A reinvenção da Paisagem. Construção de conceito na imagem

Transcrição

A reinvenção da Paisagem. Construção de conceito na imagem
A REINVENÇÃO DA PAISAGEM A CONSTRUÇÃO DE CONCEITO NA IMAGEM FOTOGRÁFICA PÓS-MODERNA
MICHELE PETRUCCELLI PUCARELLI1
Doutorando em Artes Visuais – PPGAV – UFRJ
Linha de Pesquisa: Imagem e Cultura
Resumo:
O intenso crescimento urbano e aceleração das imagens e informações nas últimas
décadas provocaram alterações de percepção temporal e espacial que deixaram as
grandes cidades opacas e bloqueadas aos olhares desse todo que as envolve.
Todavia, se esta opacidade bloqueia e nubla nossa visão, cabe ao artista recuperar o
olhar desta paisagem que nos envolve e reinventar narrativas visuais. Mas que tipo de
imagem ultrapassaria o lugar comum das mídias dominantes, que fez as imagens
ficarem sem espessura e nos daria conta dessa tradução? Um dos caminhos
possíveis estaria na substituição da epifania triunfal do sentido pela epifania silenciosa
do objeto e uma das apostas desta prática se encontra nas imagens do fotógrafo
Andreas Gursky, que reverberam influências ao provocarem rupturas, deslocarem
sentidos e forçarem os limites rumo às novas fronteiras visuais.
Palavras chaves
Fotografia, pós-modernismo, cidade, paisagem, Gursky.
ABSTRACT
The intense urban growth and acceleration of the images and information in recent
decades led to changes in perception of time and space that let the big cities opaque
and locked eyes with all that this involves. However, if this opacity blocks and clouds
our vision, it is for the artist to recover the look of this landscape that surrounds us and
reinvent visual narratives. But what kind of image would go beyond the commonplace
of mainstream media, which did get images without depth and would account for this
translation? One way would be possible to replace the triumphant epiphany epiphany
of meaning by silent object and one of the bets of this practice are the images of
photographer Andreas Gursky, which cause disruptions to the reverberate influences,
travel directions and forcing the boundaries towards the new visual boundaries.
Key-words
Photography, postmodernism, city, landscape, Gursky.
INTRODUÇÃO
O ininterrupto crescimento urbano e a intensa aceleração de imagens e
informações das últimas décadas provocaram alterações de percepção
temporal e espacial que, por sua vez, afetaram as noções de memória pessoal
e cultural na contemporaneidade. Vivemos ainda imersos em meio a
promessas e incertezas de conceitos deste momento histórico que se estende
entre uma era moderna e o que se multiplica em definições do que venha a ser
uma era pós-moderna. Contudo, também estamos mais conscientes das
promessas não cumpridas de um modernismo que se projetava para um futuro
impregnado das ideologias de um progresso desconectado de antigas
tradições.
Como resultado desta imersão, testemunhamos um crescente ceticismo
da ideia de futuro e um retorno nostálgico da ideia de passado. Movimento
crescente em uma medida paradoxal entre o aumento da quantidade de dados
armazenados virtualmente e a noção de que estes dados ainda não têm
garantias de longevidade. E assim, à deriva entre memória e esquecimento,
sentidos de continuidade e descontinuidade, a velocidade da cidade ampliou
suas transformações em meio a um caos urbano sobrecarregado de poluições
visuais e sonoras, que deixaram as grandes cidades opacas e bloqueadas aos
olhares desse todo que as envolve.
Todavia, se esta opacidade bloqueia e nubla nossa visão, cabe ao
artista recuperar o olhar desta paisagem que nos envolve e reinventar
narrativas visuais que ultrapassem a mera descrição. Uma de suas missões é a
de revelar o que não se consegue mais avistar a nossa frente, e assim fazer
ver o que ainda é invisível. Enfim, resgatar de uma suposta imersão as
imagens que foram envolvidas num turbilhão de aceleração que tudo envolveu
as grandes cidades ocidentais em sua pulsão globalizante. Contudo, que tipo
de imagem ultrapassaria essa síndrome da aceleração progressiva das mídias
dominantes, que fez as imagens ficarem sem espessura e nos daria conta
dessa tradução?
Segundo Jean Baudrillard um dos caminhos possíveis estaria na
substituição da epifania triunfal do sentido pela epifania silenciosa do objeto e
suas aparências. Para tanto se torna necessário uma subtração indefinida,
retirando dela não só o movimento, mas também o peso, o perfume, a
profundidade, o tempo, o espaço e, por fim, qualquer sentido. Para o autor, o
milagre desta “imagem pura”, estaria mais próximo da fotografia do que de
qualquer
outra
expressão,
visto
que
é
a
“objetiva
fotográfica
que,
paradoxalmente, revela a inobjetividade do mundo” (BAUDRILLARD, 1999,
p.143). Graças, acreditamos, ao jogo duplo entre a pureza e artificialidade de
sua natureza e, também, segundo Barthes, porque, “... foi ela que teve a
capacidade de transformar a ‘incultura’ de uma arte outrora mecânica - agora
digital, na mais social das instituições.” (BARTHES, 2009, p. 26).
Dentro desse contexto, as imagens do fotógrafo Andreas Gursky se
destacam e reverberam influências ao provocarem rupturas, deslocarem
sentidos e forçarem os limites rumo às novas fronteiras visuais. Seu trabalho
atesta a confluência de dois olhares num único. Ao mesmo tempo o perto e o
longe, promovendo a interação dos duplos que se multiplicam. Duplos entre a
contenção formal e as várias combinações tecnológicas para se alcançar o
resultado final. Duplos ainda, entre as mensagens icônicas codificadas e as
não-codificadas, e entre signos denotativos e conotativos.
E assim como alguns dos mais relevantes processos artísticos da
história
da
sociológicos,
arte
onde
revelavam
a
pontos
imagem
de
antecipava
entrelaçamento
criticamente
conceituais
tendências
e
de
comportamento da sociedade, suas obras também apresentam indícios nessa
direção. Suas imagens apresentam um fluxo de temporalidades múltiplas entre
passados-presentes e futuros-porvir, que além de se relacionarem com as
fraturas de uma época dividida entre as promessas dos futuros modernistas e
os passados presentes pós-modernistas, talvez estejam a produzir o que
acreditamos ser uma nova construção na representação visual da paisagem
urbana contemporânea.
OLHAR DE TÃO PERTO E DE TÃO LONGE AO MESMO TEMPO
Gursky explora as grandes paisagens sob um olhar renovado 2,
Com claras estruturas de repetição. Suas imagens destilam críticas conceituais
ao comportamento consumista da sociedade contemporânea, mas também
estimulam reflexões sobre a composição das grandes cidades desta era
contemporânea. Prédios gigantes e toda uma miríade de pessoas que ali
habitam e que nos são apresentadas numa perspectiva que impressiona pela
reunião do rigor formal técnico das imagens com uma aproximação de detalhes
que nos remete para cenas que normalmente só detectaríamos ao observar de
muito perto este tipo de cena3. Seus personagens humanos nunca surgem
como protagonistas, mas ali estão como indícios ou vestígios. Uma presença
feita muitas vezes de ausência. A multidão dos humanos está presente, mas
não se vê. O indivíduo enfim não lhe interessa, mas sim a espécie humana e
seu ambiente. Seu olhar enfim apreende um real para libertá-lo de qualquer
princípio de realidade, propiciando assim o encontro com uma nova potência.
Para Gursky a fotografia não é uma mídia da representação, mas sim
uma mídia de construção de realidades renovadas.4 Para tanto se remete muita
das vezes a ideia do quadro branco da pintura, assim como por procurar
visadas que, por vezes, remontam a pintura medieval com planos achatados
questionando a naturalidade de uma visão baseada na perspectiva exata a
qual somos envolvidos desde o Renascimento italiano. E talvez sejam estas
características que ajudem a entender tanto a admiração como respeitabilidade
e alto valor de suas imagens no mercado de arte. A fotografia, 99 cent II, de
1999, alcançou a cifra de 3,35 milhões dólares em leilão realizado em fevereiro
de 2007 na Sotheby’s e mais recentemente, em outubrode2011, a obra
RheinII5, de 1999, foi vendida pela impressionante cifra de quatro milhões de
dólares, se transformando na mais cara fotografia de todos os tempos – e
dando ainda mais reverberação a um olhar diferenciado que abriu novos
caminhos para se observar as transformações das cidades na pósmodernidade.
Transformação estas que, na atualidade, frente à velocidade fugaz das
imagens típicas da mídia televisiva e cinematográfica, junto à multiplicação das
mesmas nos levam para um vazio onde não sabemos se ai ficaremos ou se
dentro dela mesma estaria a possibilidade de encontro com algum tipo de
imagem que recupere o valor de aura que se esvaiu. Afinal, são exatamente as
imagens de arte que procuram pela dissolução das certezas e dos lugares não
questionados. São elas que estimulam o desafio dos sentidos, assim como
emanam uma experiência que lhes dá corporeidade e as diferencia do lugar
comum. Mas como apresentar e fazer repercutir essa imagem em meio às
paisagens bloqueadas nas grandes cidades?
PASSADOS PRESENTES E FUTUROS PORVIR NAS CIDADES
Nos últimos vinte anos inúmeros museus e monumentos foram erguidos
nas grandes cidades refletindo de modo sintomático o quanto a emergência da
memória se transformou num dos fenômenos culturais mais surpreendentes
das sociedades ocidentais. Segundo Andreas Huyssen, os discursos de um
novo tipo de memória surgiram pela primeira vez no ocidente em 1960 no
rastro da descolonização e de novos movimentos sociais em busca por
histórias revisionistas (2001). Mas a explosão efetiva desse tipo de emergência
ocorreu a partir de 1990 com a proximidade dos eventos de rememoração em
função do cinqüentenário do holocausto, em 1995. Dos vários monumentos
que foram erguidos ou restaurados, o Holocaust Memorial Museum em
Washington – inaugurado em 1993, foi o que mais estimulou o debate sobre a
americanização do Holocausto.
Contudo, essa suposta americanização do holocausto em muito
ultrapassou as fronteiras americanas e ampliou a questão para uma dimensão
global, que traduziu uma mudança de foco de uma das características
marcante da cultura modernista - os futuros presentes, para um processo de
fascínio pelos passados presentes. Uma das razões possíveis para este
revigoramento dos museus e dos monumentos pode ter relação direta com
aquilo que as principais mídias dominantes da atualidade, a televisão e as telas
dos computadores conectados à internet não oferece: a materialidade do
objeto. Entretanto, de modo paradoxal, o principal modo de estes monumentos
ampliarem o numero de visitações e de serem reconhecidos é através da
imagem, o que nos faz retornar ao ponto da fragilidade imaterial e a questão do
que não é dito pela imagem, ou seja, a invisibilidade.
Esta invisibilidade, porém, não é algo que esteja para além do que é
visível, mas sim algo do qual não mais se consegue ver, devido ao excesso e
ao
modo
como
as
cidades
foram
se
fechando
em
si
mesmas.
Consequentemente, revelar esta invisibilidade está diretamente ligado a ideia
de voltar a tornar possível a visão do que se escondeu. Mas como fazer o olhar
recuperar a paisagem que está retida?
Segundo Nelson Brissac, um dos
caminhos possíveis está em narrar a cidade sem ser mais pela descrição. Para
o
autor a
descrição
estaria substituindo a paisagem, com tudo se
transformando em símbolos, como figuras de coisas que significam outras
coisas. Mas tudo a serviço de mapeamentos descritivos que não nos dizem o
que é a cidade realmente.6
Dentro deste contexto, surge uma nova ideia de cidade e suas imagens
que ocupam um lugar decisivo para a memória. A rememoração dá forma aos
nossos elos com o passado e os modos de rememorar nos definem no
presente, como descreveu Huyssen7, Contudo não podemos esquecer quão
escorregadia e suspeita pode ser a memória seja esta pessoal ou coletiva –
como aprendemos com Freud e Nietzsche. Toda memória é sempre afetada
pela negação, pelo esquecimento, por repressões, mas também pelos jogos de
poder para atender a necessidade de se perpetuar algum tipo de dominação.
Logo não se deveria ter na proposta das imagens de monumentos uma
conexão direta com algum significado, pois estes estão sempre a serviço de
um poder dominante que em breve mudará de mãos, assim como seu
significado e, consequentemente, suas inserções no real.
Portanto, se o lugar da memória numa determinada cultura é fruto de
uma
rede
complexa, torna-se decisivo que a imagem mantenha um
distanciamento para liberar sua melhor potência, pois afinal, talvez seja
exatamente na subtração indefinida da imagem fotográfica que se encontre o
caminho para a dimensão que falta ou que nos foi interrompido o acesso. Mas,
a suposta imagem pura que alcançaria a epifania silenciosa do objeto e de
suas aparências requer atenção, pois se como aqui defendemos, as imagens
de Gursky ajudam a revelar um novo modo de se ver as cidades, por outro, não
podemos nos esquecer de que esses olhares estão sempre envoltos com o
esquecimento
no
funcionamento
da
memória
em seus processos de
reordenação de nossa história.
Todavia, nada disso contém o excesso que nos rodeia, e as cidades
estão cada vez mais imersas em caos e poluição - de todos os aspectos.
Então, como questionar, comentar e refletir a partir de imagens, essas
alterações de informações que se multiplicam e se esgotam? Observamos já
há algum tempo, inúmeras críticas a todo um desenvolvimento sócioeconômico globalizante, mas toda crítica racional não dá conta da resistência
ao ruído, à palavra e ao rumor do silêncio que somente a fotografia possui. E
nesse sentido é um privilégio adentrar nas possibilidades oferecidas por uma
foto diferenciada conceitualmente e as imagens de Andreas Gursky nos
ofertam a passagem do mundo para a imagem numa potência que poucas
imagens alcançam, talvez por conseguirem realizar o jogo essencial de liberar
o real do seu princípio de realidade. 8
E por estes aspectos aqui brevemente apresentados acreditamos na
possibilidade de estarmos diante de uma substancial transformação no modo
do olhar ocidental, que remonta muitos anos de nossa história. E a hipótese
aqui levantada supõe que a reinvenção da paisagem esteja inserida na quebra
de paradigma fundamental da história do olhar. Olhar este que agora se
encontra fraturado em meio aos excessos urbanos de poluição visual, e que
por isso não possa mais ser fruto de uma só visada, mas sim da conjunção de
vários elementos que reúnem as possibilidades tecnológicas que permitem
novas construções visuais tendo na fotografia não mais uma mídia de
representação, mas sim de construção desta realidade fraturada, se valendo
ainda de ampliações monumentais que revelem ao mesmo tempo o jogo duplo
entre o detalhe que se esconde no micro e o entendimento do todo que só é
possível na visão macro.
Notas
1
Michele Petruccelli Pucarelli é Doutorando em Artes Visuais EBA-PPGAV-UFRJ e Mestre em
Comunicação e Cultura ECO-UFRJ. Professor no curso de Pós-Graduação em Fotografia da
Universidade Cândido Mendes e na Escola de Fotografia Ateliê da Imagem. Foi professor de
Fotografia na ECO-UFRJ e na Unicarioca. Suas fotografias, ensaios e trabalhos podem ser
vistos no sitio: www.mickele.net
2
Ver caderno de fotos em Anexo 01, figura 1.
3
Fazendo-nos lembrar das grandes pinturas históricas do sec. XIX.
4
BURGI, 2007, 45.
5
Ver em Anexo 01, figura 2.
6
PEIXOTO, 1996, p. 37.
7
HUYSSEN, 2000, p. 69.
8
Mas, apesar da importância internacional e das influências que Andreas Gursky
reconhecidamente multiplica pelo mundo, seu trabalho ainda é pouco debatido no Brasil. Afinal,
é no mínimo curioso lembrar que uma de suas fotos mais famosas e valorizadas no mercado é
a do edifício Copan em São Paulo, de 2002 – um dos símbolos da cidade e uma das obras
mais ambiciosas de Oscar Niemeyer, com seus mil apartamentos e mais de 70 lojas. Ver em
Anexo 01, figura 3.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUMONT, Jacques. O olho interminável. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
BAUDRILLARD, Jean. A troca impossível. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999
______. De um fragmento ao Outro. São Paulo: Zouk, 2003
BARTHES, Roland. Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
______. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 2009
______. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007.
BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. ______ In: Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996.
BURGI, Bernhard Mendes. Gursky, Catálogo. Germany: Kunstmuseum Basel, 2007.
CAUQUELIN, Anne. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
______. Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes: 2005
GURSKY, Andreas. Architeture. Germany: Hatje Cantz Verlag, 2008
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
MEDEIROS, Rogério de. Jean Baudrillard - Enigmas e paradoxos da imagem na era
do simulacro. ____________. In: Revista Arte & Ensaios 15. Rio de Janeiro: Ano XIV,
número 15, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais • EBA/UFRJ,
2007
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: Senac, 2004.
SENNETT, Richard. O artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009.
______. Carne e pedra. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.
Revista Zum. Revista semestral de fotografia. Rio de janeiro: Instituto Moreira Salles,
2011.
ANEXO 01
Caderno de fotos
Fig. 01. Mayday V, 2006. Dortmund, Alemanha. 324 x 218 cm. Gursky, Andreas.
O impacto desta imagem com todos os andares muito bem iluminados e retratados
talvez ocultem a principal chave criativa da fotografia. Este prédio no mundo real tem
apenas 04 andares. Os 18 andares resultam de uma montagem digital feita de modo
naturalista, com rigor e precisão.
Fig. 2. Rhein II. 1999 320 x 260 cm. Gursky, Andreas.
Fig. 3. Copan, 2002. São Paulo. Brasil. 320 x 260 cm. Gursky, Andreas.