Pai e Zweig, de Sylvio Back

Transcrição

Pai e Zweig, de Sylvio Back
Convivência
Revista do PEN Clube do Brasil
2ª Fase - 1º Semestre 2012 - Número 2 - Rio de Janeiro – Brasil / ISSN 1518-9996
PAI E ZWEIG
Sylvio Back
Q
ue feliz coincidência: setenta e seis anos depois de Stefan Zweig
ter vindo ao Rio de Janeiro pela primeira vez a convite do PEN
Clube do Brasil, recém fundado, o único filme sobre a “vida
brasileira” dele, “Lost Zweig” (2004), acaba sendo a peça audiovisual
mais exibida e difundida no país em todas as mídias, ao longo de 2012,
assinalando os setenta anos de morte do casal Zweig em Petrópolis. A
exposição culminará em novembro próximo (de 21 a 25), com ciclo de
filmes em homenagem ao escritor programado pela Cinemateca
Brasileira, em São Paulo.
Com este depoimento, atualizado pelas circunstâncias do infausto
acontecimento, repertório existencial de anos de pesquisas, leituras,
realização e lançamento cinematográficos, sinto-me tolhido por uma
recorrente sensação, misto de tristeza e exaltação moral, de como a
liberdade poética presente no longa-metragem é uma irrecorrível
exegese biográfica.
Do começo: há mais de três décadas, melhor, em 1981, quando a
biografia de Stefan Zweig (1881-1942), “Morte no Paraíso”, de Alberto
Dines, ainda estava nas provas, formatei mentalmente a ideia do filme.
Ali se concentravam as investigações, com um notável toque e torque de
crônica policial, ficção, história das mentalidades da Europa entre
guerras, filosofia, especulação anedótica e, acima de tudo, uma
incontida paixão pelo trágico autor de “Brasil, País do Futuro”.
Para mim, naquele momento (e do qual jamais me recuperei),
houve um amplo feixe de fatos e atos confluentes. Era como se o
redivivo escritor judeu austríaco almejasse encontro com o desejo de
exorcismo memorial do cineasta, filho de judeu húngaro, na insondável
ânsia de pai e Zweig se anteciparem ao trágico destino. “Lost Zweig”,
lost Back!
Stefan Zweig, curiosa e estranhamente, comecei a amá-lo
nos anos 1950/60 antes pelo cinema baseado na sua obra. Filmes
fundadores que viraram cults e que continuam sendo exibidos na TV e
disponíveis em DVD: “Carta de uma Desconhecida” (“Letter from an
Unknown Woman”) (1948), do mestre franco-alemão, Max Ophüls, um
canto à sensibilidade feminina, e “Até o Último Obstáculo”
(“Schachnovelle”) (1960), de Gerd Oswald, realizador americano de
origem germânica, este inspirado no livro homônimo (literalmente,
“novela do xadrez”, em alemão) – brilhante metáfora do totalitarismo
que Zweig terminou horas antes de se suicidar em Petrópolis no dia 23
de fevereiro, na semana seguinte ao Carnaval de 1942.
Só mais tarde pus-me a ler assimetricamente a sua multifacética
estante de mais de cinquenta títulos. Nessa época ignorava tanto o avatar
paterno, como a própria dupla tragédia zweigueana (Zweig, 60, se mata
com a segunda esposa, Lotte, de apenas 33 anos), cuja sobrevida como
autor levei anos creditando ao gesto terminal. Como de resto, por
oposição, muitos de seus fiéis leitores ainda hoje lhe desconhecem a
automorte. Stefan Zweig permanece graças à sua prosa límpida,
encantatória e psicologizante, à sua própria saga convertida em ficção,
pelas biografias poéticas em torno de figuras históricas polêmicas,
quando menos, perdedores de natureza. Mas, especialmente, pelo seu
pacifismo militante, vocação antimilitarista e humanista com uma
modernidade a toda prova.
Cinema é visibilidade; literatura – invisibilidade. De posse dos
direitos de “Morte no Paraíso”, em dois anos (1987/88) criei um
argumento visceralmente ficcional e escrevi solitário um primeiro
tratamento do roteiro de “Lost Zweig” – já dentro dos padrões e jargão
técnicos, com personagens definidos, enunciação das cenas e respectivos
diálogos. Alberto Dines, ao recapturar literariamente a saga dos Zweig,
envereda por um manancial de dados, noticiário de imprensa e
informações colhidas na própria obra do biografado, além do
testemunho de sobreviventes, sempre procurando ater-se a fatos que,
quando menos, poderiam ser comprovados.
O roteiro que deu no filme incursiona por outras paragens do real
e do imaginário. É quase um poema em prosa, uma reinvenção que
propositadamente se descola do registro cotidiano e, especulando,
adensa o que teria ocorrido na última semana de vida do casal StefanLotte, tanto em Petrópolis quanto no Rio de Janeiro. Quase como se
“Lost Zweig” estivesse sendo conjugado o tempo todo no futuro do
pretérito, algo assim como se lê no genial romance “Angústia”, de
Graciliano Ramos.
De qualquer forma, estou convicto de que quanto maior a
traição ao livro que inspira um filme – melhor para ambos, escritor e
cineasta. “Ambos se mantêm de pé sozinhos” – como ouvi do escritor
catarinense, Guido Wilmar Sassi (1922-2003), após assistir ao meu
filme, “A Guerra dos Pelados”, em 1971, adaptação cinematográfica do
seu original romance, “Geração do Deserto” (1964), que tematiza a
Guerra do Contestado. Ouso dizer que, após a projeção de “Lost
Zweig” no Festival de Brasília, era como se Alberto Dines alguma
tivesse ouvido a frase lapidar de Sassi.
Desde o início conjecturei “Lost Zweig” falado numa língua
estrangeira, que é como se comunicava o casal Zweig com os exilados
europeus e com os brasileiros que os frequentava. A babel do cotidiano
ia desde o iídiche ao francês, passando, claro, pelo alemão (Zweig,
judeu austríaco; Lotte, judia polaca que sabia alemão) e, por fim, o
inglês, que a partir da II Guerra Mundial substituiu o francês como a
língua da diáspora e dos perseguidos pelo nazi-ifascismo. Num primeiro
momento, o alemão veio à tona, mas seria pouco provável encontrar no
Brasil atores com a suficiente amperagem dramática para defender os
personagens que compõem a trama do filme. Com um inesperado
agravante: o alemão falado na Áustria difere em sotaque do alemão da
Alemanha; quase como o que diferencia o nosso “brasileiro”
do português, de Portugal. Nessa, o inglês acabou se impondo diante da
existência de inúmeros atores e atrizes brasileiros que dominam o
idioma.
Com um tratamento acabado em mãos, início dos anos
1990, pedi a um tradutor nascido na Inglaterra que o vertesse ao inglês.
Estava crente que, escrito na língua hegemônica, as possibilidades de
produção tanto nos Estados Unidos como na Europa seriam
incomensuráveis. Ledo engano. As rejeições, incompreensões e
negativas de possíveis investidores de ambos os lados do Atlântico
foram se acumulando, seja pelo mote do suicídio (principalmente, ainda
um tabu), seja por um antissemitismo disfarçado, e ainda, por se tratar
de uma produção brasileira. Produtores privados, que se declaravam
fissurados por Stefan Zweig, e os organismos de financiamento
estatal da Alemanha, França, Áustria, não escondiam um ódio
congênito aos Estados Unidos, além do fato de preservarem o idioma
nacional como uma loba cuida dos seus. Por que, então, investir num
roteiro com tema maldito, depois, escrito e falado em inglês, e ainda por
cima, a ser rodado no Brasil?
Sim, esse aparecia como o maior obstáculo que se antepunha à
filmagem do roteiro. Mas havia outro, embutido nele: o inglês a que fora
convertido. Isto não é inglês, nem da Inglaterra, nem dos Estados
Unidos – me disse, sem meias palavras, o roteirista irlandês, Nicholas
O’Neill, que conheci casualmente no Rio de Janeiro em 1995 –, horas
depois de tê-lo lido. Ao descobrir que o personagem também o
interessava, incorporei o engenho dele e, juntos, reescrevemos o roteiro
diretamente para o inglês. Até então, o inglês do roteiro derrotara o
roteiro em inglês. E, no mesmo tom de franqueza, nas vezes que
trabalhamos juntos em Dublin e aqui no Rio de Janeiro, pedi a O’Neill
que ficasse no inglês britânico e não no inglês do país, inimigo histórico
da Albion, a Irlanda. Só me convenci quando produtores americanos
elogiaram os diálogos, cuja expressividade idiomática e o acento sempre
balança, segundo eles, com sucesso, entre os Estados Unidos e a GrãBretanha. Até chegarmos a esse ponto, perdemos a contagem de
reescrituras que o roteiro exigiu para que estivesse em condições de ser
a bússola das filmagens.
No vácuo entre o processo de elaboração do roteiro, um feliz
acaso (que, afinal, sempre preside a criação!) como o que me levou ao
talento do irlandês, Nicholas O’Neill. Em 1992, nas comemorações dos
cinquenta anos de morte de Stefan Zweig, o Instituto Goethe, do Rio de
Janeiro, realizou um simpósio sobre a atualidade moral e literária do
escritor. Desse debate nasceu em 1995 o não-premeditado filme de
média-metragem, “Zweig: A Morte em Cena” (43 min.), para a TV
alemã, 3sat, que o transmitiu, simultaneamente, à Alemanha, Áustria e
Suíça, durante a Feira do Livro de Frankfurt. Um pequeno filme que
acabou se transformando numa espécie de ensaio geral do futuro longametragem, realizado nove anos depois.
Entrevistando os macróbios amigos contemporâneos de Stefan
Zweig (entre eles, o editor, Abraão Koogan; o advogado, Samuel
Mallamud e sua esposa, Anita; o tradutor, Elias Davidovich, o
colecionador de arte, Gerhard Metsch) – consegui me livrar da tentação
de encenar uma mera biografia factual do escritor. Afinal, toda biografia
é quase sempre uma fraude anunciada, quando não hagiografia pura e
simples, aliás, uma praga que atualmente corrói moral e
ideologicamente tanto o cinema de ficção como o documentário
brasileiros.
E assim surgiu no papel e no celuloide um Stefan Zweig (e uma
Elizabeth Charlotte Altmann) inteiramente reinventado do que até então
se escreveu e se fabulou sobre ele. Ou seja, um perfil que muitas vezes
não encontra eco, exatamente, nas biografias europeias e até em “Morte
no Paraíso”, nem coincide com a imagem asséptica que a própria
Áustria “oficial” construiu dele. E até desmonta mitologia que se grudou
no autor de “Brasil, País do Futuro”, de que o seu suicídio foi um ato de
covardia, antes que um protesto político-existencial.
Entre outros insights, junto às minhas próprias pesquisas e da
decodificação desses depoimentos gravados em Petrópolis e no Rio de
Janeiro, um inusitado “sótão de segredos” – eu definiria, se abriu
desvelando um belo tesouro escamoteado em torno e sobre o dia-a-dia
(e da morte) do escritor e de sua mulher. Desde o nebuloso visto de
permanência concedido pela ditadura Vargas, de nítido corte antissemita e a
tentativa de salvar seus compatriotas perseguidos pelo nazismo, à tensão
entre as recordações da “dourada era da segurança” europeia pré-Hitler e
a nostálgica ilusão de reencontrá-la no Brasil, do drama conjugal (as
ligações afetiva e intelectual com a ex-mulher) às aventuras eróticas e à
sua bissexualidade (muitas vezes confundida com homossexualismo),
sempre omitida ou não intuída pelos seus biógrafos. Aliás, chave e clave
para a compreensão de inúmeros de seus personagens, e para isso, basta
ler alguns de seus romances, como “Confusão de Sentimentos”, e
biografias, como a do dramaturgo suicida, Heinrich von Kleist, por
exemplo.
Alguém já escreveu que a grande diferença entre ficção e
realidade é que a ficção tem que fazer sentido. Por incrível que possa
soar, Stefan Zweig e Orson Welles têm uma trajetória brasileira
quase comum. Quando nos anos de 1970 começaram a ser reveladas as
primeiras imagens do mitológico e inconcluso documentário, “It’s
All True” (“É Tudo Verdade”), de Welles, me deu um estalo. O diretor
de “Cidadão Kane” (por coincidência, o cinema de Petrópolis exibia o
filme no dia do enterro dos Zweig), que chegara ao Brasil em fevereiro
de 1942 sem um roteiro do que iria filmar, se inspirara em “Brazil, Land
of the Future”, lançado no ano anterior com grande sucesso nos Estados
Unidos.
Da desconfiança cheguei à certeza quando o famoso ator, Grande
Otelo que, aliás, estreou no cinema em “It’s All True”, me confidenciou
que Welles andava com o livro de Zweig debaixo do braço durante as
filmagens. O que por si só explica a bombástica declaração de
Welles, quando chegou ao Rio, de que precisava conhecer Stefan Zweig,
um “escritor sublime” – textualmente. Anos depois, vendo as cenas
restauradas de “It’s All True”, as suspeitas apenas se confirmaram.
Welles transmuta, imageticamente, Zweig do seu profético “Brasil, País
do Futuro”, cujo título virou epíteto que há setenta anos persegue a
pátria como um irrecorrível labéu, onde o futuro parece mesmo que
nunca chega, como diz personagem de “Lost Zweig”. Em vida ambos
jamais se encontraram. No filme promovo um inusitado encontro entre
esses dois gringos perdidamente apaixonados pelo Brasil.
Depois de assumir o livro, “Morte no Paraíso”, como, digamos,
plataforma de lançamento”, o roteiro de “Lost Zweig” entrega-se a uma
liberdade autoral e poética extremas, exatamente, na tentativa de
preencher, sintetizando, os inúmeros “buracos negros” que foram sendo
deixados sem resposta ao longo dos meses que o casal Zweig passou no
Brasil. Através deles, o filme traduz a famosa “ronda dos suicidas”, que
efetivamente ocorreu, daí a trama circular do roteiro, mesclando
passado, presente e a virtualidade do que poderia acontecer ou acabou
acontecendo.
Em outras palavras, “Lost Zweig” procura reimaginar o que
teriam sido os derradeiros dias e horas de Zweig e de Lotte antes da
decisão fatal. E toda essa dramática “viagem” é contada pelo próprio
“espírito” de Stefan Zweig, protagonista e presentificação de um gesto
que até hoje desperta incógnitas e assombro pela sua premeditação e
caráter emblemático.
Ainda que desça ao inferno existencial de Stefan Zweig e de
Lotte, o filme evita ir ao encalço de explicações ou justificativas,
também não condena o suicídio. Como o do meu próprio pai, que se
matou na Lapa, bairro do Rio de Janeiro, em 1950, com a mesma idade
de Zweig! Apenas lhe dá a dimensão ontológica e ética que a própria
decisão em si guarda. Porque o suicídio, enfim, por mais planejado ou
tresloucado que seja, é sempre a irrupção de um desejo quase erótico
instalado no íntimo da pessoa como se um vírus fora.

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