Pessoas e nomes Kwakiutl - Revista Sociedade em Estudos

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Pessoas e nomes Kwakiutl - Revista Sociedade em Estudos
GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
Pessoas e nomes Kwakiutl: os recipientes universais
Luciana Braga Garcia*
Resumo: O objetivo deste trabalho é aprofundar a discussão de algumas análises sobre a organização
social do grupo indígena canadense Kwakiutl, amparando-se em trabalhos etnográficos realizados
previamente, especialmente os desenvolvidos por Franz Boas. A investigação direciona-se no sentindo
de compreender algumas categorias nativas, como os nomes e a noção de pessoa, a partir de uma breve
análise do modo de troca nativo, o potlatch, e a organização do grupo em suas unidades sociais básicas,
os numaymas. Com referências constantes às obras de Louis Dumont e, em especial, Marcel Mauss,
este artigo visa aprofundar a construção da pessoa Kwakiutl a partir da relação entre os nomes nativos,
sua importância dentro da configuração social local e sua conexão com o sistema de hierarquia nativo,
baseado na ascensão social através da honra, prestígio e distribuição de propriedade.
Abstract: The main purpose of this paper is to deepen the discussions over some analysis about the social
organization of the indigenous group Kwakiutl, from Canada, based on ethnographical works such as the
ones developed by Franz Boas. The research leads towards the comprehension of some native categories,
as Kwakiutl names and personhood, starting from a brief analysis of the native exchange system called
potlatch and the group organization in basic social unities, the numaymas. Using constant references to
the work of Louis Dumont and specially Marcel Mauss, this paper intends to analyse the construction of
Kwakiutl persoonhood based on the relationship between native names, their importance within the local
social scheme and their connection with the native hierarchy system, which is constituted by the dispute
of honor and property distribution.
Resumo: El principal objetivo de este artículo es profundizar la discusión de algunas análisis sobre
la organización social del grupo indígena canadense Kwakiult, apoyado por estudios etnográficos ya
realizados, especialmente aquellos desenvolvidos por Franz Boas. La investigación está direccionada
para una mejor comprensión de algunas categorías nativas, como los nombres y la noción de persona,
a partir de una breve análisis del modo de troca nativo, el potlatch, y de la organización del grupo en
sus unidads sociales básicas, los numaymas. Com referencias constantes a las obras de Louis Dumont y
Marcel Mauss, este artículo se propone a profundizar las ideas acerca de la construcción de la persona
Kwakiult a partir de la relación con los nombres nativos, su importancia dentro de la configuración social
local y su conexión con el sistema de hierarquia nativo, baseado em la ascención social por medio del
honor, del renombre y de la distribución de propriedad.
Este artigo é fruto de pesquisa realizada entre os anos de 2003 a 2006, em atividade realizada no
Programa de Iniciação Científica do CNPq e cujos resultados plenos podem ser encontrados no trabalho
monográfico intitulado “Troca e hierarquia entre os Kwakiutl”, que consistiu em uma análise bibliográfica
sobre esse grupo indígena canadense, baseada especialmente na obra de Franz Boas. Buscou-se dar consistência
aos materiais já escritos sobre os Kwakiutl e interpretar seu sistema de troca, denominado potlatch, à luz de
conceitos como o de dádiva (Marcel Mauss) e hierarquia (Louis Dumont), entre outros.
Neste texto, entretanto, pretendo me ater a outras questões sobre a organização social indígena. De
maneira diferente do que realizei em minha monografia, na qual priorizei o potlatch, a explicação sobre os
grupos sociais básicos (numaymas) e a hierarquia decorrente da troca e destruição de bens, pretendo aqui
* Curso de Ciências Sociais concluído no primeiro semestre de 2006 na Universidade Federal do Paraná
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enfocar a importância dos nomes nativos, bem como sua relação com a cosmologia Kwakiutl e a noção
de pessoa pertencente a este grupo1. Faz-se necessário, de qualquer forma, uma explanação geral sobre os
numaymas e o potlatch, já que estes possuem ligação direta com a aquisição dos nomes e seus significados.
Os Kwakiutl habitam a Ilha de Vancouver, no Canadá, e sustentam-se da caça, coleta de frutos e
especialmente da pesca. O trabalho em madeira é muito comum, nas canoas, e também sempre foi notável a
confecção de cobertores, os quais são trocados em grandes quantidades entre os índios. Os Kwakiutl foram
descritos por Boas, em seus trabalhos iniciados a partir de 1885, como divididos em 25 grupos politicamente
autônomos, as aldeias (“villages”), cada qual considerada uma unidade separada, a “tribo” (termo utilizado
por Boas). As aldeias estão divididas em grupos chamados numayma, as unidades sociais básicas. Cada aldeia
possui de 2 a 7 numaymas, e possui grandes casas de madeira, cujas fachadas eram pintadas com a figura
mítica relacionada à história das famílias que ali viviam (BOAS, 1966).
Cada numayma possui um nome próprio, de origem diversa: alguns dos nomes são puramente geográficos
(o lugar de onde vem o ancestral mais antigo), outros são chamados pela forma coletiva do ancestral (por
exemplo, “Dançadores de Canções”) ou ainda através de um nome honorífico (“O Grupo do Chefe”).
O numayma Kwakiutl equivaleria a uma casa, no sentido proposto por Lévi-Strauss (LÉVISTRAUSS, 2000), uma entidade social que possui duas ou mais casas de madeira, cada uma tendo nome,
origem e privilégios próprios. A partir dos estudos sobre várias sociedades, inclusive os Kwakiutl, LéviStrauss cunhou o conceito de “sociedade a casas”, no artigo A organização social dos Kwakiutl. Este tipo
de sociedade é capaz de conciliar princípios aparentemente antagônicos, tais como endogamia e exogamia,
patrilinearidade e matrilinearidade, filiação e residência e etc: “... la casa es pues uma creación institucional
que permite componer fuerzas que, fuera de allí, parecen no poder aplicarse sino excluyendo la una a la otra
en razón de sus orientaciones contradictorias (...) la casa realiza uma especie de vuelta topológica de lo interior
al exterior; reemplaza una dualidad interna por uma unidade externa”2 (LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 160).
Os numaymas kwakiutl seriam casas, no sentido de
... persona moral detentadora de un dominio constituido a la vez por bienes materiales e inmateriales,
que se perpetúa por la transmisión de su nombre, de su fortuna y de sus títulos em línea real o ficticia,
tenida por legítima com la sola condición de que esta continuidad pueda explicarse en el lenguage del
parentesco o de la alianza y, las más de las veces, de los dos al tiempo 3 (LÉVI-STRAUSS, 2000, p.
150).
Para Boas, “the numayma consists of families embracing essentially household groups and the
nearest relatives of those who married into the household group” 4 (BOAS, 1966, p. 48). Equivaleria a uma
casa, no sentido proposto por Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS, 2000), uma entidade social que possui duas
ou mais casas de madeira, cada uma tendo nome, origem e privilégios próprios. É composto por um chefe
principal, chefes menores e súditos com suas respectivas famílias, sendo que o chefe principal é descendente
do fundador e herda os seus poderes. O numayma é também um conjunto de posições de ranking, cada uma
associada a nomes e privilégios. Como expressa Boas,
The structure of the numayma is best understood if we disregard the living individuals and rather
consider the numayma as consisting of a certain number of positions to each of which belongs a
name, a “seat” or “standing place”, that means rank, and privileges. Their number is limited, and they
form a ranked nobility. (...) These names and seats are the skeleton of the numayma, and individuals,
in the course of their lives, may occupy various positions and with these take the names belonging
to(BOAS,1966, p. 50).
Embora se reconheça a existência de uma discussão sobre corporalidade, noção de pessoa e configuração dos nomes
nativos nos estudos a respeito dos ameríndios sul-americanos, a qual poderia aqui ser utilizada comparativamente para enriquecer
o trabalho, entendeu-se que isso não seria possível nos limites deste artigo. No entanto, essa temática está sendo objeto de estudo
em projeto em andamento.
(Todas as traduções apresentadas em nota de rodapé, feitas a partir dos originais em inglês e espanhol, foram
realizadas pela autora.)
2
... a casa é, portanto, uma criação institucional que permite compor forças que, fora dali, parecem não poder se aplicar
a não ser excluindo-se mutuamente em razão de suas orientações contraditórias (...) a casa realiza uma espécie de volta topológica
do interior ao exterior; substitui uma dualidade interna por uma unidade externa.
3
... pessoa moral detentora de um domínio composto simultaneamente por bens materiais e imateriais, que se perpetua
pela transmissão de seu nome, sua fortuna e seus títulos em linha real ou fictícia, tida como legítima sob a condição única de que
esta continuidade possa exprimir-se na linguagem do parentesco ou da aliança e, as mais das vezes, em ambas ao mesmo tempo.
4
O numayma consiste em famílias envolvendo essencialmente lares [no sentido de edificação e grupo doméstico,
simultaneamente] e os parentes mais próximos daqueles que casaram nestes grupos.
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Os indivíduos possuem mais de uma posição em mais de um numayma (o número de posições
é, portanto, sempre maior que o número de membros do grupo). As posições sociais estratificadas são
diferenciadas pelo nome que possuem, além das prerrogativas e privilégios que carregam. Ou seja, cada
posição assegura um nome, privilégios e prerrogativas correspondentes, os quais validam seu status. Dentro
da família, a estratificação é determinada pela ordem de nascimento (o filho ou filha mais velho sempre tem
posição mais alta).
As posições dentro do numayma e entre os vários numaymas existentes são negociadas através do
potlatch, a troca cerimonial existente entre os Kwakiutl. Na cerimônia, bens materiais e imateriais são distribuídos
de acordo com a importância social e a posição dos convidados. O potlatch é constituído de discursos, danças,
canções, comidas e trocas e é realizado em ocasiões especiais, tais quais casamentos, nascimentos, mortes,
trocas de nomes, e geralmente é acompanhado por uma festa, referente ao compartilhamento de comida.
O potlatch é, pois, este festival para o qual um chefe convida outras tribos vizinhas para realizar trocas. A
unidade de valor é o cobertor, comumente de lã branco e barato. Ao realizar o potlatch, o chefe kwakiutl tenta
se sobrepor ao seu rival – aquele que foi convidado para a cerimônia -, dissipando a maior quantidade possível
de riqueza, através da doação de cobertores.
Marcel Mauss define o potlatch como sendo “o sistema de dádivas trocadas” (MAUSS, 1925, p. 9596), já que ele representa a expressão de um princípio de organização social mais amplo, a saber, o princípio
de dar, receber e retribuir. A obrigação de dar é o que sustenta o potlatch, através da distribuição de fortuna,
demonstrando para os outros a riqueza através de dádivas e presentes distribuídos. Da mesma maneira, há
uma forte obrigação de receber, pois não se pode recusar uma dádiva ou mesmo um convite para um potlatch.
A obrigação de retribuir uma dádiva, entretanto, dificilmente se concretiza imediatamente; é necessário um
tempo para realizar a contra-prestação, o que torna a dádiva uma dívida a prazo. Neste sentido, como atesta
Mauss, o potlatch contém três noções fundamentais: crédito, prazo e honra. Segundo sua teoria, “a dádiva tem
por natureza criar uma obrigação a prazo” (MAUSS, 1925, p. 97).
Além disso, a dádiva fomentadora do potlatch opera inexoravelmente no sistema social Kwakiutl
constituindo um modelo nativo de compreensão do mundo. Segundo Irving Goldman, o potlatch não é o modelo
através do qual se expressa a sociedade Kwakiutl; ele seria, subordinadamente, uma das muitas maneiras de
expressão de um modelo, o qual pode ser constatado tanto no potlatch como na pesca, por exemplo, e que seria
o modelo da distribuição e retribuição (GOLDMAN, REFERENCIA).
Como foi mencionado, além da troca de bens materiais, tais quais cobertores, pratos, caixas, etc, o
potlatch também valida a troca de bens simbólicos, como canções, prerrogativas, privilégios e nomes.
Estes últimos são de fundamental importância, pois a posse de determinados nomes, posições e funções
coordena a vida social kwakiutl, definindo o papel de cada habitante do numayma de acordo com
sua posição dentro do grupo, as quais são determinadas, primordialmente, pelos nomes e títulos,
responsáveis por conferir prestígio e, conseqüentemente, uma alta posição social (ranking).
O potlatch e a aquisição de nomes são fatos intrinsecamente ligados à estratificação, pois a transmissão
ou aquisição de um nome só é oficializada quando se realiza um potlatch, que legitima a nova posição
do kwakiutl. Boas destaca, de maneira concisa, que a aquisição da posição é feita pelo potlatch ou pela
distribuição de bens. A aquisição de uma alta posição e a manutenção da mesma requerem casamento
arranjado da maneira correta e também riquezas acumuladas e dissipadas no momento apropriado
(BOAS, 1966).
A posição de um kwakiutl dentro do seu respectivo numayma é essencial para que ele seja definido
enquanto a pessoa que é. Além do ranking do numayma, outro aspecto importante na identificação e
posicionamento dos Kwakiutl dentro da coletividade são os nomes que eles portam. Nomes aqui, entretanto,
referem-se também a títulos de nobreza e prerrogativas e privilégios que estes acarretam. O nome está no
centro do sistema de hierarquia social e é o esqueleto do numayma, uma vez que coordena todo o sistema de
estratificação que este representa.
Em primeiro lugar, é importante destacar que há uma grande rotatividade de nomes entre os indígenas.
A troca de nomes é comum, necessária enquanto etapa de vida e é sempre acompanhada de um potlatch. É a
troca de nome que permite ascensão na hierarquia do numayma, o que se dá através da aquisição de uma nova
5
A estrutura do numayma é melhor compreendida se nós desconsiderarmos os indivíduos e considerarmos o numayma
como consistindo em certo número de posições às quais corresponde um nome, um assento ou uma posição que significam
estratificação e privilégios. Seu número é limitado e eles formam uma nobreza estratificada. (...) Esses nomes e assentos são o
esqueleto do numayma, e os indivíduos, ao longo de suas vidas, podem vir a ocupar várias posições e com isso possuir nomes que
pertençam a essas posições.
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posição, sempre pela dissipação de riqueza realizada no potlatch.
É no potlatch que se oficializa qualquer transação comercial, casamento, transferência ou obtenção
de um novo nome. O potlatch operacionaliza esta mudança de identidade, uma vez que cada novo nome
assumido pelo indivíduo é considerado uma mudança substancial que o torna outro indivíduo através de sua
mudança de status.
Há duas categorias de nomes: os transmitidos pelo casamento e os transmitidos pela primogenitura.
Boas supõe que ambos teriam uma origem comum. Para os Kwakiutl, entretanto, não existe diferença alguma
entre estas duas categorias de títulos. Estes nomes e privilégios dão aos seus portadores o direito de uso de
emblemas, cantos, danças, funções nas sociedades secretas e etc.
A primeira categoria, nomes transmitidos pelo casamento, compreende aqueles nomes dados pelo
sogro ao genro por ocasião do casamento, tendo maior alienabilidade e mobilidade. Estes nomes e privilégios
dão aos seus portadores o direito de uso de emblemas, cantos, danças, funções nas sociedades secretas e etc, e
muitos estão contidos dentro de uma crest-box (uma caixa de privilégios esculpida em madeira), as quais são
transmitidas em ocasiões especiais como o casamento, por exemplo.
Já a segunda, ou seja, aqueles transmitidos pela primogenitura, são identificados como títulos de
nobreza que, segundo Ruth Benedict, seriam “uma série de nomes titulares que eram assumidos por pessoas
consoante os seus direitos hereditários e a sua capacidade financeira” (BENEDICT, 1934, p. 205). Estes
nomes não teriam sido reduzidos nem ampliados desde o começo do mundo, sendo portanto um número fixo.
Ao possuir estes títulos (nomes), a pessoa assumiria em si mesma a força de seus antepassados e, ao serem
transmitidos para o seu herdeiro, ela perderia a legitimidade de usá-los como seus. Estes títulos são conhecidos
também, como denominam Boas e George Hunt, por “nomes do mito”, e não podem sair da família dos
chefes do numayma, devendo ir para o filho (a) mais velho (a) do chefe e não podendo ir para o marido da
filha, devendo permanecer na família de procriação do chefe. O nome da casa, a posição e os privilégios
correspondentes não devem sair da linhagem primogênita e não devem ser trocados no casamento. Segundo
Hunt, “los solos nombres de um jefe principal de numaym que puedan ser dados em ocasión de uma boda son
aquellos que el próprio jefe obtuvo de sus suegros, así como los privilégios, pues sus propios privilégios no
los puede trasmitir a su yerno” 6 (HUNT, 2000, apud Lévi-Strauss, p. 143/144).
Os nomes são adquiridos por herança pela linha de primogenitura, independente do sexo (as garotas
asseguram nomes mesmo que possuam irmãos mais novos). As posições e nomes da família são mantidos
pela mulher somente até que seu filho tem idade suficiente para assumi-los (funcionando assim como holder).
As mulheres herdavam títulos como os homens, e executavam o papel correspondente ao homem até que
seus primogênitos pudessem assumir as funções do potlatch e exercer os títulos de seu numayma. A criança
herda os nomes do pai e da mãe se ambos forem de alta linhagem, sendo comum um índio participar de dois
numaymas simultaneamente, pois, dada a transmissão bilateral da herança, ele poderia requisitar os nomes da
família da mãe e do pai (BOAS, 1966).
Se um primogênito se casa com uma primogênita, seu filho herda o nome de ambos os numaymas, e
um dos primogênitos é incorporado hierarquicamente na casa do outro. Este tipo de união pode ser considerada
como a ideal, pois duas casas se fundem através da ligação de duas pessoas de posições equivalentes entre si
(LÉVI-STRAUSS, 2000).
Existem alguns tipos de nomes entre os Kwakiutl, como os nomes de infância, os de potlatch, os títulos,
nomes cerimoniais, os nomes cristãos (incorporados com a colonização) e etc. Os títulos são especialmente
dotados de grande importância política, já que são aqueles ligados às posições sociais (seats). São nomes que
devem ficar restritos ao numayma ao qual pertencem, não sendo transferíveis através do casamento, e somente
pela primogenitura – como já foi mencionado, são conhecidos como “nomes do mito”.
Os Kwakiutl acumulam diversos nomes durante sua vida, havendo uma ordem de aquisição dos
mesmos. A criança recebe o seu primeiro nome ao nascer, sendo que este é o nome do seu local de nascimento,
e o mantém até possuir um ano. Alguém da família dá um pequeno remo ou esteira para cada membro do
grupo (distribuição de propriedade em um potlatch organizado pela família) e então a criança recebe outro
nome, o segundo.
Por volta dos dez ou doze anos ela obtém o terceiro nome, distribuindo pequenos presentes entre o
grupo. Para poder realizar essa distribuição, criança toma emprestado cobertores e outros objetos aos mais
velhos, os quais devem ser devolvidos um ano depois. Eles são distribuídos proporcionalmente entre o grupo
6
Os únicos nomes de um chefe principal de numayma que podem ser dados em ocasião de um casamento são aqueles que
o próprio chefe obteve de seus sogros, assim como os privilégios, pois seus próprios privilégios não os pode transmitir a seu genro
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(o chefe sempre recebe mais) e, após pagar suas dívidas no ano seguinte, a criança pode adquirir um nome
de potlatch, através do assento que seu pai lhe transmite. Um conselho se reúne para autorizar a transação
e a criança distribui mais cobertores. Seu pai abre mão de seu assento e se posiciona com os anciãos do
conselho.
Throughout his life, the child acquires new names and divests himself of old names, but these names are
all eternal, ceremonial names; and since only one person can embody those names, a child can acquire a
name only when the previous name holder has divested himself of that name. (...) As holder of a specific
name, the child has the same rights and responsabilities every holder of that name has had since the
beginning of time, when the name was first created by the spirits 7(WALENS, 1981, p. 65).
Os nomes, como se pode observar, ocupam papel central em todos os aspectos da vida indígena,
pois é a partir deles que se estabelece a estratificação social (rank), as cerimônias, a configuração geográfica
e política da tribo, entre outros aspectos. Como afirma Mauss, “a partir das classes e dos clãs [estabelecidos
pelos nomes], ordenam-se as ‘pessoas humanas’” (MAUSS, 1938, pg. 376).
“... the social transfer of names is central in constituting the Kwakiutl person in the cosmological and
social order. Also importantly, names are of differential importance, and position the person as an agentin-society accordingly” 8 (NIELSEN, 2001, pg. 192).
Para Steffen Nielsen, os nomes seriam ainda responsáveis por ligar os homens com o mundo
sobrenatural, através da referência direta ao ancestral mítico de cada numayma. Indicam também o numayma
ao qual o kwakiutl pertence, os privilégios que ele porta e a localização geográfica de seus consangüíneos. O
nome conecta diferentes gerações, uma vez que várias pessoas utilizam o mesmo nome ao longo do tempo,
dado o estoque fixo dos mesmos. O nome conectaria uma pessoa em relação aos seus contemporâneos e
também com relação aos outros detentores do seu nome ou título. Dada a mudança serial de nomes de um
kwakiutl (a cada idade determinada, há uma troca, efetuada por um potlatch), este seria um instrumento de
conhecimento da sua trajetória pessoal – e, no caso de um chefe, a sua carreira.
Desta maneira, o nome operaria socialmente como um identificador da pessoa kwakiutl. Ele é o
responsável por conferir-lhe prestígio – em se tratando de um título nobre –, de fornecer informações sobre
a sua casa, seu passado e também sobre a região que habita. Através do nome, conhece-se os privilégios
aos quais o indivíduo tem direito, ligando-os aos holders anteriores deste mesmo nome. Os nomes e títulos
conectam o indivíduo com a coletividade, como afirma Nielsen, dando-lhe uma história pessoal e prerrogativas
próprias. São os articuladores da dimensão social da pessoa kwakiutl, atestando a identidade de cada indivíduo
através de uma referência constante à coletividade. Segundo Goldman, “The name is not a guide to personal
character, but to the collective representation of the tribe or lineage” 9 (GOLDMAN apud NIELSEN, 2001,
p. 184). Os nomes são uma importante parte constituinte da pessoa kwakiutl, aquela que lhe confere o aspecto
social e que a liga ao restante da coletividade, através de relações de poder simbólico e ritual e das linhas de
descendência ancestral, mantendo assim uma referência constante aos espíritos e seres sobrenaturais.
In the case of an individual, identity comprises the aggregate of his body, his body as a spirit being, all
his souls, and the ritual paraphernalia associated with these. All of these are the treasures stored in his
name, or the box of his identity. In Kwakiutl terms, what we think of as individual identity is actually
a corporate identity and exhibits the characteristics anthropologists usually associates with corporate
descent groups 10 (WALENS, 1981, p. 48).
Ao analisar os nomes nativos, é fundamental compreender a dimensão espiritual de que eles se
revestem. Para tanto, faz-se necessário uma rápida passagem pela cosmologia Kwakiutl, a fim de compreender
a ligação intrínseca entre nomes, almas e pessoas.
7
Ao longo de sua vida, a criança adquire novos nomes e se desveste de nomes antigos, mas esses nomes são todos
eternos, nomes cerimoniais; e como apenas uma pessoa pode incorporar estes nomes, uma criança pode adquirir um nome
somente quando o detentor anterior do nome já se desvestiu deste nome (...) Como mantenedora do nome específico, a criança
possui os mesmos direitos e responsabilidades que cada detentor deste nome possuiu desde o princípio dos tempos, quando o
nome foi criado pelos espíritos.
8
... a transferência social dos nomes é central na constituição da pessoa kwakiutl na ordem cosmológica e social.
Igualmente importante, os nomes são de importância diferencial, e posicionam a pessoa propriamente como um agente na
sociedade.
9
O nome é não somente um guia para o caráter pessoal, mas para a representação coletiva da tribo ou linhagem.
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Segundo Nielsen, o universo kwakiutl estaria dividido em quatro planos elementares: o mundo dos
Céus, o do Oceano, o dos Mortais e o dos Espíritos (“Sky World”, “Undersea World”, “Mortal World” e
“Spirit World”, respectivamente). Estes mundos estariam interconectados e poderiam ser acessados pelas
criaturas dos outros mundos através de poderes sobrenaturais. É constante a referência a migrações de um
mundo a outro através de comer ou ser comido. A força da fome deveria ser constantemente controlada para
que homens, animais e espíritos não se excedessem ao acessar outros mundos. As relações entre os mundos
seriam simétricas e deveriam ser mantidas assim, reproduzindo eternamente a interdependência entre os
mundos através de uma reciprocidade inexorável. Citando Goldman, “The kwakiutl see each community as an
incomplete segment of the wider universe. No part, no person, no tribe, no species, no body of supernatural
beings is being self-sufficient” 11 (GOLDMAN, apud NIELSEN, 2001, p. 200).
Para passar de um mundo ao outro, seria necessário obter poderes sobrenaturais, o que só poderia
ser realizado por ancestrais dos numaymas. Como o chefe do grupo era tido como o ancestral mais direto do
ser sobrenatural que havia dado origem ao numayma, esta se tornava uma questão ligada à política do grupo.
O nome, portanto, estaria intrinsecamente ligado a esta ordem cosmológica, dando direitos sobrenaturais ao
chefe do numayma devido a sua proximidade ao ancestral mítico.
Os animais, também possuidores de almas, seriam humanos em forma animal. Os primeiros ancestrais
eram, pois, animais, e a humanidade tornar-se-ia permeável na medida em que os animais poderiam, eles
mesmos, encarnar almas e mudar de mundo. As pessoas estariam unidas com os animais pelo fato de serem
todos humanos, todos possuindo almas, diferenciando-se apenas pelo fato de os animais terem assumido esta
forma ao utilizarem máscaras. “A forma manifesta de cada espécie e um mero envelope (uma “roupa”) a
esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos
seres transespecíficos, como os xamãs. Essa forma interna é o espírito do animal (...) um esquema corporal
humano oculto sob a máscara animal” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 117). Animais e espíritos viveriam
da mesma maneira que os humanos, ou seja, nas aldeias de inverno, realizando danças, cantos, festivais,
usando máscaras, casando entre si, etc. O oposto também é verdadeiro, de forma que os animais estariam
unidos às pessoas pelo fato de que ambos são animais, mas estes haveriam tirado suas máscaras e roupas para
retornar à forma humana.
Thus, the ultimate similarity between humans and animals is that they are in form, in constitution, in
behavior, in motivation – in all ways – exactly the same (...) human behavior and animal behavior,
being equal, always reflect and reinforce one another, and humans see in animals the ideas, motivations,
relations, and personalities they see in themselves 12 (WALENS, 1981, p. 23).
É comum a viagem de um mundo para outro, ou seja, do humano para o espiritual. Espíritos possuem
livre acesso ao mundo dos humanos, mas para homens e animais efetuarem esta viagem é um pouco mais
complicado. É necessário uma completa mudança de estado de ser, no indivíduo, para que isso aconteça
(NIELSEN, 2001). Os Kwakiutl metaforizam esta mudança através do uso de máscaras, que permite que o
indivíduo se ambiente e se adapte ao mundo no qual ele está adentrando. Os animais, que em seus mundos
são humanos, colocam máscaras de animais e viajam ao outro mundo, onde encarnam a figura destes animais.
Da mesma maneira, os humanos, que em seu mundo possuem a forma de humanos, colocam máscaras com
as quais se torna possível viajar a outros mundos. Se colocam máscaras de salmão, se parecerão com peixes
quando viajarem ao mundo dos salmões, ou pássaros quando usam máscaras de pássaros, e assim por diante.
“Masks are the metaphors of altered self” 13 (WALENS, 1981, p. 59). Como já afirmava Lévi-Strauss, “una
máscara no es ante todo lo que representa sino lo que transforma (...) Igual que um mito, uma máscara niega
tanto como afirma; no está hecha solamente de lo que dice o cree decir, sino de lo que excluye” 14 (LÉVISTRAUSS, 2000, p. 124).
10
No caso de um indivíduo, a identidade compreende o agregado do seu corpo, seu corpo enquanto um ser espiritual,
todas as suas almas, e a parafernália ritual associada a estas. Todos esses são tesouros salvaguardados no nome, ou a caixa de sua
identidade. Nos termos kwakiutl, o que pensamos como a identidade individual é na realidade uma identidade corporada e exibe
as características que os antropólogos geralmente associam com grupos corporados de descendência.
11
Os Kwakiutl vêem cada comunidade como um segmento incompleto do universo mais amplo. Nenhuma parte, pessoa,
tribo, espécie e corpo de seres sobrenaturais é auto-suficiente.
12
Assim, a similaridade final entre humanos e animais é que eles são em forma, em constituição, em comportamento,
em motivação – em todos os aspectos – exatamente iguais (...) comportamento animal e comportamento humano, sendo iguais,
sempre refletem e reforçam um ao outro, e os humanos vêem nos animais as idéias, motivações, relações e personalidades que eles
vêem em si mesmos.
13
Máscaras são as metáforas do ego alterado.
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Os kwakiutl formam com os espíritos uma díade, que coloca ambos em uma relação de constante
superioridade/inferioridade e subordinação/insubordinação. Os eventos sobrenaturais são responsáveis pela
constituição do mundo e todos os seres viventes, inclusive plantas e animais, os quais carregam algumas
características derivadas destes poderes. Os homens estão sempre subordinados aos espíritos. Esta idéia
relacional funda toda a concepção dos Kwakiutl sobre sua comunidade e sua relação com o universo. A
relação dos espíritos com os homens é refletida e reproduzida na relação hierárquica dos kwakiutl entre si, dos
chefes com os súditos, maridos com esposas, pais com filhos, etc. Esta oposição seguida de hierarquia, que nos
remete à obra de Louis Dumont, fornece uma espécie de fórmula pela qual qualquer relação entre dois seres
pode ser compreendida entre os Kwakiutl.
Esta idéia de hierarquização e subordinação está refletida, também, na concepção de contenção.
Tudo o que existe no universo pode ser expresso metaforicamente como caixas. Os humanos nascem em
caixas, e quando morrem são enterrados nas mesmas. O próprio corpo é uma espécie de caixa que contém
a alma e carrega o nome, e o universo é visto como um grupo de caixinhas conjugadas que compreende a
casa, o numayma, o homem, sua alma e assim sucessivamente. Da mesma forma que a crest-box contém bens
materiais, que são passados pelas gerações, o corpo é uma caixa que contém bens imateriais e espirituais.
A cosmologia opera, neste sentido, como informante das práticas sociais que nos permitem estudar
a construção da pessoa kwakiutl. O perspectivismo, que garante “uma unidade do espírito e uma diversidade
dos corpos” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 116) através da noção de alma que viaja ao mundo e troca de
lugar com os animais, é um indício de como os indígenas concebem a si mesmos e suas individualidades em
relação com o mundo. Da mesma maneira, a idéia do universo em caixas permite conhecer como se constitui
a pessoa, ou seja, quais são as características, materiais e imateriais, que dão vida a um corpo.
Mauss analisa, em seu artigo A noção de pessoa, alguns aspectos da constituição da pessoa kwakiutl.
As questões que se colocam quando procedemos à análise do grupo são, principalmente, a “do nome, da posição
social, da ‘natividade’ jurídica e religiosa de cada homem livre e, com mais razão, dos nobres e príncipes”
(MAUSS, 1938, p. 375). Segundo Mauss, as pessoas estratificadas na ordem social Kwakiutl assemelham-se
a atores ordenados em um drama, envolvendo um complexo sistema cerimonial de prestações de bens. Esta
análise revela-se importante na medida em que consideramos a pessoa kwakiutl como um dos componentes
da organização social do grupo. Não há como dissociar estes dois elementos, uma vez que a construção deles
se dá de maneira conjunta e interligada. A estratificação social e a hierarquia são dependentes da noção de
pessoa, e vice-versa.
A pessoa seria composta de três espectros: a alma, o corpo e o nome. Para os Kwakiutl, todos os
seres vivos possuem alma, inclusive plantas e animais. As almas estariam localizadas na cabeça, podendo-se
se separar do corpo. Sem ela, entretanto, o indivíduo ficaria fraco e debilitado. Afirma-se que a alma abandona
o corpo algumas horas antes de o indivíduo morrer; em seguida, o corpo separa-se em duas partes, o corpo
físico e o fantasma, o qual seria um esqueleto duplicado do corpo. A alma viajaria, então, para o mundo dos
animais, o que será discutido posteriormente.
Acredita-se que a alma reencarna, retornando aos indivíduos do numayma. Cada numayma teria o
seu estoque fixo de almas, ao qual cada alma retornaria após deixar seu respectivo corpo. Como aponta Marie
Mauzé, “The idea of the soul is thus that of a ‘flow’ substance around a closed system, so that at death the soul
returns to a stock of substance, owned by the group of which the individual is a member” 15 (MAUZÉ apud
NIELSEN, 2001, p. 211). Para Boas, ”the soul has no bone and no blood, for it is like smoke or like a shadow”
16
(BOAS, 1966, p. 169).
Os homens seriam resultado de um processo tríplice, no qual um corpo é materializado, depois
habitado por uma alma do estoque do grupo e, então, articulado com esta alma pra constituir um indivíduo,
uma pessoa. A individualidade ficaria garantida pelo corpo do kwakiutl, único e intransferível, mas conectado
à coletividade pela alma, do estoque grupal, e também através do nome. Semelhante aos ameríndios, “o
espírito (...) é o que integra; o corpo (...) o que diferencia” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 129).
O corpo seria, pois, o recipiente da alma neste mundo. Esta substância física e material era tida
como transitória, enquanto a alma e o nome seriam duráveis, eternos. Um kwakiutl pereceria inevitavelmente,
no que refere ao seu corpo físico; sua alma e nome, entretanto, continuariam a existir para sempre, como já
14
Uma máscara não é antes tudo o que representa senão o que transforma (...) Igual a um mito, uma máscara nega tanto
quanto afirma; não está feita somente daquilo que diz ou crê dizer, mas daquilo que exclui.
15
A idéia da alma é assim de uma substância ‘fluída’ ao redor de um sistema fechado, de maneira que na morte a alma
retorna ao estoque de substâncias, detido pelo grupo do qual o indivíduo é membro.
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GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
existiam desde o começo do mundo, e encarnariam e nomeariam outras pessoas, interminavelmente. O corpo
seria o abrigo da alma, enquanto a pessoa seria aquela que carrega um nome.
É importante destacar que o nascimento e morte biológicos não coincidiam necessariamente com
o nascimento e morte social da pessoa, já que a constituição da mesma, como venho tentando mostrar, é
um processo composto de algumas variáveis que não se restringem aos fatores biofísicos. A vida humana,
acreditava-se, era fruto de relações sexuais e conseqüente gravidez. O sexo da pessoa não era determinante na
reencarnação da alma.
A pessoa ideal, segundo Nielsen, seria aquela que carrega um título, tornando-se assim um ser
completo, dotado de poderes sobrenaturais. É o nome que diferenciaria a pessoa do indivíduo, através das
posições sociais e prerrogativas às quais ele fornece acesso.
Enquanto o nome provoca hierarquização e estratificação entre os membros do numayma, organizandoos verticalmente, a alma não possuía nenhuma linha de descendência, operando em um nível horizontal, por
assim dizer (NIELSEN, 2001, p. 222). Outra diferença apontada entre nomes e almas remete à estabilidade dos
mesmos. Enquanto nomes passavam pelos indivíduos, que se apropriavam de outros a cada ocasião importante
em sua vida, a alma escolheria um indivíduo para nele ficar até que este morresse.
Goldman aponta uma distinção marcante entre nome e alma, discordando daqueles que sugerem
alguma equivalência entre as duas categorias. “The name stands rather for the collective immortality or
continuity of the descent line (...) The personal soul departs at death to join with owls or other animals. The
name soul remains forever among men.” 17 (apud NIELSEN, 2001, p. 184). Ele sugere, então, que os nobres
kwakiutl possuiriam três tipos de alma: “name soul”, uma representação coletiva da tribo ou linhagem de
descendência, remetendo ao ancestral mítico e à posição social; “form soul” retomando o ancestral sobrenatural
animal através das máscaras, pratos, cobertores, etc, contidos na crest-box; e, por último, “personal soul”,
distinta individualmente, que abandona o corpo quando este morre para entrar em uma existência sombria.
Considero o aspecto mais importante desta discussão sobre alma e nome kwakiutl o seu papel
enquanto ligação com o mundo espiritual e encarnação de prerrogativas ancestrais. Isto reporta, novamente, ao
texto de Mauss. O francês enfatiza a noção de pessoa kwakiutl enquanto encenação de um drama. Subjacente
à troca de nomes e do estoque fixo de almas, além da disputa por poder e prestígio – pertinente quando se fala
em potlatch e destruição de bens –, está a ligação com os antepassados de cada numayma.
... é a existência mesma destes e dos antepassados que se reencarnam nos detentores de tal direito, que
revivem no corpo dos que carregam seus nomes, cuja perpetuidade é garantida pelo ritual em todas
as suas fases. A perpetuidade das coisas e das almas só é garantida pela perpetuidade dos nomes dos
indivíduos, das pessoas. (...) Toda essa imensa mascarada, todo esse drama e esse balé complicado
de êxtase, dizem respeito tanto ao passado quanto ao futuro, são uma prova do oficiante e uma prova
da presença nele do naualaku, elemento de força impessoal, ou do antepassado, ou do deus pessoal,
em todo caso poder sobre-humano, espiritual, definitivo. O potlatch vitorioso, o cobre conquistado,
correspondem à dança impecável e à possessão bem-sucedida (MAUSS, 1938, p. 377).
O indivíduo enquanto incorporação, enquanto carregador de um nome e portador de uma alma, a
construção da pessoa kwakiutl enquanto ser permanentemente remetido aos seus ancestrais, à encarnação
dos mesmos, torna compreensível a metáfora utilizada por Mauss quando se refere a atores em um drama. A
identidade kwakiutl é dada pela transformação, transformação em nova identidade através de um nome, ou
incorporação, de um nome ancestral ou alma também ancestral. A pessoa estaria, para Mauss, intrinsecamente
ligada ao nome, uma vez que é este que fornece a dimensão social do indivíduo kwakiutl. Ele sugere, pois,
que a identidade kwakiutl é uma máscara, um papel desempenhado de acordo com o nome e a alma que porta
o sujeito. É interessante destacar que a máscara sugerida metaforicamente por Mauss toma forma real ao ser
analisada por Lévi-Strauss em A via das máscaras, sendo inclusive a responsável pela mudança de estado,
plano ou forma dos índios.
O nome opera centralmente neste esquema, uma vez que fornece distinção social, ligação cosmológica
com os espíritos e status político. A pessoa kwakiutl pode ser melhor compreendida mediante essa noção
de caixa, um corpo que porta um nome e é preenchido por uma alma, ambos ligados aos seus ancestrais
míticos.
A alma não possui osso e sangue, por isso é mais como uma sombra.
O nome representa a imortalidade coletiva ou continuidade da linha de descendência (...) A alma pessoal parte na
morte para se juntar com corujas e outros animais. O nome da alma permanece para sempre entre os homens.
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GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
GARCIA, L. B. “Pessoas e nomes Kwakiutl:...
The individual is a box that must be filled with some vital substance to bring it to life, and the box
a container with substance within that must be given an individuality to bring it to life. (...) The
nonmaterial Box is the name. No characteristic of Kwakiutl names is more important than the simple
fact that names are eternal and that although the holders of a name may live and die, the name goes on
forever 18 (WALENS, 1981, p. 63).
Nesta perspectiva, tendo em vista a cosmologia nativa que se embasa na idéia de contenção em
caixas, sugiro que o nome seria, pois, o nível hierarquicamente superior da pessoa kwakiutl. Embora ateste-se,
como foi visto, que a pessoa carregaria em si o corpo, a alma e o nome (uma tríade), parece haver mais sentido
propor que o nome, este sim, seria a entidade englobante da pessoa, bem como de sua alma e seu corpo.
O nome colocar-se-ia como um dos eixos principais na sociedade kwakiutl. Ele é o esqueleto do
numayma, através do sistema de posições; é o motor do potlatch e da contração de dívidas, que visam sempre
obter mais prestígio pela aquisição de uma alta posição; é também o coordenador da relação entre a vida
coletiva e individual de cada kwakiutl, na medida em que confere-lhe especificidade (dado o estoque fixo de
nomes, duas pessoas nunca levam nomes iguais, somando-se a isso ainda a incorporação de características que
acarreta a posse de determinado nome ou título) e também conecta-o aos seus ancestrais e ao seu passado.
O nome é responsável por englobar a pessoa kwakiutl nas suas mais diversas vertentes, operando
como hierarquicamente superior, no sentido proposto por Dumont. O nome engloba a pessoa, subordinando
o indivíduo a uma categoria que lhe embute características pessoais e sociais. Retomando a idéia de caixas,
presente em todos os aspectos da vida social indígena, o nome seria o recipiente da pessoa, juntamente com sua
alma e seu corpo. O status da pessoa, sua posição dentro do numayma, a alma que lhe foi destinada do estoque
eterno e fixo, bem como os poderes sobrenaturais que lhe são atribuídos, tudo isso pode ser considerado como
decorrência do nome que é adotado ou conquistado pela pessoa, sempre através de um potlatch ou uma disputa
de rivalidade.
Todos os fatores que coordenam a vida social de um índio (sua posição, seu assento, suas
prerrogativas, seus poderes sobrenaturais, seus direitos, seu status, etc) estão ligados ao seu nome. E este
é, pois, o fator pelo qual as posições, títulos e nomes são disputados com tanta veemência em potlatches
magistrais. O nome determina quem é o kwakiutl, ele determina seu posicionamento social, suas ações e
também sua individualidade. Coloca-se, como hierarquicamente superior à pessoa, como uma caixa que a
engloba, e também como eixo central na relação entre estratificação social e potlatch.
Corpo, alma e nome são, pois, os grandes eixos articuladores desta pessoa kwakiutl, desta incorporação
ancestral – seja através de máscaras, prerrogativas ou etc –, como afirma Mauss. O nome acaba por ser o maior
eixo articulador desta relação, operacionalizando organização política, poder simbólico e cosmologia nativa
... they are not given names that define them as individuals only, but instead acquire names that define
them as parts of the collective. A name provides a box, and people must provide the supernatural,
spiritual treasure to fill that box. A name provides a body, and people must provide the soul to animate
that body. The name ingests a person and transforms him into the animating soul of that name. People
bring vitality and energy to the world; but it is the eternal containers – the names, boxes, houses and so
on – that provide the identities, the constant verities, and the immutable structure of the universe. The
names are superior, the people subordinate 19 (WALENS, 1981, p. 65-66).
18
O indivíduo é uma caixa que deve ser preenchida com alguma substância vital para ser trazido à vida, e a caixa um
recipiente com substância dentro à qual deve ser dada uma individualidade para trazer à vida (...) A Caixa não-material é o nome.
Nenhuma característica dos nomes kwakiutl é mais importante que o simples fato que os nomes são eternos e que embora os
mantenedores de um nome possam viver e morrer, o nome permanece para sempre.
19
... eles não são dados nomes que os definem apenas como indivíduos, mas ao invés nomes adquiridos que os definem
enquanto parte da coletividade. Um nome provê uma caixa, e as pessoas devem prover o tesouro sobrenatural e espiritual para
preenchê-la. Um nome provê um corpo, e as pessoas devem prover a alma para animá-lo. O nome ingere a pessoa e a transforma
na alma animada daquele corpo. As pessoas trazem vitalidade e energia para o mundo; mas são os recipientes eternos – os nomes,
caixas, casas e etc – que provêm as identidades, as constantes realidades e a imutável estrutura do universo. Os nomes são superiores,
as pessoas subordinadas.
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