Poe · imaginário coletivo

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Poe · imaginário coletivo
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POE E O IMAGINÁRIO COLETIVO
Regina Maria de Lima Pimentel
Resumo: Poe tem povoado a imaginação de milhares de pessoas pelo planeta. Quase sozinho, ele
criou boa parte da literatura da nascente América, em tempos que não nos é dado imaginar agora a
não ser pela pena fértil de seus poucos luminares. O nome de Poe traz uma mensagem viva, que
parece composta agora mesmo, com suas múltiplas faces de poeta, contista humorístico, criador das
novelas de mistério e das histórias de aventura, acerbo crítico literário e propositor do jornalismo
cultural. Este ano de 2009 marca o bicentenário de seu nascimento, e o 160º de sua morte. Sua obra,
a par de sua biografia, exerce imenso fascínio. Obra tão multifacetada não se encontra frequentemente em seus contemporâneos ou pósteros – quase nenhum ramo da literatura foi por ele negligenciado, com a notável exceção do romance. Este trabalho pretende analisar as razões da onipresença
de Poe, através desses dois séculos que os separam dos nossos dias.
Palavras-chave: Poe · imaginário coletivo · futurismo
Abstract: Poe lives in the imagination of thousand people around the planet. Almost alone, he created a great part of the literature of the newborn America, in times that we cannot imagine now but
for the fertile pen of its few brilliant writers. The name of Poe carries a live message, which seems to
have been created right now, with his multiple faces of poet, comic tales writer, creator of mystery
and adventures stories, harsh literary critic, and proponent of cultural journalism. This year of 2009
marks the bicentennial of his birth, and the 160th year of his death. His work, as well as his biography, exerts immense fascination. So multifaceted work is not frequently met in his contemporaries
or successors – almost no branch of literature was neglected by him, with the remarkable exception
of the novel. This work intends to analyze the reasons of Poe’s omnipresence, two centuries apart
from our days.
Keywords: Poe · collective imaginary · futurism
INTRODUÇÃO
Edgar Allan Poe, o faminto poeta da costa leste dos Estados Unidos da América, morto em
1849, é objeto agora, 2009, das comemorações do bicentenário de seu nascimento. Sua obra,
não restam dúvidas, merece que estas efemérides sejam momentosas. Um fenômeno chama
atenção para o seu nome: é a fascinação quase pessoal que sua figura, sua obra, sua biografia
provoca. É deste fenômeno, o fascínio, que pretendemos tratar. O que, na biografia ou na
obra de Edgar Poe, tem atraído a atenção de tantas pessoas ao longo desses dezesseis décadas
de sua morte? A atenção que seu nome suscita é mais ampla do que, por exemplo, o que nos
chama a atenção em Byron (seu modelo na juventude), Shelley, Keats, Schiller.
Obra tão multifacetada não se encontra freqüentemente em seus contemporâneos ou
pósteros – quase nenhum ramo da literatura foi por ele negligenciado. A única exceção
cabe ao romance, estilo que exigiria mais tempo e recursos do que os que ele dispunha.
Mesmo sua incursão na cosmogonia hoje se mostra grandemente pré-cognitiva – Eureka, de
fato, como alguns autores têm recentemente apontado, previu os desenvolvimentos recentes da física, da química e da cosmologia, embora, durante muitos anos desde sua publica-
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ção, e mesmo entre seus mais eminentes e competentes biógrafos, tenha sido imputada, no
mínimo, aos delírios do ópio. 1
Está presente na música moderna e contemporânea. Claude Debussy usou a temática de
Poe em duas óperas: “A queda da casa de Usher” 2 e “O diabo no campanário”, 3 ambas inacabadas. Rachmaninoff usou o poema “Os sinos” como tema de sua famosa sinfonia-coral,
sobre a tradução livre de seu compatriota Aleksandr Balmont. Na literatura, citações de Poe
surgem regularmente em todas as línguas e em todos os países. Uma famosa agremiação,
The Mystery Writers of America, confere Edgar Awards aos seus autores anualmente eleitos. Seu mais conhecido poema, “O corvo”, tem sido objeto de traduções e adaptações numerosíssimas, algumas de altíssima qualidade. No cinema, é quase ocioso citar sua fantasmagórica presença.
O que exatamente nos identifica com Poe? Uma análise das entrelinhas de sua obra –
destacando-se aqui seus textos de crítica literária, e os comentários esparsos sobre temas
sociais e políticos da época – nos dão a contemplar suas opiniões sobre temas caros, tanto a
ele com a nós outros, hoje em dia: a democracia, os benefícios e malefícios do progresso
tecnológico, a ética da sociedade eficientemente organizada, os princípios basilares da crítica literária e poética. Este trabalho busca, sem necessariamente encontrar, respostas para a
notável identificação que tantos admiradores encontram com sua obra, ao mesmo tempo em
que, com sua modesta – e em tantos pontos, malfadada – biografia, transcorridos tantos anos.
O IMAGINÁRIO COLETIVO
Mencione-se Poe para um grupo aleatório de pessoas: sempre haverá alguém que se
lembre do contista dark, que vestia o paletó do avesso, o bêbado que escrevia histórias de
terror. Mais alguém citará também “O corvo”, embora nem sempre como poesia, mas muitas vezes como um personagem à moda gótica. De onde saiu essa imagem? Será um metasímbolo, que remete ao conteúdo de mais fácil popularização?
Troquemos agora a audiência: presuma-se um grupo que, com mergulhos mais profundos na pessoa e na obra de Poe, já tomou contato com um conteúdo mais amplo que o estereótipo. O nome, agora, faz emergir uma figura mais próxima da real, o sonhador paupérrimo, o escritor originalíssimo, o precursor de caminhos na literatura e no pensamento.
Ora, os dois personagens evocados pelos diferentes grupos descritos não são mais que
um: o primeiro apenas intui e prefigura as características do segundo. O imaginário coletivo não se constitui de realidades, mas de símbolos produzidos em conjunto e que se reforçam mutuamente. Essa visão conjunta constrói uma imagem-pensamento com conotações
que lhe são próprias. Acossado por seus demônios, Poe levanta bem alto a bandeira da criação, do livre pensar, da originalidade. O destemor do novo: não será isso o que, através de
símbolos diferentes, vê-se nele ainda hoje, e constitui um pólo de atração que já atravessou
200 anos?
1
ALLEN. Israfel: vida e época de Edgar Allan Poe, p. 231.
DEBUSSY. L 101, Le diable dans le beffroi.
3
DEBUSSY. L 112, La chute de la maison Usher.
2
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O HOMEM POR TRÁS DA OBRA
A identificação com o seu público deu-se de duas formas: primeiro pelo que ele diz, pelos temas que escolhe, e depois pelo como ele diz o que diz. A escolha do tema e a formatação que lhe é dada é que configuram o homem, seu universo e suas idiossincrasias. Paulo
Leminski, o vanguardista poeta curitibano, compilou, de Poe, os traços versus obras: 4
A sensibilidade superacurada de Roderick Usher;
A arte que mata a vida, do Retrato Oval;
A labilidade psíquica, do Coração Delator;
A metapsíquica, do Estranho Caso do Sr. Waldemar;
O uso prático do raciocínio, na criptografia e nas histórias policiais: O Escaravelho de Ouro,
Os Crimes da Rua Morgue, o Mistério de Maria Roget, a Carta Furtada;
A história de terror como meio de manter a atenção dos leitores do incipiente jornalismo cultural da época.
Vale a pena delinear aqui as principais características psicológicas que marcaram a breve existência de Poe: 5
o amor apaixonado pela poesia – esta, na realidade, como símbolo da Arte, e, por extensão da
Beleza;
a bebida: tida como o consolo para os sofrimentos atrozes da miséria e do abandono/rejeição;
a persistente dor do fracasso material, devido inteiramente à incapacidade de vencer suas
debilidades – das quais o alcoolismo era apenas o reflexo, como em tantos.
a continuada “confiança pessoal” – que atravessou todas as fases de sua vida;
a decisão de não desistir – que durou quase que até o último momento.
POE, O GRANJEADOR DE INIMIGOS
Seus dons naturais, aliados à sua ambição, conquistaram-lhe inimigos. Basta lembrar a
guerra com Longfellow, em que Poe, em artigos ferinos, acusa seu compatriota e contemporâneo de nada menos que plágio, e declara: ”Não falta originalidade aos plagiários, (...) nos
trechos em que não imitam. Longfellow, que é decididamente o mais audacioso contraventor da América, é original num grau acentuado.” Veja-se, na web page da Edgar Allan Poe
Society of Baltimore, uma visão completa da crítica muitas vezes acerba que publicava nos
veículos jornalísticos onde trabalhou. 6
Seu primeiro necrológio deveu-se à pena de um de seus maiores desafetos, Rufus Wilmot Griswold, que, na edição de 9 de outubro de 1849 do New York Daily Tribune, entre
alguns elogios ardentes à figura de Poe, disparou:
(...) o sistema todo, para ele, era uma impostura. Essa convicção deu ao seu caráter judicioso
e naturalmente inamistoso uma direção. (...) ele considerava a sociedade composta inteiramente de vilões (...) A paixão, nele, compreendia muitas das piores emoções que trabalham
contra a felicidade humana. Não se podia contradizê-lo sem suscitar sua rápida cólera; não
se podia falar de riqueza, sem que sua face empalidecesse de corrosiva inveja (...) As impressionantes vantagens naturais desse pobre menino ... tinham transformado sua auto-confiança
constitucional numa arrogância que transformava seus desejos de admiração em danos a ele
4
LEMINSKI em POE. O corvo, apêndice.
ALLEN. Israfel: vida e época de Edgar Allan Poe, p. 231.
6
EDGAR ALLAN POE SOCIETY OF BALTIMORE. The literary criticism of Edgar Allan Poe.
5
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mesmo (...) Irascível, invejoso – bem mal, mas não o pior, porque esses ângulos salientes eram envernizados por um cinismo gelado e repelente, suas paixões se expressavam em sorrisos sarcásticos. Parecia não haver para ele susceptibilidade moral; e, o que era mais notável
numa natureza orgulhosa, pouco ou nada do real senso de honra. Ele tinha, num excesso
mórbido, aquele desejo de subir que é vulgarmente chamado ambição, mas nenhum desejo
pela estima ou amor dos outros; somente o duro desejo de ser bem sucedido – não brilhar,
não servir, apenas ter sucesso, que ele teria o direito de desprezar um mundo que irritou sua
vaidade. (...) Como escritor de contos, é geralmente admitido que ele mal superou a ingenuidade de construção ou de representação efetiva; como crítico, ele foi mais notável como anatomizador de frases do que um comentador de idéias. 7
Essa peça malévola se encerra, ironicamente, com uma citação de Shakespeare: “After life’s
fitful fever he sleeps well”, que é uma fala de Macbeth sobre a morte de Duncan, que ele
mesmo havia provocado! 8
Múltiplas faces, parece, eram vistas em Poe.
POE, O FUTURISTA
Em “Melonta Tauta”, principalmente, Poe nos mostra sua visão extremamente pessoal
dos paradigmas de sua época. 9 Para o narrador do futuro, a guerra e peste são meios legítimos para controlar a população.
Nesse futuro, estaria afastada a hipótese de que havia apenas dois caminhos para a verdade: o dedutivo (atribuído a “Aries Tottle”, e depois a “Cant”) e o indutivo (Hobbes). Aqui
cabe um comentário: Poe define, em Eureka, uma abordagem epistemológica que só muito
mais tarde Popper viria a definir como “intuição criadora sobre as leis universais”. Diz ele,
na Lógica da pesquisa científica, que, apesar da argumentação que leva à validação da tese
científica, a ciência empírica se baseia na lógica dedutiva, dispensando o indutivismo e
demarcando a fronteira com a não-ciência através da falseabilidade. 10 Entretanto, numa
observação que ele mesmo põe à parte, afirma que sua visão sobre o assunto é outra, e que
na realidade não existe um método lógico de conceber idéias novas.
Nessa mesma linha, o narrador do futuro disserta: no “passado”, nenhum homem ousava enunciar uma verdade que fosse por ele só atribuída à sua Alma, e o conhecimento se
obtinha pelo “método do rastejar”, isto é, pela pesquisa empírica – enquanto que, nesta
ucronia, todos sabem que “o único critério para a verdade é a consistência”.
Os antigos americanos governavam a si mesmos – como os esquilos do campo. Imperava a estranha ideia de que todos os homens nascem livres e iguais, e isso nas próprias barbas da lei de gradação!
Claro que isso não daria certo, e a República acabou nas mãos de um sujeito chamado
Plebe, possuidor de todos os vícios, que afinal o levaram à morte – depois disso, os homens
aprenderam a lição.
7
POEFORWARD EDITORS. The “Ludwig” Article, by Rufus Wilmot Griswold: Griswold’s Obituary
of Edgar Allan Poe.
8
SHAKESPEARE, Macbeth, act 3, scene 2, lines 19–23.
9
POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 714-726.
10
POPPER. A lógica da pesquisa científica, p. 32.
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É um evidente desapreço pela democracia – paradigma hoje quase que absolutamente
fora de discussão no mundo. Decorridos dois séculos, é curioso imaginar como ele veria
essa questão.
O PRIMEIRO SIMBOLISTA?
Um dos criadores do movimento simbolista na literatura foi Baudelaire, o introdutor de
Poe na Europa continental, seu primeiro tradutor e sem dúvida seu mais entusiasta admirador no período que se seguiu à sua morte. Do encadeamento Simbolismo–Baudelaire–
Poe, seria lícito tomar Poe como o precursor do movimento? 11 Vejamos: as características
do simbolismo são a individualidade, o subjetivismo, a musicalidade na poesia, a alta densidade poética, a temática vaga e espiritual. Parece razoável a associação.
Note-se ainda a profunda influência que Poe exerceu sobre os simbolistas russos do início do século 20. A primeira tradução russa de Poe data de 1847, através de simbolistas
franceses. Nas palavras de Gogol, “quase todo grande poeta simbolista russo foi influenciado por Poe”. 12 Ele inclui em seu ensaio dois poemas sobre Poe, de Konstantin Balmont
(1867-1943), que também traduziu Poe para o russo. Essa tradução foi revista por Aleksandr Blok (1880-1921), outro grande nome no simbolismo, que diz: “Quase parece que o trabalho de Poe foi realizado na nossa época; presentemente a influência de sua criação é tão
grande que dificilmente seria apropriado considerá-lo apenas como apenas um antepassado
do que chamamos ‘Simbolismo’”. 13
O FUTURISMO RADICAL – A COSMOLOGIA
CIÊNCIA! Do velho Tempo és filha predileta!
Tudo alteras, com o olhar que tudo inquire e
invade!
Por que rasgas assim o coração do poeta,
abutre, que asas tens de triste Realidade?
“Soneto à Ciência”, Poe
O mesmo poeta que aponta, na ciência, asas de triste realidade, apaixonadamente se debruça sobre a natureza do Universo. Num notável artigo, Juan Lartigue dissecou as principais
teses expostas por Poe no seu “poema em prosa” cosmológico Eureka. 14 Mostrou o autor o
acerto de algumas das teses ali apresentadas, agregando que “a capacidade de Poe de perceber a natureza física do cosmos não foi entendida na sua época”. De fato, na maioria das vezes comentários sobre essa obra remetem a um “delírio do ópio”, ou qualificações de igual
teor. Remete-se o interessado para o artigo mesmo, mas listam-se abaixo os pontos principais:
A constituição do universo a partir da partícula, antecipando a Teoria do Big Bang proposta
em 1931 por Lemaitre, que a denominou inicialmente de Hipótese do Átomo Primevo.
A expansão do universo, expressa pela Lei de Hubble proposta em 1929, e que contrariava a
Teoria da Relatividade Geral de 1916, na qual Einstein considerava o universo como estático.
11
MORÉAS. Un manifeste littéraire.
GOGOL. Two Russian symbolists on Poe.
13
GOGOL. Two Russian symbolists on Poe.
14
LARTIGUE. Edgar Allan Poe and science: a cosmic poet.
12
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 294-301.
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A equivalência entre massa e energia, demonstrada na Teoria da Relatividade Restrita de Einstein em 1905.
A existência de universos paralelos, possibilidade física demonstrada matematicamente na
década de 30 pelo Modelo das Pontes de Einstein-Rosen, os famosos “wormholes”.
O Buraco Negro Universal, possibilidade teórica hoje denominada de “Big Crunch”.
Planetas extra-solares, hipótese confirmada em 1995 com a descoberta de um planeta orbitando a estrela Pégaso-51.
A inexistência do éter, confirmada pela experimento Michelson-Morley em 1887.
A afinidade química e a estrutura molecular, conceitos-chave para a química moderna.
O modelo planetário do átomo, proposto pela primeira vez por Rutherford em 1911, e hoje
aceito universalmente.
A estrutura monista do pensamento principal exposto em Eureka é encontrada principalmente em Spinoza, na Ética demonstrada à maneira dos geômetras. 15 Entretanto, embora Spinoza tenha vivido dois séculos antes de Poe, dificilmente teria sido conhecido por
ele, já que a primeira tradução inglesa conhecida da Ética é a da romancista inglesa George
Eliot, completada em 1856, mas publicada muito depois.
Poe conhecia Emmanuel Kant (cita-o em alguns pontos de sua obra), mas dificilmente
teria tido, a partir de tal fonte, inspiração spinoziana: Kant considerava que “em Spinoza a
razão perde a cabeça”, e ele se propunha a “devolvê-la ao seu juízo perfeito”. 16
O PAI DA HISTÓRIA DE DETETIVE E DA FICÇÃO CIENTÍFICA
A relação de autores de ficção futurista, científica ou fantástica que foram influenciados
por Poe é imensa: Ambrose Bierce, Rimbaud, Jules Verne, H. G. Welles, H. P. Lovecraft,
Agatha Christie, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, John Dickson Carr, T. S. Eliot,
Robert Bloch, Ray Bradbury, Shirley Jackson, Stephen King. Desses, pode-se destacar aqui,
como muito representativos, dois deles: Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, e Ray Bradbury, um dos maiores autores de ficção científica dos nossos dias. Ambos
afirmaram enfaticamente que beberam da fonte da obra de Poe.
Conan Doyle, por exemplo, aparece numa notícia de 1º de março de 1909, num banquete em homenagem aos cem anos do nascimento de Edgar Poe em Londres. 17 A manchete é
expressiva: HOMENAGEM A POE EM LONDRES: Conan Doyle Reconhece que Ele o Inspirou.
Em seu livro de contos Through the magic door, ele explicita sua admiração: “Poe is, to my
mind, the supreme original short-story writer of all time. (…) If every man who receives a
cheque for a story which owes its springs to Poe were to pay a tithe to a monument for the
master, he would have a pyramid as big as that of Cheops”. 18
Ray Bradbury presta homenagem a Poe em vários pontos de sua obra, mas, ao nosso
ver, a reverência mais notável é a que é feita no final do romance Fahrenheit 451 19 – a conhecida história futurista onde, numa sociedade autoritária, livros são malditos: eles fazem
o homem pensar, e dele retiram a natural felicidade da ignorância e da tutela (Fahrenheit
15
SPINOZA. Ética demostrada según el orden geométrico.
FERNÁNDEZ. ¿Kant contra Spinoza?: dos éticas de la autonomia.
17
NEW YORK TIMES.
18
GOGOL. Two Russian symbolists on Poe.
19
BRADBURY. Fahrenheit 451.
16
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451 é a temperatura da chama pela qual os livros são incinerados). Um grupo de rebeldes
continua, entretanto, a amar a literatura, e, como não se pode fisicamente possuir os livros,
eles os memorizam. O herói escolhe memorizar justamente as Histórias Extraordinárias,
numa escolha difícil entre tantos tesouros. É possível para um admirador de Poe não ficar
profundamente tocado por essa imagem poética?
CONCLUINDO
É bastante conhecida a relação de tragédias pessoas vividas por Poe: orfandade, rejeição
pelo pai adotivo, pobreza persistente, doença mortal da esposa, fracassos sucessivos na
carreira literária. Entretanto, com todos os percalços, a obra foi levada avante. A visão peculiar, muito além do seu tempo, foi concretizada em obras que continuam vivas. O universo que Poe viveu em sua mente foi, às mais duras penas, comunicado à posteridade, e
com resultados concretos: cada uma de suas criações gerou prole em outras mãos, e não há
por que pensar que o legado tenha encerrado seu poder germinativo. As dificuldades materiais e emocionais foram um obstáculo ou um incentivo?
O objetivo aqui está longe, claro, de propor explicações psicanalíticas. Mas algumas
respostas para o significado de Poe e sua obra no inconsciente coletivo parecem emergir:
do estereótipo pop àquilo que ele esconde. Poe foi o visionário contestador que não temeu
a exposição pública, o crítico que afrontou a inimizade dos criticados. A falta de formação
acadêmica, devida quase que integralmente às mais dolorosas circunstâncias do abandono
paterno, que suportasse suas incursões filosóficas e científicas, não impediu essas incursões, mas certamente reduziram-lhe o impulso.
Vivendo em meio aos seus próprios demônios, Poe levantou bem alto a bandeira da criação, do livre pensar, da originalidade, do império do pensamento, em suma. Enquanto sua
obra continua viva no que agregou conceitual e tematicamente ao acervo da humanidade, a
mensagem da sua vida, ainda que não deixe de espelhar suas idiossincrasias, reflete o substrato do homem. Não é sem razão que ele foi, e é, inspiração para tanta gente.
Em meio a circunstâncias que distraem e confundem, mirou o cerne da individualidade. Será isso originalidade ou universalidade?
REFERÊNCIAS
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1945.
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