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30/08/2004 Gisele Bündchen é mais que Julia Roberts (Entrevista de Gilles Lipovetsky na revista 'Isto É/Gente') O filósofo mais requisitado pelas grandes grifes explica por que o mercado do luxo explodiu e diz que na sociedade hipermoderna as supermodelos roubaram o lugar das estrelas de cinema Gisele Vitória e Luciano Suassuna Gilles Lipovetsky, 60 anos, é dono de um carro mas faz tudo a pé na cidade onde reside, a francesa Grenoble. Tem computador mas só escreve os livros à mão. Parece anacrônico mas é um homem à frente de seu tempo. Estudioso dos três fenômenos que marcam o mundo de hoje – o avanço tecnológico, o consenso da economia de mercado e o excesso de individualismo – ele escreveu Os Tempos Hipermodernos (Ed. Barcarolla, 138 págs.), lançado em São Paulo na quarta-feira 25. “Na vida das pessoas, a hipermodernidade é o contraste entre o excesso e uma sociedade obcecada pela moderação”, diz. “Sou fascinado pelo que os intelectuais desprezam: a aparência, a sedução, o consumismo. O ser humano não existiria sem o jogo da aparência e do superficial.” Casado, pai de uma advogada de 30 anos e de uma estudante de arquitetura de 18, o filósofo francês prescinde, na vida particular, do estilo de vida para o qual devota seu pensamento. “Posso viver em qualquer lugar com uma folha de papel”, diz ele. Mas confessa: “O luxo? Minha mulher e minhas filhas o adoram”. O que significa hipermodernidade? Na vida das pessoas, a hipermodernidade é o contraste entre o processo de excesso e, ao mesmo tempo, uma sociedade obcecada pela moderação, pelo equilíbrio. Pegue, por exemplo, a sexualidade: existe a pornografia, que é o excesso de imagens, de corpos, de variações, e existe o cotidiano, no qual o sexo não é transbordante, é até comedido – as pessoas trocam pouco de parceiros, rapidamente formam casais. Quem são os ícones dos tempos hipermodernos? Chefes de empresas, executivos, já que o capitalismo é propulsor desta hipermodernidade. E porque não são só quem ganha dinheiro – mas um modelo de vida prestigioso. E também o homem anônimo que aparece nos reality shows e os atletas, que têm uma popularidade planetária maior que a dos políticos. Até porque não há políticos hipermodernos. Mesmo George W. Bush? O homem político participa da sociedade hipermoderna, mas não é ícone. Como no filme de Michael Moore (Fareinht 11/9), Bush é vilão. E Bin Laden? Ele sim. Ele é um vilão hipermoderno que faz um terrorismo de massa. O terrorismo existe desde o século 19, mas hoje ele desestabiliza as economias. Está no coração do funcionamento do planeta. Bin Laden é uma figura arcaica, pelo fundamentalismo religioso, mas ao mesmo tempo está conectado à internet e faz balançar Wall Street. E Lula? É bem interessante, porque ele vem de uma tradição moderna, o trotskismo. Só que Lula continua a fazer o discurso do antimundialismo, porque entendeu que não se pode fazer um revolução violenta, mas joga o jogo da globalização. Esta postura é hipermoderna. Qual o papel da moda na hipermodernidade? É central. Na sociedade moderna, a moda era um fenômeno restrito às roupas e permitido só à elite. A partir de 1950, com a sociedade de consumo e de comunicação, a lógica da moda ganha todas as esferas da sociedade. E deixa de ser uma lógica do vestuário para ser uma lógica de todas as indústrias. Por quê? Toda a indústria passa a funcionar com a renovação sistemática. Por que você troca de celular? Por que há celulares nos quais você troca de capas? Por causa da lógica da moda. Hoje um computador sai de moda mais rápido que uma roupa. Pegue os tênis de cano longo. Em 1950 havia um modelo, hoje cada marca, Nike, Reebok, tem dezenas de modelos, renováveis. A lógica da moda é a lógica das marcas, do marketing. Ela faz a sociedade funcionar. Hoje, marcas de luxo fazem a comunicação. Antes o luxo era chique e discreto, para poucos. Hoje está em todos os lugares, há uma agressividade do luxo, com suas top models. Mas ao mesmo tempo que o luxo atrai, ele repulsa as pessoas quando é muito ostensivo. Balzac escreveu: “O homem democrático ama um luxo de simplicidade”. É contraditório. O luxo aristocrático humilhava. Na democracia, você pode ser rico, ter um carro caríssimo, mas não pode usar muito ouro. Sempre houve o luxo para ser exibido. Mas hoje há um luxo por amor. Nos anos 60, se dizia que sociedade de consumo levaria a um gosto de massa, vulgarizado. Mas o gosto se sofisticou. Pessoas querem objetos escolhidos. A sociedade hedonista difundiu e dividiu o amor das coisas belas, não só para mostrar, mas pelo prazer da beleza. Já foi procurado por marcas de luxo para pensar o futuro delas? Muitas. Não vou fazer a publicidade, mas quase todas já me contataram. Exponho minhas idéias, mas não faço estudos para elas. Elas se encontram perdidas no mundo hipermoderno? Não, são mais fortes que nunca. Nos anos 60 pensava-se que o luxo era coisa de velhas senhoras. Depois dos anos 80, o luxo entrou na moda. Jovens amam o luxo, ele explodiu e vai ainda se agigantar. Até marcas populares criam grife de luxo. A Renault, que tradicionalmente fabrica carros populares na França, quer uma marca de alto padrão. E é a faixa de mercado onde se tem maior lucro. É um conceito, um sonho, que se está vendendo. E prazer não tem preço. O luxo dá satisfação. Se você está deprimido pode ter um momento de alegria indo ao cabeleireiro. Mas não resolve. O consumismo não pode mudar a vida. A real satisfação é estar bem consigo e ter uma relação rica com outras pessoas. A cirurgia plástica faz isto? Os intelectuais em geral condenam a cirurgia plástica pois o que importa é a vida interior. O que condeno na cirurgia plástica são os excessos. Claro que a aparência conta. Se você tem um nariz grotesco, que o deixa obcecado, que o impede de ser feliz, a plástica lhe permitirá ser mais ou menos como as outras pessoas. E isto é bom. Qual o papel das supermodelos na sociedade hipermoderna? Elas têm mais força hoje do que as estrelas de cinema. Gisele Bündchen é mais que Julia Roberts? Sim. Na sociedade hipermoderna o corpo é central. Você pode se vestir de jeans, sem problema. Mas não pode ser gordo. A mulher gorda sofre, vive mal. E as modelos ficaram muito importantes porque as mulheres se projetam nelas. Na época moderna, as estrelas de cinema, além de inspirarem pela beleza, ditavam um modo de vida, de vestir, de beijar. Pessoas viviam de um jeito tradicional e as estrelas de Hollywood lhes davam outro modo de vida. Elas se divorciavam primeiro, variavam de parceiros, mas hoje qualquer uma pode fazer isso. E elas deixaram de ser um modelo. Por que as supermodelos tomaram este lugar? Elas são um modelo a ser admirado, mas não imitado. Na lógica do individualismo, o corpo é central, mas as pessoas querem viver cada qual a seu modo. Cada um inventa sua vida. Isto é o hiperindividualismo. E, mais que isso, celebridades duram menos. Nos anos 80, havia Michael Jackson e aquilo durou uns cinco anos. Ninguém mais quer se parecer com ele. A hipermodernidade proporcionou este desfecho a Michael Jackson? Provavelmente. Nos anos 50, muitos negros do jazz se tornaram celebridade e não tiveram a mesma história. Louis Armstrong nunca mudou de cor. Michael Jackson não tem identidade: você não sabe se ele é uma mulher, um transexual, um monstro, um garoto. Antes, estrelas de Hollywood faziam plástica e sabia-se que eram fabricadas, mas tudo era feito para não mudar a aparência original. Michael Jackson é a lógica do excesso, que é profundamente hipermoderna. Vem daí a luta de certos mitos pops para se manter no topo, como Madonna? Quando se tinha um cantor como Frank Sinatra, Edith Piaf ou Yves Montand, eles cantavam sempre do mesmo modo. Tinham uma imagem. Você os reconhecia o tempo todo. Hoje no showbiz, a estrela hipermoderna entra na lógica do consumo, é produzida para uma população global. São os jovens que fazem a estrela. Mas como os jovens mudam, as estrelas não podem se manter sempre com uma só característica.