5651-04 razoes de apelacao (indiazinha
Transcrição
5651-04 razoes de apelacao (indiazinha
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA 5ª VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE GOIÁS Autos Autor Réus: Recurso 5651-04.2012.4.01.3500 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL W. F. M. B. 054/2013 O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por intermédio do Procurador da República que esta subscreve, inconformado com a r. sentença de fls. 311/320, da qual interpôs recurso de Apelação, com fulcro no artigo 593, I, c/c artigo 600 do CPP, vem, respeitosa e tempestivamente, perante Vossa Excelência, apresentar suas RAZÕES DE APELAÇÃO requerendo, depois de facultada a apresentação de contrarrazões, a remessa dos autos ao egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região, para a apreciação e julgamento. Goiânia, 23 de abril de 2013. DANIEL DE RESENDE SALGADO Procurador da República 1 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO Origem Apelante Apelado Ação Autos : : : : : 5ª VARA FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE GOIÁS MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL W. F. M. B. ACÃO PENAL 5651-04.2012.4.01.3500 R A Z Õ E S D O R E C U R S O A P E L A Ç Ã O D E Egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região Colenda Turma Julgadora D.D. Procurador Regional da República I – INTROITO O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ofereceu denúncia em face de W. F. M. B. pela prática do delito capitulado no artigo 149, § 2º, inciso I, c/c artigo 61, II, “f”, ambos do Código Penal. Consta da peça acusatória que, no período compreendido entre maio de 2009 até novembro de 2010, a denunciada, com vontade livre e consciente, submeteu a menor indígena E. P. A. O., que se encontrava com 11 anos de idade (criança, nos termos do artigo 2º da Lei 8.069/901), a trabalhos domésticos forçados, degradantes e com jornada excessiva. Com efeito, em maio de 2009, J. B. T., acompanhado de sua filha E. P., saiu da aldeia indígena de São Marcos, em Barra do Garças/MT, com o escopo de procurar tratamento para sua outra filha em Goiânia. Chegando nesta cidade, J.B. se abrigou na Casa de Saúde dos Índios, mas foi orientado a não deixar E. P. ali sozinha, para que a menor não sofresse violência sexual. 1Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. 2 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS Em razão de tais dificuldades, decidiu procurar apoio religioso para crianças, quando, então, se dirigiu, por indicação, à igreja A.D.D., local onde conheceu W.F. Destarte, visando a retirar E.P da Casa do Índio e visualizando melhores condições de vida e oportunidade de educação nesta capital, J.B. entregou-a à denunciada que, sob o pretexto de lhe oferecer habitação e educação, mas aproveitando-se de sua pobreza e necessidade, submeteu-a, com vontade livre e consciente, a exaustivos e penosos serviços domésticos de natureza contínua, explorando-a em sua residência, com prejuízo a sua frequência e aproveitamento escolar e em detrimento de sua desenvolvimento físico, moral e social. Dessa forma, valendo-se da dominação exercida sobre a menor, a imputada W.F. privou E.P de sua liberdade, submetendo-a a uma atividade inserida pelo Decreto 6.481/2008 na lista das piores formas de trabalho infantil, vedando, destarte, a sua capacidade de determinar-se de acordo com a vontade de executar ou não a atividade laboral a que fora submetida. A denúncia foi recebida em 01 de fevereiro de 2012 (fl. 120). Devidamente citada (fl. 132), a acusada apresentou resposta à acusação no prazo legal (fls. 136/144). Prova testemunhal produzida às fls. 212/218, 247/250 e 257/267, sendo dispensada a oitiva da testemunha K.S. (fl. 258). Interrogatório às fls. 265/267. Adveio, então, a sentença de fls. 554/568, na qual o juízo monocrático julgou improcedente o pedido formulado na denúncia, absolvendo W.F, com fundamento no artigo 386, VII, do Código de Processo Penal. Alega que o conjunto probatório fora insuficiente para concluir que a liberdade da menor havia sido vulnerada pela acusada. Assevera que os depoimentos das testemunhas do Ministério Público foram alicerçados nas declarações da própria menor. Sustenta que E.P. não confirmou que havia privação de alimentos ou que houvesse total sujeição a atividades degradantes e humilhantes. Conclui que E.P. não realizava tais serviços sozinhas, que faltava a escola, mas conseguia ir escondida. 3 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS Afirma que os castigos impostos não foram passíveis de submeter a menor à privação integral de sua liberdade de locomoção, demonstrando que não se encontrava em total sujeição. Aduz que a menor indígena não se encontrava habituada às atividades comezinhas da vida urbana e, em face disso, os trabalhos domésticos poderiam ter-se tornado um fardo. Conclui que as demais testemunhas não confirmaram que a menor exercia atividade laboral, ressaltando possível choque de cultura. Por fim, salienta que a realidade da menor no próprio contexto indígena é que pode ter levado E. P. a uma vida adulta prematura, uma vez que, aos 13 anos, já se encontrava com um filho pequeno. É o breve relatório. II- PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA (Punição severa às práticas abusivas contra criança e adolescente – artigo 227, § 4º, da CF) A Constituição Federal, em seus artigos 227 e 228, instituiu um sistema especial de proteção aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Este sistema se funda no reconhecimento da condição peculiar de crianças e adolescentes de seres humanos ainda em fase de desenvolvimento. Isso implica o reconhecimento de que a personalidade infanto-juvenil tem atributos distintos da personalidade adulta e, em consequência, de que crianças e adolescentes se encontram em um maior estado de vulnerabilidade. Destarte, crianças e adolescentes gozam de direitos fundamentais especiais que, basicamente, são o direito à convivência familiar, direito ao não-trabalho (até os catorze anos) e direito ao trabalho protegido (dos catorze aos dezoito anos), direito à alimentação, direito à profissionalização, e uma tutela especial ao direito à liberdade. São esses direitos fundamentais especiais, não se pode negar, configuradores de direitos à personalidade infanto-juvenil e, portanto, cláusulas pétreas da Constituição. Somado a isso, a Carta Política traz um comando expresso quanto a punição suficientemente severa a práticas abusivas contra criança e adolescente (§ 4º, do artigo 227, da CF). Por seu turno, o regramento constitucional sobre a matéria veio em harmonia absoluta com o paradigma da Convenção Internacional dos Direitos da Criança – CIDC, ONU, 1989, que consagrou a doutrina da proteção integral e da prioridade aos direitos da infância. Nesse aspecto, a constituição é clara, em seu ponto focal, a conferir diretrizes para viabilizara tutela da integridade física, psíquica e moral da criança. Isso essencialmente porque dentre os atributos da personalidade infanto- 4 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS juvenil – conformados pelo sistema especial de proteção em atenção à peculiar condição de pessoa em desenvolvimento – estão a integridade e a sua autonomia progressiva. Para concretizar os nortes conferidos pela Carta Política, o Estatuto da Criança e Adolescente reza, por exemplo, em seu artigo 18, que “é dever de todos velar pela dignidade da criança e adolescente, pondo-os salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.” Destarte, em face da condição de vulnerabilidade e incapacidade que suportam, as crianças e adolescentes possuem sua autonomia de vontade e liberdade de escolha extremamente limitadas e submetidas aos desígnios dos adultos. E, em face dessa condição de vulnerabilidade, própria da peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, a tais categorias de seres humanos demandam proteção do Estado em grau maior e diverso. III- DO “TRABALHO DOMÉSTICO” INFANTIL – ingresso na lista das piores formas de trabalho infantil (Lista TIP – artigo 3 da Convenção 182, da OIT). Em 12 de junho de 2008, o Governo Federal, por meio do decreto nº 6.481, ao regulamentar os artigos 3 o, alínea “d”, e 4o da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), incluiu o labor doméstico infantil na lista das piores formas de trabalho (item 76). Deveras, a exploração da mão de obra de crianças, dentro do ambiente doméstico, que transforma em manipulação escravagista o destinado dado aos menores que são entregues a pessoas que prometem dar-lhes melhores condições de vida, possibilidade de estudo e inserção social, é fato que passou, a partir de 2008, a ser objeto de preocupação especial da sociedade. Nesse sentido, a situação de vulnerabilidade suportada por determinadas famílias induz aos pais a, por esperança, entregar seus filhos a pessoas desconhecidas que, sob o manto da filantropia, acabam por as “pegando para criar” informalmente. Inclusive, importante que se diga, a expressão pegar para criar é simbólica, uma vez que demonstra claramente a coisificação da criança, um claro resquício da escravidão. Entretanto, há, nessa relação com aparência filantrópica, um intento subjetivo, envolto camufladamente, no desejo de garantir, sob este discurso, mão de obra doméstica. Essas crianças, frequentemente do sexo feminino, negras ou indígenas, vivem em condições análogas a de escravo, muitas vezes amordaçadas pela violência (física e psicológica) doméstica. 5 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS Nesse sentido, ao mostrar o quadro ora delineado, anotemse os seguintes escólios2: “É grande o contingente de crianças que são acolhidas nessa condição ilegal, muitas delas possuem em média seis anos de idade, permanecem na relação de adoção de má fé como filhos de criação durante muitos anos, na subserviência do trabalho escravo, a maioria realiza atividades domésticas até em períodos noturnos. Adoção de má fé é, portanto uma modalidade sofismática que se dá dentro de uma prática histórica marcada pela desigualdade socioeconômica.” E continua a autora: “A adoção de má fé e trabalho escravo pode ser considerada como uma das vertentes da escravidão contemporânea procedente de abuso direto, porém estruturado em uma sutil relação de usufruto entre família acolhedora e o filho de criação. Suas principais características são: confinamento da criança no âmbito doméstico onde são desenvolvidas as atividades laborativas da casa, o trabalho é apoiado em ameaça real de punição por desobediência e a coação psicológica (...). Muitos não conseguem dar continuidade aos estudos, pois estão sobrecarregadas das atividades diárias no âmbito doméstico.” (negritei e sublinhei) Raras são as situações que são desveladas, uma vez que o problema é gestado na invisibilidade do ambiente doméstico. São crianças que sofrem caladas, subestimadas aos serviços diversos, por vezes durante anos, sob o isolamento psicológico, a humilhação e a submissão. Note-se, destarte, que a criança nesta situação é levada prematuramente a uma vida adulta, trabalhando em situações prejudiciais à sua saúde. Não só implica uma infância perdida, como interfere gravemente no desenvolvimento natural da criança, violando os seus mais comezinhos direitos. Em conclusão: ao alimentar um ciclo perverso e vicioso de miséria, essas crianças, assim como, veremos, ocorreu no caso vertente, com seu tempo de desenvolvimento abreviado, são forçadas a viver sob o peso do dever, da responsabilidade e da obrigação do trabalho, sem a oportunidade de exercer o direito de ser criança, assegurado pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Convenção sobre os Direitos da Criança e pelas Convenções 138 e 182 da OIT. 2QUEIROZ, Jane Bernardes da Silva Franco de. Adoção de má-fé e trabalho escravo – Abandono por esperança, adoção de má-fé e trabalho criação,http://www.cpgls.ucg.br/7mostra/Artigos escravo 6 na relação familiar com filhos de MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS IV –PROTEÇÃO ÀS MINORIAS Se não bastasse, além da proteção integral à criança e adolescente, visando a conferir nortes para evitar danos à personalidade, a nossa Carta Política possui dispositivos que conferem diretrizes à preservação das minorias étnicas, dentre elas os indígenas. Destarte, a partir de informações etnológicas sobre a infância xavante, constatou-se que a agressão implementada pela acusada ao submeter a criança indígena, que, à época, mal se expressava em português, à exploração laboral infantil, violou as práticas dos costumes indígenas tutelados constitucionalmente (artigo 231, da Constituição Federal). Com efeito, estudos sobre a infância xavante demonstram que o fator mais marcante é o processo de aprendizado. A literatura nos ensina que, apesar de existir momentos específicos de aprendizagem, como no caso dos rituais, é nas situações cotidianas em que se interage, observa e acompanha os adultos em suas atividades que a criança xavante apreende a identificar as regras que orientam sua sociedade. A iniciação no mundo do trabalho se dá dessa maneira. As crianças são estimuladas a ajudarem os adultos, mas nunca forçadas. Se, por exemplo, uma criança xavante tem vontade de fazer outra coisa, pode deixar o trabalho inconcluso, coisa que os adultos não podem.3 A pedagogia xavante se encontra alicerçada na exploração espontânea da curiosidade natural das crianças, levando-as a aprender por meio do olhar e da observação. Nesse sentido, os escólios de Angela Nunes: 4 “O Olhar é um traço característico do comportamento Xavante. É um ato social importante. Estar disponível para olhar e para ser olhado, pacientemente, com respeito, são atitudes basilares do sistema Xavante de construção e transmissão de conhecimento, e fazem parte do conjunto de valores que norteiam suas formas de agir, sentir e se expressar.” É, portanto, pela imitação, pela observação e atenção a tudo e a todos que o processo de aprendizado é ativado e desenvolvido na sociedade xavante. Segundo os estudos, aplicação de pena e castigos como método pedagógico é algo inconcebível, visto como atitude violenta, desnecessária e ineficaz, já que não 3TASSINRI, Antonella (200) “Concepções indígenas de infância no Brasil” Tellus, ano 7, n. 13, p. 11-15, Campo Grande, p. 16 4 NUNES, Angela (2003) Brincando de ser criança: Contribuições da Etnologia Indígena Brasileira à Antropologia da Infância. Lisboa, Portugal: Departamento de Antropologia do ISCTE, Tese de Doutoramento, 341, f. Disponível em http//hdl.handle.net/10071/684 7 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS se pode forçar o aprendizado, mas tão somente estimulá-lo. No mesmo diapasão, os seguintes ensinamentos:5 “Cabe às crianças brincar e ter a sua mãe sempre por perto para protegê-las, sem jamais levantar a voz, discutir ou bater-lhes. Uma boa mãe e um bom pai educam com autoridade, desenvolvendo na criança a atenção e a observação pessoal, bem como a importância da repetição de uma tarefa até a sua plena aprendizagem.” Fica evidente, como verificaremos a seguir, que a de denunciada W.F. submeteu a criança xavante E.P., não totalmente integrada a nossos costumes, a trabalho doméstico infantil, reduzindo-a a condição análoga à de escravo, ao obrigá-la a exercer trabalhos forçados, excessivos e exaltantes para sua idade. V – DA CLARA PROVA DE MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVA Inicialmente, importante mais uma vez reiterar que o crime ora cometido, ligado ao labor doméstico infantil, é moldado clandestinamente, dentro do refúgio do ambiente familiar. Em casos de crimes praticados sob o manto da clandestinidade, os tribunais entendem que as declarações do ofendido são de extrema importância para alicerçar a convicção do julgador. Anotem-se, por exemplo, mutatis mutandis, os seguintes precedentes da Suprema Corte, no que interessa: Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO PELO EMPREGO DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIADA. EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE SEU POTENCIAL OFENSIVO. IRRELEVÂNCIA. DESNECESSIDADE. CIRCUNSTÂNCIA QUE PODE SER EVIDENCIADA POR OUTROS MEIOS DE PROVA. CONTINUIDADE DELITIVA. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE PELA VIA DO HC. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA. (...) III - A majorante do art. 157, § 2º, I, do Código Penal, pode ser evidenciada por qualquer meio de prova, em especial pela palavra da vítima - reduzida à impossibilidade de resistência pelo agente - ou pelo depoimento de testemunha presencial. (...) Decisão: A Turma indeferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. Ausente, justificadamente, o 5 MELCHIOR, Marcelo (2008) WATEBRÉMI – Xavante: Uma Aproximação ao Mundo das Crianças. Dissertação de Mestrado. UCDB, Campo Grande, p. 43 8 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS Ministro Ayres Britto. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski. 1ª Turma, 11.05.2010 (Autos: HC 102263; Relator: RICARDO LEWANDOWSKI). Ementa: HABEAS CORPUS” - CRIME DE ESTUPRO COM VIOLÊNCIA REAL - AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA - SÚMULA 608 DO STF DECLARAÇÃO DE POBREZA EMANADA DA VÍTIMA VALIDADE - LAUDO PERICIAL NEGATIVO QUANTO À EXISTÊNCIA DE C ONJUNÇÃO CARNAL- EXISTÊNCIA DE LESÕES INDICATIVAS DE RESISTÊNCIA A AGRESSÃO SEXUAL - VESTÍGIOS IDÔNEOS - EFICÁCIA PROBANTE DAS DECLARAÇÕES DA VÍTIMA DE ESTUPRO - PRECEDENTES - NECESSÁRIO REEXAME APROFUNDADO DO CONJUNTO PROBATÓRIO INADMISSIBILIDADE NA VIA SUMARÍSSIMA DO “HABEAS CORPUS” - PEDIDO INDEFERIDO. (...) - A palavra da vítima - quando não está em conflito com os elementos produzidos ao longo da instrução penal - assume importância probatória decisiva, especialmente quando a narração que faz apresenta-se verossímil, coerente e despojada de aspectos contraditórios. Precedentes. (...) Decisão: A Turma indeferiu o pedido de habeas corpus, cassando a medida liminar concedid a. Unânime. Falou pelo paciente o Dr. José Ernesto Flesh Chaves. 1ª Turma, 26.1 1.996 (Autos: HC 74302; Relator Ministro CELSO DE MELLO). Outrossim, poder-se-ia aduzir que as declarações da ofendida seriam fantasiosas, inventividades infantis. Entretanto, as pessoas responsáveis por seu atendimento foram peremptórias em afirmar a percepção de realidade nos relatos da menor. Anotem-se as palavras da psicóloga K. B.: A gente observava as crianças, a questão da aprendizagem, do desenvolvimento, encaminhar para o psicólogo clínico e demais atividades. E, no caso da menor, ela estava apresentando algumas mudanças de comportamento. Ela ia para a escola muito cansada, não queria fazer tarefa, vivia chorando, muito resfriada. (...) MPF: Do ponto de vista da psicologia, é possível atribuir um grau de veracidade àquela situação narrada pela criança? Testemunha: Sim. Pelo momento que ela estava passando. A gente via a necessidade de fala dela. Ela já tinha sido ouvida pelos professores, pela coordenadora. Então, quando a gente se apresentou, (…) nós falamos o que a gente fazia, o nosso papel, 9 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS como que a gente poderia ajudar e, com isso, ela se abriu. Com isso ela viu um ombro para poder relatar, que naquele momento, era o momento dela desabafar. Então, pelo comportamento dela, pelo relato, pela fala dela, pelo gesto dela realmente teve verdade sim.” [K. B, fl. 216]. Somada a isso, a genitora de E.P. aduz que percebeu indicativos da situação a que fora submetida sua filha. Anotem-se suas declarações, com a devida participação do tradutor em audiência, conforme determinada pelo juízo deprecado (fl. 250), onde se vislumbra, inclusive, a ausência de liberdade da menor e a ação opressora de clara dominação exercida pela acusada W. F. sobre a criança: “que ela já desconfiou dos maus tratos que a E. sofria, porque nas ligações que a E. fazia de Goiânia para a aldeia, ela escutava batidas na mesa para atrapalhar e a W. não deixava a E. falar na língua da aldeia, e mandava ela falar em português; que a W. não deixava a E. conversar direito com a mãe (...)” [P.P.A, fl. 250]. Se não bastasse, os próprios educadores que tiveram contato direto com a criança xavante perceberam sinais da situação vivida pela criança xavante. Anotem-se: MPF: O que a sra. pôde observar durante esse período com relação à aluna? (…) Testemunha: Na verdade, quando ela chegou em 2009, me preocupou um pouco com relação a saber que uma menina índia estava sendo matriculada naquela escola. Aí, eu perguntei 'o que que esta menina está fazendo aqui?' (…) Na sala que ela estudava tinha duas professoras. A titular e uma professora de apoio. (…) A professora [E.] de apoio falou pra mim: 'xeroca pra mim um dicionário da língua xavante, porque a índia xavante não fala português'. Aí, eu fui na pasta da menina e vi que não tinha certidão de nascimento, não tinha autorização da Funai e não tinha transferência de outra escola. (…) Em 2010, fui trabalhar na turma dela. Aí eu vi que ela chorava muito, ela era muito tímida, muito assustada, muito arisca. Eu fui me aproximando dela aos pouquinhos. (…) Todas as vezes que ela deixava de fazer tarefa ou que ela chegava em casa sem tarefa, a professora de apoio falava assim: 'então, eu vou mandar um recado na agenda de que você não fez tarefa'. Aí, ela entrava em desespero. Eu fui tentando saber o que estava acontecendo. Foi tudo aquilo que já está no processo. (…) Quando eu chegava na sala, às vezes ela estava chorando e eu perguntava pra ela e ela contava que apanhou. Quando a professora de apoio mandava recado, ela já entrava em desespero. E eu peguntava: 'o que que 10 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS foi'? E ela falava: 'é que hoje eu vou apanhar de novo, porque a professora mandou recado'. (…) Ela fazia que não fazia a tarefa porque em casa ela tinha que fazer o serviço doméstico e nunca sobrava tempo. Um dia, a pessoa responsável por ela [vítima] tinha vindo à escola e a gente não se conhecia. Eu estava sentada, quando chegou uma senhora que era servente da escola e falou assim: 'Pastora, quando os pais vêm a escola chamados pelo professor, é porque boa coisa o filho não fez”. Ela falou assim: 'Não tem problema não porque quando eu chegar lá em casa eu pego a cara dela e arranco na unha o couro”. Isso eu vi e ouvi. Dali pra frente, nós tomamos as providências. MPF: A sra. reconhece como sendo essa pessoa [acusada]? Testemunha: Reconheço. (...) MPF: A escola identificou alguma vez marcas de lesões na criança e, se identificou e diante desses relatos da criança, quais foram as providências que a escola adotou? Testemunha: (…) Ela mostrava machucados, ela mostrava lesões, mas tudo muito leve porque ela tinha a pele muito escura. Quando a gente perguntava ela dizia 'foi beliscão', 'foi o cinto', mas nós não chegamos a fazer corpo de delito. [M.G.B, fl. 218]. Juiz: Ela comentou se a dona W. também batia? Testemunha: Ela disse que uma vez a pastora colocou a cabeça dela dentro de uma vaso. Parece que ela não tinha coisado o modes direito, porque ela estava menstruada, e aí a W. colocou a cabeça dela dentro. Um dia também ela chegou na escola muito triste e gripada porque ela tinha ido entregar uns panfletos numa praça lá perto do Moreira, também. Ela tinha um medo. Ela não contava pra mim, mas você percebia que ela tinha. Até que um dia ela chegou lá na escola, estava gripada e com dor de cabeça, e eu falei para a professora M., que era a professora regente. 'M., a E. não está bem'. E tinha assim uns dois meses que a gente percebia que ela estava apática, que não estava muito interessada em fazer atividade. [S.M.L, fl. 267]. Note-se, assim, que não fora só as declarações da menor xavante, conforme afirma o magistrado, que subsidiaram a percepção dos educadores e psicólogos. Sinais apresentados pela criança fizeram com que tais pessoas, acostumadas a lidar com o público infantil, percebessem a situação a que fora submetida. Assim, resta claro que as declarações da menor xavante (agregada ao que perceberam os educadores) são o retrato luzente daquilo que suportou no período em que esteve sob a égide da acusada. Por outro lado, importante destacar que a submissão ao labor de criança de tenra idade foi, na realidade, obtida malferindo sua liberdade, 11 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS porque o bom senso impede que se admita, considerando-se a personalidade infanto-juvenil, que ela assim tenha consentido, desejado. Destarte, pela própria característica de pessoa vulnerável, somada a sua condição de indígena em uma realidade diversa daquela de sua origem, não se permite concluir, como o fez o juízo monocrático, que a liberdade de E. não se encontrava violada. Com feito, essa ausência de consentimento e, em consequência, de liberdade, resta latente em face da absoluta incapacidade da criança, especialmente a criança indígena não integrada ou parcialmente integrada, desestabilizando-a, fato que foi capaz de prejudicar seu normal desenvolvimento e a gradual maturação de sua personalidade. Tal situação foi intensificada pelo sentimento de medo gerado a partir da conduta ameaçadora implementada pela acusada W. F. Não há como negar que esses fatores imbricados são intensificadores do cerceamento da liberdade da vítima. O simples fato de “fugir” para ir a escola já demonstra isso. Repiso: diferentemente do aduzido pelo juízo, a situação de fuga já demonstra cerceamento de liberdade! A demonstrar o sentimento de temor, fato que a fez suportar a exploração laboral infantil contínua, os seguintes trechos do relatório produzido pela Equipe Multiprofissional da Subsecretaria Metropolitana de Educação (fls. 41/42): “Durante seu relato a jovem pareceu ser uma garota retraída, insegura e por várias vezes o diálogo era interrompido, pois a aluna se emocionava muito, respirava fundo e chorada. E. sente muito medo da Sra. W., pois a mesma a ameaça dizendo que se ela contar o que acontece em casa para alguém, ela irá apanhar ainda mais. Durante a conversa com a equipe a aluna frisava muito que seu relato não poderia chegar ao conhecimento de W., e ela acrescenta dizendo que tem medo que na próxima agressão possa chegar a mata-la.” No mesmo diapasão, as declarações da própria vítima, devidamente traduzidas, em audiência, por determinação judicial: Ofendida (tradutor): Que ela tem medo da W. porque apanhava dela. Que contou para a professora dela que tinha medo da W.. (…) Ela mesma mostrou para a professora a marca de batida e a professora foi chamar a W. Que quando ela chegou em casa a W ficou brava porque contou pra professora. Que a W usava um cinto pra bater nela. (…) Que a professora dela perguntou porque ela faltava muito e ela começou a falar, mesmo porque a W proibia de não falar pra ninguém. E contou pra ela.” (fl. 250). 12 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS Essa situação é corroborada pela percepção das educadoras e psicólogas que tiveram contato com a criança xavante. Anotem-se os seguintes trechos: E ela pediu pra gente não contar pra ela, porque eu estou contando tudo pra vocês, porque eu tenho medo do que ela pode fazer. (…) Então, ela falou: 'olha, eu não quero que vocês contem'.'Não fale pra ela porque ela falou: 'se alguém da escola souber o que acontece dentro de casa, eu vou te bater ainda mais'. E ela falava assim: 'eu não quero porque da próxima vez que ela me bater eu tenho medo dela me matar.' [K.P.B., fl. 216]. Testemunha: Ela tinha muito medo. A gente percebia que ela tinha um receio muito grande. Eu não sei se a pastora é um pouco brava com ela, mas ela tinha muito medo de quando a gente comentava qualquer coisa no dia que ela chegava triste... [S. M. L. O., fl. 267]. Repiso: esse cerceamento da liberdade, quer pela própria condição de criança, quer pelo medo que a acusada causava à vítima, veio reforçado à submissão da criança a um labor doméstico obrigado e exaustivo para a sua idade e para sua condição de indígena. Agregado a isso, a coação psicológica e moral da criança xavante, submetida, pela sua condição de vida, a exploração por parte de uma pessoa que teria se responsabilizado, mesmo sem qualquer ato formal, a protegê-la, é luzente. Em outras palavras: a relação de dominação que a acusada W.F. exercia sobre a menor xavante, neutralizando sua capacidade de determinar-se de acordo com a vontade de executar ou não as atividades laborais a que fora obrigada, resta clara dos autos. Nesse sentido, anotem-se as declarações prestadas em juízo pela própria ofendida, devidamente traduzida por determinação judicial, ao expor, de forma clara e linear, a situação de exploração laboral doméstica exaustiva, não remunerada, desgastante e degradante a que fora submetida, sob a ameaça de castigos corporais, a ratificar tudo que fora exposto na fase inquisitorial (fls. 12/13; 112/113): MPF: Chegando lá na casa da W, ela foi realizar que tipo de atividade? O que que ela fazia lá na casa da W? Ofendida (tradutor): O serviço que ela fazia era lavar roupa, lavar o chão, mesmo cansada e continuava fazendo. (...) MPF: De que horas a que horas ela trabalhava na casa da W? Ofendida (tradutor): De manhã até o meio-dia, até ir pra escola. Às vezes, é muito serviço e não ia pra aula. MPF: Ela lavava roupa? 13 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS Ofendida (tradutor): Sim. MPF: Ela lavava vasilha? Prato, garfo? Ofendida (tradutor): Tudo. MPF: Ela limpava a casa? Ofendida (tradutor): Também. Lavava... limpeza. MPF: Qual que é o tamanho da casa da W? Grande, pequena? Ofendida (tradutor): Era pequena. MPF: Ela lavava as roupas da família toda? Ofendida (tradutor): Da família toda. MPF: Ela já chegou a fazer isso à noite? Ofendida (tradutor): Até à noite. MPF: A W deixava ela ter descanso e momento de lazer? E com que frequência? Ofendida (tradutor): Não tem horário de descanso, não. MPF: Ela trabalhava também aos sábados e domingos? Ofendida (tradutor): Trabalhava. MPF: A W já chegou a agredir ela fisicamente para ela trabalhar? Ofendida (tradutor): Já... Batia. MPF: Ela chegou a faltar aula por conta dos serviços domésticos? Ofendida (tradutor): Ela faltava aula. Apesar de faltar muito, ela mesma ia escondida pra aula. Ela não sabe quantos que perdeu aula. MPF: O que que acontecia com ela se a W descobrisse? Ofendida (tradutor): Ela ficava brava, porque ia escondida e, quando volta, ela bate. (...) Ofendida (tradutor): Que era chamada de mucama, mas não entendia o quê que era. Que ela continuava trabalhando e a W ainda chamava ela de mucama (...) Que a W obrigava ela cedo pra fazer os serviços domésticos, às 6 horas (...)” [E.P., fl. 250]. O relato é devidamente corroborado pelas declarações harmônicas e idôneas das testemunhas, educadores e psicólogos, que acompanharam o calvário da pequena xavante, também a confirmar as declarações prestadas perante a autoridade policial (fls. 45/46; 56/57; 94/98; 106). Anotem-se: MPF: Sra. M., qual a atividade profissional que a sra. exerce? Testemunha: Agora, eu sou professora aposentada. Eu estou há quatro meses fora da escola. MPF: A sra. lecionou em que período? Testemunha: (…) Foi em 84 e terminei agora, no final de abril de 2012. MPF: A sra. foi professora da E e o que a sra. pode afirmar com relação à aluna E? A menina que a sra. conheceu. 14 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS Testemunha: Eu fui professora dela em 2010, no segundo semestre. De agosto a outubro. (…). Três meses. (...) MPF: Além dessas lesões que ela apresentava, a menina Eugênia relatava obrigações que ela devia ter? Como era a vida dela, no dia a dia da casa? Testemunha: Ela falava que ela era a escrava da casa. Que ela fazia todo o serviço doméstico e que ela era penalizada por todas as coisas que aconteciam na casa. Inclusive, ela falava que na casa tinha duas meninas. Uma adolescente e uma moça. Que a moça protegia ela demais, livrava ela de muita coisa. Mas, a outra, a adolescente, fazia coisa errada e quando a mãe chegava ela falava 'foi a E'. Aí a E apanhava. MPF: Ela descreveu as tarefas que ela era obrigada a fazer? Testemunha: Limpeza de casa, lavar roupa... todo o serviço de casa ela fazia. Inclusive ela disse que lá na casa ela era chamada de MUCAMA. MPF: Além de trabalhos domésticos, ela tinha alguma outra atividade externa? Testemunha: Ela falava que ela fazia panfletagem na feira, com o material que era produzido pela igreja. Então, um dia ela faltou aula na segunda-feira e no outro dia ela chegou doente, muito gripada, com febre. (…) Ela falou que é porque estava chovendo muito e ela tinha ficado até mais tarde da noite, muito frio, na pracinha da feira [praça do Hipermercado Moreira], distribuindo panfletos. (...) MPF: A sra. tem conhecimento de que a Secretaria de Educação teria feito um relatório social com uma equipe de psicólogos sobre o caso, sobre a questão? Testemunha: Tenho. O pessoal da equipe conversou com a Eugênia e fez todo um trabalho. MPF: E esse relatório aconteceu porque? Testemunha: Porque foi pedido providência da escola. Foi pedido providência do Conselho Tutelar. (…) MPF: A sra. sabe dizer qual foi o período que a Eugênia esteve morando, residindo e esteve aos cuidados da pastora, da sra. W? Testemunha: Quando ela chegou na escola... quando ela foi matriculada, foi no começo do ano, acredito que tenha sido em fevereiro de 2009. Inclusive, o pai da E esteve lá, fazendo uma palestra com os meninos... foi lá conhecer a escola. Ela foi levada pelo pai nesse primeiro dia de aula. E ela permaneceu o ano inteiro. E no ano seguinte novamente. Foram dois anos. De 2009 a 2010. Nesse período ela esteve sob os cuidados da pastora. (…) [M.G.B, fl. 218]. 15 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS Testemunha: Hoje eu sou psicóloga e trabalho na Secretaria Municipal de Habitação. Na época eu era contratada pelo Estado e trabalhava como psicóloga escolar, pela Secretaria Metropolitana de Educação e a gente atendia três escolas. E uma delas era a Juscelino Kubitschek, ali no Setor Coimbra, todas as quintas-feiras. (...) Ela ia para a escola muito cansada, não queria fazer tarefa, vivia chorando, muito resfriada. (…) E a gente atendeu essa criança em uma tarde toda e ouvimos o relato dela que é o que embasou o nosso relatório. No momento ela se encontrava muito resfriada, e a gente perguntou porque ela estava resfriada. Foi logo depois do feriado de finados. E ela falou que tinha ido ao cemitério junto com a responsável para entregar panfletos de evangelização. E ela tinha tomado chuva. (…) E com isso ela, muito chorosa, ia relatando que era muito agredida, que apanhava muito de cinto da senhora, empurrões... Ela dava muito empurrões nela, sem motivos. E que em um deles, ela empurrou e jogou ela no chão e chegou a bater com a cabeça. Ela relatou que tinha que faxinar a casa, sempre, todos os dias. E a gente percebeu que ela estava faltando à aula. (…) Ela relatou que enquanto ela não terminasse a faxina ela não podia ir pra escola. E se ela não terminasse a faxina ela não poderia comer, principalmente as refeições principais. Ela não tinha a liberdade para abrir a geladeira, abrir os armários para comer. E ela tinha que esperar oferecer. Ela só podia comer o que era oferecido pra ela. E a gente perguntou: 'qual a relação de vocês? Como que ela te tratava? Como ela te chamava?'. E ela falou que ela chamava ela de MUCAMA. E a gente perguntou pra ela o que era mucama, e ela disse 'eu não sei'. (...) E ela não tinha lazer em casa. Ela não podia ligar a televisão, ela não podia atender o telefone, não podia ligar pra ninguém e nem usar o computador (...) MPF: Ela especificou para a sra. que tipo de tarefas ela fazia? Testemunha: Ela falou muito de limpar a casa, lavar banheiro, lavar o quintal, lavar sempre vasilhas. Que a pia vivia sempre cheia de vasilhas e que ela tinha que lavar vasilhas toda hora. Ou seja, o trabalho nunca acabava. Sempre tinha alguma coisa pra fazer, todos os dias. (…) Testemunha: (…) Foi só a questão do resfriado mesmo, com muita dor de cabeça, mas que não era medicada... Inclusive, ela, mesmo assim, nesse estado debilitado, ao invés de estar repousando ela era obrigada a limpar a casa, mesmo estando enferma. MPF: E isso impedia que ela fizesse as tarefas escolares? Testemunha: Impediam, sim. (…) As tarefas de casa não eram completas. Os trabalhos não estavam sendo completos. Ela não estava aproveitando, rendendo dentro 16 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS da sala de aula, porque ela se sentia muito debilitada, muito cansada, com a cabeça sempre baixa, muito chorosa... Então, ela não aproveitava muito da aula, da escola. [K.P.B, fl. 216]. Juiz: Ela comentou se a dona W também batia? Testemunha: Ela disse que uma vez a pastora colocou a cabeça dela dentro de uma vaso. Parece que ela não tinha coisado o modes direito, porque ela estava menstruada, e aí a W colocou a cabeça dela dentro (...). E tinha assim uns dois meses que a gente percebia que ela estava apática, que não estava muito interessada em fazer atividade. E a gente perguntava porque ela não fazia. 'Não tia, porque eu tenho que fazer primeiro as atividades de casa. (…) Se eu não fizer, a pastora briga comigo'. Conversa com ela. 'Mas ela briga, tia'. Ai, esse dia ela estava realmente muito chorosa, não queria fazer atividade, aí eu falei para a M. A M acompanhou ela até a direção, e a direção encaminhou para essa dupla pedagógica que tinha na escola que era justamente para esses casos. Que a E chorou muito e contou tudo para elas. (…) Contou que a pastora batia. Juiz: Sobre as condições de trabalho e período que ela trabalhava lá pra dona W, ela informou e qual serviço que ela fazia? Testemunha: Não. Ela lavava banheiro, ajudava a arrumar a casa, lavava louça. Juiz: O horário, não informou? Testemunha: Não, eu falava que ela tinha que fazer as atividades de manhã, mas ela falava que não, que tinha que fazer as atividades em casa. Juiz: E quando ela chegava em casa as atividades estavam todas feitas? Testemunha: Não. MPF: Com relação à realização das tarefas, quê que a E relatava a sra.? Testemunha: Ela sempre alegava que não tinha tempo, que estava fazendo as atividades em casa. MPF: A sra. poderia especificar que atividades eram essas? Testemunha: Ela falava que lavava roupa dela, lavava louça, lavava o banheiro, passava pano na casa... era isso que ela falava. MPF: E ela era submetida a uma situação de constrangimento caso essas atividades não fossem realizadas? Testemunha: Ela dizia que se ela não fizesse a pastora brigava com ela. (...) MPF: Com relação à acusada, a sra. chegou ter algum diálogo com ela, a conversar com ela sobre esse assunto? 17 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS Testemunha: Duas vezes. Uma vez eu chamei a pastora para ir na escola para gente conversar sobre o desenvolvimento da Eugênia, que ela estava apática, não trazia atividade de casa... E ela foi. Eu achei ela muito áspera. Inclusive, ela mesma falou que tinha um cinto ungindo que batia na Eugênia, com esse cinto ungido. E eu percebi que ela realmente era uma pessoa difícil. E outra vez também, por essa mesma razão, da Eugênia não tá levando atividade de casa, às vezes chagava um pouco atrasada, com a roupa um pouco mal cheirosa, porque ela era mesma que lavava a roupa (...) [S.M.L.O, fl. 267]. No mesmo diapasão, as declarações de C. R S. à fl. 267. Outrossim, os seguintes trechos do relatório do Conselho Tutelar acostado às fls. 36/40 (527/531) do apenso I: “Que os trabalhos domésticos sempre ficavam a cargo da criança e sua alimentação também era regrada pela suposta curadora, senhora W.” Nem se alegue, como sinalizou o juízo monocrático, que a situação a que submetia E servia para educá-la. Em momento algum a acusada chegou a submeter sua filha de idade próxima à idade de E aos trabalhos pesados comprovados nestes autos. Nesse sentido, o seguinte trecho das declarações de uma das testemunhas: MPF: A sra. sabe dizer se as filhas da pastora, da acusada, também viviam sob as mesmas condições que a E? Testemunha: Não. A E dizia: 'tia, ela não manda a filha dela fazer, ela só manda eu'. Que era a filha mais nova dela. (...) [S.M.L.O, fl. 267]. Portanto, há provas nos autos de que a acusada não tratava de forma isonômica a menor xavante e sua filha legítima. A esta não foram praticadas a exploração e maus tratos a que submeteu a criança indígena. Ao contrário. Foi a menor xavante, conforme se vislumbra das provas colacionadas nos autos, uma vítima de trabalho escravo doméstico, em uma das mais vis, cruéis e inescrupulosas formas de labor forçado infantil. Por fim, tenta a acusada, ao juntar os documentos de fls. 146/165, neutralizar os fatos provados nestes autos. Entretanto, em nenhum momento os documentos que junta infirmam a superexploração laboral a que submeteu a criança indígena. A uma, fotografias em supostos situações sociais não são aptas a demonstrar a ausência da situação de submissão a trabalhos penosos e 18 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS degradantes a que submeteu a menor xavante. Nenhum acusado registrará fotograficamente a prática delitiva, no caso a situação de exploração ocorrida no ambiente familiar apontada na peça acusatória e provada nestes autos. A duas, o cartão de atendimento do Hospital Samaritano (fl. 146) não é relacionado a plano de saúde (como tenta fazer crer a defesa em resposta à acusação). É um simples cartão de fidelização. Sabe-se que tais cartões permitem apenas descontos, de acordo com a quantidade de atendimentos. Observese, inclusive, que fora expedido em agosto de 2010 (cartões dessa espécie possuem validade de 1 ano - veja a data de vencimento), portanto criado poucos meses antes de serem totalmente noticiados os fatos. Por outro lado, por óbvio, pessoas que convivem apenas socialmente com membros de uma família raramente notarão uma prática que se encontra inserida em um contexto doméstico, como o é a exploração laboral. Assim, levar em consideração somente a palavra de tais pessoas, testemunhas de defesa, sem sopesá-las e cotejá-las com as palavras de educadores e psicólogos, pessoas que, imparcialmente, mantiveram contato com a situação da menor, como o fez o magistrado monocrático, é afastar-se, deliberadamente, da realidade trazida aos autos. Ademais, rompantes eventuais de “bondade” possivelmente acometidos pela acusada não são passíveis, como quis sustentar o douto magistrado, para afastar a prática criminosa, mormente quando, em casos tais, foi perpetrada contra criança (além de criança, indígena), pessoa com previsão constitucional de proteção integral. Entretanto, em vez de depositar uma maior carga valorativa na proteção à menor, o magistrado, ao contrário, preferiu destilar em sua decisão uma certa carga de hostilidade, ao afirmar, em um determinado trecho de sua sentença, que “para uma pessoa que não tenha o trabalho por hábito, qualquer atividade que se lhe imponha, mesmo que para a conservação da própria higiene, será um fardo” (fl. 319). Dessa forma, os elementos dos autos só vem a demonstrar que o trabalho exercido pela então menor E.P, sob as determinações opressivas e abusivas da acusada W. F., era um trabalho forçado, exaustivo, desgastante e degradante, exercido sem espontaneidade pela menor, a se amoldar à definição contida artigo 2º, da Convenção n. 29, da OIT. Note-se: com tal convivência com a acusada, a vítima nada ganhou (remuneração pelo trabalho, formação, amparo). Nada foi agregado à sua formação. Caso análogo ao presente (submissão de menor a trabalho doméstico degradante) já foi enfrentado por esse Tribunal nos autos da apelação 2009.35.00.016441-2, caso decidido em 02/04/2013 (numeração única 001635314.2009.4.01.3500 – publicado em 19/04/2013 e DJF1. p. 315). Anotem-se os seguintes trechos, no que interessa, do voto condutor capitaneado pelo desembargador federal Hilton Queiroz: 19 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS “(...) Nosso ordenamento jurídico proíbe expressamente o trabalho infantil e o trabalho forçado. A propósito, transcrevemos as seguintes normas: CF/88 - Art. 7°: São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre, a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos; CLT - Art. 403: É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos. Parágrafo único. O trabalho do menor não poderá ser realizado em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a freqüência à escola. Convenção n. 29 da OIT - Artigo 2°: 1. Para fins desta Convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente. Convenção n. 182 - Artigo 3°: Para os fins desta Convenção, a expressão as piores formas de trabalho infantil compreende: (a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como venda e tráfico de crianças, sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou compulsório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; (...) (d) trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança. Preceitua o art. 149, caput, e § 2°, I, do CP: ‘Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, (...) § 2° A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: 1 - contra criança ou adolescente;’ (...) “O magistrado fundamentou o decisum nos seguintes termos: 20 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS “A competência da Justiça Federal para processar e julgar o presente feito é manifesta, diante da previsão expressa do texto constitucional no que se refere à apuração de crimes contra a organização do trabalho (art. 109, VI, CF/88). (...) Noutro julgado, o e. STF dirimiu a dúvida acerca da competência da Justiça Federal também para julgar crimes cometidos contra trabalhadores determinados, individualizados, e não contra uma coletividade. Confira-se: DIREITO PROCESSUAL PENAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. CRIMES DE REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO, DE EXPOSIÇÃO DA VIDA E SAÚDE DESTES TRABALHADORES A PERIGO, DE FRUSTRAÇÃO DE DIREITOS TRABALHISTAS E OMISSÃO DE DADOS NA CARTEIRA DE TRABALHO E PREVIDÊNCIA SOCIAL. SUPOSTOS CRIMES CONEXOS. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESTA PARTE, PROVIDO. 1. O recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público Federal abrange a questão da competência da Justiça Federal para os crimes de redução de trabalhadores a condição análoga à de escravo, de exposição da vida e saúde dos referidos trabalhadores a perigo, da frustração de seus direitos trabalhistas e de omissão de dados nas suas carteiras de trabalho e previdência social, e outros crimes supostamente conexos. 2. omissis. 3. omissis. 4. O acórdão recorrido manteve a decisão do juiz federal que declarou a incompetência da justiça federal para processar e julgar o crime de redução a condição análoga à de escravo, o crime de frustração de direito assegurado por lei trabalhista, o crime de omissão de dados da Carteira de Trabalho e Previdência Social e o crime de exposição da vida e saúde de trabalhadores a perigo. No caso, entendeu-se que não se trata de crimes contra a organização do trabalho, mas contra determinados trabalhadores, o que não atrai a competência da Justiça Federal. 5. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 398.041 (rel. Min. Joaquim Barbosa, sessão de 30.11.2006), fixou a competência da Justiça federal para julgar os crimes de redução a condição análoga à de escravo, por entender ‘que quaisquer condutas que violem não só o sistema de órgãos e instituições que preservam, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também o homem trabalhador, atingindo-o nas esferas em que a Constituição lhe confere proteção máxima, enquadram-se na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto de relações de trabalho’ (Informativo n. 450). 21 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS 6. As condutas atribuídas aos recorridos, em tese, violam bens jurídicos que extrapolam os limites da liberdade individual e da saúde dos trabalhadores reduzidos a condição análoga à de escravos, malferindo o princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade do trabalho. Entre os precedentes nesse sentido, refiro-me ao RE 480.138/RR, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 24.04.2008; RE 508.717/PA, rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 11.04.2007. 7. Recurso extraordinário parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.’ (RE 541627/PA, Relatora Min. Ellen Gracie, julgamento de 14/10/2008, 2ª Turma) Portanto, visto que os crimes sob apuração foram supostamente perpetrados contra a saúde e liberdade de duas menores, no contexto de relações de trabalho, é incontestável a competência da Justiça Federal para processar e julgar o presente feito. (...) 2.3 Mérito (...) O tipo de injusto está assim descrito, verbis: ‘Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (...) § 2º A pena é aumentada de 1/2 (metade), se o crime é cometido: I - contra criança ou adolescente; (...)’ Objetiva tutelar a liberdade do indivíduo, com foco principal em sua dimensão laboral. Penaliza-se, assim, a conduta do agente que busca sujeitar o ser humano a trabalho desumano e degradante, em situação similar à de escravo. A tipificação anterior à Lei n. 10.803/2003 era bem resumida. Não especificava quais as situações que poderiam configurar o crime de reduzir alguém a condição análoga à de escravo. Portanto, cabia ao intérprete e julgador a análise e aferição das hipóteses que considerasse análogas à escravidão. A nova redação conferida ao artigo 149 pela Lei n. 10.803/2003 esclarece quais formas de exploração ilegal e abusiva do trabalho humano que podem configurar labor análogo ao de escravo: 1) submeter alguém a trabalhos forçados - neste caso a vítima é privada da liberdade de escolha e a 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS execução do trabalho decorre de uma relação de dominação e sujeição; 2) exigir jornada exaustiva ou sujeição do trabalhador a condições degradantes - nesta hipótese há abuso na exigência do trabalho por parte do empregador, seja no que se refere à quantidade, ou quanto às condições propiciadas para sua execução. Entende-se por condição degradante aquela aviltante ou humilhante, que afrontam a dignidade da vítima; ou 3) privar a liberdade em razão de dívida artificiosamente criada pelo empregador ou preposto. O elemento subjetivo do tipo é o dolo, consistente na vontade livre e consciente de reduzir a pessoa ao estado de completa submissão, por qualquer das formas previstas no artigo. Consuma-se o crime com a completa dominação pelo empregador, mediante a privação da liberdade de locomoção ou da capacidade de determinar-se de acordo com a vontade de executar ou não o trabalho que é exigido. Admite-se a tentativa. 2.3.1 Do crime praticado contra a menor Lorena Coelho Reis A materialidade e autoria delitivas restaram suficientemente comprovadas. As condições de trabalho relatadas pela vítima confirmaram que, durante onze meses do ano de 2002, realizava trabalhos domésticos forçados na casa da acusada SÍLVIA, sob jornada exaustiva - acordava por volta das 6h:30min e ia dormir por volta das 23 horas -, em condições degradantes, visto que passava a maior parte do dia sem alimentação e necessário descanso (mídia audiovisual fl. 522). (...) Além disso, SÍLVIA não pagava salários pelos serviços prestados, trancava a casa para que Lorena não fosse embora e mantinha o telefone bloqueado. Também não fornecia dinheiro ou ‘passagem’ para que a vítima visitasse seu pai. Segundo a vítima, a empregadora tinha súbitos de bondade, ‘maltratava’ por serviços que dizia malfeitos, mas também ‘carinhava’. Por esta razão, fez uma festa de aniversário para a menor na casa do pai desta última. Por ocasião da festa de aniversário, Lorena conseguiu se livrar da relação de trabalho aviltante, quando comunicou seu pai acerca da situação degradante em que vivia na casa da acusada SÍLVIA (mídia - fl. 522). Não lhe foi permitido buscar roupas e objetos pessoais que ficaram na residência da acusada SÍLVIA. A vítima também não recebeu verbas trabalhistas pelo período laborado (mídia - fl. 522). (...) 23 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS Também não prospera a alegação de que SÍLVIA tratava Lorena como filha. Não é razoável cogitar que seus filhos tivessem tratamento desumano, que fossem submetidos a trabalho exaustivo e sem o fornecimento de alimentação adequada durante o dia. A situação de trabalho a que fora submetida a vítima Lorena não possuía qualquer natureza de cunho educativo, de correção ou de proteção à menor - o que poderia afastar o elemento subjetivo do tipo necessário à configuração do crime em questão -, mas de verdadeira humilhação e degradação humana. Dessa forma, demonstrado o labor exaustivo e aviltante a que fora subjugada a vítima Lorena, impõe-se a condenação da acusada SÍLVIA CALABRESI LIMA às penas do artigo 149, caput, do Código Penal, de acordo com a redação anterior à Lei n. 10.803 de 11 de dezembro de 2003. (...)” Apontadas, pois, todas as provas materiais que ratificam a imputação feita ao acusado na peça exordial, faz-se mister a aplicação das apenações legais cabíveis para a prática do crime imputado à acusada W.F. VI – DA APLICAÇÃO DA PENA Note-se, por todas as provas colacionadas nos presentes autos, que a submissão da menor xavante ao trabalho escravo infantil resta clara. Destarte, para aplicação da pena, importante esse Tribunal considerar os seguintes fatores, especialmente quanto a reprovabilidade da conduta de W. F: a- os educadores e psicólogos ouvidos por esse juízo foram assentes em registrar, além das alterações comportamentais da criança, os transtornos psicológicos decorrentes da exploração laboral a que fora submetida. Nesse sentido, a título de exemplo, agregado ao que já foi exposto acima, o seguinte trecho do relatório de fls. 41/42: “A equipe percebeu ao conversar com a aluna características de apatia, depressão, choros, tristeza, porém relatou que ao desabafar sentiu-se calma e aliviada. Durante seu relato, a jovem pareceu ser uma pessoa retraída, insegura e por várias vezes o diálogo era interrompido, pois a aluna se emocionava muito, respirava fundo e chorava” b- a acusada se apresentou como religiosa, uma serva de Deus na terra. Com tal discurso, seduziu à família, incentivando-a a confiar a guarda de fato da criança a W. F. 24 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS c- a acusada aproveitou-se da situação de vulnerabilidade da família. Esta, conforme prova dos autos, teria se dirigido a Goiânia em busca de tratamento para outra filha. A acusada, sob o manto e aparência da filantropia, quis, na realidade, garantir mão de obra doméstica infantil. Nesse sentido (itens b e c), anotem-se as seguintes declarações: MPF: O que a E foi fazer em Goiânia quando ela saiu da aldeia, pela primeira vez? Ofendido (tradutor): Ela foi acompanhar a mãe, porque a sua irmã caçula estava doente [E.P, fl. 250]. “que veio para Goiânia com a filha E para cuidar da irmãzinha que conhecia bem; que ela levou a filha porque a E gostava muita da irmãzinha; que no hospital a W visitava a criança, com toda boa vontade, rezava, ela dizia que era pastora, fazia benção para a criança; que ela trazia frauda e roupinha de criança; que quando o pai veio, no mês de maio, e ficou na dúvida de a E não estar com ninguém; eu a pastora pediu pra deixar a E na casa dela; que confiou porque a W era pastor; que depois a W pediu para deixar a E na casa dela, para estudar (…) [P.P.A, fl. 250]. Aí, a gente perguntou o que ela estava fazendo aqui em Goiânia e como ela chegou aqui, e ela relatou que veio com a família dela porque a irmã dela mais nova ia fazer um tratamento no Materno Infantil e que o pai dela, com um acordo com a responsável, no caso a senhora, de ficar com ela para educar e cuidar [K.P.B., fl. 216]. d- a acusada tratou a menor xavante de forma humilhante. Nem animais domésticos são tratados da forma como a acusada tratou a criança indígena. Veja a perversidade relatada no seguinte trecho das declarações da testemunha M.G: Então, muitas vezes ela usava errado e isso também gerava castigo. Ela disse que chegou a jogar coisas que não era pra jogar lixo dentro do vaso e ela foi obrigada a enfiar a cabeça lá dentro e a pegar com a boca [M.G.B., fl. 218] Na segunda fase de aplicação da pena, importante considerar, conforme já verificado acima, que o abuso se deu na invisibilidade das relações domésticas (artigo 61, II, f, do Código Penal). Na terceira fase de aplicação da pena, além de se levar em consideração o fato de o crime ter sido praticado contra criança (artigo 2º, do do 25 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS ECA), conforme documento de fl. 14 (artigo 149, § 2º, I, do Código Penal), mister seja considerado, como causa de aumento, o contido no artigo 59 da Lei 6.001/73. Reza o dispositivo: “Art. 59. No caso de crime contra a pessoa, o patrimônio ou os costumes, em que o ofendido seja índio não integrado ou comunidade indígena, a pena será agravada de um terço. Note-se que, à época dos fatos, a menor xavante não era integrada. Expressava-se em português com dificuldade. Não sabia usar vaso sanitário. Não entendia completamente o que lhe falavam. Nesse sentido, as seguintes declarações: Testemunha: Ela falava assim, que quando ela chegou ela não falava português. Então, por isso, ela teve que sofrer muito porque às vezes ela não entendia os comandos. Falava pra ela fazer alguma coisa e ela não entendia e fazia outra e isso gerava castigo. Ela falou que na roça ela não tinha os costumes da cidade grande. Então, ela não sabia usar o vaso. Então, muitas vezes ela usava errado e isso também gerava castigo. Ela disse que chegou a jogar coisas que não era pra jogar lixo dentro do vaso e ela foi obrigada a enfiar a cabeça lá dentro e a pegar com a boca [M.G.B, fl. 218] E a gente perguntou: 'Mas, você não faz uso de medicamentos? Você foi ao médico?' Ela começou a relatar que quando isso acontece, quando ela adoece, ela não é medicada e nem é levada ao médico. (...) E ela pediu pra que a gente ligasse pro pai dela, naquela hora, naquele momento, pra vir buscar ela porque ela estava com saudades da mãe dela e que isso não acontecia onde ela morava. Que ela não apanhava e não trabalhava e não entendia porque estava acontecendo naquela casa, daquele jeito (...) MPF: Ela tinha dificuldade de entender aquela situação que ela vivenciava, em razão da peculiar situação dela de ser uma criança indígena? Testemunha: Ela não entendia. (…) Ela tinha dificuldades de entender aquela situação (...) [K.P.B.G.B, fl. 216]. Portanto, a condenação da acusada, com as agravantes e causas de aumentos indicadas, é medida que se impõe. VII – DISPOSITIVO Posto isso, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL espera que o presente recurso seja conhecido e provido, com o condão de, reformando 26 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM GOIÁS parcialmente a sentença de fls. 311/320, CONDENAR W.F.M.B como incursa no artigo 149, § 2º, I c/c artigo 61, II, f, do Código Penal e artigo 59, da Lei 6.001/79. Goiânia, 23 de abril de 2013. DANIEL DE RESENDE SALGADO Procurador da República 27