Revista PGDF - Zona Cultural

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Revista PGDF - Zona Cultural
REVISTA JURÍDICA DA
PROCURADORIA-GERAL DO
DISTRITO FEDERAL
CENTRO DE ESTUDOS
ISSN 0419-4454
RJPGDF
Brasília
v. 40 n. 1
p. 1-239 jan./jun. 2015
EDITOR CHEFE
Alexandre Moraes Pereira
PAOLA AIRES CORRÊA LIMA
Procuradora-Geral do Distrito Federal
KARLA APARECIDA DE SOUZA MOTTA
Procuradora-Geral Adjunta para Assuntos do
Consultivo
TATIANA MUNIZ SILVA ALVES
Procuradora-Geral Adjunta para Assuntos do
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Procuradora-Chefe de Gabinete
ALEXANDRE MORAES PEREIRA
Procurador-Chefe do Centro de Estudos – CETES
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Léo Ferreira Leoncy (UFMG)
Leonardo de Andrade Mattietto (UFRJ)
Paulo Gustavo Gonet Branco (IDP)
Sérgio Silveira Banhos (PGDF)
Vera Karam de Chueiri (UFPR)
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Profissional – GECAP
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Gerente da Biblioteca Jurídica
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Lityz Ravel Hendrix Brasil Siqueira Mendes
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Cynara Regattieri de Abreu
Vanessa Barbosa da Silva
PARECERISTAS
Idenilson Lima da Silva
Adamir de Amorim Fiel
Jorge Barbosa Teodósio
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Ana Maria Isar dos Santos Gomes Júlio César de Paula Guimarães Baía
Júlio César Moreira Barbosa
Andrea de Albuquerque Nobre
Aroldo Velozo de Carvalho Júnior Júlio César Morgan Pimentel de Oliveira
Leandro Zannoni Apolinário de Alencar
Bernardo Vassalle de Castro
Leonardo Antonio de Sanches
Bruno César Gonçalves Teixeira
Leonardo Vieira Lins Parca
Bruno Paiva da Fonseca
Lígia de Fátima Pereira de Brito
Camila Rocha Portela
Lucas de Oliveira da Silva
Carla Gonçalves Lobato
Luís Fernando Belém Peres
Carlos Odon Lopes da Rocha
Luiz Filipe Ribeiro Coelho
Carolina da Silva Gomes
Marcos Euclésio Leal
Cassimiro Marques de Oliveira
Marlon Tomazette
Clarissa Reis Iannini
Natália Brezolin Vuori
Daniel Augusto Mesquita
Niedjha Lucienne Abdalla Santos
Dilma Carvalho Dias Nogueira
Eduardo Muniz Machado Cavalvanti Paulo Henrique Figueredo de Araújo
Paulo Sérgio Ferreira Filho
Fernando José Longo Filho
Rafael Soares Duarte de Moura
Filipe Ferreira Munguba
Raphael Sampaio Malinverni
Flávia Aparecida Squinca
Renata Barbosa Fontes da Franca
George Antonio de Sousa Rosa
Sérgio Murta Machado Filho
Grace Adelaide Freitas de Abreu
Valdson Gonçalves de Amorim
Guilherme Pereira Dolabella Bicalho
Vítor de Medeiros Lula da Mata
Heloísa Monzillo de Almeida
Welbio Coelho Silva
Hugo de Pontes Cezário
Solicita-se permuta. Pídese canje. On demande l’échange. Si richiede la scambio.
We ask for exchange. Wir bitten um Austausch
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal.
RJPGDF - Vol. 1, n.1 (1966) - . - Brasília: Procuradoria-Geral do Distrito Federal: Centro de
Estudos,
2014.
v. 40, 21,5 cm.
Periodicidade semestral
ISSN 0419-4454
1. Direito. I. Procuradoria-Geral do Distrito Federal.
CDU 34(05)
INSTRUÇÕES EDITORIAIS PARA OS AUTORES
PERÍODO DE ENVIO
1. O Centro de Estudos da Procuradoria-Geral do Distrito Federal e a
Comissão Científica da Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito
Federal realizarão, periodicamente, mediante edital, chamada para
contribuições que serão submetidas à apreciação quanto aos critérios de
publicação estabelecidos neste ato.
CONTRIBUIÇÕES ADMITIDAS
2. A Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal publica
artigos, resenhas, ensaios e contribuições técnicas - pareceres e trabalhos
forenses - sobre temas da Ciência do Direito que tenham relevância para a
advocacia pública.
2.1. Os artigos, por cujo teor os respectivos autores são exclusivamente
responsáveis, deverão ser inéditos.
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estrangeiros, e suscitar discussões críticas sobre eles. As resenhas deverão
privilegiar os títulos de interesse acadêmico em detrimento de publicações
de uso profissional. Os ensaios terão forma livre e serão selecionados por
sua relevância e novidade.
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selecionadas em razão de sua relevância e novidade.
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com a devida omissão de dados que possam comprometer a intimidade,
a vida privada, a honra e a imagem de pessoas, ou qualquer outro bem
juridicamente protegido.
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PERFIL DOS COLABORADORES
3. Poderão encaminhar contribuições juristas, estudantes de direito e
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LINHA EDITORIAL
4. A Revista destina-se à publicação de contribuições que apresentem
temática de interesse da advocacia pública e que primem pela relevância
dos assuntos tratados, pelo caráter inovador dos trabalhos e pelo potencial
de impacto acadêmico ou institucional.
FORMA DE ENVIO
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possui cinco passos com instruções autoexplicativas na aba “acesso”.
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a) o título do trabalho em português, seguido de resumo e palavras-chave
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contendo os seguintes dados: formação acadêmica/titulação, atuação
profissional/vinculo institucional, endereço residencial, telefone e e-mail.
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ou parecer e as partes ou os interessados, conforme o caso.
NORMAS PARA FORMATAÇÃO DOS TRABALHOS
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de documentação da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)
– NBR 6022/2003, 6023/2002, 6028/1990 e 10520/2002– e adotarão, entre
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a) documento Word 2010 ou versão posterior;
b) fonte Times New Roman;
c) letra tamanho 12 (no caso de nota de rodapé, usar letra tamanho 10);
d) entrelinhas 1,5;
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f) alinhamento justificado, com recuo de 1,5 na primeira linha;
g) configuração de página para papel A4;
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editor-chefe, que avaliará cada caso, serão aceitos trabalhos com número
de laudas acima do indicado);
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j) palavras-chave em português e inglês (máximo de 05 palavras);
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trabalho, listadas em ordem alfabética;
m) as citações, quando não excedem o número de três linhas, deverão
ser feitas no corpo do texto, com o uso de aspas, sem itálico ou negrito.
Quando tiverem mais de três linhas, deverão ser destacadas do corpo do
texto, com recuo de 4 cm somente na margem esquerda, na mesma fonte
(Times New Roman), tamanho 10, sem o uso de itálico e nem de aspas.
AVALIAÇÃO DOS TRABALHOS
7. As contribuições que cumprirem os requisitos formais estabelecidos
neste ato serão submetidas à apreciação do editor-chefe ou de pessoa
por este indicado para manifestação quanto à viabilidade da publicação,
especialmente no tocante à adequação ao perfil editorial da Revista, entre
outros aspectos.
7.1. Os artigos serão avaliados por 2 (dois) pareceristas.
7.2. Os nomes dos autores das contribuições não serão informados aos
pareceristas.
7.3. Os autores poderão ser convidados a promover, a seu critério, quaisquer
ajustes recomendados pelos pareceristas, bem como serão informados
acerca de eventual recusa da publicação mediante comunicado da Equipe
Editorial.
SUMÁRIO
DOUTRINA NACIONAL
A dignidade da pessoa humana como princípio constitucional
estruturante do Direito Administrativo
José Sérgio da Silva Cristóvam.........................................................................
13
O Regime Constitucional das Regiões Metropolitanas e seus desafios
Ivan Luis Barbalho Maia..................................................................................
35
Interesse público e a responsabilidade da Administração nas
terceirizações trabalhistas
Bernardo Vassalle de Castro.............................................................................
57
Alteração do uso de imóveis: flexibilização do planejamento urbano
de Brasília em busca de adequação às demandas sociais
Lília Almeida....................................................................................................
73
A tutela inibitória ambiental como instrumento para a prevenção da
poluição sonora urbana
Alexandre Silva dos Santos..............................................................................
91
Do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no novo
Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015)
Gabriela Luna Santana Gomes......................................................................... 117
Declaração de Inconstitucionalidade de Benefício de ICMS concedido
sem prévio convênio Confaz e consequências práticas
Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira....................................................... 135
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: parâmetro,
objeto e subsidiariedade
Rafael Carvalho de Fassio................................................................................. 165
Teoria Geral da Fraternidade Objetiva: dar o peixe ou ensinar a pescar?
Mauricio José dos Santos Bezerra.................................................................... 185
Mandado de Injunção 27 anos: história e memória
Luiz Felipe da Mata Machado Silva................................................................ 201
DOUTRINA ESTRANGEIRA
DOUTRINA ESTRANGEIRA
O rótulo ecológico europeu e a cidadania ambiental
Carlos Sérgio Madureira Rodrigues................................................................. 219
APRESENTAÇÃO
A Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal chega
à edição de seu volume 40, n. 1, afirmando-se como um valioso veículo
de aperfeiçoamento do Direito Brasileiro - prestigiada por articulistas,
pareceristas e leitores em todo o país.
O crescente interesse que nossa Revista vem despertando em toda a
comunidade jurídica nacional, tanto pela qualidade do material publicado
aqui como pela mútua colaboração com outras mídias no país, reflete a
aproximação e alimenta o avanço de sua classificação CAPES no padrão de
excelência para revistas científicas.
Então, seguros de que estamos no caminho certo, reafirmamos
nosso compromisso com o desenvolvimento constante desse instrumento,
ao tempo que agradecemos e parabenizamos a todas as pessoas que
despenderam esforços para que mais essa leitura chegasse às nossas mãos.
Brasília, 11 de setembro de 2015
PAOLA AIRES CORRÊA LIMA
Procuradora-Geral do Distrito Federal
NOTA DO EDITOR
A presente edição da Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do
Distrito Federal inicia-se com interessante artigo de José Sérgio da Silva
Cristóvam, que, após discorrer sobre a concepção histórico-normativa do
princípio da dignidade humana, aponta que a constitucionalização do direito
administrativo como forma de concretização desse princípio, traz ao centro
de nosso ordenamento a ideia de que as pessoas não podem ser usadas ou
consideradas como simples meios, ou instrumentos, porquanto dotados de
dignidade. Prega, assim, a superação do paradigma tradicional do regime
jurídico administrativo fundado na supremacia do interesse público e na lógica
da assimetria e verticalização de prerrogativas e privilégios da Administração
Pública.
Em seguida, Ivan Luis Barbalho Maia, no artigo “O Regime Constitucional
das Regiões Metropolitanas e seus Desafios”, tendo em vista o contínuo e intenso
fenômeno da urbanização e conurbação das cidades, explora o paradoxo
entre a crescente e dinâmica demanda pela atuação racional e planejada da
Administração Pública na prestação de serviços públicos, e uma ordem
política incompleta, marcada pela gestão metropolitana esvaziada de efetivo
poder, autonomia e recursos. Examina a evolução do tratamento normativo
dado pelo ordenamento jurídico nacional à metrópole, indicando, com base
no marco legal atual, o desafio por uma atuação mais interativa entre agentes
públicos e demais atores políticos e sociais no sentido da efetivação de uma
melhor governança metropolitana.
Bernardo Vassalle de Castro, em “Interesse Público e a Responsabilidade
da Administração nas Terceirizações Trabalhistas”, descreve a superação da
tradicional concepção soberana de interesse público, adequando-a ao
modelo constitucional do Estado Democrático de Direito, que relativiza sua
supremacia, vez que limitada pelos valores e princípios inerentes aos direitos
fundamentais do homem. Argumenta, assim, que “a nova concepção de interesse
público, que afasta a antiga dicotomia pressuposta entre o público e o privado, deve
orientar a responsabilização do Estado nas terceirizações trabalhistas, mas não pode
servir como bordão para fundamentar condenações impostas à Administração sem que
os pressupostos da responsabilidade estatal se verifiquem no caso concreto”.
O fenômeno da frequente alteração informal do uso de imóveis em
Brasília, notadamente a utilização, como residências, de imóveis comerciais no
Plano Piloto, é o objeto do artigo de Lília Almeida. Por sua narrativa, o choque
entre realidade social e a concepção modernista utópica, segundo a qual
“uma planificação global e centralizada, poderia controlar a especulação e distribuir
os recursos urbanos com base em outros fatores que não a riqueza”, caracteriza-se
como fator causador preponderante das mazelas urbanísticas enfrentadas
atualmente na capital federal. Propõe, assim, que a solução para os conflitos
advindos da alteração do uso do imóvel deve sopesar, em cada caso concreto,
os impactos que a alteração causa na infraestrutura urbana existente com os
benefícios desta advindos, em função da melhor distribuição e aproveitamento
dos espaços, conforme as necessidades sociais predominantes.
Em seguida, no artigo “A Tutela Inibitória como Instrumento para a
Preservação da Poluição Sonora Urbana”, Alexandre Silva dos Santos, ao atentar
para a natureza irreversível do dano decorrente do excesso de sons e ruídos,
aponta para a adequação da tutela inibitória à espécie, quer para inibir o ato
ilícito antes de sua ocorrência, quer para impedir a sua repetição quando já
praticado. Apresenta, para tal, relevantes aspectos doutrinários acerca dos
aspectos processuais da utilização da ação inibitória ambiental em nosso
ordenamento jurídico.
Gabriela Luna Santana Gomes analisa o incidente processual da
desconsideração da personalidade jurídica, previsto no Novo Código de
Processo Civil. Tendo a autora produzido escorço teórico sobre questões de
direito material associados ao instituto, explora, em sua contribuição à revista,
o tratamento dado à matéria pelo Novo Código de Processo Civil, em especial
nos arts. 133 a 137, a prever, de forma original em nosso ordenamento, o
mencionado incidente processual com expressas garantias de contraditório e
ampla defesa.
Na sequência, Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira apresenta
estudo sobre aspectos jurídicos inerentes à profusão de leis estaduais
concessivas de incentivos fiscais declaradas inconstitucionais pelo STF em
razão da inobservância da regra estabelecida no art. 2º da Lei Complementar
nº 24/75, que prevê a anuência de todos os Estados representados no CONFAZ
(Conselho Nacional de Política Fazendária). Amparada em percuciente
raciocínio, sustenta a necessidade de preservação dos atos praticados pelos
contribuintes com base na lei concessiva de benefício, tendo em vista que a
declaração de inconstitucionalidade do benefício fiscal de ICMS estaria, em
verdade, a introduzir nova norma jurídica no ordenamento, não podendo essa
ser aplicada de forma retroativa.
Rafael Carvalho de Fassio se propõe a examinar o parâmetro de controle,
o objeto e o princípio da subsidiariedade da arguição de descumprimento de
preceito fundamental (ADPF). Esclarece que não obstante tenha a Lei Federal
n. 9.882/1999 delineado contornos mais precisos à ADPF, introduzida em
nosso ordenamento pela Emenda Constitucional n. 3/1993, persistem ainda
uma série de incertezas acerca de relevantes aspectos em sua aplicação. Daí
abordar, de forma crítica, com apoio na doutrina e jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal os conceitos de “preceito fundamental” e “ato do poder
público”, bem como a regra da subsidiariedade prevista no artigo 4º, §1º, da
Lei Federal nº 9.882/1999.
A contribuição ímpar de Mauricio José dos Santos Bezerra, no artigo
“Teoria Geral da Fraternidade Objetiva: Dar o Peixe ou Ensinar a Pescar?”, nos
instiga a refletir sobre a possibilidade de objetivar o princípio da fraternidade,
positivando-o no sistema jurídico interno. Em sua análise aponta para o
fenômeno que positivou a boa-fé no ordenamento jurídico, na forma de boafé objetiva, perquirindo, com base em abalizada doutrina, se isso não poderia
ocorrer, da mesma forma, com o princípio da fraternidade. Distinguindo a
estratégia de positivação desses dois princípios, vez que, ao contrário da boafé objetiva, a fraternidade carrega alto grau de subjetividade, traça interessante
alegoria que identifica a ação positiva do Estado com o gesto de “ensinar a
pescar”, enquanto a ação positiva do povo com o gesto de “dividir o pescado”.
Luiz Felipe da Mata Machado Silva, em “Mandado de Injunção 27 anos:
história e memória”, apresenta alentado panorama histórico do instrumento
processual desde sua gênese, amparado em preciosas memórias de sua
discussão na fase de elaboração da Constituição de 1988, para, ao final,
descrever a evolução do entendimento da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal acerca da finalidade precípua dessa ação. Destaca o reconhecido papel
do mandado de injunção, redefinido após a mudança da jurisprudência do STF
em 2007 (MI 670 e MI 721), na compreensão dos direitos sociais previstos pela
Constituição de 1988, não como mera retórica, mas sim como um compromisso
real e exigível pela sociedade.
Na seção de doutrina estrangeira, Carlos Sérgio Madureira Rodrigues
sustenta, em seu bem elaborado artigo, que o rótulo ecológico europeu, que
permite distinguir, dentre certa categoria de produto, bem ou serviço, aquele
que se destaca por um melhor desempenho ambiental, caracteriza-se como
potente instrumento de mercado capaz de proteger o ambiente e o consumidor,
reforçar a Democracia e contribuir para o desenvolvimento sustentável.
Analisa o autor, com riqueza de detalhes, aspectos jurídicos atinentes à
regulamentação do rótulo ecológico, sistema de adesão voluntária pelas
empresas, sob a perspectiva do direito europeu, bem como do direito nacional
português. Aponta, no entanto, o douto autor português, preocupações quanto
ao risco da mal utilização do referido rótulo em estratégias agressivas de
marketing ambiental, em potencial desvio do argumento ecológico, situação
em que se estaria a conferir roupagem “verde” a produtos não necessariamente
ecológicos, com o simples objetivo de conquistar mercado, em fenômeno
denominado de “desinformação verde” dos consumidores.
É, portanto, com grande satisfação que convido-os à leitura de uma
edição marcada pelo pluralismo e apuro técnico, fruto da intensa colaboração
de todos aqueles que, a cada dia, se esforçam para que a Revista Jurídica da
Procuradoria-Geral do Distrito Federal se consolide como importante veículo
do saber jurídico em nosso país.
Brasília, 23 de setembro de 2015
Alexandre Moraes Pereira
Editor-Chefe
A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio Constitucional
Estruturante do Direito Administrativo
13
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL ESTRUTURANTE DO
DIREITO ADMINISTRATIVO
José Sérgio da Silva Cristóvam1
RESUMO: O presente ensaio aborda o tema da dignidade da pessoa humana
como princípio constitucional estruturante do Direito Administrativo, a
partir da construção de um renovado regime jurídico administrativo, com
a travessia de um modelo mais autoritário, imperativo e autocrático de
Administração Pública (paradigma tradicional), para uma perspectiva
mais consensual, dialógica, isonômica, democrática e de construção
plural das decisões administrativas (paradigma da Administração Pública
democrática).
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Princípios constitucionais
estruturantes. Regime jurídico administrativo. Administração Pública
democrática.
THE HUMAN DIGNITY AS A STRUCTURAL
CONSTITUTIONAL PRINCIPLE OF ADMINISTRATIVE
LAW
ABSTRACT: This paper discusses the theme of human dignity as a
structural constitutional principle of Administrative Law, from the
construction of a new legal administrative system, with the crossing
1
Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto
ao Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade Técnica de Lisboa
(Portugal). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Especialista em Direito Administrativo
pelo CESUSC (2003). Professor de Direito Administrativo nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação
em Direito do CESUSC. Professor de Direito Administrativo na ESMESC, na ESA-OAB/SC e na ENA/
Brasil, em convênio com a École Nationale d’Administration (l’ENA/França), bem como em Cursos
de Pós-Graduação em Direito da UNIDAVI, UNOESC, UNISUL, UnC, Estácio de Sá e diversas outras
instituições. Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP).
Membro fundador do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC) e da Academia
Catarinense de Direito Eleitoral (ACADE). Membro efetivo do Instituto dos Advogados de Santa
Catarina (IASC). Conselheiro Estadual da OAB/SC (triênio 2013-2015). Vice-Diretor Geral da ESAOAB/SC (triênio 2013-2015). Presidente do Comitê de Mobilização para a Reforma Política (OAB/
SC). Membro da Comissão de Direito Constitucional e da Comissão da Moralidade Pública da OAB/
SC (triênio 2013-2015). Assessor Jurídico do Sindicato dos Trabalhadores na Rede Estadual de Ensino
de Santa Catarina (SINTE/SC). Advogado militante na seara do Direito Público. E-mail: jscristovam@
gmail.com
RECEBIDO EM: 28/06/2015
ACEITO EM: 26/08/2015
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 13 - 34, jan./jun., 2015.
14
José Sérgio da Silva Cristóvam
of a more authoritarian model, and autocratic imperative of Public
Administration (traditional paradigm) for a more consensual perspective,
dialogic, isonomic, democratic and plural construction of administrative
decisions (paradigm of Public Administration democratic).
Keywords: Human dignity. Structural constitutional principles. Legal
administrative system. Public Administration democratic.
1 INTRODUÇÃO
O discurso do novo constitucionalismo trouxe consigo a recuperação
da centralidade do debate em torno da dignidade da pessoa humana.
Seguramente, esta é uma das mais (ou a mais) rica, fecunda e recorrente
temática de toda a metodologia constitucional contemporânea. Até pela
abrangência e os variados enfoques, que transbordariam os limites desse
estudo, a abordagem da noção de dignidade humana ficará limitada
aos seus contornos básicos, no mais das vezes, relacionados ao enfoque
principal do regime jurídico administrativo.2
A tamanha confiança depositada no resgate do lugar de honra
da dimensão humanística, como freio e barreira àqueles mais sombrios
e degradantes episódios de guerras que varreram a Europa na primeira
metade do século XX, tem levado a filosofia e a dogmática constitucional
a reservar-lhe um dos mais altaneiros tronos de fundamento axiológiconormativo de toda ordem constitucional, uma espécie de reitora máxima
do Estado constitucional de direito. Nesse sentido, o constitucionalista
pátrio Bonavides chega a defendê-la, em uma retórica de inegável
exortação, como a “norma das normas dos direitos fundamentais, elevada
assim ao mais alto posto da hierarquia jurídica do sistema”. Um princípio
que estabelece limites à ação estatal e protege a liberdade humana, pelo
que “sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser, portanto,
máxima, e se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da
hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em
2 Para uma análise panorâmica do princípio da dignidade da pessoa humana, seus fundamentos
históricos e filosóficos e sua estrutura normativa, consultar: BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia
jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002; HABERMAS, Jürgen. Um ensaio sobre a Constituição da Europa. Tradução de Marian
Toldy e Teresa Toldy. Coimbra: Almedina, 2012, p. 27-57; MIRANDA, Jorge. A dignidade da pessoa
humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge (Org.).
Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Martim de Albuquerque. Coimbra: Coimbra Editora,
2010, p. 933-949. v. I.; MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Coord.). Tratado
luso-brasileiro de dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008; SARLET, Ingo Wolfgang.
Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 13 - 34, jan./jun., 2015.
A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio Constitucional
Estruturante do Direito Administrativo
15
que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados”
(BONAVIDES, 2003, p. 232-233).
Com efeito, a centralidade do princípio da dignidade humana e sua
condição de base axiológica dos sistemas constitucionais contemporâneos
estão decantadas no discurso jurídico ocidental desde as últimas décadas
do século passado. Por outro lado, tanto naquelas ordens constitucionais
em que a dignidade da pessoa humana ainda não consta expressamente
positivada como nos sistemas que a colocam como princípio fundamental
do Estado democrático de direito (caso brasileiro), não se pode
desconsiderar que “o projeto normativo, por mais nobre e fundamental
que seja, nem sempre encontra eco na práxis ou, quando assim ocorre, nem
sempre para todos ou de modo igual para todos” (SARLET, 2006, p. 26).
Não se pode negar que, da tatuagem normativa constitucional à
fotografia da realidade das ruas e dos corredores palacianos dos órgãos
estatais, há sempre uma desfocada e pouco nítida expressão de efetividade
daqueles quadros normativos. Nada obstante, malgrado o inegável e
ainda elevado deficit de concretização do princípio da dignidade humana
na realidade sensível da sociedade brasileira, ressoa inegável o seu enorme
potencial libertário e progressista, enquanto princípio fundamental do
Estado democrático de direito (artigo 1º, III da CF/88). Em uma ordem
constitucional como a brasileira, fortemente marcada por uma perspectiva
axiológica e substantiva de promessas e compromissos liberais e sociais, a
concretização da Constituição representa um projeto contínuo, multifário
e sempre inacabado, uma espécie de utopia concreta, emancipatória e
vinculativa, um reluzente e insuprimível farol ético, político e normativo
a apontar na direção de uma comunidade cada vez mais justa e igualitária
(ou menos injusta e desigual).
Nessa atmosfera sociopolítica ainda bastante hostil à igualdade
material e de brutais contrastes sociais, a normatização da dignidade
humana como princípio fundamental desempenha um papel decisivo,
uma baliza constante a direcionar a sociedade e principalmente os poderes
constituídos, inclusive sob pena de uma inequívoca crise de legitimidade,
que pode tomar variadas formas, desde a apatia política até movimentos
radicais de contestação, cada vez mais visíveis e acentuados, uma medida
fiel de que se está a alcançar maiores níveis de maturidade democrática e
consciência de cidadania, mesmo que exista uma elevada dose de ruídos,
tensões e interferências nesse diálogo. Antes, porém, do debate em torno da
dignidade humana como princípio constitucional estruturante do Direito
Administrativo, convém que se apresentem as linhas gerais desse novo
regime jurídico administrativo, que marca o paradigma da Administração
Pública democrática.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 13 - 34, jan./jun., 2015.
16
José Sérgio da Silva Cristóvam
2 O NOVO REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO E SEUS
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES
O fenômeno da constitucionalização do Direito, com profundos
reflexos na metodologia constitucional contemporânea, está
destacadamente colonizando a dogmática jurídico-administrativa a partir
da edificação de um sofisticado e abrangente sistema constitucional
administrativo. A atual disciplina administrativa não pode prescindir
de uma concepção umbilicalmente vinculada à matriz constitucional, o
conjunto de normas constitucionais que conformam o atual regime jurídico
administrativo.
Mas a adequada e sistematizada concepção de um regime jurídico
administrativo, constitucionalmente vinculado enquanto estrutura
normativa e conjunto de finalidades e objetivos, deve vir acompanhada
da construção normativo-axiológica das suas linhas mestras (princípios
estruturantes). Se considerada a superação (total ou parcial) daquele
paradigma tradicional, que fundava e legitimava o regime jurídico
administrativo no princípio da supremacia do interesse público, com
a decorrência do assimétrico e verticalizado sistema de poderes e
prerrogativas da Administração Pública, impõe-se a reconstrução das
bases de justificação e conformação sistemática desse regime, agora
sobre fundamentos estruturantes capazes de afinar o diálogo e manter
uma dialética de legitimidade sinfônica com todo o arranjo normativo
constitucional, sob a batuta instrumental e horizontalizante do Estado
constitucional de direito e do paradigma emergente da Administração
Pública democrática.3
Nesse contexto, em que se desenha o paradigma emergente
da Administração Pública democrática, despontam como princípios
estruturantes da disciplina administrativa a dignidade da pessoa
humana, o Estado democrático de direito e o princípio republicano
não como parâmetros normativos que possam isoladamente sustentar
o regime jurídico administrativo, mas como verdadeira trindade
principiológica estruturante assecuratória dos padrões de unidade interior
3 Para uma análise aprofundada sobre a questão da superação do paradigma tradicional da
supremacia do interesse público, bem como a construção do novo regime jurídico administrativo
comum ao paradigma da Administração Pública democrática, a partir dos princípios constitucionais
estruturantes da dignidade da pessoa humana, do Estado democrático de direito e do princípio
republicano, consultar: CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. O conceito de interesse público no Estado
constitucional de direito: o novo regime jurídico administrativo e seus princípios constitucionais
estruturantes. 2014. 379 f. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 13 - 34, jan./jun., 2015.
A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio Constitucional
Estruturante do Direito Administrativo
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e adequação valorativa, conformadores de todo o edifício constitucional
administrativo.
A partir de uma leitura sistemática e comprometida com a plena
efetividade das normas constitucionais, o regime jurídico administrativo,
assim submetido a um verdadeiro “choque de constitucionalização”,
resplandece renovado e reestilizado em seus conceitos e nos contornos dos
institutos tradicionais. Não por qualquer irresponsável ou pouco ilustrada
doutrina de simples abandono daquele modelo, mas por uma profunda e
radical revisão da sua lógica conceitual e dos seus limites operacionais e
normativos.
Por princípios estruturantes, expressão recorrentemente referida,
pode-se entender aquelas “traves-mestras jurídico-constitucionais do
estatuto jurídico do político”, as diretrizes normativas fundamentais,
constitutivas e indicativas “das ideias directivas básicas de toda a ordem
constitucional”. Assim concebidos, os princípios estruturantes acabam por
alcançar concretização pela via de outros princípios e regras constitucionais
de densificação, que iluminam “o seu sentido jurídico-constitucional e
político-constitucional, formando, ao mesmo tempo, com eles, um sistema
interno” (CANOTILHO, 2003, p. 1173-1174).
Nesta quadra, com esteio na doutrina do constitucionalista lusitano
Canotilho (2003), vale esclarecer que os princípios estruturantes ganham
concretização político-normativa a partir do correspondente conjunto
de “princípios gerais fundamentais” (princípios constitucionais gerais
densificadores), dos “princípios constitucionais especiais” (princípios
constitucionais setoriais de densificação) e também do sistema de regras
constitucionais, qualquer que seja a sua natureza (regras de organização
– regras de competência, de criação de órgãos, de procedimentos;
regras materiais – de direitos fundamentais, de garantias institucionais,
definidoras de tarefas do Estado, constitucionais impositivas).
Este conjunto normativo de princípios (gerais e especiais) e regras
constitucionais conforma e funda a própria noção de sistema normativo,
inclusive a partir da importante densificação ponderacionista dos círculos
de conformação legislativa e de concretização administrativa e judicial.
Alerte-se que aqui não se cogita de um sentido estático ou qualquer
concepção diretiva hierarquizada (dos princípios gerais para os especiais
e depois para as regras), mas uma noção dinâmica, aberta, dialética e
orgânica, em uma espécie de razão substantiva, adjetiva e instrumental
da própria perspectiva de regime jurídico administrativo, sob as bases
do Estado constitucional de direito e dos parâmetros da juridicidade
administrativa.
Os firmes ventos de constitucionalização do Direito Administrativo
exigem o abandono da lógica tradicional, quase sempre informada por
um epicentro normativo e conceitual de dimensão estatal. No salão
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 13 - 34, jan./jun., 2015.
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José Sérgio da Silva Cristóvam
nobre da juridicidade administrativa, abre-se agora a mesa de honra para
a perspectiva axiológico-normativa da dignidade humana, do Estado
democrático de direito e do princípio republicano. A própria finalidade
precípua (compromisso genético) da Administração Pública está em fazerse prisioneira cativa da promoção e defesa dos direitos fundamentais, base
não só para os fins da atividade administrativa, mas também fundamento
de legitimidade à própria existência estatal. Segue-se, pois, para o debate
do princípio da dignidade da pessoa humana, como princípio estruturante
desse novo regime jurídico administrativo.
3 SOBRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA:
ANTECEDENTES HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS
Antes do debate relacionado à perspectiva conceitual e normativa da
dignidade humana, importa promover uma (ainda que) breve recuperação
da sua perspectiva histórica. Essa genealogia remete à Antiguidade clássica
grega, em que a noção de dignidade da pessoa estava muito relacionada
à posição que cada indivíduo ocupava na comunidade política. Para a
filosofia política aristotélica, fundada em uma concepção organicista de
sociedade, cada indivíduo faz parte do corpo orgânico da sociedade,
desempenhando sua respectiva função social. Tanto que a concepção de
felicidade ou vida boa do indivíduo (bem supremo aristotélico) somente
seria atingível por meio da convivência na pólis, onde cada qual cumpriria
a sua respectiva função. Esse modelo de comunidade política permite
que se possa falar em uma “quantificação e modulação da dignidade,
no sentido de se admitir a existência de pessoas mais dignas ou menos
dignas” (ARISTÓTELES, 2009, p. 13-17).
Mas o constitucionalista gaúcho Sarlet esclarece que, ainda na
Antiguidade clássica, a partir do pensamento estoico,4 a dignidade já
era concebida como uma qualidade inerente ao ser humano, um dado
intrínseco que o distinguia das demais criaturas, “no sentido de que
todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade”. Também na
Antiguidade clássica romana o pensamento ciceroniano “desenvolveu
4
Suplanta os limites do presente estudo a apresentação do estoicismo e seus principais fundamentos
filosóficos. Apenas para ilustrar: “O estoicismo, em especial, apoiava o seu Cosmopolitismo em dois
elementos fundamentais: na ideia de uma razão universal que regula todas as coisas segundo uma
ordem necessária; na consciência de que a razão fornece ao homem normas infalíveis de ação que
constituem o direito natural. Além disso, o estoicismo, ao exaltar os valores intelectuais, fazia consistir
a distinção entre o sábio e os demais homens justamente na consciência da caducidade dos ideais da
pátria e do Estado”. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário
de Política. Tradução de João Ferreira. 11. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 293294. v. I.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 13 - 34, jan./jun., 2015.
A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio Constitucional
Estruturante do Direito Administrativo
19
uma compreensão de dignidade desvinculada do cargo ou posição social”,
o que permite “reconhecer a coexistência de um sentido moral (seja no que
diz às virtudes pessoas do mérito, integridade, lealdade, entre outras, seja
na acepção estóica referida) e sociopolítico de dignidade (aqui no sentido
de posição social e política ocupada pelo indivíduo)” (SARLET, 2006, p.
30-31).
Ainda sobre a dimensão histórica, uma das mais influentes e
destacadas contribuições à formação política e filosófica da noção de
dignidade humana pode ser atribuída à doutrina teológica judaico-cristã.
Uma perspectiva humanista de centralidade da pessoa humana, a mais
perfeita criatura divina, pode ser recuperada já no Antigo Testamento,
no Livro de Gênesis, quando o ser humano é descrito como a imagem
e semelhança do Deus criador, com o desígnio celestial de crescer,
multiplicar e dominar a Terra.5 Com o Novo Testamento e a construção das
bases da moralidade cristã, a doutrina fundada no grande mandamento
do “amor ao próximo” passa a figurar como um dos principais legados do
Cristianismo à noção de dignidade humana.6
Com efeito, a teologia cristã ostenta uma posição destacada na
reflexão ocidental sobre a dignidade humana, que lhe é herdeira direta,
inclusive na formulação moderna da noção de pessoa, uma concepção
antropológica fundada na ideia de imagem e semelhança divina. Essa
perspectiva divina e espiritual da noção de pessoa conferiu primeiramente
ao termo “dignidade” uma espécie de “função eminente”, passando depois
para um “atributo por excelência da pessoa” (MAURER, 2005, p. 65-66).
Nesta quadra, pode-se recuperar na escolástica tomista as bases de uma
original e influente doutrina de autodeterminação e liberdade (arbítrio)
não somente no sentido de reconhecer o fundamento da dignidade
humana na imagem e semelhança do Criador, mas que “também radica na
capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana, de tal sorte
que, por força de sua dignidade, o ser humano, sendo livre por natureza,
existe em função de sua própria vontade” (SARLET, 2006, p. 31).
Abre-se aqui um parêntese para consignar que toda essa histórica
filosofia política da fé cristã, fundada na solidariedade, no respeito e no
5
Do Antigo Testamento, no Livro de Gênesis, capítulo 1, versículo 28: “Crescei e multiplicai-vos, enchei
e dominai a Terra” (Gn 1, 28). GÊNESIS. In: A BÍBLIA SAGRADA. Tradução ecumênica. São Paulo:
Paulinas, 2002.
6
Do Evangelho segundo São João, capítulo 15, versículo 12: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns
aos outros, como eu vos amo” (Jo 15, 12). JOÃO. In: A BÍBLIA SAGRADA. Tradução ecumênica. São
Paulo: Paulinas, 2002.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 13 - 34, jan./jun., 2015.
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José Sérgio da Silva Cristóvam
amor ao próximo, não impediu que no seio da Igreja Católica fossem
conduzidos alguns dos mais brutais e irracionais movimentos de
desrespeito e desconsideração da dignidade humana. Disto serve como
mais horroroso e desumano exemplo a chamada Santa Inquisição, que
por um longo período assolou boa parte da velha Europa.7 Por outro
lado, como esclarece o constitucionalista português Miranda, movimentos
como a “Doutrina Social da Igreja, as intervenções dos últimos Papas
sobre problemas concretos, o Concílio Vaticano II, a ação dos bispos
em numerosos países, a iniciativa de diversas comunidades, a oposição
de vários grupos a regimes autoritários e totalitários”, todos estes
fatores revelam “o reencontro dos católicos com os direitos e liberdades
fundamentais, assim como importantes contribuições para a mudança de
mentalidades e de estruturas em numerosos países, sobretudo na América
Latina” (MIRANDA, 2012, p. 50).
Retomando o debate central, convém dizer que a Modernidade
concluiu o processo histórico de secularização e laicização da dignidade
humana, encontrando na doutrina kantiana uma das suas mais destacadas
e difundidas vertentes filosóficas. Com base em uma noção de dignidade
vinculada à perspectiva da autonomia ética do indivíduo, verdadeiro
fundamento da noção de dignidade, erige-se a concepção de que a pessoa
não pode ser tratada, nem por ela própria, como objeto. A partir da
natureza racional do ser humano, a teoria kantiana funda na autonomia da
vontade (autodeterminação), comum apenas aos seres racionais, a própria
noção secularizada e dessacralizada de dignidade humana. A dignidade
humana abandona suas vestes sacrais e assume uma nudez racionalindividualista de autodeterminação, que vai acompanhá-la Modernidade
afora (SARLET, 2006, p. 32-33).
A partir desses elementos filosóficos, Kant estabelece sua célebre
doutrina da dignidade humana, fundada no imperativo de que o ser
humano existe como um fim em si mesmo, não como meio ou instrumento,
mas como a própria razão última da sua existência. Para ser fiel às exatas
palavras do Filósofo de Königsberg, o ser humano “existe como um fim
em si mesmo, não simplesmente como meio para uso arbitrário desta ou
daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se
dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele
tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim” (KANT,
1980, p. 134).
7
Para um estudo sobre a Santa Inquisição, consultar: GONZAGA, João Bernardino. A inquisição em
seu mundo. 8. d. São Paulo: Saraiva, 1994.
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A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio Constitucional
Estruturante do Direito Administrativo
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Na filosofia kantiana, os seres irracionais, cuja existência não
depende da vontade humana, mas da própria natureza, possuem um
valor relativo (meios) e são chamados de coisas. Assim, os seres racionais
(as pessoas) não podem ser usados ou considerados como simples meios,
porquanto dotados de dignidade. Dignidade que, na doutrina kantiana, é
um fim diverso do preço, pois se “uma coisa tem um preço, pode pôr-se
em vez dela qualquer outra como equivalente; mas, quando uma coisa está
acima de todo preço e, portanto, não permite equivalente, então ela tem
dignidade”, o que permite conhecer e reconhecer “como dignidade o valor
de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o
preço” (KANT, 1980, p. 140).
Inegavelmente, as formulações kantianas sobre a dignidade humana
representam uma das mais engenhosas e importantes bases para o discurso
filosófico e jurídico da Modernidade. Para o Filósofo de Königsberg, a
pessoa é dotada de dignidade porque é autônoma e livre. A autonomia
representa “o princípio da dignidade da natureza humana e de toda a
natureza racional”, pelo que “liberdade, autonomia e dignidade formam
uma trilogia inseparável”. Mas não uma liberdade no sentido egoístico
de fazer o que se quer. Para a filosofia kantiana, “o homem é autônomo
quando os seus atos estão em conformidade com a lei moral. Ora, esta lei
é universal. O homem age de forma livre quando obedece à razão, e não
à sua razão. A intenção deve ser isenta de qualquer interesse pessoal, de
qualquer paixão egoísta” (MAURER, 2005, p. 76).
Esses breves antecedentes históricos e filosóficos contribuem com
necessárias reflexões para que se possa adentrar na dimensão conceitual
e normativa da dignidade humana, o debate acerca do seu significado e
conteúdo na perspectiva jurídico-constitucional.
4 A DIGNIDADE HUMANA COMO PRINCÍPIO AXIOLÓGICO
FUNDAMENTAL
A definição do significado e do conteúdo normativo da dignidade
humana está longe de representar uma tarefa fácil, muito menos a
construção de um conceito capaz de abarcar a sua complexidade histórica,
cultural, axiológica e normativa e que possa ser útil e efetivo no seu
processo de aplicação, sobretudo como parâmetro de limitação das ações
estatais e promoção dos direitos e garantias fundamentais. Esta dificuldade
conceitual decorre, em larga medida, da própria vagueza e indeterminação
características dos conceitos jurídicos indeterminados, em especial a
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22
José Sérgio da Silva Cristóvam
dignidade da pessoa humana, uma noção polissêmica e marcada por uma
elevada dose de ambiguidade e porosidade, submetida a um descontínuo
e instável processo de construção e desenvolvimento.8
Mas com isso não se quer conduzir à ideia (errônea, por sinal) de
que não seria possível a construção de um conceito jurídico de dignidade
humana, capaz de alcançar a sua inerente complexidade. Aqui não se está
a fazer referência a alguns aspectos da existência humana (integridade
física, intimidade, vida), mas a “uma qualidade tida como inerente a todo
e qualquer ser humano”, no sentido do “valor próprio que identifica o ser
humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por não contribuir
muito para uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito
de proteção da dignidade, na sua condição jurídico-normativa” (SARLET,
2006, p. 40).
Para esta parametrização conceitual, interessa recuperar os
contornos em que foi estabelecida a noção de dignidade humana pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, em 1948, logo após
todo aquele estado de horrores e atrocidades que marcaram a Segunda
Guerra Mundial. A partir de uma clara matriz kantiana de autonomia
e direito de autodeterminação humana, assim prescreve o seu artigo
1º: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em
direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os
outros em espírito de fraternidade”.9
Esses são os contornos pelos quais a dignidade humana se pulverizou
pelas Constituições da segunda metade do século passado, com destacado
status na Lei Fundamental alemã de 1949 (artigo 1.1), na Constituição
portuguesa de 1976 (artigo 1º) e na Constituição espanhola de 1978
8 Nesse sentido, consultar: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa
humana e a exclusão social. Revista Interesse Público, São Paulo, ano 1, n. 4, p. 23-48, out./dez. 1999,
p. 24.
9
Sobre a temática, importa também registrar as três primeiras justificativas que constam do preâmbulo
da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Considerando que o reconhecimento da dignidade
inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana é o fundamento
da liberdade, justiça e paz no mundo; Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos
humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento
de um mundo no qual os seres humanos gozem de liberdade de expressão e de crença e da liberdade
do medo e da miséria, foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum; Considerando que
é essencial, para que o Homem não seja obrigado a recorrer, como último recurso, à rebelião contra a
tirania e a opressão, que os direitos humanos sejam protegidos pelo estado de direito”. ASSEMBLEIA
GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Organização das Nações Unidas (ONU). Declaração Universal dos
Direitos Humanos. 10 de dezembro de 1948. Disponível em: <http://www.humanrights.com/pt/whatare-human-rights/universal-declaration-of-human-rights/preamble.html>. Acesso em: 27 jan. 2014.
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A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio Constitucional
Estruturante do Direito Administrativo
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(preâmbulo e artigo 10.1), apenas para referir algumas das mais influentes
no Segundo Pós-Guerra. No Brasil, com o advento da Constituição Cidadã,
a dignidade humana foi alçada à condição de princípio fundamental do
Estado democrático de direito (artigo 1º, III da CF/88). Há, ainda, previsão
expressa no seu artigo 170, caput, no sentido de que a ordem econômica tem
por finalidade assegurar a todos uma existência digna; também, no artigo
226, § 7º, quando estabelece que o planejamento familiar funda-se nos
princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável;
no artigo 227, caput, quando assegura à criança e ao adolescente o direito à
dignidade; por fim, no artigo 230, caput, que garante ao idoso o amparo e a
defesa da sua dignidade e bem-estar.
Nesta esteira de considerações, sem desprestigiar a perspectiva
natural da noção de dignidade humana como uma qualidade inata e algo
inerente à natureza humana, SARLET aponta o relevante sentido cultural
da ideia de dignidade humana, “fruto do trabalho de diversas gerações e da
humanidade em seu todo, razão pela qual as dimensões natural e cultural
da dignidade da pessoa se complementam e interagem mutuamente”
(SARLET, 2006, p. 46).
Todos esses elementos históricos, filosóficos e culturais conduzem o
constitucionalista pátrio a oferecer uma sofisticada e aberta conceituação
jurídica de dignidade da pessoa humana, aqui integralmente compartilhada
e subscrita, enquanto qualidade intrínseca e distintiva de todos os seres
humanos, que lhes garante igual respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade. Isso exige um complexo de direitos e deveres
fundamentais que protejam a pessoa contra todo e qualquer ato degradante
e desumano, bem como lhe garantam as mínimas condições existenciais
para uma vida saudável, capazes de promover sua participação ativa e
corresponsável no seu destino e na vida em comunhão com as outras
pessoas.10
No Brasil, como inclusive decorre expressamente do texto
constitucional, não há maiores celeumas na qualificação da dignidade da
pessoa humana como norma jurídica fundamental do Estado constitucional
de direito, um princípio axiológico que fundamenta e irradia normatividade
para todo o sistema de regras e princípios constitucionais. Como já se disse
em outras oportunidades, com o claro deslocamento do epicentro normativo
10 Nas exatas palavras de SARLET: “Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade
intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração
por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a
lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua
participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais
seres humanos”. (SARLET, 2006, p. 60).
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José Sérgio da Silva Cristóvam
constitucional do Estado para a pessoa humana, resta inegável que são os
poderes constituídos e o aparato estatal que se fundam e legitimam em
função da dignidade humana e não esta que se funda no Estado. O Estado
é que funciona como meio (instrumento) de concretização e promoção dos
ditames finalísticos substantivos e instrumentais relacionados à dignidade
humana, fim e medida de legitimação da normatividade constitucional
estabelecida e dos próprios poderes constituídos.
Neste quadrante, pode-se mesmo sustentar que o princípio
da dignidade humana funciona como genuíno parâmetro de
consubstancialidade para outros direitos fundamentais.11 Inclusive, como
esclarece o filósofo alemão Habermas, nada obstante a assimetria históricotemporal entre as concepções de direitos humanos e dignidade humana,
estes dois conceitos sempre guardaram um estreito nexo conceitual,
embora inicialmente apenas implícito. A invocação dos direitos humanos
alimenta-se da indignação dos ofendidos face à violação da sua dignidade
humana. Portanto, a dignidade humana reveste-se da qualidade de
“fonte moral da qual se alimentam os conteúdos de todos os direitos
fundamentais”, desempenhando um “papel catalizador” na “composição
dos direitos humanos a partir da moral da razão e da sua forma jurídica”,
o que “explica a força explosiva, do ponto de vista político, de uma utopia
concreta” (HABERMAS, 2012, p. 31-32).
Em suma, a dignidade humana apresenta-se como autêntico
princípio axiológico fundamental da ordem constitucional brasileira.
Uma estrutura normativa que, afora o seu inegável conteúdo ético e
moral (aspecto natural, cultural e filosófico), assume o status de norma
formal e materialmente constitucional, dotada de eficácia plena e efeito
vinculante a toda ordem normativa estabelecida, às atividades legislativas,
administrativas e judiciais, bem como impositiva de respeito e consideração
por toda a comunidade política.
Nesse sentido, ganha destacado relevo a concepção de que o
princípio da dignidade humana ostenta uma condição funcional dúplice,
sendo simultaneamente limite (dimensão negativa) e tarefa (dimensão
positiva) dos poderes estatais, da comunidade e dos particulares. Como
um Janus pós-moderno, aponta diretamente para duas dimensões (faces)
complementares: uma defensiva (negativa), outra prestacional (positiva).
Isso, inclusive, permite a superação (em partes) daquela concepção
11 Nesse sentido: TAVARES, André Ramos. Princípio da consubstancialidade parcial dos direitos
fundamentais na dignidade do Homem. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Lisboa, v. XLVII, n. 1 e 2, p. 313-331, 2006, p. 322-330.
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A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio Constitucional
Estruturante do Direito Administrativo
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kantiana de dignidade humana centrada na autonomia e no direito de
autodeterminação da pessoa, já que é tarefa do Estado assegurar às pessoas
uma mínima condição de vida digna.
Como limite, o princípio da dignidade humana assegura que
a pessoa não poderá, em qualquer hipótese, ser reduzida à condição
de mero objeto da ação própria ou de terceiros (até mesmo pessoas em
quadros vegetativos ou alienados mentais têm direito a um tratamento
com respeito humanístico e dignidade). Disso resulta a garantia de direitos
fundamentais (negativos) contra atos que violem a pessoa ou a exponham a
graves ameaças. Enquanto tarefa, o princípio da dignidade humana impõe
deveres concretos dos órgãos estatais, capazes de proteger a dignidade
de todos, inclusive por meio de medidas prestacionais (positivas) que
promovam a dignidade humana e assegurem as condições existências
mínimas (vida digna) (SARLET, 2005, p. 30-32). Esta dimensão dualista da
dignidade humana aliada à nova topografia constitucional que aponta para
a centralidade da pessoa (personalismo constitucional) oferecem valorosas
possibilidades de diálogo entre o princípio da dignidade humana e o
regime jurídico administrativo.
5 AS RELAÇÕES ENTRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA, A SEGURANÇA JURÍDICA, A PROTEÇÃO DA
CONFIANÇA LEGÍTIMA, A BOA-FÉ E O PROCESSO DISCIPLINAR:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A densificação do paradigma emergente, que funda o novo regime
administrativo a partir do princípio estruturante da dignidade humana,
passa por um processo de reconformação e afirmação de uma série de
princípios constitucionais expressos e implícitos, que ganham um novo
colorido e uma renovada dimensão normativa.
Um dos princípios que reassume lugar de proeminência no novo
regime jurídico administrativo é o princípio da segurança jurídica,12
sorvendo carga de normatividade e legitimação política diretamente
do princípio da dignidade humana, do regime constitucional de
direitos fundamentais e da própria noção de justiça da ordem jurídica
constitucional. As dimensões constitucionais de liberdade e igualdade
reclamam uma sólida noção de estabilidade das relações jurídicas, com
a efetiva segurança jurídica dos cidadãos e dos demais atores sociais e
12 Para um estudo panorâmico do princípio da segurança jurídica e sua relação com o princípio da
legalidade, consultar: SILVA, Almiro do Couto e. Princípio da legalidade da Administração Pública e
da segurança jurídica no Estado de direito contemporâneo. Revista da Procuradoria Geral do Estado
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 27, n. 57, p. 11-31, 2004.
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José Sérgio da Silva Cristóvam
econômicos na forma como são aplicadas as leis e nos mecanismos de
atuação administrativa. A noção de segurança jurídica toma, assim, uma
perspectiva de valor transcendental da própria ordem jurídico-política
constitucional, uma das suas mais destacadas finalidades, muito mais
sofisticada do que aquela posição estática e prisioneira da legalidade
formal do paradigma tradicional.
No Brasil, a proteção da segurança jurídica goza de respaldo
constitucional enquanto princípio constitucional implícito, que pode ser
extraído diretamente do princípio da dignidade humana (artigo 1º, III da
CF/88) e do sistema de proteção aos direitos fundamentais (artigos 5º, caput
e 6º da CF/88), como também do próprio princípio estruturante do Estado
democrático de direito (artigo 1º, caput da CF/88). Há, ainda, cláusula
constitucional expressa que protege o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada (artigo 5º, XXXVI da CF/88), expressões normativas
de densificação do princípio da segurança jurídica (BINENBOJM, 2008, p.
177-180).
Sobre o tema, o jurista SILVA esclarece que a segurança jurídica
ostenta uma dimensão dúplice (objetiva e subjetiva): a primeira,
“de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à
retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualifiquem
como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito
adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada”; a outra, “de natureza
subjetiva, concerne à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos
atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de
sua atuação” (SILVA, 2004, p. 36).
Na mesma linha, diretamente vinculado e decorrente do princípio
da segurança jurídica, o princípio da proteção da confiança legítima dos
cidadãos impõe ao Estado o dever de não frustrar as legítimas expectativas
dos indivíduos na manutenção da estabilidade da atuação estatal, ainda
que, por vezes, fundada em ilegalidades. Neste quadrante, há situações
que produzem na esfera de expectativas do indivíduo uma justa confiança
de estabilidade, o que impõe ao Estado “limitações na liberdade de
alterar sua conduta e de modificar atos que produziram vantagens para
os destinatários, mesmo quando ilegais, atribuindo-se consequências
patrimoniais por essas alterações”, para preservar a “crença gerada nos
beneficiários, nos administrados ou na sociedade em geral de que aqueles
atos eram legítimos, tudo fazendo razoavelmente supor que seriam
mantidos” (SILVA, 2004, p. 37).
Outro princípio que assume destacada posição normativa
nesse renovado regime administrativo é o princípio da boa-fé, também
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 13 - 34, jan./jun., 2015.
A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio Constitucional
Estruturante do Direito Administrativo
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diretamente vinculado ao princípio estruturante da dignidade humana e
um dos seus mais ricos e dinâmicos princípios de densificação na seara
jurídico-administrativa. O princípio da boa-fé assume a condição de
princípio constitucional implícito, sendo que, afora o respaldo direto no
princípio da dignidade humana, resta amparado naquelas disposições
normativas que conferem status constitucional ao princípio da segurança
jurídica, ante a sua aproximação operativa.13
No âmbito específico do Direito Administrativo, há que se reconhecer,
ainda, que o princípio da boa-fé encontra seu status constitucional a partir
da dimensão objetiva do próprio princípio da moralidade administrativa
(artigo 37, caput da CF/88), pelo que o seu aspecto objetivo “veicula a
boa-fé objetiva no campo do direito público-administrativo, exigindo um
comportamento positivo da Administração e impondo a ela deveres de
conduta transparente e leal”. Desta forma, há casos em que a omissão
administrativa pode assegurar ao cidadão um direito subjetivo público a
prestações do Poder Público ou a indenizações, de modo que a “proteção
à confiança legítima dos administrados é seu principal desdobramento,
não havendo, em princípio, óbice para o aproveitamento dos institutos
decorrentes da boa-fé objetiva desenvolvida no campo jurídico-privado
aos domínios do direito público-administrativo” (GIACOMUZZI, 2001, p.
308-309).
A doutrina especializada comumente distingue o sentido objetivo da
boa-fé do seu aspecto subjetivo. Na interessante síntese de NOBRE JUNIOR,
a “a boa-fé é valorada, também no direito administrativo, ora como padrão
de conduta, a exigir dos sujeitos do vínculo jurídico atuação conforme à
lealdade e à honestidade (boa-fé objetiva), ora como uma crença, errônea e
escusável, de uma determinada situação (boa-fé subjetiva)”. Nesse sentido,
o autor ressalta que a hipótese da boa-fé objetiva “alcança maior influência
no terreno aplicativo, sendo de grande valia no concernente aos atos e
contratos administrativos, procedimento administrativo, serviços públicos,
atividade reguladora e na responsabilidade estatal na intervenção sobre a
ordem econômica”. Já a dimensão da boa-fé “em sua vertente psicológica
é suscetível de um mais restrito emprego, sendo de valia quanto às sanções
administrativas e em algumas relações entre o Estado e seus servidores”
(NOBRE JUNIOR, 2002, p. 150-151).
13 Para um estudo panorâmico sobre o princípio da boa-fé no Direito Administrativo, consultar: ALVES,
José Ricardo Teixeira. A tutela da boa-fé objetiva no Direito Administrativo. Jus Navigandi, Teresina,
ano 13, n. 1917, set. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11783>. Acesso em: 03 fev. 2014;
GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública:
o conteúdo dogmático da moralidade administrativa. São Paulo: Malheiros, 2001; NOBRE JÚNIOR,
Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e sua aplicação no Direito Administrativo brasileiro. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 13 - 34, jan./jun., 2015.
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José Sérgio da Silva Cristóvam
Na disciplina jurídico-administrativa, uma das maiores
demonstrações de densificação legislativa dos princípios da segurança
jurídica, da proteção da confiança legítima dos cidadãos e da boa-fé pode
ser recuperada da Lei Federal n. 9.784/1999, em especial no artigo 2º, caput
(previsão do princípio da segurança jurídica), no artigo 2º, parágrafo único,
IV (atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé), no
artigo 2º, parágrafo único, XIII (interpretação da norma administrativa da
forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige,
vedada aplicação retroativa de nova interpretação), e também no artigo 54,
caput (decadência administrativa para anulação de atos ilegais com efeitos
favoráveis aos destinatários).
O artigo 54, caput, da Lei Federal n. 9.784/99 representa um
excelente exemplo de densificação ponderativa legislativa, no sentido
que, antevendo a enorme e recorrente possibilidade de colisões in concreto
entre os princípios da legalidade administrativa e da autotutela da
Administração Pública, de um lado, e os princípios da segurança jurídica,
da proteção da confiança legítima dos cidadãos e da boa-fé administrativa,
de outro, a partir da clara ponderação favorável ao princípio estruturante
da dignidade humana, mas sem desconsiderar o princípio republicano,
o legislador infraconstitucional estabeleceu o prazo decadencial de cinco
anos para que o Poder Público possa rever seus atos e os efeitos deles
decorrentes, se favoráveis aos destinatários.
Antes do advento da referida ponderação legislativa, a Administração
Pública dispunha de um espectro mais amplo de atuação, mas, mesmo
assim, já havia a sua obrigação de promover a imediata concretização
constitucional, com a fixação interna de limites temporais e materiais gerais
(não casuísticos) à autotutela e à revisão dos atos administrativos, que,
embora ilegais, trouxessem efeitos favoráveis aos destinatários, se de boafé. O referido espaço de ponderação administrativa decorre da aplicação
direta e imediata do sistema de regras e princípios constitucionais.
Outro importante aspecto de aplicação do princípio estruturante
da dignidade humana na disciplina jurídico-administrativa refere-se à
seara do processo disciplinar14 e do Direito Administrativo sancionatório
em geral.15 A partir do enfoque humanístico do princípio da dignidade
da pessoa, inúmeros princípios constitucionais adquirem um colorido
14 Para um estudo panorâmico sobre o processo administrativo disciplinar e seus princípios
constitucionais informadores, consultar: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo
disciplinar. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
15 Para um estudo panorâmico sobre o Direito Administrativo sancionatório, consultar: OSÓRIO, Fábio
Medina. Direito Administrativo Sancionador. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
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A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio Constitucional
Estruturante do Direito Administrativo
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normativo muito mais determinante. Neste quadrante, a simples
leitura sistemática e teleológica dos princípios do devido processo legal
administrativo (artigo 5º, LIV da CF/88), do contraditório e da ampla defesa
(artigo 5º, LV da CF/88)16 já demonstra o completo descompasso e mesmo
a inconstitucionalidade da Súmula Vinculante n. 05, do Supremo Tribunal
Federal, quando prescreve que “a falta de defesa técnica por advogado no
processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.17 Mais do
que uma inadequada leitura constitucional, a referida súmula normativa
ofende diretamente aos artigos 1º, III e 5º, LV da Constituição Federal,
do que decorre a sua inconstitucionalidade, por contraposição direta ao
princípio constitucional axiológico-estruturante da dignidade humana
e ao princípio constitucional da ampla defesa, que não pode prescindir
da defesa técnica, no caso de processos administrativos disciplinares,
porquanto diretamente relacionada ao seu núcleo essencial.
Mas não são apenas os princípios do devido processo legal, do
contraditório e da ampla defesa que ganham nova dimensão normativa
por ocasião da aplicação aos processos administrativos disciplinares. O
princípio estruturante da dignidade humana coloniza em tal medida a
seara do processo administrativo disciplinar e do Direito Administrativo
sancionatório em geral que todas aquelas disposições de garantias
constitucionais penais ao acusado passam a ostentar legítima aplicação, em
maior ou menor amplitude, como elementos de garantia ao servidor e ao
cidadão em geral. Apenas para exemplificar, seguem algumas disposições
constitucionais penais aplicáveis no âmbito do processo administrativo
disciplinar e do Direito Administrativo sancionatório em geral: tipicidade
penal-administrativa e reserva de lei (artigo 5º, XXXIX da CF/88); juiz
natural administrativo (artigo 5º, XXXVII e LIII da CF/88); presunção de
inocência (artigo 5º, LVII da CF/88); irretroatividade da legislação penaladministrativa, salvo para beneficiar o servidor (artigo 5º, XL da CF/88);
vedação ao uso de provas obtidas por meio ilícito (artigo 5º, LVI da CF/88).
Cabe ressaltar, ainda, que a atuação legislativa de ponderação
e densificação constitucional não faz cessar a possibilidade de novas
16 Para uma análise da função democrática do princípio do contraditório no âmbito do processo
administrativo disciplinar, consultar: STAFFEN, Márcio Ricardo; CADEMARTORI, Daniela
Mesquita Leutchuk de. A função democrática do princípio do contraditório no âmbito do processo
administrativo disciplinar: aproximações entre Elio Fazzalari e Jürgen Habermas. In: SILVA, Maria
Teresinha Pereira; ZANOTELLI, Maurício (Coord.). Direito e Administração Pública: por uma
hermenêutica compatível com os desafios contemporâneos. Curitiba: Juruá, 2011, p. 23-39.
17 Nesse mesmo sentido, consultar: KISTEUMACHER, Daniel Henrique Rennó. A (in) constitucionalidade
da Súmula Vinculante nº 5. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 9, n. 9, p.
292-311, jan./jun. 2011.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 13 - 34, jan./jun., 2015.
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José Sérgio da Silva Cristóvam
ponderações concretas pelo Poder Público para o caso daquelas situações
não alcançadas pela mediação legislativa, o que não exclui também o âmbito
da ponderação judicial, todas sempre vinculadas à satisfação otimizada
das finalidades constitucionais e à prevalência dos direitos fundamentais.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inegavelmente, a partir das considerações acima alinhadas, pode-se
sustentar a existência das condições jurídicas instrumentais e substantivas
de transição para um renovado regime jurídico administrativo, com
a superação daquele paradigma tradicional estático, fundado na
supremacia do interesse público e na lógica da assimetria e verticalização
de prerrogativas e privilégios da Administração Pública. Um regime
administrativo fundado na trindade principiológica estruturante da
dignidade humana, do Estado democrático de direito e do princípio
republicano. O modelo de Estado constitucional de direito e a dimensão
da juridicidade administrativa constroem as bases para a travessia de um
modelo mais autoritário, imperativo e autocrático de Administração Pública
para uma perspectiva mais consensual, dialógica, isonômica, democrática
e de construção plural das decisões administrativas (paradigma emergente
da Administração Pública democrática).
A unidade principiológica tridimensional desse renovado regime
jurídico administrativo comprime amplamente aqueles tradicionais
matizes autoritários, assimétricos e verticalizados do agir administrativo,
submetendo o Poder Público a um novo parâmetro de legitimação
constitucional, o da justificação democrática e da defesa e promoção
dos direitos fundamentais. O “legitimômetro constitucional” da
Administração Pública somente atinge seus níveis minimamente exigidos
quando a Administração Pública abandona suas vestes autoritárias
de autolegitimação, imperatividade e autocracia e assume uma nudez
reveladora de transparência efetiva, de publicidade plena das razões
políticas e jurídicas das ações e (sobretudo) omissões administrativas, com
a construção das decisões políticas a partir do diálogo franco e aberto com
a sociedade, que passa a controlar (direta e imediatamente) a eficiência e
os resultados do agir administrativo.
Neste cenário, os princípios de defesa dos interesses dos cidadãos,
como a segurança jurídica, a proteção da confiança legítima e a boa-fé,
assumem tonalidades de concretização muito mais decisivas nas situações
de conflitos entre interesses, porquanto representam vetores de densificação
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 13 - 34, jan./jun., 2015.
A Dignidade da Pessoa Humana como Princípio Constitucional
Estruturante do Direito Administrativo
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do princípio da dignidade humana. A própria condição de defesa do
cidadão ante o Poder Público reclama o mais amplo reconhecimento
dos direitos e garantias individuais (disciplina penal administrativa),
fatores de proteção do indivíduo contra aquela genética administrativa da
autoridade e da assimetria. Todos esses parâmetros contribuem de forma
destacada e indelével para a construção e consolidação desse novo regime
jurídico administrativo, fundado no paradigma da Administração Pública
democrática.
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O Regime Constitucional das Regiões Metropolitanas e seus Desafios
35
O REGIME CONSTITUCIONAL DAS REGIÕES
METROPOLITANAS E SEUS DESAFIOS
Ivan Luis Barbalho Maia1
RESUMO: Com o processo de urbanização e conurbação no Brasil,
surgiram as primeiras regiões metropolitanas com o objetivo de integrar
as funções públicas de interesse de mais de um município. A expectativa
era de que os problemas fossem resolvidos com maior agilidade e
eficiência com a instituição de um colegiado metropolitano que planejasse
a atuação e coordenasse a execução de obras e serviços de interesse
comum. Infelizmente, principalmente por ausência de políticas públicas e
de instrumentos de governança, elas não conseguiram resolver os graves
problemas sociais das metrópoles brasileiras. As regiões metropolitanas,
no Direito brasileiro atual, correspondem a uma previsão constitucional
que autoriza os Estados a instituir organismos voltados para a gestão
dos interesses regionais, aqueles que são de interesse de mais de um
município, e que por isso não têm a particularidade de ser conceituados
como interesse predominantemente local, atraindo para os municípios
a competência para legislar e executar medidas voltadas para o efetivo
atendimento. O desenho que surgiu com a Constituição Federal de 1988,
de autonomia dos municípios e definição das regiões metropolitanas como
incumbência exclusiva dos estados, revelou um paradoxal arranjo político
que, necessariamente, deve ser equacionado. Esse paradoxo está assentado
em uma ordem política incompleta, marcada pela gestão metropolitana
esvaziada de efetivo poder, autonomia e recursos; por incumbências
concorrentes e compartilhadas que ainda devem ser arranjadas entre
os entes federados; e pela necessidade de se instituir um marco legal e
público que dê conta da associação entre os entes federados. O presente
artigo mostra-se muito pertinente em vista das recentes decisões
proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito das Ações Diretas
de Inconstitucionalidade 1.842/RJ e 2.077/BA e pela promulgação da L ei
Federal n° 13.089 de 12 de janeiro de 2015, comumente conhecida como o
“Estatuto da Metrópole”.
Palavras-chave: Regiões Metropolitanas. Direito das cidades.
THE CONSTITUTIONAL REGIME OF METROPOLITAN
AREAS AND THEIR CHALLENGES
1
Administrador e graduando em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente assessora a
Presidência da Empresa Baiana de Águas e Saneamento S/A – Embasa.
RECEBIDO EM: 30/06/2015
ACEITO EM: 20/07/2015
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 35 - 56, jan./jun., 2015.
36
Ivan Maia
ABSTRACT: With the process of urbanization and conurbation in
Brazil, came the first metropolitan areas in order to integrate public
service of interest to more than one municipality. The expectation was
that the problems were solved with greater speed and efficiency with
the introduction of a metropolitan board that planned the action and
coordinate the execution of works and services of common interest.
Unfortunately, mainly due to lack of public policies and governance
tools, they have failed to solve the serious social problems of Brazilian
cities. The metropolitan areas, in the current Brazilian law, correspond
to a constitutional provision that allows states to establish institutions
engaged in the management of the region, those that are of interest
to more than one municipality, and therefore not have the distinction
of being conceptualized as predominantly local interest, attracting to
municipalities the power to legislate and implement measures aimed at
effective care. The design they came up with the 1988 Federal Constitution
of autonomy of municipalities and definition of metropolitan areas as the
exclusive task of the states revealed a paradoxical political arrangement
that necessarily must be solved. This paradox is seated in an incomplete
political, marked by the metropolitan management emptied of effective
power, autonomy and resources; By errands competitors and shared still
to be arranged between the federal entities; and the need to establish a
legal and public framework to take account of the association between
the federated entities. This article shows very relevant in light of recent
decisions handed down by the Supreme Court under the Direct Actions of
Unconstitutionality 1,842 / RJ and 2077 / BA and the enactment of Federal
Law nº. 13,089 of January 12, 2015, commonly known as the “Statute of the
Metropolis”.
Keywords: Metropolitan areas. Right of cities.
1 INTRODUÇÃO
A constituição e a ampliação das metrópoles configuram um
processo vigoroso e dinâmico, baseado na transformação e na construção
de espaços urbanos que trazem desafios ampliados para a sociedade e
o Estado, à medida que condensam um amplo conjunto de demandas e
desafios que expõe a lógica da gestão fragmentada dos territórios – sejam
municípios, vilas ou cidades.
As regiões metropolitanas, no Direito brasileiro atual, correspondem
a uma previsão constitucional que autoriza os Estados a instituir
organismos voltados para a gestão dos interesses regionais, aqueles
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 35 - 56, jan./jun., 2015.
O Regime Constitucional das Regiões Metropolitanas e seus Desafios
37
que são de interesse de mais de um município, e que por isso não têm a
particularidade de ser conceituados como interesse predominantemente
local, atraindo para os municípios a competência para legislar e executar
medidas voltadas para o efetivo atendimento.
Segundo nos ensina Dallari (2014, p. 5), a “primeira grande inovação
foi, precisamente, a afirmação da autonomia dos municípios pela primeira
Constituição republicana e federativa, de 1891”. Logo, o surgimento da
região metropolitana como um novo elemento de grande relevância
a ser considerado na organização política da República Federativa e na
distribuição constitucional de competências e encargos entre as unidades
federadas e aquelas que, em uma peculiaridade brasileira, não são unidades
da federação, mas gozam de autonomia política constitucionalmente
protegida, que são os municípios.
Verifica-se, pois, que o maior ou ao menos o primeiro obstáculo
a ser enfrentado é o de natureza política, do ponto de vista do poder e
da organização institucional. Afinal, a criação e a gestão metropolitana,
conforme o desenho constitucional de 1988, são atribuições dos estados
que adotaram critérios e modelos distintos para todo o País, sendo que,
na maior parte das regiões metropolitanas, a participação estatal está
assentada em estruturas “teóricas” de paridade, vinculadas a fundos
metropolitanos que não chegaram a existir, criados apenas no papel, ou
que se tornaram figuras frágeis e não utilizadas.
O desenho que surgiu com a Constituição Federal de 1988 de
autonomia dos municípios e definição das regiões metropolitanas como
incumbência exclusiva dos estados revelou um paradoxal arranjo político
que, necessariamente, deve ser equacionado.
Esse paradoxo está assentado em uma ordem política incompleta,
marcada pela gestão metropolitana esvaziada de efetivo poder, autonomia
e recursos; por incumbências concorrentes e compartilhadas que ainda
devem ser arranjadas entre os entes federados; e pela necessidade de se
instituir um marco legal e público que dê conta da associação entre os
entes federados.
2 O DIREITO À CIDADE E O TRIUNFO DAS METRÓPOLES
Conforme anotou o célebre sociólogo norte americano Park (1967, p.
3), “ao criar a cidade o homem criou a si mesmo”. Isso porque os centros
urbanos são a extensão das pessoas, não apenas em relação aos prédios e
corredores de veículos. É a constatação de que os povos tendem a evitar
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 35 - 56, jan./jun., 2015.
38
Ivan Maia
a dor e o sofrimento e a guiar suas escolhas em busca de prosperidade e
felicidade, aspirações ligadas às funções sociais da cidade.
O direito à cidade corresponde ao conjunto de garantias e bens
constitucionalmente protegidos cuja titularidade foi entregue aos
seus moradores. Assim, os diversos territórios que compõem a região
metropolitana devem ser considerados como referência dessa identidade,
mesmo porque, o cidadão metropolitano é, por conceito, o que não conhece
fronteiras intermunicipais e que estabelece no seu cotidiano intensas trocas
afetivas, culturais, econômicas e sociais com os diversos lugares no espaço
da metrópole.
Na forma do art. 182 da Constituição Federal de 1988, foi determinado
que a política de desenvolvimento urbano tenha por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade. É o reconhecimento
ao direito à cidade e aos bens coletivos nela disponíveis. A integração do
espaço urbano corresponderia à construção de uma cidade que deve ser
compartilhada. Daí o relevo das regiões metropolitanas como agentes
aglutinadores de experiências pluralistas.
O compromisso em garantir o direito à cidade é tamanho que em
várias partes do mundo tem surgido experiências buscando implementar
uma governança metropolitana de qualidade, sem isolamentos ou
provincianismos.
São novas formas de governança urbana decorrentes de um direito
natural à cidade, cujos desafios que lhe são apresentados não costumam
ser de fácil superação. A luz brasileira quanto a este delicado diagnóstico
vem, contudo, da própria Constituição Federal que, antevendo o futuro
urbano que abraçaria, estabeleceu a possibilidade de os Estados, por meio
de lei complementar, criarem regiões metropolitanas para, em aliança com
os municípios metropolitanos, concretizar o direito à cidade.
Um terço da população mundial está de mudança. Esse
deslocamento dos vilarejos para as cidades se iniciou a partir da Segunda
Guerra Mundial, quando os moradores da América do Sul e do Oriente
Médio foram morar nas periferias das cidades. Agora, está no seu estágio
mais intenso. “Em 1950, 309 milhões de pessoas em países como o Brasil
viviam em cidades. Até 2030, serão 3,9 bilhões” (SAUNDERS, 2013, p. 22).
Para Leal (2014, p. 11), as metrópoles triunfaram.
600 cidades são responsáveis por 60% do PIB global. Hoje, 243 milhões
de americanos se aglomeram em 3% do país: a zona urbana. Uma
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O Regime Constitucional das Regiões Metropolitanas e seus Desafios
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população de 36 milhões de pessoas vivem na cidade e no entorno de
Tóquio, a região metropolitana mais produtiva do mundo. São Paulo e a
Cidade do México têm mais de 20 milhões de habitantes. Buenos Aires
e Rio de Janeiro mais 10 milhões. Na fila vem Lima, Bogotá, Santiago,
Salvador, Brasília, Belo Horizonte e Caracas.
Como pode ser observado, a solução para gerir esses gigantes foi a
integração em regiões metropolitanas que, no Brasil, tem expresso amparo
constitucional, mostrando a extraordinária visão quanto ao futuro urbano
que o país teria.
É a concretização do art. 3°, I e III da Constituição, que elege como
objetivos fundamentais construir uma sociedade livre, justa e solidária e
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais. Também o art. 23, X, que diz ser da competência comum da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios combaterem as
causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração
social dos setores desfavorecidos.
A Constituição Federal de 1988 estabelece compromissos às cidades
que só uma boa governança é capaz de cumprir. Logo no Preâmbulo
se afirma a necessidade de assegurar exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento,
a igualdade e a justiça. O art. 6°, por sua vez, fala em educação, saúde,
alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social,
proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.
O triunfo das metrópoles é a glória dos povos que, motivados pela
busca por prosperidade e felicidade, confiaram nessas áreas a sorte para
os seus destinos. É preciso reconhecer esse fato e usufruir dos mecanismos
disponibilizados pioneiramente pela Constituição Federal de 1988 na
defesa de um futuro que deve ser de todos nós.
3 O REGIME CONSTITUCIONAL DAS REGIÕES METROPOLITANAS
A metropolização é um processo histórico que parte da urbanização
e, antes de ser jurídico, é socioeconômico e geográfico e pode ser verificado
em todo o cenário internacional. No Brasil, ele se intensificou a partir da
década de 1950 e caracterizou-se pelo intenso ritmo de crescimento em
volta das principais capitais estaduais.
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Para Silva (1997, p. 195):
por regiões metropolitanas entendem-se aqueles municípios que
gravitam em torno de grande cidade, formando com esta uma unidade
socioeconômica, com recíprocas implicações nos serviços urbanos e
interurbanos. Assim sendo, tais serviços deixam de ser exclusivo interesse
local, por vinculados estarem a toda comunidade metropolitana.
Definindo regiões metropolitanas, Grau (1979, p. 12) pouco diverge
do conceito anteriormente apresentado. Para ele, em sentido amplo, seriam
as regiões metropolitanas:
o conjunto territorial intensamente urbanizado, com marcante
densidade demográfica, que constitui um polo de atividade econômica,
apresentando uma estrutura própria definida por funções privadas e
fluxos peculiares, formando, em razão disso, uma mesma comunidade
socioeconômica em que as necessidades específicas somente podem
ser, de modo satisfatório, atendidas através de funções governamentais
coordenada e planejadamente exercitadas.
Neste ponto, vale recordar as palavras do ministro do Supremo
Tribunal Federal - STF Corrêa, no julgamento da ADI 1842, quando
afirmou :
as regiões metropolitanas correspondem a uma forma de administração
pública flexível e moderna, que garante eficiência e eficácia no
gerenciamento das funções e dos serviços públicos, tanto urbanos
quanto regionais, por meio das entidades federadas integradas, sob
a coordenação do Estado-membro, em face dos interesses comuns
coletivos.
A realidade da metrópole, verificada a partir desse movimento
dinâmico de crescente urbanização e conurbação, com impactos sociais,
ambientais e econômicos, impõe à Administração Pública o desafio de
uma atuação mais planejada e racional. Ao mesmo tempo, a busca por
soluções para a gestão do espaço metropolitano induz à reformulação das
formas tradicionais de organização, de planejamento e de execução das
funções públicas e pelo desenvolvimento de arranjos institucionais que
pressupõem uma articulação das diversas instâncias que atuam sobre o
espaço urbano.
Para Pires (1986, p. 2), esta realidade demanda “tratamento
próprio”, que há de ser dado sob um prisma que possibilite mesmo uma
macrovisão da trama que se desenrola na metrópole, sob uma ótica supraRevista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 35 - 56, jan./jun., 2015.
O Regime Constitucional das Regiões Metropolitanas e seus Desafios
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local, para aferição das questões surgidas na inter-relação das localidades,
comunidades.
Verifica-se, pois, que o tema das regiões metropolitanas tem
relevância significativa sob o enfoque da dogmática do Direito,
especialmente sob o ponto de vista de avaliar os critérios que devem
nortear a institucionalização das regiões metropolitanas com vistas à
realização de determinadas funções da Administração Pública no âmbito
de um arranjo institucional que ainda não está bem delineado no Brasil e
considerando-se interesses que fogem às formas tradicionais de exercício
das competências pelos entes federados.
A Constituição Federal dedicou apenas um dispositivo para
a questão das regiões metropolitanas, mas há vários outros valores
constitucionais que se relacionam com a institucionalização do espaço
metropolitano.
Além disso, considerando que o artigo 25, §3º parece indicar que
a justificativa/motivação para a criação das regiões metropolitanas reside
na necessidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de
“funções públicas de interesse comum”, que, por evidente, ultrapassam
os limites territoriais e administrativos de um só município, é natural que
a institucionalização de uma região metropolitana tenha desdobramentos
no exercício de competência do município, em todas as suas dimensões –
organização, planejamento, execução e controle.
4 AUTONOMIA MUNICIPAL E REGIÕES METROPOLITANAS:
A CONVIVÊNCIA HARMÔNICA CONSTITUCIONALMENTE
PROTEGIDA
O município como entidade político-jurídica autônoma surgiu com
a Constituição de 1891, momento que os principais partidos políticos do
período do Segundo Império incluíam a autonomia dos municípios entre
os requisitos para o estabelecimento de uma sociedade livre.
Com efeito, na Constituição de 1891, consagrou-se uma fórmula que
se tornaria tradicional no Direito Público brasileiro. É a expressão contida
no artigo 68: “Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada
a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar
interesse”.
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Ivan Maia
Para Dallari (2014, p. 6), tratando desse momento histórico brasileiro:
surgia assim, a Federação, trazendo em seu arcabouço o princípio
da autonomia das entidades locais, havendo mesmo publicistas de
nomeada que, mais tarde, ressaltariam o reconhecimento da autonomia,
dos Estados e municípios, como um preceito válido por si mesmo, um
pressuposto de realidade democrática e de sobrevivência do sistema
federativo.
Por sua vez, a área metropolitana surge quando a cidade cresce
mais do que o próprio município que a abriga. Nos dizeres de Munhoz
(2011, p. 194), os “interesses metropolitanos não podem ser considerados
a soma dos interesses locais. São, na verdade, os interesses continuados e
pontuados como de interesse geral que apenas serão passíveis de solução
se pensados e efetivados de forma conjunta”.
Prevendo os conflitos federativos que a tentativa de boa governança
(tal qual se propõe à criação de regiões metropolitanas), por vezes, gera,
advertiu Kelsen (1998, p. 445) que “o autocrata é sempre contrário a tal
transferência de poder para outros órgãos e inclina-se a concretizar o maior
número possível de funções na sua própria pessoa”.
O discurso existente em relação à autonomia municipal como
elemento indutor ao isolamento, a provincianismos e a personalismos no
processo decisório de temas pontuais e comuns que afetam os cidadãos
metropolitanos corresponde a um artifício vazio diante dos inúmeros
compromissos estipulados pela Constituição Federal. Todos invocam
a presença do Estado capaz de se articular suficientemente a ponto de
prestar os serviços básicos.
Segundo preceitua o art. 1° da Constituição Federal, a República é
formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito
Federal. Não é possível, direta ou indiretamente, agir em confronto a essa
aliança que o próprio texto constitucional exaltou. Além disso, o art. 30, VI
e VII, dispõe competir aos municípios manter, com a cooperação técnica
e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de
ensino fundamental e prestar, com a cooperação técnica e financeira da
União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população. Como
se percebe, é um convite à integração.
Foi apostando na integração que, no art. 43, a Constituição Federal
estipulou que a União poderá articular sua ação em um mesmo complexo
geoeconômico e social, sendo que, para tal, lei complementar disporá
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O Regime Constitucional das Regiões Metropolitanas e seus Desafios
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sobre as condições para integração de regiões em desenvolvimento e a
composição dos organismos regionais que executarão, na forma da lei, os
planos regionais, integrantes dos planos nacionais de desenvolvimento
econômico e social, aprovados juntamente com estes.
Nas palavras de Harvey (2014, p. 128), ao ressaltar o papel das
alianças, “quando, após a crise de 1973, o presidente dos Estados Unidos,
Richard Nixon, deixou de manter as alianças com os municípios, o efeito
foi uma crise nos serviços urbanos, com a degeneração da escola pública e
da disponibilidade de moradias”.
Tal fato demonstra que é necessário ter a compreensão de que
quando posturas isolacionistas são empreendidas no seio das regiões
metropolitanas, seja pelo próprio Estado, seja por algum dos seus
municípios, quem perde é o povo; e isso é inaceitável aos olhos da
Constituição Federal de 1988.
O famoso economista e professor de Harvard, Glaeser (2011, p. 94)
pondera que “quando o setor público falha em atacar as consequências
geradas por milhões de pessoas pobres aglomeradas em uma única
metrópole, as cidades podem se transformar em lugares de horror, onde
criminosos e doenças circulam livremente”.
Com relação à criação das regiões metropolitanas, a competência
legal para tal decisão e a possibilidade jurídica de aceitação ou recusa de
integrar uma região metropolitana por parte dos municípios nela incluídos,
há quem pretenda suscitar dúvidas ou mesmo sustentar a necessidade de
uma lei do município interessado para que este seja incluído na região
metropolitana.
A criação de regiões metropolitanas foi expressamente referida na
Constituição Federal de 1988, sendo esse, necessariamente, o ponto de
partida para o exame da constitucionalidade de sua criação. Com efeito,
diz o art. 25, § 3°, com absoluta clareza e objetividade, que “os Estados
poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas,
aglomerações urbanas e microrregiões, constituída por agrupamentos
de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a
execução de funções públicas de interesse comum”.
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Comentando a expressão “interesse comum”, contida no art. 25, § 3°
da Constituição Federal, observa Alves (2001, p. 93):
interesse comum implica o vínculo simultâneo ou sucessivo, efetivo
e material de ações ou atividades estáveis de uma multiplicidade
determinada de pessoas político-administrativas, agrupadas mediante
lei complementar, dentro de certo espaço territorial definido, para
o exercício de funções públicas integradas de interesse de todos os
envolvidos. Esse vínculo gera a exigência de uma interdependência
operacional, conforme certos objetivos comuns, cujos critérios poderão
variar em termos de disposições geográficas dos fatores naturais.
Assim, havendo funções públicas de interesse comum, reconhecidas
pelo legislador complementar estadual (pressuposto constitucional para
a instituição de uma região metropolitana), é obvia a interdependência
que disso decorre, demandado um aparato decisório do qual participem
todas as unidades interessadas, estando aí a base, de fato e jurídica, para a
existência necessária de uma governança metropolitana.
Com relação à competência exclusiva dos Estados para legislar sobre
regiões metropolitanas, é importante mencionar a constatação feita pelo
eminente constitucionalista Silva (2014, p. 294), na sua obra consagrada
“Comentários Contextual à Constituição”. Em um capítulo dedicado ao
exame das questões relacionadas com a distribuição das competências
atribuídas aos Estados no sistema federativo brasileiro. Além de outras
considerações, o eminente autor observa que, na Constituição Federal de
1988, os Estados receberam algumas competências exclusivas. E assinala,
então, com grande ênfase, a competência exclusiva dos Estados para a
instituição, mediante lei complementar estadual, de regiões metropolitanas.
A capacidade de autoadministração é a única das prerrogativas das
quais se reveste os municípios que têm uma parte de sua execução inserida
na região metropolitana, mas não de modo absoluto. Temas comuns, de
impacto coletivo, cuja governança só possa ser feita se pensada e executada
coletivamente, como saneamento básico e transporte coletivo, devem ser
submetidos ao debate com os representantes dos outros municípios, por
meio da região metropolitana.
A Constituição Federal, aliada à recente interpretação constituída
pelo STF, conferiu toda propulsão às regiões metropolitanas e às autarquias
estaduais eventualmente criadas para desembaraçar a sua gestão em
aliança com os municípios metropolitanos (LEAL, 2014, p. 28).
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O Regime Constitucional das Regiões Metropolitanas e seus Desafios
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Isolamentos impostos por autoridades de entes federados,
ao contrário de enaltecer a autonomia municipal, corrompem o
pacto federativo, por estabelecerem infundados bloqueios ao livre
desenvolvimento das atividades próprias de uma instituição inclusiva,
qual seja, as autarquias estaduais responsáveis pela governança das regiões
metropolitanas estipuladas pelo art. 25, § 3° da Constituição Federal. Essa
é uma forma de rompimento com o compromisso da indissolubilidade
(art. 1° da Constituição Federal).
Em uma sociedade constitucionalmente protegida, com serviços
públicos prometidos e regiões metropolitanas conectadas por rede, o
isolamento imposto por autoridades é um mal em si, algo que não conta
com a consideração e respeito do constitucionalismo contemporâneo.
5 O PRINCÍPIO DA CONDUTA FEDERATIVA AMISTOSA E O DEVER
DE LEALDADE DOS MUNICÍPIOS METROPOLITANOS
O § 3° do art. 25 da Constituição Federal inaugurou uma nova
dimensão do federalismo de integração, respondendo às outras
necessidades institucionais (ALVES, 2001, p. 68). Para este autor, “o
sistema tornou-se muito menos rígido, permitindo, precisamente em
razão de nossa grande extensão territorial e diversidade socioeconômica,
um partilhamento de competências normativas e administrativas de maior
flexibilidade e agilidade para possibilitar a ação mais adequada e racional
do Poder Público”.
Segundo Leal (2014, p. 30), “a cooperação intergovernamental passa
a ter uma dimensão institucional própria, representada pela exigência
de unidades integradas e personalizadas de ação pública de interesse
comum”.
É nesse contexto que se necessita reconhecer como desleal a posição
de qualquer município metropolitano de embaraçar caprichosamente as
ações realizadas de forma integrada no âmbito da região metropolitana.
Do contrário, tratar-se-ia de um comportamento deletério à federação,
fiado na incompreensão quanto ao verdadeiro papel estabelecido no
pacto federativo, que, como consta do art. 1° da Constituição Federal, é
indissolúvel.
É o que a literatura germânica denomina de “violação ao princípio
da conduta federativa amistosa”, um mandamento não escrito decorrente
do compromisso firmado na Lei Fundamental de se comportar segundo
o dever natural de fidelidade (que o município) que deve manter com a
federação (LEAL, 2014, p. 30).
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A Constituição Federal brasileira de 1988 não se mostra diferente,
pois, ao estabelecer compromissos recíprocos aos entes federados, fixou o
dever de agir de forma leal, conduzido pelas instituições. A Constituição
Federal também não é simpática a atitudes isoladas visando demonstrações
de poder, pois acredita que personalismos caprichosos exibidos por
autoridades locais podem colocar a perder toda a coletividade que, a muito
custo, deixou de ser governada por homens e passou a ser governada por
instituições guiadas pelas leis.
O Tribunal Constitucional alemão atribui ao princípio da conduta
federativa amistosa significado para a ordem estatal-federal da Lei
Fundamental. Nesta perspectiva, assevera Leal (2014, p. 31) que “vejam
que a Alemanha compreende que a manutenção do pacto federativo visa,
antes de tudo, mudar estilos políticos. No Brasil, esse dever é ainda mais
visível. Violar o princípio da conduta federativa amistosa por meio de um
ato da federação torna esse ato inconstitucional”.
Diante deste cenário, vale trazer os ensinamentos de Kelsen (1998)
acerca da “autonomia local”. Para ele, trata-se de “uma combinação direta e
deliberada das ideias de descentralização e democracia. A descentralização
refere-se apenas a certas matérias de especial interesse local; e o alcance da
autoridade municipal é restrito ao estágio das normas individuais.”
É necessário compreender que os municípios metropolitanos não
têm o direito de isolar-se. Caso insistam, mesmo assim, suportarão as
intervenções necessárias. Ao tratar de função pública de interesse comum,
o município deve tolerar sua execução em seu território, vez que, se ela
realiza e concretiza de certo modo o interesse local, ela também é de
interesse regional, não podendo sofrer solução de continuidade, sob pena
de prejudicar os outros municípios metropolitanos.
Essa é uma compreensão necessária sem a qual o país jamais
avançará rumo a seus propósitos mais elevados quanto aos grandes
centros urbanos.
6 AS RECENTES DISCUSSÕES SOBRE O TEMA
A realidade das regiões metropolitanas, constatada como fenômeno
dinâmico e inevitável nos dias atuais, passou a constituir um verdadeiro
desafio, demandando soluções inovadoras e adequadas à sua complexidade
e dimensão.
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O Regime Constitucional das Regiões Metropolitanas e seus Desafios
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Vários autores têm apontado a inexistência de estruturas de
governança que possam viabilizar, de maneira adequada, o planejamento,
a execução, a produção e distribuição de bens e serviços públicos no
âmbito do espaço metropolizado vale trazer os ensinamentos de Kelsen
(1998). Coloca-se, assim, o debate sobre a institucionalização das regiões
metropolitanas. Sobre isso, Klink (2009, p. 416), entende que:
o debate sobre as regiões metropolitanas aponta para um paradoxo:
enquanto concentram importantes problemas e oportunidades,
verificamos, ao mesmo tempo, que o arcabouço institucional que deveria
nortear a organização, gestão e financiamento desses territórios não está
à altura de lidar com os desafios e aproveitar as potencialidades.
Observe-se que não se trata de um debate de menor importância.
A escolha dos modelos jurídicos de institucionalização de uma região
metropolitana possui significado em dois campos centrais: (i) o da realização
dos direitos fundamentais, e (ii) o da democracia.
No primeiro caso, porque as “funções públicas de interesse comum”,
a que se pretende atender mediante a integração metropolitana, se ligam,
diretamente, à realização de direitos, especialmente de direitos sociais. Já
no segundo caso, o tema do município, como o tema da descentralização
do poder em geral, é um dos grandes debates em torno do conceito de
democracia, conceito que também possui o significado do poder próximo
e ao alcance da participação e do controle do cidadão.
Em princípio, podemos identificar três ondas de proliferação de
arranjos institucionais metropolitanos (MOURA; LIBARDI; BARION,
2006, p. 130-131). Uma primeira fase pode ser observada na década de ,
no contexto da ordem constitucional antecedente e no âmbito da política
nacional de desenvolvimento urbano, formulada pelo Governo Militar,
a partir do estímulo político e financeiro da União à industrialização e
consolidação de centros urbanos conurbados. Regulamentando o artigo
164 da Constituição em vigor, a Lei Complementar Federal nº 14, de 8
de junho de 1973, criou oito regiões metropolitanas (São Paulo, Belo
Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém e Fortaleza) e a
Lei Complementar federal nº 20, de 1º de julho de 1974, instituiu a região
metropolitana do Rio de Janeiro, definindo quais os serviços comuns aos
municípios seriam entendidos como “de interesse metropolitano”.
Ao longo dos anos 1980, assiste-se uma segunda onda de
institucionalização das regiões metropolitanas, marcada pela
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Ivan Maia
descentralização política e pela reorganização do Estado promovidas pela
Constituição de 1988. A partir da Constituição de 1988, então, a questão
metropolitana saiu da agenda da União e, de ponto de vista institucional,
foi parar na esfera de atribuições dos Estados federados, que, segundo
o disposto no artigo 25, §3º, passaram a ter a faculdade de instituir, por
meio de lei complementar, regiões metropolitanas, aglomerações urbanas
e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes,
com o objetivo de integrar a organização, planejamento e execução de
funções públicas de interesse comum.
O presente artigo parte do entendimento segundo o qual a atuação
da Administração Pública, inclusive a normativa, sempre deve estar
adstrita aos parâmetros constitucionais. Claro está, então, que o legislador
estadual, no exercício da sua faculdade de institucionalizar as regiões
metropolitanas, deve observar os critérios apontados no artigo 25, §3º.
Ainda em relação à segunda onda de institucionalização, é de se
notar que, do ponto de vista institucional, o tema da gestão metropolitana
esvaziou-se. Nas palavras de Bucci (2004, p. 555), “a Constituição Federal
reservou um papel muito acanhado às regiões metropolitanas, com uma
referência breve, no artigo 25, que na prática despreza a experiência dos
anos 1970 e 1980”. Entre outros fatores, isso parece uma reação política à
centralização autoritária da ordem anterior, uma busca pelo fortalecimento
da autonomia dos municípios, alçados à categoria de entes federados.
Mais recentemente, questões socioeconômicas de caráter nacional
ensejaram outras reflexões sobre os modelos de planejamento, sendo
possível observar uma terceira onda de institucionalização das regiões
metropolitanas. O fortalecimento da democracia, a ampliação das funções
do Estado, bem como o aumento da complexidade sociopolítica, em
face dos direitos fundamentais estruturantes, demandaram o retorno da
intervenção estatal e a reformulação das políticas públicas estruturadas em
diversas dimensões: organização, planejamento, execução e controle. Ao
mesmo tempo, a própria ordem constitucional foi se alterando, prevendo
novos mecanismos de integração federativa com vistas ao atendimento
mais adequado das funções públicas.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) prolatou decisões
nos autos de Ações Diretas de Inconstitucionalidade que tramitaram por
mais de treze anos: o Acórdão da ADI 1.842/RJ foi publicado em 06 de
setembro de 2013; na ADI 2.077/BA, no dia 09 de outubro de 2014, com
decisão referente à medida cautelar. As ações foram ajuizadas por partidos
políticos em face de dispositivos constitucionais e infraconstitucionais
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O Regime Constitucional das Regiões Metropolitanas e seus Desafios
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estaduais, respectivamente, do Rio de Janeiro e da Bahia, pleiteando a
declaração da inconstitucionalidade da avocação por ambos da titularidade
das funções e serviços públicos de interesse comum nas respectivas regiões
metropolitanas de suas capitais.
A decisão, ao interpretar o dispositivo constitucional (art. 25, § 3º)
atribuiu vários novos sentidos ao texto, que não estavam expressos na
Constituição Federal, tais como a compulsoriedade, a possibilidade de
estabelecimento pela lei complementar estadual de regime especial de
exercício de competências municipais, entre outros. Em face do acórdão,
partidos políticos opuseram embargos de declaração. Tem-se, assim, um
cenário de incerteza quanto ao posicionamento do STF sobre as regiões
metropolitanas.
Depois do referido julgamento, foi institucionalizada uma nova
região metropolitana: a Lei Complementar nº 41, de 13 de junho de 2014, do
Estado da Bahia, criou a Entidade Metropolitana da Região Metropolitana
de Salvador, dispondo, entre outros aspectos, sobre sua estrutura de
governança. Trata-se da primeira região metropolitana institucionalizada
após a publicação do referido entendimento do STF.
Contudo, em 14 de agosto de 2014, o partido político Democratas
(DEM) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no
STF, autuada sob o registro ADI nº 5155-BA, requerendo a declaração de
inconstitucionalidade dos seus artigos 1º e 2º e, por arrastamento, de todos
os demais dispositivos deste diploma.
Acrescenta-se, ainda, que o município do Salvador tem se
mostrado contrário a qualquer ação de integração no âmbito da região
metropolitana. Corrobora-se a resistência do município do Salvador em
integrar a Região Metropolitana de Salvador no fato deste município já ter
ingressado como amicus curiæ nos autos da ADI 5155, com o objetivo de
atacar a constitucionalidade da Lei Complementar Estadual nº 41, de 13 de
junho de 2014, do Estado da Bahia, sob a alegação de que, supostamente, a
instituição da Entidade Metropolitana reduziria a sua autonomia.
O município de Salvador, ao questionar a lei e não participar do
colegiado - a participação é compulsória -, está perdendo uma grande
oportunidade de buscar resolver, de forma articulada e integrada, os graves
problemas urbanos existentes na capital baiana. A nova governança exige
a adoção de uma estratégia de desenvolvimento territorial e uma nova
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forma de atuação do Estado e dos municípios integrantes, principalmente
o de Salvador, mediante diretrizes estabelecidas pelo colegiado relativas
à integração, ao planejamento, à organização e à execução das ações das
políticas públicas de interesse comum, que devem ser observadas por
todos.
Poder-se-á questionar se estaríamos diante de uma quarta onda de
institucionalização das regiões metropolitanas tendo em vista as inovações
trazidas pelo mencionado julgamento do STF? Teria o STF, ao interpretar
a Constituição Federal, encontrado novos parâmetros constitucionais para
a institucionalização das regiões metropolitanas, a serem observados pelo
legislador estadual?
Como visto, a gestão da metrópole perpassa pelo enfrentamento de
problemas que ultrapassam os limites geográficos e administrativos de
um único município. Ocorre, contudo, que essa necessidade esbarra no
arranjo federativo e no princípio da subsidiariedade que rege o exercício
de competências no Brasil. Nesse contexto, impõe-se a necessidade de
se identificar instrumentos que viabilizem a atuação mais adequada da
Administração Pública, notadamente dos três entes federados.
É que a compreensão da conformação jurídica das regiões
metropolitanas requer um diálogo com o federalismo brasileiro, na medida
em que diz respeito ao exercício de competências. Os municípios, agora
alçados ao nível de entes federados, detentores de competências complexas
e abrangentes, passaram a ser vistos como desenvolvedores de um papel
relevante de garantidor da democracia, por meio do alcance e capilaridade
que são próprios da gestão local. A partir daí, consolidou-se uma noção
rígida de autonomia municipal.
O dispositivo constitucional que trata das competências comuns
(artigo 23), aliado à possibilidade de criação das regiões metropolitanas
pelos Estados, impõe uma determinação normativa em que se recorta, a
partir das competências estaduais e municipais tradicionais, uma forma
de exercício de competências, que reclama uma tomada de posição diversa
frente ao federalismo brasileiro (ALVES, 2001, p. 57).
Considerando-se que as competências federativas não são um
fim em si mesmo, mas devem ser exercidas, sobretudo, para garantir
o atendimento aos direitos fundamentais, é necessário repensar o
significado do exercício de competências, por meio do desenvolvimento e
da experimentação de novos arranjos institucionais, que sejam orientados
pelas funções da Administração Pública.
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O Regime Constitucional das Regiões Metropolitanas e seus Desafios
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Analisando o aspecto da motivação da institucionalização das regiões
metropolitanas, nos ensina Teixeira (2005, p. 69) que:
[...] a justificativa da existência da região metropolitana resume-se à
prestação conjunta, pelos municípios envolvidos, de funções públicas
de interesse comum, vale dizer, a função primordial da constituição
de determinada região em metropolitana é a satisfação dos anseios da
população diretamente implicada, a qual deverá ser a beneficiária de
todos os esforços tendentes à organização, planejamento e execução de
políticas públicas integradas.
De qualquer forma, o tema da cooperação interfederativa e da gestão
metropolitana voltou a pautar a agenda política do Governo Federal. Assistese, assim, um processo de planejamento de setores e do fortalecimento
institucional, com a aprovação do Estatuto da Cidade e a criação do
Ministério das Cidades em 2003. Este cenário parece nos colocar diante
de novos critérios, limites e alternativas de institucionalização das regiões
metropolitanas.
No Brasil democrático, portanto, a institucionalização das regiões
metropolitanas pelo legislador estadual representa uma resposta em
permanente construção, que visa solucionar problemas práticos
que dificultam o atendimento adequado das funções públicas que,
inevitavelmente, se tornam cada vez mais regionais. Tal atuação, contudo,
está limitada a parâmetros constitucionais que ainda não estão claros e
precisos em nível suficiente.
Tendo em vista a heterogeneidade das realidades urbanas brasileiras,
o debate sobre arranjos para a governança de regiões metropolitanas
é bastante complexo. Não se trata de buscar o melhor modelo, pois cada
realidade metropolitana, com suas peculiaridades, deve encontrar um
arranjo que lhe seja mais racional e que lhe permita desempenhar as
funções públicas comuns que são identificadas, no caso concreto (KLINK,
2009, p. 426).
“É difícil – a experiência prova até que é quase impossível – que
um Estado ou mesmo uma cidade muito povoada seja bem governada”,
registrou Aristóteles (2006, p. 86), mostrando a atualidade do tema. Esses
temas urbanos atualmente são representados pelas regiões metropolitanas.
Meirelles (2006, p. 83), considerado como indutor da região
metropolitana no sistema constitucional brasileiro, ao discorrer sobre elas,
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 35 - 56, jan./jun., 2015.
52
Ivan Maia
aponta a necessidade de “atribuição de serviços de âmbito metropolitano
a uma administração única, que planeje integralmente a área, coordene e
promova as obras e atividades de interesse comum da região, estabelecendo
as convenientes prioridades e normas para o pleno atendimento das
necessidades das populações interessadas”.
A opinião parte da base constitucional brasileira e, atualmente, das
decisões do Supremo. Não há ranhura ao cristal constitucional no fato de
o Estado, aliado aos municípios, por meio de uma administração única
voltada para os temas de interesse comum, numa coalisão justa com os
membros da referida região, dar encaminhamento à execução das políticas
públicas voltadas aos cidadãos metropolitanos (LEAL, 2014, p. 38).
A Constituição Federal foi de uma extraordinária antevisão quanto
à governança relativa aos centros urbanos em regiões metropolitanas.
As manifestações de junho de 2013, no Brasil, cujo embrião veio de um
protesto contra o transporte coletivo, demonstraram que a Constituição
Federal tem razão. É necessária uma governança moderna (LEAL, 2014,
p. 41). Tanto é verdade o citado que a ministra do STF Carmen Lúcia fez
questão de registrar que:
esse Estado brasileiro, como está estruturado e como a Constituição
previu há 25 anos, não atende mais a sociedade. O que era esperança, na
década de 1980, pode se transformar em frustração. A tendência de uma
frustração, o risco social é se transformar em fúria. E, quando a fúria
ganha as ruas, nenhuma ideia de Justiça prevalece.
Apesar da tarefa das regiões metropolitanas não ser de fácil solução,
a Constituição Federal dotou a jurisdição de meios para a conciliação entre
os deveres estatais entregues aos Estados e municípios e as necessidades
prementes dos cidadãos metropolitanos. O desafio é reorganizar a maneira
pela qual as regiões metropolitanas têm sido geridas.
O Estatuto da Metrópole (L ei Federal n° 13.089 de 12 de janeiro
de 2015) é a mais recente tentativa do Governo Federal de suprir o vácuo
legislativo de normas que regulamentam a gestão conjunta das regiões
metropolitanas (EUSTÁQUIO, 2015). A referida lei tem por objetivo criar
regras para a governança compartilhada de grandes aglomerados urbanos
que envolvam mais de um município, como já acontece nas principais
capitais do Brasil.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 35 - 56, jan./jun., 2015.
O Regime Constitucional das Regiões Metropolitanas e seus Desafios
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A norma prevê planos de desenvolvimento urbano integrado,
consórcios públicos, convênios de cooperação, contratos de gestão,
parcerias público-privadas interfederativas e compensação por serviços
ambientais.
Entre as várias inovações do texto legal, o Estatuto da Metrópole
exige que as regiões metropolitanas e aglomerações urbanas tenham um
plano de desenvolvimento urbano integrado, cujo processo de elaboração
do plano e a fiscalização de sua aplicação deverá envolver a promoção
de audiências públicas e debates com participação de representantes
da sociedade em todos os municípios integrantes da unidade territorial
urbana.
Para que a nova lei não seja desrespeitada, o Estatuto da Metrópole
prevê sanções para os responsáveis pela sua aplicação – Governadores e
prefeitos principalmente.
A necessidade de uma deliberação compartilhada, com voz aos
municípios metropolitanos, de modo transparente e com a presença das
potências sócias afetadas pela decisão, constitui um ganho republicano. A
miséria, violência, caos no transporte coletivo e deficiência nos serviços de
saneamento básico são ilustrações perversas dos desafios atuais.
O desafio é fazer com que os agentes públicos e atores políticos e
sociais possam fazer a gestão e a governança metropolitanas. Enfrentar
os desafios requer uma estratégia integrada de desenvolvimento urbano,
focada na dimensão socioeconômica e amparada na integração das
políticas e investimentos públicos que articulem diferentes agentes,
contribuindo para a sua efetividade, evitando-se a pulverização de
recursos e a intervenção com enfoque exclusivamente setorial; exigindo-se
a elaboração de programas e projetos integrados e articulados de geração
de emprego e renda, redução das desigualdades e da violência associada
a políticas sociais e de urbanização de áreas precárias e vulneráveis, e o
apoio à estruturação de novas formas de gestão associada, prioritariamente
para as áreas de saneamento básico, transporte e mobilidade urbana, o
repovoamento de áreas vazias e subutilizadas com habitação e atividades
econômicas, o planejamento do uso e ocupação do solo urbano e a
prevenção e redução de riscos de deslizamentos em encostas.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 35 - 56, jan./jun., 2015.
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Ivan Maia
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Interesse Público e a Responsabilidade da Administração nas
Terceirizações Trabalhistas
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INTERESSE PÚBLICO E A RESPONSABILIDADE
DA ADMINISTRAÇÃO NAS TERCEIRIZAÇÕES
TRABALHISTAS
Bernardo Vassalle de Castro*
RESUMO: O artigo aborda a responsabilidade da Administração Pública
nas terceirizações trabalhistas a partir do conceito de interesse público à
luz do Estado Democrático de Direito. Trata da evolução do conceito de
interesse público como norteador das opções políticas do poder público,
construídas com a estrita observância dos ditames constitucionais e
da valorização dos direitos fundamentais. Discute os requisitos para a
responsabilização da Administração Pública nos casos de terceirização
trabalhista e faz uma análise crítica da jurisprudência relativa ao tema.
Palavras-chave: Terceirização. Administração Pública. Interesse
Público.
PUBLIC INTEREST AND THE RESPONSIBILITY OF
PUBLIC ADMINISTRATION REGARDING LABOUR
OUTSOURCING
ABSTRACT: The article approaches the responsibility of the Public
Administration in labour outsourcing from the concept of public interest
in the Democratic Rule of Law. /The article deals with the evolution of
Public Interest’s concept as the guide of the political options made by the
government, built with observance of constitutional principles and the
enhancement of fundamental rights. It discusses the requirements for
accountability of Public Administration in cases of labour outsourcing
and makes a critical analysis of the case law/jurisprudence related to the
subject.
Keywords: Labour Outsourcing of Man Power. Public Administration.
Public Interest.
* Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós Graduado em Direito de Empresa
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - IEC-PUC Minas. Graduado em Direito
pela Universidade Federal de Minas Gerais. Procurador do Município de Contagem. Professor
Universitário. Advogado.
RECEBIDO EM: 30/06/2015
ACEITO EM: 01/09/2015
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Bernardo Vassalle de Castro
1 POR UM NOVO CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO
O conceito de interesse público remonta à distinção entre a esfera
individual e a esfera coletiva. Essa oposição, intrínseca à liberdade
individual, é inerente à própria existência da sociedade; não uma
característica típica do Estado de Direito. Contudo, com o advento do
Estado Moderno a dicotomia público-privado passou a assumir posição
fundamental no estabelecimento e funcionamento do poder político.1
Nas palavras de Faria (1993, p. 64):
A separação entre o Direito Público e o Direito Privado, que consiste
numa das características mais importantes do Estado Moderno e que
está na essência da noção de liberdade como atributo inseparável do
indivíduo, trata o Estado como organização institucionalizada de
poder.2
No Estado Absolutista, a vontade do soberano era a fonte de todo
o Direito e determinava a vontade do Estado, confundindo-se com ela. O
público e o privado se imiscuíam na figura do rei.
A partir do desenvolvimento do capitalismo e do crescente
deslocamento do eixo de poder no sentido da sociedade civil3, a
sociedade se estabelece não mais como mero agrupamento de indivíduos
indistintamente submissos ao poder soberano e sua vontade deixa de ser
a vontade da sociedade. Surge o Estado Liberal e a afirmação da vontade
coletiva como soma das vontades individuais.
Afirma-se e admite-se um conjunto de interesses distintos da
vontade do soberano e o Estado agora mínimo, ao se distanciar da órbita
da atividade privada, reduz seu âmbito de atuação ao poder de polícia.
No modelo proposto pelo ideal de Estado Liberal, garante-se a
autodeterminação como princípio capaz de assegurar o desenvolvimento
social e econômico da burguesia capitalista da época.
1
MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação Estatal e Interesses Públicos. São Paulo:
Malheiros, 2002. p. 41.
2
FARIA, José Eduardo. Direito e Economia na Democratização Brasileira. São Paulo: Malheiros, 1993.
p. 64.
3
MARQUES NETO, op. cit., p. 31.
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Terceirizações Trabalhistas
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Observa-se a necessidade de um espaço de atuação livre dos agentes
econômicos e a consequente delimitação clara da ordem pública em cotejo
com a esfera individual.
Não obstante a regra do livre exercício dos direitos individuais, a
concepção da álea pública, apesar de bastante restrita, apresenta contornos
bem definidos. Como a esfera do público implica necessariamente na
redução do espaço e da liberdade absoluta da vida privada, o poder que se
estabelece deve constantemente se legitimar.
Todo poder é a autoridade legitimada para a definição e imposição
de interesses e valores e, nestes termos, é imprescindível a delimitação da
finalidade deste poder e as restrições que ele acarreta.
Dessa necessidade de legitimação racional dos limites do poder
político advém a forçosa fixação das finalidades do Estado.
Verifica-se, portanto, a limitação da soberania estatal a partir da
delimitação do poder decisório. O poder centralizado do Estado Liberal
só se justifica se orientado por um interesse geral, pertencente à totalidade
social.
É dessa forma que se difunde a expressão universalizante “interesse
público” como sinônimo de vontade geral e bem comum, e como forma de
legitimação do exercício do poder.
Contudo, já em meados do século XIX o Estado Liberal mostrouse insuficiente para debelar a desigualdade social que se agigantara. A
abstenção da intervenção do Estado gerou consequências terríveis no
âmbito social e econômico porque a ordem pública e o interesse comum
não se resumem à soma dos interesses individuais.
Após a derrocada do modelo liberal, ressurge a ideia do primado do
público sobre o privado sob a fórmula da irredutibilidade do bem comum
à soma dos bens individuais. Confia-se novamente ao Estado a atuação
direta na economia de modo a regular as relações e garantir um mínimo
de igualdade.
Nas palavras de Di Pietro (1991, p. 20), “não mais se pressupõe a
igualdade entre os homens; atribui-se ao Estado a missão de buscar essa
igualdade.”4.
4
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. São
Paulo: Atlas, 1991. p. 20.
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No mesmo sentido, a célebre frase Lacordaire: “entre o forte e o
fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que liberta.”5
Dessa forma, a partir da intervenção do Estado na ordem social e
econômica, desloca-se a primazia da esfera individual, submetendo-a ao
primado da soberania estatal.
Segundo Bobbio (apud DI PIETRO, 1991, p. 153):
A ideia do primado do público se desenvolveu como forma de reação
contra a concepção liberal do Estado. A irredutibilidade do bem comum
pode assumir diversas formas segundo o diverso modo através do qual
é entendido o ente coletivo – a nação, a classe, a comunidade do povo a favor do qual o indivíduo deve renunciar à própria autonomia. Uma
ideia aristotélica e mais tarde, séculos depois, hegeliana segundo a
qual a totalidade tem fins não reduzíveis à soma dos fins dos membros
singulares que a compõem e o bem da totalidade, uma vez alcançado,
transforma-se no bem das suas partes.6
Substitui-se a ideia do homem como fim último do Direito pelo
princípio da supremacia dos interesses públicos sobre os individuais. No
Estado Social, a concepção de interesse estatal é utilizada como sinônimo
de interesse público.
As consequências negativas do modelo social do Estado ultrapassam
o plano econômico e atingem a esfera social e jurídica. A burocracia estatal
dificulta o desenvolvimento e o próprio Direito é desvirtuado dos ideais
de justiça.
A assunção prática da afirmação da supremacia do interesse público
sobre o privado como cláusula geral de restrição de direitos fundamentais
possibilita a emergência de uma política autoritária de realização
constitucional. Os direitos, liberdades e garantias fundamentais sucumbem
aos reclames do Estado que, qual Midas, transforma em interesse público
tudo aquilo que toca.7
Em oposição a esse modelo, surge o Estado Democrático de Direito
com a missão de compor a dicotomia entre liberdade e autoridade, interesse
5 LACORDAIRE apud BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr,
2005. p. 59.
6
BOBBIO, Norberto apud DI PIETRO, Maria Sylvia, op. cit., p. 153.
7
SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime
Jurídico dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. p. 01.
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Interesse Público e a Responsabilidade da Administração nas
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público e privado. Nas palavras de Gordillo, “como ideal, o equilíbrio
racional dos dois elementos essenciais do mundo livre contemporâneo:
indivíduo e sociedade, indivíduo e Estado.”8
Essa posição de equilíbrio é a finalidade do Estado Democrático de
Direito.
Tem-se muito claramente que os interesses da sociedade não se
confundem com a soma dos interesses individuais e muito menos com o
interesse do Estado.
É nesse sentido que se questiona, no novo paradigma constitucional
de Estado Democrático de Direito, a afirmação, sob o fundamento da
supremacia do interesse público, de prerrogativas e direitos a priori
inerentes ao Estado.
No Brasil, os direitos sociais e individuais, bem como o princípio
fundamental da dignidade humana e o ideal de igualdade e justiça são
expressamente proclamados valores supremos do Estado Democrático
de Direito. A Constituição da República Federativa do Brasil se justifica
como o centro do ordenamento jurídico capaz de definir e assegurar um
conjunto de direitos fundamentais através do estabelecimento de limites
racionais ao exercício do poder.
A Constituição expressa um conteúdo ético a ser observado por
todo o ordenamento e por todos seus operadores. Nesse sentido, torna-se
um contrassenso afirmar um interesse público contrário a qualquer direito
fundamental do indivíduo.
O conceito de interesse público é formulação indeterminada
que permite ao aplicador do Direito, no caso concreto manifestar, em
determinado ato, o poder político que lhe é conferido, definido e limitado
expressamente por lei.
Não existe interesse público em abstrato e, portanto, é falacioso o
fundamento de qualquer prerrogativa do Estado a partir do conceito de
interesse público.
É completamente desarrazoado defender qualquer privilégio do
Poder se tais benefícios afrontam notadamente os valores protegidos
no Estado de Direito, sobretudo os direitos individuais e sociais, como
adiante demonstrado. O núcleo legitimador do Estado Democrático se
estabelece a partir dos direitos fundamentais sobre os quais se estrutura
8
GORDILLO, Augustin apud DI PIETRO, Maria Sylvia, op. cit., p. 22.
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a Constituição, e é em função desses direitos, que se justifica a criação e
desenvolvimento de mecanismos de legitimação, limitação, controle e
racionalização do poder.
O Poder Público não existe por si só e a ideia de interesse público só
pode ser considerada em função dos direitos fundamentais. Nesse sentido,
Schneider assinala que:
A lei fundamental pode ser considerada como a Constituição dos
direitos fundamentais, interpretada e desenvolvida sempre em função
destes direitos fundamentais. O Estado existe para servir aos indivíduos
e o não o indivíduo para servir o Estado.9
Não mais prospera aquele arquétipo de Estado intervencionista e
imperante, superior ao indivíduo e detentor de um poder ilimitado.
O contexto econômico e social da globalização fragmenta o poder
decisório do Estado e a esfera da autoridade política inegavelmente acaba
influenciada por uma constante tensão de interesses.
Nas palavras de Marques Neto (2002, p. 132):
A pressão dos interesses econômicos transnacionalizados e dos
interesses organizados presentes numa sociedade complexa e
multifacetada obriga o poder político a atuar longe da imperatividade
e unilateralidade monocrática que modelavam o Estado originado do
período absolutista.10
No mesmo sentido, Habermas teoriza sobre a privatização do Direito
Público e a correspondente publicização do Direito Privado11, revelando a
sobreposição do público e privado e a fragilização do modelo dicotômico
das duas esferas.
Assim como no Absolutismo, o público e o privado se misturam,
mas, ao contrário do modelo anterior, se misturam sob a égide do sistema
constitucional democrático.
Nesse novo paradigma, garante-se ao Estado a legitimidade de
aplicar o Direito, sendo essa a única relação de verticalidade entre o
público e o privado determinada constitucionalmente.
9 SCHNEIDER, Hans P. Democracia y constitucion. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales,
1991. p. 17.
10 MARQUES NETO, op. cit., p. 132.
11 HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural na Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
p.180.
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Interesse Público e a Responsabilidade da Administração nas
Terceirizações Trabalhistas
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A definição do Direito, que antecede a aplicação, apesar de função do
Estado, não se fundamenta na supremacia da esfera pública, mas na própria
Constituição Federal e nos direitos fundamentais revelados pela Constituição.
Qualquer conceito de direito contrário aos valores fundamentais é
inconstitucional e, por isso, não basta que a Administração declare o interesse
público no exercício de sua função para que se caracterize como pública a
manifestação de vontade.
A verificação do interesse público, além de se dar necessariamente no
caso concreto, deve expressar os direitos fundamentais radicados no Texto
Constitucional.
Destarte, a supremacia do interesse público é afirmação relativizada pela
indisponibilidade dos direitos fundamentais e, exatamente por isso, não há que se
falar em supremacia de interesse público quando se vislumbra um cerceamento de
direito fundamental.
Há quem já afirme que hoje nem mesmo os valores intrínsecos aos direitos
fundamentais se concebem absolutos. A aferição e classificação de um determinado
interesse como público devem ser balizadas pelos valores fundamentais e
indisponíveis expressos na Constituição.
Desse modo, o que se propõe é a mudança da concepção de interesse público
e sua soberania, adequando-o ao modelo constitucional do Estado Democrático.
A mudança estrutural imposta pelo novo paradigma de Estado resultou
na fragmentação do núcleo do poder decisório e na consequente ampliação da
influência dos múltiplos interesses particulares nas tomadas de decisão do poder
público.
A real democracia reclama constante legitimação e, no mínimo, viabilidade
de participação nas opções políticas de governo. É evidente que isso não se
confunde com a privatização do núcleo decisório do Estado e sua submissão aos
interesses individuais.
Durkheim, já no século XIX, contribuindo para a afirmação da sociologia
como uma Ciência autônoma, assegurava que o estudo da sociedade não se
bastava no psicologismo, sendo o corpo social completamente distinto da soma
dos indivíduos que compõem a sociedade.
Contudo, pretender resumir a manifestação política do Estado à altivez
impetuosa do Poder Público é negar a própria construção Democrática. O que
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Bernardo Vassalle de Castro
deve pautar o novo modelo de Estado é a composição entre os interesses públicos
e privados.
A concepção de que o interesse público necessariamente se opõe ao
interesse particular é resquício do paradigma do Estado interventor que não mais
coaduna com o modelo pretendido pela Constituição Federal.
A nova realidade que interessa é o reconhecimento jurídico de uma
pluralidade de interesses sociais diversos12.
Para Habermas (1997, p. 211):
A barreira que se punha entre a esfera estatal da realização do bem
comum e o domínio social da busca autônoma e privada do bem
individual de cada um foi rompida. Hoje em dia, a Constituição se
apresenta como uma totalidade dinâmica, onde os conflitos entre o bem
particular e o bem comum têm de ser solucionados sempre ad hoc, à luz
de princípios constitucionais superiores e à luz de uma compreensão
holista da Constituição.13
A Administração volta-se para a coletividade para se legitimar e
atuar consoante as necessidades sociais.
Nesse sentido é que se afirma que os interesses públicos e privados em
regra se harmonizam face à essência dos direitos fundamentais. A análise
dos interesses públicos e privados sob o pálio dos direito fundamentais
revela uma conexão de sentido que impõem a ideia de unidade, de mútua
complementação e autodelimitação. O instituto da propriedade privada
e sua função social, por exemplo. Interesses privados e coletivos, nesta
sede, não se excluem desde que albergados numa síntese dialética: a
propriedade nem se presta apenas para satisfazer os interesses exclusivos
do proprietário e nem tampouco justifica um sentido de coletivização ou
funcionalização absoluta de sua utilização14.
Da mesma forma se compreende a síntese entre livre iniciativa e livre
concorrência que mutuamente se limitam e se completam.
12 MORON, Miguel Sanchez. La Participación del Cidadano em la Administración Publica. Madrid:
Centro de Estúdios Constitucionales, 1980. p. 113.
13 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre Facticidade e Validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997. v. II, p. 211.
14 GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade: Problemas de Direito Civil-Constitucional.
Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 11.
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Interesse Público e a Responsabilidade da Administração nas
Terceirizações Trabalhistas
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Contudo, é óbvio que em determinadas situações haverá uma antinomia
aparente entre interesse público e privado. Ainda assim, mais uma vez, não será
aqui que o interesse público afirmará sua suposta supremacia incondicional sobre
os interesses privados.
Na hipótese supracitada, a baliza da análise e definição pela prevalência
de um ou outro interesse será o núcleo de direitos fundamentais disposto na
Constituição. É essa a função do Estado Democrático. A composição de interesses
instituída nos direitos fundamentais e a atuação positiva na verificação dos
interesses difusos.
Para que a construção proposta não se resuma a mera adequação semântica
e terminológica, a noção de direito fundamental apresentada como caminho
essencial à justa composição entre os interesses públicos e privados não se
configura como conceito fluido e aberto, mas como o núcleo de direitos postos
pelo constituinte como indissociáveis à própria condição humana. Nesse sentido,
afirma Silva (1997, p. 176):
Direitos Fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada
para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições
que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas
as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de
situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e,
às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a
todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta
e materialmente efetivados.15
E acrescenta Salgado (1996, p. 17):
O conceito de direitos fundamentais apresenta, pois, dois aspectos: a) no
aspecto formal, como direitos propriamente ditos, são garantidos numa
constituição como prerrogativas; b) no aspecto material, como valores,
são pré-constitucionais, pois que produtos das culturas civilizadas, e
determinam o conteúdo desses direitos nas constituições.16
Assim, pode-se afirmar que o conceito de interesse público
não se apresenta mais como símbolo legitimador para as condutas da
Administração, mas como um espaço para a positivação das opções
políticas do poder público, construídas com a estrita observância dos
15 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
p. 176.
16 SALGADO, Joaquim Carlos. Os direitos fundamentais. Revista Brasileira de Estudos Políticos,
Recife, Imprensa Universitária, 1996. p. 17.
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Bernardo Vassalle de Castro
ditames constitucionais e da valorização dos direitos fundamentais.
Interesse público se consubstancia como a interpretação dada aos
preceitos constitucionais, no caso concreto. É opção discricionária limitada
por valores constitucionais fundamentais que devem sempre nortear todos
os atos da Administração.
A nova concepção de interesse público e de sua soberania
devem pautar a atuação do Estado e a análise da responsabilidade da
Administração.
O argumento de dicotomia entre interesse público e privado não
pode restringir direitos fundamentais e servir como justificativa para afastar
a responsabilidade legal e contratual do Estado. Por outro lado, a simples
busca ideológica pela afirmação de direitos sociais não pode afrontar o
princípio do devido processo previsto na Constituição e transformar
o Estado em garantidor universal. É preciso que a responsabilidade da
Administração seja tratada com equilíbrio, razoabilidade e, sobretudo, com
respeito ao princípio da legalidade. A nova concepção de interesse público,
que afasta a antiga dicotomia pressuposta entre o público e o privado, deve
orientar a responsabilização do Estado nas terceirizações trabalhistas, mas
não pode servir como bordão para fundamentar condenações impostas
à Administração sem que os pressupostos da responsabilidade estatal se
verifiquem no caso concreto.
2 A
RESPONSABILIDADE
DA
TERCEIRIZAÇÕES TRABALHISTAS
ADMINISTRAÇÃO
NAS
A discussão sobre a responsabilidade da Administração Pública pelo
inadimplemento das obrigações trabalhistas dos prestadores de serviços
regularmente contratados é tema recorrente de incontáveis processos
judiciais em tramitação. Muito se discutiu acerca da constitucionalidade
do §1º do art. 71 da Lei nº 8.666/93 até que o STF se posicionou sobre a
matéria na ADC nº 16 – DF, julgando constitucional a previsão de que
a inadimplência dos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, pelo
contratado, não transfere à Administração Pública a responsabilidade por
seu pagamento.
O julgado do STF deixa evidente que o mero inadimplemento das
obrigações trabalhistas pelas prestadoras regularmente contratadas não
transfere, de imediato, para a Administração, a responsabilidade (ainda
que subsidiária) pelo pagamento das verbas trabalhistas inadimplidas.
Todavia, o posicionamento do STF não exclui a possibilidade, excepcional,
de responsabilização do Estado pelo inadimplemento das obrigações
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 57 - 72, jan./jun., 2015.
Interesse Público e a Responsabilidade da Administração nas
Terceirizações Trabalhistas
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trabalhistas pelas prestadoras de serviço. Isso porque o art. 71, § 1º da
Lei de Licitações e Contratos Administrativos deve ser interpretado de
forma sistemática, conforme o ordenamento e os preceitos constitucionais.
Entendimento diverso importaria no reconhecimento da generalizada
irresponsabilidade da Administração, na afronta ao interesse público e
no retrocesso ao modelo Absolutista, no qual “the king can do no wrong”,
em prejuízo aos princípios da proteção e da dignidade do trabalhador,
direitos fundamentais e tão caros ao Estado Democrático de Direito.
Contudo, pretender imputar à Administração (ainda que de forma
subsidiária) responsabilidade objetiva ou integral pelo descumprimento
das obrigações trabalhistas das prestadoras de serviço regularmente
contratadas significa afrontar diretamente a Constituição, que só previu
a responsabilização objetiva do Estado por conduta comissiva, nos termos
do § 6º, do seu art. 37.
O tema responsabilidade do Estado vem experimentando constantes
inovações teóricas, sobretudo quando acompanhadas dos conceitos
modernos de responsabilidade civil. Souza17(2008), ao fazer um apanhado
da evolução histórica da responsabilidade do Estado, remonta sua análise
ao paradigma de Estado Absolutista, no qual as pretensões reparatórias
que porventura se desejasse deduzir contra o Estado deveriam ser feitas
exclusivamente perante os agentes administrativos que diretamente
causassem o dano, já que o rei, na condição de representante de Deus na
Terra, não cometia nenhum erro. O reconhecimento da responsabilidade do
Estado teve como marco relevante o caso Blanco, julgado pelo Tribunal de
Conflitos da França em 1º de fevereiro de 1873, em que se consagrou a teoria
da culpa pela “faute de service”. Admitida a responsabilidade do Estado já
na segunda metade do século XIX, a tendência foi ampliar as hipóteses de
sua deflagração, evoluindo o conceito de responsabilização subjetiva para
a responsabilização objetiva, fundada na simples relação de causa e efeito
entre o agir administrativo e o dano causado18. Posteriormente, chegou-se
à teoria do risco administrativo e hoje já se fala até em responsabilidade
integral do Estado.
Ocorre que todo este caminhar histórico das teorias de
responsabilização administrativa retratam construções doutrinárias, em
sua maioria de origem estrangeira, não necessariamente adequadas ao
nosso contexto político, econômico, cultural e social, e, até por isso, ainda
não reconhecidas pelo nosso ordenamento jurídico.
17 SOUZA, Sylvio Capanema de. Novos aspectos da responsabilidade civil da Administração Pública.
In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito Civil Contemporâneo: Novos Problemas à Luz da Legalidade
Constitucional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 182-190.
18 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo:
Malheiros, 2002. p. 946.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 57 - 72, jan./jun., 2015.
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Bernardo Vassalle de Castro
O art. 37, § 6º da Constituição de 1988 prevê que as pessoas jurídicas
de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos
responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a
terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos
de dolo ou culpa. Consagra, portanto, a responsabilidade objetiva nos
casos em que o Estado agir (conduta comissiva) e causar dano indenizável
a alguém. Contudo, em se tratando de dano causado por conduta omissiva
do Estado, deve-se aplicar a teoria da responsabilidade subjetiva.
Bandeira de Mello19(2002, p. 957) se manifesta
sobre a
responsabilidade subjetiva do Estado nos casos de conduta omissiva, nos
seguintes termos:
A responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade
por comportamento ilícito. E, sendo responsabilidade por ilícito, é
necessariamente responsabilidade subjetiva, pois não há conduta ilícita
do Estado (embora do particular possa haver) que não seja proveniente
de negligência, imprudência ou imperícia (culpa) ou, então, deliberado
propósito de violar norma que o constituía em dada obrigação (dolo).
[...] Seria um verdadeiro absurdo imputar ao Estado responsabilidade
por um dano que não causou, pois isto equivaleria a extraí-la do nada;
significaria pretender instaurá-la prescindindo de qualquer fundamento
racional ou jurídico. [...]
Ao contrário do que se passa com a responsabilidade do Estado por
comportamentos comissivos, na responsabilidade por comportamentos
omissivos a questão não se examina nem se decide pelo ângulo passivo
da relação (a do lesado em sua esfera juridicamente protegida), mas
pelo pólo ativo da relação. É dizer: são os caracteres da omissão estatal
que indicarão se há ou não responsabilidade.
No mesmo sentido já se posicionou o STF:
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ATO OMISSIVO DO
PODER PÚBLICO: FALTA DO SERVIÇO. C.F., art. 37, § 6º. I. - Tratandose de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por esse ato
é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, em sentido estrito, esta numa
de suas três vertentes -- a negligência, a imperícia ou a imprudência
-- não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser
atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço. II. - A
falta do serviço - faute du service dos franceses - não dispensa o requisito
da causalidade, vale dizer, do nexo de causalidade entre ação omissiva
atribuída ao poder público e o dano causado a terceiro. RE 382054 / RJ
- RIO DE JANEIRO Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO – Publicação
01/10/2004.
19 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 957.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 57 - 72, jan./jun., 2015.
Interesse Público e a Responsabilidade da Administração nas
Terceirizações Trabalhistas
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O Tribunal Superior do Trabalho - TST ,ao tratar, na súmula 331, da
responsabilidade da Administração pelo inadimplemento das obrigações
trabalhistas dos prestadores de serviços nas terceirizações, adotou
claramente a teoria da responsabilização subjetiva:
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE
[...]
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do
empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos
serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da
relação processual e conste também do título executivo judicial.
V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta
respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso
evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações
da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do
cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de
serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre
de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela
empresa regularmente contratada.
É claro o posicionamento consolidado do Tribunal Superior do
Trabalho no sentido de exigir a comprovação de culpa da Administração
Pública para sua responsabilização subsidiária. Assim, o mero
inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pelas prestadoras
de serviços regularmente contratadas pelo Estado não transfere para
a Administração a responsabilidade trabalhista, salvo se evidenciada
sua conduta culposa na fiscalização do cumprimento do contrato. É
imprescindível a comprovação de culpa da Administração para sua
responsabilização subsidiária, que é excepcional e não decorre da simples
menção, em tese, de que o ente público deixou de manter-se vigilante em
relação à satisfação dos créditos trabalhistas assumidos pela prestadora de
serviços regularmente contratada.
A redação da Súmula 331 do TST afasta por completo a presunção de
culpa da Administração e a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva
do Estado nos casos de inadimplemento das obrigações trabalhistas nas
terceirizações lícitas.
Neste sentido, é esclarecedor o trecho, abaixo transcrito, do voto da
ministra Cármen Lúcia, no julgamento da ADC 16:
Sabe-se ser requisito para se ter configurada a responsabilidade da
entidade estatal que o dano causado a terceiro em decorrência da
prestação de serviço público tenha como autor agente público.
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Bernardo Vassalle de Castro
A responsabilidade do ente do Poder Público prevista na Constituição
da República exige, como requisito necessário a sua configuração, que o
dano tenha origem em ato comissivo ou omisso de agente público que
aja nessa qualidade.
Não é essa a situação disciplinada pelo art. 71, §1° da Lei 8.666/93.
Nesse dispositivo, o “dano” considerado seria o inadimplemento de
obrigações traba1histas por empresa que integra a Administração
Pública, logo, não se poderia jamais caracterizar como agente público.
[...]
Contudo, eventual descumprimento pela Administração Pública do seu
dever legal de fiscalizar o adimplemento de obrigações trabalhistas por
seu contratado, se for o caso, não impõe a automática responsabilidade
subsidiária da entidade da Administração Pública por esse pagamento,
pois não é capaz de gerar vínculo traba1hista entre a pessoa estatal e
o empregado da empresa particular. Principalmente, se tanto ocorrer,
isso não se insere no campo da inconstitucionalidade do dispositivo em
causa. [...]
A aplicação do art.71, §1° da Lei 8.666/93 não exime a entidade
da Administração Pública do dever de observar os princípios
constitucionais a ela referentes, entre os quais os da legalidade e da
moralidade administrativa.
Isso não importa afirmar que a pessoa da Administração Pública possa
ser diretamente chamada em juízo para responder por obrigações
trabalhistas devidas por empresas por ela contratadas.
Entendimento diverso resultaria em duplo prejuízo ao ente da
Administração pública, que, apesar de ter cumprido regularmente
as obrigações previstas no contrato administrativo firmado, veria
ameaçada sua execução e ainda teria de arcar com consequência do
inadimplemento de obrigações trabalhistas pela empresa contratada.
Não se discute que o princípio da valorização do trabalho se
afigura como de extrema importância para nortear a interpretação de
normas trabalhistas; mas nem mesmo o princípio da proteção pode
ensejar a injustificada e ilegal imputação de obrigações ao Estado,
responsabilizando-o por débitos trabalhistas que são encargos dos
empregadores da iniciativa privada. Diante da inegável limitação
orçamentária dos entes públicos, é certo que a transformação do Estado
em verdadeiro seguro das relações trabalhistas, longe de representar um
avanço social, provoca o desequilíbrio financeiro da Administração e
compromete os investimentos em áreas prioritárias.
CONCLUSÃO
É fundamental que reflexão sobre o novo conceito de interesse
público e responsabilização da Administração nas terceirizações se paute
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 57 - 72, jan./jun., 2015.
Interesse Público e a Responsabilidade da Administração nas
Terceirizações Trabalhistas
71
por um ideal de Estado republicizado, capaz de viabilizar a realização
da justiça, da igualdade material e do bem comum, com fundamento
na valorização do homem e em sua dignidade. Se por um lado o novo
conceito de interesse público estabelecido sob as premissas constitucionais
dos direitos fundamentais não afasta a possibilidade de responsabilização
do Estado e até reforça a necessidade de se atribuir à Administração a
obrigação de fiscalizar o cumprimento destes preceitos; por outro, não
pode transformar o Estado em garantidor universal e, de forma pueril,
sob um pretenso argumento de justiça social, imputar a toda sociedade o
dever de assumir prejuízos causados por particulares. A criação de uma
jurisprudência libertária, fundada em sentimentos particulares de justiça
e equidade, dissociada do ordenamento constitucional posto, revela o que
o Min. Gilmar Mendes chamou de capitalismo à brasileira, no qual lucros
são apropriados e prejuízos socializados20. Para a responsabilização do
Estado pelo descumprimento das obrigações trabalhistas das prestadoras
de serviço regularmente contratadas, é indispensável a comprovação
da conduta culposa da Administração, que não pode ser presumida
ou referenciada de maneira genérica e abstrata nos julgados. Esperase que o STF, na apreciação das inúmeras Reclamações Constitucionais
propostas pelos entes federativos, corrija a distorção na aplicação da teoria
de responsabilidade subjetiva e as afrontas praticadas contra a ordem
constitucional verificada em diversas decisões que presumem a culpa
da Administração e reestabeleça a interpretação pertinente do princípio
da responsabilidade estatal com viés no adequado conceito de interesse
público. A concepção do sentimento de justiça desvinculado da profunda
análise das funções do Estado é um passo atrás na evolução dos modelos
de organização de poder.
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Alteração do Uso de Imóveis: Flexibilização do Planejamento Urbano de
Brasília em Busca de Adequação às Demandas Sociais
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ALTERAÇÃO DO USO DE IMÓVEIS: FLEXIBILIZAÇÃO
DO PLANEJAMENTO URBANO DE BRASÍLIA EM
BUSCA DE ADEQUAÇÃO ÀS DEMANDAS SOCIAIS
Lília Almeida1
RESUMO: O artigo analisa a dinâmica social constante em Brasília
referente à utilização de imóveis comerciais como residenciais, sob o prisma
da influência do projeto urbanístico modernista, características atuais da
cidade e possibilidade legal de regularização da prática. A metodologia
utilizada foi a descritivo-analítica por meio de pesquisa bibliográfica,
consulta a textos jornalísticos e observação do espaço objeto da análise.
Conclui-se que as alterações informais de uso abordadas são justificadas
pela dinâmica social da cidade, como resultado de fatores teóricos e
históricos que informaram o planejamento de Brasília, o que indica a
necessidade de sua regularização, seguindo as diretrizes traçadas no art.
314 da Lei Orgânica do Distrito Federal - LODF, desde que constatado por
meio de estudos técnicos que não causam impactos negativos à cidade ou
região onde estão localizados os imóveis.
Palavras-chave: Urbanismo modernista. Preservação do patrimônio.
Alteração de uso de imóveis. Necessidades sociais.
PROPERTY OF THE USE OF CHANGE: FLEXIBILITY OF
URBAN PLANNING IN BRASILIA FITNESS SEARCH TO
SOCIAL DEMANDS
ABSTRACT: This article analyzes the constant social dynamics in Brasilia,
referring to the use of commercial and residential real estate, in the light
of the influence of modernist urban design, current features of the city
and legal possibility of regularization of practice. The methodology used
was descriptive and analytical by means of literature, refers to newspaper
articles and observing the object of analysis space. It is concluded that the
informal changes addressed are justified by the social dynamics of the city
as a result of theoretical and historical factors that informed the planning
1
Procuradora do Distrito Federal. Professora da Universidade Paulista – Brasília. Pós-graduação latu
sensu em Direito Processual Civil pela Universidade de Fortaleza e em Direito Processual do Trabalho
pela Universidade Cândido Mendes. Graduação em Direito pela Universidade de Fortaleza.
RECEBIDO EM: 05/03/2015
ACEITO EM: 01/04/2015
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 73 - 90, jan./jun., 2015.
74
Lília Almeida
of Brasilia, which indicates the need for regularization, following the
guidelines set forth in Article 314 of the LODF from that verified by the
technical studies that do not cause negative impacts to the city or region
located real estate.
Keywords: Modernist Urbanism. Heritage preservation. Social needs.
INTRODUÇÃO
Este trabalho é fruto da observação da dinâmica existente em Brasília
concernente ao fenômeno da frequente alteração informal de usos de
imóveis, notadamente a utilização de imóveis comerciais como residências
− fato consolidado e aceito na dinâmica social da cidade devido ao evidente
déficit habitacional nas áreas mais centrais e equipadas e carência de oferta
de certos modelos de moradia.
Objetiva-se analisar se a prática de alteração informal de uso é
perniciosa tão somente pelo fato de contrariar o plano urbanístico tal como
historicamente pensado, ou se, ao contrário, aponta para a necessidade
de sua revisão, com a consequente adequação frente às demandas sociais
sufocadas pelo modelo urbanístico adotado no plano inicial da cidade, por
muitos considerado como óbice a sua vitalidade e divisão democrática dos
espaços.
Analisar-se-ão, para tanto, as questões apresentadas no trabalho
intitulado “Alteração de uso de imóveis urbanos no Distrito Federal:
apropriação individual ou gestão social?”, elaborado como dissertação de
mestrado por Josué Magalhães de Lima, no Programa de Pós-Graduação
em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília: a) os imóveis
urbanos atendem melhor uma função social ao cumprirem as regras
atuais ou as regras informais? b) as salas comerciais utilizadas para fins
residenciais atendem melhor uma função social permanecendo como estão
ou sendo utilizadas, de fato, como novas moradias? c) e os lotes industriais
atendem uma função social pelas regras de exclusividade atuais ou o
interesse coletivo sugere que seriam mais bem aproveitados se abrigassem,
também, atividades institucionais e comerciais que permitissem o consumo
do setor nos fins de semana e período noturno?
Mostrar-se-á, resumidamente: as bases do pensamento modernista
de Le Corbusier, sob as quais Brasília foi idealizada por Lúcio Costa, sendo
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 73 - 90, jan./jun., 2015.
Alteração do Uso de Imóveis: Flexibilização do Planejamento Urbano de
Brasília em Busca de Adequação às Demandas Sociais
75
um dos fatores geradores de segregação social, dispersão da cidade e
carência de vitalidade e equipamentos urbanos em diversas áreas; verificarse-á se é pertinente a manutenção da forma de definição do uso do solo
tal como realizado historicamente, com grande ênfase na setorização da
cidade, e quais os requisitos e procedimentos legais para a regularização
das alterações de uso abordadas.
Serão utilizados, primordialmente, o estudo desenvolvido por James
Holston sobre a nova capital brasileira (Cidade Modernista: uma crítica de
Brasília e sua utopia) e as consolidadas obras de Jane Jacobs (Morte e Vida
de Grandes Cidades) e Jan Gehl (Cidade Para Pessoas).
1 A CONFORMAÇÃO MORFOLÓGICA DE BRASÍLIA: DAS
PROPOSIÇÕES MODERNISTAS AO MODELO ATUAL E SUA
INFLUÊNCIA NA FORMA COMO SE BUSCA MORADIA
Segundo a análise de Holston, na obra já citada e que tomamos
como a base neste estudo, a concepção de Brasília deriva das propostas dos
manifestos dos CIAM - Congrès Internationaux d’Architecture Moderne,
ocorridos entre 1928 até meados de 1960, à época, o mais importante fórum
de debates sobre a arquitetura moderna. Lúcio Costa era entusiasta de Le
Corbusier, expoente desta corrente ideológica.
Nesses manifestos, partia-se da premissa de que a arquitetura e o
urbanismo modernos seriam os meios para a criação de novos hábitos,
associações coletivas e de vida cotidiana. Atribuíam a crise das cidades
ao planejamento de acordo com as exigências da produção industrial
e ao impedimento que a propriedade privada representaria para um
planejamento abrangente. Consideravam que os interesses privados
predominavam sobre os interesses coletivos, gerando um crescimento
desorientado. Acreditavam que por meio de uma planificação global e
centralizada poderiam controlar a especulação e distribuir os recursos
urbanos com base em outros fatores que não a riqueza. A base dessa
distribuição seria o próprio plano da cidade, por meio do qual se
distribuiriam equitativamente as moradias, equipamentos públicos de
lazer, saúde, educação, etc., para todos os citadinos.
No plano apresentado por Lúcio Costa no concurso realizado para a
escolha do projeto da nova capital e em relatórios da empresa Nova Capital
do Brasil - Novacap, há nítida influência dessas propostas, conforme citado
por Holston (1993). Segundo esse autor (1993, pág. 86):
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76
Lília Almeida
Na utopia do plano piloto, a distribuição desigual de vantagens
originadas por diferenças de classes, raça, emprego, riqueza e família
teria pequeno papel e pouca eficácia na organização da vida urbana.
E como o Estado iria controlar, por meio do plano, a construção de
toda a cidade como uma benfeitoria pública, as propostas do plano
aparecem como a inversão inescapável de uma evolução social, na qual
os arquitetos projetam os traços fundamentais da sociedade.
A utopia abraçada por Kubitschek e pelos planejadores da nova
capital não perdurou, entretanto. Logo a realidade social pressionou
o modelo idealizado, com o surgimento de inúmeros assentamentos
informais, formados pelos trabalhadores da construção civil, que não
retornaram a suas cidades de origem, e comerciantes da Cidade Livre, hoje
Núcleo Bandeirante, que se negaram a deixar a área a si destinada durante
a construção, por não vislumbrarem chance de lucro nas áreas comerciais
ainda pouco utilizadas na cidade quase desabitada. As ilustrações a seguir
mostram o crescimento da área urbana do Distrito Federal de 1960 a 1975:
1960
1970
1965
1975
Fonte: Holston (1993, p. 258)
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 73 - 90, jan./jun., 2015.
Alteração do Uso de Imóveis: Flexibilização do Planejamento Urbano de
Brasília em Busca de Adequação às Demandas Sociais
77
As imagens acima reproduzidas mostram o crescimento vertiginoso
ocorrido apenas nos primeiros 15 anos da fundação da cidade. Nesse
contexto, apesar de nem o Plano Piloto de Lúcio Costa nem as diretrizes
originais da Novacap previrem a criação de cidades-satélites da forma
como criadas, sua fundação foi medida premente, em meio à mobilizações
políticas e confrontos violentos com o Estado.
Criou-se, então, o modelo segregacionista e disperso que hoje
prevalece no Distrito Federal e influencia a forma como se busca moradia.
Essa não foi a intenção de Lúcio Costa, como explicitou ao se manifestar
sobre o projeto no texto “Brasília Revisitada”, conforme os trechos
transcritos a seguir:
A implantação de Brasília partiu do pressuposto que sua expansão se
faria através de cidades satélites, e não da ocupação urbana gradativa
das áreas contíguas ao núcleo original. Previa-se a alternância definida
de áreas urbanas e áreas rurais — proposição contrária à ideia do
alastramento suburbano extenso e rasteiro.
Assim, a partir do surgimento precoce e improvisado das cidades
satélites, prevaleceu até agora a intenção de manter entre estes núcleos
e a capital uma larga faixa verde, destinada a uso rural.
Tal abordagem teve como conseqüência positiva a manutenção, ao
longo de todos esses anos, da feição original de Brasília. Mas, em
contrapartida, a longa distância entre as satélites e o Plano Piloto isolou
demais a matriz dos dois terços de sua população metropolitana que
reside nos núcleos periféricos, além de gerar problemas de custo para o
transporte coletivo.
[...]
Como nossa estrutura econômico-social induz à migração de populações
carentes para os grandes centros urbanos, é essencial pensar-se desde já
no desenvolvimento, em áreas próximas à capital de núcleos industriais
capazes de absorver, na medida do possível, essas migrações com
efetiva oferta de trabalho. Brasília não é, no caso, uma simples miragem.
Cidade fundamentalmente político-administrativa e de prestação de
serviços, a demanda de mão de obra, sobretudo não qualificada, é
necessariamente menor embora a proximidade do poder central crie a
ilusão de facilidades que, de fato, não existem.
Contudo, foi a realidade que se delineou: dispersão, segregação e
alto custo de vida. Essa última uma das razões da existência da enorme
demanda de imóveis no núcleo central e adjacências, impulsionada
também pela redução das alternativas de mobilidade e novas exigências
do mercado consumidor2.
2
Antonella Bruzzese, professora da universidade italiana Politecnico di Milano, expõe, na obra Brasília
50+50, pág. 114: “O Plano Piloto parece hoje como um moderno centro histórico, em condições de
concentrar em si a dimensão simbólica e representativa da cidade: a imagem de Brasília é a imagem
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Lília Almeida
Não se pretende julgar os planejadores, pois trabalharam com
previsões e não tinham o controle total dos resultados, até porque o
desafio de se retirar do nada – literalmente – uma cidade habitável em três
anos não é experiência corriqueira no mundo, menos ainda no Brasil de
1955. Entretanto, passados 55 anos da concretização do sonho, é hora de
se desgarrar das amarras, pois o planejador, em seu mister, deve ter um
bom conhecimento das potencialidades da cidade trabalhada (BERTAUD)
e não priorizar a forma, as tendências, as utopias, em detrimento da vida
(GEHL).
3 ALTERAÇÃO DO USO DE IMÓVEIS E NECESSIDADES SOCIAIS
VERSUS SETORIZAÇÃO RÍGIDA ADOTADA PELO MODELO
URBANISTA MODERNISTA DE BRASÍLIA
Entende-se, tradicionalmente, por estudos arqueológicos e
históricos, que as cidades são vistas como produtos de suas sociedades
e as alterações na forma urbana estão intimamente ligadas a mudanças e
anseios da organização social (MUMFORD, 2001). No esquema modernista
de desenvolvimento, entende-se, de forma diversa, que a construção
de cidades novas requer intervenção estatal maciça e prescinde de um
desenvolvimento regido e impulsionado pelas necessidades sociais (de
troca, de defesa, etc.) e esforço coletivo. Nesse esquema, há intenção de
inverter-se a sistemática tradicional, “criando-se” a sociedade a partir da
disposição e forma das estruturas urbanas.
Um dos meios utilizados pelo urbanismo modernista para a
obtenção dessa finalidade (transformação da sociedade pela cidade) é a
utilização de zoneamento3 altamente setorizado por meio da separação
de áreas exclusivas para cada função urbana. Essa homogeneização é o
contraponto da divisão espacial heterogênea, nas quais diversas atividades
(institucionais, recreativas, residenciais, comerciais, etc.) dividem espaço,
com predominância ou não de uma sobre outras.
A homogeneização das funções de cada espaço visa à produção
de um novo tipo de paisagem urbana, por meio do planejamento total
do Plano Piloto. Por outro lado, os preços crescentes dos aluguéis, a natureza de capital administrativa
e econômica, vazia à noite e nos fins de semana e a rigidez da oferta tipológica estão na base de um
processo de encolhimento, que torna sempre mais onerosos os fluxos diários e semanais de entrada e
saída, estritamente em veículos particulares.”
3 Zoneamento é um método utilizado no planejamento urbano, por meio do qual a cidade é dividida
em áreas sobre as quais incidem diretrizes para o uso e ocupação do solo, com a finalidade de controlar
o crescimento urbano, proteger áreas inadequadas à ocupação urbana, minimizar conflitos entre usos
e atividades, controlar o tráfego, dentre outras.
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Alteração do Uso de Imóveis: Flexibilização do Planejamento Urbano de
Brasília em Busca de Adequação às Demandas Sociais
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e da padronização arquitetônica, a fim de impedir o surgimento de
diferenciações espaciais baseadas em distinções de classe. Também se
fundamenta num apelo à “ordem” que proporcionaria à cidade, com
facilitação de sua gestão.
Essa premissa continua sendo aplicada no planejamento urbano do
Distrito Federal, em parte pelas limitações administrativas às alterações do
traçado urbano de Brasília, parte devido à tradição formada em seu meio
acadêmico e parte pelo seu peso histórico, como patrimônio cultural da
humanidade.
A ideia de homogeneização reproduzida em cidades ou partes
de cidades influenciadas pelo urbanismo modernista é um dos fatores
geradores da denominada Grande Praga da Monotonia, nas palavras de Jane
Jacobs, na obra Morte e Vida de Grandes Cidades4. Com essa expressão,
descreve a falta de vitalidade que assola diversos assentamentos urbanos
planejados de acordo com o pensamento modernista ortodoxo. Segundo
a autora, esse problema pode ser evitado por meio da previsão de usos
diversificados e incentivo à maior concentração de pessoas nas áreas.
Nesse contexto, não parece equivocado afirmar-se que em Brasília
não é apenas a dispersão e segregação que influenciam a forma como se
busca moradia. A setorização e planificação excessiva geram procura por
espaços com mais vitalidade, facilidade de mobilidade e oportunidades
proporcionadas pelo maior adensamento. Isso é impulso comum nas
pessoas que vivem em aglomerados urbanos e acaba por instigar,
impulsionar, a prática social da alteração informal de usosquando o
planejamento urbano não se adequa às novas realidades e demandas.
Com efeito, em Brasília, apresenta-se comum o uso residencial
de salas nos Setores Comerciais Locais das Asas Norte e Sul, do Setor
Terminal Norte e grandes empreendimentos nitidamente voltados ao uso
residencial no Setor de Grandes Áreas Norte, no Centro de Atividades do
Lago Norte e Setor de Hotéis e Turismo Norte e em vários lotes comerciais
na Asa Sul, como nas quadras 713 e 913. No Setor de Indústrias Gráficas,
além de haver uso residencial, há diversas casas de festas, lojas e bares. As
seguintes fotografias ilustram essa realidade:
4
JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2011.
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Setor Terminal Norte
Setor de Grandes Áreas Norte
Centro de Atividades do Lago Norte
Acrescente-se como fator impulsionador das alterações de usos
informais a mudança das necessidades e exigências do mercado de
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Alteração do Uso de Imóveis: Flexibilização do Planejamento Urbano de
Brasília em Busca de Adequação às Demandas Sociais
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consumo. A cidade criada para ser sede do governo e demais poderes fora
concebida para abrigar predominantemente servidores públicos e pessoas
envolvidas, mesmo que indiretamente, na estruturação e funcionamento
dos serviços administrativos. Com o passar do tempo, esse perfil se
modificou, notadamente em decorrência do crescimento dos demais
setores da economia.
Assim, o modelo de moradia oferecido no Plano Piloto, composto
de apartamentos de dois, três ou quatro quartos, em alguns casos sem
elevador e vaga de garagem, como nas unidades das quadras 400, e
normalmente sem espaço para áreas de lazer, não atende a todos os perfis
de consumidores atualmente existentes. Da mesma forma, não atendem a
camadas da população com faixa de renda mais baixa, mas que conseguem
manter-se em Brasília em moradias menores e mais modestas.
Nesse contexto, é necessário que o planejamento espacial preserve
os valores urbanísticos caros ao patrimônio cultural e paisagístico da
cidade, mas também seja mais flexível, equilibrando divisão de usos como
forma de viabilizar o gerenciamento da urbe com as forças do mercado
e as necessidades sociais. Em pensamento semelhante, escreve Bruzzese
2014, p. 114):
Brasília é uma cidade projetada, o desenho urbano e a arquitetura do
Plano Piloto representam a herança mais extraordinária a ser gerida
pelos brasilienses. As restrições impostas pela Unesco, quando a cidade
foi listada como patrimônio da humanidade em 1987, impõem uma
atitude de cautela em relação àquelas mudanças ditadas pelo uso e
por exigências dos habitantes. A vontade de permanecer fiel ao projeto
original, de salvaguardar espaços e situações conforme concebidos,
às vezes ameaça causar intervenções míopes com propostas de
soluções formais bem piores do que as adaptações em originaram sua
experiência. Testemunha disso é o caso do mercado construído atrás
da Torre de TV para acolher aquela feira informal que durante anos
animou a esplanada. Esse novo projeto, criticado por muitos, evidencia a
necessidade de refletir sobre quais práticas informais seriam não só toleráveis,
mas de fato necessárias, por alimentarem a vitalidade dos espaços públicos e
quais intervenções, ao contrário, devem ser realizadas para preservar a limpidez
do desenho e a fidelidade ao projeto inicial. O que parece fundamental ao se
construir a agenda pública para gerir a herança do Plano Piloto, é encontrar
o equilíbrio justo entre aquela que deve ser considerada necessariamente uma
cidade viva, capaz de repensar os próprios espaços e adaptá-los, em alguma
medida, às exigências de seus habitantes e a vontade de priorizar o apego a
uma ideia original. Os usos e a inteligência dos brasilienses produziram
algumas mudanças, como, por exemplo, o acréscimo de novas frentes
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para a zona residencial nas entrequadras, onde se encontram atividades
comerciais e de serviço. Essas modificações deveriam ser entendidas
como uma traição ao projeto de Lúcio Costa? Ou, pelo contrário, não
seriam o sinal de possíveis melhoramentos de um modelo? (Grifo nosso)
O céu de Brasília, o horizonte e os imensos espaços vazios gramados,
apesar de serem cheios de significados e merecerem preservação, têm um
preço alto. Infelizmente, sua poesia não basta para barrar as demandas
surgidas pelo decorrer do tempo e pela alteração do quadro social em que
a cidade se insere.
4 ALTERAÇÃO DE USO DO SOLO E A ATUAL DISCIPLINA
LEGAL
O Estatuto da Cidade – Lei 10.257, de 10 de julho de 2001 - prevê a
alteração de uso do solo como instrumento da política urbana, consistente
na faculdade de a Administração Pública permitir a modificação do uso do
solo em área específica, cuja finalidade do uso esteja previamente definida.
Esse instrumento está previsto no art. 29 da referida lei: “O plano diretor
poderá fixar áreas nas quais poderá ser permitida alteração de uso do solo,
mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.”
A Administração Pública deve aplicar o instituto com cautela e
técnica, ao definir as hipóteses e locais propícios à alteração, pois, se for
objeto de abuso, tornará inócua grande parte da legislação de uso e ocupação
do solo, desnaturando o zoneamento das cidades (CARVALHO FILHO,
2013). Sobre o tema, expôs-se no Parecer Normativo n. 39/2008-PROMAI/
PGDF5:
A premissa fundamental é a compreensão de que a infra-estrutura
urbana é financiada por toda a coletividade, e, por esse motivo,
subutilização e sobre-utilização não atendem ao interesse público.
A sobre-utilização da infra-estrutura urbana atenta contra o direito à
cidade sustentável (art. 2º, inciso I, do Estatuto da Cidade), assim como
não se compatibiliza com as diretrizes fixadas pelo Estatuto da Cidade
para a adequada ordenação do uso do solo urbano (art. 2º, VI, “c” e “d”).
Em outro giro, a subutilização da infra-estrutura urbana também não se
coaduna com o interesse público, na medida em que é dever do poder
público promover o planejamento urbano de modo a evitar distorções
no crescimento da cidade (art. 2º, inciso IV, do Estatuto da Cidade). A
adequada utilização da infra-estrutura urbana implica a otimização dos
recursos públicos e a própria sustentabilidade da cidade.
5
Disponível em: <http://parecer.pg.df.gov.br/arquivo/PROMAI/2008/PROMAI.0039.2008.pdf>. Acesso
em: 21 set. 2015.
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Alteração do Uso de Imóveis: Flexibilização do Planejamento Urbano de
Brasília em Busca de Adequação às Demandas Sociais
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A utilização do instrumento pressupõe que as áreas passíveis
da alteração estejam previamente definidas no plano diretor, que haja
lei definindo a contrapartida a ser prestada pelo interessado e que seja
editada lei local específica, definindo com precisão as condições a serem
observadas para a permissão da mudança do uso do solo.
A possibilidade de cobrança de valor pecuniário dos proprietários
que se beneficiarem da alteração do uso deve ocorrer sempre que haja
obtenção da chamada mais-valia urbanística, ou seja, quando o particular
auferir ganho econômico decorrente da alteração do uso do solo. Podem
ser cobradas outras formas de contrapartida, como a participação em
projetos sociais ou de preservação ambiental, por exemplo.
A lei federal estabelece, portanto, que a outorga do direito à
alteração de uso do solo é onerosa. Assim, ao lado de ser um instrumento
de planejamento urbano e induzir o cumprimento da função social da
propriedade, é mecanismo de recuperação da mais-valia urbanística,
possibilitando a redistribuição dos benefícios advindos da urbanização.
No Distrito Federal, a Lei Orgânica estabelece, em seu art. 317, §
2º, VI, “c”, que o plano diretor de ordenamento territorial deverá conter
a definição das áreas nas quais poderá ser utilizado o instrumento da
outorga onerosa da alteração de uso. Por sua vez, o art. 318, § 1º da LODF
diz que a Lei de Uso e Ocupação do Solo - LUOS estabelecerá normas
urbanísticas destinadas a regular as categorias de usos, por tipo e porte, e
definirá as zonas e setores segundo as indicações de usos predominantes,
usos conformes e não conformes. Essa lei ainda não foi editada, sendo
aplicados, no tocante ao uso e ocupação do solo, os planos diretores locais6,
onde existem, e as Normas de Gabarito - NGBs.
Enquanto a LUOS não é editada, deve ser aplicado, no que tange à
alteração de uso do solo, o parágrafo único do art. 56 do Ato das Disposições
Transitórias da LODF, segundo o qual poderá ser efetivada a alteração por
leis complementares específicas de iniciativa do Governador, motivadas
por situação de relevante interesse público e precedidas da participação
popular e de estudos técnicos que avaliem o impacto da alteração,
aprovados pelo órgão competente do Distrito Federal.
6
Art. 59. Os Planos Diretores Locais vigentes serão mantidos e incorporados, no que for pertinente,
ao plano diretor de ordenamento territorial do Distrito Federal, à lei de uso e ocupação do solo e aos
planos de desenvolvimento local. (Artigo acrescido pela Emenda à Lei Orgânica nº 49, de 2007.)
Parágrafo único. Os índices urbanísticos e usos que fazem parte dos planos diretores locais vigentes
só poderão ser alterados mediante nova consulta pública à sociedade e aprovação por meio de lei
complementar.
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A Lei Complementar Distrital n. 803, de 25 de abril de 2009, que
aprova a revisão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial - PDOT, por
sua vez, trata da outorga onerosa de alteração de uso nos arts. 168 a 173.
Assim, as alterações de uso aqui abordadas podem ser regularizadas por
meio do procedimento previsto nesses normativos ─ observada, ainda, a
Lei Complementar Distrital n. 294, de 27 de junho de 2000, que institui a
forma de retribuição da outorga onerosa de alteração de uso no Distrito
Federal.
A regularização pode ser feita, também, pela previsão de usos
mistos na própria Lei de Uso e Ocupação do Solo, considerados os usos
praticados na dinâmica social, utilizando-se a técnica do controle de
incomodidades.7 Com efeito, a LUOS pode ser utilizada para corrigir
distorções entre a capacidade e a real utilização de cada parcela da cidade,
quando as identifica, da mesma forma que pode mediar conflitos entre
usos e ocupações incompatíveis na cidade8.
Acrescente-se que, nas áreas integrantes do conjunto urbanístico
tombado de acordo com o Decreto n. 10.829, de 14 de outubro dde 1987,
e Portaria n. 314 do Instituto do Patrimôno Histórico e Artístico NacionalIPHAN, deverão ser observadas as disposições do Plano de Preservação
do Conjunto Urbanístico de Brasília – PPCUB, em fase de elaboração.
5 RESULTADOS: MANUTENÇÃO RÍGIDA DO PLANEJAMENTO
HISTORICAMENTE DEFINIDO VERSUS INSERÇÃO DE USOS
PRINCIPAIS COMBINADOS, PELA REGULARIZAÇÃO DE
ALTERAÇÕES DE USO
Os resultados que se pretendem alcançar referem-se à resposta da
indagação formulada no início do trabalho: a alteração informal de uso é
perniciosa tão somente pelo fato de contrariar o planejamento urbano tal
qual concebido historicamente e deve ser incondicionalmente combatida,
ou, ao contrário, aponta para a necessidade de revisão do planejamento
urbano em vigor, com sua consequente adequação, frente às demandas
sociais sufocadas pelo modelo urbanístico adotado no plano inicial da
7
Sobre a técnica do controle de incomodidades e a convivência de usos residenciais e não residenciais,
confira-se o didático artigo elaborado pelo arquiteto urbanista e gerente de projetos do Ministério
das Cidades Kazuo Nakano, Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/centrodametropole/antigo/v1/
divercidade/numero2/caminhos/19Nakano.pdf>. Acesso em: 21 set. 2015.
8
ROLNIK, Raquel; SAULE JÚNIOR, Nelson (Coord.). Estatuto da Cidade: guia para implementação
pelos municípios e cidadãos. 3. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, 2005. p. 34.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 73 - 90, jan./jun., 2015.
Alteração do Uso de Imóveis: Flexibilização do Planejamento Urbano de
Brasília em Busca de Adequação às Demandas Sociais
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cidade, por muitos considerado como óbice a sua vitalidade e divisão
democrática dos espaços (GEHL, 2010, p. 195-197)?
Para o alcance dos resultados, propôs-se analisar as questões
formuladas no substancioso trabalho elaborado por Josué Magalhães
de Lima, no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de Brasília, em sua dissertação de mestrado intitulada
“Alteração de uso de imóveis urbanos no Distrito Federal: apropriação
individual ou gestão social?”. Na pesquisa, coletaram-se dados
quantitativos das alterações de uso informais em Brasília e analisaramse suas diversas formas e causas, contribuindo para mapeamento e
conhecimento da extensão do fenômeno. Ao fim, elaboraram-se as
seguintes questões, inseridas na conclusão do trabalho citado, como forma
de instigar a reflexão: a) os imóveis urbanos atendem melhor uma função
social ao cumprirem as regras atuais ou as regras informais? b) as salas
comerciais utilizadas para fins residenciais atendem melhor uma função
social permanecendo como estão ou sendo utilizadas, de fato, como
novas moradias? c) e os lotes industriais atendem uma função social pelas
regras de exclusividade atuais ou o interesse coletivo sugere que seriam
mais bem aproveitados se abrigassem, também, atividades institucionais
e comerciais que permitissem o consumo do setor nos fins de semana e
período noturno?
A decisão político-administrativa de permitir alterações de uso deve
ser ancorada em estudos sobre os impactos gerados na estrutura (tráfego,
distribuição de água, esgoto, energia, utilização dos equipamentos públicos,
etc.) e vida urbanas. Tanto pode haver sobrecarga na infraestrutura existente
e problemas de coexistência de usos incompatíveis como a combinação de
usos variados com níveis de incomodidade compatíveis e a concentração
de pessoas em áreas subutilizadas em horários variados, gerando vida
e segurança nas ruas. Nesse último caso, a alteração pode promover
maior vitalidade, como preconiza JACOBS (2011) ao tratar das condições
indispensáveis para gerar uma diversidade exuberante nos distritos e,
consequentemente, vida e segurança aos citadinos9, configurando, assim,
um benefício à urbe.
9
(JACOBS, 2011, p. 167-221).
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Nesse contexto, o atendimento da função social dos imóveis objetos
de alteração de uso afere-se pelo sopesamento entre os impactos negativos
que a alteração causa na infraestrutura existente e os benefícios que
trouxer à cidade, pela melhor distribuição e aproveitamento dos espaços,
conforme as necessidades sociais predominantes.
Daí depreende-se que as três questões acima transcritas, que são
imbricadas, não podem ser respondidas pela simples escolha entre o
regramento legal e a prática social informal, como coloca o autor do
trabalho onde foram formuladas. A prática social aqui analisada pode ser
benéfica em certos casos e, em outros, prejudicial aos objetivos definidos
pelos planejadores na busca da cidade adequada. A resposta depende de
análise sobre a viabilidade de usos diversificados dos imóveis, consideradas
as regiões onde perpetradas as alterações informais, por meio de estudo
técnico sobre seus impactos (prejuízos e benefícios) na área e na cidade.
Da análise dos fundamentos teóricos e históricos da criação
de Brasília e suas consequências, profundamente destrinchados por
HOLSTEN (2010), assim como do estudo das concepções e diretrizes
urbanísticas defendidas por GEHL (2013) e JACOBS (2011), constata-se que
as alterações informais de uso ocorridas em Brasília, nos moldes expostos
precedentemente, decorrem de necessidades sociais surgidas com o passar
do tempo e não absorvidas pelo modelo de planejamento urbano definido.
Constata-se, ainda, que o crescimento populacional, a coexistência
da função político-administrativa com outras pertinentes a qualquer centro
urbano detentor de riqueza, tecnologia e melhores equipamentos urbanos,
a mudança dos padrões de consumo e perfil dos moradores, não mais
prioritariamente servidores públicos, a grande dispersão dos perímetros
urbanos e o impulso natural de se buscar locais onde haja maior vitalidade
e oportunidades obtidas pela concentração de pessoas, justificam, do
ponto de vista do comportamento social, a alteração dos usos de imóveis,
tal como praticada e aceita na dinâmica da cidade.
Nesse contexto, não se encontraram argumentos aptos à conclusão
de que a prática da alteração informal do uso de imóveis é por si só
perniciosa e deve ser incondicionalmente rebatida tão somente pelo fato de
que contraria a legislação do ordenamento da cidade. Registre-se que essa
visão foi defendida pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
ao ajuizar a Ação Direta de Inscontitucionalidade n. 2008.00.2.016291-6
contra as leis que prevêem a redução da alíquota do IPTU para imóveis
comerciais que tenham uso residencial. Segundo o órgão ministerial, a
legislação contrariaria as normas de planejamento urbano da cidade e
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Alteração do Uso de Imóveis: Flexibilização do Planejamento Urbano de
Brasília em Busca de Adequação às Demandas Sociais
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beneficiaria injustamente quem dá uso inadequado aos imóveis. O pedido
foi julgado improcedente por unanimidade, tendo o relator Des. Sérgio
Bittencourt consignado em seu voto:
Aliás, o art. 315 da Lei Orgânica do Distrito Federal elege o acesso à
moradia como primeiro critério a ser observado no estabelecimento
dos planos diretores de ordenamento territorial. Inconsistentes, portanto,
a meu juízo, os argumentos do autor, fundados no ‘Parecer Técnico
77/2008 – PROURB, da Assessoria Técnica da Promotoria de Justiça de
Defesa da Ordem Urbanística do Ministério Público do Distrito Federal
e Territórios’ (fls. 18/22), porquanto o tombamento da cidade, seguindo
regras imutáveis e inflexíveis, não se mostra, sob a minha ótica, mais
importante do que a melhoria das condições de vida do brasiliense, esta,
sim, afinada com o princípio da função social da propriedade urbana (art.
314).
Conclui-se, assim, com base nas constatações expostas
precedentemente, que as alterações informais de uso, tais como aceitas
na dinâmica social da cidade, indicam a necessidade de sua regularização
respeitadas as análises técnicas em cada caso, considerada a região em
que perpetradas as alterações nos termos do art. 314 da Lei Orgânica do
Distrito Federal, que traça como objetivo da Política Urbana a garantia do
bem-estar e qualidade de vida da população10.
10
Art. 314. A política de desenvolvimento urbano do Distrito Federal, em conformidade com as
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade, garantido o bem-estar de seus habitantes, ele compreende o conjunto de medidas
que promovam a melhoria da qualidade de vida, ocupação ordenada do território, uso de bens e
distribuição adequada de serviços e equipamentos públicos por parte da população.
Parágrafo único. São princípios norteadores da política de desenvolvimento urbano:
I - o uso socialmente justo e ecologicamente equilibrado de seu território;
II - o acesso de todos a condições adequadas de moradia, saneamento básico, transporte, saúde, segurança
pública, educação, cultura e lazer;
III - a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;
IV - a manutenção, segurança e preservação do patrimônio paisagístico, histórico, urbanístico, arquitetônico,
artístico e cultural, considerada a condição de Brasília como Capital Federal e Patrimônio Cultural da
Humanidade;
V - a prevalência do interesse coletivo sobre o individual e do interesse público sobre o privado;
VI - o incentivo ao cooperativismo e ao associativismo, com apoio a suas iniciativas, na forma da lei;
VII - o planejamento para a correta expansão das áreas urbanas, quer pela formação de novos núcleos,
quer pelo adensamento dos já existentes;
VIII - a adoção de padrões de equipamentos urbanos, comunitários e de estruturas viárias compatíveis
com as condições sócio-econômicas do Distrito Federal;
IX - a adequação do direito de construir aos interesses sociais e públicos, bem como às normas urbanísticas
e ambientais previstas em lei;
X - o combate a todas as formas de poluição;
XI - o controle do uso e da ocupação do solo urbano, de modo a evitar:
a) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;
b) o parcelamento do solo e a edificação vertical e horizontal excessivos com relação aos equipamentos
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CONCLUSÃO
A compreensão da cidade pressupõe a utilização da antiga metáfora
que a relaciona a um organismo vivo, que sofre transformações ao longo
do tempo e influências da interação entre seus inúmeros órgãos. Partindo
dessa premissa, não parece adequada a insistente utilização de velhas
fórmulas adotadas em tempos pretéritos. Tempos em que imperava a
influência de tendências e propostas ortodoxas, calcadas em ideias de
criação de um espaço urbano fortemente controlado pelo planejamento
estatal, supostamente apto a criar uma sociedade livre das demandas do
sistema capitalista e, por isso, sem flexibilidade para adaptar-se a novas
necessidades, pensamentos e comportamentos sociais.
O crescimento populacional, a coexistência da função políticoadministrativa com outras pertinentes a qualquer centro urbano detentor
de riqueza, tecnologia e melhores equipamentos urbanos, a mudança
dos padrões de consumo e perfil dos moradores de Brasília, a grande
dispersão do perímetro urbano e o impulso natural de se buscar locais
onde haja maior vitalidade e oportunidades obtidas pela concentração de
pessoas justificam, do ponto de vista do comportamento social, a prática
da alteração do uso de imóveis, tal como aceita na dinâmica da cidade.
As alterações informais de uso abordadas são justificadas pela
dinâmica social da cidade, como resultado dos fatores teóricos e históricos
que informaram o planejamento de Brasília, o que indica a necessidade
de sua regularização, seguindo as diretrizes traçadas no art. 314 da Lei
Orgânica do Distrito Federal, observadas as normas legais relativas à
outorga onerosa de alteração de uso.
REFERÊNCIAS
BERTAUD, Alain. The spatial organization of cities: deliberate outcome
or unforeseen consequence? Disponível em: <http://alainbertaud.com/
wp-content/uploads/2013/06/AB_The_spatial_organization_of_cities_
Version_31.pdf>. Acesso em: 21 set. 2015.
BRUZZESE, Antonella. Brasília: três desafios para o futuro. In: SABÓIA,
urbanos e comunitários existentes;
c) a não edificação, subutilização ou não utilização do solo urbano edificável.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 73 - 90, jan./jun., 2015.
Alteração do Uso de Imóveis: Flexibilização do Planejamento Urbano de
Brasília em Busca de Adequação às Demandas Sociais
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A Tutela Inibitória Ambiental como Instrumento para a Prevenção da Poluição
Sonora Urbana
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A TUTELA INIBITÓRIA AMBIENTAL COMO
INSTRUMENTO PARA A PREVENÇÃO DA POLUIÇÃO
SONORA URBANA
Alexandre Silva dos Santos1
RESUMO: Este trabalho tem por objetivo demonstrar que a Tutela
Inibitória Ambiental se consubstancia em um autêntico instrumento
processual para a defesa do meio ambiente urbano, principalmente na
prevenção da poluição sonora, visto ser a área urbana considerada uma das
mais afetadas por esse tipo de poluição. A prevenção da poluição sonora,
mediante a Tutela Inibitória, antes que os danos ao direito ambiental
coletivo ocorram, seria a solução apresentada em contrapartida ao clássico
sistema ressarcitório ou sancionatório. Tendo-se em vista a dificuldade
(ou até impossibilidade) de se reparar os danos provocados contra o meio
ambiente, principalmente face à omissão estatal em desenvolver políticas
de educação ambiental para a coibição deste problema urbano, sugerimos
a adoção da tutela inibitória como um poderoso instrumento a serviço do
Estado-Juiz para a implementação da Justiça Ambiental.
Palavras-chave: Meio Ambiente Urbano. Poluição Sonora. Tutela Inibitória.
ENVIRONMENTAL INHIBITORY TUTELAGE AS A
TOOL FOR THE PREVENTION OF URBAN NOISE
POLLUTION
ABSTRACT: This paper aims to demonstrate that environmental
Inhibitory Tutelage is an authentic procedural instrument for the
protection of the urban environment, especially in the prevention of noise
pollution, once the urban area is considered one of the most affected by
this sort of pollution. The prevention of noise pollution, by Inhibitory
Tutelage, before damage to the collective environmental right occur,
would be the solution presented in contrast to the classic ressarcitory or
sanctionist system. Bearing in mind the difficulty (or even impossibility) to
repair the damage caused against the environment, especially in the face
of state failure to develop environmental education policies for restraint
this urban problem, we suggest the adoption of the inhibitory tutelage as
a powerful instrument at the service of the State for the implementation of
environmental justice.
1
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará. Servidor do Ministério Público do Estado do Pará.
RECEBIDO EM: 26/06/2015
ACEITO EM: 17/07/2015
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Alexandre Silva dos Santos
Keywords: Urban Environment. Noise. Inhibitory Tutelage.
INTRODUÇÃO
A Constituição da República de 1988 erigiu um rol de direitos
considerados invioláveis, devido, principalmente, a sua imprescindibilidade
para a prevalência de um dos princípios mais caros ao Estado Democrático
de Direito, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Entre tais direitos
está o meio ambiente ecologicamente equilibrado, ex vi o art. 225 da Carta
de Outubro. Neste diapasão, a mesma Constituição Cidadã, em seu art. 5º,
inciso XXXV, prevê que o Estado não pode se opor a defesa dos direitos
através da lei, seja para afastar lesão ou ameaça.
Nosso ordenamento jurídico, historicamente, adotou a visão
clássica de que a todo direito violado, por meio da provocação do
dano, caberá indenização proporcional ao prejuízo causado, a chamada
Tutela Ressarcitória. No entanto, passou-se por uma evolução, visto
que a Constituiçao da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe
a possibilidade de se invocar a Tutela Preventiva, ou Inibitória, para a
defesa de direitos sob ameaça de violação. Nesse quadrante, em matéria de
poluição sonora, a tutela sancionatória, de fato, geralmente, não é capaz de
fornecer a necessária proteção que deve ser dispensada a tal direito difuso,
visto ser este um direito de difícil reparação porque gera danos, em tese,
transeuntes seja.
Atualmente, verifica-se que a poluição sonora, especificamente,
constitui um dos notórios problemas ambientais que são identificados, nas
mais diversas metrópoles, como uma consequência do desenvolvimento.
Por ser volátil, ou seja, não deixar vestígios aparentes, este tipo de poluição
exige uma atuação rápida e eficaz dos órgãos responsáveis por sua
coibição, o que nem sempre é possível. Tal coibição apenas torna-se mais
eficiente quando praticada contra pessoas jurídicas que reiteradamente
perpetram tal agressão, sendo seus proprietários autuados e, por vezes,
tendo seus estabelecimentos comerciais interditados e seus equipamentos
apreendidos.
No entanto, a poluição sonora não é realizada apenas por pessoas
jurídicas. Tal fato é mais comum em bairros periféricos das cidades, onde
determinados cidadãos, no intuito de promover festas particulares, acabam
por extrapolar os limites permitidos por lei, tanto em sua intensidade
como em sua duração, ao colocarem caixas acústicas em contínua
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A Tutela Inibitória Ambiental como Instrumento para a Prevenção da Poluição
Sonora Urbana
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atividade sonora, perturbando a paz urbana e desequilibrando, assim, o
meio ambiente. Tal fato igualmente ocorre quando tais equipamentos são
instalados em automóveis particulares, em total desrespeito às leis.
Nesses casos, a fiscalização, geralmente precária e deficiente
das autoridades responsáveis por inibir tal conduta, mostra-se não ser
capaz de restaurar o equilíbrio ambiental, ainda mais que tais atividades
poluidoras ocorrem em fins de semana, quando tais órgãos têm seu déficit
operacional alargado.
Dessa forma, com o afã de analisar novos instrumentos para a
efetivação da Justiça Ambiental, propõe-se este trabalho com o intuito de
investigar a tutela inibitória da poluição sonora, a ser aplicada na prevenção
da poluição sonora na zona urbana, evitando-se que tal agressão ao meio
ambiente seja praticada.
Em adendo, realizamos uma análise do rol de normas atuais sobre a
questão da poluição ambiental, mormente em âmbito federal, verificando,
também, a posição doutrinária sobre como a poluição sonora afeta o ser
humano e de que modo é juridicamente tratada hoje enquanto agressão
ambiental. À guisa de desenvolver a questão fundante, lançamos mão
de pesquisa bibliográfica e documental, mediante um método analíticosintético, por meio do estudo da doutrina corrente sobre o tema. Outrossim,
adotaremos uma abordagem dedutiva na elaboração deste artigo, buscando
aplicar os princípios inerentes à tutela inibitória ambiental na prevenção
específica da poluição sonora.
1 A PROTEÇÃO JURÍDICA DO EQUILÍBRIO SONORO NO
AMBIENTE URBANO
É inegável a importância que o equilíbrio ambiental possui
atualmente no âmbito social. Apesar de ter sido exposto como um fator
de preocupação emergente em julho de 1972, durante a Conferência das
Nações Unidas em Estocolmo, na Suécia, quando surgiu a Declaração sobre
o Ambiente Humano, a defesa do meio ambiente enquanto macrobem
indispensável à promoção da dignidade humana apenas foi assim erigido,
no Brasil, com a Constituição de 1988.
O direito à liberdade, amplamente protegido na atual Carta, não
dispensa o cidadão de cuidar do meio ambiente, visto que apenas com a
promoção do pleno equilíbrio de tal bem jurídico é que se poderá gozar
da ampla liberdade e, por conseguinte, defender nossa total dignidade.
Uma grande importância foi dada a esse tema em nossa Constituição,
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Alexandre Silva dos Santos
visto que não apenas a atual geração detém o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, mas a sociedade e os Entes Federativos
devem, de forma conjunta, garantir que as gerações porvir igualmente
tenham tal direito.
Pode-se chegar à conclusão de que, verbi gratia, os direitos ao
lazer e à expressão de crença religiosa apenas poderão ser plenamente
promovidos se, ao invocarem tal direito, os cidadãos não violarem as
normas ambientais em vigor, as quais estabelecem limites ao direito de
emissão de sons e ruídos. Da mesma forma, a liberdade de locomoção,
que num ambiente urbano economicamente desenvolvido, dá-se por meio
de veículos automotores, deve obedecer a regras e padrões nacionalmente
estabelecidos pelos órgãos competentes para o controle da poluição sonora,
notadamente as Secretarias Estadual e Municipal de Meio Ambiente e ao
Departamento de Trânsito.
Essa dimensão dada pela Constituição da República afirma a posição
do meio ambiente como essencial à própria existência humana, vez que, de
acordo com Gomes (2003, p. 177):
[...] estamos diante de um desdobramento da proteção do direito à vida,
pois a salvaguarda das condições ambientais adequadas à vida depende
logicamente da proteção dos valores ambientais. Assim, o direito ao
meio ambiente ecologicamente [equilibrado] é, sem dúvida, um direito
humano fundamental, como quer a Carta Magna.
Destarte, é com o objetivo de estabelecer as estreitas regras do
jogo para o equilíbrio do ambiente urbano e rural que a Constituição da
República de 1988 estabeleceu a recepção da Lei da Política Nacional de
Meio Ambiente, Lei nº. 6.938/1981, criando uma rede integrada de proteção
ao meio ambiente, como se verá a seguir.
2 O TRATAMENTO LEGAL DO EQUILÍBRIO SONORO
A Constituição da República de 1988, em seu art. 23, inciso VI,
estatui que é de competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios o dever de proteger o meio ambiente e combater
a poluição em todas as suas formas. Com o fito de cumprir tal preceito, a
Constituinte houve por bem recepcionar a Lei Federal nº. 6.938, de 31 de
agosto de 1981, a qual dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente.
Tal diploma legal cria um sistema destinado à preservação ambiental a ao
desenvolvimento sustentável da sociedade e apresenta instrumentos para
a efetivação de tal mister. Dessa forma, a Lei nº. 6.938/81 traz a definição de
poluição, conforme seu artigo 3º, in verbis:
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Art. 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
[...]
III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de
atividades que direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais
estabelecidos;
[...]
(Grifos nossos).
A Política Nacional do Meio Ambiente em momento algum
menciona, de forma literal, a necessidade de se proteger o meio ambiente
especificamente contra a poluição sonora. No entanto, favorece a proteção
do meio ambiente contra o desequilíbrio acústico de forma ampla ao definir
a poluição como a emissão de energias em desacordo com os padrões
ambientais estabelecidos. Além disso, ao estabelecer a implementação
da preservação da qualidade ambiental, com fito ao desenvolvimento
socioeconômico do país, tendo em vista a promoção da dignidade da vida
humana, a referida lei estatui, em seu artigo 2º, dentre seus princípios, que
se deve atender à racionalização do uso do solo, do subsolo, da água e do
ar (inciso II), bem como ao controle e zoneamento das atividades potencial
ou efetivamente poluidoras (inciso V). Ao referir-se à racionalização do
uso do ar, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente inclui todas as suas
formas de utilização, o que inclui a utilização do ar para a propagação de
energia sonora, ou seja, a utilização acústica racional do ar deve atender
aos níveis adequados estabelecidos pelo Poder Público.
Dessa forma, a Lei nº. 6.938/81 estabelece diretrizes e instrumentos
para que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios elaborem
padrões específicos para coibir a poluição sonora. Além da referida lei,
há a Lei Federal nº. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que estabelece os
crimes ambientais e preceitua em seu artigo 54 que é crime, punido com
reclusão de um a quatro anos, além de multa, “causar poluição de qualquer
natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde
humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição
significativa da flora”.
Assim, pode-se afirmar que a poluição sonora é considerada crime
ambiental. O anteprojeto da Lei de Crimes Ambientais, originalmente,
trazia em seu art. 592, posteriormente vetado, a expressa tipificação da
2
Art. 59. Produzir sons, ruídos ou vibrações em desacordo com as prescrições legais ou regulamentares,
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Alexandre Silva dos Santos
poluição sonora como crime. Autores há que aludem a um possível
lobby da bancada evangélica no Congresso Nacional, a qual vislumbrou
o tratamento típico da poluição sonora como um óbice ao exercício da
liberdade de cultos religiosos3. Apesar da inegável e evidente importância
de se defender tal liberdade de culto, sabe-se que direito algum, ainda
que constitucionalmente erigido como fundamental, é absoluto. Ainda
que tais cerimônias religiosas lancem mão de expedientes ruidosos em
seu exercício, em hipótese alguma poderão opor sua liberdade de forma a
desrespeitar os limites impostos para a emissão de energia sonora. Afinal,
o que estaria em jogo é a liberdade de culto, o que se não quer de forma
alguma obstar, e não a liberdade de causar poluição sonora. De qualquer
forma, restou inócuo o veto presidencial ao referido artigo, visto que ainda
se poderá alegar que a poluição sonora é crime ambiental, pelo que se
pode extrair do texto do art. 54 da Lei nº. 9.605/98.
Além desses importantes diplomas legais, há, em nível federal, o
Decreto nº. 6.514, de 22 de julho de 2008, o qual dispõe sobre a especificação
das infrações e sanções administrativas aplicáveis às condutas e atividades
lesivas ao meio ambiente, além de dar outras providências. Neste Decreto,
o artigo 61 prevê sanções em caso de produção de poluição em termos
similares ao prevista na Lei de Crimes Ambientais. No entanto, prevê
a aplicação de multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 50.000.000,00
(cinquenta milhões de reais) para os que perpetrarem quaisquer
modalidades de poluição. O Decreto exige, ainda, que as multas e demais
penalidades de que trata o artigo em questão apenas sejam aplicadas após
laudo técnico elaborado pelo órgão ambiental competente, identificando a
dimensão do impacto ambiental decorrente da infração.
Além do exposto, o Decreto prevê que as multas previstas em seu
texto podem ter a exigibilidade suspensa quando o infrator, por termo de
compromisso aprovado pela autoridade competente, obrigar-se à adoção
de medidas específicas para fazer cessar ou corrigir a degradação ambiental.
O Decreto nº. 6.514/2008 disciplinou o procedimento administrativo das
infrações contra o meio ambiente de forma mais detalhada do que o
revogado Decreto nº 3.179/99. Este possuía uma forte natureza ressarcitória,
visto que a implementação de medidas para a correção do dano ocorreria
após a prática do ato ilícito contra o equilíbrio ambiental. No entanto,
como se verá a seguir, a adequada proteção contra a poluição sonora exige
medidas de caráter preventivo.
ou desrespeitando as normas sobre emissão ou imissão de ruídos e vibrações resultantes de quaisquer
atividades.
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
3 MACHADO, Anaxágora Alves. Poluição sonora como crime ambiental. Jus Navigandi, Teresina, ano
8, n. 327, 30 maio 2004 e FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 9.
ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
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Sonora Urbana
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Ainda há, em nível federal, as Resoluções do Conselho Nacional do
Meio Ambiente – Conama, órgão consultivo e deliberativo, pertencente
ao Sistema Nacional do Meio Ambiente – Sisnama, o qual possui a
atribuição legal de assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo,
diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e os recursos
naturais e deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e
padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e
essencial à sadia qualidade de vida (art. 6º, inciso II da Lei nº. 6.938/81).
Em sua função deliberativa, o Conama expede normas e padrões nacionais
relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente, a
fim de disciplinar as atividades potencial ou efetivamente produtoras de
poluição ambiental.
Entre suas normas atinentes ao controle da poluição sonora, o
Conama editou as Resoluções nº. 1 e 24, ambas de 8 de março de 1990, as
quais versam, respectivamente, sobre critérios de padrões de emissão de
ruídos decorrentes de quaisquer atividades industriais, comerciais, sociais
ou recreativas, inclusive as de propaganda política e sobre o Programa
Nacional de Educação e Controle da Poluição Sonora – SILÊNCIO.
Nos termos da Resolução nº. 1/90, o Conama considera que
os problemas dos níveis excessivos de ruído estão incluídos entre os
sujeitos ao Controle da Poluição de Meio Ambiente e que a deterioração
da qualidade de vida, causada pela poluição, está sendo continuamente
agravada nos grandes centros urbanos, sendo que os critérios e padrões
deverão ser abrangentes o bastante de forma a permitir fácil aplicação em
todo o Território Nacional.
Dessa forma, o Conama estabelece que a emissão de ruídos em
decorrência de quaisquer atividades industriais, comerciais, sociais ou
recreativas, inclusive as de propaganda política, obedecerá, no interesse da
saúde, do sossego público, aos padrões, critérios e diretrizes estabelecidos
nas Normas NBR-10.151 (Avaliação do Ruído em Áreas Habitadas visando
o conforto da comunidade) e NBR-10.1525 (Níveis de Ruído para conforto
acústico), ambas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (NBT).
A Resolução nº. 1/90 estabelece ainda que a emissão de ruídos
produzidos por veículos automotores e os produzidos no interior dos
ambientes de trabalho obedecerão às normas expedidas, respectivamente,
pelo Conselho Nacional de Trânsito - Contran e pelo órgão competente do
Ministério do Trabalho.
4
Ambas publicadas no DOU nº. 62, de 02 de abril de 1990, na página 6.408.
5
FIORILLO (2008, p. 176) cita alguns valores apontados pela NBR nº. 10.152.
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Na mencionada resolução, o Conama dispõe, ainda, que as entidades
e órgãos públicos federais, estaduais e municipais competentes, no uso de
seu respectivo poder de polícia, disporão sobre a emissão ou proibição da
emissão de ruídos produzidos por qualquer meio ou de qualquer espécie,
considerando sempre os locais, horários e a natureza das atividades
emissoras, com vistas a compatibilizar o exercício das atividades com a
preservação da saúde e do sossego público.
Já no tocante à Resolução nº. 2/90, o Conama considera que os
problemas de poluição sonora agravam-se ao longo do tempo, nas áreas
urbanas, e que som em excesso é uma séria ameaça à saúde, ao bem-estar
público e à qualidade de vida. Além disso, leva em conta que o ser humano,
cada vez mais, vem sendo submetido a condições sonoras agressivas no seu
Meio Ambiente e que este tem o direito garantido de conforto ambiental.
O Conama percebe, ainda, que o crescimento demográfico
descontrolado, ocorrido nos centros urbanos, acarreta uma concentração
de diversos tipos de fontes de poluição sonora e que é fundamental
o estabelecimento de normas, métodos e ações para controlar o ruído
excessivo que possa interferir na saúde e bem-estar da população.
Nesse diapasão, o referido órgão do Sisnama resolveu instituir,
em âmbito nacional, o Programa Nacional de Educação e Controle da
Poluição Sonora, denominado SILÊNCIO, então coordenado pelo Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama,
devendo contar com a participação de Ministérios do Poder Executivo,
órgãos estaduais e municipais de meio ambiente e demais entidades
interessadas. O Conama definiu ainda que seria de competência dos
Estados e Municípios o estabelecimento e implementação dos programas
estaduais de educação e controle da poluição sonora, em conformidade
com o estabelecido no Programa SILÊNCIO e que aos Estados e Municípios
competiria a definição das sub-regiões e áreas de implementação previstas
no programa.
Ademais, sempre que necessário, os limites máximos de emissão
poderiam ter valores mais rígidos fixados a nível estadual e municipal.
Isso significa dizer que, em se tratando de emissão ou imissão de energia
sonora, os níveis de tolerância adotados, medidos em decibéis, poderiam
ser inferiores aos estabelecidos pela Norma NBR-10.152, da ABNT, mas
nunca superiores a estes.
Por último, mas não menos importante, cumpre mencionar que
o Decreto-Lei nº. 3.688, de 03 de outubro de 1941, a chamada Lei de
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Contravenções Penais, sob a alcunha de perturbação do trabalho e do
sossego alheios, em seu art. 42, assim definiu a seguinte contravenção
penal:
Art. 42. Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios:
I – com gritaria ou algazarra;
II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as
prescrições legais;
III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por
animal de que tem a guarda:
Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos
mil réis a dois contos de réis.
Cabe salientar que ruídos leves ou provocados por manifestações
normais, como festas de aniversários, em que não se caracteriza a intenção
de ofender ou molestar o equilíbrio sonoro, não devem ser caracterizados
como contravenção penal6.
3 A VISÃO DOUTRINÁRIA E A FISIOLOGIA DO SOM
Na doutrina pátria, abordando-se o tema da poluição sonora de
forma específica, adotaremos as visões de Fiorillo (2008, p. 174 isque 189) e
de Machado (2008, p. 652 usque 670), tendo-se como suporte a doutrina de
Halpern e Savary (1985).
Os conceitos propostos pelos doutrinadores tendem a estabelecer
a diferença entre o som e o ruído. No entanto, tais conceitos acabam por
se confundir, visto que ambos possuem uma tênue linha divisória. Para
Fiorillo (2008, p. 174), “ruído é o som ou conjunto de sons indesejáveis,
desagradáveis, perturbadores”, enquanto que som “é qualquer variação
de pressão (no ar, na água) que o ouvido humano possa captar”. Para
Machado (2008, p. 652), ruído “é um conjunto de sons indesejáveis ou
provocando uma sensação desagradável” enquanto que o som é fruto
de “uma variação da pressão existente na atmosfera”. O senso comum
caracteriza o ruído como um som de menor intensidade, chamando de
barulho aqueles de maior intensidade.
Pelo contraponto entre tais conceitos, pode-se concluir que som é
um gênero, enquanto que o ruído é uma espécie de som desarmônico,
desagradável, incômodo à sensibilidade auditiva do homem. Em
contrapartida, não há a ilação de que todo som harmônico é agradável,
visto que o som indesejável, principalmente no que concerne aos emitidos
6 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 9. ed. rev. atual. São Paulo:
Saraiva, 2008. p. 187.
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Alexandre Silva dos Santos
em níveis elevados, ainda que seja música, pode ser considerado tão
desagradável quanto o ruído. A avaliação subjetiva do ouvinte, quando
este não está disposto a ouvir a música, caracterizará o som musical como
tão deletério quanto o ruído de freios a ranger.
Enquanto agente poluente, de acordo com Fiorillo (2008, p. 174),
o ruído é capaz de propiciar diversos distúrbios pessoais, apesar de ser
considerado como produtor de um modelo social pautado no vício estéril
da indústria do entretenimento, a qual dá vazão a espetáculos em que
o ruído (ou barulho, em algumas regiões, também chamado de zoada)
acaba sendo um dos personagens principais. Acaba-se, inevitavelmente
e indevidamente, confundindo-se o barulho com alegria (MACHADO,
2008, p. 652). Também é um equívoco supor que silêncio é ausência de
entretenimento ou comunicação.
Em todo caso, os cidadãos que habitam as grandes cidades,
especialmente nas capitais dos Estados, acabam sendo as maiores vítimas da
poluição sonora. São alvejados diariamente com o ruído das ruas, consertos
de estradas, veículos usados em construção, metrô, buzinas de automóveis,
sirenes de viaturas da polícia, corpo de bombeiros e ambulâncias, música
alta de alto- falantes instaladas em carros e até bicicletas, nos famigerados
carros publicitários, além das caixas acústicas instaladas em postes,
geralmente de forma irregular, chamadas popularmente de bocas de ferro,
entre outros.
As lesões fisiológicas e psíquicas são da mais variada ordem, indo
desde a simples surdez, à impotência sexual (FIORILLO, 2008, p. 175). A
Organização Mundial da Saúde, de acordo com Machado (2008, p. 654), já
publicou estudo específico sobre as interferências da poluição sonora no
ser humano. Percebe-se que o tempo de exposição é um fator importante
para que se consolidem os distúrbios causados pela poluição sonora, sendo
possível, no entanto, o ser humano acostumar-se psicologicamente a um
ambiente ruidoso.
Halpern e Savary7 (1985)afirmam que, ao nível de 120 dBA, a energia
acústica liberada pode fazer com que o ouvido humano chegue ao limiar
da dor. Os autores asseveram ainda que há três considerações importantes
a ser feitas quanto aos efeitos da poluição sonora à saúde humana.
Primeiramente, deve-se ter em mente que os efeitos prejudiciais do
ruído são cumulativos. A deficiência de audição é difícil de ser percebida
por ser indolor e por se desenvolver de forma lenta e gradativa. Indivíduos
7
HALPERN, Steven; SAVARY, Louis. Som Saúde. Rio de Janeiro: Record, 1985.
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que trabalham ou lidam diariamente com o excesso de ruído, sem lançar
mão de proteção adequada, podem sofrer perdas significativas de sua
audição e nem chegar a percebê-las.
Segundo, constata-se que a perda auditiva causada pela exposição
ao excesso de ruído é permanente. Quando esta perda se torna aparente,
não há como retornar-se ao status quo ante. Além disso, a medicina ainda
não desenvolveu técnicas para a reversão cirúrgica da surdez causada pelo
excesso de ruído. Está-se adstrito ao uso contínuo de aparelhos auriculares
para auxiliar na comunicação.
Por último, a energia sonora tem sua intensidade aumentada em
proporção logarítmica, ou seja, a intensidade de uma fonte sonora é
aumentada tendo-se como base múltiplos de 10. A cada aumento de 10
decibéis (dBA) na intensidade da fonte sonora, os indivíduos próximos a
esta fonte percebem um aumento dez vezes. Assim, 20 dBA é dez vezes
maior – e não duas vezes – em intensidade do que 10 dBA8.
De acordo com Machado (2008, p. 653), as grandezas que definem
o nível de força de um são “a potência W, a intensidade l e a pressão, a
qual é expressa em pascais (Pa)”. A altura do som é a grandeza que define
se um som é agudo ou grave, sendo medida em hertz (HZ). Não é rara a
confusão que se faz com estas grandezas, geralmente afirmando-se que
um som é alto quando na verdade é forte. As diferentes fontes sonoras são
identificadas por seu timbre, o que nos permite distinguir uma pessoa de
outra por intermédio da voz.
A medida do som em unidades quantificáveis é representada pelo
bel. No entanto, utiliza-se a décima parte desta grandeza, o decibel (dB).
Segundo Machado (2008, p. 653), “a medição do ruído é feita segundo o
procedimento indicado na Norma da Associação Brasileira de Normas
Técnicas – NBR 10.151, seja o ruído estacionário, seja intermitente”. Já
a tutela do meio ambiente e da saúde humana, como visto alhures, é
regulada pela Resolução 1/90 do Conama.
Vele destacar que, em festas ou quaisquer ambientes onde uma
conversa não possa ser mantida sem que os indivíduos tenham que gritar,
é quase certo que o nível de decibéis esteja sendo prejudicial à sua saúde,
pelo fato de ser excessivo. Halpern e Savary (1985) chegaram à conclusão
de que chamar o ruído excessivo de incômodo é o mesmo que chamar a
8
O A em dBA indica que o medidor de decibéis usado, chamado de decibelímetro, é do tipo A, cujos
sons captados são percebidos pelo ser humano. Dessa forma, 1 dBA é o som mais baixo que uma
pessoa pode ouvir.
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Alexandre Silva dos Santos
poluição do ar de inconveniência. Dessa forma, é inegável que o ruído
deve ser considerado como um perigo à saúde da população.
Fiorillo (2008) estabelece, ainda, uma classificação do ruído sob
diversos aspectos. Afirma que, no aspecto temporal, o ruído pode ser
contínuo (ou ruído ambiental de fundo), em que há pouca variação de
frequência e acústica, flutuante, em que os níveis de pressão acústica e
frequência são variáveis ao longo do tempo, transitório, em que há um
termo inicial e final para sua emissão, ou de impacto, quando há um abrupto
e transitório aumento da pressão acústica.
O autor analisa, também, o aspecto do meio ambiente afetado pelo
ruído. No ambiente urbano, identificam-se várias atividades/fontes que
produzem poluição sonora, entre as quais os cultos religiosos, os bares e
casas noturnas, os aeroportos, as indústrias – o que engloba todos os tipos
de obras –, e os veículos automotores, sendo estes capazes de provocar
ruídos comuns, típicos do próprio veículo, ou peculiares, que são os
provocados por equipamentos atípicos, como aparelhos sonoros e caixas
amplificadoras, que potencializam a poluição sonora. O autor cita, ainda,
como afetados pelo ruído, o ambiente doméstico, que tem como poluidores
acústicos os eletrodomésticos, o ambiente do trabalho e o ambiente rural.
Vale ressaltar que Machado (2008, p. 670) destaca o caráter difuso
da poluição sonora. Afirma ainda que, nos casos em que o foco de combate
paira sobre a poluição sonora, a ação civil pública pode ser interposta com
fundamentos diversos, como, por exemplo, nos casos de:
a) ausência de análise, no Estudo Prévio de Impacto Ambiental, da
poluição acústica;
b) omissão, no licenciamento ambiental, da análise da poluição sonora
potencialmente existente;
c) fornecimento de produto com ruído acima das normas sonoras
oficiais;
d) fornecimento e instalação de equipamentos anti-som às vítimas de
fonte poluidora específica;
e) cumprimento da obrigação pelo poluidor, pelo gestor da obra ou
empresa, em vedar ou reduzir a emissão de som a partir de sua geração.
Percebe-se, pelo citado rol de casos passíveis de incidência da ação
civil pública, que todos ensejam a pretensão da tutela jurisdicional no
sentido de ordenar uma obrigação de fazer ou de não fazer para que cesse
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a poluição sonora provocada pelo agente. Dessa forma, em cada caso como
os referidos, ou em outros equivalentes, cabe a atuação preventiva contra a
poluição sonora, fundamentada nos princípios da prevenção e precaução.
4 A TUTELA INIBITÓRIA AMBIENTAL
4.1 BREVE DIGRESSÃO SOBRE A EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA DA
TUTELA INIBITÓRIA
Na doutrina pátria, a tutela inibitória foi introduzida por Marinoni
(2006), em sua obra “Tutela inibitória: individual e coletiva”, a qual
trazia o entendimento de que tal tutela, já debatida em outros países,
principalmente na Itália, havia sido incorporada ao ordenamento jurídico
brasileiro com o advento da Lei nº. 8.952/1994, que alterou a redação do
artigo 461 do Código de Processo Civil (CPC/73). No caput do referido
artigo, que trata da tutela específica, temos:
Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação
de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação
ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o
resultado prático equivalente ao do adimplemento.
Além desse dispositivo, defende o supracitado autor que a tutela
inibitória também está fundamentada no art. 84 do Código de Defesa do
Consumidor (CDC), cuja redação é semelhante ao do artigo 461 CPC/73.
Na Lei nº 13.105/2015 (Novo CPC), o dispositivo que trata do
presente tema é o art. 497 e seu parágrafo único, o qual preceitua:
Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não
fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou
determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo
resultado prático equivalente.
Parágrafo único. Para a concessão da tutela específica destinada a inibir
a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção,
é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de
culpa ou dolo.
Para Marinoni (2006), a tutela inibitória é uma evolução no processo
civil brasileiro, visto que este foi criado sobre uma base clássica que se
fundamenta no dano e no ressarcimento dos prejuízos causados pela
lesão ao direito. No entanto, para o doutrinador, tal visão não pode ter
mais guarida em nosso ordenamento jurídico, principalmente porque
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Alexandre Silva dos Santos
a Constituição da República de 1988, em seu art. 5º, inciso XXXV prevê
que é vedado ao legislador excluir da apreciação do Poder Judiciário
não apenas a lesão a direito, mas também as ameaças perpetradas contra
este, princípio que hodiernamente faz parte do atual Código de Processo
Civil, à altura do caput de seu art. 3º. Tendo em vista a inviolabilidade de
determinados direitos trazidos na Carta Magna, como é o caso do direito
ambiental, deverá haver uma tutela disposta como instrumento eficaz para
sua proteção, antes que qualquer ato ilícito seja manejado.
Isso é possível mediante a tutela inibitória, pois sua principal função
é inibir o ato ilícito, seja efetivamente antes de sua ocorrência ou, mesmo
ocorrido o ato, impedir sua repetição ou cessar sua continuidade. Trata-se,
dessa feita, de tutela voltada para o futuro. Seria lamentável, de acordo
com o processualista, que a doutrina pátria – ou mesmo o ordenamento
jurídico – não contasse com uma ação de conhecimento preventiva, pois
“se várias situações de direito substancial, diante de sua natureza, são
absolutamente invioláveis, é evidente a necessidade de se admitir uma
ação de conhecimento preventiva(MARINONI, 2006, p. 2)”. Essa lacuna
foi, assim, suprida com a tutela inibitória. No entanto, ainda há relutância
em reconhecer tal entendimento, visto:
A inexistência de uma ação de conhecimento dotada de meios executivos
idôneos à prevenção, além de relacionada à ideia de que os direitos não
necessitariam desse tipo de tutela, encontrava apoio no temor de se dar
poder ao juiz, especialmente “poderes executivos” para atuar antes da
violação do direito (MARINONI, 2006, p. 6)
Destarte, Marinoni (2006, p. 121) afirma não se tratar apenas de se
importar um vocabulário mais sofisticado advindo da doutrina italiana,
pois a importância de existir a tutela inibitória leva em consideração a
existência de um processo civil instrumental, considerando-se as diferentes
funções que este pode cumprir, aduzindo ainda que “a tutela inibitória é
inerente ao ordenamento jurídico de qualquer país em que não se deseja
ver os direitos apenas proclamados”.
Assim, há razão na ilação de que a tutela inibitória atende ao caráter
inviolável de certos direitos constitucionais. A simples reparação do dano
decorrente da conduta ilícita não é mais suficiente para a plena defesa da
totalidade dos direitos postos em nosso ordenamento jurídico. De acordo
com Oliveira (2008, p. 9):
“[...] é possível afirmar, com apoio doutrinário” que o denominado
“processo civil clássico” é insuficiente para a total e efetiva tutela do Estado
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A Tutela Inibitória Ambiental como Instrumento para a Prevenção da Poluição
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em relação aos direitos subjetivos dos jurisdicionados. E isso se diz em vista do
isolamento do processo do direito material, exigências impostas pela superada
escola sistemática.
Vai ao encontro desse entendimento a doutrina de Peres (2008, p.
86), quando este afirma:
O Código de Processo Civil brasileiro foi elaborado vislumbrando
a reparação do dano. A ideia de prevenção no referido diploma legal
está na concepção do processo cautelar, que [...] não se confunde com a
proposta de uma ação de conhecimento de caráter preventivo.
Nas palavras de Moreira apud Spadoni (2007, p. 33), “nem todos os
tecidos deixam costurar-se de tal arte que a cicatriz desapareça por inteiro”.
Retrata-se, dessa feita, a insuficiência da tutela sancionatória, fundada no
ressarcimento, para a proteção efetiva dos direitos extrapatrimoniais.
Marinoni (2006, p. 638) arremata tal entendimento, ao afirmar :
A tutela inibitória é uma tutela específica, pois objetiva conservar a
integridade do direito, assumindo importância não apenas porque
alguns direitos não podem ser reparados e outros não podem ser
adequadamente tutelados através da técnica ressarcitória, mas também
porque é melhor prevenir do que ressarcir, o que equivale a dizer que
no confronto entre a tutela preventiva e a tutela ressarcitória deve-se dar
preferência à primeira.
De fato, a tutela inibitória caracteriza-se como uma espécie de
tutela preventiva, da qual fazem parte, ainda, a tutela cautelar e a
tutela antecipada. Ao passo que estas podem ser consideradas como
tutelas preventivas provisórias, vez que dependem de um processo de
conhecimento principal, a tutela inibitória pode ser considerada como
uma tutela preventiva definitiva, pois se desenvolve, de forma autônoma,
em um processo de conhecimento. Em outras palavras, a tutela inibitória
não é acessória de outro processo. Na defesa de tal autonomia, manifestase Marinoni (2006, p. 66), ao afirmar:
Ao invés de ação cautelar, seguida de ação ressarcitória – como
acontecia antigamente –, hoje devem ser propostas ação inibitória e ação
ressarcitória, as quais podem ser cumuladas, pois a ação inibitória, assim
como a ação ressarcitória, é uma ação de conhecimento e, portanto,
autônoma.
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Alexandre Silva dos Santos
Ademais, as tutelas cautelar e antecipada visam à defesa de
um direito processual da parte, impedindo a frustração da eficácia do
provimento final (SPADONI, 2007, p. 32). A tutela inibitória, por outro
lado, tem por objetivo impedir a violação do direito material da parte,
fazendo-o usufruir de seu direito “in natura”.
Tal espécie de tutela preventiva ocupa-se, assim, do afastamento
das lesões contra o próprio direito material, o qual, no caso de direitos
invioláveis, será mais bem gozado por seus titulares se sua integridade
não for afetada. Segundo leciona Spadoni (2007, p. 33):
“[...] a inibitória tutela de forma direta e definitiva” o direito material da
parte, e é forma de providência jurisdicional que se contrapõe à tutela
sancionatória. Nesta, o aparato judicial tem a função de reparar ou
reintegrar um direito já violado. Na primeira, a atividade jurisdicional
se desenvolve com a finalidade de impedir a violação do direito, agindo,
portanto, não após, mas antes da prática do ato antijurídico. Atua não
para reparar o dano causado, não para obter indenização por perdas e
danos, mas para proteger o direito, de forma que o seu titular possa dele
usufruir in natura.
Pelo exposto, ainda que de forma breve, percebe-se que a efetivação
de direitos tidos como invioláveis não poderá deixar de corresponder a
instrumentos processuais eficazes para sua defesa. O art. 225 da Constituição
da República de 1988 deixa clara a inviolabilidade do bem jurídico
ambiental. Sendo tal bem essencial à sadia qualidade de vida e que a todos
beneficia com seu equilíbrio, não se poderá esperar que, em face de uma
agressão, o ressarcimento pelos danos causados seja o bastante para que se
satisfaça a todos os titulares, dentro de um compromisso intergeracional
de proteção ao meio ambiente. Mais interessa o meio ambiente equilibrado
do que, constatado o desequilíbrio, o mero ressarcimento do dano causado
a um bem que não mais será recomposto.
Com o intuito de dar uma resposta adequada às ameaças de lesão
contra o bem ambiental, tem-se a proposta da tutela inibitória ambiental,
pois, de acordo com Stonoga (2008, p. 138):
“[...] ao cogitar uma tutela jurisdicional efetiva” ao meio ambiente, devese conceber uma tutela capaz de possibilitar não apenas a prevenção do
dano, mas também a do ilícito, a fim de que se possa proteger o ambiente
para as presentes e futuras gerações. E a forma pela qual pode-se buscar
essa proteção é utilizar os mecanismos processuais adequados para a
busca desses objetivos em relação ao meio ambiente.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 91 - 116, jan./Jun., 2015.
A Tutela Inibitória Ambiental como Instrumento para a Prevenção da Poluição
Sonora Urbana
107
4.2 A TUTELA INIBITÓRIA DO EQUILÍBRIO SONORO
Está consolidado na doutrina e jurisprudência pátrias o
entendimento de que os danos causados ao ambiente possuem como
característica principal serem de difícil ou até mesmo de impossível
reparação. Diferentemente do que ocorre com os danos patrimoniais, o
meio ambiente, como bem extrapatrimonial, não é capaz de ser recomposto
a ponto de haver um total retorno ao status quo ante. Congrega-se a este
entendimento a doutrina de Leite (2000, p. 99), quando afirma:
“[...] as consequências danosas de uma lesão ao meio ambiente são
irreversíveis (não se reconstitui um biótipo ou uma espécie em via
de extinção), estando vinculadas ao progresso tecnológico; [...] tem
repercussão na medida em que implicam agressões principalmente a
um elemento natural e, por rebote ou ricochete, aos direitos individuais.
Como exposto anteriormente, o desequilíbrio acústico provocado
pelo excesso de sons ou ruídos no ambiente urbano acarreta sérios
danos à coletividade. “É fato que, normalmente, há espaços em uma
determinada área urbana que produzem muito mais poluição sonora
que outros” (PARANAGUÁ et al, 2003, p. 91). Porém, os efeitos causados
por este tipo de poluição são sentidos de forma semelhante por aqueles
que a ela estão expostos. É neste sentido que Fiorillo (2008, p. 175) alerta
que a poluição sonora “passa a constituir atualmente um dos principais
problemas ambientais dos grandes centros urbanos e, eminentemente,
uma preocupação com a saúde pública”.
Os distúrbios físicos ou psíquicos causados pela emissão de sons e
ruídos nos centros urbanos afetam o ser humano em diversos ambientes.
Não apenas o meio ambiente urbano é diretamente afetado, como também,
por exemplo, o meio ambiente do trabalho. Ressalte-se que, de acordo
com Fiorillo (2008, p. 175), a poluição sonora e o estresse auditivo são a
terceira causa de maior incidência de doenças do trabalho. Percebeu o
supracitado autor que não é apenas a intensidade do som ou ruído que
causa distúrbios, mas também, e principalmente, o tempo de exposição a
essa poluição. É por este fato que, segundo o autor, os níveis moderados de
ruído são os que causam resultados mais danosos ao organismo humano,
visto que, lentamente, resultam em estresse, distúrbios físicos, mentais e
psicológicos, além de sintomas secundários, como aumento da pressão
arterial, paralisação do estômago e intestino, má irrigação da pele e até
mesmo impotência sexual (FIORILLO, 2008, p. 177).
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Alexandre Silva dos Santos
Apesar de este ser, de certa forma, um ônus da vida urbana9, não
se pode negar que nem toda poluição sonora deve ser tolerada sob esse
pressuposto. Isso porque a poluição sonora dita “inevitável” nem sempre
tem como causa atos lícitos, como, por exemplo, a causada pelo tráfego
intenso ou por outras atividades licenciadas pelo próprio Poder Público.
Significa dizer que há atividades que, uma vez decorrentes de atos ilícitos,
provocam poluição sonora, causando desequilíbrio acústico do ambiente.
De forma velada, tais atividades ilícitas são executadas sem passar por
qualquer tipo de licenciamento ou fiscalização das autoridades incumbidas
de proteger o meio ambiente. Geralmente, tais práticas são decorrentes
da abertura de estabelecimentos comerciais irregulares que, sem o
devido isolamento acústico ou licença municipal, acabam provocando
perturbações sonoras em locais e níveis inadequados.
(FIORILLO, 2008, p. 177). apresenta alguns instrumentos que
podem ser utilizados na prevenção de atividades causadoras de poluição
sonora, quais sejam; a) o zoneamento ambiental da cidade, realizado
pelo Município, estabelecendo setores ou zonas residenciais, comerciais e
industriais; b) os critérios para o licenciamento de atividades, bem como o
Estudo Prévio de Impacto Ambiental e seu respectivo Relatório de Impacto
no Meio Ambiente; c) o monitoramento ambiental de áreas potencial ou
efetivamente causadoras de poluição sonora; d) o Relatório de Impacto
de Vizinhança; e) o revestimento acústico dos estabelecimentos; f) o uso
de equipamentos apropriados, entre outros instrumentos jurisdicionais
de proteção do meio ambiente. Leite (2000, p. 56) também aponta tais
instrumentos de prevenção, afirmando:
[...] a cooperação, a precaução e a atuação preventiva são princípios
que devem ser incorporados obrigatoriamente à política ambiental,
como tarefa indispensável ao Estado de Justiça Ambiental. De fato,
estes princípios propiciam o surgimento de um Estado que contará com
instrumentos jurídico-administrativos mais viáveis e apropriados à sua
tarefa de proteção ambiental. Entre eles destacam-se: planejamento
ambiental, estudo prévio de impacto ambiental, licenciamento,
monitoramento, bem como normas de cooperação ambiental.
Dessa forma, sendo a poluição sonora capaz de provocar males, não
raro, irreversíveis ao ser humano, deve-se propugnar por instrumentos
que inibam a ocorrência de focos deste tipo de poluição, seja impedindo
9
FIORILLO, op. cit., p. 175.
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A Tutela Inibitória Ambiental como Instrumento para a Prevenção da Poluição
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que atos ilícitos sejam perpetrados contra o meio ambiente acusticamente
equilibrado, seja impedindo a repetição ou continuidade de atos ilícitos
que ensejem distúrbios sonoros pela emissão irregular de sons e ruídos.
Assim, a tutela inibitória ambiental poderá ser aplicada para tal
desiderato, uma vez que, como instrumento jurisdicional, tem como função
prevenir atos ilícitos futuros que sejam potencialmente agressivos ao meio
ambiente. Apesar de, por vezes, decorrer de atividades lícitas, a poluição
sonora decorrente de atos ilícitos não deve ser tolerada por caracterizar-se
como abuso de direito e, principalmente, infração contra o meio ambiente.
Face aos diversos males que podem resultar de tais práticas, a tutela
inibitória do meio ambiente é um instrumento que deve ser manejado
como eficaz na promoção de uma recomposição do equilíbrio sonoro no
ambiente urbano.
4.3 A AÇÃO INIBITÓRIA AMBIENTAL
Como outrora mencionado, a tutela preventiva é um gênero da
qual as tutelas cautelar, antecipada e inibitória são espécies. Apesar
de pertencerem a esse gênero, não possuem previsão legal no mesmo
dispositivo de lei. As medidas cautelares são previstas no artigo 796 e
seguintes. do Código de Processo Civil de 1973, enquanto que a tutela
antecipada está prevista no artigo 273 e seguintes. do mesmo diploma
legal. No atual Código de Processo Civil (NCPC), houve a supressão das
chamadas medidas cautelares nominadas e aglutinaram-se medidas de
natureza acautelatória dentro do gênero de tutelas de urgência, previstas
no art. 300 e seguintes. No tocante à tutela inibitória, assente a doutrina
pátria que esta possui previsão no artigo 461 do CPC/73 (art. 497 NCPC)
e no artigo 84 do CDC. É necessário ressaltar, no entanto, que os artigos
citados não preveem exclusivamente a tutela inibitória, mas instrumentos
processuais dos quais se originam diversas tutelas específicas. Nessa
esteira, doutrina Marinoni (2006, p. 115):
Os arts. 461, CPC, e 84, CDC, constituem as fontes de vários instrumentos
processuais necessários para a efetividade da concessão de diversas
espécies de tutelas. A possibilidade de se criar um aparato técnico (um
procedimento) através da conjugação destes instrumentos, permite
conceber ações adequadas à prestação de várias tutelas, entre elas a
inibitória.
Dessa forma, se a todo direito material deve haver uma ação que
o defenda em juízo, frente à ameaça de lesão a direito, o instrumento
processual adequado a protegê-lo seria a ação inibitória. Ou seja, a ação
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Alexandre Silva dos Santos
inibitória teria como função afastar as ameaças de cometimento de atos
ilícitos potencialmente causadores de danos.
Mas, de acordo com Spadoni (2007, p. 56), o ato ilícito, segundo
o artigo 186 do Código Civil, pressupõe a ocorrência do dano. Assim, a
tutela inibitória seria aplicável no combate de atos violadores de direitos,
ainda que praticado sem dolo ou culpa, ou que seja provocador de dano.
A pressuposição de dano, pelo raciocínio exposto, não é requisito
essencial da ação inibitória. Basta que haja a ameaça de cometimento de
ato ilícito ou de ato violador de direito. Esta ação não requer, em essência,
o ressarcimento em pecúnia de um dano causado ao titular de um direito
violado, mas que a parte requerida cumpra com o regulamento legal. Em
matéria de direito ambiental, se é dever da sociedade e do Estado promover
o equilíbrio ambiental com o fito de resguardar às atuais e futuras gerações
a sadia qualidade de vida, qualquer conduta que ameace este equilíbrio
será considerada como passível de ser afastada pela via da ação inibitória.
como:
Assim, segundo Spadoni (2007, p. 72), a ação inibitória é definida
[...] aquela que tem por objetivo alcançar provimento judicial apto a
impedir a prática futura de um ato antijurídico, sua continuação ou
repetição. Ela procura obstar, de forma definitiva, a violação instantânea
ou continuada de um direito, já iniciada ou ainda apenas ameaçada,
possibilitando que ele seja usufruído in natura pelo se titular, tal como
permite o ordenamento jurídico.
Outro aspecto ressaltado pelo autor é quanto ao âmbito de aplicação
da ação inibitória, o qual seria como foco ordens de cumprimento de
obrigações de fazer ou não fazer, bem como as obrigações de dar e entregar
coisa. No caso de a ação inibitória ser manejada para a proteção do meio
ambiente, tendo-se, dessa forma, a ação inibitória ambiental, poderíamos
afirma que esta ação seria específica para que o Estado-Juiz desse
provimento a pedidos referentes apenas ao cumprimento de obrigações de
fazer e não fazer. Isto porque o bem da vida que se quer proteger através
de uma tutela jurisdicional inibitória é o meio ambiente, o qual comporta
sempre uma obrigação de fazer ou não fazer para sua proteção de ameaças.
Segundo Gomes apud Spadoni (2007, p. 75), as obrigações de entrega de
coisa ou de dar são aquelas cujos conteúdos são uma prestação de coisa,
consistente na entrega de um bem, seja para lhe transferir a propriedade,
seja para lhe ceder a posse, seja para restituí-la.
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A Tutela Inibitória Ambiental como Instrumento para a Prevenção da Poluição
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Nesse foco, sendo o bem ambiental difuso, não passível de
apropriação ou transferência, pois a todos pertence em igual peso e
medida, sua defesa será procedida mediante obrigações específicas que
levem em conta uma ação comissiva ou omissiva daquele que esteja
ameaçando a violação de tal direito. Em regra, a ação inibitória sempre
poderá ser utilizada quando o bem ambiental esteja sob ameaça de lesão,
mesmo que o dano não seja atual e nem mesmo aparente. Basta que haja
o descumprimento de norma expressa que preveja a ação ou abstenção
de determinada medida necessária à manutenção do equilíbrio do meio
ambiente. Tal conduta, desde que considerada lesiva ao ambiente, poderá
ser praticada mediante atos comissivos ou omissivos, dependendo da
espécie da obrigação violada, tendo, em correspondência, uma ação
inibitória negativa, determinando um não fazer, ou uma ação inibitória
positiva, a qual determinará um fazer10. Para a consecução dos fins
almejados pela ação, Spadoni (2007, p. 76) ressalta:
Diante dos poderes conferidos ao juiz quando aprecia um pedido de
tutela inibitória, é possível existir a conversão da originária obrigação
de conduta em uma outra, que alcance o mesmo resultado final da
primeira, por meio de condutas diversas. Por isso, existe no sistema
processual brasileiro, a possibilidade de inibitórias positivas mesmo
quando se tratar de atos comissivos, bem como inibitórias negativas
quando se tratar de atos omissivos.
Desse modo, ao deferir o pedido constante na ação inibitória, o
Juiz poderá atuar no sentido de tanto aplicar a tutela específica mediante
a prestação de obrigação de fazer ou não fazer, como assegurar que o
direito seja cumprido através de outros meios que assegurem resultado
equivalente. Assim, a inibitória não apenas afasta ações consideradas
potencialmente violadoras de direito, mas também poderá prever uma
atitude comissiva do réu, se esta vier a afastar a causa da violação de
direito. Marinoni (2009), neste sentido, afirma:
[...] se o direito material exige um não fazer, nada impede que o juiz
ordene um fazer para que o direito seja efetivamente tutelado. Assim,
por exemplo, se alguém está proibido de perturbar a vizinhança, nada
impede que o juiz, ao invés de ordenar a paralisação da atividade,
ordene a instalação de determinado equipamento. Nesse caso, partindose da premissa de que não há regra de direito material que obrigue a
instalação do equipamento, a imposição do fazer decorre do poder
conferido ao juiz, pela legislação processual (arts. 84, CDC, e 461, CPC),
de se valer – evidentemente mediante fundamentação – da medida
executiva mais adequada ao caso concreto.
10 Ibid, p. 76.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 91 - 116, jan./Jun., 2015.
112
Alexandre Silva dos Santos
Toda razão assiste ao doutrinador, visto que o que se quer afastar
é a ameaça de dano, seja através de uma ação ou mesmo omissão. Se a
falta de ação do jurisdicionado é a causa da ameaça, o juiz ordenará que
ele haja. Do contrário, que ele deixe agir se disto resultar a cessação da
ameaça ao direito. Porém, apesar de ser instrumento processual que dê
amplos poderes ao Estado-Juiz com o fim de tutelar a conduta omissiva
ou comissiva da parte ré, a concessão da tutela inibitória sempre terá
seus limites pautados pelo princípio da legalidade, pois, de acordo com
Spadoni (2007, p. 65):
Para que o autor de uma ação inibitória consiga obter o provimento
respectivo, não basta ficar demonstrado no processo que possui um
direito que está sendo ameaçado de violação por ato do réu. Fazse imprescindível revelar, também, que este réu possui o dever de
cumprimento específico da prestação, ou seja, que possui a obrigação de
não agir de forma contrária e lesiva ao interesse juridicamente protegido
do autor.
É de grande valia a observação trazida à luz pelo autor, visto que
o juiz, ao estabelecer os parâmetros de aplicabilidade da tutela inibitória
pretendida pelo autor, deve valer-se do princípio da legalidade como
baliza, pois há necessidade de que haja uma estreita correspondência
entre a vedação jurídica, direta ou indireta, da prática do ato lesivo sujeito
à inibição ou cessação com o direito subjetivo que o autor alega possuir,
para que seja considerado aquele ato contrário ao dever de conduta do réu
(SPADONI, 2007, p. 66).
Assim, há casos em que a conduta não poderá ser inibida pelo simples
fato de haver permissão para sua prática ou desta não ser considerada
contrária aos interesses do autor. Em se tratando de direito ambiental,
determinada conduta poderá ser autorizada por órgão competente, o
que afastará sua ilegalidade, desde que tal autorização esteja inserida nos
padrões ambientais adequados. Como afirma Spadoni (2007, p. 70):
Mesmo que se demonstre um efeito danoso decorrente da prática do
ato, se este não for contrário a um dever de conduta, se não for contrária
à ordem jurídica por existir autorização legal para a sua prática, não
poderá ser inibido.
A ponderação de interesses deverá sempre ser calibrada com
cuidado, pois, em se tratando do meio ambiente, o efeito danoso deverá
ser ressarcido se este extrapolar os níveis de tolerância estabelecidos.
Assim, o desmatamento de áreas para o plantio dentro do zoneamento, a
pesca fora do período de defeso, a emissão de ruídos dentro dos padrões
de intensidade, tempo e área deverão ser estreitamente seguidos para que
a ação inibitória não seja aplicada.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 91 - 116, jan./Jun., 2015.
A Tutela Inibitória Ambiental como Instrumento para a Prevenção da Poluição
Sonora Urbana
113
Spadoni (2007, p. 82) traz à luz outro aspecto importante em relação
à ação inibitória que é a questão de seu cabimento temporal, afirmando que
a aplicação independe do momento em que a violação do direito ocorrerá,
podendo este se consumar através de ato único, de forma instantânea,
continuado ou repetitivo. Tal diferença serve apenas para identificarmos a
espécie de relação jurídica que será foco da ação, sendo a instantaneidade
ou a durabilidade de tais relações correspondentes ao interesse que visam
realizar. O importante, de acordo com o citado autor, é ter em mente que
a ação inibitória viabiliza a tutela dessas duas espécies de obrigações, mas
que seja solicitada antes da lesão que se quer evitar.
O bem jurídico ambiental pressupõe uma relação jurídica duradoura
entre aqueles que possuem o direito-dever de protegê-lo. Sendo assim, a
ação inibitória é cabível para que se afastem atos violadores do equilíbrio
ambiental, ainda que tais atos sejam instantâneos ou se protraiam no
tempo, por meio de ações ininterruptas ou repetitivas. No tocante aos atos
instantâneos, a ação inibitória deverá ser proposta antes que o ato e eventual
dano ocorram, pois, se este vier a ocorrer, apenas o ressarcimento será
aplicável. No entanto, no tocante aos atos ou omissões que se prolonguem,
seja de forma contínua ou repetitiva, a ação inibitória será cabível, sendo
possível de haver cumulação com eventual ressarcimento pelos danos já
efetuados. Nessa esteira, Spadoni (2007, p. 84) afirma:
[...] diante de direitos permanentes, violados por atos sucessíveis de
continuação ou repetição, a tutela inibitória é poderoso instrumento
para impedir as futuras violações ameaçadas. Mesmo que já tenham
sido praticados atos anteriores, existindo a possibilidade de voltarem
a ocorrer, deverá o Poder Judiciário, mediante requerimento do
interessado, impedir a prática do ato violador do bem juridicamente
protegido.
A provável ocorrência futura de ato a ser inibido e a possibilidade
de seu impedimento são o principal foco da ação inibitória ambiental.
Em relação aos elementos da ação inibitória, Spadoni (2007, p. 97)
afirma que esta poderá ter como sujeito ativo pessoa titular de direito
patrimonial ou extrapatrimonial, desde que tal direito esteja sofrendo
ameaça mediante a conduta ilícita de outrem. Afirma ainda que, no
tocante à ação inibitória coletiva, os legitimados a propor a ação para a
tutela de direitos coletivos são os dispostos no art. 82 do Código de Defesa
do Consumidor.
Por outro lado, o sujeito passivo da ação inibitória é a pessoa física
ou jurídica, de direito público ou privado – além das indicadas nos incisos
VII, VIII e IX do art. 12 do CPC/73 – que esteja prestes a cometer ato ilícito, em
cometimento de ato ilícito ou prestes a repetir conduta considerada ilícita.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 91 - 116, jan./Jun., 2015.
114
Alexandre Silva dos Santos
Já a causa de pedir da ação inibitória deverá consistir na demonstração
da ameaça do ato considerado ilícito, bem como na demonstração de que a
conduta omissiva ou comissiva do réu é a geradora de tal ameaça ao direito
alegado pelo autor. Desde que haja a demonstração de que há ameaça e de
que o ato é contrário à ordem jurídica, haverá a fundamentação para o
pedido de tutela inibitória (SPADONI, 2007, p. 101).
Em relação ao pedido, Spadoni (2007, p. 102) afirma que o pedido
mediato deverá consistir no direito material ameaçado, “cuja prevenção é
alcançada pela disposição de meios que conduzam ao efetivo cumprimento
da obrigação ou pelo alcance do resultado prático equivalente ao
adimplemento por meios sub-rogatórios”. No que tange ao pedido
imediato, o autor afirma que este deverá ser a prestação jurisdicional
invocada pelo autor, a qual deverá consistir na expedição de uma ordem
de conduta positiva ou negativa para que a tutela se efetue em sua forma
específica.
CONCLUSÃO
Apesar de ser uma bandeira levantada recentemente pela doutrina,
enquanto teoria, a tutela inibitória já há muito é aplicada pelos legitimados
para Ações Civil Públicas. Isso ocorre principalmente nas ações que visem
à defesa de direitos transindividuais, como o direito ambiental, pois a Lei
nº. 7.347/81 já previra, em seu art. 11, a possibilidade de seus legitimados
proporem ações com o intuito de requerer a tutela inibitória do EstadoJuiz.
Verificamos que é farta a legislação pátria a respeito do tema da
poluição sonora. Não é por carência de normas disciplinadoras da questão
da poluição sonora que a inibição a esse problema não ocorre a contento.
No que tange à doutrina, foi analisado o entendimento de Fiorillo (2008) e
Machado (2008), visto tais doutrinadores trazerem trabalhos mais extensos
sobre o tema da poluição sonora. Constatou-se que ambos são assentes
quanto aos efeitos nocivos da poluição sonora ao ser humano, uma vez
que causa danos não raro irreversíveis à fisiologia e à psique.
Já na análise da tutela inibitória, enquanto instituto que visa
promover a prevenção da poluição sonora antes que este dano ao direito
ambiental coletivo ocorra, verificamos que, hodiernamente, a doutrina
aponta como fundamentos à Tutela Inibitória o artigo 461 do CPC/73, bem
como o artigo 84 do CDC, ambos no sentido da adoção da tutela específica
nas ações que tenham por objeto o cumprimento de obrigação de fazer
ou não fazer e cessar ato ilícito. Verificamos que, além dos artigos acima
mencionados, o art. 11 da Lei nº. 7.347/81, Lei de Ação Civil Pública, já
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 91 - 116, jan./Jun., 2015.
A Tutela Inibitória Ambiental como Instrumento para a Prevenção da Poluição
Sonora Urbana
115
trazia em seu bojo a proteção preventiva do meio ambiente, uma vez que
discorria no mesmo sentido dos artigos que hoje fundamentam a tutela
inibitória.
Conclui-se que, por se consubstanciar direito transindividual, a
tutela inibitória do equilíbrio sonoro do ambiente urbano deve ser tratada
como uma matéria de saúde pública, tendo em vista os patentes (ou até
mesmo latentes) males que tal espécie de poluição é capaz de afetar ao
ser humano. Apesar de, por vezes, assumirmos que a poluição sonora é
um ônus que advém da vida em sociedade, face ao desenvolvimento, não
podemos ignorar que os abusos praticados devem, sim, ser combatidos, a
fim de que se reduzam as emissões excessivas de ruído nas cidades. Disso
resultará em uma melhor qualidade de vida tanto para a presente como
para as futuras gerações.
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Personalidade Jurídica no Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015)
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DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA NO NOVO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL (LEI 13.105/2015)
Gabriela Luna Santana Gomes1
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo, através de uma abordagem
dialética, analisar o incidente de desconsideração da personalidade
jurídica, previsto no Novo Código de Processo Civil. Ao final, verifica-se
que o referido incidente será capaz de assegurar às partes o contraditório
e a ampla defesa, bem como garantir maior segurança jurídica aos
jurisdicionados.
Palavras-Chave: Desconsideração da Personalidade Jurídica. Pessoa
Jurídica. Autonomia patrimonial. Novo Código de Processo Civil.
THE DISREGARD OF LEGAL ENTITY INCIDENT
IN THE NEW CODE OF CIVIL PROCEDURE (LAW
13.105/2015)
ABSTRACT: This article aims - through a dialectical approach - analyzing
the incident of disregard of legal entity in the New Code of Civil Procedure.
In the end, it turns out that the incident referred to will be able to ensure
the parties the contradictory and full defense and to ensure greater legal
certainty for jurisdictional.
Keywords: Disregard of legal entity. Corporations. Autonomy of assets.
New Code of Civil Procedure.
1 INTRODUÇÃO
As sociedades empresariais adquirem direitos, contraem obrigações
e atuam por meio de seus administradores, possuindo, assim, autonomia
patrimonial em relação aos seus sócios. No entanto, justamente por haver
a separação patrimonial entre as pessoas jurídicas e as pessoas naturais
1
Pós-graduanda (latu sensu) em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Judicial do TJPE. Graduada
em Direito e Odontologia. Assessora Analista Judiciário de Juiz de Direito da Capital do Tribunal de
Justiça de Pernambuco.
RECEBIDO EM: 30/06/2015
ACEITO EM: 02/09/2015
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 117 - 134, jan./jun., 2015.
118
Gabriela Luna Santana Gomes
responsáveis por elas é que as sociedades empresariais têm sido utilizadas
para a prática de atos escusos, muitas vezes com o objetivo de prejudicar
terceiros.
Uma solução encontrada pela jurisprudência e que depois
passou a ser positivada no Brasil foi o instituto da desconsideração da
personalidade jurídica, o qual – até 16 de março de 2015 – permaneceu
sem um regulamento próprio na área processual.
Apenas com a Lei 13.105/2015 (Novo Código de Processo Civil) foi
que a desconsideração da personalidade jurídica passou a ser prevista como
um incidente processual capaz de oportunizar às partes o contraditório e
a ampla defesa.
Assim, o presente artigo tem como objetivo, por meio de uma
abordagem dialética, analisar o incidente de desconsideração da
personalidade jurídica previsto no novo diploma legal brasileiro.
2 CONCEITO E TEORIAS EXPLICATIVAS DA PESSOA JURÍDICA
Antes de adentrarmos no tema propriamente dito, faz-se necessário
conceituar o que vem a ser pessoa jurídica e explicar as teorias acerca de
sua existência.
Conforme Tartuce (2014, p.132), “a pessoa jurídica consiste em um
conjunto de pessoas ou de bens arrecadados que adquirem personalidade
jurídica própria por uma ficção legal”.
Segundo Gomes (2010), foram basicamente duas as teorias
explicativas da existência da pessoa jurídica: a teoria negativista e a teoria
afirmativista.
A primeira apenas negava a existência da pessoa jurídica. Já a
segunda, a qual afirmava a sua existência, desdobrou-se em outras três
correntes: a teoria da ficção, a teoria da realidade orgânica ou objetiva e a
teoria da realidade técnica, sendo esta última a adotada pelo Código Civil
de 2002.
Pela teoria da ficção legal, proposta por Savigny (1845) , a pessoa
jurídica não teria existência social, mas somente existência ideal, sendo
produto da técnica jurídica. Para esta teoria, a pessoa jurídica seria apenas
uma abstração, sem realidade social.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 117 - 134, jan./jun., 2015.
Personalidade Jurídica no Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015)
119
Para a teoria da realidade social objetiva de Gierke e Zitelman,
contrária ao posicionamento anterior, a pessoa jurídica teria existência
social e consistiria em um organismo vivo na sociedade.
Já para a teoria da realidade técnica, a qual consiste em um
somatório entre as teorias da ficção e da realidade objetiva, equilibrandoas, reconhece-se a atuação social da pessoa jurídica, admitindo ainda que
a sua personalidade é fruto da técnica jurídica.
Tal posicionamento encontra respaldo no art. 45, do CC/02, o qual
afirma que a existência das pessoas jurídicas de direito privado começa
com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro.2
Sendo assim, o registro da pessoa jurídica faz com que ela adquira
personalidade e tenha existência própria, distinta da pessoa de seus
sócios, encontrando respaldo no princípio da separação, independência
ou autonomia patrimonial.
3 DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PATRIMONIAL
Desprovido de artigo específico que verse sobre ele no Código Civil
de 2002, o princípio da autonomia decorre da inteligência do inciso V do
artigo 463 e do artigo 1.0524, ambos do CC/02.
Conforme Oliveira (2011), o princípio acima citado indica que, dentro
da legalidade e observados os atos constitutivos da sociedade, a pessoa
jurídica, em decorrência dos atos praticados pelos seus administradores,
assume direitos e obrigações e por eles responde, sem o comprometimento
ou vinculação do patrimônio dos sócios.
Assim, quem é parte legítima para demandar e ser demandada
é a pessoa jurídica da sociedade e, apenas em situações excepcionais,
estendem-se os efeitos da relação jurídica à esfera subjetiva de quem agiu
pela sociedade empresária.
2
Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato
constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do
Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
Parágrafo único. Decai em três anos o direito de anular a constituição das pessoas jurídicas de direito
privado, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro.
3
Art. 46, V. O registro declarará, se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações
sociais.
4
Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas,
mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.
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120
Gabriela Luna Santana Gomes
Na medida em que a lei estabelece a separação entre a pessoa jurídica
e os membros que a compõem, consagrando o princípio da separação
patrimonial, os sócios não podem ser considerados os titulares dos direitos
e deveres assumidos pela empresa. “Será a própria pessoa jurídica da
sociedade a titular de tais direitos e obrigações”(COELHO, 2006, p.16).
Por outro lado, consoante Oliveira (2011), com toda esta proteção
patrimonial, muitos usam de má-fé e acabam praticando fraudes e abusos,
lesando terceiros e credores.
Sendo assim, a desconsideração da personalidade jurídica passou a
ser um meio de relativizar o princípio da autonomia patrimonial e, dessa
maneira, impedir que o devedor se utilize da pessoa jurídica para lesionar
o credor.
4 DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
4.1 DO BREVE HISTÓRICO NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO E CONCEITO
Segundo o art. 20 do Código Civil de 1916, as pessoas jurídicas
tinham existência distinta da de seus membros e, assim sendo, alguns
se utilizavam de tal prerrogativa para, desviando a finalidade da pessoa
jurídica, praticar atividades escusas ou prejudicar terceiros.
Como bem ressalta Venosa (2013, p.296), “não se pode esquecer que,
apesar da pessoa jurídica ser distinta de seus membros, são eles que lhes
dão “vida” e agem por ela”.
Sendo assim, há situações de fraude em que proteger a pessoa
jurídica sob o manto sagrado de que seus bens não se confundem com o de
seus membros só produz injustiça.
Foi neste contexto que a desconsideração da personalidade jurídica
ou doutrina da penetração, com precedente jurisprudencial na Inglaterra,
em 1897 (GAGLIANO; PAMPOLHA FILHO, 2013, p. 275),, foi trazida para
o Brasil por Rubens Requião, o qual a apresentou na conferência intitulada
“Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica”, realizada na
Universidade Federal do Paraná em 1969 (MONNAZZI, 2010).
De início, a tese se referia a uma desconsideração realizada pelo
Poder Judiciário, não havendo qualquer previsão legal expressa a esse
respeito. No entanto, a constante utilização pela jurisprudência influenciou
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 117 - 134, jan./jun., 2015.
Personalidade Jurídica no Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015)
121
o legislador brasileiro, que passou a prever o referido instituto no texto
legal.
Neste sentido, pode-se observar o art. 28 do CDC (Lei 8.078/1990),
art. 18 da Lei 8.884/1994, a qual dispõe sobre a repressão às infrações
contra a ordem econômica, art. 4° da Lei 9.605/1998, que versa sobre a
responsabilidade por lesões ao meio ambiente, e art. 50 do CC/02.
Ressalte-se, no entanto, que, consoante Tartuce (2014, p.156), com
a codificação, não é mais recomendável utilizar a expressão “teoria” para
se referir à desconsideração da personalidade jurídica, pois tal vernáculo
remete a trabalho doutrinário, amparado pela jurisprudência.
Assim, a desconsideração da personalidade jurídica tem sido
conceituada como um “afastamento” da personalidade jurídica de uma
sociedade para buscar corrigir atos que a atingiram, comumente em
decorrência de manobras fraudulentas de um ou mais sócios.
Observe-se que não se trata, necessariamente, de suprimir, extinguir
ou tornar nula a sociedade desconsiderada. Na verdade, o que ocorre é tão
somente uma situação momentânea ou casuística durante a qual a pessoa
física do sócio pode ser alcançada, como se a pessoa jurídica não existisse.
Aprofundando o tema, a melhor doutrina aponta a existência
de duas grandes teorias a respeito da desconsideração da personalidade
jurídica e que serão abordadas nos tópicos seguintes, sendo elas: a teoria
maior e a teoria menor.
4.2 DA TEORIA MAIOR
A regra geral adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, no que
diz respeito à desconsideração da personalidade jurídica, é aquela que
consta do artigo 50, do Código Civil de 2002, abaixo transcrito, chamada
de Teoria Maior da Desconsideração (MONNAZZI, 2010):
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo
desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir,
a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber
intervir no processo, que os efeitos de certas e determinas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores
ou sócios da pessoa jurídica.
Como é possível observar, para a referida teoria, a pessoa jurídica
não precisa estar necessariamente insolvente e, portanto, impossibilitada
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 117 - 134, jan./jun., 2015.
122
Gabriela Luna Santana Gomes
financeiramente de cumprir com suas obrigações. É preciso que reste
configurado o elemento subjetivo (desvio de finalidade) ou o elemento
objetivo (confusão patrimonial).
Conforme Gagliano e Pampolha Filho (2013, p. 280), no elemento
subjetivo tem-se o desvirtuamento do objetivo social, ou seja, a realização
de fins não previstos contratualmente ou proibidos por lei. Já no elemento
objetivo, verifica-se que a atuação do sócio ou do administrador confundiuse com o funcionamento da própria sociedade, não se podendo identificar
a separação patrimonial entre ambos.
4.3 DA TEORIA MENOR
A Teoria Menor é a exceção da regra geral anteriormente abordada,
a chamada Teoria Maior da Desconsideração (MONNAZZI, 2010).
Essa excepcionalidade é verificada no nosso ordenamento jurídico, a
exemplo do direito do consumidor e do direito ambiental, pois o legislador
entendeu que, nesses casos, o direito a ser tutelado mereceria tratamento
especial, não incidindo, dessa maneira, a regra geral do Código Civil de
2002.
Assevera o parágrafo 5° do artigo 28 do CDC: “também poderá
ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for,
de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos
consumidores”.
Observa-se do enunciado acima que o dispositivo legal possibilita
a desconsideração da personalidade jurídica pelo simples fato de haver
“obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.
Assim, basta o mero prejuízo ao consumidor para que a desconsideração
seja deferida.
No entanto, é preciso que tenha havido o esgotamento de todas as
vias para se receber o crédito pela pessoa jurídica.
Vejamos o julgado do TJ/DF acerca do assunto:
PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. AGRAVO DE INSTRUMENTO.
TEORIA DA MENOR DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA. BLOQUEIO DE ATIVOS FINANCEIROS EM CONTAS
BANCÁRIAS DOS SÓCIOS. DILIGÊNCIAS PARA LOCALIZAÇAO
DE PATRIMÔNIO DA EXECUTADA. AGRAVO PARCIALMENTE
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Personalidade Jurídica no Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015)
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PROVIDO. 1. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA CONSTITUI MEDIDA DE CARÁTER EXCEPCIONAL,
CUJA ADOÇÃO EXIGE O ATENDIMENTO DOS PRESSUPOSTOS
LEGAIS ESPECÍFICOS. EM SE TRATANDO DE RELAÇÕES DE
CONSUMO, APLICA-SE A TEORIA MENOR DA DISREGARD
DOCTRINE, QUE DISPENSA A PROVA DE FRAUDE OU ABUSO
DE DIREITO. 2.IMPRESCINDÍVEL, CONTUDO, A REALIZAÇÃO
DE DILIGÊNCIAS PARA LOCALIZAÇÃO DE BENS PENHORÁVEIS
EM NOME DA PESSOA JURÍDICA, POIS APENAS NAS HIPÓTESES
EM QUE SE REVELAREM INFRUTÍFERAS É QUE SE PODERÁ
CONSIDERAR A PERSONALIDADE JURÍDICA COMO OBSTÁCULO
AO RESSARCIMENTO DOS PREJUÍZOS CAUSADOS AO
CONSUMIDOR (ART. 28, § 5º, CDC). 3.AGRAVO PARCIALMENTE
PROVIDO APENAS PARA DETERMINAR A REALIZAÇÃO DE
NOVAS DILIGÊNCIAS NA BUSCA DE BENS PENHORÁVEIS EM
NOME DA EXECUTADA. (TJ-DF - AGI: 20130020064563 DF 000726193.2013.8.07.0000, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, Data de
Julgamento: 05/06/2013, 3ª Turma Cível)
Ainda acerca da Teoria Menor, importante se faz mencionar que o
caput do art. 28 do CDC impõe como requisitos para a desconsideração da
personalidade jurídica a existência de abuso de direito, excesso de poder,
infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.
Há também, no referido caput, a possibilidade de desconsideração quando
houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da
pessoa jurídica, provocados por má administração.
No entanto, como o parágrafo 5º do artigo acima mencionado
possibilita a desconsideração da personalidade jurídica pelo simples
prejuízo causado ao consumidor, todos os requisitos dispostos no caput
tornam-se letra morta da lei.
Mas, então, por que coexistem na lei as disposições do caput e do §5º
do art. 28 do CDC? Explica Monnazzi (2010) que o veto do §1º, do art. 285
na verdade foi direcionado ao §5º. De fato, nas razões do veto, o Presidente
considerou que “o caput do artigo 28 já continha todos os elementos necessários
5
O §1º do artigo 28 que foi vetado pelo Presidente da República trazia em sua redação a seguinte
disposição:
“§1º A pedido da parte interessada, o juiz determinará que a efetivação da responsabilidade da pessoa jurídica
recaia sobre o acionista controlador, o sócio majoritário, os sócios-gerentes, os administradores societários e, no
caso de grupo societário, as sociedades que o integram.”
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Gabriela Luna Santana Gomes
à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.” Sendo assim, parece
óbvio que ele foi equivocadamente aplicado ao §1º em vez de ao §5º.
Entretanto, como a interpretação literal do §5º é mais favorável ao
consumidor vulnerável, consolidou-se a sua aplicação na jurisprudência
apesar do acima explicitado.
4.4 DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE
JURÍDICA
Realizando-se uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02,
ou seja, buscando-se adaptar o sentido e o alcance da norma às novas
exigências sociais, é possível a aplicação do instituto da desconsideração
inversa da personalidade jurídica no ordenamento jurídico pátrio.
Aduz Rangel (2012) que, em tal tipo de desconsideração, há o
afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, a fim de que o ente
coletivo e seu patrimônio sejam atingidos e possa haver a responsabilização
da pessoa jurídica pelas obrigações contraídas pelo seu sócio-controlador.
Dessa maneira, visa-se combater a utilização indevida do ente
societário por seus sócios, como nos casos em que o membro da sociedade
esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza ao da pessoa jurídica.
5
DO
INCIDENTE
DE
DESCONSIDERAÇÃO
DA
PERSONALIDADE JURÍDICA NO NOVO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL (NCPC)
Como visto anteriormente, a desconsideração da personalidade
jurídica possui previsão no direito material, mas até 16/03/2015 carecia de
regulamentação no direito processual, sendo, dessa maneira, louvável a
iniciativa da Lei 13.105/2015 em prever tal regulamento e afastar de vez a
dúvida doutrinária acerca da forma processual adequada à desconsideração
da personalidade jurídica.
Antes do advento da nova lei processual, havia muita dúvida se
a desconsideração deveria se dar de maneira incidental ao processo de
execução ou se caberia ao interessado propor uma ação específica para
este propósito.
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Personalidade Jurídica no Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015)
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A corrente que adotava a primeira postura acima explicitada, a qual
era prestigiada pelo Superior Tribunal de Justiça, entendia que as situações
que levavam à desconsideração da personalidade jurídica poderiam
acontecer no decorrer da instrução do processo, sendo esta deferida de
forma incidental, privilegiando a celeridade processual.
Vejamos abaixo o julgado proferido pela Ministra Nancy Andrighi
no REsp 332.763/SP:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE
EMBARGOS DO DEVEDOR À EXECUÇÃO. ACÓRDÃO.
REVELIA. EFEITOS. GRUPO DE SOCIEDADES. ESTRUTURA
MERAMENTE
FORMAL.
ADMINISTRAÇÃO
SOB
UNIDADE GERENCIAL, LABORAL E PATRIMONIAL.
GESTÃO
FRAUDULENTA.
DESCONSIDERAÇÃO
DA
PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA JURÍDICA
DEVEDORA. EXTENSÃO DOS EFEITOS AO SÓCIO
MAJORITÁRIO E ÀS DEMAIS SOCIEDADES DO GRUPO.
POSSIBILIDADE.
- A presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor em face
à revelia do réu é relativa, podendo ceder a outras circunstâncias
constantes dos autos, de acordo com o princípio do livre convencimento
do Juiz. Precedentes.
- Havendo gestão fraudulenta e pertencendo a pessoa jurídica devedora
a grupo de sociedades sob o mesmo controle e com estrutura meramente
formal, o que ocorre quando as diversas pessoas jurídicas do grupo
exercem suas atividades sob unidade gerencial, laboral e patrimonial, é
legitima a desconsideração da personalidade jurídica da devedora para
que os efeitos da execução alcancem as demais sociedades do grupo e os
bens do sócio majoritário.
- Impedir a desconsideração da personalidade jurídica nesta hipótese
implicaria prestigiar a fraude à lei ou contra credores.
- A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica
dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Verificados os
pressupostos de sua incidência, poderá o Juiz, incidentemente no
próprio processo de execução (singular ou coletivo), levantar o véu da
personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens
particulares de seus sócios, de forma a impedir a concretização de
fraude à lei ou contra terceiros. (REsp 332.763/SP, Rel. Ministra NANCY
ANDRIGHI, Terceira Turma, julgado em 30/4/2002, DJ 24/6/2002, p. 297)
Já o segundo entendimento doutrinário, defendia que a
responsabilização dos sócios só poderia ocorrer através de uma ação
própria movida pelo credor em face dos sócios ou administradores da
sociedade, para que restasse preservado o devido processo legal por meio
de um processo com cognição plena e profunda, cercada pelo contraditório
e a ampla defesa.
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Gabriela Luna Santana Gomes
Atualmente, com previsão no Capítulo IV do Título III (Da
intervenção de terceiros) do Novo CPC, arts. 133 a 137, o procedimento
a ser adotado na desconsideração da personalidade jurídica parece ser
um somatório do entendimento das duas doutrinas acima explicadas, ou
seja, passa-se a adotar um incidente processual no qual será assegurado o
contraditório e a ampla defesa.
Dessa maneira, para a propositura do incidente, continuam como
legitimados ativos a parte e o Ministério Público, assim como ocorria por
força do art. 50 do CC/02.
No entanto, seria possível, em que pese não haver previsão no
Novo CPC, a desconsideração da personalidade jurídica de ofício pelo
juiz? Na visão de Tartuce (2015, p.77), sim. Explica o doutrinador que, nos
casos envolvendo matéria de ordem pública, é plenamente possível que a
desconsideração seja realizada ex officio, como nas hipóteses envolvendo
consumidores, uma vez que, nos termos do art. 1º da Lei 8.078/1990, o
Código de Defesa do Consumidor consiste em norma de ordem pública.
Entretanto, entende-se ser a melhor posição o não cabimento
da desconsideração de ofício pelo juiz, já que a Lei 13.105/2015
traz expressamente os legitimados ativos e não prevê hipótese
de desconsideração de ofício pelo magistrado. Ademais, faz-se
imprescindível que o contraditório e a ampla defesa sejam preservados
em um Estado Democrático de Direito, lembrando que – em se tratando
de desconsideração da personalidade jurídica – os requisitos que a
ensejam devem ser comprovados pela parte que a requer e não podem ser
simplesmente presumidos.
Quanto às condições ensejadoras da desconsideração, deve-se
continuar aplicando os pressupostos elencados na teoria maior e menor,
uma vez que o Novo Código trata apenas da parte processual (§1º, do
art.133, do NCPC).
Conforme o parágrafo 4º do art. 795 do NCPC, para a desconsideração
da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente
processual. Porém, destaca-se que tal disposição legal não é absoluta, pois
a lei dispensa, em seu art. 134, §2º, a instauração do referido incidente
quando a desconsideração for requerida na exordial.
Ferragut (2015, p.04) critica a redação dada ao §2º do art. 134 do NCPC,
por entender que tal dispositivo legal, a depender de sua interpretação,
pode vir a mitigar a ampla defesa, uma vez que o contraditório prévio
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Personalidade Jurídica no Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015)
127
só teria cabimento se o requerimento fosse incidental. Na hipótese da
desconsideração ser requerida na peça vestibular, a defesa preliminar
da parte não teria previsão legal e a autonomia da pessoa jurídica estaria
sendo relativizada ao extremo.
No entanto, uma vez instaurado o incidente e tendo sido citado o
sócio ou a pessoa jurídica, este deverá, nos termos do art. 135 do NCPC,
manifestar-se, no prazo de 15 dias, observando-se, para tanto, que, na
contagem dos prazos em dias, computar-se-ão apenas os dias úteis (art.
219, do NCPC).
Deve-se levar em consideração, outrossim, o Enunciado 248 do
Fórum Permanente de Processualistas Civis, o qual afirma que “incube
ao sócio ou à pessoa jurídica, na contestação, impugnar não somente a
própria desconsideração, mas também os demais pontos da causa.”
De acordo com Neiva (2015, p. 145), a previsão legal que exige
o contraditório clássico não afasta peremptoriamente o contraditório
diferido na desconsideração da personalidade jurídica, apenas o torna
excepcional, já que o juiz, com base em seu poder geral de cautela, pode
deferir a desconsideração de forma liminar, antes da citação dos sócios,
quando estiverem preenchidos os requisitos da tutela de urgência e do
pedido de antecipação dos efeitos da desconsideração da personalidade
jurídica.
Como bem afirma Tartuce (2015, p. 795), o legislador parece ter
pecado ao mencionar apenas o sócio e não fazer menção ao administrador
da empresa, sendo viável fazer uma interpretação extensiva para também
incluí-lo como legitimado passivo no incidente. Aliás, entende-se que
seria interessante ressaltar que o referido administrador não precisaria
ser necessariamente o sócio-administrador, mas poderia ser também um
administrador contratado pela empresa, ainda que não pertencente ao
quadro societário dela.
Poderia também ter o legislador incluído no rol de legitimados
passivos o acionista controlador, nos casos das sociedades anônimas, uma
vez que apenas este possui poder de gerência, ao contrário do acionista
minoritário.
No mais, segundo Neves (2015, p. 145), quando o Novo Código aduz
que será chamado ao processo o sócio ou a pessoa jurídica, na verdade
este está fazendo referência à desconsideração inversa e à tradicional,
respectivamente.
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Dessa maneira, a Lei 13.105/2015 inova ao trazer expressamente,
no parágrafo 2º do art. 133 do NCPC, que as disposições existentes no
Capítulo IV também se aplicam à desconsideração inversa ou invertida
da personalidade jurídica, passando o referido artigo a ser o fundamento
legal para a desconsideração inversa, uma vez que inexiste previsão na
codificação material.
No que diz respeito ao momento processual em que seria possível
instaurar o incidente, o caput do art. 134 do NCPC pôs fim à discussão
de que só seria possível haver a desconsideração da personalidade
jurídica em processo de execução e passou a prever a instauração do
incidente em todas as fases do processo de conhecimento, cumprimento
de sentença e execução de título extrajudicial, devendo a sua instauração
ser imediatamente comunicada ao distribuidor, para as anotações devidas
(§1º).
Vale ressaltar que, uma vez instaurado o incidente para a
desconsideração na sua modalidade tradicional ou inversa, suspende-se o
curso da ação principal (§3º, art.134, do NCPC), exceto quando aquela for
requerida na petição inicial.
De uma forma ou de outra, após a apresentação das provas e estando
o incidente saneado, o magistrado formará seu juízo de convencimento e
deferirá ou não a desconsideração, através de uma decisão interlocutória
recorrível por meio de agravo de instrumento, nos termos do art. 1.015, IV,
do NCPC.
Nos casos em que a desconsideração seja proferida pelo relator no
Tribunal, o recurso cabível será o agravo interno, consoante o art.136 do
NCPC.
Assim, observa-se que, até a decisão que põe fim ao incidente, o
sócio ou a pessoa jurídica é apenas terceiro no processo, tanto é que o
incidente de desconsideração da personalidade jurídica está previsto no
título destinado à intervenção de terceiros.
Apenas com a decisão que defere a desconsideração é que aqueles
passam a integrar de fato o polo passivo da demanda principal e serem
legitimados para oporem embargos do devedor, não cabendo embargos de
terceiro, simplesmente, porque nesta fase processual já são considerados
partes e não terceiros estranhos à lide.
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Personalidade Jurídica no Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015)
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Corrobora o acima exposto o art. 674 do NCPC, que define como
legitimado para opor embargos de terceiros aquele que, não sendo parte
no processo, sofrer constrição sobre bens que possua ou sobre os quais
tenha direito incompatível com o ato constitutivo. Além disso, ressalta o
parágrafo 2º do referido artigo que considera-se terceiro, para ajuizamento
dos embargos de terceiro, quem sofrer constrição judicial de seus bens por
força de desconsideração da personalidade jurídica, de cujo incidente não
fez parte.
Sendo assim, em que pese o Novo Código de Processo Civil ter
falhado ao não positivar o meio de defesa dos sócios após a desconsideração
e acabar com a celeuma acerca da qualidade processual destes após o
levantamento do véu da empresa, entende-se que resta claro que o meio
de defesa cabível são de fato os embargos de devedor.
Ocorre que, se o sócio, após a desconsideração, passa a ser
responsável patrimonial secundário da dívida da empresa e por esta
dívida responde com seu patrimônio, não parece coerente que este não seja
considerado parte no processo principal, devendo haver a formação de um
litisconsórcio passivo ulterior, transformando-se o sócio em executado.
Por óbvio, o maior interessado em opor embargos à execução será o
sócio, que terá seu patrimônio afetado, e não a empresa, que já não possui
bens suficientes. Neste caso, como bem assevera Neves (2015, p. 147), falase em legitimação extraordinária, pois o responsável secundário estará em
nome próprio pleiteando a defesa do devedor originário.
Mas qual seria a diferença entre o sócio opor embargos de terceiro ou
do devedor? Ora, sabe-se que a título de embargos à execução o embargante
pode arguir qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em
processo de conhecimento (art. 917, VI, do NCPC), ou seja, além de se opor
à penhora realizada, ele pode discutir acerca da dívida em si, possuindo,
dessa maneira, um contraditório mais amplo. Já nos embargos de terceiro,
a matéria oponível é mais restrita, podendo o embargante arguir apenas
acerca da constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua ou
sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo (art. 674,
NCPC).
Embora Tartuce (2015, p. 80) entenda que toda a defesa deverá ocorrer
no incidente processual, não havendo mais que se falar em embargos do
devedor postergado, corrobora-se com o entendimento de Neves (2015,
p.149), o qual afirma que, caso o sócio entenda que a desconsideração da
personalidade jurídica foi realizada de forma inadequada e que, portanto,
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ele seria parte ilegítima para figurar no polo passivo da demanda principal,
os embargos serviriam como meio de preservar o contraditório, ainda que
de forma diferida, pois, nas palavras do mencionado jurista: “condicionar a
defesa do sócio ao agravo de instrumento seria suprimir um grau de jurisdição no
exercício de seu contraditório.”
No que diz respeito à ocorrência de fraude, prevê o art. 137 do
NCPC que, uma vez acolhido o pedido de desconsideração, a alienação
ou oneração de bens importará em fraude à execução e será ineficaz em
relação ao requerente, operando-se, assim, o chamado efeito ex tunc.
Consoante o parágrafo 3º do art. 792 do NCPC, a fraude à execução,
nas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, verifica-se a
partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.
Por fim, esclarece o art. 1.062 do NCPC que o incidente de
desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicável também nos
processos de competência do juizado especial.
6 DA PRESCRIÇÃO
Consoante Mamede (2011, p. 179), com a desconsideração da
personalidade jurídica, a obrigação que era originariamente da sociedade,
no caso da desconsideração tradicional, agora passa a ser do sócio ou
do administrador, ou seja, a relação jurídica é a mesma, modificando-se
apenas o responsável pelo seu cumprimento.
Logo, apenas é possível requerer a desconsideração da personalidade
jurídica quando esta estiver fundada em direito não prescrito. No caso,
o prazo para a prescrição é o mesmo da prescrição do direito que o
fundamenta, uma vez que a desconsideração não tem por efeito reavivar
uma relação jurídica prescrita.
Contudo, faz-se importante atentar para os casos em que o sócio
ou administrador foi cônjuge do credor, pois a este se aplica o inciso I
do art. 197 do CC/02, o qual afirma que não ocorre prescrição entre
cônjuges na constância do casamento. Dessa maneira, conforme Mamede
(2011, p. 180), a relação jurídica que está prescrita em relação à sociedade
não estará em relação ao sócio ou administrador, permitindo que haja a
desconsideração da personalidade jurídica e a determinação de que este
adimpla a obrigação da pessoa jurídica devedora.
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7 CONCLUSÕES
A desconsideração da personalidade jurídica, quando requerida,
relativiza a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, possibilitando,
assim, o recebimento do crédito, nos casos do direito civil, quando houver
desvio de finalidade ou confusão patrimonial e, nos casos do direito do
consumidor ou ambiental, quando houver, conforme entendimento
majoritário, a simples ocorrência de dano ao consumidor ou ao meio
ambiente.
No entanto, foi devido à falta de critérios do Poder Judiciário na
utilização da desconsideração da personalidade jurídica que o Novo
Código de Processo Civil (arts. 133 a 137) passou a prever a obrigatoriedade
de um incidente processual, que suspenderá a ação principal, até que seja
proferida uma decisão acerca do assunto.
O referido incidente tem como um dos seus principais objetivos
assegurar o contraditório e a ampla defesa, princípios constitucionais
inerentes ao Estado Democrático de Direito.
Ademais, a previsão normativa do incidente de desconsideração,
trazida pela Lei 13.105/2015, embora não tenha positivado o meio de defesa
adequado do sócio após a desconsideração da personalidade jurídica,
pôs fim a vários dilemas existentes sobre o procedimento a ser seguido,
garantindo, dessa maneira, maior segurança jurídica aos jurisdicionados.
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Declaração de Inconstitucionalidade de Benefício Fiscal de ICMS Concedido sem
Prévio Convênio CONFAZ e Consequências Práticas
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DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
DE BENEFÍCIO FISCAL DE ICMS CONCEDIDO SEM
PRÉVIO CONVÊNIO CONFAZ E CONSEQUÊNCIAS
PRÁTICAS
Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira1
RESUMO: Trata-se de artigo que visa debater as consequências práticas
da declaração de inconstitucionalidade de benefício fiscal de ICMS, em
sede de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade pelo
Supremo Tribunal Federal. A fim de se analisar essa questão, serão
debatidos conceitos como norma jurídica, validade e eficácia das normas,
de acordo com diferentes correntes doutrinárias. Será avaliado de que
forma a definição sobre a posição adotada com relação a esses conceitos
pode afetar as consequências práticas relativas à possibilidade de o
Estado cobrar do contribuinte o crédito tributário, antes inexigível, após
a declaração de inconstitucionalidade da lei concessiva do benefício fiscal.
Debater-se-á igualmente se o efeito ex tunc, adotado como regra no controle
concentrado de constitucionalidade, deve prevalecer perante outros
princípios constitucionais tributários, como o princípio da legalidade, da
irretroatividade e da anterioridade. Por fim, será analisada brevemente a
jurisprudência recente do STF (RE 576.155) que admitiu a propositura de
Ação Civil Pública por Ressarcimento ao Erário, art. 129 da Constituição
Federal, nos casos de concessão de benefício fiscal do ICMS, sem a
celebração prévia de Convênio CONFAZ.
Palavras-chave: ICMS. Benefício fiscal. Ausência de convênio prévio.
Declaração de Inconstitucionalidade pelo STF. Cobrança do crédito.
Impossibilidade.
CONSEQUENCES OF THE BRAZILIAN SUPREME
COURT DECISIONS THAT, IN ABSTRACT REVIEW,
HELD UNCONSTITUTIONAL STATE STATUTE LAWS
THAT GRANTED ICMS TAX BENEFITS WITHOUT THE
PREVIOUS CONSENSUAL APPROVAL OF THE CONFAZ
1 Especialista em Planejamento Tributário pela Universidade de Brasília (UnB), Especialista em
Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), Graduação em Direito pela
Universidade de Brasília (UnB), Procuradora do Distrito Federal.
RECEBIDO EM: 30/06/2015
ACEITO EM: 09/09/2015
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 135 - 164, jan./jun., 2015.
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Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira
ABSTRACT: This article aims to discuss the practical consequences
of Brazilian Supreme Court decisions that, in abstract review, held
unconstitutional State statute laws, granted ICMS tax benefits without
the previous consensual approval of the CONFAZ. In order to analyze the
issue, the article discusses different doctrines that deal with the concepts
of ‘legal rules’ and of the ‘validity and effectiveness’ of juridical norms.
The main purpose of the work is to solve the question of whether the
declaration of unconstitutionality of a statute law and the proclamation of
its nullity may affect facts that happened before this decision, even if this
means disrespecting the principles of ‘legality’ and ‘non-retroactivity’ of
tax laws, both prescribed by the Brazilian Constitution. Finally, the article
provides a short analysis of the Supreme Court recent decision, which
admitted that a ‘Public Interest Civil Action’, set forth in article 129 of the
Federal Constitution, can be filled to pursue recovery of damages to the
Treasury, in cases in which ICMS tax benefits have been granted without
the CONFAZ prior approval (RE 576.155).
Keywords: Tax benefit. Absence of previous consensual approval.
Unconstitutionality. Tax credit recovery. Impossibility.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal, ao repartir as competências tributárias,
houve por bem, em seu artigo 155, inciso II, incluir na competência dos
Estados e do Distrito Federal o ICMS (Imposto sobre operações relativas
à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte
interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e
as prestações se iniciem no exterior).
Essa decisão política de atribuir aos Estados e ao Distrito Federal
a competência para legislar sobre o ICMS, tradicionalmente conhecido
como um imposto sobre o consumo, gera o que usualmente é chamado de
“Guerra Fiscal” entre os Estados.
Isso porque, sendo um imposto sobre o consumo e sendo este
dinâmico, ultrapassando as fronteiras estatais, a legislação de um Estado
sobre o ICMS influencia, de forma direta, outros Estados, seja pela questão
da não cumulatividade do ICMS e a possibilidade de creditamento do
imposto pago nas etapas anteriores, seja pela utilização do ICMS como
forma de atração de investidores e empresários de um Estado para outro.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 135 - 164, jan./jun., 2015.
Declaração de Inconstitucionalidade de Benefício Fiscal de ICMS Concedido sem
Prévio Convênio CONFAZ e Consequências Práticas
137
É muito comum a utilização da política de benefícios fiscais do ICMS
para atrair empresas de outras regiões para o Estado, a fim de não apenas
aumentar a arrecadação do imposto, através de uma maior quantidade de
empresas instaladas, como também para estimular a economia local, na
forma de empregos e desenvolvimento de infraestrutura.
Justamente para tentar minimizar ou mesmo evitar essa guerra
fiscal, a Constituição Federal previu em seu art. 155, inciso XII, alínea g:
Art. 155
[...]
XII - cabe à lei complementar
g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito
Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e
revogados.
Essa lei complementar a que a Constituição faz referência e que
deve regular a forma de concessão dos benefícios fiscais pelos Estados
atualmente é a Lei Complementar nº 24/75.
A referida lei, em seu artigo 2º2, estabelece como regra para a
concessão do benefício fiscal a unanimidade dos Estados representados,
o que dificulta sobremaneira a concessão de benefícios. Isso porque, basta
que um Estado vizinho ou que um Estado forte, em termos de comércio,
vislumbre perder empresas de seu território, em face do incentivo
concedido por outro Estado, que este benefício não será concedido,
bastando, para isso, a simples objeção de um único Estado.
A obrigatoriedade de unanimidade na concessão de benefícios fiscais
de ICMS, inclusive, é objeto de discussão na Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental - ADPF nº 198, sob a alegação de violação ao
princípio democrático, já que nenhuma outra matéria na Constituição
Federal exige para sua deliberação o quórum da unanimidade.
2 Art. 2º - Os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões para as quais tenham
sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de
representantes do Governo federal.
§ 1º - As reuniões se realizarão com a presença de representantes da maioria das Unidades da Federação.
§ 2º - A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua
revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes
presentes.
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Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira
A rigidez nessa concessão de benefícios fiscais do ICMS leva,
portanto, muitos Estados a ignorarem essa regra constitucional e a
concederem benefícios fiscais de ICMS, a despeito da autorização dos
demais Estados nas reuniões do Conselho Nacional de Política Fazendária
- CONFAZ. Isso porque, muitas vezes, a concessão de benefícios fiscais é
o único meio de que dispõe o Estado, ou pelo menos o mais efetivo, para
atrair investimentos e dinamizar a economia local.
Desse modo, verifica-se que houve a proliferação de leis estaduais
concessivas de incentivos fiscais declaradas inconstitucionais pelo STF, o
que inclusive motivou a proposta de edição de Súmula vinculante nº 69,
cujo texto provisório assim dispõe: “Qualquer isenção, incentivo, redução de
alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro
benefício relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado
no âmbito do Confaz, é inconstitucional”.
Diante dessa declaração de inconstitucionalidade de uma lei
estadual/distrital, surge o questionamento: qual deve ser a consequência
prática dessa declaração de inconstitucionalidade em controle concentrado
e abstrato? Deve ou pode o Estado responsável pela edição da lei julgada
inconstitucional cobrar dos contribuintes o imposto não recolhido?
Para responder a essa pergunta, questões paralelas devem ser
respondidas, como, por exemplo: (i) como compatibilizar a regra de
efeitos ex tunc da declaração de inconstitucionalidade de lei em controle
concentrado e abstrato com o princípio da legalidade, da irretroatividade
e da anterioridade, corolários da ordem tributária brasileira? (ii) como
imputar aos contribuintes a sanção por um descumprimento de dever por
parte do Estado?
Por fim, pretende-se analisar, de forma sucinta, a possibilidade
de esses benefícios fiscais de ICMS concedidos sem celebração prévia de
convênio CONFAZ serem questionados e cobrados dos contribuintes por
meio de Ação Civil Pública, ajuizada pelo Ministério Público, por lesão
ao Erário, nos termos do art. 129, III, da Constituição Federal, conforme
recentemente admitido pelo Supremo Tribunal Federal no RE 576.155.
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2 EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
EM CONTROLE ABSTRATO E CONCENTRADO PELO STF DE
BENEFÍCIO FISCAL DE ICMS SOBRE A COBRANÇA DO TRIBUTO
QUE ANTES ERA LEGALMENTE DISPENSADO
Em matéria constitucional, no direito pátrio brasileiro, a declaração
de inconstitucionalidade de lei em controle concentrado e abstrato de
constitucionalidade (ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade e ADC
– Ação Declaratória de Constitucionalidade) tem como consequência
a declaração de nulidade daquela lei desde sua edição, tendo, portanto,
eficácia ex tunc. A exceção é a possibilidade de modulação dos efeitos
dessa declaração de inconstitucionalidade, para que essa valha com efeitos
ex nunc, conforme art. 27 da Lei 9.8683.
A declaração de inconstitucionalidade de uma norma, portanto,
no Direito pátrio, tem, como regra, a natureza declaratória de enunciar
um vício já existente desde sua origem, sendo, portanto, retroativamente
aplicada a atos anteriormente praticados com base na referida lei. Entendese a lei como nula e, por consequência, nulos devem ser os atos praticados
com base nela.
Apenas a título de esclarecimento, a declaração de nulidade da
norma declarada inconstitucional pela Corte Suprema é, antes de tudo,
uma decisão política e não uma decorrência lógica e necessária. Em
muitos tribunais europeus que seguem a linha preconizada por Kelsen,
a declaração de inconstitucionalidade de uma norma e sua invalidade
somente ocorrem com efeitos ex nunc.4
A adoção, pelo ordenamento pátrio, dessa teoria dos atos nulos,
decorrentes da declaração de inconstitucionalidade de uma lei, editada
em desacordo com a Constituição Federal, é consequência, claramente, da
adoção de um referencial teórico sobre os conceitos de existência, validade
e eficácia da norma jurídica.
3
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de
segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria
de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha
eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado, disponível
em www.planalto.gov.br, legislação
4
PANDOLFO, Rafael. Jurisdição Constitucional Tributária: Reflexos nos Processos Administrativo e
Judicial. São Paulo: Noeses, 2012.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 135 - 164, jan./jun., 2015.
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Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira
É justamente a discussão sobre esse referencial teórico adotado
e as consequências que essa adoção implica na declaração de
inconstitucionalidade de leis tributárias que se pretende debater no
presente artigo.
2.1 CONCEITO DE VALIDADE: DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS
A definição sobre o conceito de validade das normas depende de
um referencial teórico sobre o próprio conceito do que é o DIREITO e do
que deve ser o objeto de estudo da Ciência do Direito.
Como bem ressaltado por Tomazzini (2014, p. 706):
A questão da validade das normas jurídicas, todavia, é muito mais
complicada do que parece ser. Há várias formas de encará-la e cada uma
delas determina um posicionamento do jurista perante o direito. [...] Em
cada um desses sistemas de referência a concepção de direito modificase e com ela o conceito de validade, justamente por ser ele um de seus
conceitos fundantes.5
Assim, a depender do sistema de referência de Direito que se tenha jusnaturalismo, realismo ou positivismo- se terá uma noção diversa do que
é validade, segundo Tomazzini (2014, p. 707):
Para a concepção jusnaturalista [...] a norma válida é a norma justa, moral e
que atende às exigências da ordem natural. [...]
Para o positivismo jurídico (normativista) a validade é tida como um
atributo da norma, que por ser jurídica, está em condições de produzir
efeitos. Os critérios de validade metafísica e social são deixados de lado
para a adoção de um critério de validade jurídico: a norma de superior
hierarquia. Uma norma é válida, quando produzida por ato de vontade
(manifestação de poder) disciplinado em outra norma de superior
hierarquia e, em consequência disso, ela é obrigatória. Neste sentido, a
validade é tida como sinônimo de existência e obrigatoriedade 6
Dentro da corrente positivista, normativista, há, porém, duas
principais correntes doutrinárias que divergem a respeito do que se define
como validade da norma: (i) uma que entende validade como sinônimo
de existência, entendido como relação de pertinencialidade ao conjunto
de normas jurídicas, (ii) outra que entende validade como um momento
5
TOMAZZINI, Aurora. Curso de teoria geral do direito: o construtivismo lógico-semântico. São
Paulo: Noeses, 2014. p. 706.
6
TOMAZZINI, op. cit., p. 707.
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Declaração de Inconstitucionalidade de Benefício Fiscal de ICMS Concedido sem
Prévio Convênio CONFAZ e Consequências Práticas
141
posterior à existência e que diz respeito à adequação da norma em relação
àquela que lhe dá fundamento.
A primeira corrente, capitaneada por Kelsen e compartilhada pelos
precursores do Construtivismo Lógico-Semântico, professores Villanova e
Carvalho, entende a validade como sinônimo de existência da norma no
âmbito jurídico, o que a torna obrigatória.
Segundo o professor Carvalho (2012, p. 114):
ser norma válida quer significar que mantém relação de pertinencialidade
com o sistema “S”, ou que nele foi posta por órgão legitimado a produzila, mediante procedimento estabelecido para esse fim.
A validade não é, portanto, atributo que qualifica a norma jurídica,
tendo status de relação: é o vínculo que se estabelece entre a proposição
normativa e o sistema do direito posto, de tal sorte que ao dizermos
que u’a norma “N” é válida, estaremos expressando que ela pertence
ao sistema “S”. [...] Uma norma enquanto não ab-rogada por outra,
continua pertencente ao sistema e, como tal, reveste-se de validade.7
Ainda sobre o conceito de validade para o construtivismo lógico
semântico, vale citar a lição de Tomazzini (2014, p. 710): “Em suma: valer
é um valor atribuído a algo que pertence, que existe enquanto elemento de
um conjunto e validade é a relação de pertinencialidade entre o elemento
e este conjunto”.8
Para essa corrente, a norma é válida e existente até que outra norma,
entendida esta em sentido amplo (decisão judicial, ato legislativo, etc), seja
produzida por linguagem competente (órgão legitimado) retirando-a do
sistema. E. por isso, produz todos seus efeitos enquanto válida.
A segunda corrente doutrinária entende a validade como qualidade
da norma jurídica e parte do modelo pensado por Pontes de Miranda9
para diferenciar atos nulos e inexistentes. Segundo esse autor, o universo
jurídico é formado por três planos: (i) da existência, (ii) da validade e (iii) da
eficácia. Validade da norma para essa corrente está, portanto, vinculada a
sua compatibilidade com a norma superior que lhe serve de fundamento.
7
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 114.
8
TOMAZZINI, op. cit., p. 710.
9
PONTES DE MIRANDA apud TOMAZZINI, 2014.
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Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira
Segundo essa corrente doutrinária, cujo maior expoente é Pontes de
Miranda, os atos jurídicos seriam divididos em: (i) atos inexistentes; (ii)
atos nulos e (iii) anuláveis.
No que interessa ao estudo do presente artigo, os atos nulos seriam:
aqueles que existem juridicamente, no entanto, carecem de validade e
eficácia (não produzem efeito válido entre as partes) por apresentarem
vício insanável que os compromete irremediavelmente, em decorrência
da violação de exigências prescritas pelas regras que os fundamentam.10
Algumas das críticas mais contundentes à teoria dos atos nulos e ao
conceito de validade da corrente encabeçada por Pontes de Miranda foram
bem resumidas por Tomazzini (2014) da seguinte forma:
Considerar que a validade de uma norma está relacionada à adequação
material ou formal importa afirmar que uma regra pode ser inválida e ao
mesmo tempo, produzir efeitos no sistema enquanto não desconstituída
juridicamente”.11
“Se trabalhássemos com o conceito de validade atrelado ao de adequação
(formal/material) às normas de superior hierarquia, teríamos que
admitir serem todas as normas inválidas ou presumidamente válidas
até que submetidas a um controle, isto é, só poderíamos dizer sobre
sua validade ou invalidade depois da apreciação do judiciário. Neste
sentido, toda linguagem para produzir efeitos válidos no sistema
precisaria de outra que lhe afirmasse como apta para tanto. 12
Necessário, ainda, para a análise da questão proposta por este artigo,
definir o conceito de norma jurídica que será adotado como premissa deste
trabalho.
2.2 CONCEITO DE NORMA JURÍDICA E EFICÁCIA DAS NORMAS
No presente trabalho, adota-se a concepção de norma jurídica
defendida pelos adeptos do construtivismo lógico-semântico, segundo a
qual norma jurídica é a significação extraída de um texto normativo pelo
leitor, na forma hipotético-condicional. É, portanto, sempre implícita,
por decorrer do processo intelectivo do leitor de atribuir significado ao
texto normativo contextualizando-o dentro de um plexo normativo de
princípios gerais.
10 TOMAZZINI, Aurora. Curso de teoria geral do direito: o construtivismo lógico-semântico. São
Paulo: Noeses, 2014. p. 712-713.
11 Ibid., p. 715.
12 Ibid., p. 730-731
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As normas jurídicas, segundo Carvalho (2008, p. 129), são:
“significações construídas a partir dos textos positivados e estruturadas
consoante a forma lógica dos juízos condicionais, compostos pela
associação de duas ou mais proposições prescritivas”13.
Ainda segundo Tomazzini (2014, p. 289):“Como significação as
normas jurídicas estão sempre na implicitude dos textos, não existe
norma expressa. O que se apresenta de forma expressa são os enunciados
prescritivos componentes do plano material do direito positivo (grifo
nosso)”14.
Desse modo, há clara diferenciação entre o texto escrito (enunciado
prescritivo) da norma em si, que é a significação extraída da interpretação
de um ou mais enunciados prescritivos, moldada na forma hipotético
condicional (H-C).
Quanto à eficácia da norma jurídica, Carvalho (2012, p. 116) a divide
em três vertentes: a eficácia jurídica, técnica e social. Especialmente no
que condiz com os objetivos do presente trabalho, urge explicar o que
consistiria a eficácia técnica:
Sob a rubrica de eficácia técnica vemos a condição que a regra de
direito ostenta, no sentido de descrever acontecimentos que, uma vez
ocorridos no plano real-social, tenham o condão de irradiar efeitos
jurídicos [...] diremos ausente a eficácia técnica de u’a norma (ineficácia
técnico-sintática) quando o preceito normativo não puder juridicizar
o evento, inibindo-se o desencadeamento de seus efeitos, tudo (a)
pela falta de outras regras de igual ou inferior hierarquia, consoante
sua escala hierárquica, ou, (b) pelo contrário, na hipótese de existir
no ordenamento outra norma inibidora de sua incidência. [...] Em
ambos os casos, ineficácia técnico-sintática ou técnico-semântica, as
normas jurídicas são vigentes, os sucessos do mundo social nelas
descritos se realizam, porém inocorrerá o fenômeno da juridicização
do acontecimento, bem como a propagação dos efeitos que lhe são
peculiares.15
13 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 2. ed. São Paulo: Noeses,
2008. p. 129.
14 TOMAZZINI, Aurora. Curso de teoria geral do direito: o construtivismo lógico-semântico. São
Paulo: Noeses, 2014. p. 289.
15 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 116.
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Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira
Para exemplificar o que viria a ser a ineficácia técnica de uma
norma, podemos usar como exemplo uma norma instituidora de tributo
(ICMS) que não pode incidir e, portanto, produzir efeitos sobre todas as
hipóteses descritas na sua regra matriz de incidência tributária, em função
da existência de outra norma jurídica antiexacional (isenção, por exemplo)
referente ao ICMS.
2.3 USO DOS CONCEITOS DE NORMA JURÍDICA, VALIDADE E
EFICÁCIA NA ANÁLISE DAS CONSEQUÊNCIAS DA DECLARAÇÃO
DE INCONSTITUCIONALIDADE, EM CONTROLE CONCENTRADO
E ABSTRATO, DE BENEFÍCIO FISCAL DE ICMS, SEM CONVÊNIO
CONFAZ PRÉVIO
Feita as delimitações conceituais necessárias, passemos à análise
de um caso hipotético em que um Estado concede um benefício de ICMS
(isenção, crédito presumido, etc) sem convênio prévio do CONFAZ, em
confronto com o que dispõe o art. 155, inciso XII, alínea g, da Constituição
Federal e para essa concessão estabelece condicionantes (contrapartidas),
tais como investimento mínimo em infraestrutura e geração de empregos
no local.
Julgada inconstitucional essa lei em ADI, o STF (Supremo Tribunal
Federal) pode decidir por modular ou não os efeitos dessa decisão, nos
termos do art. 27 da Lei 9.868. Se optar por modular, garante que todas as
operações realizadas anteriormente à declaração de inconstitucionalidade
estarão resguardadas e somente da declaração de inconstitucionalidade
em diante a lei estatal perderá sua validade e eficácia.
Ocorre que a regra não tem sido o STF modular efeitos de
decisões desse jaez, vide pronunciamento na ADI 3794, DJ 24/02/201516.
16 EMENTA: EMBARGOS DE DECLAÇÃO EM ADI. OMISSÃO. PEDIDO DE MODULAÇÃO
TEMPORAL DOS EFEITOS DA DECISÃO. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI
QUE CONFERIU BENEFÍCIOS EM MATÉRIA DE ICMS SEM QUE HAJA CONVÊNIO DO CONFAZ.
EMBARGOS CONHECIDOS PARA NEGAR-LHES PROVIMENTO. 1. Não comprovadas razões
concretas de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, requisitos estipulados pelo art. 27 da
Lei n.º 9.868/99, descabe a modulação dos efeitos da decisão. 2. A jurisprudência desta Suprema Corte
não tem admitido a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em casos de leis
estaduais que instituem benefícios sem o prévio convênio exigido pelo art. 155, parágrafo 2º, inciso
XII, da Constituição Federal – Precedentes. 3. A modulação dos efeitos temporais da declaração
de inconstitucionalidade no presente caso consistiria, em essência, incentivo à guerra fiscal,
mostrando-se, assim, indevida. 4. Embargos de declaração conhecidos para negar-lhes provimento.
(ADI 3794 ED, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2014,
ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-036 DIVULG 24-02-2015 PUBLIC 25-02-2015), disponível em www.
stf.jus.br.
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Excepcionalmente o STF decide modular os efeitos dessas decisões que
julgam benefícios de ICMS concedidos sem convênio prévio, como na ADI
429, caso em que o benefício fiscal tinha caráter social muito forte, porque
voltado a deficientes. e mais recentemente na ADI 4481 (DJe 19/05/2015),
em razão do medo das consequências nefastas do cancelamento de um
benefício que durou por 9 (nove) anos no Estado.
Vale notar que não seria necessário discutir sequer modulação
de efeitos se nosso ordenamento jurídico não tivesse adotado a teoria
dos atos nulos, que entende validade como adequação às normas
constitucionais e entende nula a lei declarada inconstitucional.
Isso porque, partindo-se da premissa de Kelsen de que validade é
relação de pertinencialidade ao ordenamento jurídico, não haveria dúvida
em se alegar que somente tendo sido declarada inconstitucional a norma
concessiva de benefício fiscal poder-se-ia afirmar que a norma seria
inválida e, portanto, perderia a eficácia.
Ademais, como apenas uma linguagem competente dentro
do sistema é capaz de decretar a invalidade da norma, temos que essa
invalidação tem efeito constitutivo e não meramente declaratório, de modo
que o tributo somente poderia ser cobrado dali para frente.
Como se pode notar, a adoção de uma ou outra corrente doutrinária
sobre validade por nosso ordenamento jurídico traz consequências
diametralmente opostas.
Por essa razão, a corrente doutrinária que esta subscritora entende
mais coerente e mais propícia à manutenção da segurança jurídica é a
corrente adotada por Kelsen e pelos adeptos do construtivismo lógicosemântico, que entende validade como sinônimo de pertinencialidade
ao ordenamento jurídico. Isso porque, se fosse dado a qualquer cidadão
fazer seu controle prévio de validade das leis perante a Constituição, para
dizer se estas normas são válidas ou não e, portanto, cumpri-las ou não,
teríamos o caos e a insegurança instaurados.
É assente, por exemplo, na jurisprudência e doutrina, que, em nosso
ordenamento jurídico, não é dado a nenhum contribuinte deixar de pagar
tributo, por entendê-lo inconstitucional, ainda que a inconstitucionalidade
seja aberrante.
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Para que possa ser legitimamente autorizado a não recolher o
tributo, deve haver um pronunciamento (linguagem competente) de um
órgão legitimamente autorizado pelo ordenamento jurídico para realizar
controle de constitucionalidade das normas, liberando-o do pagamento.
Apenas após a introdução dessa nova norma em sentido amplo no
mundo jurídico é que se pode falar em ausência de obrigação por parte do
contribuinte.
Do mesmo modo, não está o Poder Executivo autorizado a descumprir
leis que entenda inconstitucionais, ainda que estas representem, por
exemplo, benefícios fiscais aos contribuintes, em detrimento da Receita
Estatal.
Assim, parece certo contrassenso admitir que as normas são
presumidamente válidas até que órgão competente diga o contrário, mas
se entenda que uma vez julgada inconstitucional uma lei concessiva de
benefício fiscal deve o contribuinte pagar todo o tributo, pois deveria
saber desde a origem da lei que esta seria inválida. É, claramente, exigir
do cidadão um comportamento dúbio, contraditório. Não se transmite
uma mensagem prescritiva clara ao cidadão, que possa ser um guia para
pautar sua conduta.
O Direito, como se sabe, é, antes de tudo, um conjunto de normas
que visam orientar os cidadãos a pautar suas condutas de acordo com
aquilo que a coletividade entende como certo, representado pelas leis
produzidas.
Como exigir que um contribuinte diante de uma norma concessiva
de benefício fiscal questione sua validade e desconfie da lei? Ademais,
devemos questionar: existe opção para esse contribuinte que se enquadra
exatamente na hipótese da concessão de uma isenção de não gozá-la? Pode
o Fisco lançar tributo desrespeitando lei que concede isenção? Entendese, sem dúvida, que não, já que a Autoridade Tributária Administrativa é
regida pelo princípio da legalidade estrita, art. 37 da Constituição Federal.
É importante notar a contradição que a concepção dos atos nulos
na declaração de inconstitucionalidade em ADI impõe: transfere-se ao
contribuinte o dever da análise da constitucionalidade do benefício, mas
não lhe é dado pela ordem jurídica poder e legitimação para declarar
essa inconstitucionalidade e de acordo com ela se conduzir.
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E o pior é que se o benefício vier a ser declarado inconstitucional
quem sofre todos os malefícios da transgressão constitucional do Estado
é o contribuinte, que não é responsável pela legislação e tampouco
autorizado a declará-la inconstitucional. Deixa-se o contribuinte à mercê
da sorte. Cria-se um âmbito de insegurança absolutamente não propício à
assunção de riscos e investimentos por parte das empresas contribuintes.
Se fizéssemos, por exemplo, uma analogia com o Direito Civil,
poderíamos dizer que, se o Estado viesse a cobrar tributo do contribuinte
que confiou na lei antiexacional por ele editada, estaria a beneficiar-se
duplamente da própria torpeza (venire contra factum proprium). Isso porque,
o Estado arrecadou mais com a instituição do benefício, em termos de
quantidade geral, já que mais empresas vieram se instalar em seu território,
teve empregos e infraestrutura criados e depois irá arrecadar o tributo em
sua integralidade e sem restituir às empresas as contrapartidas ofertadas.
No entanto, é exatamente pela adoção por nosso ordenamento
pátrio da teoria da nulidade das normas declaradas inconstitucionais (Lei
9.868/99) que vemos a todo momento o STF debruçado sobre discussões
sobre modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade e essas
discussões se dão em regra considerando as consequências dessa decisão,
como bem analisou a mestre e doutora Piscitelli em seu livro “Argumentando
pelas consequências no Direito Tributário”17. No livro, no entanto, procura
a autora distinguir o que seriam argumentos consequencialistas válidos
que visam a concretização de um valor do ordenamento jurídico e outros
que sejam meramente terroristas, com cunho estritamente financeiro.
Há que se notar, porém, que essa previsão de retroatividade da
declaração de inconstitucionalidade em sede de controle concentrado e
abstrato (ADI, por exemplo) está prevista em lei (Lei nº 9.686/99), sendo,
portanto, REGRA infraconstitucional, de modo que sua intepretação e
aplicação deve se coadunar com os princípios e regras constitucionais,
especialmente quando se tratar de matéria tributária. Havendo conflito
entre REGRA infraconstitucional e PRINCÍPIOS E REGRAS constitucionais,
estes últimos devem prevalecer.
17 PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Argumentando pelas consequências no direito tributário. São
Paulo: Noeses, 2011.
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Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira
É o que se pretende demonstrar em seguida.
2.4 NECESSIDADE DE COMPATIBILIZAÇÃO DA DECLARAÇÃO
DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI CONCESSIVA DE
BENEFÍCIO FISCAL COM OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE,
IRRETROATIVIDADE E ANTERIORIDADE, CONSAGRADOS PELA
ORDEM TRIBUTÁRIA BRASILEIRA
Breve digressão sobre a diferença entre princípios e regras se faz
necessária para a análise da questão que ora se pretende debater.
Princípios são valores, vetores que orientam o comportamento
social das pessoas e orientam/vinculam os legisladores na produção das
normas. São valores tidos como socialmente relevantes e aceitos pela
maioria da sociedade e que devem nortear a produção legislativa e o agir
dos cidadãos. Servem ainda como interação entre as diversas normas do
ordenamento e como vetor de interpretação e integração de lacunas.
Nas palavras de Carvalho (2012, p. 43):
Princípios são enunciados do direito posto, de grande carga axiológica,
acolhendo os valores que conduzem e direcionam o funcionamento do
sistema no qual se inserem. Alguns desses enunciados recebem o nome
de limites objetivos em decorrência do imediatismo de sua aplicação.18
Já regras são o “sentido articulado numa estrutura lógica, construída
a partir da interação do receptor com as mensagens enviadas pelos órgãos
emissores”19. Elas são mais claras quanto ao sentido normativo nelas
contido, regulam diretamente a conduta. O dever-ser é modalizado em
uma das três possibilidades: obrigatório, permitido e proibido.
No presente caso, temos uma regra legal (art. 27 da Lei 9.868/99) que
se contrapõe a princípios constitucionais, como o princípio da legalidade
(art. 150, I, da CF/88), da irretroatividade (art. 150, III, “a” da CF/88) e
da anterioridade (art. 150, III, “b” da CF/88), todos previstos de forma
expressa na Constituição Federal.
18 CARVALHO, Paulo de Barros. A concessão de isenções incentivos ou benefícios fiscais no âmbito do
ICMS. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; CARVALHO, Paulo de Barros. Guerra Fiscal: reflexões
sobre a concessão de benefícios no âmbito do ICMS. São Paulo: Noeses, 2012. p. 43.
19 CARVALHO, Cristiano Rosa de. Sistema, competência e princípios, In: SANTI, Eurico Marcos Diniz
de; EMERENCIANO, Adelmo da Silva (Coord.). Curso de Especialização em Direito Tributário:
Estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006.
p. 861- 896.
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Essa antinomia entre a Lei 9.868/99 e os referidos princípios se
dá para os casos em que a declaração de inconstitucionalidade de uma
norma tributária faz surgir uma nova norma que permite exigir tributo do
contribuinte, como sói acontecer nos casos de benefícios fiscais de ICMS
declarados inconstitucionais, por ausência de prévio Convênio CONFAZ.
Nessa hipótese de antinomia, não há menor dúvida de que os
princípios constitucionais tributários supracitados devem prevalecer
perante a regra da nulidade e do efeito ex tunc da declaração de
inconstitucionalidade em sede de controle abstrato e concentrado de
constitucionalidade, prevista na Lei 9.868/99.
Como ensina Carvalho (2012, p. 45):
Reafirmo: a norma jurídica, como juízo hipotético-condicional,
composta por atividade interpretativa pela combinação de várias
noções ou conceitos, requer o envolvimento do exegeta com proposições
inteiras do todo sistemático, incursionando pelos escalões mais altos e
de lá regressando com os vetores axiológicos ditados pelos princípios.
O conteúdo de significação obtido com a interpretação dos textos
legais deve ser confrontado com todos os princípios que regem o
ordenamento. E isso vale igualmente como disciplina para a atividade
legislativa.20
Desse modo, considerando os conceitos de norma jurídica, existência,
validade e eficácia antes delimitados, observa-se que a aplicação da teoria
da nulidade da lei declarada inconstitucional em sede de ADI, em matéria
tributária, merece temperamentos, pois sua utilização sem maiores
reflexões implica necessariamente a violação de inúmeros princípios
constitucionais, que não podem ser absolutamente relegados a segundo
plano na solução da questão. Além, claro, de enviar uma mensagem
prescritiva contraditória ao cidadão.
Se existe uma lei instituindo o ICMS no Estado e existe outra lei
instituindo um benefício fiscal que implique a anulação ainda que parcial
daquela norma instituidora do tributo para os casos dispostos na lei
concessiva de benefício, temos:
(i) não há norma jurídica (significação) que possa ser extraída dessas
leis autorizando a cobrança do ICMS nos casos previstos no benefício fiscal;
20 CARVALHO, Paulo de Barros. A concessão de isenções incentivos ou benefícios fiscais no âmbito do
ICMS. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; CARVALHO, Paulo de Barros. Guerra Fiscal: reflexões
sobre a concessão de benefícios no âmbito do ICMS. São Paulo: Noeses, 2012. p. 45.
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Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira
(ii) a norma que institui o tributo ICMS tem, portanto, eficácia
técnica restrita, não produzindo efeitos com relação aos fatos descritos na
lei concessiva de benefício;
(iii) há norma impedindo a cobrança de tributo nos casos previstos
em benefício;
(iv) os sujeitos da relação jurídica (Estado e contribuinte) são
obrigados a obedecer à norma enquanto não declarada inconstitucional.
Assim, a aplicação irrestrita da teoria da nulidade da lei declarada
inconstitucional nestes casos implica:
(i) aplicação de uma nova norma que permita a cobrança do
tributo mesmo nas hipóteses antes previstas como não tributadas pelo
benefício fiscal, de forma retroativa (violação ao arts 150, III, “a” e “b” da
Constituição Federal);
(ii) cobrança de tributo sem norma (significação) que assim
autorizasse na ocorrência do fato gerador, em franca violação ao princípio
da legalidade (art. 150, I, da Constituição Federal);
(iii) mensagem prescritiva contraditória do ordenamento jurídico ao
contribuinte. que o leva a desconfiar da própria utilidade do Direito, já que
se impõe a observância da lei até que seja esta julgada inconstitucional,
não se permitindo ao contribuinte discutir sua validade, mas. quando
julgada inconstitucional a lei. é o contribuinte apenado por simplesmente
tê-la cumprido.
Nesse mesmo sentido são as reflexões do professor Pandolfo (2012),
em seu livro Jurisdição Constitucional Tributária21, que assim dispôs:
Nesse contexto, é importante repisar a premissa que pauta a abordagem
realizada pelo presente estudo: os contornos da obrigação tributária são
definidos pelo legislador no plano sintático e pelo intérprete no plano
do significado. É no plano do significado que nasce a norma jurídica,
e é através da interpretação que são ficados de maneira mais clara os
contornos da conduta efetivamente esperada do sujeito passivo22
21 PANDOLFO, Rafael. Jurisdição Constitucional Tributária: Reflexos nos Processos Administrativo e
Judicial. São Paulo: Noeses, 2012.
22 Ibid., p. 112.
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Como se vê, a prescrição de conduta e, portanto, a norma jurídica
não pode ser resumida ao enunciado prescritivo (texto escrito), mas sim
à significação que dele, em conjunto com outros enunciados e valores
inerentes ao ordenamento jurídico, se extrai. Desse modo, o princípio da
legalidade, da irretroatividade e da anterioridade (arts. 150, I, III, “a” e
“b”) devem ser analisados não em função do mero texto, mas em função
da norma jurídica dele extraída.
Nas palavras de Pandolfo (2012):
É importante erradicar o vício de se restringir o princípio da
Irretroatividade a uma limitação imposta exclusivamente ao legislador.
O princípio da irretroatividade aplica-se à totalidade das fontes de
formação do Direito, subordinando tanto as alterações sintáticas
provocadas nos enunciados prescritivos objeto de interpretação (leis,
Constituição), como à modificação da norma jurídica em sentido
estrito, ou seja, à modificação de uma intepretação já estabilizada e
digna de confiança tutelável juridicamente [...]
O maior beneficiado com o respeito à irretroatividade das normas
judiciais e administrativas tributárias é o próprio Estado, que ganha
credibilidade e confiança dos contribuintes e investidores [...]
Essas observações servem para ressaltar a importância da credibilidade
conferido pelos cidadãos aos comandos, normas proferidas tanto
no âmbito legislativo, como no âmbito judicial. Sua instabilidade
e a alteração retroativa fazem com que nasça, na sociedade, um
questionamento acerca da própria autoridade atribuída aos órgãos
aplicadores da lei. 23.
Afinal de contas, o que a Constituição garante, por meio da
irretroatividade, é a perenidade do direito expresso em lei e, em
certo momento, revelado por um ato administrativo ou judicial. A
irretroatividade é da norma e alcança a irretroatividade da inteligência
da lei aplicada ao caso concreto24.
Importante repisar que as decisões judiciais tributárias devem se
sujeitar ao regime jurídico estabelecido pelo legislador constituinte e
pela legislação infraconstitucional ao sub-sistema tributário brasileiro.
Desse modo, devem obediência À irretroatividade, materializada tanto
no art. 150, III “a”, da Constituição e debuxada pelos artigos 103, 105,
146 e 156, X, do Código Tributário Nacional. É a partir desses limites e
23 Ibid., p. 113,115-116.
24 Ibid., p. 128.
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não sobre eles, que deverá ser discutida a fixação de eventuais efeitos
prospectivos nas decisões de controle de constitucionalidade, que
não poderão conferir segurança menor que a já assegurada pela Carta
Magna pelo Código Tributário Nacional.25
Este entendimento é também compartilhado por Nascimento (2013,
p. 197). em artigo na REVISTA DE DIREITO DA PROCURADORIA
GERAL DO RIO DE JANEIRO26. Confira-se:
Em suma, admitir a retroação do novo sentido à data da mera confecção
do texto legal possui o mesmo efeito de retroação de um novo texto
legal. Isso porque como visto, a norma jurídica, que interessa aos
seus destinatários, não se confunde com o mero enunciado normativo
contido nas expressões gramaticais do texto. Pela mesma razão, a
nova interpretação dada ao texto deve produzir efeitos imediatos,
pois equivale à edição de uma nova norma, ainda que o entendimento
anterior esteja amparado por uma coisa julgada27.
Assim, ainda que se adote a teoria da nulidade da lei declarada
inconstitucional, em sede de controle abstrato de constitucionalidade
(Lei 9.868/99), nos casos em que essa declaração implicar retroatividade
da norma tributária para cobrança de tributo antes não tributado por lei,
deve-se fazer uma interpretação conforme a Constituição. em respeito aos
princípios da legalidade, da irretroatividade e da anterioridade (arts.
150, I, III, “a” e “b”).
Portanto, mesmo que o STF não venha a modular os efeitos
dessa declaração de inconstitucionalidade (art. 27 da Lei 9.868/99), há
argumentos robustos para se entender pela impossibilidade de retroação
da declaração de inconstitucionalidade aos fatos pretéritos, impedindo
a cobrança dos contribuintes dos tributos antes não cobrado por escusa
legal.
Não se pode perder de vista a origem do princípio da legalidade
que já na Carta Magna (1215) tinha forte cunho de proteção ao direito de
propriedade particular frente aos poderes do Estado, o qual se traduzia
pela máxima “no taxation, without representation”.
25 Ibid., p. 129.
26 NASCIMENTO, João Paulo do. Eficácia da Coisa julgada Tributária em face da mutação Constitucional
pela via da Interpretação Jurisprudencial pelo Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito da
Procuradoria Geral do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 68, p. 191-206, jun./2013-2014.
27 Ibid., p. 197.
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Há inclusive fortes defensores na doutrina pátria que entendem
que o princípio da anterioridade deve ser utilizado até mesmo para o caso
de simples revogação da isenção, já que há a introdução de nova norma
jurídica tributária no ordenamento pátrio.
É o caso do renomado Amaro (2010, p. 312), , que defende que
qualquer revogação de isenção equivale a uma majoração do tributo, razão
pela qual deve obedecer à anterioridade.Veja-se:
Se o fato “a” estava fora do campo de incidência, (porque ele, pura e
simplesmente, não fora abrangido pela regra de incidência, ou porque
embora abrangido pelo gênero tributado, fora excepcionado da
incidência por norma de isenção), tanto a edição de regra que o tribute
como a revogação da norma que o isentava implica o seu ingresso no
rol dos fatos tributáveis.
Se se trata de tributo sujeito ao princípio da anterioridade, é óbvio
que a revogação da isenção, tendo o mesmo efeito da edição de regra
de tributação, importa em que o tributo só possa ser aplicado a partir
do exercício seguinte àquele em que a norma legal seja editada. O
código Tributário Nacional deixou isso expresso no art. 104, III.
A submissão da regra revogadora de isenção ao referido princípio (ou
ao da anualidade) é antiga lição de nossa doutrina. É digno de nota o
registro de Rubens Gomes de Sousa no sentido de que o Código Tributário
Nacional teve o objetivo específico de contrariar a jurisprudência que
entendia que a revogação de uma isenção não equivaleria à criação de
tributo novo. Paulo de Barros Carvalho considera “questão assente
que os preceitos de leis que extinguem ou reduzem isenções só devam
entrar em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que
forem publicados28.
Para o professor Carvalho29(2012), para quem a isenção é norma
de estrutura que afeta a eficácia e a incidência da norma tributária, a
revogação da isenção restabeleceria a eficácia da regra tributante, porém,
seria necessário observância do princípio da anterioridade, visto que, se
havia norma impedindo a incidência de uma norma tributante e esta volta
a incidir, temos que este regresso da norma tributante equivaleria a um
aumento de tributo, que deve obedecer ao princípio da anterioridade.
Portanto, como se pode perceber. há uma forte corrente doutrinária
e sólidos argumentos que legitimam a limitação de efeitos ex tunc nas
declarações de inconstitucionalidade de norma tributária que impliquem
cobrança retroativa de tributos.
28 AMARO, Luciano. Direito Tributário brasileiro. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 312.
29 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
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3 POSSIBILIDADE DE AJUIZAMENTO DE AÇÃO CIVIL POR
RESSARCIMENTO AO ERÁRIO, ART. 129 DA CF/88, PARA
COBRANÇA DE TRIBUTOS. JURISPRUDÊNCIA DO STF E
INCONGRUÊNCIAS GERADAS
O STF em recente julgado, o RE 576.155 autorizou o Ministério
Público do Distrito Federal a impugnar por meio de Ações Civis Públicas
de Ressarcimento ao Erário, art. 129, III, da Constituição Federal, benefício
fiscal de ICMS concedido por lei distrital (Leis 1.254/96 e 2.381/99) e, por
conseguinte, cobrar dos contribuintes o crédito tributário antes isento.
A presente questão, por si só, é digna de um artigo, dada as
incongruências jurídicas que tal admissão gera no ordenamento jurídico.
No entanto, tendo em vista o limitado espaço do presente artigo, pretendese tão somente pontuar as principais objeções a esse posicionamento do
STF.
Primeiramente, em relação a questões processuais temos o próprio
questionamento acerca da possibilidade de ajuizamento de Ação Civil
Pública, já que o Ministério Público utiliza essas ACPs como sucedâneo
de Ação Direta de Inconstitucionalidade, visto que questiona de forma
principal e não incidental a validade da Lei concessiva do benefício fiscal.
O pedido é para anular os Termos de Acordo de Regime Especial - TAREs
() entre o Distrito Federal e os contribuintes, mas em verdade se está a
questionar a lei distrital concessiva do benefício que autoriza a celebração
dos TAREs.
Em segundo lugar, outra questão que se entende não ter sido
debatida a contento e com o devido cuidado é a configuração do dano ao
Erário, requisito necessário para a autorização da Ação Civil Pública, nos
termos do art. 129, III da CF/88.
Ora, todo raciocínio do MPDFT é baseado em um suposto prejuízo
causado ao Estado, que poderia ter arrecadado muito mais ICMS se tivesse
cobrado dos contribuintes em sua totalidade. Nada mais absurdo, com a
devida vênia. Esse raciocínio peca por não considerar que, se não houvesse
aquele benefício, provavelmente, ou melhor, quase certamente, a maioria
das empresas que se instalaram no DF, ali não estariam. Assim, se fosse
cobrado o ICMS integral, haveria menos empresas e a arrecadação seria
menor. Com o benefício, tem-se mais empresas pagando menos ICMS,
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Declaração de Inconstitucionalidade de Benefício Fiscal de ICMS Concedido sem
Prévio Convênio CONFAZ e Consequências Práticas
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mas, ao final, uma maior arrecadação. Tais números foram demonstrados
no STF, para provar categoricamente o aumento de arrecadação, mas a
Corte Suprema se prendeu a um complicado argumento de que o prejuízo
ao Erário seria, em tese, por violação à ordem jurídica.
Há clara contradição nesse argumento do STF, pois, ou há violação
à ordem jurídica, que exige o prévio consenso do CONFAZ para concessão
do benefício e aí o instrumento para impugnação é a ADI, ou há prejuízo
REAL ao Erário e, nesse caso, admite-se a Ação Civil Pública.
A maior prova da ausência de prejuízo ao Distrito Federal está na
lógica do que se chama GUERRA FISCAL. Na guerra fiscal, o prejudicado
é sempre um outro Estado que perde com a migração de empresas para
outro ou mesmo com a necessidade de aceitação de creditamento de ICMS
que foi objeto de benefício em outro Estado.
Pode-se afirmar, com certeza, que NUNCA o prejudicado na guerra
fiscal é o Estado instituidor do benefício. Caso contrário, que Estado seria
insano de prever uma lei que fosse lhe causar prejuízos?
Ressalte-se que, no caso do Distrito Federal em questão, ainda
houve remissão dos débitos tributários decorrentes de cancelamento dos
TARES celebrados em função da Lei 4.732/2011, resultado do CONVÊNIO
CONFAZ ICMS 86/2011, em que houve anuência dos demais estados no
CONFAZ. Trata-se do CONVÊNIO 86/2011. Prática, aliás, que é defendida
como válida pelo ilustre professor Carvalho (2012, p. 93):
Não vejo obstáculos aos atos dos Estados e do Distrito Federal que
venham conceder remissão ou anistia dos créditos de ICMS decorrentes
da declaração de inconstitucionalidade de isenções, incentivos ou
benefícios fiscais concedidos sem suporte em convênio. Pelo contrário,
tal providência é recomendável, para que se mantenha no ordenamento
o clima de segurança jurídica, evitando punir ou onerar o contribuinte
que agiu de acordo com os termos de lei reputada por válida e vigente.30
Nada obstante, o MPDFT ingressou, junto ao Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), com a ADI nº 2012.00.2.01491630 CARVALHO, Paulo de Barros; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Guerra Fiscal: reflexões sobre a
concessão de benefícios no âmbito do ICMS. São Paulo: Noeses, 2012. p. 93.
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Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira
6 contra a referida Lei Distrital nº 4732/2011, que incorporou o Convênio
CONFAZ 86/2011 ao ordenamento local. A referida ação foi julgada
improcedente; no entanto, mesmo após o julgamento da ADI pelo TJDFT, o
MPDFT impugnou a referida decisão por meio de Recurso Extraordinário,
ainda pendente de julgamento.
É espantosa essa admissão pelo MPDFT de que, tendo havido dano
ao Erário, este teria sido “causado” pelo contribuinte. Sim, porque em
qualquer ideia de responsabilidade que se tenha, seja no Direito Civil,
seja no Direito Tributário, deve haver o mínimo de relação de causalidade
entre a conduta daquele a quem se imputa o dano e o dano.
Onde residiria a responsabilidade do contribuinte na concessão de
um benefício fiscal indevido pelo Estado? No cumprimento estrito da lei?
Não se pode imputar ao contribuinte a responsabilidade pela edição de uma
lei inconstitucional se sobre ela não tem ele qualquer ingerência e, o que é
pior, não lhe é dado pelo ordenamento a faculdade de descumpri-la, com
base em juízo próprio de constitucionalidade. Tampouco lhe são ofertados
legitimidade e poder para contestar, em abstrato, a referida lei, dada a
limitação da legitimação ativa para Ação Direta de Inconstitucionalidade
feita na Constituição Federal (art. 103 da CF/88).
Esse mesmo questionamento é feito por inúmeros estudiosos do
Direito quando analisam as sanções impostas pelo art. 8º, incisos I e II, da
LC 24/7531 aos contribuintes em face da inconstitucionalidade do benefício
concedido. Senão vejamos alguns desses questionamentos.
Carvalho (2012), no livro Guerra Fiscal, assim pondera:
Não bastasse isso, a Lei Complementar n. 24/75 dispôs, também, sobre
sanções aos contribuintes envolvidos nas operações ilegitimamente
beneficiadas. Em total agressão ao ordenamento jurídico pátrio,
estabeleceu, no art. 8º, ser ineficaz o crédito fiscal relativo às
operações beneficiadas, autorizando, simultaneamente a exigência
do imposto reduzido em razão do incentivo tributário. A literalidade
de tal dispositivo poderia levar ao equivocado entendimento de que,
independentemente de julgamento por parte do tribunal competente
– o STF – as normas relativas à concessão de benefícios não teriam
31 Art. 8º - A inobservância dos dispositivos desta Lei acarretará, cumulativamente:
I - a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da
mercadoria;
Il - a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão
do débito correspondente.
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presunção de validade e o princípio da não cumulatividade do ICMS
não deveria ser respeitado. Tal conclusão, entretanto, não encontra
respaldo no sistema constitucional brasileiro, que reserva ao Judiciário
a apreciação de toda e qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito,
afastando completamente a figura da autotutela32
Em suma, qualquer que seja a espécie sancionatória, sua aplicação
tem por pressuposto a prática de ato ilícito. Por conseguinte,
inexistindo ilicitude na atividade realizada pelo contribuinte, não
ocorre o preenchimento dos requisitos da hipótese normartiva, sendo
inadmissível pretender-se aplicar sanção prevista no consequente dessa
mesma norma jurídica. [...]
Estudar as infrações é pesquisar o suposto das regras sancionatórias,
assim como indagar sobre as sanções é analisar o consequente daquelas
normas33
Por isso mesmo, qualquer que seja o nome que se lhe dê, bem como
seu objeto prestacional (multa ou obrigação de fazer ou não fazer), toda
sanção advém da inobservância de um dever jurídico, motivo pelo qual
apenas ao sujeito infrator pode ela ser imputada[...]
Dada a pessoalidade da pena em razão de seu nexo com as ações
praticadas pelo infrator, não pode o contribuinte, ao cumprir lei
estadual que tenha concedido isenção, incentivo ou benefício fiscal de
ICMS sem a prévia celebração de convênio pelo CONFAZ e, logo, sem
que tenha praticado ilícito algum, ser punido por ilicitude perpetrada
por quaisquer dos Estados-membros, ao concederem incentivo fiscal
sem observância à Lei Complementar n. 24/75. O contribuinte somente
responde por infrações quando para elas contribuir por ato próprio,
não podendo assumir o pólo passivo de imposições decorrentes de
ilegalidades que jamais foram por ele pessoalmente realizadas (grifo
nosso).34
Como se vê dos trechos acima, não há ILÍCITO e, portanto,
descumprimento de qualquer dever legal que possa acarretar
RESPONSABILIDADE do contribuinte, que apenas obedece lei de
benefício fiscal e de acordo com ela se conduz.
Rothmann (2010, p. 347), no artigo “A Guerra Fiscal dos Estados na
(des)ordem tributária e econômica”, registra:
Como se trata de uma questão entre os Estados da Federação, as
sanções somente podem alcançar os próprios Estados infratores. Se
as sanções aos Estados, previstas na Lei Complementar n. 24/75, não
forem aplicadas ou resultarem insuficientes, cabe exclusivamente aos
32 CARVALHO, Paulo de Barros; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Guerra Fiscal: reflexões sobre a
concessão de benefícios no âmbito do ICMS. São Paulo: Noeses, 2012. p. 72.
33 Ibid., p. 84-85.
34 Ibid., p. 86.
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Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira
estados tomarem as medidas políticas, necessárias para resguardar
seus interesses, prejudicados pela competição fiscal danosa, praticada
por outro Estado da Federação, junto aos órgãos representativos dos
Estados35
A admissão dessa responsabilização dos contribuintes é, s.m.j, a
consagração do que o Direito Civil costuma nominar de venire contra factum
proprium, já que o Estado se aproveita dos benefícios de maior arrecadação
de tributos, geração de empregos e desenvolvimento da economia e depois
ainda cobra dos contribuintes o tributo antes dispensado por lei. Sim,
porque, na referida ação, não há qualquer compensação para devolver aos
empresários os empregos gerados e os investimentos feitos, exigidos pela
lei concessiva do benefício fiscal.
Outro receio relevante que surge com relação a essa autorização do
STF é a de que o Ministério Público ingresse com ações de ressarcimento
ao Erário toda vez que entender que o Estado não está cobrando os
contribuintes como deve, tornando a ACP um sucedâneo de execução
fiscal.
Vale notar ainda peculiaridade que se observa por ocasião do
cumprimento dessas Ações Civis Públicas para cobrança dos tributos
inconstitucionalmente dispensados pelos Estados. A execução da decisão
que declara a invalidade dos TAREs é feita pelo rito do art. 475-J do Código
de Processo Civil, que versa sobre execução de quantia líquida, com
cominação de pena de multa de 10% em caso de ausência de pagamento
em 15 (quinze) dias.
Assim, vejamos: o tributo sequer foi lançado, já que havia norma
EXPRESSA impedindo seu lançamento pela Fazenda Distrital, mas,
segundo o Ministério Público, tal valor é líquido e certo.
E o que é mais grave: o tributo será cobrado corrigido e com juros
de mora e para pagamento em 15 (quinze) dias. Ou seja, um tributo que
não foi recolhido durante anos deve ser recolhido em 15 (quinze) dias, sob
35 ROTHMANN, Gerd Willi. A guerra fiscal dos Estados na (es) ordem tributária e econômica da
federação. In: CARVALHO, Antônio Augusto Silva Pereira de; MARTÍN FERNÁNDEZ, German
Alejandro San. Estudos em homenagem a José Eduardo Monteiro de Barros: Direito Tributário.1.ed.
São Paulo: MP Editora, 2010. p. 347.
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Declaração de Inconstitucionalidade de Benefício Fiscal de ICMS Concedido sem
Prévio Convênio CONFAZ e Consequências Práticas
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pena de multa de 10%. Com a devida vênia, torna-se quase impossível a
empresa conseguir quitar esse débito da forma como cobrado.
Não se pode ainda esquecer que o Código Tributário Nacional
prevê, em seu art. 100, § único:
Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das
convenções internacionais e dos decretos:
I - os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;
II - as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição
administrativa, a que a lei atribua eficácia normativa;
III - as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades
administrativas;
IV - os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios.
Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigo
exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a
atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo. (grifo
nosso)
Ora, se esse é o regramento do CTN para quem obedece normas
inferiores à lei, deve, no mínimo, ser aplicado, por analogia, àqueles que
agiram em estrita observância à lei, sob pena de se instaurar a insegurança
jurídica e a desconfiança generalizada com relação às leis produzidas no
país.
Outro fator a ser considerado é a descaracterização desse tributo
cobrado, já que o ICMS é um imposto sobre o consumo, indireto e
juridicamente reconhecido como repassado ao consumidor, como se
verifica do art. 166 do Código Tributário Nacional. A partir do momento
em que os fatos geradores ocorreram no passado e não há mais como
fazer esse repasse, este tributo deixa de onerar o consumo para onerar o
patrimônio da empresa, sendo, pois, descaracterizado.
Todas as ponderações acima servem, portanto, para impor sérios
questionamentos quanto ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal
no RE 576.155.
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Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira
4 CONCLUSÃO
Pretendeu-se demonstrar, no presente artigo, que a incorporação
ao ordenamento jurídico da regra da declaração de inconstitucionalidade
em controle concentrado e abstrato com efeitos ex tunc, inserida na
Lei 9.868/99, que rege os procedimentos ligados às ações de controle
concentrado e abstrato de constitucionalidade no STF (ADI – Ação Direta de
Inconstitucionalidade e ADC – Ação Declaratória de Constitucionalidade),
decorre primordialmente da adoção pelo ordenamento pátrio de uma
concepção doutrinária sobre a validade das normas.
Restou comprovado que a concepção sobre o que venha a ser
validade das normas jurídicas depende essencialmente da própria visão
do que seja o Direito para quem o analisa.
O ordenamento pátrio brasileiro incorporou como concepção
de validade das normas aquela defendida por Pontes de Miranda, que
entende validade como sinônimo de adequação da norma à Constituição
e que, por isso, só pode ser aferida quando analisada pelo Guardião da
Constituição - o Supremo Tribunal Federal.
Segundo essa corrente, a declaração de inconstitucionalidade
equivale à declaração de nulidade da norma desde sua origem e, com isso,
todos os atos praticados com base na referida lei também são declarados
nulos.
Diante dessa concepção, foi prevista a possibilidade de, em casos
excepcionais, haver modulação dos efeitos da decisão, de acordo com o
art. 27 da Lei 9.868/99, para minimizar os impactos dessa declaração.
O presente trabalho pretendeu, no entanto, demonstrar que, se
houvesse sido adotada por nosso ordenamento jurídico a concepção de
validade de Kelsen, segundo a qual validade significa pertencer ao sistema
jurídico, não haveria necessidade de se debater modulação de efeitos na
declaração de inconstitucionalidade em controle concentrado e abstrato.
Isso porque, a declaração de invalidade da norma só passa a ter efeito e
eficácia a partir de sua declaração, antes disso a norma é válida e eficaz,
razão pela qual os atos com base nela realizados não são eivados de
nulidade.
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Declaração de Inconstitucionalidade de Benefício Fiscal de ICMS Concedido sem
Prévio Convênio CONFAZ e Consequências Práticas
161
Nada obstante, ainda que adotada a concepção de validade de Pontes
de Miranda, consagrada no ordenamento jurídico pátrio na Lei 9.868/99,
pretendeu este trabalho demonstrar que essa regra infraconstitucional não
pode prevalecer diante de seu conflito com princípios constitucionais da
ordem tributária, tais como legalidade, irretroatividade e anterioridade
(arts. 150, I e III, “a” e “b” da Constituição Federal).
Assim, concluiu-se que, como a declaração de inconstitucionalidade
do benefício fiscal de ICMS introduz nova norma jurídica no ordenamento,
o que permitiria, em tese, a cobrança do contribuinte com relação ao
referido crédito, esta não pode ser aplicada de forma retroativa. Deve-se
preservar, portanto, os atos praticados pelos contribuintes com base na lei
concessiva de benefício.
Por fim, foi analisada a recente jurisprudência do STF no RE 576.155,
que permitiu o ajuizamento de Ação Civil Pública para Ressarcimento
ao Erário, pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, para
fins de cobrança dos contribuintes do crédito tributário decorrente do
cancelamento do benefício fiscal de ICMS concedido pelo Distrito Federal
e declarado inconstitucional por ausência de convênio prévio com o
CONFAZ.
A posição adotada por este trabalho é no sentido da total
impossibilidade de cobrança desse tributo por meio de Ação Civil Pública,
por inúmeros obstáculos, tais como; (i) questões processuais: utilização da
ACP como sucedâneo de ADI e ausência de comprovação de prejuízo ao
Erário; (ii) ausência de responsabilidade dos contribuintes com relação à
edição da lei concessiva de benefício fiscal; (iii) ausência de descumprimento
de dever legal pelos contribuintes, que apenas cumpriram a lei; (iv)
impossibilidade de os contribuintes descumprirem a lei enquanto não
declarada inconstitucional e ausência de meios para impugná-la em sede de
ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade); (v) abertura para que a Ação
Civil Pública por Ressarcimento ao Erário seja usada como sucedâneo de
execução fiscal pelo Ministério Público para todos os casos de ausência de
recolhimento de tributo; (vi) consagração do que o Direito Civil costuma
nominar de venire contra factum proprium, já que o Estado se aproveita
dos benefícios de maior arrecadação de tributos, geração de empregos e
desenvolvimento da economia e depois ainda cobra dos contribuintes o
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tributo antes dispensado por lei; (vii) impossibilidade de repasse do ICMS
cobrado posteriormente aos consumidores e descaracterização do ICMS
como imposto sobre o consumo.
Nada obstante, ainda que se admitisse a cobrança do tributo de
forma retroativa, dever-se-ia, no mínimo, utilizar-se, por analogia, a regra
do art. 100, § único do CTN, que dispõe sobre a observância das normas
de (i) atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas; (ii)
decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa,
a que a lei atribua eficácia normativa; (iii) práticas reiteradamente
observadas pelas autoridades administrativas e (iv) convênios que entre si
celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exclui a
imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do
valor monetário da base de cálculo do tributo.
Se esse é o regramento do CTN para quem obedece normas inferiores
à lei, deve, no mínimo, ser utilizado por analogia aqueles que agiram em
estrita observância à lei, sob pena de se instaurar a insegurança jurídica e a
desconfiança generalizada com relação às leis produzidas no país.
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concessão de benefícios no âmbito do ICMS. São Paulo: Noeses, 2012.
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Arguição de Descuprimento de Preceito Fundamental: Parâmetro, Objeto e
Subsidiariedade
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ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL: PARÂMETRO, OBJETO E
SUBSIDIARIEDADE
Rafael Carvalho de Fassio1
RESUMO: Este artigo pretende discutir alguns aspectos controversos
acerca da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a
“ADPF” – uma das mais recentes e incertas ações judiciais inseridas no
contexto do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. Para
tanto, este estudo enfoca três dos seus conceitos principais: “preceito
fundamental”, “ato do Poder Público” e “outro meio eficaz”, noções que
estão em constante evolução na doutrina e na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal. Nem mesmo o advento da Lei Federal nº 9.882, em 03 de
dezembro de 1999, foi capaz de sanear as diversas dúvidas suscitadas pela
Constituição de 1988 acerca do instituto, motivo pelo qual a ADPF, tanto
tempo depois da sua criação, segue permeada de incerteza.
Palavras-chave: Direito. Constitucional. controle de constitucionalidade.
preceito fundamental. ato do Poder Público.
CLAIM OF NON-COMPLIANCE WITH A
FUNDAMENTAL PRECEPT: PARAMETER, OBJECT AND
SUBSIDIARITY
ABSTRACT: This paper discusses some highly controversial issues
regarding the “Claim of Non-compliance with a Fundamental Precept”
(“Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental”) or “ADPF” –
one of the newest and most uncertain actions in the framework of Brazilian
system of judicial review. To do so, the study sheds light on three main
concepts: “fundamental precept”, “government act” and “other effective
measure”, which are still being shaped by numerous precedents set forth
by the Supreme Court of Brazil. We argue that not even the enactment of
Federal Law no. 9,882, in 1999, made clear which uses the ADPF is suitable
for, deeming it not only to a doubtful present, but also to an uncertain future.
Keywords: Constitutional law. Judicial review. Fundamental precept.
Government act.
1
Graduado em Direito e Mestrando em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo. Procurador do Estado de São Paulo.
RECEBIDO EM: 30/06/2015
ACEITO EM: 18/08/2015
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Rafael Carvalho de Fassio
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo dedica-se à análise de três aspectos envolvendo
a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (“ADPF”):
o parâmetro de controle, seu objeto e o chamado “princípio” da
subsidiariedade. Cada qual se relaciona, respectivamente, com um conceito
aberto e indeterminado: as noções de “preceito fundamental”, “ato do
Poder Público” e “outro meio eficaz”. O tema, extremamente controverso
na doutrina e na jurisprudência, deve sua relevância à norma do artigo
102, parágrafo único, da redação original da Constituição de 1988, que,
em redação vaga e imprecisa, instituiu no ordenamento brasileiro uma
medida processual sem paralelo no direito estrangeiro2, voltada à tutela
dos “preceitos fundamentais” presentes na Lei Maior.
Para Dimoulis (2005), a arguição é um “instituto que não deu certo”,
cujo advento “não mudou praticamente nada no mundo jurídico” 3. E,
segundo o citado autor, esse quadro não pode ser alterado sem profundas
mudanças na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e, também, na
própria lei que regulamenta o instituto. De fato, a ADPF é um instituto
completamente indefinido: a Constituição não traz nem mesmo o seu
objeto. Após inserir o julgamento da arguição entre as competências do
Supremo Tribunal Federal, a Lei Maior faz vaga referência ao parâmetro
de controle, introduzindo o conceito indeterminado de “preceito
fundamental”. A edição da Lei Federal nº 9.882, de 03 de dezembro de
1999, também não pôs fim às dúvidas acerca do controverso instituto.
Pelo contrário: introduziu, já em seu artigo 1º, a vaga noção de “ato do
Poder Público” para delimitar o objeto da ADPF, ao mesmo tempo em
que, em norma de constitucionalidade duvidosa, trouxe, no §1º do seu
artigo 4º, a regra da subsidiariedade, segundo a qual a arguição não será
cabível quando houver “outro meio eficaz” de sanar a lesão ao preceito
fundamental violado.
2
Cruz corretamente aponta algumas semelhanças entre a ADPF brasileira, o recurso de amparo
espanhol e o recurso constitucional alemão. As diferenças, contudo, são marcantes e não permitem
dizer que a arguição encontre similar em outros ordenamentos jurídicos. Por exemplo, o autor destaca
que ambos os institutos, no direito estrangeiro, “são manejados diante de um caso concreto, sendo
instrumentos de um controle concreto de constitucionalidade”, ao passo que a ADPF, no Brasil, é ação
do controle abstrato. CRUZ, Gabriel Dias Marques da. Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental: Lineamentos básicos e revisão crítica no direito constitucional brasileiro. São Paulo:
Malheiros, 2011, p. 68.
3 DIMOULIS, Dimitri. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: problemas de
concretização e limitação. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 832, p. 11, fev., 2005, p. 11. Ambos os
trechos.
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Arguição de Descuprimento de Preceito Fundamental: Parâmetro, Objeto e
Subsidiariedade
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Rica em controvérsias, mas pobre em soluções, a ADPF ainda é
um instituto em construção pela doutrina e pela jurisprudência 4. Assim,
cientes dessa incerteza, iniciamos o presente estudo situando a ADPF no
contexto do controle de constitucionalidade abstrato, segundo os atuais
contornos dados ao sistema brasileiro pela Constituição de 1988 e, também,
pelas Emendas Constitucionais nº 3, de 17 de março de 1993, e nº 45, de
8 de dezembro de 2004. Depois, com profundo lastro na jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal, discutiremos o que a Corte tem entendido
como “preceito fundamental” e “ato do Poder Público”, a fim de definir,
respectivamente, o parâmetro de controle e o objeto da arguição. Em
seguida, tecemos uma breve crítica à regra da subsidiariedade, tal como
prevista na Lei Federal nº 9.882/1999, expondo, por derradeiro, as nossas
conclusões e observações finais.
2 A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL NO SISTEMA BRASILEIRO DE CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE
Tornou-se lugar comum no Direito Constitucional identificar dois
grandes sistemas de controle jurisdicional de constitucionalidade: o
estadunidense, desenvolvido a partir dos escritos clássicos de Hamilton e
Marshall5, e o europeu continental, que se lastreia, em grande medida, no
pensamento de Kelsen6. O processo histórico de formação de cada um
desses modelos não constitui objeto deste estudo. Nosso intento, nestas
linhas, é bem mais modesto: situar a ADPF no contexto do sistema brasileiro.
Para tanto, os esforços de sistematização da doutrina nos permitirão tratar
cada sistema, sob o ponto de vista teórico, como dois “tipos ideais”, cujas
principais características podem ser agrupadas em dois modelos distintos.
Nesse sentido, adotamos quatro critérios de classificação. O
primeiro consiste no número de órgãos jurisdicionais que podem
apreciar e julgar a questão de constitucionalidade, ou seja, reconhecer
a incompatibilidade material ou formal da norma comparada com
seu parâmetro constitucional. Assim, o sistema será concentrado se tal
prerrogativa for atribuída apenas a um único órgão (como um Tribunal
ou Corte Constitucional, por exemplo), ou difuso se dois ou mais puderem
4
“DIMOULIS, op. cit., p. 31-35 ”
5
Confiram-se, por exemplo, os escritos de Alexander Hamilton, ver: MADISON, James; JAY, John. The
Federalist Papers. London: Penguin Books, 1987. 528 p.; e ao voto de John Marshall no célebre caso
Marbury vs. Madison, U.S., 1803.
6
Kelsen (2003) inclusive... Áustria, de 1920. ”. Substituir referência por: “KELSEN, Hans. Jurisdição
Constitucional: São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 130-186.”
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exercê-la. O segundo critério diferencia os sistemas com base na posição
que a questão de constitucionalidade ocupa no processo de controle. No
controle concreto, ou incidental, a (in)constitucionalidade da norma é um
argumento que integra a causa de pedir da demanda movida pelo autor.
No abstrato, a compatibilidade da norma com a Constituição constitui o
próprio pedido, motivo pelo qual é analisada, no processo, em caráter
principal. O terceiro critério – intimamente ligado ao segundo – diz respeito
aos limites subjetivos da decisão proferida em sede de controle. Por isso, na
modalidade concreta ou incidental, a decisão normalmente produz efeitos
inter partes, ao passo que, no controle abstrato ou principal, a eficácia erga
omnes vincula mesmo aqueles que não integraram o processo objetivo. Por
fim, o quarto e último critério classificatório analisa a natureza da sanção
cominada pelo ordenamento jurídico ao vício de inconstitucionalidade.
Aqui, a sanção poderá consistir tanto em uma declaração de nulidade da
norma impugnada como, ainda, na sua desconstituição, em consequência
da anulabilidade. Em ambos os casos, note-se bem, a norma inconstitucional
é inválida. Todavia, no primeiro, a declaração opera com efeitos ex tunc,
desde a edição do ato, ao passo que, no segundo, a invalidade o atinge
apenas após sua anulação, com efeitos ex nunc, portanto.
Nesse sentido, pode-se dizer que o sistema-tipo estadunidense é
difuso, incidental, tem decisões com eficácia inter partes, adota a nulidade
como sanção. Noutro giro, o sistema-tipo europeu continental é
concentrado e principal, o que acarreta decisões com eficácia erga omnes e
também a adoção da sanção de anulabilidade. Não há, na prática, nenhum
ordenamento que adote integralmente essas características. Contudo,
essa simplificação teórica é útil para explicar a evolução do controle de
constitucionalidade no Brasil, que, sob a influência de Rui Barbosa7, adotou
o modelo estadunidense na Constituição de 1891 e, desde então, tem
incorporado características do modelo europeu continental. O advento da
ADPF insere-se nesse processo.
Ramos, em trabalho recente, identifica uma vis attractiva entre os
dois sistemas clássicos de controle8. Segundo esse autor, há uma crescente
interpenetração entre os ordenamentos de matriz europeia e de matriz
estadunidense que, ao longo de sua evolução, perfilharam algumas
características do sistema oposto, enfraquecendo a dicotomia outrora
existente. Essa aproximação, contudo, não logrou gerar um terceiro modelo,
7 “Barbosa (2003) sintetiza com maestria...”. Substituir referência por: “BARBOSA, Rui. Atos
Inconstitucionais. Campinas: Russell, 2003. p. 97-102.”
8
“RAMOS, Elival da Silva. Controle de Constitucionalidade no Brasil: perspectivas de evolução. São
Paulo: Saraiva: 2010, p. 167-176. ”
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Arguição de Descuprimento de Preceito Fundamental: Parâmetro, Objeto e
Subsidiariedade
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ou, como se convencionou chamar, um “sistema misto”. Isso porque, na
visão do autor, os ditos sistemas mistos “(...) não passam de variantes de um
dos dois grandes sistemas-padrão de natureza jurisdicional-repressiva”9.
É este o caso do sistema português – que, na Constituição de 1976, uniu o
controle difuso e concreto (adotado desde a Carta de 1911) à criação de um
Tribunal Constitucional com competência para realizar o controle abstrato
e principal – e, também, do próprio sistema brasileiro, como se verá.
A respeito, para Bandeira de Mello, a primeira aproximação entre
os dois sistemas-tipos de controle deu-se no artigo 12, §2º, da Constituição
de 1934 com a criação da representação interventiva, proposta pelo
Procurador-Geral da República para assegurar a observância dos
princípios constitucionais sensíveis (hoje, previstos no art. 34, VII, da Lei
Maior) sempre que um ato normativo estadual os violasse10. Entretanto,
a Emenda Constitucional nº 16, de 26 de novembro de 1965, operou
uma aproximação muito mais intensa do sistema brasileiro com o
modelo europeu. Tal emenda, ainda sob a égide da Constituição de 1946,
introduziu a Representação de Inconstitucionalidade, inaugurando, entre
nós, o controle principal e abstrato11. De início, essa Representação era de
competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, sendo o ProcuradorGeral da República – à época, representante da União – o único legitimado
para a sua propositura.
Com a Constituição de 1988, como afirma Barroso, “(...) foi
suprimido o monopólio até então desfrutado pelo Procurador-Geral da
República, com a ampliação expressiva do elenco de legitimados ativos
para a propositura da ação direta, nos nove incisos do art. 103” 12. Além da
legitimidade ativa, a nova Lei Maior manteve a representação interventiva
(artigo 36, inciso III) e transformou a antiga Representação na atual Ação
Direta de Inconstitucionalidade genérica (“ADI”), com objeto circunscrito
às leis e atos normativos federais e estaduais, nos termos do seu artigo 102,
I, “a”. No mesmo artigo 102, no então parágrafo único, o constituinte criou
a ADPF. A Emenda Constitucional n. 3/1993 – a mesma que introduziu
no ordenamento brasileiro a Ação Declaratória de Constitucionalidade
(“ADC”), cabível apenas em face de ato normativo federal – converteu o
9
“RAMOS, op. cit., p. 169”.
10 “MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. A teoria das constituições rígidas. 2. ed. São Paulo: José
Butchasky Editor, 1980. p. 170-171. ”
11 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 197-215. ”
12 “BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 2004. p. 182-183.”
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dispositivo no atual parágrafo primeiro, segundo o qual “a arguição de
descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição,
será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”.
O laconismo do constituinte ao disciplinar o instituto não deixou
claro qual seria o objeto da arguição nem o alcance do dispositivo.
Entretanto, a expressa menção à futura complementação legislativa (“na
forma da lei”), fez com que o Supremo Tribunal Federal qualificasse o
artigo 102, §1º, como norma de eficácia limitada13. Assim, a Corte indeferiu
a inicial de todas as arguições propostas antes da Lei Federal nº 9.882/1999,
entendendo que o dispositivo constitucional não poderia ser aplicado na
ausência da lei regulamentadora14.
Nesses termos, após mais de uma década de completa inefetividade,
a ADPF veio a ser disciplinada pela Lei Federal nº 9.882/1999, a partir
de anteprojeto elaborado pela comissão de juristas presidida por Celso
Ribeiro Bastos e integrada por Gilmar Ferreira Mendes, Arnoldo Wald,
Ives Gandra Martins e Oscar Dias Corrêa. De fato, e muito embora não
tenha resolvido as várias dúvidas suscitadas sobre o instituto, o diploma
permitiu delinear. com contornos um pouco mais precisos. as características
da arguição inserida em 1988 pelo vigente texto constitucional.
No que diz respeito ao cabimento, por exemplo, o artigo 1º
da Lei Federal nº 9.882/1999 restringiu o manejo da ADPF às lesões
decorrentes de “ato do Poder Público”, excluindo, assim, o emprego
da arguição para questionar atos praticados por particulares. Afinal, a
ideia de “descumprimento” é bastante ampla, podendo abranger, prima
facie, todos os atos lesivos a preceito fundamental, independentemente
do sujeito que os pratica. Ademais, o artigo 1º, parágrafo único, inciso I
deixou assentado o cabimento da ADPF em face de leis e atos normativos
municipais – os quais, vale lembrar, não podem ser objeto de ADI nem
de ADC, nos termos do art. 102, I, “a” da Lei Maior – e, também, de atos
anteriores à Constituição. Quanto a estes, cabe ressaltar que não se sujeitam
a uma análise de inconstitucionalidade, propriamente dita, mas apenas a
um juízo de recepção ou não recepção no qual se examina o conteúdo da
13 Segundo a teoria da aplicabilidade das normas constitucionais, tal como elaborada por José Silva, a
norma do art. 102, §1º poderia ser classificada, até o advento da Lei Federal nº 9.882/1999, como norma
de eficácia contida, ou seja, normas que tem aplicabilidade direta e imediata, produzindo efeitos a
partir da entrada em vigor da Constituição, mas possivelmente não integral, já que podem ter a sua
abrangência restringida pela legislação infraconstitucional. “SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade
das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 103-116. ”
14 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PET-AgR 1140, j. 31/05/1996.
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Arguição de Descuprimento de Preceito Fundamental: Parâmetro, Objeto e
Subsidiariedade
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norma para verificar sua adequação substancial ao ordenamento vigente15.
A inconstitucionalidade, assim, é um vício congênito: não faz sentido
aferi-la em relação a atos normativos editados anteriormente ao próprio
parâmetro de controle.
Segundo Mendes, a tão esperada regulamentação da ADPF poderia
causar profundas alterações no sistema brasileiro de constitucionalidade16:
Em primeiro lugar, porque permite a antecipação de decisões sobre
controvérsias constitucionais relevantes, evitando que elas venham a ter
um desfecho definitivo após longos anos, quando muitas situações já
se consolidaram ao arrepio da “interpretação autêntica” do Supremo
Tribunal Federal.
Em segundo lugar, porque poderá ser utilizado para - de forma
definitiva e com eficácia geral - solver controvérsia relevante sobre a
legitimidade do direito ordinário pré-constitucional em face da nova
Constituição que, até o momento, somente poderia ser veiculada
mediante a utilização do recurso extraordinário.
Em terceiro, porque as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal nesses processos, haja vista a eficácia erga omnes e o
efeito vinculante, fornecerão a diretriz segura para o juízo sobre a
legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico, editados
pelas diversas entidades municipais. A solução oferecida pela nova
lei é superior a uma outra alternativa oferecida, que consistiria no
reconhecimento da competência dos Tribunais de Justiça para apreciar,
em ação direta de inconstitucionalidade, a legitimidade de leis ou
atos normativos municipais em face da Constituição Federal. Além de
ensejar múltiplas e variadas interpretações, essa solução acabaria por
agravar a crise do Supremo Tribunal Federal, com a multiplicação de
recursos extraordinários interpostos contra as decisões proferidas pelas
diferentes Cortes estaduais.
O excerto acima, publicado em 1999, ilustra com clareza o que se
esperava da lei regulamentadora e, principalmente, do próprio instituto.
Mas os resultados, como já foi dito, não corresponderam às expectativas
do autor do anteprojeto. Em 27 de junho de 2000, o Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou a ADI nº 2231 para questionar a
15 A recepção ignora aspectos formais para considerar apenas o conteúdo da norma. Por esse motivo
é que foram recebidos pela Constituição de 1988 numerosos Decretos-Leis – espécie legislativa hoje
inexistente – como, por exemplo, o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940) e
a Consolidação das Leis do Trabalho (aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 01 de maio de 1943).
16 “MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (I) (§ 1o do Art.
102 da Constituição Federal). Revista jurídica virtual, Brasília, v. 1, n. 7, dez. 1999. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_07/arguicao.htm>. Acesso em: 23 set. 2015. ”
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constitucionalidade da Lei Federal nº 9.882/199917. Tal ADI, até o presente
momento, não teve seu mérito apreciado pela Corte. Mas a pendência de
julgamento definitivo sobre o tema não impediu o ajuizamento de novas
arguições. Tanto que, nos autos da ADPF nº 33, o Supremo Tribunal Federal
decidiu que a “existência de ADI contra a Lei nº 9.882/99 não constitui
óbice à continuidade do julgamento de arguição de descumprimento de
preceito fundamental ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal”18.
Hoje, já são 162 julgadas em definitivo19.
3 PARÂMETRO DA ADPF: O “PRECEITO FUNDAMENTAL” NA
JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O parâmetro de controle na ADPF é a norma constitucional
qualificada como “preceito fundamental”. Esta afirmação é praticamente
incontroversa. Contudo, uma análise mais profunda dessa assertiva
pode suscitar um debate importante sobre a unidade da Constituição e,
também, sobre a existência de uma hierarquia entre normas constitucionais
originárias. O fato de existir no ordenamento jurídico brasileiro uma
ação específica (a ADPF) para tutelar a violação de um grupo igualmente
específico de normas da Constituição (os “preceitos fundamentais”)
confirma essa tese. Ou seja, em outras palavras, a violação de um “preceito
fundamental” seria mais grave do que a violação de outras normas da
mesma Lei Maior. Dimoulis20 sintetiza esse argumento de modo bastante
esclarecedor:
Temos um problema de política constitucional. Considerando
merecedores de tutela mediante ADPF somente os preceitos
fundamentais, o constituinte desqualificou certas normas da própria
Constituição, cujo descumprimento não incomodaria a ponto de
autorizar a ADPF. Esta surpreendente manifestação de automenosprezo,
contestando (ainda que indiretamente) a igual dignidade e força
normativa dos dispositivos constitucionais permaneceu vaga, já que
o constituinte não quis especificar quais elementos normativos são
fundamentais.
17 Foi concedida medida liminar, em 05 de dezembro de 2001, para excluir do artigo 1º, parágrafo único,
inciso I, da Lei Federal nº 9.882/1999, as controvérsias constitucionais concretamente já postas em
juízo, bem como para suspender em sua totalidade o disposto no art. 5º, §3º do mesmo diploma legal.
18 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 33, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 07/12/2005.
19 “SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Estatísticas do STF: Processos: protocolados, distribuídos e
julgados por classe processual – a partir de 1990. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/
verTexto.asp?pagina=pesquisaClasse&servico=estatistica>. Acesso em: 25 jun. 2015. ”
20 “DIMOULIS, op. cit., p. 18”
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 165 - 184, jan./jun., 2015.
Arguição de Descuprimento de Preceito Fundamental: Parâmetro, Objeto e
Subsidiariedade
173
Essa perplexidade teórica é solucionada de modo pouco satisfatório
pela doutrina, que – considerando “preceito fundamental” como “toda
norma constitucional (...) que serve de fundamento básico de conformação
e preservação da ordem jurídica e política do Estado”21- parece inclinar-se
para o reconhecimento de uma hierarquia axiológica de algumas normas
constitucionais em relação a outras22. Contudo, acolher essa ideia implica
também em admitir que essa hierarquia de valores é essencialmente fluida,
sendo possível que se altere – assim como se modifica, com o tempo, a
compreensão dos intérpretes acerca da Constituição – a própria definição
acerca de quais normas poderiam ser qualificadas, em determinado
momento histórico, como “preceitos fundamentais”.
A constatação de que a ADPF daria ensejo ao reconhecimento de
normas constitucionais mais importantes do que outras suscita novamente
o célebre debate travado na Alemanha entre Hans Kelsen e Carl Schmitt,
no início do século XX, sobre os conceitos de constituição formal e material.
Schmitt toma a distinção entre Constituição e lei constitucional
como premissa23. Sob essa ótica, integram a Constituição somente as
matérias que digam respeito à decisão política fundamental sobre a
forma e a espécie da unidade política de um povo, tais como forma de
Estado, sistema de governo e proteção a direitos fundamentais. Todas
as disposições que não implementem a decisão política fundamental são
apenas leis constitucionais, não integrando a Constituição24.
A visão de Kelsen é bem diferente25. Para ele, compreendendo
Estado e Constituição como uma unidade no ordenamento jurídico, a
Constituição em sentido material corresponde ao conjunto de normas
sobre a produção do Direito, isto é, aquelas que estabelecem competências
21 “CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. In: DIDIER
JUNIOR, Fredie (Org.) Ações constitucionais. 4. ed. Salvador: JusPODIVM, 2009. p. 501.”
22 CUNHA JÚNIOR, op. cit., p. 488-503.
23 SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución. Prólogo de Manuel García-Pelayo. Traduzido para o espanhol
por Francisco Ayala. Madrid: Alianza, 1982. pp. 205 e ss.
24 O clássico exemplo de norma não materialmente constitucional na vigente Constituição brasileira
seria o seu artigo 242, §2º, que mantém a titularidade da União sobre o colégio Pedro II: “§ 2º - O
Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal”.
25 “KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2000. p. 299 et seq. [...] KELSEN, Hans. Teoria general del estado. Barcelona: Labor,
1934. p. 21-27; p. 93-100; p. 133-150.”
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e disciplinam procedimentos para a elaboração de normas jurídicas.
Para Kelsen, a Constituição é norma, um dever-ser puro dissociado de
qualquer fundamento sociológico, político ou filosófico. Assim, Kelsen
compreende a Constituição sob duplo aspecto. No sentido jurídicopositivo, a Constituição é a norma hierarquicamente mais elevada, o topo
da hierarquia das normas jurídicas do ordenamento. É a norma do ápice
da pirâmide, às quais todas as demais devem conformidade. Em sentido
lógico-jurídico, a Constituição é a norma hipotética fundamental, uma
norma que não é posta, mas sim pressuposta como exigência lógica e
hipotética que fundamenta todo o direito positivo.
Assim, com base no pensamento de Kelsen, desenvolveu-se o
corolário de que todas as normas constitucionais possuem idêntica
hierarquia, porquanto formalmente enunciadas no mesmo documento (a
Constituição em sentido jurídico-positivo). Nesse sentido, seria possível
dizer que a introdução da ADPF no ordenamento jurídico brasileiro
flexibilizou esse postulado kelseniano, aproximando os “preceitos
fundamentais” da noção de constituição material proposta por Schmitt.
Entretanto, essa tímida aproximação não cria diferenças de hierarquia nem
significa, como defendia Schmitt, que as demais normas (os “preceitos não
fundamentais”) possam ser vistas como meras “leis constitucionais”. A
diferença é que, após o advento da ADPF, o descumprimento de “preceitos
fundamentais” passou a ser merecedor de uma tutela jurídica específica e
especial, paralela aos mecanismos de controle de constitucionalidade já
existentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Contudo, inexiste definição – nem no plano constitucional, nem
no plano legislativo – acerca do que poderia ser considerado “preceito
fundamental”. Assim, logo na ADPF nº 1, o Supremo Tribunal Federal
arrogou para si essa tarefa, definindo casuisticamente quais normas
constitucionais poderiam servir de parâmetro para a ADPF26. A rigor,
saber se a norma invocada como parâmetro qualifica-se ou não como
“preceito fundamental” é uma questão prejudicial ao conhecimento
da própria arguição – o que, ao menos em tese, obrigaria a Corte a
analisar preliminarmente, em cada ADPF proposta, se tal requisito foi
suficientemente demonstrado pelo requerente. Com efeito, a jurisprudência
26 “Compete ao Supremo Tribunal Federal o juízo acerca do que se há de compreender, no sistema
constitucional brasileiro, como preceito fundamental. (...) Necessidade de o requerente apontar a lesão
ou ameaça de ofensa a preceito fundamental, e este, efetivamente, ser reconhecido como tal, pelo
Supremo Tribunal Federal”. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF-QO 1, j. 03/02/2002.
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Arguição de Descuprimento de Preceito Fundamental: Parâmetro, Objeto e
Subsidiariedade
175
do Tribunal tem revelado alguns “pontos pacíficos”27, que servem como
balizas para delimitar o parâmetro da arguição. Cunha Júnior realizou um
completo estudo sobre o tema, sintetizando os “preceitos fundamentais”
reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal da seguinte maneira28:
1) Os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil,
consubstanciados principalmente nos seus fundamentos e objetivos (artigos
1º a 4º).
2) Os direitos e garantias fundamentais – sejam aqueles individuais,
coletivos, sociais e políticos – presentes no Título II da Constituição.
3) As cláusulas pétreas (artigo 60, §4º), já que seria razoável pressupor que as
matérias que constituem limites ao poder derivado reformador, impedindo
inclusive a apresentação de emendas à Constituição, qualificam-se também
como “preceitos fundamentais” para fins de ADPF.
4) Os princípios constitucionais sensíveis (artigo 34, VIII), já que sua violação
daria ensejo, excepcionalmente, à intervenção federal.
5) Normas de organização política do Estado (Título III).
6) Normas de organização dos próprios poderes (Título IV), em que inserem
as normas relativas ao processo legislativo; e, por fim,
7) Princípios da ordem econômica (artigo 170)29.
Mas quais seriam, na jurisprudência, os “preceitos não fundamentais”
da Constituição? Interessante, nesse ponto, a crítica formulada por
Dimoulis30. Segundo tal autor, a Corte hesitaria em não conhecer uma
arguição por considerar que a norma constitucional invocada como
parâmetro não seria um “preceito fundamental”. Assim, para Dimoulis,
é politicamente improvável que a jurisprudência do Tribunal venha a
desqualificar diversas normas constitucionais, relegando-as ao conjunto
de “preceitos não fundamentais” da Constituição da República. Isso
leva a crer que os questionamentos suscitados pelo parâmetro da ADPF
ficarão confinados a um plano essencialmente teórico, já que, na prática,
27 “5. Preceito Fundamental: parâmetro de controle a indicar os preceitos fundamentais passíveis de
lesão que justifiquem o processo e o julgamento da arguição de descumprimento. Direitos e garantias
individuais, cláusulas pétreas, princípios sensíveis: sua interpretação, vinculação com outros
princípios e garantia de eternidade. Densidade normativa ou significado específico dos princípios
fundamentais.” SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF-MC 33, j. 29/10/2003.
28 “CUNHA JÚNIOR, op. cit., p. 502-503.
29 Estes princípios, segundo Dimoulis, também qualificam-se como preceitos fundamentais, motivo pelo
qual os acrescentamos à lista. ”, por: “DIMOULIS, op. cit., p. 16. ”
30 DIMOULIS, op. cit., p. 17-18.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 165 - 184, jan./jun., 2015.
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Rafael Carvalho de Fassio
o Supremo Tribunal Federal tem conferido a qualidade de “preceito
fundamental” indistintamente à generalidade das normas constitucionais.
4 OBJETO DA ADPF: “ATO DO PODER PÚBLICO”
Segundo o artigo 1º da Lei Federal nº 9.882/1999, a arguição terá por
objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de “ato
do Poder Público”. Assim, à diferença da ADI e da ADC – que, nos termos
do artigo 102, I, “a” da Constituição da República tem objeto circunscrito
às leis e demais atos normativos – a ADPF permite o controle de qualquer
ato ou omissão do Poder Público, seja normativo ou não normativo,
anterior ou posterior à Constituição, federal, estadual ou municipal, e
proveniente de qualquer órgão ou entidade do Legislativo, Executivo ou
Judiciário. Enumeramos a seguir uma série de atos que, segundo a doutrina
majoritária31 e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, podem ser
impugnados por meio de ADPF:
1) Atos normativos municipais: o cabimento da arguição para
o controle abstrato de atos normativos municipais representou
inovação no controle de constitucionalidade brasileiro, já que estes
atos não poderiam ser objeto nem de ADI nem de ADC perante o
Supremo Tribunal Federal32.
2) Atos normativos anteriores à Constituição: a compatibilidade
da legislação pré-constitucional com o texto da nova Constituição
pode ser objeto de ADPF, nos termos do artigo 1°, parágrafo único,
da Lei Federal n° 9.882/1999. Foi esse, por exemplo, o caso da
ADPF nº 130, proposta perante o Supremo Tribunal Federal para
questionar a recepção da Lei de Imprensa (Lei Federal nº 5250/67)
pela ordem constitucional vigente. Por maioria, a Corte entendeu
que a norma não foi recepcionada e, ainda, deixou assentado que “a
ADPF, fórmula processual subsidiária do controle concentrado de
constitucionalidade, é via adequada à impugnação de norma préconstitucional”33.
31 “CUNHA JÚNIOR, op. cit., p. 517-526. ”
32 Entretanto, os atos municipais podem ser impugnados no controle difuso, incidental e concreto, por
meio de Recurso Extraordinário, e ainda, na via principal e abstrata, perante o Tribunal de Justiça do
Estado, nos termos do artigo 125, §4º da Constituição Federal.
33 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 130, Rel. Min. Carlos Britto, j. 30/04/2009. Veja-se também:
ADPF 47, Rel. Min. Eros Grau, j. 12/12/2007.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 165 - 184, jan./jun., 2015.
Arguição de Descuprimento de Preceito Fundamental: Parâmetro, Objeto e
Subsidiariedade
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3) Atos praticados por particulares no exercício da função pública:
a exemplo do que ocorre no Mandado de Segurança, alguns atos
praticados por particulares no exercício de função pública – como
concessionárias e permissionárias de serviço público – podem
equiparar-se a “atos do Poder Público” para fins de ADPF.
4) Omissão do legislador: porquanto a Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão (“ADO”) e o Mandado de
Injunção (“MI”), conforme o caso, podem não ser instrumentos
eficazes para suprir a omissão que se pretende impugnar. Foi esse o
caso da ADPF nº 4, admitida pela Corte para questionar a omissão
da Presidência da República em fixar valor suficiente para cumprir
as finalidades constitucionais do salário mínimo34.
Noutro giro, elencamos a seguir alguns exemplos de atos em face
dos quais o Supremo Tribunal Federal já rejeitou a propositura da ADPF
por não se enquadrarem, sob sua ótica, no conceito legal de “ato do Poder
Público”:
1) Projetos de lei ou propostas de emenda: os artigos 1º, parágrafo
único, inciso I; 5°, § 4°; e 9° da Lei Federal nº 9.882/1999 traziam a
possibilidade de que a ADPF fosse utilizada para a instauração de um
controle jurisdicional preventivo em meio ao processo legislativo.
Contudo, à época, esses dispositivos foram vetados pela Presidência
da República sob o argumento de que tal expediente violaria a
separação de poderes, dando azo a uma indevida interferência
do Judiciário em questões interna corporis do Legislativo35. Dessa
maneira, a doutrina tem entendido que a constitucionalidade ou
a inconstitucionalidade de projetos de lei ou propostas de emenda
à Constituição não podem ser objeto da arguição. Não foi outro o
entendimento do Supremo Tribunal Federal no Agravo Regimental
à ADPF nº 43, ao afirmar que “a proposta de emenda à constituição
não se insere na condição de ato do poder público pronto e acabado,
porque ainda não ultimado o seu ciclo de formação”36.
2) Súmulas do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores:
no Agravo Regimental à ADPF nº 80, a Corte entendeu que a
súmula “não consubstancia ato do Poder Público”, mas apenas “a
34 ADPF 4 MC, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 02/08/2006
35 As razões dos vetos a dispositivos da Lei Federal nº 9.882/1999 podem ser consultadas em: http://
www.planalto.gov.br/ ccivil_03 /Leis/ Mensagem/Veto/ 1999/Mv1807-99.htm. Acesso em: 26/06/2015.
36 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF-AgR n. 43, Min. Carlos Ayres Britto, j. 20/11/2003.
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Rafael Carvalho de Fassio
expressão de entendimentos reiterados” da Corte37, sendo, portanto,
inadmissível a ADPF para impugná-la.
3) Súmulas Vinculantes: segundo o entendimento do Supremo
Tribunal Federal, “(...) a arguição de descumprimento de preceito
fundamental não é a via adequada para se obter a interpretação,
a revisão ou o cancelamento de súmula vinculante”38, Isso porque,
existe um procedimento próprio para a revisão e cancelamento
de súmulas vinculantes, tal como previsto na Lei Federal nº
11.417/2006, afastando o cabimento da ADPF com base na regra da
subsidiariedade.
4) Veto e atos políticos: em questão de ordem suscitada já na
ADPF nº 1, o Supremo Tribunal Federal deixou assentado, de modo
expresso, que o veto não constitui ato do Poder Público e, por isso, não
poderia ser objeto da arguição39. É possível que esse entendimento
seja estendido aos “atos políticos”, em geral, ou ainda aos atos
puramente discricionários, praticados por motivos de conveniência
e oportunidade e que, por isso, escapam ao controle jurisdicional.
Poderia ser o caso, por exemplo, de matérias sujeitas à deliberação
exclusiva do Congresso Nacional (artigo 49), da decretação de estado
de defesa (artigo 136) ou estado de sítio (artigo 137) e, também, da
decisão sobre a admissibilidade do processo de impeachment contra
Presidente da República, assim como o seu julgamento pelo Senado
Federal (artigo 52, inciso I, todos da Constituição Federal).
5) Leis ou atos normativos revogados: muito embora a revogação
do ato impugnado acarrete a perda superveniente do objeto da ADI,
por ausência de lesividade para o ordenamento jurídico, o Supremo
Tribunal Federal já chegou a admitir a propositura de ADPF para
questionar a compatibilidade desses atos com o texto constitucional.
Isso porque, mesmo revogados, podem continuar disciplinando
as relações jurídicas constituídas sob sua vigência. Foi o caso da
ADPF nº 33, cuja ementa transcreve-se, em parte, para ilustrar essa
hipótese de cabimento40:
37 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF-AgR 80, j. em 12/06/2006.
38
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 147 AgR, Relator Min. Cármen Lúcia, julgado em
24/03/2011.
39 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF-QO 1, 03/02/2000. Registre-se, contudo, que em decisão
monocrática na ADPF 45 em 29/04/2004 o Min. Celso de Mello admitiu a possibilidade da ADPF em
face de veto.
40 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 33, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 07/12/2005.
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Arguição de Descuprimento de Preceito Fundamental: Parâmetro, Objeto e
Subsidiariedade
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1. Arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada
com o objetivo de impugnar o art. 34 do Regulamento de Pessoal do
Instituto de Desenvolvimento Econômico-Social do Pará (IDESP), sob
o fundamento de ofensa ao princípio federativo, no que diz respeito à
autonomia dos Estados e Municípios (art. 60, §4o , CF/88) e à vedação
constitucional de vinculação do salário mínimo para qualquer fim (art.
7º, IV, CF/88).
(...)
5. Cabimento da arguição de descumprimento de preceito fundamental
(sob o prisma do art. 3º, V, da Lei nº 9.882/99) em virtude da existência
de inúmeras decisões do Tribunal de Justiça do Pará em sentido
manifestamente oposto à jurisprudência pacificada desta Corte quanto
à vinculação de salários a múltiplos do salário mínimo.
6. Cabimento de arguição de descumprimento de preceito fundamental
para solver controvérsia sobre legitimidade de lei ou ato normativo
federal, estadual ou municipal, inclusive anterior à Constituição (norma
pré-constitucional).
(...)
10. Revogação da lei ou ato normativo não impede o exame da matéria
em sede de ADPF, porque o que se postula nessa ação é a declaração de
ilegitimidade ou de não recepção da norma pela ordem constitucional
superveniente.
11. Eventual cogitação sobre a inconstitucionalidade da norma
impugnada em face da Constituição anterior, sob cujo império ela
foi editada, não constitui óbice ao conhecimento da arguição de
descumprimento de preceito fundamental, uma vez que nessa ação o
que se persegue é a verificação da compatibilidade, ou não, da norma
pré-constitucional com a ordem constitucional superveniente.
12. Caracterizada controvérsia relevante sobre a legitimidade do Decreto
Estadual nº 4.307/86, que aprovou o Regulamento de Pessoal do IDESP
(Resolução do Conselho Administrativo nº 8/86), ambos anteriores à
Constituição, em face de preceitos fundamentais da Constituição (art.
60, §4º, I, c/c art. 7º, inciso IV, in fine, da Constituição Federal) revela-se
cabível a ADPF.
Com efeito, a comparação do objeto e do parâmetro da ADPF com
a ADI e a ADC revela um dado curioso. Nas demais ações do controle
abstrato, o parâmetro é amplo, mas o objeto das ações é muito restrito,
limitando-se às leis e atos normativos federais (para a ADC) e às leis e
atos normativos federais e estaduais (para a ADI), nos termos do artigo
art. 102, I, “a” da Constituição da República. Já na ADPF, ao contrário,
o objeto da arguição revela-se bastante amplo – abrangendo, como se
viu, uma extensa gama de “atos do Poder Público” – mas o parâmetro de
controle é circunscrito apenas àquelas normas constitucionais qualificadas,
pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como “preceitos
fundamentais”. Essa inversão que identificamos entre a ADC e a ADI, de
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Rafael Carvalho de Fassio
um lado, e a ADPF, de outro, será ainda contrabalançada pela regra da
subsidiariedade, que excluirá o cabimento da arguição sempre que for
possível o emprego, pelo requerente, de “outro meio eficaz”.
5 SUBSIDIARIEDADE E A IDENTIFICAÇÃO DE “OUTRO MEIO
EFICAZ”
A regra da subsidiariedade, prevista no artigo 4º, §1º, da Lei Federal
nº 9.882/1999, serve de contraponto à vagueza e amplitude do conceito de
“ato do Poder Público”. Segundo o dispositivo, não será admitida a ADPF
quando houver qualquer “outro meio eficaz” de sanar a lesividade, ou
seja, quando for possível o emprego de outros meios igualmente capazes
de recompor a lesão ao “preceito fundamental” violado41. Trata-se, com
efeito, de um pressuposto negativo de admissibilidade da arguição, que
lhe confere posição residual e subsidiária no sistema brasileiro de controle
de constitucionalidade.
Essa restrição – que não encontra fundamento do artigo 102, §1º da
Constituição – fez com que parte da doutrina, encabeçada principalmente
por Tavares42, entendesse que a subsidiariedade trazida pela Lei Federal
nº 9.882/1999 seria inconstitucional. O legislador ordinário teria ido
além da Constituição ao excluir o cabimento da ADPF nesses casos,
rebaixando o instituto a um plano secundário. Por isso, segundo Tavares,
uma interpretação adequada da Constituição de 1988 levaria, na verdade,
à conclusão inversa: a arguição teria preferência em relação a todas as
demais ações constitucionais sempre que se configurasse uma violação
a um preceito fundamental. Não obstante, a doutrina majoritária e a
jurisprudência aplicam a regra da subsidiariedade, tal como prevista no
artigo 4º, §1º, da Lei Federal nº 9.882/1999, para afastar a propositura da
ADPF sempre que couber qualquer outra medida judicial com a mesma
eficácia, o que confere ao instituto, de fato, a feição residual e subsidiária
criticada por Tavares.
Mas o que se entende por mesma eficácia? De fato, a expressão legal
“outro meio eficaz” é um conceito aberto que pode ser compreendido,
41 “...confiram-se ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da
Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 117; DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução
e notas por Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 39; ÁVILA, Humberto. Teoria dos
Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros. 2009. p. 35-36.
42 “TAVARES, André Ramos. Arguição de descumprimento de preceito constitucional fundamental:
aspectos essenciais do instituto na constituição e na lei”. In: TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG,
Walter Claudius (Orgs.). Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da L.
9882/99. São Paulo: Atlas, 2002, p. 74
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 165 - 184, jan./jun., 2015.
Arguição de Descuprimento de Preceito Fundamental: Parâmetro, Objeto e
Subsidiariedade
181
segundo Dimoulis43, sob as perspectivas da residualidade categorial – que
comporta um sentido amplo e outro estrito – e da residualidade casuística.
Explicamos, a seguir, cada uma dessas três vertentes:
1) Residualidade casuística: a “eficácia” dos outros meios
disponíveis será analisada no âmbito de cada caso concreto. Assim,
sob essa ótica, a ADPF seria a última medida cabível sempre que,
depois de esgotadas todas as vias processuais possíveis, o resultado
desejado – que é o fim à lesão ao preceito fundamental – não fosse
alcançado. Contudo, o Supremo Tribunal Federal rejeitou essa tese
ao deixar de conhecer a ADPF nº 83. Afinal, o inconformismo de
uma das partes com a decisão final proferida pelo Judiciário não
poderia desnaturar a ADPF, transformando-a em mais um recurso
ou nova espécie de ação rescisória44.
2) Residualidade categorial em sentido amplo: nesta acepção,
entende-se por “outro meio eficaz”, para fins de afastamento da
ADPF, a possibilidade de manejo, pelo requerente, de qualquer
outra via processual cabível – seja no controle abstrato (ADI, ADC),
seja no controle concreto (Mandado de Segurança, Habeas Corpus,
Ação Popular, Reclamação, Recurso Extraordinário, Recurso
Ordinário Constitucional, entre outros). Foi esse o entendimento
inicial esposado pelo Supremo Tribunal Federal ao deixar de
conhecer da ADPF nº 345.
3) Residualidade categorial em sentido estrito: aqui, a expressão
“outro meio eficaz” diz respeito apenas às demais ações de controle
abstrato cuja decisão, tal como a da ADPF (artigo 10, §3º da Lei
Federal nº 9.882/1999), seja dotada de caráter vinculante e eficácia
43 “DIMOULIS, op. cit., p. 24-30. ”
44 “(...) Exauridas todas as instâncias, inclusive com manejo de ação rescisória extinta sem resolução do
mérito, não cabe à ADPF cumprir uma função substitutiva de embargos à execução. 3. Arguição não
conhecida.” SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADPF 83, Relator Min. Carlos Britto, j. 24/04/2008.
45 “7. Dispõe, contudo, o § 1o do art. 4o do diploma em questão: “§ 1o - Não será admitida arguição
de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar
a lesividade”. 8. E ainda há meios judiciais eficazes para se sanar a alegada lesividade das decisões
impugnadas. 9. Se, na Corte estadual, não conseguir o Estado do Ceará obter medidas eficazes para tal
fim, poderá, em tese, renovar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. 10. Também
assiste ao Governador, em tese, a possibilidade de promover, perante o Supremo Tribunal Federal,
Ação Direta de Inconstitucionalidade do art. 108, VII, “i”, da Constituição do Estado, bem como do
art. 21, VI, “j”, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Ceará, que instituíram a Reclamação
destinada à preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões” ADPF 3 QO,
Rel. Min. Sydney Sanches, j. 18/05/2000
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 165 - 184, jan./jun., 2015.
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Rafael Carvalho de Fassio
erga omnes46. Assim, a arguição só não será cabível quando o “ato
do Poder Público” contra o qual se insurge o requerente puder
ser impugnado mediante ADI, ADC ou ADO. Parece ser esta,
atualmente, a posição dominante no Supremo Tribunal Federal,
tendo sido adotada na ADPF nº 1747 e, também, na já citada ADPF
nº 3348.
Dessa maneira, a ADPF será cabível, em regra, nas hipóteses em
que não for possível a propositura de ADI ou de ADC, como, por exemplo,
para examinar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo municipal.
A respeito, merece registro o entendimento esposado pelo Ministro Celso
de Mello em decisão monocrática proferida nos autos da ADPF nº 10049. No
caso, aplicando leitura demasiadamente larga da regra da subsidiariedade,
o Ministro entendeu incabível a arguição proposta pelo Partido Verde
em face de Lei Complementar editada pelo Município de Palmas, porque
haveria, ao menos em tese, a possibilidade de impugnação da norma
mediante ADI estadual, proposta perante o Tribunal de Justiça, nos termos
do artigo 125, §4º da Constituição. Esse entendimento, todavia, é bastante
questionável. Afinal, o rol de legitimados ativos para a propositura da
ADI estadual não é o mesmo aplicável à ADI federal – que, nos termos do
artigo 2º, inciso I, da Lei Federal nº 9.882/1999, foi estendido à ADPF. Por
exemplo: o governador de Estado, , por mais que esteja inserido no rol de
legitimados do artigo 103 da Lei Maior, jamais poderá mover ADI estadual
perante o Tribunal de Justiça de outro Estado-membro, frustrando, assim,
essa concepção alargada da regra da subsidiariedade.
46 MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Demonstração
de inexistência de outro meio eficaz. Revista Jurídica Virtual. Brasília, vol. 2, n. 3, junho 2000.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_03/demonstracao.htm>. Acesso
em: 23 set. 2015.
47
“A mera possibilidade de utilização de outros meios processuais, contudo, não basta, só por si,
para justificar a invocação do princípio da subsidiariedade, pois, para que esse postulado possa
legitimamente incidir - impedindo, desse modo, o acesso imediato à arguição de descumprimento
de preceito fundamental - revela-se essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se capazes de
neutralizar, de maneira eficaz, a situação de lesividade que se busca obstar com o ajuizamento desse
writ constitucional” ADPF 17 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, j. 05/06/2002.
48 “Cláusula da subsidiariedade ou do exaurimento das instâncias. Inexistência de outro meio eficaz
para sanar lesão a preceito fundamental de forma ampla, geral e imediata. Caráter objetivo do instituto
a revelar como meio eficaz aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante. Compreensão
do princípio no contexto da ordem constitucional global. Atenuação do significado literal do princípio
da subsidiariedade quando o prosseguimento de ações nas vias ordinárias não se mostra apto para
afastar a lesão a preceito fundamental”. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF-MC 33, Rel. Min.
Gilmar Mendes, j. 29/10/2003.
49 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 100 MC. Relator Min. Celso de Mello, j. 14/12/2008.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 165 - 184, jan./jun., 2015.
Arguição de Descuprimento de Preceito Fundamental: Parâmetro, Objeto e
Subsidiariedade
183
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O parâmetro (“preceito fundamental”), o objeto (“ato do Poder
Público”) e a subsidiariedade (“outro meio eficaz”) da ADPF demonstram que
o instituto é cercado por uma notável incerteza. Incerteza na jurisprudência –
eis que o Supremo Tribunal Federal nem sempre se fia em critérios objetivos e
claros para aplicar a subsidiariedade ou para delimitar o conceito de “ato do
Poder Público” – e também na doutrina, a qual lida de modo pouco satisfatório,
a nosso ver, com um importante problema teórico: a constatação de que a
arguição, ao invocar como parâmetro os chamados “preceitos fundamentais”,
revive um importante debate sobre a existência de normas constitucionais
mais importantes que outras.
Ademais, como foi dito, a regra da subsidiariedade – que não foi
prevista no texto constitucional, mas apenas no artigo 4º, §1º, da Lei Federal nº
9.882/1999– tem fortes indícios de inconstitucionalidade, cujo reconhecimento
pela ADI nº 2231 poderia, talvez, transformar o próprio instituto. Até lá, a
ADPF continua a ser encarada como um instrumento meramente residual, com
posição secundária no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.
Mais simples, propõe Cruz, seria revogar a ADPF e alterar o artigo 102, I,
“a” da Constituição da República para ampliar o objeto da ADI50. Enquanto
isso não se faz, a arguição permanece largamente incerta e potencialmente
indefinida, merecendo todas as críticas que lhe puderem ser dirigidas.
REFERÊNCIAS
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2. ed. São Paulo: José Butchasky Editor, 1980.
BARBOSA, Rui. Atos inconstitucionais. Campinas: Russell, 2003.
BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito
brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004.
CRUZ, Gabriel Dias Marques da. Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental: lineamentos básicos e revisão crítica no direito constitucional
brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2011.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Arguição de descumprimento de preceito
fundamental. In: DIDIER JUNIOR, Fredie (Org.). Ações constitucionais. 4. ed.
Salvador: JusPODIVM, 2009. p. 488-503.
50 “A tese que defendo pode ser sintetizada na ideia de que a melhor providência a ser tomada para
aperfeiçoar o controle de constitucionalidade brasileiro reside em uma mudança normativa que
contemple a extinção da ADPF do panorama de controle vigente, com a correspondente incorporação
das matérias passíveis de aferição em seu objeto no bojo da ADI genérica” CRUZ, Gabriel Dias
Marques da. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Lineamentos básicos e revisão crítica no
direito constitucional brasileiro. op.cit. p. 115. Na mesma trilha: RAMOS, Elival da Silva. “Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental: Delineamento do Instituto”. In: TAVARES, André Ramos;
ROTHENBURG, Walter Claudius (orgs.). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: análises
à luz da L. 9882/99. São Paulo: Atlas, 2002. p. 109-127.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 165 - 184, jan./jun., 2015.
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Rafael Carvalho de Fassio
DECOMAIN, Pedro Roberto. A Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 92, p. 78-107,
nov. 2010.
DIMOULIS, Dimitri. Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental: problemas de concretização e limitação. Revista dos Tribunais, v.
832, p. 11-36, fev. 2005.
KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. Introdução à edição brasileira e
revisão técnica de Sérgio Sélvulo da Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
________ . Teoria general del Estado. Tradução de Luis Legaz Lacambra.
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MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de descumprimento de preceito
fundamental (I) (§ 1o do Art. 102 da Constituição Federal). Revista Jurídica
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________. Arguição de descumprimento de preceito fundamental:
demonstração de inexistência de outro meio eficaz”. Revista Jurídica Virtual,
Brasília, v. 2, n. 3, junho 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/revista/Rev_03/demonstracao.htm>.
RAMOS, Elival da Silva. Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental: Delineamento do Instituto. In: TAVARES, André Ramos;
ROTHENBURG, Walter Claudius (Orgs.). Arguição de descumprimento de
preceito fundamental: análises à luz da L. 9882/99. São Paulo: Atlas, 2002. p. 109127.
_________. Controle de constitucionalidade no Brasil: perspectivas de
evolução. São Paulo: Saraiva, 2010.
SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución. Prólogo de Manuel GarcíaPelayo. Madrid: Alianza, 1982.
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protocolados, distribuídos e julgados por classe processual – a partir
de 1990. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.
asp?pagina=pesquisaClasse&servico=estatistica>. Acesso em: 25 jun. 2015.
TAVARES, André Ramos. Arguição de Descumprimento de Preceito
Constitucional Fundamental: aspectos essenciais do instituto na Constituição e
na Lei. In: TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius (Orgs.).
Arguição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da L.
9882/99. São Paulo: Atlas, 2002.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 165 - 184, jan./jun., 2015.
Teoria Geral da Fraternidade Objetiva: Dar o Peixe ou Ensinar a Pescar?
185
TEORIA GERAL DA FRATERNIDADE OBJETIVA:
DAR O PEIXE OU ENSINAR A PESCAR?
Mauricio José dos Santos Bezerra1
RESUMO: A ideologia pós-moderna é a busca de uma sociedade fraterna.
Nada inova, mas renova, ainda que em esperança. É que fraternidade
sempre esteve presente na história humana, e sempre foi elemento
constitutivo das diversas formas do pensar filosófico e teológico. No
campo político, observou-se que o regime monárquico cedeu lugar ao
Estado constitucional, cunhado na tríade ideológica francesa da Liberdade,
da igualdade e da fraternidade. Já se percebeu as fases de efetivação das
liberdades através do Estado Liberal, que desaguou no capitalismo e na
forma de apropriação privada, e do Estado igual – ou social – experimentada
pelo Welfare State, que impôs ao Estado o dever de corrigir distorções. A
pós-modernidade tardia2 agora quer experimentar o Estado Fraternal. A
questão é: seria possível objetivar o princípio da fraternidade, ou quiçá
positivá-lo no sistema jurídico interno (v.g., da forma como se realizou
com o princípio da boa-fé objetiva)?
Palavras-chaves: Liberdade. Igualdade. Fraternidade. Boa-fé objetiva.
GENERAL THEORY OF STRICT FRATERNITY : GIVE
THE FISH OR TEACH TO FISH ?
ABSTRACT: The postmodern ideology is the search of a fraternal society.
Nothing innovative, but renewed, albeit in hope. Is that fraternity has
always been present in human history, and has always been a constitutive
element of the various forms of philosophical and theological thinking.
Politically, it was observed that the monarchy was replaced by the
constitutional state, coined in French ideological triad of Liberty, equality
and fraternity. We have seen the phases of realization of freedoms by
the Liberal State, which flowed in capitalism and in the form of private
1
Empregado público e advogado. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pelo Prodema Programa de Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal de Sergipe. Mestrando em
Direito na Universidade Federal de Sergipe, biênio 2013-2014. Pós-graduado em teorias do estado e
do Direito Público e Graduado em Direito pela Universidade Tiradentes.
RECEBIDO EM: 02/02/2015
2
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker.
ACEITO EM: 08/04/2015
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 185 - 200, jan./jun., 2015.
186
Mauricio José dos Santos Bezerra
ownership, and the same state - or social - experienced by the welfare
state, which imposed on the State the duty to correct distortions. The late
postmodernity now want to experience the Fraternal state. The question
is, would it be possible to objectify the principle of fraternity, or perhaps
positive it in the domestic legal system (v.g., the way was held with the
principle of objective good faith) ?
Keywords : Freedom . Equality. Brotherhood . Objective good faith.
1 A FILOSOFIA DO FRATERNO
Platão, em a República (livro VII), importa em dizer que o que se está
em jogo, no conceito de homem, é o sentido e o valor da nossa existência.
Mostrou que os grilhões que acorrentam os homens é a ignorância.
Para Aristóteles, o que se revela são as qualidades que os indivíduos
possuem para se inserir nesse conceito. Para ele, tudo na natureza possuí
a probabilidade de se concretizar numa realidade que lhe fosse inerente.
Ambos se inspiravam em Sócrates, que tinha como concepção do homem
como o ser capaz do autoconhecimento. Evoluamos no tempo, e chegamos
a Heidegger (Ser e Tempo), que tinha em mente que a solução não está na
causa, mas nas consequências, e assim poder-se-ia superar as interrogações
e as inseguranças, onde o cerne do homem está em desviar-se do superficial
e enfrentar a profundidade que ele oculta. Seria então o homem um ser
dicotômico, sempre em crise entre o individual e o coletivo, o ser e o ente,
que discursa coletivamente e age individualmente.
Fraternidade tem a ver com fraterno, com irmão – viver e se
comportar como irmão para com os outros -3. Seria então a fraternidade
a fórmula para se conhecer o homem e para que o homem conheça a
si mesmo (pensamento socrático)? Ora, para Ricouer, a dicotomia do
homem estaria na sua incessante luta para evitar o mal praticando o justo
(HELENO, 2001, p. 298). Mas o conceito e o conteúdo do que seja fraterno,
por certo, passa obrigatoriamente pela filosofia e ou ideologia teológica,
com o rigor da supremacia da Igreja católica Apostólica Romana, na
Europa medieval e moderna, que exerceu influência, e porque não dizer
que efetivamente exerceu parcela do poder político na sociedade. Assim,
fraternidade pode ser sentida na Encíclica Rerum Novarum (LEÃO XIII,
1998, p. 07) . Nessa obra vê-se a preocupação com o caráter social da Igreja,
3 Fraternidade no dicionário Michaelis online: sf (lat fraternitate) 1 Parentesco entre irmãos. 2
Solidariedade de irmãos. 3 União ou convivência como de irmãos. 4 Amor ao próximo. 5 Harmonia
entre os homens. 6 Relações harmoniosas entre pessoas da mesma profissão, ocupação, classe etc.
Disponível em: < http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-port
ugues&palavra=fraternidade>. Acesso em: 22 set. 2015.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 185 - 200, jan./jun., 2015.
Teoria Geral da Fraternidade Objetiva: Dar o Peixe ou Ensinar a Pescar?
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do Estado, das relações sociais, principalmente na divisão equitativa da
terra e do trabalho. Tal encíclica tinha como pedra basilar a fraternidade
cristã, que prega a ideologia dos humildes a ter direito do acesso à terra:
“bem aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra” (Mateus:
5,5). Em Lucas 5: 11, teria Cristo transformado pescadores de peixes em
pescadores de homens.
2 FRATERNIDADE, SOLIDARIEDADE E CARIDADE
Fraternidade seria o mesmo que solidariedade ou até mesmo
caridade? A parábola bíblica (Lucas 5:1-11) diz ter Jesus Cristo se ocupado
em ensinar a pescar, esquivando-se em apenas dar o peixe. Mas o conteúdo
filosófico tem duas vertentes: i) a primeira, o dever de ensinar a pescar; ii)
a segunda, o de prover meios para que se consiga pescar. O ensinamento
aponta para o indivíduo, mas também para a coletividade (e nesse bojo, o
Estado). O que se quer dizer é que a fraternidade se enraíza na igualdade,
posto que, em se experimentando a desigualdade, a fraternidade e ou
mesmo a solidariedade não passarão de mera caridade, favor, compaixão,
condescendência, um resvalar frequente para o campo da humilhação dos
hipossuficientes (BRITO, 2003, p. 217).
Solidariedade se aproxima de caridade, posto ser um ato de bondade
com o próximo ou um sentimento, uma união de simpatias, interesses ou
propósitos entre os membros de um grupo. Mas, na Sociologia, existe o
conceito de solidariedade social, que subentende a ideia de que os seus
praticantes se sintam integrantes de uma mesma comunidade, portanto,
sintam-se independentes. Solidariedade é o substantivo feminino que
indica a qualidade de solidário e um sentimento de identificação em
relação ao sofrimento dos outros. A palavra solidariedade tem origem no
francês solidarité, que também pode remeter para uma responsabilidade
recíproca. Já o significado de caridade, tem enlace com a teologia do amor
a Deus e ao próximo: a caridade é uma das três virtudes teologais. Na
expressão comum, amor ao próximo: agir por pura caridade. Esmola,
favor, benefício: fazer a caridade. Bondade, compaixão.4 Contudo, esse
não é o propósito do presente artigo, eis que a sua finalidade é saber se é
possível objetivar, na ciência do Direito, o Princípio da Fraternidade, da
forma como se quiseram e fizeram com a boa-fé objetiva.
3 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA
É de se ver que tanto boa-fé como fraternidade passam,
obrigatoriamente, pela vontade. Assim, a vontade, no caso da boa-fé,
4
SIGNIFICADOS.COM.BR. Significado de solidariedade. Disponível em: <http://www.significados.
com.br/solidariedade/>. Acesso em: 10 jan. 2015.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 185 - 200, jan./jun., 2015.
188
Mauricio José dos Santos Bezerra
se experimenta na palavra empenhada pelos contratantes criando para
as partes uma obrigação a ser cumprida, que, de início, se fundamenta
na moral (boa-fé subjetiva), a regular os negócios entre os particulares.
Com as modificações ocorridas ao longo do tempo, eis que a autonomia
da vontade expressa pela palavra foi substituída pela vontade expressa
pelo contrato escrito. Acontece que os negócios particulares, estampados
no contrato, agora deveriam ser realizados aos ditames do Direito. Agora,
há que se averiguar a expressão da vontade de forma objetiva, qual seja,
a busca da vontade subjetiva em parâmetros previamente objetivados.
Eis que os contratantes estariam a ser monitorados não pela moral, mas
pela ética, que se ocupa com o “externar da vontade”. Assim, seria a
expressão da autonomia da vontade experimentada em regras do Direito5.
Passa, neste instante, a boa-fé objetiva dentro do Direito Civil, por regras
e funções estabelecidas e esperadas quando da contratação entre as
partes (destarte, funções Hermenêutico-Integrativa, Extensiva de Deveres
Jurídicos, Restritiva de Direitos).
Mas, enquanto princípio, há de se verificar como se insere a boa-fé
objetiva no sistema jurídico, a começar pela Constituição Federal. A busca
da boa-fé objetiva se deu pelo fato de se exigir, por ocasião da expressão
da autonomia da vontade em negócios jurídicos de natureza civil, se
perceba a ocorrência da justiça e do equilíbrio desde a contratação até o
fiel cumprimento da obrigação avençada. Aqui já se começa a perceber
o papel desde princípio dentro de uma ordem constitucional. (Na ordem
civilista, deveria ser percebido um comportamento ético pautado na
confiança e lealdade). Seria uma boa-fé não mais expressão de vontade e
de subjetivismo, mas como regra de comportamento.
A boa-fé objetiva integra o Estado democrático de Direito, ínsito
da liberdade impregnada pelos conceitos do capitalismo, a exigir, de
início, comportamento individual dentro de premissas impostas pela
sociedade burguesa moderna, onde da parte contratante era esperado um
comportamento digno da confiança que lhe fosse depositada (o crédito
tinha como pressuposto a confiança; honestidade tinha como pressuposto
o fiel cumprimento da obrigação assumida) 6. Mas o Estado liberal
evoluiu para o Estado Social a exigir que fosse observada a dignidade da
pessoa humana (e posteriormente o fim social do contrato), exigindo-se
que a ordem social e jurídica migrasse do individualismo para aspectos
sociais; eis o primórdio da igualdade (COSTA; GOMES, 2004, p. 14) ”.
5 REIS, João Emilio de Assis. Boa-fé objetiva: Historicidade e contornos atuais no direito contratual.
Âmbito jurídico, Rio Grande do Sul, ano 13, n. 80, set. 2010. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8281>. Acesso em: 10 jan.
2015.
6
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Saraiva, 2004.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 185 - 200, jan./jun., 2015.
Teoria Geral da Fraternidade Objetiva: Dar o Peixe ou Ensinar a Pescar?
189
Sob o aspecto constitucional (experimentada pela interpretação conforme
a Constituição), a boa-fé objetiva, ínsita do modelo civilista, agora
ampara todo o corpo social, a dispor que as partes, ao expressarem a sua
autonomia da vontade, deverão observar parâmetros objetivos expressos
na lei e nos costumes, agora e constitucionalmente falando, a partir
de processos hermenêuticos, nos quais o juiz deverá verificar, no caso
examinado, no caso na prática, a existência de processos que garantam os
fins sociais expressos na Constituição Federal, possibilitando garantir não
só o cumprimento da obrigação assumida no contrato, mas a efetivação
de garantias constitucionais a partir de regras e princípios igualitários
(COSTA; GOMES, 2004, p. 15).. E, como se pode notar, o princípio da boa-fé
objetiva se inseriu na ordem jurídica a partir da efetivação dos princípios da
liberdade e da igualdade. Criou regras objetivas para controlar a vontade,
que é de cunho subjetivo. Regrou-se previamente a conduta para controlar
a autonomia da vontade (controle da moral a partir do controle da e pela
ética). Mas como deverá ocorrer a inserção da fraternidade dentro dessa
mesma ordem jurídica?
4 O PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE
Morin afirma que os homens antropoides se diferenciavam de
todos os outros seres a partir do momento em que desceram das árvores
e se ergueram (andar ereto), experimentou o uso do fogo, modificou seus
hábitos, o que permitiu o desenvolvimento cerebral; contraposição dada
por Hegels, o qual, por sua vez, diz que tal diferença se deu a partir do
momento em que o homem passou a produzir trabalho – com isso, a
propriedade de utensílios e ferramentas, de cavernas como habitação. Em
Rousseau, avista-se a informação de que a origem das desigualdades entre
os homens se deu quando ele, saindo do seu estado de natureza, passou a
experimentar a propriedade. Para esse pensador, a propriedade desiguala
os homens. Marcel Maus (2007, p. 37-184) assevera que a propriedade é o
requisito que desiguala os homens e confere a alguns deles o poder de uns
sobre os outros. Então, o ponto comum entre todos está ligado diretamente
às formas de acesso e distribuição da propriedade. Seria a propriedade o
pressuposto formal e ou material do princípio da fraternidade?
Tal princípio estaria inserido na Constituição Federal e ou de
alguma forma dentro do sistema jurídico pátrio? Estaria o princípio da
fraternidade intimamente ligado aos da justiça e da dignidade da pessoa
humana? Poderia o legislador criar parâmetros legais para que o princípio
da fraternidade tenha eficácia ou que fosse observado por toda sociedade,
da mesma forma como positivou o princípio da boa-fé objetiva? São
questões tormentosas a serem enfrentadas.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 185 - 200, jan./jun., 2015.
190
Mauricio José dos Santos Bezerra
Carlos Brito (2006, p. 218) informa que fraternidade é o ponto de
unidade e de uma possível conciliação entre a liberdade, de um lado, e, de
outro, a igualdade, e que, nos domínios da política, a virtude está sempre
no meio. Leciona que a política e o Direito são duais, mas têm a virtude na
sua centralidade, o que fascina, como o mistério que é, o milagre da vida.
Esse jurista assevera:
b) segundo, o sentido histórico-filosófico de servir a constituição como
mecanismo jurídico capaz de eficaz contenção aos excessos do poder
político e, sequencialmente, do poder econômico e do poder social como
um todo (visto que o todo social desiguala materialmente e discrimina
moralmente as pessoas e ainda sistematicamente conspurca o equilíbrio
ambiental e sadia ordenação dos espaços públicos) (BRITO, 2006, p. 213214)
Estar-se ia a dizer que, para efetivação do princípio da
fraternidade, deveria o legislador, de alguma forma, substituir a
vontade dos indivíduos pela vontade da norma? É possível que
a norma jurídica imponha aos seus destinatários o dever de ser
fraterno uns para com os outros? A resposta é não. Esse não é o
conteúdo formal - e porque não dizer material - desse princípio.
Tampouco se pode dizer que a proteção estatal, por meio do
Direito, até agora destinada aos hipossuficientes e vulneráveis,
possa ser considerada como o início da efetivação da esperada
fraternidade. Diversos autores consideram alguns avanços, tais
com obrigatoriedade da contribuição de inativos (ADIs 3105 e
3128), auxílio a cirurgias e tratamentos médicos, cotas raciais em
sistemas educacionais, demarcações de terras indígenas como o
começo da efetivação do princípio da fraternidade. Ledo engano.
Aqui, avista-se o princípio da solidariedade, que, conforme acima
esposado, diverge em muito com o da fraternidade7 (HORITA,
2003, p. 11). Também não se pode considerar algumas regras e
princípios constitucionais como uma espécie de efetividade do
que se espera de fraternidade. Continuando nessa contramão,
pode-se listar a proteção ao idoso, ao menor, ao índio, como o
raiar do princípio da fraternidade, mormente possa se afirmar
que todas elas sejam contempladas em normas experimentadas
pelo princípio da igualdade, já que em sua incidência não se
aviste a universalidade.
Fraternidade é ligada umbilicalmente com dignidade, sendo esta
parte integrante daquele. Este, o da dignidade, (que, por sua vez, também
7
Horita (2003) traça alguns entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, dando aos dois princípios o
mesmo significado.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 185 - 200, jan./jun., 2015.
Teoria Geral da Fraternidade Objetiva: Dar o Peixe ou Ensinar a Pescar?
191
integra o Estado democrático de Direito) significa dizer o homem como
fim em si mesmo, possuidor de igualdade social. O da fraternidade
significa ir mais além; significa ensinar e prover meios e não o dar, puro
e simplesmente. Fraternidade não é amparar a velhice e sim possibilitar
os meios (trabalho, v.g.) para que o cidadão possa contribuir e na sua
velhice consiga a dignidade na aposentadoria por tempo de contribuição
ou por idade (ensinar a trabalhar – escolaridade e conhecimento técnico - e
criar postos de trabalho). A dignidade, quando não integra a fraternidade
e sendo experimentada de outras formas, pode significar duas coisas:
caridade (para os que concedem) e humilhação (para os que recebem).
Fraternidade é conviver sem violência, sem fronteiras, sem guerras
(aqui começa a se sentir a verdade do que se espera desse princípio da
fraternidade, a exigir um retorno temático mais adiante). Nesse toar,
informa Machado (2008, p. 4) : “Inserem-se nessa categoria, por exemplo, os
direitos à paz, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos e têm como
distinção o fato de serem universais, ou, quando menos, transindividuais
ou metaindividuais”. Há um exemplo claro de fraternidade – ou de sua
ausência -, que açambarca o tema de forma universal, dentro de um de
fato a princípio de natureza individual: recentemente a mídia veiculou a
execução de um brasileiro por tráfico de drogas, na Indonésia8. Não se
deve descurar da gravidade do crime, mas também não se pode perder de
vista o rigor da pena. Mas o fato também permite se analisar o princípio
da fraternidade. Apesar de se avistar humildade do governo brasileiro em
rogar pela vida de um cidadão, o Governo da Indonésia não demonstrou
fraternidade. E toda a sociedade global condenou o ato. A vida, tomada de
modo individual, e apenas servindo de exemplo para o corpo social, aos
modos de Damiens9.
Mas, retomando o tema pendente, há que se afirmar que o princípio
da fraternidade é vital para as consequências dos Estados regionais, tendo
como exemplo a avançada União Europeia, que congrega diferentes
povos, diferentes culturas. O douto Bezerra (2006, p. 74) informa que “um
dos grandes desafios da União europeia foi, ao instalar língua e moeda
oficiais de uso comum, defrontou-se com os povos tradicionais, que ainda
viviam em sistemas tradicionais locais e ou regionais, que deveriam ser
preservados em cultura e tradições”. Sem espírito de fraternidade, jamais
8
Brasileiro será executado neste sábado na Indonésia, diz jornal. G1, São Paulo, 15 jan. 2015.
Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/01/brasileiro-sera-executado-neste-sabadona-indonesia-diz-jornal.html>. Acesso em: 16 jan. 2015.
9
“A obra começa por narrar uma execução. Eis que o ano é 1757, e Paris se enche com os gritos de
‘Meu Deus, tende piedade de mim! Jesus, socorrei-me! ’, de Robert-François Damiens, condenado
por parricídio”. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Rio de Janeiro:
Vozes, 2007.
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Mauricio José dos Santos Bezerra
se poderá vencer as diferenças econômicas, culturais e sociais entre
diferentes países e povos que os integram. Tal situação requer soluções
pacíficas de controvérsias, requer uma Constituição sem inimigos
(POZOLLI; HURTADO, 2009, p. 5).
5 A FRATERNIDADE CONSTITUCIONAL E A CONSTITUIÇÃO
FRATERNAL
Seria o princípio da fraternidade um novo paradigma ou a continuação
de uma história ainda inacabada? Estar-se dizendo que a sociedade
experimentou a liberdade e depois igualdade, e em ambos a sociedade
político-jurídica fora inexitosa, necessitando, agora, de um novo modelo,
de um novo protótipo ou a fraternidade, desde a Revolução Francesa, já
se apontava como elemento que a sociedade deveria experimentar desde
o início? A questão passa por análises de conteúdo e de forma. Os liberais
quiseram somente a liberdade. As minorias optaram pela igualdade. Os
Estados eram nacionais, soberanos, e as lutas eram travadas por e ou entre
classes. Hoje, estamos a falar em Estados supranacionais, sem fronteiras.
Importando em dizer que, na sua maioria, os Estados constitucionais
avançaram em justiça social e que precisam avançar em justiça fraternal,
para que o povo possa viver como sociedade humana (MACHADO, 2008,
p. 15, grifo nosso). Leciona este jurista:
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu preâmbulo,
reconhece, desde 1948, que todos somos membros de uma mesma
família, a família humana.
Desde o surgimento do constitucionalismo moderno, mais de dois
séculos se passaram e o mundo precisa compreender que práticas
solidárias mais efetivas devem ser consagradas. Sem fraternidade não
há felicidade.
Então, agora, há vários fins a serem perseguidos: o homem, a
dignidade humana, a justiça, a família humana, a felicidade. E aponta-se
como panaceia a concretização eficaz do princípio da fraternidade. Mas,
como afirma o jurista acima apontado, eis que já se passaram dois séculos
e o mundo ainda não pratica, de forma eficaz, a solidariedade (novamente
a solidariedade é sinônimo de fraternidade). Há dois séculos, e desde
os ideais da Revolução Francesa, a sociedade já deveria experimentar a
fraternidade. Portanto, imperioso concluir – correndo o risco decorrente
dessa antecipação - que se está diante de um novo paradigma e não de
uma contínua construção social, com a ocorrência, no primeiro tempo da
liberdade, depois da igualdade, e no final da fraternidade. Nesse ponto,
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 185 - 200, jan./jun., 2015.
Teoria Geral da Fraternidade Objetiva: Dar o Peixe ou Ensinar a Pescar?
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a fraternidade constitucional e ou a constituição fraternal tornar-se-ia
uma legislação álibi, fruto de uma Constituição simbólica, parafraseando
o douto Neves, a preconizar que há diferença entre o agir e a tentativa
consciente de alcançar o resultado, e a aí se incluído o conceito de política
simbólica (NEVES, 2011, p. 15). E o citado autor continua a dizer:
Kindermann propôs um modelo tricotómico para a tipologia da
legislação simbólica, cuja sistematicidade o torna teoricamente frutífero:
“Conteúdo de legislação simbólica pode ser: a) confirmar valores sociais,
b) demonstrar a capacidade de ação do Estado e c) adiar a solução de
conflitos sociais através de compromissos dilatórios” (NEVES, 2011, p.
31);
[...]
O Objetivo da legislação simbólica pode ser também fortificar “a
confiança do cidadão no respectivo governo ou, de um modo geral, no
Estado”. Nesse caso, não se trata de confirmar valores de determinados
grupos, mas sim de produzir confiança no sistema jurídico-político’.
O legislador, muitas vezes sob pressão direta, elabora diplomas
normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, sem que com
isso haja o mínimo de condições de efetivação das respectivas normas. A
essa atitude referiu-se Kindermann com a expressão “legislação álibi”.
Através dela o legislador procura descarregar-se de pressões políticas e/
ou apresentar o Estado como sensível às exigências e expectativas dos
cidadãos. (NEVES, 2011, p. 36).
Afastando-se – propositadamente - da possibilidade de que alguma
Constituição seja incapaz, político e juridicamente, de dar eficácia ao
princípio da fraternidade, venha ser considerada uma legislação álibi e ou
uma Constituição simbólica, pode-se voltar-se ao entendimento de que é
possível se construir uma sociedade fraternal. Nesse discurso, há que se
apontar as lições de Machado (2008, p. 14), a dizer:
Não se trata de ingenuidade. Mas, se ingenuidade for defender práticas
fraternas; que todos pertencemos à uma mesma família; que somos
responsáveis uns pelos outros, e que a regra de ouro – fazer ao outro
aquilo que gostaria que fosse feito a mim – torne-se uma realidade, que
sejamos todos ingênuos !!”
Nesse trilhar, o emérito membro do Ministério Público Sergipano
passa a apontar algumas previsões constitucionais acerca da matéria: i) a
busca da felicidade estampada na A Declaração de Direitos do Bom Povo
de Virgínia, de 16 de junho de 1776; ii) A Declaração Universal dos Direitos
Humanos, no seu preâmbulo, reconhece, desde 1948, que todos somos
membros de uma mesma família, a família humana. E veemente registra:
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 185 - 200, jan./jun., 2015.
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Mauricio José dos Santos Bezerra
Ao afirmar a Constituição brasileira que é objetivo fundamental da
República Federativa construir uma sociedade livre, justa e solidária,
constata-se, cristalinamente, o reconhecimento de dimensões
materializadas em três valores distintos, mas em simbiose perfeita:
a) Uma dimensão política: construir uma sociedade livre.
b) Uma dimensão social: construir uma sociedade justa.
c) Uma dimensão fraternal: construir uma sociedade solidária.
Cada uma das três dimensões, ao encerrar valores próprios, liberdade,
igualdade e fraternidade, instituem categorias constitucionais. (p. 11).
Nesse campo, podem-se incluir as declarações integrantes da parte
preambular da Constituição Federal, que dispõe:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado
a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias...
Daqui podem-se extrair alguns valores que certamente deve integrar
o conceito de fraternidade: i) exercício dos direitos sociais; ii) liberdade; iii)
segurança; iv) bem-estar; v) desenvolvimento; vi) igualdade; vii) justiça;
viii) pluralidade, ix) inexistência de preconceitos; x) harmonia; xi) solução
pacífica das controvérsias. O Estado, qualquer Estado, que consiga efetivar
no seio de sua sociedade todos estes valores, certamente será constituído
por uma sociedade fraternal. Nesse diapasão, percebe-se que há valores e
interesses que se conflitam, restando os direitos fundamentais desprovidos
de proteção efetiva, dos quais Bezerra (2001, p. 07) relaciona os valores
(que se conflitam), de cunho subjetivo e de cunho objeto, trazendo à tona a
realidade e o valor. Diz o juiz trabalhista:
Se digo que uma tela é bela, a beleza não está na tela, mas no meu
julgamento. Se digo que um ente é útil, sua utilidade não lhe intrínseca,
mas um atributo que lhe confiro. Realidade e valor, pois, pertencem aos
setores autônomos: a realidade é objetiva, o valor é subjetivo. Assim
raciocinam os defensores da teoria subjetivista de valores.
Os objetivistas advogam os valores como algo descoberto e não criado...
Miguel Reale defende a tese das invariantes axiológicas, na qual os
valores são criados pela experiência e cultura humana... e que, os valores,
uma vez criados, embora esquecidos, se inserem na vida cultural de um
povo.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 185 - 200, jan./jun., 2015.
Teoria Geral da Fraternidade Objetiva: Dar o Peixe ou Ensinar a Pescar?
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“Entre esses, Bezerra (2001, p. 9-10) discorre sobre os valores
jurídicos, apontando a existência de uma axiologia jurídica, ou seja, de
valores aplicados ao Direito, discorrendo sobre uma supremacia de valores
jurídicos consubstanciados na ordem e na segurança, a coexistir com
cooperação e solidariedade, concluindo acerca de uma classe de valores
jurídicos assim determinados:
Os valores jurídicos formam pares e, em cada um deles, há um valor
autônomo e um heterônomo, isto é, de expansão da personalidade e
de restrição à personalidade. São autonômicos: a segurança a paz e a
solidariedade, e que devem ser imbuídos de justiça. São heteronômicos:
a ordem, ou poder e a cooperação. Como os valores d autonomia são
suportes de heteronomia, situam-se aqueles em plano superior a estes.
Nesse trilhar, observa Bezerra (2001, p. 63) que há uma necessidade
que ultrapassa o simples reconhecimento de inserção dos direitos
fundamentais em textos legais (aqui já se incluindo o princípio da
fraternidade), vitimando-os de solidez e fundamentação à dinâmica de
reconhecer direitos e oferecer mecanismos de proteção, a informar que a
proteção de direitos é a proteção do exercício e das condições de possibilidades
da autonomia (sic). Assim, se deságua no objeto do artigo: a possibilidade de
efetividade e proteção jurídica ao princípio da fraternidade.
6 DA POSSIBILIDADE JURÍDICA
PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE
CONSTITUCIONAL
DO
Bobbio (2007, p. 01) leciona a existência de ordenamentos repressivos
e ordenamentos promocionais e aponta-lhes diferenças substanciais com
relação aos fins. Dos ordenamentos repressivos, nada a comentar, dado a
obviedade e ou a notoriedade. Mas quanto aos ordenamentos promocionais,
o referido autor informa a possibilidade da existência de regras jurídicas
desprovidas de sanções, ínsitas das normas de conduta. Aqui, o que se
pretende é induzir o todo social em regras de encorajamento e ou de
desencorajamento, entrando em uma era de sistema jurídico de proteção,
desviando-se da era em que a função da norma jurídica era eminentemente
repressiva. Essas regras – as de coordenação - informa o jurista italiano,
devem ser bastantes para garantir a paz, consubstanciando-se em normas
que impeçam os diversos membros do corpo social de fazerem mal uns aos
outros. Tais normas se diferenciam, basicamente, a partir dos atos humanos,
distinguindo-se em atos conformes e atos desviantes. Nos atos tipo
conforme, as regras de coordenação visam o encorajamento, protegendo
o seu exercício, tutelando a possibilidade de fazer e não fazer. Os atos tipo
desviante se dividem em duas espécies: i) atos desviantes por defeito ou
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Mauricio José dos Santos Bezerra
atos desviantes não conformes, culminando-se em consequências; ii) e atos
desviantes por excesso, cuja consequência é a tolerância. Mas, quando o ato
requisitar consequências, não será a pena, mas a desvantagem econômica
e ou social (v.g., a empresa que demite mais, não se sub-roga ao direito de
isenções ou diminuições da carga tributária. Pagará o tributo conforme a
previsão geral).
Mas seria possível que essa teoria pudesse ser aplicada quando
se está em jogo a possibilidade de positivação jurídica do princípio da
fraternidade? Machado (2008, p. 12) informa que informa que, para o evento
do constitucionalismo fraternal, há que se observar (e que atualmente já se
pode sentir na Constituição de 1988):
Uma nova era histórico-constitucional surge no alvorecer do século XXI,
com a perspectiva de que ao constitucionalismo social seja incorporado
o constitucionalismo fraternal e de solidariedade.
Consoante assinala Dromi, o futuro do constitucionalismo deve “estar
influenciado até identificar-se com a verdade, a solidariedade, o consenso,
a continuidade, a participação, a integração e a universalização”,
alcançando um ponto de equilíbrio as concepções extraídas do
constitucionalismo moderno e os excessos do constitucionalismo
contemporâneo.
Pois bem, ao que se percebe, há uma conjugação entre a teoria
da norma por coordenação, de Bobbio, e as observações acima esposadas
por Machado, no tocante à necessidade, a priori, de a regra jurídica ser
direcionada primeiro ao Estado. Assim, há que se notar que o primeiro
caminho será a conscientização dos exercentes do poder, apontando-lhes o
dever de construir um ordenamento jurídico pautado em regras - ou quiçá
ideologias - naquilo que se chama de factível (afastando-se daquilo que
Neves chama de Constituição simbólica). Mais adiante, Machado continua
afirmando (aqui, já se aponta a necessidade de conscientização do corpo
social) da necessidade de utilização dos mecanismos para a participação
popular, já existentes na Carta Constitucional de 1988, como forma
democrática de participação direta, a fomentar a participação do povo na
construção de um Estado fraternal, a dizer que “no âmbito da Democracia
Participativa destacaram-se, logo de partida, importantes institutos como
o Referendo, o Plebiscito e a Iniciativa Popular, nos termos da dicção do
art. 14 da Constituição do Brasil de 1988”.10
10 MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. Fraternidade e democracia: considerações sobre os
mecanismos de participação popular e fraterna na carta constitucional do brasil de 1988. In:
CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS JURÍDICOS, 2., 2014. Sergipe. Anais eletrônicos...
Sergipe: UFS, 2014. Disponível em: <http://eventosprodir.blogspot.com.br/p/anais-doevento.html>.
Acesso em: 22 nov. 2015.”
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 185 - 200, jan./jun., 2015.
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CONCLUSÕES
Pairam dúvidas sobre o princípio da fraternidade ser parte integrante
da ideologia revolucionária francesa, cuja efetividade deveria ocorrer em
três momentos consecutivos – em um primeiro momento, a busca pela
liberdade; depois, a igualdade culminando com a fraternidade –; ou
se estamos inaugurando um novo paradigma, o da sociedade fraternal,
a substituir o estado social e a inaugurar uma nova era. Mas se instala
uma certeza: a necessidade de seguir em frente, de experimentar outras
possibilidades tendo a fraternidade como centralidade de uma sociedade
– mais – humana. Dos ensinamentos extraídos das lições do ex-ministro
do Supremo Federal, o eminente Carlos Ayres de Brito, percebe-se que,
ao menos para este jurista, o princípio da fraternidade é parte integrante
de um todo ideológico – e não um novo paradigma – na medida em que
ele afirma que a liberdade encontra simbiose com a igualdade a partir da
coexistência com a fraternidade. Mas percebe-se que há valores e interesses
que entravam o surgimento de um novo momento histórico, social e, por
que não dizer, jurídico. São os interesses interferindo nas tomadas de
decisões políticas, a partir a intervenções dos “atores sociais” apontados
por Rua (1999, p. 10).
Além disso, há que se ter em mente que fraternidade é um princípio
de alta carga valorativa e de alto grau de subjetividade, o que irá demandar
estratégias diferenciadas daquelas utilizadas por ocasião da efetivação
dos princípios da liberdade da igualdade. Tampouco é de sentir que a
fórmula utilizada para objetivar o princípio da boa-fé será, de certo modo,
insuficiente para tornar a fraternidade um princípio eficaz e de observação
obrigatória pelo corpo social, dado seu caráter de universalidade e
amplitude (ínsito dos megaprincípios). Constata-se que a sociedade
pós-moderna torna-se plural, com desfazimentos de valores nacionais,
libertando-se de fronteiras e abrindo mão de soberanias, regionalizandose ou quiçá universalizando-se. Tal situação requer uma sociedade com
sentimentos e valores fraternais, a ponto de sair do individualismo, mas
não apenas para o coletivo, mas para o difuso.
Nesse caminhar, há que se ter em mente que a fraternidade querida
passa por dois momentos: i) o momento em que se requer ação positiva
do Estado; ii) o momento em que se requer ação positiva do povo. A ação
positiva do Estado será a de ensinar a pescar e a possibilitar que se pesque.
Deverá ser uma ação projetada e de realização contínua e de longo prazo;
a ação positiva do corpo social será estanque, imediata, o dividir do peixe,
para que, na medida em que o Estado venha a ser exitoso no seu mister, a
sociedade paulatinamente irá incluir os resultados em seus costumes.
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198
Mauricio José dos Santos Bezerra
Nesse diapasão, o Estado deverá ter um perfil de sociedade
supraestatal, ou de blocos regionais, para se universalizar, e, desta feita, já
com a capacidade de induzir um espírito fraternal sensível, capaz de tornar
o homem um ser humano. Perceptível que, ao se querer implementar na
sociedade uma fraternidade eficaz, o Estado terá uma responsabilidade
imensamente superior à do povo, isso tomado sob a ótica do individual. É
que o povo poderá se igualar, movido pela solidariedade ou ao menos pela
caridade. Mas o Estado, ao agir, deverá fazê-lo com intuito da mudança
comportamental do corpo social como um todo, cuja regra deve ser de
observância geral e imediata. Mas, repete-se, ao fazê-lo, entende-se, não
poderá se utilizar de idênticos mecanismos utilizados pelo legislador,
quando regrou o comportamento através do princípio da boa-fé objetiva.
Nesse caso, a metodologia foi a criação de parâmetros de conduta nos
negócios jurídicos. Aqui, no princípio da fraternidade, o bem jurídico que
se quer tutelar é mais abrangente e mais universalizado e, no momento,
as regras principiológicas constitucionais existentes estão mais ligadas ao
princípio da igualdade do que ao da fraternidade (excluindo-se desta regra
aqueles que já possuem caráter universal, tal como segurança, dignidade,
meios pacíficos de resolução de conflitos, e outros já apontados).
Por fim, há que se ter em mente a necessidade da soma de esforços –
e, com isso, o afastamento da soberbia e interesse pessoal e ou institucional
- no campo do conhecimento, a requisitar um conjunto de atores sociais
capazes de contribuir na construção ideológica da sociedade fraternal
de cunho universal, a precisar dos filósofos e jus-filósofos, dos teóricos
e filósofos teológicos, dos sociólogos e das comunidades afins, dos
governantes e dos detentores do poder, para que se conheça um pouco
mais do conceito e conteúdo do homem enquanto ser humano que se
deseja na sociedade.
REFERÊNCIAS
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de participação popular e fraterna na carta constitucional do brasil de 1988.
In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS JURÍDICOS, 2., 2014.
Sergipe. Anais eletrônicos... Sergipe: UFS, 2014. Disponível em: <http://
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Mandado de Injunção 27 Anos: História e Memória
201
MANDADO DE INJUNÇÃO 27 ANOS: HISTÓRIA E
MEMÓRIA
Luiz Felipe da Mata Machado Silva1
RESUMO: O mandado de injunção foi um dos instrumentos mais debatidos
da Assembleia Nacional Constituinte. Sua constitucionalização, contudo,
ensejou sentimentos diversos: entre a certeza de se estar escrevendo um
novo capítulo da história constitucional brasileira, comprometida com a
efetivação de direitos, e a criação de mais uma promessa do Estado a operar
como álibi (NEVES, 2011), fazendo-se do direito argumento legitimador
de exclusões a partir de compromissos sabidamente não cumpridos.
Entre as possíveis memórias em disputa (POMIAN, 2008), que impactam
decisivamente no modo pelo qual interpretamos o writ, advoga-se a tese de
que o instituto deve ser lido, apesar de todos os seus inúmeros percalços,
como um dos fios condutores que situa a Constituição de 1988 não como
mais uma promessa a ser futuramente cumprida, mas como instrumento
para se efetivar direitos aqui e agora (ANDRADE, 2011).
Palavras-chave: Mandado de injunção; memória; história; direitos
fundamentais
WRIT OF INJUNCTION: MEMORY AND HISTORY
ABSTRACT: The writ of injunction was one of the most debated
legal instruments in the national constitutional convention. Its
constitutionalisation, however, was met with mixed reactions: between
the certainty of a new chapter of the Brazilian constitutional history being
written, committed to the promotion of rights, and the creation of another
promise of the State operating as an alibi (NEVES, 2011), by turning law
into an argument which legitimates exclusions from commitments that
are knowingly unfulfilled. Among the possible memories in dispute
(POMIAN, 2008), I make the case for the thesis that the institute must
be read, in spite of all its countless obstacles, as one of the driving forces
responsible for situating the 1988 Constitution as not a promise to be
fulfilled in the future, but as an instrument to render rights effective here
and now (ANDRADE, 2011).
Keywords: Writ of injunction. Memory. History. Fundamental laws.
1 Procurador do Distrito Federal. Mestrando, na linha Direito e Democracia, pela Universidade de
Brasília – UnB.
RECEBIDO EM: 04/08/2015
ACEITO EM: 10/09/2015
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 201 - 218, jan./jun., 2015.
202
Luiz Felipe da Mata Machado Silva
1 INTRODUÇÃO
O mandado de injunção foi um dos institutos mais debatidos
durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC). E, principalmente,
um dos mais festejados. Sua repercussão foi tamanha que, na data da
promulgação da Carta, tanto o Presidente da ANC, Ulisses Guimarães,
como o Deputado Afonso Arinos, convidado para proferir o discurso de
encerramento dos trabalhos, fizeram expressa menção ao instituto.
Ulisses Guimarães enfatizou, em sua fala2, as promessas do novo
writ, que permitiria ao Poder Judiciário suprir a mora do Parlamento ao
publicar as leis ordinárias e complementares necessárias para disciplinar
a nova Carta e, assim, assegurar ao cidadão, imediatamente, os direitos
fundamentais por ela prometidos. Arinos, muito embora otimista com
o instituto, ressaltou que o Supremo Tribunal Federal deveria agir com
sabedoria para fazer do novel instituto uma realidade, não apenas uma
promessa3.
Ao mandado de injunção, portanto, estava imputada a difícil tarefa
de ser um dos instrumentos processuais, provavelmente o mais importante
deles, de viabilizar o exercício da extensa pauta de direitos estabelecidos
pela Carta de 1988. Ou, ao contrário, como sugeriram diversos autores e
juristas da época, ser a representação de mais um capítulo de promessas
não cumpridas do constitucionalismo brasileiro.
2
Nós, os legisladores, ampliamos nossos deveres. E teremos que honrá-los [...] Soma-se à nossa atividade
ordinária bastante dilatada a edição de 56 leis complementares e 314 leis ordinárias. Não esquecemos
que na ausência de lei complementar os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo
mandado de injunção. BRASIL. Ata da 341ª Sessão da Assembleia Nacional Constituinte. Diário
Oficial [da] Assembleia Nacional Constituinte, Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: <http://imagem.
camara.gov.br/Imagem/d/pdf/308anc05out1988.pdf#page=>. Acesso em: 6 set. 2012.
3
“A garantia dos direitos individuais é cada vez mais eficaz e operativa nas Constituições contemporâneas
[...]. Mas a garantia dos direitos coletivos e sociais, fortemente capitulados nos textos sobretudo dos
países em desenvolvimento, particularmente nas condições do Brasil, torna-se extremamente difícil,
para usarmos uma expressão branda, quaisquer que sejam as afirmações gráficas existentes nos
documentos, como este que estamos hoje comemorando. Afirmar o contrário é ingenuidade, ilusão
ou falta de sinceridade quem sabe falta de coragem. Direito individual assegurado, direito social sem
garantia. Eis a situação. Ao sr. Ministro Primeiro Presidente do Supremo Tribunal Federal é dirigida
essa exortação: o mandado de injunção vai ser o instrumento dessas experiênicas (palmas da platéia).
O desejável é que o Supremo Tribunal Federal, preservando suas tradições de competência, diligência
e integridade se esforce para encaminhar soluções viáveis e realistas ou para oferecer interpretações
aceitáveis às dificuldades, bem como rumos, caminhos, para o enfretamento gradual do texto e de sua
implementação.” BRASIL. Ata da 341ª Sessão da Assembleia Nacional Constituinte. Diário Oficial
[da] Assembleia Nacional Constituinte, Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: <http://imagem.camara.
gov.br/Imagem/d/pdf/308anc05out1988.pdf#page=>. Acesso em: 6 set. 2012.
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203
O writ corporificava, assim, já em seu nascimento, o que Neves
denomina de “ambivalência do simbólico” (NEVES, 2005), em que a
referência a um instituto jurídico tanto pode significar uma arma retórica de
utilização dos sobreincluindos (NEVES, 1993) para a manutenção do status
quo, como, também, pode servir a mobilizações sociais que conduzam à
sua concretização. Veja-se:
A referência simbólica a um determinado instituto jurídico caracterizado
por um alto grau de ineficácia normativo-jurídico serve tanto ao
encobrimento dessa realidade e mesmo à manipulação política para usos
contrários à concretização e efetivação das respectivas normas, quanto
a uma ampla realização do modelo normativo no futuro (NEVES, 2005,
p. 5).
No presente texto, pretende-se analisar a mudança do regime
jurídico adotada pelo Supremo Tribunal Federal a partir dos
MI 670 e 721, buscando-se compreender quais os efeitos dessa
alteração na promessa de concretização de direitos fundamentais do
writ. Buscar-se-á enfatizar um dos aspectos de sua ambivalência
simbólica: sua capacidade de mobilização para a construção de
discursos jurídicos voltados à concretização de direitos – sem
deixar de ressaltar os percalços em que esteve e que continua
submetido.
Mais que isso, pretende-se advogar que o mandado de injunção é
um importante capítulo de nossa história constitucional que, tendo como
marco a Constituição de 1988, representa um compromisso do poder
constituinte originário, renovado geração a geração, com a efetividade
de direitos fundamentais. E que a promessa de efetivação necessita se
dar aqui e agora (ANDRADE, 2011), devendo ser afastada a teoria dos
direitos fundamentais que se limita a explicar o seu descumprimento
categorizando-os como “não autoaplicáveis”.
Essa extensa, vetusta e ainda atual literatura, que busca situar o
cumprimento da Constituição a um momento futuro – como, por exemplo,
a teoria da “democracia possível” (FERREIRA FILHO, 1974) –, não deve ser
lida simplesmente como o reconhecimento da limitação socioeconômica
imposta à efetividade da Constituição, mas como o fundamento políticojurídico da manutenção do status quo – mesmo que, obviamente, não seja a
intenção de seus autores corroborar com essa situação.
Parte-se da premissa, detalhada em momento específico deste texto,
de que o novo mandado de injunção julgado pelo STF se insere, e é a
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Luiz Felipe da Mata Machado Silva
radicalização, de um processo de mudança paradigmática, adotada pela
jurisprudência do Tribunal, de centrar sua atividade em pronunciamentos
gerais e abstratos – “abstrativização” do exercício da jurisdição
constitucional. Nesse contexto, ao analisar o writ, demanda em que há
partes, causa de pedir e pedido delimitados, o Supremo não proferirá uma
decisão congruente à pretensão deduzida em juízo, mas buscará suprir a
omissão constitucional por meio da edição de uma norma geral e abstrata,
utilizando-se de típico discurso justificação de norma (GÜNTHER, 2004).
Busca-se analisar, assim, a partir dos desdobramentos do julgamento
do MI 721, Relatoria Min. Marco Aurélio, quais os resultados práticos
do novo posicionamento do Tribunal na perspectiva de regularidade e
generalização do cumprimento, pelo Estado, dos direitos fundamentais.
Em outros termos, o objetivo é compreender em que medida é possível
mensurar os avanços e lidar com os percalços do novo posicionamento a
partir de uma leitura constitucional comprometida com a efetividade de
direitos fundamentais.
2 O PROBLEMA DO MANDADO
CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA
DE
INJUNÇÃO:
A
Discutir o mandado de injunção é enfrentar uma das questões
mais complexas e debatidas pela Assembleia Nacional Constituinte: o
problema de eficácia e efetividade das normas constitucionais em países
cuja historiografia denota diferente acesso dos cidadãos aos direitos que
compõem o conceito material de cidadania.
Segundo Neves, as constituições das sociedades periféricas
apresentam “situações de hipertrofia do político-simbólico em desfavor
da força normativo-jurídica do texto constitucional” (NEVES, 2005, p. 5).
Ou seja, as normas constitucionais são utilizadas como promessas políticas
incapazes de serem colocadas em prática pelo sistema jurídico, em razão
de seu “mau funcionamento”.
Leciona o autor que as sociedades periféricas compõem, juntamente
com as centrais, a sociedade mundial, sistema social abarcante que tem a
comunicação como unidade elementar. Estão sujeitas, portanto, aos efeitos
da evolução social, processo marcado pela complexificação e diferenciação
funcional (NEVES, 2011).
O que as diferencia das sociedades centrais, contudo, é a
incapacidade dos subsistemas de se reproduzirem autonomamente a
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Mandado de Injunção 27 Anos: História e Memória
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partir de seu próprio código, estando sujeitos a influxos oriundos de
outros subsistemas. Em outros termos, os subsistemas sociais não podem
ser considerados autopoiéticos (LUHMANN, 2007):
O conceito de autopoiese será definido mais enfaticamente por
Luhmann (...) como autorreferência dos elementos sistêmicos [...]
Um sistema pode ser designado como autorreferencial, se ele mesmo
constitui, como unidades funcionais, os elementos de que é composto
[...] (NEVES, 2008, p. 63).
Importante relembrar que a autopoiese, para Luhmann, é condição
sine qua non para o fechamento e, consequentemente, para a abertura
dos sistemas: a diferenciação funcional estabelece uma diferença com o
ambiente – fechamento – e, ao fazê-lo, permite a sua respectiva abertura
(LUHMANN, 2007).
O sistema jurídico, nesse sentido, é, por um lado, normativamente
fechado, uma vez que sua reprodução dá a partir do próprio direito, ou
seja, por meio do código que diferencia o sistema de seu ambiente – lícito/
ilícito. Por outro, cognitivamente aberto, estando sujeito, assim, a uma
irritação permanente do entorno (LUHMANN, 1998).
Nesse sentido, explica Neves (1994, p. 258) que a autopoiese do
sistema jurídico implica que a vigência jurídica das expectativas normativas
não está sujeita aos códigos definidores dos demais subsistemas sociais,
mas decorre de processos seletivos ditados pelo próprio direito.
O sistema jurídico pode assimilar, de acordo com seus próprios critérios
os fatores do ambiente, não sendo diretamente influenciado por estes.
A vigência jurídica das expectativas normativas não é determinada
imediatamente por interesses econômicos, critérios políticos,
representações éticas, nem mesmo por proposições científicas; ela
depende de processos seletivos de filtragem conceitual no interior do
sistema jurídico.
Nos países periféricos, ao contrário, a reprodução do sistema jurídico
não se dá por meio de operações do próprio sistema, mas está sujeita a
interferências advindas, especialmente, dos sistemas político (poder/
não poder) e econômico (ter/não ter). Com efeito, o sistema jurídico não
opera de forma generalizadamente includente, produzindo fenômenos de
sobreintegração e subintegração (NEVES, 2008).
Nesse contexto, as Constituições realizam promessas abundantes,
mas sem que haja qualquer compromisso com a sua efetividade.
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Luiz Felipe da Mata Machado Silva
Apresentam-se, portanto, como um álibi (NEVES, 1994) dos governantes,
sendo utilizada para a manutenção do status quo, não como uma efetiva
busca por direitos. O sistema jurídico não é capaz de gerar expectativas
normativas generalizadas, inserindo apenas parcela da população em
direitos que, em última análise, transforma-os em privilegiados – os
sobreintegrados.
Contudo, ressalta o autor, essa simbologia é ambivalente. Assim,
como pode se apresentar como álibi para a manutenção do establishment,
pode implicar na mobilização de lutas sociais que implicam em aquisição
de direitos (NEVES, 2005) – e essa é a vertente que se busca empreender
no presente texto.
3 OS DISCURSOS EM DISPUTA EM TORNO DO MANDADO DE
INJUNÇÃO
Considerando a constitucionalização simbólica como o problema
a ser enfrentado pelo mandado de injunção, necessário reconstruir,
brevemente, os discursos em disputa do instituto durante a Assembleia
Nacional Constituinte.
O writ recebeu, durante toda a ANC, amplo apelo popular, o que
resultou em sua aprovação por 432 votos favor e nenhum contra4. Contudo,
apesar da expressiva vitória dos defensores do instituto, fundamental
ressaltar que não foram poucas as vozes que lhe foram contrárias.
Para Campos5, a Constituição de 1988 seria “utópica no seu
aspecto social, generosa na política, irrealista na economia e engraçada
na parte cultural”. Ainda segundo o Senador, “se direitos sociais fossem
assegurados por uma Constituição se deveria fazer uma Constituição por
ano6”. Especificamente sobre o mandado de injunção, diz que sua criação
permitirá que um cidadão do interior da Paraíba pudesse, por meio do
Poder Judiciário, exigir uma mesma remuneração percebida em São
Paulo. Contudo, ressaltou, essa remuneração, em razão das condições
socioeconômicas brasileiras, não será paga.
Para o então Ministro da Indústria e Comércio, Roberto Cardoso
Alves, seria um absurdo se o judiciário concedesse algum desses direitos
constitucionais sem uma prévia lei ordinária. “Mandado de injunção é
4
INJUNÇÃO e habeas data passam por unanimidade. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 2, 11 fev.
1988.
5
ROBERTO Campos ataca a nova carta. Jornal da Tarde, São Paulo, n. 7006, p. 3, 24 set. 1988.
6
Ibid., p. 3.
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Mandado de Injunção 27 Anos: História e Memória
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o veneno ministrado em litros pelos que pensavam que ministravam o
antídoto em gotas7”, assevera.
Esse entendimento, que concebe os direitos fundamentais
resguardados pela Constituição de 1988, especialmente os de natureza
social, como uma promessa futura, a ser efetivada no momento em que o
legislador ordinário disciplinasse a matéria, obteve inicialmente apoio de
juristas de renome.
Sepúlveda Pertence, então Procurador Geral da República, foi
uma das vozes mais importantes que advogou essa tese8. Segundo o
jurista mineiro, em discurso proferido na Subcomissão de Garantia da
Constituição, Reformas e Emendas, com a superação do modelo liberal de
Estado, um dos problemas centrais do constitucionalismo contemporâneo
seria o de conferir efetividade aos direitos constitucionais sociais não
autoaplicáveis. A omissão inconstitucional, contudo, seria uma questão
política, e, exatamente por isso, a atuação do Supremo Tribunal Federal
como órgão julgador do mandado de injunção seria ineficaz. Propõe, então,
que o Parlamento tivesse “imaginação” para a fundar um órgão, composto
por todos os Poderes da República, com poderes legislativos permanentes,
cujo objetivo seria enfrentar esse problema de forma contundente9.
Em outros termos, asseverou Sepúlveda Pertence, em sentido
contrário à maioria dos constituintes, que o mandado de injunção não se
7
CARDOSO, Teresa. Constituintes denunciam manobra de conservadores. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, p. 4, 21 set. 1988
8
Nesse sentido, veja: SEPÚLVEDA desafia senador a definir mandado de injunção. O Globo, Rio de
Janeiro, p. 6, 22 set. 1988
9
“[...] Surge, aí, o problema técnico mais difícil do Direito Constitucional moderno, que é como
dar consequência às garantias, aos direitos a prestações positivas do Estado. Surge, ai, o problema
dramático da eficácia das chamadas normas constitucionais programáticas, e, ai sim, surge um tema
apaixonante
do controle de constitucionalidade moderna, é a chamada inconstitucionalidade
por omissão.
[...]
E aí. sim, creio que a imaginação política estaria desafiada a encontrar. na futura Constituição, um
órgão eficaz de provocação, de pensamento constante, de reflexão constante, sobre onde tem falhado e
implementação das normas constitucionais, por falta de providências legislativas ou administrativas,
com um certo poder de injunção para que essas providências viessem a ser tomadas.
[...]
No esboço da Comissão Afonso Arinos mais ou menos se pretendeu traduzir Isso, confiando ao
Supremo Tribunal Federal esta recomendação. Para essa tarefa política, considero realmente pouco
eficaz o Supremo Tribunal Federal. Creio que aí, sim, se teria de pensar, e confesso que não trago
ideias prontas, num mecanismo de composição heterogênea dos vários poderes, com um poder
permanente de iniciativa legislativa para implementação constitucional.”
[...]
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208
Luiz Felipe da Mata Machado Silva
prestaria, se julgado pelo Poder Judiciário, a suprir a omissão do Poder
Legislativo, já que o exercício da jurisdição não poderia se imiscuir em
tarefa atribuída constitucionalmente aos Poderes responsáveis pela
condução política do Estado.
Como se sabe, essa foi a posição adotada pelo STF, no MI 107, de
Relatoria do Ministro Moreira Alves, posicionamento que acabou por
esvaziar por completo o instituto e, consequentemente, as promessas a
ele subjacentes. Os direitos fundamentais não autoaplicáveis, assim, não
poderiam ser titularizados pelo cidadão enquanto o Congresso Nacional,
ou outro órgão eventualmente competente, não viesse a criá-los. E, como
não competiria ao Poder Judiciário criar direitos, mas aplicá-los, estaria
fadado a meramente comunicar ao Parlamento a sua mora.
Contudo, deve-se ressaltar que o próprio STF, diante das enormes
críticas sofridas, foi mitigando essa malfadada interpretação, permitindo
ao impetrante gozar, mesmo parcialmente, do direito pleiteado10. Nesse
sentido, nos mandados de injunção 232 e 605, por exemplo, ao declarar a
mora da União em disciplinar a imunidade tributária prevista no artigo
195, parágrafo sexto, da Constituição, estabeleceu que, caso não fosse
suprida a mora no prazo de seis meses, faria jus o contribuinte ao benefício
pleiteado11.
4 AS MEMÓRIAS12 EM DISPUTA EM TORNO
A IMPORTÂNCIA DE SUA RESSIGNIFICAÇÃO
DA
ANC.
Como já se observa das discussões apresentadas nos tópicos
anteriores, a memória em torno do mandado de injunção insere-se em uma
discussão mais ampla: o que significou a Assembleia Nacional Constituinte
de 1988 e a sua promessa de efetivação de direitos?
10 No mesmo sentido, assegurando parcialmente o direito do impetrante, veja-se também o MI 562, de
Relatoria Ministra Ellen Grace.
11 Mandado de injunção. - Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por
falta de regulamentação do disposto no par. 7. do artigo 195 da Constituição Federal. - Ocorrência, no
caso, em face do disposto no artigo 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na regulamentação
daquele preceito constitucional. Mandado de injunção conhecido, em parte, e, nessa parte, deferido
para declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo
de seis meses, adote ele as providencias legislativas que se impõem para o cumprimento da obrigação
de legislar decorrente do artigo 195, par. 7., da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que
essa obrigação se cumpra, passar o requerente a gozar da imunidade requerida.
(MI 232, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, TRIBUNAL PLENO, julgado em 02/08/1991, DJ 27-031992 PP-03800 EMENT VOL-01655-01 PP-00018 RTJ VOL-00137-03 PP-00965).
12
Sobre a distinção entre memória e história, vide POMIAN, Drzysztof. Sobre la historia. Traducción
Magalí Martínez Solimán. Madrid: Cátedra: 2008.
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Mandado de Injunção 27 Anos: História e Memória
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A construção de uma das memórias em disputa contou com a
participação de importantes agentes estatais. Nesse sentido, o então
Presidente do STF, Moreira Alves, na abertura da Assembleia Nacional
Constituinte, buscou concebê-la como um “termo final do período de
transição com que, sem ruptura constitucional e por via de conciliação,
se encerra (o) ciclo revolucionário13” Em outros termos, a Carta não
representaria uma ruptura implementada pelo poder constituinte
originário, mas uma mera continuidade pautada pela conciliação.
O então Presidente da República José Sarney, nas vésperas da
promulgação da Constituição, emitiu pronunciamento em rede nacional
concebendo o futuro do país como absolutamente aterrorizante, já
que a nova Carta faria do Brasil um país ingovernável14 (BONAVIDES;
ANDRADE, 2004). Era latente a aversão e o receio dessa elite política ao
novo momento que estaria por vir.
Essa específica leitura da Constituição de 1988, ainda hoje
repercutida por parte da doutrina e da mídia, é signatária da adoção de
uma das facetas da simbolização constitucional, evidentemente a mais
perversa: os direitos fundamentais assegurados na Constituição, nessa
transição conciliatória, representariam uma mera promessa a ser cumprida
na medida “do possível”, e “se possível”.
Ao contrário desse entendimento, o mandado de injunção pode ser
compreendido como o resultado de ampla manifestação da sociedade civil
em se construir um novo compromisso constitucional15. Em outros termos,
o instituto pode ser compreendido não sob sua faceta de álibi (NEVES,
2011), mas como resultado de um novo compromisso na busca por
concretização de direitos, da qual a Constituição de 1988 é o fio condutor.
Essa reapropriação em torno do mandado de injunção pressupõe,
igualmente, um recontar da história e da memória da própria Assembleia
Constituinte. Necessário se faz afastar a tese, amplamente divulgada pelos
setores conservadores da sociedade e do Estado, de que a nova Constituição
13 ALVES, José Carlos Moreira Alves. Assembleia Nacional Constituinte: instalação. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, ano 24, n. 93, jan./mar. 1987. Disponível em: <http://www2.senado.
leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/224180/000862703.pdf?sequence=1>. Acesso em: 16 ago. 2014.
14 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História Constitucional do Brasil. Brasília: Editora da OAB, 2004.
15 Nesse sentido, vide Casseb, (2011).
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210
Luiz Felipe da Mata Machado Silva
não inauguraria um novo momento histórico, mas representaria apenas
uma transição conciliatória.
Mas qual seria, na prática, a importância da mudança dessa ressignificação?
O conhecimento desenvolve-se a partir de paradigmas: a précompreensão compartilhada pelos intérpretes sobre qual direito nós temos
é fundamental para estabelecermos a dimensão do nosso compromisso
frente a Constituição.
Interpretar, segundo Dworkin16, é, sempre um ato coletivo. O
intérprete irá se debruçar sobre determinados elementos do qual já existe
uma tradição pretérita que permite e, ao mesmo tempo, limita o modo
pelo qual se é possível conhecer. Superadas as escolas que supunham uma
relação imediata entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, sabese hoje que o conhecimento somente é possível se desenvolvido a partir
de paradigmas, por meio de uma atividade necessariamente intersubjetiva
(HABERMAS, 200217).
Ainda segundo Dworkin, não há dúvidas sobre a inexorável
possibilidade de diferentes interpretações acerca de qual norma concreta
disciplinará determinado litígio. Contudo, é imprescindível que os
intérpretes assumam a responsabilidade de adotar a melhor interpretação
possível, tendo como pano de fundo o princípio da integridade do
ordenamento jurídico18.
16 DWORKIN, Ronald. Is there Truths in interpretation? Law, Literature and History. Palestra
ministrada na Library of Congress Of United States, em 26 Oct. 2009. Disponível em: <https:// www.
youtube.com/watch?v=742JyiqLhuk>. Acesso em: 4 de agosto de 2015.
17 Leciona Habermas que o sujeito cognoscente está necessariamente inserido dentro do processo pelo
qual ele conhece e interfere no mundo; não olha para si ou para as demais entidades como mero
observador. Partindo dessa premissa, propõe redefinir o conceito de razão, que denomina solipsista,
para transportá-la para o medium da razão comunicativa: “se transportarmos o conceito de razão
para o médium linguístico e o aliviarmos da ligação exclusiva com o elemento moral, ele adquirirá
outros contornos teóricos, podendo servir aos objetivos descritivos da reconstrução de estruturas da
competência e da consciência, além de possibilitar a conexão com modos de ver funcionais e com
explicações empíricas” (HABERMAS, 2002, 415)
18 Dentro de sua complexa teoria do direito, Dworkin trata propõe um conceito de integridade que
em que insiste que “as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo,
combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática
jurídica contemporânea como uma política em processo desenvolvimento (...) O princípio jurídico
de integridade instrui os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir
do pressuposto de que foram todos criados por um único autor – a comunidade personificada,
expressando uma concepção coerente de justiça e equidade” (DWORKIN, 1999, 272/273).
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Mandado de Injunção 27 Anos: História e Memória
211
Assim, na medida em que interpretar é sempre um ato coletivo, no
qual nos inserimos em uma determinada tradição que conjuga determinado
pano de fundo compartilhado de silêncio (CARVALHO NETTO, 2003) do
que é a Constituição, é fundamental que afastemos do nosso jurista a tese
que lhe dá a tranquilidade moral de tratar a Constituição como mero ideal
regulativo.
De outro modo, é imprescindível que se incuta no aplicador do
direito, um dos possíveis intérpretes da Constituição – e um intérprete
indiscutivelmente privilegiado –, a dimensão de sua responsabilidade em
que ela a transforme em vida, em prática cotidiana.
Principalmente, é preciso desenvolver na sociedade uma précompreensão compartilhada de que os direitos fundamentais devem ser
cumpridos e, caso não o sejam, que se tornem imediatamente fonte de
reivindicação pela sua efetividade (NEVES, 2011).
Daí a importância de se compreender os direitos sociais previstos
pela Carta, não como uma retórica, mas como um compromisso real,
passível de exigência aqui e agora (ANDRADE, 2011), mesmo diante de
todas as óbvias limitações que essa afirmação representa. E é exatamente
esse o contexto em que o mandado de injunção ocupa papel de relevo –
redefinido especialmente após a mudança da jurisprudência do STF, em
2007.
5 O MANDADO DE INJUNÇÃO E O STF: DA INEFICAZ GARANTIA
À TUTELA OBJETIVA DA ORDEM CONSTITUCIONAL
Analisando-se os diferentes caminhos trilhados pelo STF em torno
do Mandado de Injunção, a alteração de posicionamento da Corte em torno
do MI 670 e 721 é, sem dúvida, um importante objeto de análise desse
processo de continuidades e descontinuidades da promessa constitucional
de efetividade dos direitos sociais, bem como pode cumprir um papel
importante na construção de uma determinada memória do processo
constituinte de 1988.
Adentrando-se na análise dos mencionados julgados, no MI 721 o
STF, declarando a omissão do legislador em regulamentar o direito dos
servidores públicos à aposentadoria especial, assegurado pelo artigo 40, §
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Luiz Felipe da Mata Machado Silva
4º, CF, determinou à Administração a análise da existência do direito da
impetrante à luz da Lei 8.213/91, que disciplina a matéria para a iniciativa
privada. O Plenário, por atribuir efeito inter partes à decisão, autorizou
que os Ministros aplicassem, monocraticamente, nos casos semelhantes, o
posicionamento firmado pelo colegiado19.
Em relação ao direito de greve dos servidores públicos, tratado no
MI 670, o Supremo, ao adotar a teoria concretista geral, foi além: suprindo
a inércia do legislador ordinário, estabeleceu quais as normas deveriam ser
aplicadas para regulamentar o artigo 37, inciso II da Constituição, dotando
a decisão de eficácia erga omnes.
Nota-se que a Corte, em ambos os casos, não irá julgar o caso concreto
ao dar provimento ao writ. Em outros termos, o impetrante, embora
postule em juízo uma demanda claramente delimitada, por meio de um
pedido e uma causa de pedir específicos, não obterá do STF uma sentença
congruente à sua postulação. De outro modo, o Tribunal produzirá uma
decisão emitindo uma ordem a um órgão da Administração determinandolhe que analise a pretensão do particular com fundamento em uma
normatização geral e abstrata por ele definida. Em caso de divergência
na aplicação das regras e princípios estabelecidos pelo STF (e pelas já
existentes no ordenamento), competirá às instâncias ordinárias analisar
o caso concreto – ou eventual reclamação diretamente ao Supremo, nas
hipóteses em que a decisão gozar de eficácia erga omnes.
Independentemente dos efeitos conferidos às decisões, observa-se
que o provimento da Suprema Corte, em sede de mandado de injunção,
privilegia não mais a composição de litígios envolvendo partes e objeto
19 MANDADO DE INJUNÇÃO - NATUREZA. Conforme disposto no inciso LXXI do artigo 5º da
Constituição Federal, conceder-se-á mandado de injunção quando necessário ao exercício dos
direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à
cidadania. Há ação mandamental e não simplesmente declaratória de omissão. A carga de declaração
não é objeto da impetração, mas premissa da ordem a ser formalizada. MANDADO DE INJUNÇÃO
- DECISÃO - BALIZAS. Tratando-se de processo subjetivo, a decisão possui eficácia considerada a
relação jurídica nele revelada. APOSENTADORIA - TRABALHO EM CONDIÇÕES ESPECIAIS PREJUÍZO À SAÚDE DO SERVIDOR - INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR - ARTIGO 40,
§ 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial
do servidor, impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em
geral - artigo 57, § 1º, da Lei nº 8.213/91
(MI 721, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2007, DJe-152 DIVULG
29-11-2007 PUBLIC 30-11-2007 DJ 30-11-2007 PP-00029 EMENT VOL-02301-01 PP-00001 RTJ VOL00203-01 PP-00011 RDDP n. 60, 2008, p. 134-142).
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Mandado de Injunção 27 Anos: História e Memória
213
determinados, atividade que historicamente caracterizou o Poder
Judiciário. De outro modo, volta sua atuação ao exercício de justificação
da validade das normas (GÜNTHER, 2004), estabelecendo qual legislação
deve ser utilizada para suprir a omissão inconstitucional. Competirá aos
demais órgãos do Estado julgar a demanda concreta, à luz dos princípios
e regras estabelecidos pela jurisdição constitucional. Há, portanto, em
apertada síntese, uma evidente “dissociação da atividade jurisdicional em dois
momentos distintos”: a criação da norma, pelo STF, e a sua aplicação, por
algum órgão do Estado – com decisão evidentemente sujeita a revisão, por
órgãos ordinários do Poder Judiciário.
Após o julgamento do MI 721, os Ministros Relatores do STF
deferiram dezenas de julgados reproduzindo a manifestação do
Plenário, afirmando que os servidores públicos gozariam do direito de
aposentadoria especial aplicando-se, “no que couber”, as regras previstas
pela legislação ordinária que trata da aposentadoria especial no Regime
Geral de Previdência (Lei 8.213/91) e na Lei Complementar 142/2013, que
disciplina a matéria para as pessoas com necessidades especiais20.
Em razão da atribuição da eficácia inter partes e do excessivo número
de Mandados de Injunção impetrados no STF, a Corte editou a Súmula
Vinculante 3321, que, mantendo suas manifestações anteriores: a) afirmou
que os servidores fariam jus à aposentadoria especial; b) mas não delimitou
quais seriam esses direitos, cuja aplicação ao caso concreto deverá ser feita
pela Administração Pública, com recurso ao Judiciário.
Importante analisar, então, quais as implicações desse novo
posicionamento em termos de efetivação de direitos, especialmente
sob dois dos principais aspectos debatidos na ANC: a efetividade e
generalização do acesso a direitos.
20
AGRAVO REGIMENTAL NO MANDADO DE INJUNÇÃO. APOSENTADORIA ESPECIAL.
SERVIDOR PÚBLICO PORTADOR DE NECESSIDADES ESPECIAIS: ART. 40, § 4º, INC. I, DA
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. APLICAÇÃO DAS REGRAS DA LEI COMPLEMENTAR N.
142/2013, QUE DISPÕEM SOBRE APOSENTADORIA DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA SEGURADA
DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL – RGPS. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL
AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. (MI 1885 AgR, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal
Pleno, julgado em 22/05/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-114 DIVULG 12-06-2014 PUBLIC 1306-2014).
21 Súmula vinculante 33: “Aplicam-se ao servidor público, no que couber, as regras do regime geral da
previdência social sobre aposentadoria especial de que trata o artigo 40, § 4º, inciso III da Constituição
Federal, até a edição de lei complementar específica.”
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 201 - 218, jan./jun., 2015.
214
Luiz Felipe da Mata Machado Silva
6 O NOVO MANDADO DE INJUNÇÃO E A GENERALIZAÇÃO DAS
EXPECTATIVAS NORMATIVAS
O STF, ao suprir a não regulamentação do direito dos servidores
públicos imposta pela Constituição da República, mas sem julgar os casos
concretos que lhe são submetidos, emite uma ordem à Administração
Pública para que dê cumprimento à sua decisão. Em outros termos,
competirá ao Poder Executivo disciplinar o que se aplica do regime jurídico
da aposentadoria especial aos servidores públicos.
De início, deve-se observar que a decisão do STF não implicou
em uma manifestação do Poder Legislativo, o Poder competente para,
repercutindo a complexidade da sociedade civil, disciplinar o gozo do
direito previsto pela Constituição de uma forma geral e abstrata.
Assim, no âmbito da União, coube à Secretaria de Gestão Pública do
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão exercer essa competência,
por meio da edição da Orientação Normativa n. 16, de 23 de dezembro de
2013.
Ademais, se é certo que a disciplina em questão servirá de base para
as demais unidades federativas, como de regra acontece com a produção
normativa oriunda da União, inexoravelmente em cada uma delas haverá
uma norma específica para disciplinar a complexa aquisição do direito
em questão: a) como caracterizar a atividade especial; b) quais as normas
adequadas para disciplinar essa aquisição; c) quais as fórmulas de cálculo
do benefício; d) como será seu reajuste; e) quando iniciam os efeitos
financeiros; f) quais as atividades são caracterizadas como especiais; g)
os períodos de descanso disciplinados pela CLT são computados como
tempo de serviço especial?; h) etc.
Evidentemente, as questões ora levantadas são pequenas dúvidas
extraídas de uma breve leitura da norma em análise, mas é da complexidade
dos casos concreto que surgem as verdadeiras dúvidas da aquisição desse
direito.
Especialmente porque o juízo de adequação das diversas normas
gerais e abstrata que reclamam aplicação ao caso concreto apresenta dois
fatores especialmente complicadores: a) competirá a cada dirigente de
recurso humano a análise dos pedidos de aposentadoria especial (art. 26,
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 201 - 218, jan./jun., 2015.
Mandado de Injunção 27 Anos: História e Memória
215
Orientação Normativa n. 16, de 23 de dezembro de 2013); b) os Tribunais de
Contas da União e das Unidades Federadas ocuparão papel fundamental
nessa disciplina, já que são os órgãos que homologarão o ato de concessão
do benefício.
7 ALGUNS DOS PERCALÇOS ATUAIS
A decisão proferida pelo STF no MI 721 gerou implicações imediatas
na falta de regulamentação do artigo 40, parágrafo quarto, da Constituição
da República. Obteve efeitos importantes junto à Administração Pública,
que editou norma para disciplinar o gozo do exercício do direito à
aposentadoria especial do servidor público. Há, sem dúvida, uma
ampliação das perspectivas da concretização de direitos.
Importante notar que isso é possível, especialmente, em razão
da atuação do STF como um “legislador qualificado”: se, por um lado,
realiza o típico argumento de justificação de normas, por outro, atribui
efeito cogente às suas manifestações, afastando a possibilidade do não
cumprimento das normas por ele criadas.
Por outro lado, considerando que o Poder Legislativo omitiu-se em
seu dever de disciplinar a matéria, a decisão do STF implicará na regulação
do direito de aposentadoria especial do servidor público em todas as
unidades federadas que dispõem de regime próprio de previdência.
Observa-se, portanto, que haverá, para situações fáticas semelhantes,
diversas disciplinas distintas.
Ampliando-se a análise em torno do mandado de injunção, observase que, dos 5.200 julgados pelo STF a partir de 2005, 4.800 disseram
respeito à aposentadoria especial do servidor público. Trata-se de uma
demonstração muito ampla de que apenas parcela reduzida da população
teve acesso às promessas do instituto.
Deve-se observar, nesse ponto específico, que, excetuando a
importante discussão em torno do aviso prévio proporcional, cuja
manifestação do STF implicou na rápida edição de lei pelo Parlamento
para disciplinar a matéria, a maior parte dos mandados de injunção
julgados favoravelmente no STF disseram respeito a questões afetas a uma
determinada categoria que, historicamente, goza dos principais direitos
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 201 - 218, jan./jun., 2015.
216
Luiz Felipe da Mata Machado Silva
que dão acesso à cidadania22 em seu sentido material. De acordo com o
site do STF23, que, embora desatualizado, é representativo dessa realidade,
observa-se que os outros temas em que o Tribunal reconheceu a mora do
Legislativo foram: direito de greve do servidor público; lei complementar
federal para a criação de Municípios; criação de cargos, nos Estados, de
acordo com o modelo federal.
8 CONCLUSÃO
Apesar de todos os percalços enfrentados pelo mandado de
injunção, sua história, da Assembleia Nacional Constituinte à mudança de
entendimento do STF em 2007, é marcada por um discurso de efetivação
de direitos. Reforçar essa memória não é mero diletantismo intelectual.
Ao contrário, o comprometimento não apenas dos juristas, mas de
toda a sociedade com uma determinada pré-compreensão do papel da
Constituição torna-se um pano de fundo fundamental para ressignificar o
compromisso de todos com sua efetividade.
Deve-se ressaltar, especialmente, que a memória aqui advogada
se mostra absolutamente coerente com a historiografia do instituto.
Como demonstrado, mesmo ainda sobre a influência da jurisprudência
firmada sob a égide do MI 107, o grande percalço do writ, observou-se, em
razão do grande movimento de rejeição ao precedente, uma progressiva
flexibilização do entendimento inicialmente traçado, que veio a resultar
nos julgamentos do MI 670 e 721.
Se a adoção de um entendimento que se volta para uma tutela
abstrata de direitos, bem como sua utilização restrita essencialmente a
servidores públicos, ainda merece críticas24, há sem dúvida evolução
qualitativa do atual entendimento em relação a uma visão positivista da
separação de poderes e dos limites de concreção de direitos pelo Judiciário.
22 Neves conceitua a cidadania como a “integração jurídica igualitária na sociedade”. Ainda Segundo
o autor, “pode-se afirma que ela está ausente quando se generalizam relações de subintegração”
(NEVES, 1993, 260-261).
23 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.
asp?servico=jurisprudenciaOmissaoInconstitucional Acesso em 16 de agosto de 2014.
24 Veja-se, nesse sentido, Benvindo, 2011.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 201 - 218, jan./jun., 2015.
Mandado de Injunção 27 Anos: História e Memória
217
Esse novo entendimento mostra-se tão importante que permite
rechaçar, agora com o apoio do STF, o conceito de “direitos fundamentais
não autoaplicáveis”. Mesmo a expressão tendo sido expressamente
utilizada pelos Ministros Relatores tanto do MI 670 como do 721, está
definitivamente demonstrado que direitos fundamentais previstos pela
Constituição já são prima facie exigíveis; não é a lei ordinária que o cria25.
O que é necessário é o compromisso da sociedade em exigi-los e do Poder
Judiciário em efetivá-los.
9 REFERÊNCIAS
BENVINDO, Juliano Zaiden. Mandado de Injunção: Os riscos da
Abstração de Seus Efeitos no Contexto do Ativismo Judicial Brasileiro.
Observatório da Jurisdição Constitucional, ano 5, 2011/2012. Tópicos
Especiais. Mandado de Injunção.
BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História Constitucional do Brasil.
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Desafios Postos aos Direitos Fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio
Leite Sampaio (Org.). Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais.
Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
DWORKIN, Ronald. Is there Truths in interpretation? Law, Literature
and History. Palestra ministrada na Library of Congress Of United
States, em 26 Oct. 2009. Disponível em: <https:// www.youtube.com/
watch?v=742JyiqLhuk>. Acesso em: 4 de agosto de 2015.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Mandado de Injunção: do formalismo
ao axiologismo? O que mudou? In: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni
de; FERNANDES, Bernardo Gonçalves (Orgs.). Constituição e processo:
entre direito e política. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 13-30, 2011.
25 Nesse sentido, leciona Oliveira que não se deve confundir a definição do direito, que diz respeito ao
seu caráter prima facie, com o seu exercício, que pressupõe o juízo de adequação entre as normas que
reclamam aplicação e a realidade fãtica do caso concreto. “É, pois, necessário distinguir a “ ‘definição’
dos direitos (seu caráter prima facie) do seu ‘exercício’ (o caráter definitivo das normas que irão reger,
em cada caso, esse último), com base na diferenciação avançada, no marco do Estado Democrático de
Direito, entre os discursos de justificação e aplicação.” (OLIVEIRA, 1997, 185).
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 201 - 218, jan./jun., 2015.
218
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GÜNTHER. Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral.
Tradução Claudio Molz. São Paulo: Landy, 2004.
HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Trad. Luiz
Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
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NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. 3. ed. São Paulo:
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_______ Entre Têmis e Leviatân: Uma Relação Difícil. São Paulo: Martins
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crítica aos discursos oficiais sobre a chamada transição política brasileira.
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POMIAN, Drzysztof. Sobre la historia. Traducción Magalí Martínez
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O Rótulo Ecológico Europeu e a Cidadania Ambiental
219
O RÓTULO ECOLÓGICO EUROPEU E A CIDADANIA
AMBIENTAL
Carlos Sérgio Madureira Rodrigues1
RESUMO: O Ambiente atravessa uma crise profunda que coloca em
risco a existência do próprio ser humano. Tal crise é motivada por causas
naturais mas, principalmente, por uma economia humana que cresce sem
sensibilidade às limitações do nosso planeta e promovo um estilo de vida
consumista e irresponsável, em termos ecológicos. O rótulo ecológico
europeu é um instrumento de mercado que tem o potencial de ser uma
ferramenta ímpar na construção de uma economia verde mais sustentável
e inclusiva. O cidadão tem a oportunidade de desenvolver a facete «verde»
da sua cidadania através de um consumo responsável e inteligente, com
o apoio desta ferramenta. Desta forma, a flor europeia pretende ser,
acima de tudo, uma ferramenta ao serviço da luta pela sustentabilidade, o
único caminho possível para fazer face aos desafios ambientais globais e
construir uma sociedade melhor.
Palavras-Chave: cidadania ambiental, informação, participação, rótulo
ecológico, desenvolvimento sustentável
ABSTRACT: The environment is going through a deep crisis that
endangers the existence of the human being. This crisis is motivated
by natural causes but mainly by a human economy that grows without
sensitivity to the limitations of our planet and promote consumerist and
irresponsible lifestyle, in ecological terms. The European Ecolabel is a
market instrument that has the potential to be an unique tool in building
a more sustainable and inclusive green economy. The citizen has the
opportunity to develop a ‘green’ citizenship through responsible and
intelligent consumption, with the support of this tool. Thus, the European
flower intended to be, above all, a tool at the service of the struggle for
sustainability, the only possible way to tackle the global environmental
challenges and build a better society.
1
Jurista com o grau de Mestre em Ciências Jurídico-Políticas, menção em Direito Administrativo pela
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, natural de Vale de Cambra, Aveiro, Portugal, tlf:
910346417, e-mail: [email protected].
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 219 - 239, jan./jun., 2015.
220
Carlos Sérgio Madureira Rodrigues
KEYWORDS: environmental citizenship, information, participation,
ecolabel, sustainable development
1 INTRODUÇÃO
No rescaldo da Década das Nações Unidas da Educação para o
Desenvolvimento Sustentável (2005-2014), propomo-nos a analisar o
contributo do Direito para a prossecução do desenvolvimento sustentável.
Centramos a presente investigação na análise de um instrumento de
mercado que permite reforçar a cidadania ambiental – o rótulo ecológico
europeu. Este permite que os cidadãos tenham uma participação
informada no ato de consumo, assim contribuindo para a construção de
uma sociedade mais ajustada aos desafios ambientais globais.
O Direito pode ter um papel dinamizador, estimulador e orientador
da adoção de práticas e costumes sustentáveis. Enquadrado num
regime de promoção de boas práticas ambientais e sopesado o papel do
cidadão enquanto consumidor na sociedade industrializada, o regime do
Rótulo Ecológico Europeu – Regulamento (CE) 66/2010, de 21 de Abril -,
procura envolver consumidores e empresas na procura por um consumo
respeitador da sensibilidade e promotor da sua utilização racional.
Este rótulo destaca os produtos que, em comparação com os produtos
do mesmo grupo, têm um melhor desempenho ambiental. A sua atribuição
é feita de acordo com conjunto de critérios científicos e tecnológicos que
vão analisar o ciclo de vida do produto e, assim, determinar o seu impacto
ambiental. Desta forma, tanto produtores como consumidores têm as
ferramentas necessárias para fazer uma escolha informada e consciente.
Por outro lado, o consumidor surge, hoje, numa posição débil. A
multiplicidade de informação, maioritariamente divulgada sem rigor
científico de suporte, pode provocar confusão e desinteresse. O seu poder
de compra tem o potencial para influenciar empresas e distribuidoras
a adotarem comportamentos sustentáveis. Ao diferenciar os produtos
e destacar os melhores em termos de desempenho ambiental, o rótulo
ecológico procura conciliar este poder do consumidor com a estratégia
de marketing dos produtores. Evita-se, assim, que o consumidor opte
satisfazer as suas compras ao menor custo financeiro possível. Cumpre
evidenciar que a noção de “verdadeiro custo” de um produto engloba,
entre outros fatores, o impacto ambiental do mesmo, aferido através da
análise do ciclo de vida.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 219 - 239, jan./jun., 2015.
O Rótulo Ecológico Europeu e a Cidadania Ambiental
221
2 O DIREITO EUROPEU RUMO À SUSTENTABILIDADE
2.1 ENQUADRAMENTO LEGAL
A Europa atravessa um período de rescaldo após uma intensa crise
económico-financeira que pôs a descoberto forças e fraquezas, áreas com
potencial e outras ainda em fase de precoce desenvolvimento. Os sistemas
de controlo económico e financeiro viram-se forçados a fazer uma viragem
drástica, obrigados a assumir responsabilidades. Tal viragem teve também
implicações a nível da governação política dos sistemas financeiros, que se
quer mais intensa, inspirada pelos paradigmas da democracia participativa
e da sustentabilidade.
O Ambiente, pelo contrário, encontra-se ainda em plena crise,
perpassado por diversos desafios preocupantes: alterações climáticas,
aquecimento global, escassez de recursos naturais e extinção de espécies,
apenas para enumerar alguns. O status quo da biosfera e dos ecossistemas
é vital para a manutenção das condições necessárias à existência de vida
(também humana), pelo que cumpre tomar a iniciativa e adotar princípios
e práticas que visem a salvaguarda do nosso único planeta. Um desafio
global requer uma solução também ela global2.
A própria Democracia enquanto organização política da sociedade
encontra-se em permanente evolução3. A cidadania democrática deve
ser participativa, ativa e eficaz, centrada no desafio do desenvolvimento
sustentável em prol tanto das gerações presentes, como das gerações
futuras. A proteção do ambiente é a proteção do próprio Ser Humano, o
qual deve encarar este desafio global de forma consciente, informada e
pró-ativa. A Democracia é a melhor resposta possível, ao caracterizar-se
pelos direitos à informação e participação cujo exercício a reforça tanto
enquanto instituição como enquanto prática.
2
Conforme o art. 66º da Constituição da República Portuguesa (CRP), os artigos 3º e 11º do Tratado
sobre o Funcionamento da União Europeia, bem como o Título IV da Declaração do Milénio das
Nações Unidas e o 7º Objetivo do Desenvolvimento do Milénio.
3
Colocando em perspetiva a democracia liberal, as suas conquistas e desafios, Hobsbawm conclui que
a “moderna república democrática representativa” encontra-se perpassada pelos desafios impostos
pela globalização económica, as tensões políticas e confrontos entre alguns Estados, a evolução
e independência dos meios de comunicação e a necessidade de os Governos serem das e para as
pessoas (isto é, de os Governos deverem ter em conta a vontade popular, de onde deriva a soberania
e a legitimação para os mesmos atuarem). Este cenário estimula o debate académico e diversifica a
realidade, sobre o qual o primeiro reflete, de forma tão incisiva que não obstante se afirmar que a
Democracia não se encontra, para já, em risco, a mudança que o Mundo atravessa terá importantes
consequências também nesta área. Neste sentido, e para mais desenvolvimentos, vide HOBSBAWM,
E., Globalização, Democracia e Terrorismo, Lisboa: Editorial Presença, 2007, pp. 91 – 111.
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222
Carlos Sérgio Madureira Rodrigues
Consciente da influência do poder de compra dos consumidores, a
Europa desenhou um rótulo unitário e de sentido uniforme que permite
distinguir, de entre certa categoria de produto, bem ou serviço, aquele
que se destaca por um melhor desempenho ambiental. Este rótulo orienta
o consumidor, reforçando a sua participação e conhecimento (sobre
matérias ambientais), o que permite reforçar o caráter democrático da sua
participação no mercado. Pelo exposto, defendemos que o rótulo ecológico
europeu é um instrumento de mercado capaz de proteger o ambiente e o
consumidor, reforçar a Democracia e contribuir para o desenvolvimento
sustentável.
Trata-se de mais um instrumento da Europa para a prossecução
dos seus objetivos ambientais, económicos e sociais. Encaixa num modelo
de desenvolvimento racional e sustentável, i.e., aquele desenvolvimento
que apoiando-se nas melhores técnicas disponíveis, promove o
desenvolvimento económico-societário, bem como a proteção dos cidadãos
e do Ambiente.
Traçado este quadro preliminar, lançamos agora um olhar sucinto
sobre o Direito Europeu do Ambiente. Para tanto, recordamos duas noções
estruturantes4. Em primeiro lugar, a aplicabilidade direta. Assim, não
existe necessidade de qualquer ato de transformação ou receção do Direito
Europeu nas ordens jurídicas nacionais para que o mesmo produza efeitos.
A aplicação torna-se mais rápida, uniforme e eficaz. Em segundo lugar, a
primazia, que permite ao Direito Europeu aplicar-se em vez ou mesmo
contra os direitos nacionais. Procura-se assim salvaguardar a melhor
proteção possível dos direitos dos cidadãos europeus.
Por estas caraterísticas, podemos perceber que o Direito Europeu (do
Ambiente) tem um efeito impulsionador das ordens jurídicas nacionais.
Ao estabelecer critérios exigentes no domínio da política ambiental (como,
por exemplo, o nível de proteção elevado, nos termos do artigo 174º/2 do
TFUE), e sanções para os Estados-Membros que incumpram as normas
europeias, o Direito Europeu contribui para o desenvolvimento das ordens
jurídicas dos seus Estados-Membros. Cumpre referir ainda que este Direito
se caracteriza por uma maior distância face a grupos de pressão (lobbies), o
que contribui para uma política do ambiente mais rápida e isenta.
As políticas ambientais, antes restritas ao controlo da poluição
atmosférica, alastraram-se para os domínios político e social, como se torna
4
Orientados por Aragão, A., Direito Comunitário do Ambiente, cadernos CEDOUA, Almedina,
Coimbra,
disponível
em:
https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/15282/1/cadernos%20
CEDOUA%20direito%20comunitario%20_Parte%20I_.pdf.
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O Rótulo Ecológico Europeu e a Cidadania Ambiental
223
evidente pela emergência de uma consciência global em torno dos desafios
ambientais. De facto, o Ambiente está presente nas agendas políticas de
forma diversa mas incisiva. As medidas governamentais visam a proteção
e recuperação do meio ambiente, bem a redução da produção e do consumo
(num quadro de desenvolvimento sustentável), a par da promoção da
pedagogia ambiental5. O escopo primordial prende-se com a utilização
eficiente e equilibrada dos recursos naturais6. No contexto internacional,
mais amplo que o espectro europeu presente nestas linhas, notamos uma
evidente expansão da legislação ambiental, bem como de convenções e
acordos que apelam à cooperação internacional e transfronteiriça.
O Sétimo Programa Europeu de Ação em matéria de Ambiente
para 2020, intitulado “Viver bem, dentro dos limites do nosso planeta”,
foi instituído pela Decisão n.º 1386/2013/UE, de 20 de Novembro, do
Parlamento e do Conselho Europeus. Reconhece que a União colocou a
si própria o objetivo de se tornar uma economia inteligente, sustentável e
inclusiva até 2020, através de um conjunto de políticas e ações direcionadas
a desenvolver uma economia hipocarbónica e altamente responsável na
utilização dos recursos. Baseia-se nos princípios da precaução, prevenção,
correção na fonte e poluidor-pagador. Deve contribuir para um elevado
nível de proteção e uma melhor qualidade de vida e bem-estar dos
cidadãos.
Parte das conclusões retiradas do seu antecessor7 – não obstante
alguns avanços, tendências insustentáveis persistem, traduzindo-se
em alterações climáticas, perdas a nível de biodiversidade, ambiente e
saúde, bem como de recursos naturais. Para combater estas tendências, o
Programa apoia a implementação dos resultados e compromissos saídos
5
O cidadão desempenha um papel fundamental no mundo global, pelo que deve estar informado e
sensibilizado para lidar com os desafios ambientais. Neste sentido, ARAGÃO, A. e OLIVEIRA, F. e
CONDE, A., Educação Ambiental e urbana para o desenvolvimento sustentável, in RevCedoua, nº 33,
Ano XVII, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 125 a 136.
6
Neste sentido, GRAU CREUS, Mireia, Política Medioambiental: la formación de la Agenda
Gubernamental en el Estado Español, in VICENTE GIMÉNEZ, Teresa (coord.), Justicia Ecológica
y protéccion del médio ambiente, Espanha, Editoria Trotta, 2009, pp. 83 – 98. A Autora propõe-se
explicar a da agenda governamental em Espanha, no que respeita às políticas ecológicas. Conclui
que a renovação geracional tem desempenhado um papel fulcral no sentido de uma maior
consciencialização dos desafios ambientais.
7
O Sexto Programa, “Ambiente 2010: o nosso futuro, a nossa escolha”, foi instituído pela COM
(2001) 31 final, de 24 de Janeiro. Propugnava por uma escolha informada e consciente por parte
dos consumidores, bem como a introdução do desempenho ambiente como um dos critérios a ser
utilizados pelas entidades adjudicantes na definição da proposta economicamente mais vantajosa, no
âmbito de um concurso público.
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224
Carlos Sérgio Madureira Rodrigues
da Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável
(RIO +20), cujo objetivo consiste em transformar a economia global
numa economia inclusiva e verde, no contexto de um desenvolvimento
sustentável e redução da pobreza.
No que interessa ao nosso tema, o Programa procura um conjunto
de práticas e políticas que permitam a negócios e consumidores melhorar
o seu entendimento tanto sobre o impacto ambiental das suas atividades,
como sobre a gestão desse impacto. Estas práticas e políticas traduzemse, em incentivos económicos e instrumentos baseados no mercado, como
os rótulos ecológicos. Para tanto, as autoridades públicas devem cooperar
com parceiros sociais, de negócios e com a sociedade civil, o que nos surge
como uma manifestação da importância de uma nova faceta da cidadania,
uma faceta ambientalmente mais consciente e ativa.
A Cimeira de Cardiff (1998) é um ponto de referência da construção,
na Europa, de uma estratégia global para a aplicação do princípio da
integração ambiental, presente no art. 11º do TFUE. Embora não seja
um princípio tão mediático como, por exemplo, o do poluidor-pagador,
assume uma posição central neste domínio. Como todas as atividades
humanas produzem impactes ambientais relevantes, este princípio obriga
à consideração da proteção ambiental em todas elas, mesmo as que não
estejam diretamente ligadas ao ambiente. Os impactes mais significativos
devem ser ponderados num momento prévio à atuação propriamente dita,
o que reforça a eficácia da proteção.
O Ambiente torna-se, por força deste princípio, um elemento a ter em
consideração em todas as decisões. Este princípio é o sintoma mais evidente
da renovação ecológica do Direito («ecologização») e evidencia a política
do ambiente como uma política transversal a todas as outras – perpassaas, melhora-as e orienta-as no sentido da sustentabilidade. Assistimos, em
resultado, à aplicação dos princípios ecológicos – precaução, prevenção e
poluidor-pagador -, devidamente adaptados, às restantes políticas.
Ainda neste âmbito, na esteira de Aragão, o princípio da integração
desempenha um papel relevante em matéria de fiscalização. Por força do
mesmo, é possível fiscalizar a legalidade de uma qualquer medida à luz
dos princípios de política do ambiente. O desrespeito dos mesmos deve
ser sancionado. Tal sanção terá que ser justa e adequada, filtrada pelo
princípio da proporcionalidade; tempestiva e concreta, para que cumpra
as exigências de eficácia e eficiência de qualquer sanção jurídica.
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O Rótulo Ecológico Europeu e a Cidadania Ambiental
225
Em síntese, o Direito Europeu encontra-se no rumo do
desenvolvimento sustentável de Brundtland, i.e., aquele desenvolvimento
que visa satisfazer as necessidades das gerações presentes sem comprometer
as possibilidades das gerações futuras. Apontamos um número limitado
de marcos de evolução da política europeia que servem diretamente
o tema da presente investigação, sem querer olvidar outros marcos de
igual importância noutras áreas que encontram ligação com o domínio
ambiental8. Esta exposição, que iremos encerrar com uma sucinta análise
do Ambiente no Tratado de Lisboa, procura esclarecer alguns conceitos e
traçar uma cronologia que possa servir de base para ações a implementar
em sede de política ambiental em qualquer Estado regido por princípios
democráticos e cuja economia seja de mercado.
2.2 O TRATADO DE LISBOA
A União Europeia reconhece o valor intrínseco da educação e
dedica-lhe, a par da formação profissional, a juventude e o desporto, o
Título XII do TFUE (que integra os artigos 165º, 166º e 167º). Da leitura do
dispositivo normativo, concluímos que a UE procura incentivar um ensino
de qualidade, marcado pela diversidade cultural e linguística. No nosso
entender, o ambiente em particular e as questões da sustentabilidade
em geral deve fazer parte dos programas educativos, mesmo ao nível do
ensino básico.
No que respeita à defesa dos consumidores, o art. 169º, que
compõe o Título XV do TFUE, revela a postura ativa da UE na defesa
dos interesses dos consumidores. Tais objetivos são atingidos através de
medidas desenhadas a nível europeu, sem prejuízo de, como em qualquer
outra matéria, cada Estado-Membro poder ir mais além. Entendemos que
o legislador europeu quis evidenciar a importância da informação e da
educação enquanto ferramentas que permitem ao consumidor fazer uma
escolha consciente e de acordo com as suas reais necessidades. Também,
uma escolha que lhe permita exercer os seus direitos de reclamação e
ressarcimento que possam ter lugar.
O Ambiente encontra respaldo no Título XX. O objetivo primordial
da política europeia, aqui, consiste em alcançar um nível de proteção
elevado. Também aqui a educação e a informação desempenham um
8
Para um olhar sobre a vertente jurisprudencial, vide, entre outros, GOMES, Carla Amado, A proteção
do Ambiente na Jurisprudência comunitária – Uma amostragem, in MIRANDA, Jorge et al. (org.),
Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, Coimbra, Edições Almedina, Julho
de 2010, pp. 43 – 83. A Autora constata a abundância de jurisprudência comunitária no domínio
ambiental, uma “green brick road” que conhece sobressaltos e avanços que suscitam uma atenção
cuidada
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226
Carlos Sérgio Madureira Rodrigues
papel angular, pois estruturam conhecimentos e fundamentam estilos
de vida mais respeitadores da sensibilidade do ambiente. Um olhar pelo
dispositivo constitucional português (o art. 66º da CRP) evidencia que
o Ambiente - ou melhor, a garantia do direito a um ambiente sadio e
equilibrado – é um dever do Estado e um direito do cidadão. Este dever
do Estado é acompanhado, pelo menos ao nível ético, pelo dever de cada
cidadão exercer a sua cidadania e empenhar-se na criação de um património
comum a legar às gerações futuras. Um património composto de recursos
naturais, valores, ideais de justiça e igualdade e posturas sustentabilidade
(como a «cidadania verde»).
O principal instrumento da UE para apoiar a política europeia do
Ambiente é o Programa LIFE (L’Instrument Financier pour l’Environment)9.
Através deste Programa, a Comissão financia políticas destinadas a
enfrentar os desafios ambientais. Do lado institucional, destacamos o
papel da Agência Europeia do Ambiente10, que tem por objetivo a recolha
de dados nacionais, com o intuito de auxiliar os Estados-Membros a
desenvolver políticas e práticas sustentáveis.
3 O RÓTULO ECOLÓGICO
Diversos estudos11 têm demonstrado que, no momento da decisão
de compra, o consumidor privilegia os produtos mais amigos do ambiente,
i.e., aqueles produtos que na fase de produção, no decorrer da sua vida
útil e/ou no momento de lidar com o resíduo, apresentam um melhor
desempenho ambiental quando comparados com os produtos da mesma
categoria. Através destes produtos, procura-se fomentar um consumo
sustentável, circundado por um ambiente educativo e informativo que
permita aos cidadãos tomar decisões conscientes12. Tal decisão emana do
seu poder de compra que deve, na nossa perspetiva, ser instrumentalizado
para a proteção do ambiente, entre outros objetivos de caráter sustentável
(como, por exemplo, a promoção do emprego e a criação de um modelo
sustentável de desenvolvimento da economia).
9
http://ec.europa.eu/environment/life/
10 http://www.eea.europa.eu/pt
11 Para mais informações: http://ec.europa.eu/environment/eurobarometers_en.html.
12 Para uma análise detalhada do processo de «ecologização» de estilos de vida, no quadro de uma
«ecologização» moderna transversal a todos os domínios de atividade e pensamento humano,
vide SPAARGEN, G. e COHEN, M., Greening licefcycles and lifestyles: sociotechincal innovations
in consumption and production as core concerns of ecological modernisation theory, in MOL,
A., SONNENFELD, D. e SPAARGEN, G. (ed.) (2009), The Ecological Modernisation Reader –
Environmental Reform in theory and practice, New York, Routledge, pp. 257 a 274.
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O Rótulo Ecológico Europeu e a Cidadania Ambiental
227
Um instrumento privilegiado para auxiliar o consumidor é o rótulo
ecológico13. Inserido no produto, atesta que o mesmo se destaca pelo seu
desempenho ambiental e apresenta, por isso, uma face ecológica que
justifica eventuais custos acrescidos na sua aquisição. Todavia, conscientes
desta atitude do consumidor global, as empresas têm introduzido uma
nova estratégia de mercado que pode revelar-se bastante prejudicial: o
marketing ambiental.
Com o intuito de divulgar e promover a transação de produtos
sustentáveis, numa lógica de duplo benefício – para o consumidor, que
adquire produtos que respeitam o ambiente, e para o ambiente, que vê
os seus recursos melhor aproveitados e a sua sensibilidade respeitada
-, o marketing ambiental apresenta ao consumidor um conjunto de
argumentos que atestam a suposta qualidade ambiental através do uso,
nomeadamente, do rótulo ecológico, influenciando assim a opção de
compra. O rótulo trata-se de um símbolo que, per si, atesta o desempenho
ambiental do produto e persuade os consumidores a optarem pelos
produtos «verdes» - mas nas mãos do marketing ambiental, pode tornarse um meio promotor da publicidade fraudulenta, ao invés de um símbolo
da manifestação da responsabilidade social e ambiental das empresas,
preocupadas em desenvolver produtos eco-friendly.
3.1 RÓTULO AMBIENTAL VS. RÓTULO ECOLÓGICO
Embora pareça uma distinção meramente semântica, denominarmos
o rótulo como ambiental ou ecológico denuncia uma tomada de decisão
quanto às aceções distintas no plano de Direito do Ambiente, no tocante às
conceções da ética antropocêntrica e da ética ecocêntrica.
Apoiando-nos em FERRY14 e Dias, diremos que ambas as perspetivas
visam a proteção do ambiente, embora o antropocentrismo veja no centro
das questões o ser humano, a sua vida, segurança e saúde; de acordo com
o ecocentrismo, o ambiente é um bem tutelado em si mesmo, procurandose atingir um estado de não-dano ao ambiente que, em segundo plano irá
proteger o ser humano15.
13 Apoiamo-nos em: ARAGÃO, A., A credibilidade da rotulagem ecológica dos produtos, in RevCedoua,
A. 14, nº 27, vol. 1, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 158.
14 FERRY, L., A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem, Porto, ASA, 1993.
15 Dias fala-nos de uma terceira perspetiva, a económico-cêntrica, que coloca em primeira linha a
continuação da atividade produtiva do Homem, em nome da qual se reclama a necessidade de
proteger os recursos escassos. Como aqui também temos a proteção da vida do Homem, esta “précompreensão acaba por se reconduzir à pré-compreensão antropocêntrica (…)” – DIAS, J., Direito
Constitucional e Administrativo do Ambiente, Cadernos do CEDOUA, Coimbra, Almedina, 2002, p. 9.
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228
Carlos Sérgio Madureira Rodrigues
Por outro lado, os danos ambientais serão aqueles que, atingindo
a natureza, também atingem os seres humanos: já os danos ecológicos,
causando impactos sobre o património natural, a ecosfera, poderão não se
repercutir sobre o ser humano, pelo menos não explicitamente (podemos
considerar ser do conhecimento comum que quando e na medida que o
ambiente é prejudicado o ser humano também o é).
Neste binómio distinguimos, com Prado Leitão, a rotulagem
ambiental da rotulagem ecológica: enquanto a primeira identifica os
aspetos do produto que, ao interagirem com a natureza, provocam ou
minimizam danos ambientais (que podem repercutir-se para os seres
humanos), a rotulagem ecológica preocupa-se com o desempenho
ambiental dos produtos, de modo a “causar ou evitar danos ecológicos”16.
O mesmo produto pode ter rótulos simultaneamente ambientais e
ecológicos, como os rótulos indicativos da reciclagem. Todavia, prima-se a
denominação de «rotulagem ecológica», dada a “dimensão ecológica dos
direitos envolvidos neste tipo de rotulagem”17.
3.2 TIPOS DE RÓTULOS
A ISO 14020, de Setembro de 2000, vem estabelecer os princípios
orientadores para o desenvolvimento e uso dos rótulos ambientais e
declarações ambientais e tem como objeto principal a gestão ambiental.
Neste sentido, define conceitos importantes como rótulo ecológico e ciclo
de vida. Auxiliadas por esses princípios, outras normas ISO dedicaram-se
a categorias específicas.
Podemos identificar três tipos de rótulos voluntários. A ISO
14024 centra-se no Tipo I – rótulos ecológicos certificados. Nestes,
uma organização independente define um conjunto de critérios, cuja
transparência e credibilidade é assegurada por meio de certificação por
uma terceira parte independente. O Tipo II compreende os rótulos autoproclamados, tratados na ISO 14021. Por mim temos o Tipo III, que versa
sobre as Declarações Ambientais de Produto18.
16 LEITÃO, M., Rotulagem Ecológica e o direito do consumidor à informação, Brasil, Verbo Jurídico,
2012, p. 34.
17 LEITÃO, M., idem, p. 35.
18 A DAP apresenta um conjunto de informação, revista por uma terceira parte independente, relativa
aos aspetos e impactes ambientais ao longo do seu ciclo de vida e baseada em informação de ACV.
Pode ser complementar com os rótulos de Tipo I, por exemplo, permitindo induzir a definição de
critérios ambientais a aplicar a determinada categoria de produto ou serviço.
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O Rótulo Ecológico Europeu e a Cidadania Ambiental
229
Os rótulos auto-proclamados (Tipo II) são diversos e espalham-se
pelos mercados com um sentido e alcance que, na maioria dos casos se
resumem a técnicas de marketing, desprovidas de verdadeira utilidade em
prol da luta pela sustentabilidade ambiental. A multiplicidade deste tipo
de rótulos apenas promove a confusão e desconhecimento por parte de
consumidores que, por seu turno, apenas nutrem desconfiança e fomentam
o desinteresse pelo sistema de rotulagem. Esta diversidade conduz-nos à
necessidade de criar um rótulo de design e sentido unitários, surgindo
como possível resposta, o rótulo ecológico europeu.
3.3 CARATERÍSTICAS DOS RÓTULOS
Analisamos agora as caraterísticas dos rótulos. Torna-se ideal uma
leitura conjunta das várias disposições do Código da Publicidade Português
(CP), cujo regime jurídico foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 330/90, de
23 de Outubro19, nomeadamente dos seus vários princípios – ilicitude,
identificabilidade; veracidade; respeito pelos direitos do consumidor e
princípio da livre e leal concorrência – e de várias disposições avulsas,
devidamente identificadas em momento próprio.
A rotulagem deve obedecer a um conjunto de princípios derivados
de diversos diplomas legais. Na esteira de autores como Aragão20, passamos
a identificar esses princípios. Em primeiro lugar, temos o princípio da
credibilidade, de acordo com o qual os rótulos têm que ser compreensíveis
- e, assim, transmitir informação uniforme e auto-suficiente – e verídicos
(art. 10º do CP). O rótulo deve ser capaz de ser comprovado pelo caráter
objetivo e mensurável dos critérios de utilização usados na sua criação e
gestão e pela pertinência da informação contida.
Uma palavra acerca da objetividade: o texto inserido deve ter por
finalidade o reforço da eficácia da informação, nomeadamente através
da inserção de um link de acesso a portais eletrónicos com dados mais
detalhados. Por seu turno, um rótulo deve ter apenas informação útil e
pertinente.
Arquitetar um sistemas de rotulagem credível e legítimo cumpre
o direito de saber, o direito à informação, que está presente na esfera
jurídica de qualquer cidadão por força do constitucionalmente consagrado
princípio da igualdade (art. 13º da CRP). Como salienta Morais, “tanto o
19 Entretanto alvo de várias alterações e republicações, sendo a mais recente operada pela Lei 8/2011, de
11 de Abril.
20 ARAGÃO, A., idem, 2011.
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230
Carlos Sérgio Madureira Rodrigues
excesso como a falta de informação podem gerar efeitos e consequências
prejudiciais” em diversos aspetos, a salientar desde já o “da perceção do
público sobre os riscos dos produtos (…)21”.
Colhemos, no nosso ordenamento jurídico, a noção de consumidor
do n.º 1 do art. 2º da Lei nº 24/96, de 31 de Julho, que estabelece o regime
legal aplicável à defesa dos direitos do consumidor22, nos termos do qual
consumidor é “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços
ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por
pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que
vise a obtenção de benefícios”. A publicidade é um ato de comunicação que
se desenrola no âmbito de uma atividade comercial, industrial, artesanal
ou liberal, feita por entidades de natureza pública ou privada, e tem como
objetivo, com recurso a mensagens explícitas ou subliminares, promover a
compra de bens ou serviços, por parte desse consumidor a quem se dirige,
bem como a sua adesão a ideias, princípios ou instituições23.
Uma empresa liga-se ao mercado através da publicidade, nesta
investindo somas consideráveis. Os departamentos de marketing
empenham-se em veicular mensagens convincentes e estimulantes,
que provoquem a adesão do consumidor. Existe um risco sério de a
publicidade, motivada por ideias de consumo sem limites, possa tornar-se
enganosa, quer quanto ao conteúdo, quer quanto à própria apresentação
da mensagem24.
Nos termos do art. 12º, nas suas diversas modalidades e caraterísticas
“ a publicidade não deve atentar contra os direitos do consumidor”. Este
artigo, eco do art. 60º da CRP, que consagra a nível constitucional a defesa
dos direitos dos consumidores, estimula uma viagem pelos diversos
diplomas que concretizam o respeito pelos direitos do consumidor.
Destacamos: o DL nº 103/91, de 8 de Março, relativo a centros de arbitragem
de conflitos de consumo; o art. 6º do DL nº 115/93, de 12 de Abril, relativo à
21 MORAIS, R., Segurança e Rotulagem de alimentos geneticamente modificados, Rio de Janeiro,
Forense, 2004, p. 102.
22 Entretanto alvo de sucessivas alterações, sendo a mais recente operada pela Lei nº 47/2014, de 28 de
Julho.
23 Temos aqui os quatro elementos do conceito jurídico de publicidade, colhido do art. 3º do CP:
estrutura, objeto, sujeitos e fim. Neste sentido, vide LOUREIRO, J., Direito do Marketing e da
Publicidade, Seminário, Lisboa, 1985, apud CHAVES, R., Código da Publicidade Anotado, Coimbra,
Almedina, 2006, p. 22.
24 Para mais desenvolvimentos, vide FALCÃO, D., O Direito e o Marketing, Lisboa, Rei dos Livros,
Lisboa, 1995, p. 168 e seguintes.
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O Rótulo Ecológico Europeu e a Cidadania Ambiental
231
rotulagem de géneros alimentícios para lactentes; ainda os artigos 10º e 11º
do Decreto-Regulamentar nº 18/92, de 13 de Agosto, atinentes às menções
publicitárias no domínio da caraterização, rotulagem e comercialização
das águas minerais. Pedra angular de todo este sistema é, naturalmente, a
Lei de Defesa do Consumidor, a já referida Lei 24/96, de 31 de Julho, com
todas as suas alterações e atualizações.
4 A FLOR EUROPEIA
O sistema de rotulagem europeu foi instituído pelo Regulamento
(CEE) nº 880/92 e pelas Decisões 2000/728 e 2000/729 do Conselho,
posteriormente alterado pelo Regulamento (CE) nº 1980/2000. O
Regulamento (CE) 66/2010 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25
de Novembro de 2009, que visa melhorar as regras de atribuição, utilização
e funcionamento do rótulo, veio revogar e substituir o Regulamento
(CE) 1980/2000, por razões de segurança e clareza jurídica. Este último
continuará a aplicar-se aos contratos celebrados antes da entrada em vigor
do Regulamento mais recente.
A flor europeia consiste num sistema de rotulagem voluntário que
permite aos consumidores europeus, aos Estados-Membros e demais
atores, identificarem com facilidade os produtos e serviços ecológicos
oficialmente aprovados, i.e., aqueles cujo impacto ambiental é mais
reduzido em relação aos produtos do mesmo grupo. Os critérios de
atribuição, presentes no art. 6º, são elaborados a partir de dados científicos
relativos a todo o ciclo de vida dos produtos. Importa, a este propósito,
esclarecer que o desempenho ambiental de determinado produto/serviço é
avaliado desde o momento da extração da matéria-prima necessária à sua
produção, atravessa o tempo de vida da sua utilização e termina quando
se determina a necessidade de lidar com o resíduo gerado, que poderá ser
eliminado ou aproveitado.
O sistema do rótulo ecológico europeu deverá ser aplicado no respeito
das disposições dos Tratados, nomeadamente o princípio da precaução25.
A União Europeia publicou um Guia, no qual razões de diversa ordem são
apresentadas para justificar a adesão de determinado produto/serviço ao
rótulo ecológico. Destacamos: credibilidade, compreensibilidade, longo25 Este princípio propugna um ideal de in dubio pro ambiente, ou seja, perante a incerteza acerca da
perigosidade de certa atividade para o meio ambiente, cumpre decidir-se a favor do ambiente e contra
o potencial poluidor – por outras palavras, o ónus da prova da inocuidade de uma ação em relação ao
ambiente é transferido para o potencial poluidor. Neste sentido, ARAGÃO, A., idem, 2012, p. 15.
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alcance, elevado poder de influência e a vantagem competitiva que atribui,
bem como a fidedigna indicação de que aquele produto é mais amigo do
ambiente, fator importante na ótica do consumidor26.
Como decorre do R (CE) 66/2010, o rótulo pode ser atribuído a todos
os bens ou serviços destinados a distribuição, consumo ou utilização no
mercado comunitário. Subtraídos à sua aplicação estão os medicamentos
para uso humano, os medicamentos veterinários e os dispositivos
médicos. De igual forma, não pode ser atribuído aos produtos que
contenham substâncias classificadas pelo R (CE) nº 1272/2008, de 16 de
Dezembro, como tóxicas, perigosas para o meio ambiente, cancerígenas
ou mutagénicas, ou substâncias abrangidas pelo quadro regulamentar de
gestão das substâncias químicas.
O Anexo V do regulamento contém um contrato-tipo relativo às
condições de utilização do rótulo. Acrescida de uma taxa no momento da
apresentação do pedido, a utilização do rótulo está sujeita ao pagamento
de uma taxa anual que, de acordo com o Anexo III, varia de acordo com
a dimensão. Embora sejam valores razoáveis, questionamos se poderão
constituir um impedimento, mesmo de ordem estratégica, à participação
dos diversos operadores económicos.
Compete aos Estados – Membros designar os organismos
responsáveis pelo processo de rotulagem a nível nacional, organismos
que funcionam de forma transparente e cujas atividades estão abertas à
participação de todos os interessados. Responsabilizam-se por verificar
regularmente a conformidade do produto com os critérios de atribuição,
tendo ainda atribuições na receção de queixas, informação ao público,
fiscalização das publicidades falsas ou interdição de produtos (arts. 10º e
13º).
Através da Decisão 2010/709/UR da Comissão, de 22 de Novembro,
a Comissão institui o Comité do Rótulo Ecológico da União Europeia, o
CREUE, cujos membros são nomeados pela Comissão. É composto por
representantes dos Estados-Membros da União Europeia e do Espaço
Económico Europeu, bem como por representantes dos organismos
nacionais e europeus competentes.
A Comissão consulta o CREUE no momento da elaboração ou da
revisão dos critérios e requisitos de atribuição do rótulo. O Comité assume
uma importância fulcral enquanto entidade que assegura a participação
efetiva dos cidadãos o que reforça, desde logo, a faceta democrática de
todo este processo.
26 Disponível em: http://ec.europa.eu/environment/ecolabel/index_en.htm.
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O Rótulo Ecológico Europeu e a Cidadania Ambiental
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4.1 CUSTOS ACRESCIDOS, CUSTOS JUSTIFICADOS?
A implementação de um rótulo ecológico uniforme a nível europeu
exige uma clara definição dos princípios e critérios que norteiam a seleção
dos produtos, por forma a garantir a eficácia do sistema. As condições de
obtenção devem permitir que diferentes partes possam obter benefícios
com a inclusão do rótulo nos seus produtos e serviços.
Importa aqui analisar as conclusões de Benalcazar27. Tendo o
ambiente como principal destinatário, o rótulo surge como resultado
da constatação da possibilidade de unir dois polos tradicionalmente
considerados opostos, o marketing e o ambiente. De facto, e como o
comprovam as políticas europeias nesta temática, uma abordagem que
aproxima marketing e ambiente é possível e constitui um marco essencial
na jornada pela sustentabilidade. A participação dos cidadãos faz-se por
intermédio das associações nacionais, cujos representantes têm assento no
referido CREUE.
Os beneficiários do rótulo não ficam isentos de outras disposições
europeias, quer sejam ou não relacionadas com o meio ambiente. Além do
princípio da precaução, o rótulo deve cumprir também as demais condições
aplicáveis aos diferentes produtos na mesma categoria. Podemos citar,
como exemplo, a Diretiva 92/75/CEE, em matéria de rotulagem energética.
Todavia, a benignidade da flor europeia pode ser facilmente
esquecida se retomarmos as preocupações com o marketing ambiental.
De facto, o risco de greenwashing28, ou seja, do desvio do argumento
ecológico, de se conferir uma roupagem verde a produtos unicamente para
conquistar mercado. Não se verificando a sua real bondade ambiental,
é bastante real. Também Masson nos fala desta “desinformação verde”,
um suspeito verniz verde que recai sobre os produtos cujo desempenho
ambiental nunca chega a ser verdadeiramente comprovado29.
27 BENALCAZAR, I., Le Label écologique: le consommateurs au secours de l’environment, Petits
affiches, n.º 203, Outubro de 2011.
28 A GreenPeace, reconhecida ONG ambiental, tem-se assumido particularmente ativa no combate ao
greenwashing: http://www.stopgreenwash.org.
29 MASSON, D., La publicité peut-elle devenir éco-compatible?, in La societé de consommation face aux
défis écologiques, Problémes politiques et sociaux, La documentation Française, n.º 954, Novembro de
2008.
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Noutro ponto, os custos apresentados pelas taxas de candidatura e
utilização poderão justificar-se pelo novo mercado a que o rótulo ecológico
garante acesso? As empresas precisam, num cenário de crise como este que
atravessamos, de garantias. Cumpre aqui recordar que o sistema da flor
europeia é voluntário, logo, as empresas são livres de não se candidatarem
nem submeterem os produtos a um crivo de critérios científicos e auditorias
rigorosas, em troco de uma despesa (as referidas taxas) sem retorno. O payoff, a rentabilidade, pode não compensar. Acresce que a flor europeia ainda
é pouco conhecida pelo público em geral.
O rótulo proporciona a um produto o acesso ao mercado comum com
melhor posicionamento. Além disso, tem o mérito de aliar as preocupações
dos consumidores com as estratégias das empresas. Por isso, apresentase como uma ferramenta que, além das vantagens económicas, reforça e
evidencia o papel do cidadão, enquanto consumidor, educador, fonte de
exemplo e responsável para e pelas gerações futuras. Através do seu poder
de compra, deve exercer pressão sobre as empresas para melhorarem os
seus métodos de produção, rumo a uma produção inteligente, sustentável
e eficiente.
4.2 CRÍTICAS
O Regulamento aqui em análise apresenta algumas insuficiências e
fragilidades, que cumpre agora apresentar.
Em primeiro lugar, nada fica dito acerca das embalagens dos
produtos. Devemos presumir que se encontram abrangidas por este
Regulamento? Outro pensamento alerta-nos para a ausência de disposições
acerca do transporte dos produtos. Na lógica da análise do ciclo de
vida, o transporte é fator importante a ter em conta na determinação do
desempenho ambiental dos produtos.
Depois, a questão dos resíduos. Estes apenas são referidos enquanto
elemento presente na elaboração dos critérios científicos que um produto
terá que cumprir para que seja concedido o rótulo. Todavia, existe uma
distinção fulcral a fazer neste domínio entre a eliminação e a valorização
dos resíduos, que a flor europeia deve acompanhar.
A importância deste ponto é evidente se pensarmos que o
consumidor poderá escolher um produto cujo rótulo indique o resíduo
futuro pode ser valorizado, o que contribui para um elevado desempenho
ambiental. A flor europeia deveria ser colocada em produtos que permitam
a valorização do resíduo, bem como naqueles cuja eliminação é total e o
menos inócua possível para o ambiente.
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235
No campo das sanções, o n.º 5 do art. 10º do Regulamento ordena
que seja retirado o rótulo dos produtos que deixem de cumprir os critérios
com base nos quais o mesmo lhes foi conferido. Todavia, e quando o
particular deixa de proceder ao pagamento da taxa anual? Ou reincide no
uso abusivo do rótulo?
O Regulamento delega, através do art. 17º, a competência para
elaborar sanções para os Estados-Membros, preocupando-se em
evidenciar que essas sanções devam passar por um duplo crivo, o da
efetividade e o da proporcionalidade, possuindo ainda um necessário
caráter dissuasivo. As sanções financeiras, embora cumpram o requisito
de serem dissuasivas, pecam pela falta de um propósito pedagógico e/
ou incentivador da mudança de comportamento. O infrator limitar-se
a pagar a quantia financeira a título de coima ou pena de multa caso o
legislador decida revestir de dignidade penal os bens jurídicos aqui a
tutela, como o sejam a confiança, a informação, entre outros. Não obstante,
as sanções financeiras apresentam versatilidade no seu quantum, pelo que
cumprem o requisito da proporcionalidade. Assim sendo e aqui chegados,
consideramos que a sanção financeira deve existir e ser acompanhada por
uma sanção acessória como, por exemplo, a obrigatoriedade de frequência
de cursos e ações formativas sobre a sustentabilidade.
O último apontamento dirige-se à publicidade comparada. O sistema
de rotulagem baseia-se numa lógica de comparação entre produtos que
têm o rótulo dos que não o têm – cairá esta lógica na categoria ilegítima de
publicidade comparada?
A legislação europeia protege os consumidores e os profissionais
que exercem uma atividade comercial, industrial, artesanal ou liberal
contra a publicidade enganosa e as suas consequências desleais. Este é o
âmbito de aplicação da Diretiva 2006/114/CE, do Parlamento Europeu e
do Conselho, de 12 de Dezembro. Revoga a Diretiva 84/450/CEE e para a
sua redação foi um contributo importante a proposta de diretiva sobre a
publicidade comparativa, publicada no Jornal Oficial nº C 180/14, de 11 de
Julho de 1991.
O facto é que o rótulo é apenas outro símbolo aposto na embalagem
do produto. Nos meios de comunicação social, bem como nos restantes
veículos de informação e publicidade, o rótulo poder encarado como
um plus do produto, uma vantagem extra que justifica um (porventura)
acrescido preço de aquisição. Todavia, o sistema é voluntário, pelo que
determinada empresa poderá, por razões diversas, não candidatar-se à
flor europeia. A dúvida fulcral transfigura-se nos seguintes termos: como
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Carlos Sérgio Madureira Rodrigues
asseguramos que os produtos não abrangidos pela flor europeia não têm
igual (ou melhor…) desempenho ambiental que os produtos da mesma
categoria que têm o rótulo ecológico?
5 CIDADANIA AMBIENTAL
A rápida evolução tecnológica que estandardizou estilos de vida
e massificou a produção traduziu-se na criação de uma sociedade de
consumo em diversas frentes insustentável, caracterizada pelo consumo
desenfreado e ilimitado. Os cidadãos desta sociedade, convertidos pelo
marketing e pela publicidade, compram o que são induzidos e pensar
que precisam, mas não o que verdadeiramente necessitam. Acresce que
o preço pago por um produto / bem / serviço raras vezes reflete o custo
real do mesmo. Pressionadas pela crise económica e financeira, empresas e
distribuidoras tendem a ocultar os custos ambientais do produto, de forma
a apresentar um preço atrativo que não é representativo do seu real custo.
Estas constatações alertam-nos para a necessidade da criação de
uma política de proteção do consumidor, teoricamente construída a par
de uma política de proteção do ambiente30. A nossa sociedade, global nos
seus mercados e industrial na sua produção, apresenta a patologia de falta
de proteção dos cidadãos e do ambiente face ao problema civilizacional da
escassez dos recursos naturais e da ausência de uma ética do consumidor
que coloque em primeira linha valores fundamentais como a liberdade do
cidadão e a sustentabilidade do ambiente.
Como decorre dos arts. 60º e 66º da CRP, ambas as proteções,
traduzidas em políticas de defesa (que superam o manto de retalhos
de artigos e disposições dispersas que, indiretamente, se dedicam ao
consumidor e ao ambiente) têm dignidade constitucional e têm sido
alvo de dedicação por parte do legislador europeu. Na ordem jurídica
portuguesa, destaca-se a Lei 19/2014, de 14 de Abril, a nova Lei de Bases da
Política do Ambiente e a já referida Lei de Defesa do Consumidor. Tratase de criar uma “política unitária, coerente e eficaz”, a qual , “através de
uma ação dinâmica, complexa e multifacetada” e de “medidas articuladas,
integradas e eficazes”, ou seja, “meios idóneos e eficazes”, conjugue
30 Pinto Monteiro dedicou um artigo a esta proposta, que aqui analisamos de perto. A este propósito
vide MONTEIRO, A., O papel dos consumidores na política ambiental, Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, n.º 72, Coimbra, 1996.
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O Rótulo Ecológico Europeu e a Cidadania Ambiental
237
o esforço de cidadãos, empresas e o os Estados na prossecução de uma
“causa comum” – o nosso futuro31.
Com as noções de consumidor e publicidade em mente, lancemos um
olhar sore o marketing ambiental. Nascida da preocupação em promover
produtos, bens e serviços mais amigos do ambiente, esta estratégia de
mercado pode revelar-se fraudulenta e altamente prejudicial para o
consumidor e para o ambiente. Uma das formas de proteger o consumidor
materializou-se através da consagração do direito à informação do
consumidor, assim se esbatendo a distância entre produtor/fornecedor e
o consumidor dos produtos e bem pelos primeiros produzidos/fornecidos.
Com a sua proteção, procura-se que o consumidor esteja em
condições de fazer uma escolha “livre, racional, fundada em conhecimento
sólido”32 das caraterísticas dos bens e que respeite as suas reais
necessidades de consumo. Importa vingar este direito à informação, pois
esta detém um poder de persuasão inegável que influencia a capacidade
de discernimento e o comportamento humano. Dotado das informações
necessárias, o consumidor fará uma escolha racional, equilibrada e mais
amiga do ambiente. A sua auto-determinação sai protegida e fortalecida.
A outra face do direito à informação mostra-nos o dever que surge
na esfera jurídica do produtor/fornecedor de satisfazer esse direito. Quem
até então se apresentou como o detentor único e exclusivo das informações
acerca do fabrico e das caraterísticas do produto, tem agora o dever de
satisfazer o direito à informação do consumidor. O direito à informação
ambiental é um dos três pilares da Convenção de Aarhus, direito que alguns
autores identificam como um direito humano33. Neste ponto, leia-se o n.º
31 MONTEIRO, A., idem, p. 384. A Lei nº 19/2014, de 14 de Abril define as bases e os objetivos da política
do ambiente. Oferece um conceito funcional de cidadania ambiental: dever de contribuir para a
criação de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado e, na ótica do uso eficiente dos recursos e
tendo em vista a progressiva melhoria da qualidade de vida, para a sua proteção e preservação” (n.º 2
do art. 8º). Assim se cumpre o dever de proteger, preservar e respeitar o ambiente, indissociavelmente
ligado ao direito do ambiente (n.º 2 do art. 5º). Os princípios a que as políticas públicas ambientais
estão subordinadas estão definidos no art. 4º, dos quais destacamos: educação ambiental (alínea d)
e informação e participação (alínea e). Promove-se a cidadania participativa e a responsabilização,
tendo em vista a proteção e a melhoria do ambiente; uma cidadania que prevê, entre outros, o direito
pleno de intervir na elaboração e no acompanhamento da aplicação das políticas ambientais.
32 LEITÃO, M., idem, p. 51.
33 CRAMER, B., The human right to information, the environment and information about the
environment: from Universal Declaration to the Aarhus Convention. Communication Law and Policy,
Mahwah, NJ, v. 14, nº 1, 2009, p. 73 – 203.
Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 40, n. 1, p. 219 - 239, jan./jun., 2015.
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Carlos Sérgio Madureira Rodrigues
2 do art. 60º da CRP, que consubstancia, segundo VIEIRA DE ANDRADE,
uma garantia fundamental, indispensável à proteção dos consumidores34.
Um consumidor informado será um consumidor sensibilizado para
as questões em torno da proteção do ambiente. Consciente que, ao orientar
o seu poder de compra em direção a produtos amigos do ambiente (no
método de produção, no seu desempenho e também no tratamento
aplicável aos seus resíduos), forçará empresas a investirem em tecnologias
e know-how que visem reduzir e otimizar o consumo de energia e matériasprimas. Visa-se, portanto, a educação e esclarecimento dos cidadãos, com
vista a torna-los agentes ativos da luta pelo ambiente, organizados em
associações, participados e empenhados.
Pese-se o seguinte argumento: todas as políticas (ambientais,
mas não só) devem convergir no sentido do hipoconsumo, ou seja, um
“consumo moderado, de forma duradoura, que prolonga ecologicamente
a vida dos produtos, dentro de uma evolução dos níveis de consumo até à
ausência total de qualquer consumo material – o desconsumo35.
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