Troca e Reciprocidade

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Troca e Reciprocidade
Troca e Reciprocidade: Uma Comparação Preliminar de Representações Sociais
Autor: Rodrigo Cantú de Souza
Orientadora: Adriana Sbicca Fernandes
O objetivo deste estudo é analisar os conceitos de reciprocidade e troca, desenvolvidos nas
obras de Karl Polanyi através da introdução de elementos da pesquisa etnográfica e
etnológica na história econômica, com o intuito de trazer algumas contribuições para a
economia na sua definição substantiva, dando-se atenção especial à compreensão da
distribuição. Isto foi realizado com o apoio do pensamento sociológico francês, utilizandose obras de autores como Durkheim, Mauss e Godelier.
§1 Polanyi trabalha com o conceito substantivo de economia e admite que somente esta
definição é suficiente para “an investigation of all the empirical economies of the past and
the present” (POLANYI, 1957, p.244). O conceito substantivo é definido como “an
instituted process of interaction between man and his environment, which results in a
continuous suply of want satisfying material means” (POLANYI, 1957, p.248). É
necessário, então, salientar o processual e o contínuo instituídos. Por instituição entende-se
uma concentração de atividades sociais e, enquanto fazem parte deste processo, é
considerada econômica. A institucionalização do processo econômico leva
conseqüentemente a sua unidade e estabilidade. Estas são atingidas através da combinação
de formas de integração, ou seja, padrões que podem ser observados empiricamente em
dados etnográficos e históricos.
§2 É através então da história e da etnografia que Polanyi desenvolve os padrões de
integração. Ele usa a literatura histórica e, ainda, a etnográfica. Esta, apesar de já ter pelo
menos um século de existência em meados do século XX, permanecia totalmente obscura
ao estudo da economia. A economia tradicional sempre se baseou nas trocas de mercado;
estudou, de certa forma, profundamente suas implicações; formulou, à moda vigente,
pobres teorias históricas evolucionistas nada empíricas sobre o desenvolvimento desta
maneira específica de troca; ou seja, com uma experiência pobre no assunto, resolveu-se a
essência humana em relação às trocas de objetos materiais. Porém, os fatos se mostravam
contraditórios. Nada apontava para uma aprovação da teoria da escolha racional do
consumidor, mesmo porque em quase todos os casos, no tempo e no espaço, relatados por
historiadores e etnógrafos, não existiam consumidores como na concepção moderna e sua
racionalidade provou estar incrustada em um nível subjacente da ação humana, isto é, na
formação inconsciente de valores sociais, aos quais a economia estava sujeita.
§3 Enfim, com um exame geral das atividades humanas em torno da produção,
distribuição e consumo de meios materiais, Polanyi chega à seguinte conclusão:
“A study of how empirical economies are instituted should start from the way in which economy acquires unity and
stability, that is, the interdependence and recurrence of its parts. This is achieved through a combination of a very few
patterns which may be called forms of integration” (POLANYI, 1957, p.250)
Estes padrões são simetria, troca no mercado, redistribuição e domesticidade.
§4 Vejamos a descrição de como funcionaria o padrão de reciprocidade, ligado à
simetria:
“A reciprocidade é enormemente facilitada pelo padrão institucional da simetria, um aspecto freqüente da organização
social entre os povos iletrados. A marcante ‘dualidade’ que encontramos em subdivisões tribais colabora para a união de
relações individuais, ajudando assim o tomar-e-dar de bens e serviços na ausência de registros permanentes. As metades
da sociedade selvagem, que tendem a criar um pendant em cada subdivisão, acabam resultando de, e ajudando a executar
os atos de reciprocidade sobre os quais o sistema repousa. Pouco se conhece a respeito da origem da ‘dualidade’, porém
cada aldeia da costa nas Ilhas Trobiand parece ter a sua contrapartida numa aldeia do interior, de forma que a importante
troca de fruta-pão e peixe, embora disfarçada de distribuição recíproca de presentes e na verdade deslocada no tempo,
pode ser perfeitamente organizada. Também no comércio de Kula cada indivíduo tem o seu parceiro em uma outra ilha,
personalizando assim, numa extensão marcante, a relação da reciprocidade. Não fosse a freqüência do padrão simétrico
nas subdivisões da tribo, na localização dos povoados, bem como nas relações intertribais, seria impraticável uma ampla
reciprocidade baseada na atuação, em última instância, de atos isolados de dar-e-tomar”. (POLANYI, 1944, p.68)
E agora a troca no mercado:
“A troca (de mercado) constitui um princípio de comportamento econômico que depende do padrão de mercado para sua
efetivação. Um mercado é um local de encontro para a finalidade da permuta ou da compra e venda. A menos que este
padrão esteja presente, pelo menos em parte, a propensão à permuta não terá escopo suficiente: ela não poderá produzir
preços”. (POLANYI, 1944, p.76)
§5 “Exchange, substantively defined, is the mutual appropriative movement of good
between hands” (POLANYI, 1957, p.266). Conceituada desta forma, a troca pode muito
bem caber ao princípio de reciprocidade e ao de troca no mercado.
É necessário, então, distinguir quais elementos são particulares a seus devidos
princípios. A troca de mercado envolve forças antagônicas1 e tem a razão quantitativa entre
bens determinada por um mecanismo externo: o mercado. Na reciprocidade a troca é
regrada por diversas outras instituições que não são puramente econômicas e seus termos
de equivalência não estão, definitivamente, sob a égide do mercado.
§6 Com estas definições e distinções em mente, reparamos elementos sociais
distintos no que tange a razão quantitativa de bens em clássicos exemplos de Malinowski
das populações das ilhas Trobriand na Melanésia. O urigibu é a distribuição de bens e
prestações ao marido da irmã. Este, por sua vez, retribuirá o cunhado (e aliado), pois a
avareza é extremamente condenada na ética trobriandesa. Neste caso, observa-se que uma
prestação, obviamente não somente material, tem uma contrapartida subjetiva e se
estabelece em função deste valor de hierarquia suprema nas trocas que é a generosidade. O
vaygu’a é uma forma de troca hierarquicamente superior e envolve objetos específicos:
colares e braceletes feitos de conchas que tem sua própria história mítica e circulam
segundo regras específicas (MALINOWSKI, 1978). Eles têm uma importância imensa na
cultura destes povos, mas, apesar de sua maior valorização social, sua troca se fundamenta
1
“Exchange at fluctuating prices aims at a gain that can be attained only by an attitude involving a distinctive
antagonistic relationship between the partners. The element of antagonism that accompanies this variant of
exchange is ineradicable.” (POLANYI, 1957, p.255).
na mesma base do urigibu, ou seja, a generosidade. Este tipo de comportamento é tão
peremptoriamente lacônico que define o que ao entendimento dos primeiros colonizadores
e mesmo dos primeiros etnógrafos seria a chefia do grupo tribal. Todavia, a chefia nestes
grupos estaria mais ligada a um acumulo de “prestígio” (CLASTRES, 1978), que acarreta
certas funções particulares que muitas vezes nada mais são do que valores gerais
amplificados e polarizados no “chefe”, que uma posição de poder no conceito weberiano.
Nestas sociedades, quem acumula mais “prestígio” tem muito maior possibilidade de
estabelecer relações do tipo urigibu, onde lhe são fornecidas esposas para tal, e, também, do
tipo vaygu’a. Logicamente, concentrando-se várias relações destas, pode-se adquirir um
fluxo considerável de bens para si, levando a uma conseqüente maior disponibilidade de
bens para se distribuir. Isso serve para exemplificar um caso onde um valor social
determinado define a circulação de objetos materiais.
§7 A questão da representação é levantada por Mauss e Durkheim em seu texto
Algumas Formas Primitivas de Classificação, onde a análise de povos da Austrália e África
levou a seguinte pergunta: “Toda a classificação implica uma ordem hierárquica da qual
nem o mundo sensível nem nossa consciência oferecem o modelo. Deve-se, pois, perguntar
onde fomos procurá-lo.”(DURKHEIM, MAUSS, 1995, p.403). Um dos exemplos é o da
tribo de Port-Mackay, na Queenslândia, que tem seu grupo dividido em dois. Nessa tribo há
uma classificação do mundo em duas partes: Yungaroo e Wootaroo. Isso quer dizer, todas
as coisas, de fenômenos da natureza e constelações a plantas e animais, são colocadas
nestas duas categorias. Diversas outras tribos australianas possuem, ainda, um sistema de
classificação totêmico, ou seja, “o agrupamento dos homens em clãs de acordo com os
objetos naturais” (DURKHEIM, MAUSS, 1995, p.409). O que os autores, então, propõe é
que, por outro lado, este sistema é também um agrupamento dos objetos naturais segundo
os agrupamentos sociais. Estes tipos de classificação refletem e surgem a partir da
morfologia do grupo; estas classificações “nada mais fazem senão exprimir, sob diferentes
aspectos, as próprias sociedades no seio das quais elas foram elaboradas.”(DURKHEIM,
MAUSS, 1995, p.441).
§8 Na sociedade de mercado, segundo Polanyi, trabalho e terra são transformados
em mercadoria e servem então a este mecanismo “disembbeded” que é o mercado. A
conseqüência na morfologia social seria a seguinte: “Separar o trabalho das outras
atividades da vida e sujeitá-lo às leis de mercado foi o mesmo que aniquilar todas as formas
orgânicas da existência e substituí-las por um tipo diferente de organização, uma
organização atomista e individualista” (POLANYI, 1944, p.198). Com a inserção do
mercado entre os indivíduos, as relações passam a ser econômico-contratuais, no sentido de
conscientemente envolverem a noção de interesse (econômico). Esta noção determina o
presente (no sentido das prestações descritas em §4 e §6) em oposição a uma compra e
venda; nestas há “interesse”, aquelas se pretendem desinteressadas2, ou seja, são criadas
2
Essa idéia esconde o fenômeno da dádiva que, na verdade, segundo Mauss, é sempre interessada e envolve a
obrigatoriedade de dar receber e retribuir (ver MAUSS, Marcel, Ensaio Sobre a Dádiva, in: Sociologia e
Antropologia, EPU/EDUSP, 1974, p.49-67). A denominação “presente” foi bastante recorrente na sociologia
até a primeira metade do séc. XX, porém mesmo Mauss reconhecia que seu uso não era de todo apropriado
para descrever o fenômeno em questão: “Os termos que empregamos (presente, regalo, dádiva) não são
novas representações sobre a relação que Polanyi denomina troca substantivamente
definida (ver §5). Acontece uma reclassificação dos termos segundo distintas morfologias
sociais.
§9 Pode-se perceber que a concepção de Mauss da representação ligada à forma de
agrupamento da sociedade choca-se, de certa forma, com a idéia de “disembbeded” de
Polanyi. Para aquele, o mercado estria na sociedade e funcionaria nela como uma
instituição específica. Quem desenvolve melhor este contraste é Godelier, seguindo, em
parte, as teorias da escola sociológica francesa. A economia estaria “disembbeded” nas
sociedades de mercado e estaria “embbeded” como no exemplo em §6. Todavia, “esta
distinção nos parece equivoca, pois afinal de contas, ‘disembbeded’ sugere uma ausência de
relação interna entre o econômico e o não-econômico quando em toda a sociedade existe
essa relação” (GODELIER, 1969, p.332). “Se o que se produz, reparte e consome depende
da natureza e da hierarquia das necessidades de uma sociedade, a atividade econômica está
ligada organicamente às outras atividades políticas, religiosas, culturais e familiais que
compõem com ela o conteúdo da vida dessa sociedade e às quais fornece os meios
materiais de se realizarem” (GODELIER, 1969, p.327).
Fontes Bibliográficas
CLASTRES, Pierre, A Sociedade Contra o Estado, Livraria Francisco Alves Editora, Rio
de Janeiro, 1978.
DURKHEIM, Émile, MAUSS, Marcel, Algumas Formas Primitivas de Classificação
(1903), in: MAUSS, Marcel, Ensaios de Sociologia, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1995.
GODELIER, Maurice, Racionalidade e Irracionalidade na Economia, Edições Tempo
Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969.
MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental, Abril Cultural, São Paulo, 1978
(Coleção Os Pensadores)
MAUSS, Marcel, Ensaio Sobre a Dádiva, in: Sociologia e Antropologia, EPU/EDUSP,
1974.
POLANYI, Karl, A Grande Transformação, Ed. Campus, Rio de Janeiro, 2000 (1944).
POLANYI, Karl, ARENSBERG, Conrad, PEARSON, Harry, Trade and Market in the
Early Empires, The Free Press, New York, 1957.
Bibliografia Auxiliar
GUDEMAN, Stephen, The Anthropology of Economy, Blackwell Publishers, Malden,
Massachusetts, 2001.
LANNA, Marcos, Repensando a Troca Trobriandesa, in: Revista de Antropologia, São
Paulo, USP, 1992, v. 35, p. 129-148.
absolutamente exatos. Não encontramos outros, eis tudo” (MAUSS, Marcel, op.cit., 1974, p.172). Na verdade
o que acontece é apenas uma transferência de bens que por fugir da concepção mercadológica de troca não
encontrava uma interpretação ideal.
LANNA, Marcos, Reciporocidade e Hierarquia, in: Revista de Antropologia, São Paulo,
USP, 1992, v. 35, p. 111-143.
SAHLINS, Marshall, A Primeira Sociedade de Afluência, in: CARVALHO, E.
(Organizador), Antropologia Econômica, Ed. Ciências Humanas, 1978.
SAHLINS, Marshall, Cosmologias do Capitalismo: o setor transpacífico do sistema
mundial, in: Religião e Sociedade, Vol. 16, no. 1-2, novembro de 1992.

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