a hesitação e o estranhamento ante o maravilhoso

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a hesitação e o estranhamento ante o maravilhoso
Revista Icarahy
Edição n.04 / outubro de 2010
A HESITAÇÃO E O ESTRANHAMENTO
ANTE O MARAVILHOSO DA LITERATURA FANTÁSTICA
NAS FÁBULAS ITALIANAS DE ÍTALO CALVINO
Antonio Marcos Gonçalves Pimentel*
RESUMO: Este trabalho pretende analisar as estruturas narrativas de algumas das
fábulas italianas recolhidas por Ítalo Calvino (CALVINO, 1995) a partir dos
pressupostos construídos por Tzevetan Todorov (TODOROV, 2008) que definiriam,
pelo menos à guisa de uma introdução teórica, os conceitos de uma literatura fantástica
e seu componente ab lectore mais característico: a hesitação provocada pelo
estranhamento que a narrativa provoca no leitor, estranhamento esse causado pela
fissura entre uma referenciação à realidade do mundo conhecido e experimentado pelo
leitor (a nossa “realidade”) e uma referenciação a uma realidade não conhecida nem
experimentada por ele (a “realidade’ fantástica), cada uma com sua coerência interna e
seus conjuntos semióticos perfeitamente harmônicos e, portanto, compreensíveis, cada
um em seu mundo e somente em seu mundo; é o que poderíamos chamar de choque de
verossimilhanças. Escolheram-se textos que apresentassem os topoi mais comuns
presentes no estranho e no maravilhoso fantásticos (a morte, a bruxa, a fada, o herói, a
busca sagrada, os mortos-vivos, a metamorfose, entre outros), mas que, ao mesmo
tempo, abrem a possibilidade de uma semiose diversa e variada, não só pela
contextualização – no sentido bakhtiniano – em que elas foram escritas (ou registradas),
mas também pela própria significação particular que lhes é – ou pode ser – atribuída em
cada fábula. Também comentaremos brevemente a questão do maravilhoso medieval
apresentada por Jacques Le Goof (1995) que é de fundamental importância para
entendermos os porquês do estranhamento, ou de sua ausência, nas fábulas medievais,
tanto para o leitor quanto para os personagens.
Palavras-chave: 1. Teoria da Literatura; 2. Literatura Medieval; 3. Literatura
Fantástica; 4. Mirabilia; 5. Estranhamento.
*
Doutorando em Literatura Comparada da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua como professor
credenciado no Programa de Pós-Graduação lato sensu de Letras da UFF, lecionando Língua, Cultura e
Literatura Latina e desenvolve estágio de docência em Matrizes Clássicas nesta universidade.
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ABSTRACT: This study aims to examine the narrative structures of some of the Italian
tales collected by Italo Calvino (CALVINO, 1995) from the assumptions built by
Tzevetan Todorov (TODOROV, 2008) that defined at least by way of an introduction to
theoretical concepts of a fantastic literature and its most characteristic component ab
lectore: the hesitation caused by the strangeness that the narrative leads the reader, this
estrangement caused by the rift between a referral to the reality of the world known and
experienced by the reader (our "reality") and a referral to a reality not known or
experienced by him (the 'reality' fantastic), each with its own internal coherence and its
semiotic sets perfectly harmonic and, therefore, understandable, each in their own world
and only in his world, is what might be called a clash of likelihoods. The texts were
chosen to present the most common topoi in these strange and wonderful fantastic (the
death, the witch, the fairy, the hero, the sacred quest, the undead, the metamorphosis,
among others), but at the same time opening the possibility of semiosis diverse and
varied not only by the context - in the Bakhtinian sense - in which they were written (or
recorded), but also by the very particular meaning to them - or can be - allocated in each
fable. Also, briefly, will be commented on the issue of the wonderful (mirabilia)
medieval by Jacques Le Goof (1995) that is of fundamental importance to understand
the why of estrangement, or its absence, in medieval fables, both for the reader to the
characters.
Keywords: 1. Literary Theory; 2. Medieval Literature; 3. Fantasy Literature; 4.
Mirabilia; 5. Estrangement.
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Enquanto selecionávamos os textos para este artigo, percebemos que talvez se
estivesse percorrendo um caminho equivocado. Se nos propuséramos a identificar e
problematizar a questão do fantástico nos contos medievais e, sendo essas narrativas
curtas fábulas, não estaríamos forçosamente deslocando a semântica metafórica fabular
para um outro eixo literário da categoria do insólito? Em outras palavras: se a
hermenêutica da literatura fantástica não cabe numa literatura fabular, por serem as
fábulas narrativas em que o insólito, o fantástico e o maravilhoso são anulados ou
absorvidos pela finalidade metafórica primeira daqueles textos – pelo menos em
algumas linhas de raciocínio teórico –, então dever-se-ia buscar outro corpus onde o
fantástico não se confundisse com o metafórico nem com o alegórico, o que, aliás, era o
temor de Todorov em seu trabalho de categorização de uma literatura fantástica. E se
Todorov tinha esse temor de fazer do mundo fantástico medieval fonte de
estranhamento literário, Jacques Le Goff, citando-o, inclusive, vai mostrar, por
exemplo, que
[...] os vestígios da passagem dos dragões são quase imperceptíveis [nos textos medievais],
o maravilhoso perturba o menos possível a regularidade quotidiana; e provavelmente é
exatamente este o dado mais inquietante do maravilhoso medieval, ou seja, o fato de
ninguém se interrogar sobre a sua presença, que não tem ligação com o quotidiano e está,
no entanto, totalmente inserida nele (LE GOFF, 1990: 26).
De que Le Goff nos alerta, então, referindo-se à cultura medieval e sua visão do
maravilhoso? De que não há estranhamento, sem dúvida. E, se atentássemos somente
para Le Goff, teríamos que, por risco de contradição e paradoxo, mudar o eixo de nosso
trabalho, afinal, ainda segundo o medievalista francês,
No Ocidente medieval havia um termo correspondente [para o maravilhoso]. Em ambiente
culto era de uso corrente na Idade Média o termo mirabilis, que tinha mais ou menos o
mesmo sentido do nosso adjetivo. Contudo, há que sublinhar que os clérigos da Idade
Média, se quisermos ser precisos, não dispunham de uma categoria mental, literária,
intelectual, que seja exatamente sobreponível àquilo que nós chamamos o maravilhoso (LE
GOFF, 1990: 17).
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Concluímos, pois, que existe um viés muito claro que nos permite explorar o tema
que pretendemos. Ora, se a mentalidade medieval trabalhava o maravilhoso como fonte
de cristianização desse mesmo mundo maravilhoso – e estamos falando de um
movimento duplo, em que a cultura popular cria o maravilhoso, ou o recebe como
herança da Antiguidade - que é categorizado como prefiguração cristã pela elite
religiosa e depois é reabsorvido pela cultura popular como obra de Deus, autor único
dos mirabilia na Idade Média, então, em outras palavras, se existe o unicórnio, ele não
mais causará estranhamento por ter sido reconfigurado como mirabilia antecristã. Como
se isso não bastasse, segundo Le Goff, a permanência do maravilhoso na literatura
medieval, como a de cavalaria, seria uma forma de tentar preservar-se um mundo sóciopolítico-cultural da Alta Idade Média, mundo esse já em decadência ou estranhamento.
Se há todo esse movimento cultural em prol do não estranhamento do maravilhoso
na literatura medieval, restar-nos-ia evocar o dialogismo e até mesmo a Estética da
Recepção, chamando como testemunha a figura do leitor. Mas Zumthor tentará anular
nossa testemunha:
Contudo, esta definição [do maravilhoso] não pode ser aplicada ao maravilhoso medieval, cfr.
Zumthor, Essai de poétique médiévale, 1972, pp-137 e ss; de fato, quer se tratando do estranho
quer do maravilhoso, a definição de Todorov requer um ‘leitor implícito’ que tende para uma
explicação natural ou sobrenatural. O maravilhoso medieval, pelo contrário, exclui um leitor
implícito; é apresentado como objetivo através de textos ‘impessoais’ (LE GOFF, 1990: 28).
Embora não concordemos com Zumthor, pelo menos nesse aspecto da
impessoalidade literária medieval, vamos assumir que a figura do leitor implícito seja,
constitua-se, de fato, num problema. Como, então, analisar o estranhamento na literatura
medieval pela ótica de Todorov se, sincronicamente, não haveria tal estranhamento – e
isso é possível mesmo perceber nos próprios textos selecionados por Calvino, onde os
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personagens parecem não se abalar em encontros com fadas, bruxas, demônios e mesmo
defuntos ressuscitados. A resposta é simples: trabalharemos com a diacronia, isto é,
entenderemos as questões de não estranhamento na literatura medieval – ainda que esse
estranhamento, para Le Goff, tenha sido possível na Alta Idade Média, quando o
processo de cristianização dos mirabilia ainda era incipiente frente a uma cultura a que
podemos chamar de Antiguidade Tardia e, portanto, repleta de maravilhoso para os
recém-medievais, com a licença da expressão – e então verificaremos se, do nosso
século XXI, tão açambarcante culturalmente em relação ao passado, ainda temos a
capacidade de estranhar alguma coisa...
Haveria ainda uma outra possibilidade de validar nosso estudo, que é exatamente
aprofundando-nos na diferenciação de uma teoria cultural para elites e uma realidade de
cultura popular medieval, em que nem sempre chegava a regurgitação cristã da
Antiguidade. Atrelada a esta, ainda usaremos a questão do gênero literário, que
pressupõe, aliás, a presença do leitor e suas relações com o texto:
Nesta tradução, dentre outras escolhas possíveis – e com plena consciência das implicações
de tal opção –, utiliza-se fábula com o mesmo sentido de conto popular. Veja-se, por
exemplo, a tradução espanhola (Madri, Siruela, 1990), na qual o tradutor optou pelo uso de
cuento de hada e cuento popular, tendo mantido, em determinados casos, a forma fiaba do
texto italiano (CALVINO, 1995: 9).
A questão, além disso, não é apenas lexical – e em literatura sabemos que nada é
apenas lexical –, mas também uma ampliação semântica do próprio gênero “fábula”
como se pode observar na história de suas recolhas.
Todavia, dito isso, a marca medieval sobre o conto popular permanece – e forte. Quantos
torneios pela mão das princesas, quantos trabalhos para os cavaleiros, e quantos diabos,
quantas contaminações com as tradições sagradas! Portanto, será preciso investigar
necessariamente como um dos momentos mais importantes da vida “histórica” das fábulas,
o da osmose entre fábula e epopéia cavaleiresca, que se pode supor tenha tido um
importantíssimo epicentro na França gótica e dali tenha difundido sua influência pela Itália
por meio da épica popular. Aquele substrato da fábula pagã e pré-pagã que devia existir em
toda parte (e que na época de Apuleio assumia roupagens e onomásticos da mitologia
clássica) inteirou-se então das instituições, da ética, da fantasia feudal-cavaleiresca (e da
contaminação religiosa cristã-pagã daquele mundo), fundindo-se em algum ponto com a
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outra onda de sugestões e transfigurações, a de origem oriental, que por sua vez se
propagara da região meridional (e com as tradições do período de relações e ameaças mais
intensas de sarracenos e turcos; [...]. Se, posteriormente, a fábula vestiu seus motivos como
os costumes das diversas sociedades, no Ocidente o feudal foi o último (embora nos
defrontemos de vez em quando com trechos de fábula com vestes oitocentistas [...], ao
passo que no Oriente triunfou a fábula ‘burguesa’ das aventuras de Aladin ou de Ali Babá
(CALVINO, 1995: 31-32).
Nossa preocupação primeira nessa desambiguação de gênero deveu-se, pois, ao
fato de o leitor poder estranhar, à primeira vista, o que seria uma ex-centricidade – ao
modo de Kristeva e Hutcheon – a genética fabular clássica em “fábulas italianas”, em
que até alguns animais falam, como queria Fedro, mas não se constituem na
característica principal dos contos populares europeus de síntese constitutiva medieval.
Feitas essas considerações, torna-se já possível uma abordagem das fábulas
italianas organizadas por Calvino através de uma hermenêutica teórica de Todorov e sua
consequente exegese do fantástico e do maravilhoso, teoria essa que, inexoravelmente,
encontraria os obstáculos metodológicos a que nos referimos no começo deste trabalho.
Ora, se a literatura fantástica de Todorov tem como pressuposto teórico o
“estranhamento” diante de outras realidades textuais possíveis e, sendo a fábula, o
espaço não do estranhamento, mas da metáfora – e aqui lembramos Os Seis Passeios
pelos Bosques da Ficção, de Umberto Eco, que trabalha com a “aceitação” dos jogos
dos mundos ficcionais possíveis para que a narrativa de ficção se sustente como tal e
não como uma inverossimilhança textual –, então não haveria, a priori, esse
estranhamento ponto de partida para a teorização de Todorov.
Mas o que, então, o gênero “fábula”, nesse raciocínio de ampliação que estamos
trabalhando, comporta? Segundo Calvino, “[...] no livro encontram-se também lendas
religiosas, novelas, fábulas de animais, historietas e anedotas, algumas lendas locais: em
resumo, componentes narrativos populares de vários gêneros [...]” (CALVINO, 1995:
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17). É essa abrangência de gêneros que possibilita, pois, também, uma “hermenêutica da
ontologia”, como chamamos, que busca a compreensão de uma tipologia literária
comum ao que é popular, ao que é social, à própria história humana, muito mais do que
um recorte epistemológico necessário e/ou comum/possível para um espectro cognitivoteórico mais restrito, que seria o das fábulas da Antiguidade – que se mantiveram
metamorfoseando-se através da história das mentalidades – com uma referência éticomoral vivida por animais, plantas e objetos personificados.
São tomadas em conjunto [as fábulas], em sua sempre repetida e variada casuística de
vivências humanas, uma explicação geral da vida, nascida em tempos remotos e alimentada
pela lenta ruminação das consciências camponesas até nossos dias; são o catálogo do
destino que pode caber a um homem e a uma mulher, sobretudo pela parte de vida que
justamente é o perfazer-se de um destino: a juventude, do nascimento que tantas vezes
carrega consigo um auspício ou uma condenação, ao afastamento da casa, às provas para
tornar-se adulto e depois maduro, para confirmar-se como ser humano (CALVINO, 1995,
pp. 14-15).
Antes, ainda, de partirmos para a identificação e a problematização da categoria
do insólito e do seu estranhamento ou não, interno ou externo culturalmente, leia-se, excêntrico ou não, na narrativa das fábulas, é preciso que se identifiquem com maior
clareza os seus níveis estruturais; em outras palavras, é necessário apontar onde,
exatamente, estamos buscando o insólito. Isso acontece porque, como em toda produção
textual, está-se construindo permanentemente um diálogo entre a estrutura e o conteúdo
do texto, ou, se quisermos entender essa relação da maneira teórica clássica, entre
aparência e essência ou, ainda, entre o posicionamento estruturalista e dialógico. Na
dimensão do conteúdo, estão presentes as relações de suspensão da realidade para que
se dê efetivamente a leitura do texto ficcional; na dimensão da estrutura, os eventos
narrativos podem mostrar-se coerentes ou não fazerem sentido no correr da própria
história, tornando-a falível ou mesmo inverossímil, ainda que dentro da dinâmica
estrutura/conteúdo, a inverossimilhança seja condição sine qua non para a realização da
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compreensão de sentido do texto. Sobre essa bidimensionalidade textual, mais
propriamente das fábulas, diz-nos Calvino:
A técnica com a qual a fábula é construída se vale tanto do respeito às convenções quanto
da liberdade inventiva. Dado o tema, existe um número de passagens obrigatórias para
chegar à solução, os ‘motivos’ que se trocam de um ‘tipo’ para outro [...]; cabe ao narrador
organizá-los, mantê-los uns sobre os outros como os tijolos de uma parede, improvisando
com agilidade nos pontos mortos [...] e usando como cimento a pequena ou grande arte
pessoal, aquilo que lhes agrega quem conta, a cor de seus lugares, de suas fadigas e
esperanças, seu ‘conteúdo’ (CALVINO, 1995: 35-36).
Repare-se que Calvino salienta um modus operandi na construção fabular, uma
metodologia própria a ser seguida na escritura do texto. Contudo, essa regra, se
podemos chamá-la assim, flexibiliza-se quanto a sua ornamentação, e não vemos, de
fato, como impedir, desligar ou separar a subjetividade autoral, ainda que imersa em seu
momento histórico-cultural bem definido. Mas é tanto na liberdade autoral quanto na
receita de fazerem-se fábulas que estará presente o fantástico literário. O que se poderia
questionar mais adiante, entretanto, é se essas mesmas condições de produção
encerram-se metaforicamente, levando o seu leitor contemporâneo a suspender a
hesitação diante de um texto fantástico ou se mesmo esse leitor – e estendemos o
raciocínio a nossa contemporaneidade – apesar dessa suspensão, consequência do jogo
ficcional que se está apresentando como tal – permite-se, ainda, hesitar perante o
insólito. Ainda sobre a divisão da fábula em dois universos, citamos Eco:
Fábula é o esquema fundamental da narração, a lógica das ações e a sintaxe das
personagens, o curso dos eventos ordenado temporalmente. Pode também não constituir
uma sequência de ações humanas e pode referir-se a uma série de eventos que dizem
respeito a objetos inanimados, ou também a idéias. O enredo, pelo contrário, é a história
como de fato é contada, conforme aparece na superfície, com as suas deslocações
temporais, saltos para frente e para trás (ou seja, antecipações e flash-backs), descrições,
digressões, reflexões parentéticas (ECO, 2002: 85-86).
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Como veremos, os autores, ou melhor, a tradição oral que preservou as fábulas e
suas diversas variantes, utilizará certos recursos literários de cunho explicativo não só
para preencher alguns vazios cognitivos que poderiam por a narrativa a perder, mas
também para desfazer a hesitação que os textos fabulares imprimirão no leitor/ouvinte
contemporâneo. Essa é uma questão importante porque vai mostrar que, para o
leitor/ouvinte que tem a mesma mentalidade histórico-cultural em foram escritas as
fábulas, o insólito dissolvia-se nessa mentalidade, pelo menos no que chamamos de
Insólito de Nível I, isto é, na dimensão da estrutura narrativa. Por outro lado, em relação
ao conteúdo, este a que denominamos Insólito de Nível II, a hesitação como requisito da
presentificação do fantástico fica à mercê das subjetividades tanto autorais quanto do
leitor. E não nos parece, de fato, que isso não seja natural, já que é a subjetividade de
cada um que conseguirá ler ou não sentidos, estranhar ou não significados, ainda que
escritos sob uma rede de estruturas narrativas bem conhecidas e definidas†.
Fábula
Insólito Nível I
Técnica / Arquitetura Textual /
Estruturalismo
Enredo
Insólito Nível II
Conteúdo / Invenção / Dialogia
O fantástico, como vimos, dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao
leitor e à personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não da ‘realidade’,
tal qual existe na opinião comum. No fim da história, o leitor, quando não a personagem,
toma contudo uma decisão, opta por uma ou outra solução, saindo desse modo do fantástico.
Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os
fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a um outro gênero: o estranho. Se, ao
†
Estamos considerando uma hermenêutica da estética da recepção não só diacrônica, mas também
sincrônica.
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contrário, decide que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode
ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso. (TODOROV, 2008: 47-48).
Esquematicamente, partindo do quadro criado por Todorov, poderíamos pensar
as subcategorias da literatura fantástica da seguinte maneira, incluindo a visão da
Estética da Recepção:
Fantástico
Fantástico
Estranho
Maravilhoso
Há a hesitação
Há a hesitação
Estranho puro
Maravilhoso puro
Não chega a haver uma
Não há hesitação
hesitação stricto sensu
O autor conduz o leitor a
O autor conduz o leitor a
aceitar como realidade
entender o que poderia
O autor mantém o
O autor mantém o leitor
levá-lo a hesitar quanto à
leitor hesitante.
hesitante.
possível o que poderia
levá-lo a hesitar quanto à
verossimilhança do texto.
verossimilhança do texto.
A “suspensão da
O jogo da “suspensão da
A “suspensão da
realidade” é mantida
realidade” não chega
realidade” é mantida
até uma aceitação de
sequer a ser proposto.
até uma explicação
inverossimilhança (o
Considera-se o leitor do
final.
maravilhoso como
texto como o leitor
realidade)
implícito.
O jogo da “suspensão da
realidade” é substituído
por uma narrativa que o
anula, trazendo à cena a
“realidade” do leitor real.
Tendo configurado nossa argumentação teórico-metodológica, passamos a
analisar algumas fábulas extraídas da obra de Calvino (1995) em relação à presença do
insólito como elemento de validação hermenêutica de uma teoria da literatura fantástica.
Não será o caso, contudo, de uma abordagem profunda dada a natureza deste trabalho,
no sentido de se discutir a que subcategoria da literatura fantástica pertence essa ou
aquela fábula, e sim o momento de destacarmos, seja para o leitor / ouvinte, tanto o
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diacrônico, nós, quanto o sincrônico, o medieval, a hesitação possível no ato da leitura /
audição dos textos, tarefa esta, aliás, que deverá compreender, também, a hesitação
possível dos personagens das fábulas. Nosso propósito, além disso, não é de forma
alguma chegar a conclusões fechadas, muito antes, é o de levantar questionamentos
sobre essa hesitação possível apresentada. As fábulas que escolhemos para análise são:
“O príncipe-caranguejo”, “O braço do morto”, “A moça-maçã”, “Alecrina” e “A moçapomba”. Logo abaixo, subdividimos este capítulo em pequenos subcapítulos que
contêm um breve resumo sobre cada uma das fábulas, assim como alguns aspectos
narrativos que julgamos mais importantes em cada um deles. A leitura necessária de
cada fábula escolhida e o seu respectivo cotejo com as anotações abaixo fica sugerida,
dado o tamanho e a natureza de publicação deste artigo.
Em “O príncipe-caranguejo”, uma princesa descobre, através de um “vagabundo”
a quem ajuda com esmolas, que um enorme caranguejo ofertado por um pescador a Sua
Majestade é na verdade fruto do encantamento de uma “fada” (bruxa). Neste
caranguejo, sobre o qual vive uma bruxa, mora um príncipe que é por ela mantido em
segredo. Descoberto o encantamento, a princesa põe-se numa empreitada para libertar o
jovem de dentro do caranguejo e com ele se casa.
• A recompensa (ou a expectativa de uma recompensa) pela boa ação;
• A descrição do jovem dentro do caranguejo é vista como “maravilhosa” pelo
vagabundo;
• A jovem apaixona-se pelo jovem dentro do caranguejo quando o fato em si é
estranho;
• A explicação tardia: traços de tradição oral ou “falha” narrativa?
• O insólito desvanece frente à temática da “busca” ou da “missão”;
• O estranhamento e o espanto não pelo maravilhoso, mas pelo insólito do “social”;
• O número 8;
• As damas de companhia não se atemorizam pelo fato de emergir do mar uma fada
(bruxa).
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Em “O braço do morto”, um homem se vê às voltas com cadáveres que se
levantam do túmulo e com ele jogam vários tipos de jogos de azar, que perdem para o
homem. Dão-lhe, já sem dinheiro nenhum para pagar-lhe as apostas, um instrumento
mágico: o braço de um cadáver que tem o poder de derrubar e exterminar inimigos.
Saindo de casa atrás de aventuras e de fazer sua vida, o jovem encontra uma cidade
prisioneira de vários magos que habitam um castelo vizinho, para onde são levadas as
moças da cidade em sacrifício e prisão. O jovem, que nada temia, com o braço do morto
passa pelas provas e pelas batalhas com os magos, livra a cidade do castelo maligno e
casa-se com uma das moças, a princesa, levada ao castelo como oferenda.
• “Não tinha medo de nada”, pressuposto de exceção que legitima um
estranhamento a priori;
• A presença do profano dentro do sagrado, a inversão de valores, o estranhamento
provocativo;
• A descrição do macabro e a construção do medo pelo insólito;
• O pacto com o sobrenatural;
• A temática do “correr mundo para fazer fortuna”;
• A construção da problemática sobrenatural como ponto de partida para a temática
da “missão”;
• A existência de bruxos e castelos: um tema que causa suspensão de credulidade
ou é capaz de provocar o estranhamento e o medo?
• A luta do bem contra o mal através do pacto com o sobrenatural;
• “Quando a noite invadiu de novo a sala”: o espaço em branco ou o vazio
narrativo. E no resto do dia, que faz o herói?
• “Quero que seja o meu esposo”: o insólito social;
• A antítese das cores e das sombras, da alegria e da tristeza;
• “que se fala nela ainda hoje”: metaficção.
Em “A moça-maçã”, há um reino em que rei e rainha são incapazes de ter filhos.
Em função do desejo da rainha e da sua inveja ao ver uma macieira carregada, acabam
sendo presenteados com uma gravidez, e a rainha dá à luz uma maçã. Vive na maçã uma
jovem que todo dia sai de dentro dela e à noite retorna. Um rei vizinho apaixona-se pela
maçã, raptando-a. Em seu castelo, sua madrasta, enciumada com a beleza da moça-
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maçã, maltrata-a quase matando-a, sendo ela salva por um serviçal de confiança do
castelo que, para isso, recorre à magia. Ocorrendo isso na ausência do príncipe, ao
voltar – estava em guerra –, desfaz-se a confusão por confissão da moça-maçã, além do
desmascaramento da madrasta, da qual não se saberá mais nada depois, a não ser que
fugiu. O príncipe então se casa com a moça encantada.
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A força do desejo sobre a natureza das coisas;
A força do amor / desejo desconstruindo o insólito;
A contemplação do insólito, o estranhamento afetivo;
A introdução da antagonista (que não conhece o insólito);
A questão da criadagem e da fidelidade sob ameaça de morte;
Preocupação com a verossimilhança social;
A conveniência narrativa e a arquitetura textual: o fantástico familiar anula a
hesitação?
A metáfora/alegoria fora do alcance imediato de significação leva ao insólito?
“Tenho dezoito anos e saí do encantamento. Se me quiser, serei sua esposa”. O
enunciado cultural;
“E ninguém mais soube dela”: o fato de não a procurarem, mas de terem
eliminado um “mal” causa o estranhamento?
“E ali ficaram e se refestelaram / e a mim nada entregaram. / Minto, deram-me um
vintenzinho / e o coloquei num porquinho”: “Assinatura do autor”.
“Alecrina” é uma narrativa semelhante a anterior: “A moça-maçã”. A diferença
essencial entre essas duas fábulas é que a rainha dá à luz um pé de alecrim, que alimenta
com leite toda noite. Do pé de alecrim, ao som de uma flauta, Alecrina abandona o pé
de alecrim, conhece o príncipe do castelo e os dois se apaixonam. Como no conto
anterior, há a ausência do príncipe, por isso é dada ao jardineiro a função de cuidar de
Alecrina, que é maltratada pelas irmãs do príncipe ao ser descoberta. Alecrina então é
salva pelo jardineiro; esclarece-se tudo graças à intervenção do discurso de Alecrina;
ocorre o casamento entre Alecrina e o príncipe; há a recompensa ao jardineiro e o
castigo às irmãs.
• Uma variante de “A moça-maçã”?
• A infertilidade como causa do desejo;
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• A realização insólita do desejo e a manutenção do estranhamento pelo
“aleitamento” da planta;
• O mito do amor raptado;
• A suspensão da hesitação frente ao insólito da aparição do “maravilhoso”;
• A música como elemento mágico-transformador e hipnótico;
• A virada temática do afastamento do estranho e da sua guarda pelo criado fiel;
• A “surra” na “criatura”: medo pelo diferente?
• O insólito social: submissão da figura feminina?
• A construção narrativa da solução pela magia;
• Inicia-se a temática do quiproquó.
• Desfaz-se, pela verdade, a confusão;
• Ignora-se o insólito em prol do final feliz e da felicidade em geral?
“A moça-pomba” é uma série de micronarrativas que se sucedem uma como
consequência da outra, num sistema de causa-consequência/missão a cumprir e
recompensa. Um jovem é enganado por um homem com quem tinha um contrato de
trabalho e acaba se vendo preso num castelo cujo jardim era cheio de pedras preciosas,
habitado por um mago poderoso. Ao ser descoberto, pois seu patrão o obrigara a roubar
as tais pedras preciosas e o ouro espalhados pelo chão, coisa que ele não faz, o mago o
perdoa, mas o mantém preso. Como castigo, o homem é obrigado a chicotear cavalos,
que já foram homens e que também tentaram roubar as jóias e o ouro, mas os cavalos
contam ao homem como fazer para sair do castelo e ainda lhe presenteiam com a
informação de que, numa fonte, doze pombas chegam para beber e, despindo-se de suas
roupas de pombas, transformam-se em lindas moças, por uma das quais o jovem se
apaixona. Por meio de um artifício, o jovem, depois de levar a jovem com ele para casa
e de lá ela ter fugido, descobre como não deixar a moça transformar-se em pomba
(queima-lhe a roupa de pomba) e eles então se casam. Antes, entretanto, é preciso que o
jovem retorne ao castelo onde havia ouro e jóias pelo chão e mate o feiticeiro que ali
vivia. No final do conto, à moda de um “deus ex machina” narrativo, sabe-se que a
moça-pomba era filha do rei de Espanha.
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Edição n.04 / outubro de 2010
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“Nada é de graça”;
A hora da cobrança;
A natureza como instrumento de ação;
O personagem não hesita frente ao fantástico da montanha;
Doze cavalos x 99 chicotadas? Ano de 1188? (Apenas uma hipótese sobre uma
“dica” narrativa do ano de composição do conto engendrada pelo autor).
Novamente o personagem não hesita diante do cavalo falante (porque ele
representa ajuda?);
O conto dentro do conto e o novo insólito não trazem nenhum estranhamento ao
personagem;
A “beleza” dos anjos “caídos” do céu;
A sentença explicativa para o possível “vazio” narrativo leva ao insólito: o cavalo
sabia o caminho para a casa do herói?
O perdão familiar;
O conto dentro do conto como parte integrante da narrativa maior. Mais uma vez
o insólito não provoca estranhamento no personagem (provocaria no leitor
sincrônico?);
O retorno para destruir o mal deixado impune;
Acréscimo hiperbólico.
Pôde-se verificar que há, de fato, hesitações e estranhamentos diante do insólito,
mesmo dentro de uma perspectiva sincrônica quanto de uma diacrônica, e isto se deve
ao fato de ser, pensamos, praticamente impossível encerrar a Idade Média numa
dicotomia cultural popular e elitizada. O estranhamento nada mais é do que o não
reconhecimento de estruturas e elementos que projetam através da literatura uma rede
cultural dentro da qual são criados e (res)significados esses mesmos elementos. Como
poderíamos mapear um percurso de leitura e de interpretação / aceitação /
estranhamento dessa mesma leitura, seja ela silenciosa, particular, ou ditada, em grupo?
Preferimos não seguir tendências teóricas quando o assunto é literatura, principalmente
a medieval, pois sabemos que a Idade Média é, na verdade, Idades Médias.
Existem outras dezenas de fábulas recolhidas por Calvino no Fábulas Italianas e,
em muitas delas, há outros tipos de estranhamento que não os sociais, mas os causados
por monstros, como é o caso do conto “A cabeça de búfala”. Esta narrativa, note-se,
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poderíamos tê-la usado como testemunho literário dessa amplitude e heterogeneidade
cultural em que nos baseamos para sustentar que, sim, apesar de Le Goff, Zumthor e
outros, há o estranhamento sincrônico frente aos mirabilia medievais, mais notadamente
aqueles que não tiveram a chance de terem se transformado em maravilhoso cristão. O
que é interessante notar, entretanto, é que a hesitação que mais pudemos verificar foi a
nossa própria enquanto leitores reais ou diacrônicos. É claro que uma verificação in
loco, ou melhor, in tempore, não é possível, mas, se a história das mentalidades é capaz
de nos fornecer ferramentas culturais que nos orientem para uma conclusão de que a
hesitação cessava em detrimento de uma suspensão da realidade narrativa e cultural
apropriada – e isso não é novidade na Idade Média: na Antiguidade, Juvenal, por
exemplo, em uma de suas sátiras, já mostrava que a crença nos deuses romanos e nas
suas cosmogonias era vista com descrédito e totalmente despida seja de uma hesitação
pelo fantástico religioso-mitológico, seja pela inverossimilhança com a realidade –, são
alguns recursos estilístico-narrativos, como a construção do medo, que provocam a
hesitação ou pelo menos apostam nessa criação de uma atmosfera que ultrapasse o
conforto de uma mentalidade histórica já acostumada à metaforização e à alegorização
do fantástico, principalmente o do maravilhoso.
Portanto, fica a pergunta como provocação: se há o estranhamento e a hesitação,
interna ou externa ao texto, natural ou construída, a quem é dirigida, ou melhor, quem
lida com eles: o leitor/ouvinte medieval ou nós, os leitores da era do hipertexto?
Recebido em setembro de 2010
Aprovado em outubro de 2010
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Referências bibliográficas
CALVINO, Ítalo. Fábulas Italianas. São Paulo Companhia das Letras, 1995.
ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 2002.
LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa:
Edições 70, 1990.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2008.
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