envolve de sombras. Carlos foge, Ricardo morre pelos seus e o Santa Rosa perde até o nome, se escraviza. Estilo do autor Marcado por frases curtas, pela espontaneidade e oralidade, próprias do cotidiano, o estilo do autor já se faz presente em "Menino de Engenho", seu primeiro romance, de 1932, que lhe rendeu o Prêmio da Fundação Graça Aranha. Esse livro já integra o seu ciclo da cana‐de‐açúcar, completado ainda por "Doidinho" (1933), "Bangüê" (1934), "O Moleque Ricardo" (1935), "Usina" (1936) e o próprio "Fogo Morto" (1943).O último romance dessa saga nordestina é dividido em três partes: "Mestre José Amaro", "O Engenho de Seu Lula" e "Capitão Vitorino Carneiro da Cunha". A primeira trata especificamente do seleiro homônimo. Cada vez mais ensimesmado e agressivo, é abandonado pela esposa, vê a filha enlouquecer e perde o emprego com a progressiva crise econômica. Solitário, suicida‐se. Engenho em declínio A segunda focaliza o próprio Engenho Santa Fé. Inicialmente, há a prosperidade levada adiante pelo fundador, o capitão Tomás Cabral de Melo. Já o seu genro, Luís César de Holanda Chacon, o Seu Lula, mais aristocrático, religioso e extremamente preconceituoso em relação aos negros, conduz o empreendimento ao declínio. O Capitão Vitorino é o centro das atenções na parte final. Compadre de mestre Amaro e ironizado até a segunda parte do livro, torna‐se, no último terço, um Dom Quixote do sertão nordestino, com todo um discurso em prol da justiça e da igualdade social, que desafia o poder dos latifundiários. Sonhava então em atingir o poder político e, mesmo sem possibilidades concretas de tornar esse desejo realidade, imagina‐se em postos de comando, escolhendo assessores e recebendo aclamações da população. Temos assim, a narrativa de três fracassos: o seleiro que dá fim à sua existência isolado, o engenho cujo fogo não é mais acesso e o sonhador que vive mergulhado em suas fantasias de atingir uma posição social que está, na prática, bem distante dele. Essas derrotas são narradas com vigor por um escritor que, como mostrou seu discurso de posse na ABL, nunca se preocupou em agradar ao poder, seja na esfera literária, econômica ou política. Oscar D'Ambrosio, jornalista, mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é crítico de arte e integra a Associação Internacional de Críticos de Artes (Aica ‐ Seção Brasil). Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação. Usina retoma a história do Moleque Ricardo, a partir de sua prisão com os companheiros grevistas em Fernando de Noronha até o seu retorno ao engenho. Com pouco mais de estariam no velho Santa Rosa, que Ricardo deixara há oito anos, fugido, como de um presídio, de uma ilha de trabalhos forçados. escapara de lá para não ser alugado e fora pior que isso. Tivera dores que os alugados não sofriam nunca. É na segunda parte do livro que começa propriamente Usina, quando são narrados os acontecimentos que envolvem o Santa Rosa depois que Carlos Melo, fugindo dos problemas que envolviam o engenho, entrega seu patrimônio a parentes. O Santa Rosa transforma‐se na Usina Bom Jesus. O Dr. Juca sonha com o prestígio, negociando com Zé Marreira, proprietário da Fazenda São Félix, deixa‐se levar pela ambição e faz a sua primeira operação desastrosa. As hipotecas contraídas e a pressão da Usina São Félix, na figura do Dr. Luís, terminam por forçar a venda. A enchente do Rio Paraíba, destruindo a antiga propriedade, simboliza o fim de um ciclo. O usineiro retira‐se com a família em meio à destruição física dos seus antigos domínios. Usina, de José Lins do Rego, possui narrativa descritiva do meio de vida nos engenhos de açúcar e nas plantações de cana do Nordeste. Em 1936, após a publicação dessa obra, José Lins do Rego decretou o fim do "ciclo da cana‐de‐açúcar". A obra é excessivamente descritiva, parecendo mais uma aula de economia do que uma obra ficcional. Neste último romance, José Lins retrata a decadência dos engenhos por força do processo industrial das usinas, que suplantam a produção artesanal. O que diz a crítica Maravilhoso mundo jovem açucareiro Mário Maestri Em 1932, José Lins do Rego debutou com o romance Menino de engenho. A ele, seguiram‐se, um por ano, Doidinho, Bangüê, O moleque Ricardo e Usina, batizados pelo ficcionista de "Ciclo da Cana‐de‐açúcar". Em mais uma prova de que o autor é também o seu tema, anos mais tarde, em 1943, após abordar ficcionalmente outros domínios sem igual felicidade, voltou a tratar a sociedade açucareira com Fogo morto, sua mais expressiva obra. O "Ciclo da Cana‐de‐açúcar" é contemporâneo de outro monumento literário nacional: Casa grande & senzala, a tese sociológica de Gilberto Freyre sobre a sociedade açucareira escravista nordestina, de 1933. Dez anos antes, em 1923, José Lins do Rego conhecera o ínclito pernambucano, que exerceu sobre ele imediata e profunda influência intelectual, como o próprio ficcionista declarou. As grandes teses de Gilberto Freyre sobre o caráter patriarcal da sociedade escravista nordestina teriam verdadeira tradução literária nas obras do romancista paraibano. Porém, seria um crasso erro explicar o "Ciclo da Cana‐de‐açúcar" como desdobramento ficcional das visões do afamado sociólogo. É certamente mais correto dizer que os dois mestres, na mesma época, com igual genialidade e semelhantes visões de mundo, abeberaram‐se em um mesmo manancial. Apenas nesse quadro mais geral é possível compreender as eventuais inter‐influências dos autores. Os anos dourados. No seu livro clássico, apoiado em farta documentação, Gilberto Freyre analisou a gênese e consolidação da produção escravista açucareira nordestina. Baseado sobretudo em suas reminiscências de filho e neto de senhor‐de‐engenho, José Lins do Rego traçou um grande painel dos estertores daquele mundo, nas décadas seguintes à Abolição. A grande fonte alimentadora das duas interpretações foi a difusa, rica e contraditória memória das elites nordestinas da sociedade açucareira. Nesse sentido, apesar das linguagens distintas ‐sociológica e ficcional ‐, os dois autores convergiram no esforço de imortalizar e justificar o mundo dos engenhos nordestinos. Paradoxalmente, neste 2001, quando José Lins completaria 100 anos e Gilberto Freyre 101, podemos constatar que as duas leituras do passado, paridas praticamente na mesma época, envelheceram em forma desigual. Enquanto Casa‐grande & senzala perde terreno como análise científica da gênese da sociedade açucareira, a obra de José Lins cresce como registro, também histórico e sociológico, da crise daquele universo! Realidade que reforça as identidades e desigualdades da literatura ficcional e das ciências sociais. O menino e o engenho. Em Menino de engenho, na primeira pessoa, José Lins do Rego relata as "memórias" suas e de "todos os meninos criados nas casas‐grandes". Ao igual do que em Bangüê e nos demais romances, constrói precioso painel da sociedade açucareira paraibana, onde também os moleques, as negras da casa, as velhas africanas, os moradores pobres, os homens do eito protagonizam o espetáculo. Em verdade, os personagens do "Ciclo da Cana‐de‐açúcar" encarnam as grandes categorias sociais do mundo rural do após‐1888, desnudadas tendencialmente em suas naturezas históricas objetivas, por um narrador de recursos interessado em não fracassar na criação de universo ficcional. Devido a isso, o leitor entrevê com detalhes o paradoxal cativeiro de homens livres que se substituíra à ordem escravista. Seguindo a grande tese de Gilberto Freyre, José Lins descreve uma sociedade açucareira dominada pelas relações patriarcais entre amos e trabalhadores, moleques negros e meninos brancos. Como o sociólogo consagrado, apresenta um mundo onde o próprio intercurso sexual estabelece intimidade que aproximaria senhores e servos. Entretanto, ao encenar ficcionalmente a tese da complementaridade assimétrica da sociedade açucareira, desvela na trivialidade dos atos quotidianos um mundo alicerçado na violência e desprezo dos senhores para com os subalternos. Aqui também, para imitar a vida, a arte exigiu ao narrador dois passos além da vontade explícita do autor. Era de titãs. A louvação de José Lins ao universo açucareiro dá‐se através do elogio de Zé Paulino, avô do menino Carlos de Melo. Espécie de senhor feudal, o rústico engenheiro dirigia com punho de ferro seu infindável império de terras e homens. O romancista desdobra‐se para demonstrar que o trato duro, a paga curta e a linguagem crua com que brindava os moradores mascaravam sua verdadeira essência: o engenheiro viveria para o trabalho e seria verdadeiramente afeiçoado aos dependentes: "O velho José Paulino governava os seus engenhos com o coração" ‐ revela o narrador. O menino Carlinhos vai ao Colégio ‐ Doidinho ‐ e, jovem advogado, volta para assistir à decadência física do avô, relatada em Bangüê. Enquanto a modernidade das usinas devorava inexoravelmente os agora arcaicos engenhos, os anos carcomiam sem dó aquele homem que já fora um colosso. Em Bangüê, a morte do velho ‐ personagem‐síntese da classe dos engenheiros ‐ é pranteada pelos trabalhadores do engenho Santa Rosa. O transpasso do velho e a ascensão do neto ao mando do engenho permitem que prossiga o emocionado elogio à classe senhorial em extinção, como o fez igualmente Gilberto Freyre, em Casa‐grande & senzala. Senhor, se nasce! Não eram os privilégios, o direito ao mando, a riqueza, o suor dos humildes que haviam construído o passado glorioso! Carlos de Melo tudo recebe em herança e tudo perde. Não que fosse pródigo, aventureiro, irresponsável. Até mesmo aplicado, era! Apenas não pertenceria à estirpe dos titãs que, com perseverança, trabalho e autoridade, suportavam o pesado bastão de mando do engenheiro! Em O moleque Ricardo, primeiro romance na terceira pessoa, retira‐se o melhor rebento da bagaceira para alçá‐lo à condição de proletário, cotejando‐se assim o mundo material e espiritual do operário de engenho ao da fábrica. É a narrativa ficcional repetindo a tese da sociologia e das elites nordestinas, segundo a qual a sorte do "alugado" do eito vencia por bem mais do que um focinho a de "assalariado" urbano. Porém, de certo modo, a volta do moleque Ricardo ao engenho, do qual fugira aos 16 anos, registra que o caminho abandonado já era o único possível a ser seguido. Em Santa Rosa, o trabalhador urbano fracassado tenta inutilmente ressuscitar um mundo que pertencia ao passado. O doutor Juca, o mais dinâmico, preparado e cúpido descendente de Zé Paulino, transformara o bangüê em usina. Agora, as novas máquinas infernais, com seus ritmos insanos, devoravam insensíveis canas, homens, hábitos e valores. Era a cidade chegando ao campo! Devoram até mesmo o executor da metamorfose, o engenheiro Juca que se reciclara, apenas parcialmente, em usineiro. Era o fim de todo um mundo. A roupa suja. O "ciclo da cana‐de‐açúcar" constitui testamento literário de universos em agonia. Ao apresentar O moleque Ricardo, Cavalcanti Proença lembra que os dois temas mais recorrentes dos romances são a morte e o medo da morte. Sem poder voltar‐se para o futuro, o narrador mergulha no impasse e no pessimismo. Para construir seu elogio ao senhor‐de‐engenho, a sensibilidade de José Lins levou‐o a retirar do olvido o alter‐ego do grande homenageado: o trabalhador sofrido, anônimo construtor do mundo sobre os quais os senhores do açúcar reinaram. Caso raro na literatura brasileira de sua e de nossa época, construiu um romance inteiro tendo como protagonista um trabalhador negro! Enquanto o sociólogo pernambucano olhava nostálgico da janela da casa‐grande os negros e negras curvados pelo trabalho, o ficcionista paraibano devolvia‐lhes o nome, a carne e a alma, ao ir ao encontro e misturar‐
se gostosamente com eles na cozinha, engenho e eito. Desabusando José Lins do Rego, o menino arteiro que abriu o ciclo magnífico continua ainda hoje levando os leitores pela mão aos mais profundos recônditos do bangüê que Gilberto Freyre e seu avô Zé Paulino mantiveram com sucesso velados aos olhos curiosos dos estranhos. Mário Maestri é professor universitário e escritor; autor, entre outros de A segunda morte de Castro Alves: genealogia de um revisionismo, 1999. 

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