Versão de Impressão - Portal de Anais da Faculdade de Letras da
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Um panorama da música em Muito barulho por nada, de Kenneth Branagh Flávia Rodrigues Monteiro Pós-Lit / UFMG, Doutoranda RESUMO: Visto que Shakespeare oferece as mais diversas explorações da palavra em suas peças, seja em prosa ou em poesia, não é surpreendente que o dramaturgo tenha servido de inspiração para as mais diversas adaptações. Em Muito barulho por nada, o Bardo não só explora a poesia como forma literária como também faz indicações que tal poesia deve ser musicada. Em sua adaptação fílmica da peça, Kenneth Branagh retira a música do texto de Shakespeare e a “multiplica”, explorando diversos instrumentos musicais e com escolhas pontuais para suas músicas incidentais. Além disso, a reflexão sobre a relação entre literatura e música também está presente. Mais, ainda, Branagh coloca em cena o músico responsável pela trilha Sonora, Patrick Doyle. Assim, o diretor mostra que a música não é um simples acessório do filme e sim uma participante ativa da narrativa. Palavras-chave: Shakespeare; Kenneth Branagh; adaptação; trilha sonora. ABSTRACT: Since Shakespeare offers the most varied explorations of the word in his plays, either in poetry or in prose, it is no surprise that the playwright has been a source of inspiration for several adaptations. In Much Ado about Nothing, the Bard not only explores poetry as a literary form but also points that this poetry must be in musical form. In his filmic adaptation of the play, Kenneth Branagh not only uses the songs presente in the Shakespearean text but also multiplies them, making use of several musical instruments and with marked choices of incidental music. Moreover, a reflection of the relationship between literature and music is also present. Branagh even shows on screen the musician responsible for the soundtrack, Patrick Doyle. Thus, the director shows that music is not a simple accessory of the movie but an active element of the narrative. Keywords: Shakespeare; Kenneth Branagh; adaptation; soundtrack. 434 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 1. Introdução Através dos séculos, Shakespeare ganhou popularidade e ficou conhecido como um artista que apresenta um raro domínio da palavra. O Bardo oferece as mais diversas explorações da palavra em suas peças, onde podemos encontrar a mistura de prosa e poesia. A prosa pode aparecer como uma marcação da fala de personagens que não pertencem à realeza. A poesia, ao contrário, marca por vezes o discurso de personagens pertencentes ao círculo da nobreza. Esses são apenas exemplos de como Shakespeare convencionou as diferentes estruturas da linguagem. Além de tais exemplos, podemos apreciar como o Bardo utiliza a poesia como uma evocação do elemento musical em suas obras. O dramaturgo parece reconhecer a ligação que essa forma de linguagem literária tem com a música e, dessa forma, promove a conexão entre tais formas de expressão em suas peças. Podemos até mesmo encontrar conjecturas feitas pelo Bardo quanto ao papel da música em nossas vidas. Assim, não é surpreendente que as peças de Shakespeare tenham servido de inspiração para os mais diversos tipos de adaptação, incluindo adaptações no campo da música, tais como filmes musicais, como Amor, sublime amor (West Side Story) e até a ópera Othello, de Verdi. Podemos considerar Shakespeare como elemento inspirador da união entre música e literatura. Dessa forma, ele nos leva a pensar sobre a relação entre as duas artes. De acordo com Werner Wolf, Vistas como artes, literatura e música na verdade revelam aspectos que as tornam de fato comparáveis: para nosso propósito, é importante que elas possam ser consideradas, até certo ponto, práticas de significação humana convencionadas, cada uma governada por uma (historicamente variável) ‘gramática’ (convenções genéricas, sistema tonal etc.)1 (1999, p. 12). Ao considerar a afirmação de Wolf, vemos que música e literatura podem andar juntas e interferir uma na outra, um aspecto de sua relação que foi notado e explorado por Shakespeare. Como práticas de significação humana, possuidoras de convenções que guiam suas expressões, ambas podem utilizar recursos para a promoção de possíveis diálogos interartes, visto que, ao se tratar de Shakespeare, podemos 1 Tradução minha. Um panorama da música em Muito barulho..., p. 433-441 435 aceitar o trânsito do Bardo entre as mais diversas artes durante os séculos. O presente trabalho não pretende se aprofundar teoricamente nas relações interartes, mas sim, oferecer um panorama da utilização de recursos musicais no filme Muito barulho por nada de Kenneth Branagh, adaptação da peça shakespeariana de mesmo nome. 2. Muito barulho por nada de Kenneth Branagh: uma adaptação musical Em Muito barulho por nada, comédia escrita em torno de 1599, Shakespeare não só explora a poesia como forma literária como também faz indicações que tal poesia deve ser musicada. A música permeia toda a peça, aparecendo em diferentes situações e com funções variadas. Três poemas apresentam a indicação de que devem ser apresentados em forma de canção: “Sigh no more” (“Não suspires mais”), “The god of Love” (“O deus do amor”) e “Pardon, goddess of the night” (“Perdão, deusa da noite”). Tal multiplicidade de utilização do recurso musical abre portas para potenciais processos criativos em adaptações da peça. O ator e diretor britânico Kenneth Branagh pode ser considerado como um “herdeiro” de Laurence Olivier pois, como seu antecessor, ficou conhecido tanto por suas adaptações de peças shakespearianas quanto por sua participação em adaptações produzidas por outros. Hamlet (1996), Como Gostais (2006), Trabalhos de amor perdidos (2000), Othelo (1995), Henrique V (1989) e Sonhos de uma noite de inverno (1995) são exemplos de filmes inspirados nas obras de Shakespeare e que contam com a colaboração de Branagh como ator e/ou diretor. Branagh adaptou Muito barulho por nada para sua versão fílmica em 1993. Além de coproduzir, dirigir e atuar no filme, Branagh também foi responsável pelo roteiro. É interessante notar as escolhas que ele fez como roteirista, principalmente no que diz respeito ao uso de recursos musicais. Espectadores mais atentos podem perceber como ele retira a música do texto de Shakespeare e a “multiplica” em seu filme. Repetindo a parceria com o músico Patrick Doyle, com quem já havia trabalhado anteriormente em outros projetos, Branagh insere não só a música de Doyle no filme como também podemos ver participações do músico em cena, fato que corrobora a importância dada por Branagh à música. A peça abre com a chegada de um mensageiro a Messina, informando o retorno do Príncipe e de sua tropa da guerra. No início 436 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 do filme, Branagh já pontua a significativa união entre poesia e música quando escolhe abrir o filme com Beatrice recitando a canção “Sigh no more”, que, na peça, só aparece no final do segundo ato. Temos os primeiros versos escritos na tela para o espectador, com a transferência para a imagem de Beatrice lendo para os presentes, acompanhada pelos acordes de um violão tocado pelo Frei, que vemos em cena, e que ganha a adição do som de um violino fora de cena. A melodia é suave e já postula o tema da trilha principal que recorrerá em arranjos diferentes durante todo o filme. O próprio esquema de rima escrito por Shakespeare sugere uma musicalidade. As rimas se apresentam em ABABCCDCD EFEF, facilitando e até mesmo sugerindo a construção de uma melodia. Eis a letra da canção: Sigh no more, ladies, sigh no more Men were deceivers ever, One foot in sea, and one on shore, To one thing Constant never. Then sigh not so, But let them go, And be you blithe and bonny, Converting all your sounds of woe Into Hey nonny, nonny. Sing no more ditties, sing no more, Of dumps so dull and heavy. The fraud of men was ever so, Since Summer first was leafy. Then sigh not so, etc. (II. 3. 60-73) No filme, após receber a notícia da chegada da tropa a Messina, os habitantes, as moças em especial, correm para se arrumar, enquanto os soldados se banham nas fontes da cidade. A correria de tais cenas é intercalada com tomadas das moças e dos rapazes e acompanhada pela trilha inicial, que ganha a presença e a intensidade de mais instrumentos musicais, com destaque para os instrumentos (metais) de sopro. A escolha de destacar os metais de sopro e o ritmo aumentado da música acrescentam dramaticidade e, ao mesmo tempo, aludem à natureza militar daqueles que retornam. O filme também apresenta escolhas interessantes para suas trilhas incidentais. Quando temos os pares românticos em cena, como Cláudio e Um panorama da música em Muito barulho..., p. 433-441 437 Hero, podemos ouvir a recorrência do tema em uma melodia suave com predominância de instrumentos de corda. Quando Don John, o grande vilão da história, aparece em cena, a trilha incidental muda para uma variação sombria com violinos e percussão, com rupturas de melodia através de sons fortes e destoantes, dando a impressão de um som “sujo”, refletindo as intenções do personagem. Durante o baile de máscaras, temos uma música com tempo rápido e marcado no estilo tarantela. Além disso, alguns movimentos bruscos feitos pelos personagens também são acompanhados de marcações musicais na trilha incidental como, por exemplo, o forte toque da percussão marcando movimentos de Don John e efeitos com violino que acompanham Benedick, protagonista da peça e um dos soldados do Príncipe Don Pedro. Assim, no geral, a música é um elemento que, ao mesmo tempo, reflete e estabelece a atmosfera dos acontecimentos do filme. O músico Patrick Doyle faz o papel de Balthasar, um músico da companhia de Don Pedro. Balthasar se junta aos músicos da cidade e canta a canção “Sigh no more” para entreter o Príncipe e seus amigos. Nesse momento, o espectador percebe que ele canta o poema recitado por Beatrice no ritmo da melodia tocada no início do filme, unindo definitivamente verso e música. Tal momento propicia um elemento de comédia carregado de ironia, pois, quando Balthazar termina de cantar, o príncipe elogia sua performance e Benedick, papel de Kenneth Branagh, escondido entre as árvores, comenta consigo mesmo e com o espectador que se um cão tivesse uivado daquela forma, eles teriam enforcado o animal. Além da ironia explícita do comentário de Benedick, o espectador também pode apreciar a ironia de saber que se trata do diretor do filme comentando sobre a performance do responsável pela música do filme. Contudo, tal incidente também pode ser lido como um comentário de valor, comparando “o original” com sua forma dada pelo intérprete. Então, seria como se a “tradução” feita por Doyle das palavras escritas por Shakespeare estivesse sob julgamento. De acordo com Flávio T. Barbeitas, Em literatura, especialmente em poesia, esta mesma ideologia que mitifica a obra, atribuindo-lhe os predicados da perfeição e irretocabilidade, coloca o autor numa relação de extrema superioridade em relação ao tradutor, este sendo considerado um elemento secundário, um mal necessário ou mesmo um traditore (2000, p. 93). 438 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 Assim, partindo desse ponto de vista que mitifica o que é considerado original, adaptações podem ser vistas como “traduções”, o que as coloca próximas de “traições” pois ocupam o lugar de obras secundárias, falhando em corresponder às expectativas do original, simplesmente por ser algo além dele. Contudo, Shakespeare fornece um campo de interpretação ainda mais amplo. Devemos lembrar que, apesar de Shakespeare ter essa aura de originalidade, o Bardo também era um grande adaptador. Então, o comentário de Benedick sobre a performance de Balthasar, também presente na peça, pode ser interpretado como um comentário do próprio Shakespeare sobre o ato de se apropriar e modificar o que é considerado original. Ainda de acordo com Barbeitas, Ora, o tradutor, considerando-se, então, o texto, como um fazer-se permanente e infinitamente múltiplo, não pode mais ser tomado como um traditore [...]. O tradutor passa a ser, isto sim, um copartícipe do texto, numa visão que considera toda tradução, a rigor, como uma interpretação do original, ou melhor ainda, como a escritura de uma determinada leitura/interpretação da obra. (2000, p. 94) A partir dessa visão do texto como algo orgânico e dinâmico, traduções e adaptações fazem parte de uma teia partindo do original e, de certa forma, indistinta de seu ponto de partida. Branagh, como grande conhecedor de Shakespeare, aproveitou o ensejo para inserir tal comentário à sua maneira, fazendo-nos refletir sobre o papel do tradutor e do adaptador tanto no âmbito musical quanto em outras áreas, como a da adaptação fílmica, por exemplo. Além de promover a reflexão sobre o papel do adaptador, Branagh potencializa o uso da música em seu filme através de suas escolhas e sua performance para o personagem Benedick. Seguindo a orientação deixada por Shakespeare, Branagh mostra Benedick como um solteiro convicto que condena o amigo, Cláudio, que antes gostava mais da música que incita a atividade militar e que agora, depois de se apaixonar por Hero, prefere ouvir música mais suave. Segundo Benedick, Cláudio era um homem que falava de forma clara e direta ao ponto; mas depois de se enamorar, Cláudio se volta para a ortografia e suas palavras parecem um banquete de pratos estranhos. Tal banquete linguístico pode ser visto como o uso de uma linguagem mais poética em contraste com a “prosa Um panorama da música em Muito barulho..., p. 433-441 439 do dia a dia”. Convencionalmente, a linguagem poética poderia ser vista como algo que é próximo ao amor. Sendo assim, a poesia, forma literária que se aproxima da música, promove a associação entre música e sentimento. Quando Cláudio, acreditando que sua amada Hero está morta pela humilhação injusta sofrida durante seu casamento, vai prestar homenagem em frente ao túmulo da moça, ele recita um poema em forma de retratação. Após sua homenagem, o texto Shakespeariano indica que a canção “Pardon, goddess of the night” deve ser cantada pelos presentes. A letra da canção se apresenta como segue: Pardon, goddess of the night, Those that slew thy virgin knight, For the which, with songs of woe, Round about her tomb they go. Midnight, assist our moan, Help us to sigh and groan Heavily, heavily. Graves, yawn and yield your dead, Till death be utterèd Heavily, heavily. (V. 4. 12-21) O filme de Branagh segue tais direções durante a cena e, ao final, ao invés do coro dos presentes, somente o músico Patrick Doyle, no papel de Balthazar, canta tristemente a canção enquanto Cláudio, interpretado pelo ator Robert Sean Leonard, cai de joelhos, aos prantos. Como na peça de Shakespeare, Cláudio é incapaz de cantar a canção. Retomando a associação entre música e amor, podemos interpretar a incapacidade de Cláudio de cantar a canção como um reflexo da morte de seu amor. Em outras palavras, já que o soldado pensa que Hero está morta, apesar de recitar um poema como homenagem e retratação, mostrando que ainda ama a jovem, a morte de sua amada silencia seu canto e o transforma em pranto, cabendo a Balthazar interpretar a canção solene. Em outro momento do filme, enquanto tenta “cantar” versos que fez para sua amada Beatrice, Benedick testa, sem sucesso e em tons desafinados, diferentes tons musicais para os seguintes versos, bem conhecidos na época de Shakespeare: 440 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 The god of Love, That sits above And knows me, and knows me How pitiful I deserve-- (V. 2. 26-9) Ele comenta sua própria dificuldade de fazer versos por sua dificuldade em encontrar rimas adequadas. Ele começa a classificar as rimas que consegue fazer entre inocente, difícil e incoerente. Ao colocar o personagem para admitir sua dificuldade com rimas (como está no texto shakespeariano) e também em variar entre diferentes tons musicais, Branagh nos mostra que Benedict ainda está tentando encontrar sua própria voz diante daquele novo sentimento, o amor. Como resultado, podemos interpretar a dificuldade de Benedick em transformar seu sentimento em poesia como uma dificuldade em admitir que foi tomado por um sentimento que ele repudiava. Ao final da peça, quando todos os conflitos se resolvem e Benedick finalmente aceita o sentimento que tem por Beatrice, é ele quem clama por música. No filme, não é diferente. Benedick ordena que se toque música e, novamente, temos a execução do tema principal do filme, a versão musical do poema “Sigh no more”, por orquestra e coral, enquanto todos dançam e fazem rodas, envolvidos por uma atmosfera alegre e de comemoração. Finalmente, o amor pode ser celebrado de forma completa e isso se reflete na grandiosidade musical da celebração final. 3. Conclusão A versão cinematográfica de Muito barulho por nada, dirigida por Kenneth Branagh, emprega o recurso musical de forma potencializada. A música serve como marca para o caráter e as ações dos personagens, direcionando a visão do espectador em relação aos acontecimentos. Além disso, o recurso musical convida o espectador a refletir sobre o papel do adaptador; de certa forma, eles próprios podem se ver como parte integrante do processo de adaptação, pois, como Benedick julga a interpretação de Balthazar, são eles que apreciam o produto de uma adaptação e julgam o responsável pela obra. Por fim, a música no filme também serve como um índice da situação dos personagens em relação ao reconhecimento de sentimentos e às mudanças. Um panorama da música em Muito barulho..., p. 433-441 441 A união final entre verso e música e sua execução grandiosa acompanhada de dança reflete a união dos casais do filme, principalmente os que pareciam totalmente opostos (Beatrice e Benedick), reforçando a relação estreita entre literatura e música. Portanto, em Muito barulho por nada, de Kenneth Branagh, a música não é um simples acessório do filme e sim uma participante ativa de todo o seu conjunto como arte, favorecendo o pensamento crítico, relacionado ao ato da interpretação, e auxiliando na construção de sentido. Referências BARBEITAS, F. Reflexões sobre a prática da transcrição: as suas relações com a interpretação na música e na poesia. Per Musi. Belo Horizonte, v. 1, p. 89-97, 2000. MUITO barulho por nada. Direção: Kenneth Branagh, Produção: Kenneth Branagh e Stephen Evans. Reino Unido: BBC Films, 1993, 1 DVD. SHAKESPEARE, W. Much ado about nothing. Editado por Peter Holland. New York: Penguin Books, 1999. WOLF, W. The musicalization of fiction: a study in the theory and history of intermediality. Amsterdam: Rodopi, 1999.