ANTUNES,Bruna_IRALA,Valesca - Universidade Católica de Pelotas

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ANTUNES,Bruna_IRALA,Valesca - Universidade Católica de Pelotas
ZONA RURAL FRONTEIRIÇA CERRILLADA/SERRILHADA: UM OLHAR
SOBRE AS PRÁTICAS LINGUÍSTICAS
Bruna Susel Gulart Antunes (Universidade Federal do Pampa)
Valesca Brasil Irala (Universidade Federal do Pampa)
Resumo: O presente trabalho tem o intuito de refletir sobre práticas linguísticas e
discursivas resultantes do contato/conflito entre o português e o espanhol em zonas de
fronteira. Para tanto, consideramos a região de Serrilhada (Brasil) ou Cerrillada (Uruguai) –
zona fronteiriça rural, onde realizamos entrevistas semiestruturadas na escola uruguaia da
localidade, que atende tanto alunos uruguaios como brasileiros. Do ponto de vista teórico,
nos apoiamos nos pressupostos da historiografia, de conceitos relacionados às comunidades
fronteiriças e/ou bilíngues e noções da Análise do Discurso – de linha francesa e, do ponto
de vista metodológico, na abordagem qualitativa. O estudo faz-se necessário, dentre tantas
possibilidades de justificativa, porque leva em conta o fato de a Universidade Federal do
Pampa – UNIPAMPA estar inserida na faixa de fronteira, denominada uma região
estratégica que abrange a faixa interna de 150 km para dentro do país ao longo de toda a
divisa nacional, conforme o Ministério da Integração Regional (BRASIL, 2005). Assim,
torna-se relevante dar visibilidade a questões que submergem a(s) fronteira(s), sobretudo
em âmbito linguístico, e também considerando o fato que a sociedade brasileira sulina se
constituiu tendo a fronteira como referência.
Palavras-chave: Fronteira. Bilinguismo. Práticas
Considerações iniciais
A temática da fronteira tem cultivado grandes polêmicas em nossa prática histórica.
Uma vez que se trata de uma região repleta de singularidades, nas quais experiências
peculiares são vivenciadas, promovendo o estabelecimento uma convivência entre sujeitos
de nações distintas, e assim, questões de ordem cotidiana fazem-se complexas, afetando
espontaneamente os sujeitos que nela vivem.
Nesse sentido, destacamos, por ora, as
práticas resultantes do contato/conflito entre o português e o espanhol em zona de fronteira
entre Brasil-Uruguai.
Este trabalho faz-se necessário, dentre tantas possibilidades de justificativa, porque
leva em conta o fato de a Universidade Federal do Pampa estar inserida na faixa de
fronteira, denominada uma região estratégica que abrange a faixa interna de 150 km para
dentro do país ao longo de toda a divisa nacional, conforme o Ministério da Integração
Regional (BRASIL, 2005). Assim, como meio de dar visibilidade a este tema de natureza
conflituosa e complexa que são as regiões fronteiriças, originou-se o Grupo de Estudos
sobre Fronteira e Linguagem no Espaço Platino - FLEP - no qual discutimos o contexto
fronteiriço sobre diferentes vertentes teóricas e práticas, ampliando assim o nosso modo de
conceber a fronteira.
Como meio de estudo e reflexão, o presente trabalho tem como propósito
estabelecer suporte empírico para se abordar as práticas linguísticas e discursivas
resultantes do contato/conflito entre o português e o espanhol na região de Serrilhada/
Cerrillada – zona fronteiriça rural. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas
na comunidade escolar. Os dados foram gerados em uma primeira visita (agosto de 2011) à
região e servem como ponto de partida para outros trabalhos desenvolvidos nesse contexto.
As entrevistas foram registradas por meio de gravações e posteriormente transcritas. Assim,
as consideramos narrativas nas quais os sujeitos explicitam como se veem diante de tal
contexto fronteiriço e também como o veem.
1. Fronteira: a antítese separação/contato
Embora os estudos historiográficos que discorrem sobre a formação das fronteiras
do sul do Brasil com os países platinos coloquem em evidência os conflitos fronteiriços
acerados no período colonial entre o Império Português e o espanhol – em decorrência da
demarcação de limites entre um território e outro, sobretudo, nos âmbitos político e
econômico. A dinâmica social entre sujeitos de diferentes nacionalidades que viviam em
zonas de fronteira já se fazia um fator relevante na configuração de fronteira. Vejamos nas
palavras de Reichel (2006):
A indefinição das linhas demarcatórias levava-os a perceber a fronteira
como uma possibilidade de estabelecer redes de trocas, contatos, de
concretizar desejos, de reagir a dificuldades. Com isso, a fronteira atuava
não só como uma linha que define até onde um território se estende e
outro inicia, mas como uma zona de intercâmbios, em que predominavam
interações entre grupos sociais (REICHEL, 2006, p. 48).
Desse modo, a antítese separação/contato nos parece representativa para este espaço
concebido de modo conflituoso e complexo que é a fronteira. Assim, a compreendemos
pelo fato da fronteira nascer e firmar-se no ideal de separação entre um território e outro; no
entanto, a realidade dessas zonas apresenta o contato – a integração transnacional que se
estabelece como uma das principais marcas da peculiaridade desses espaços.
2. A zona fronteiriça Serrilhada/Cerrillada
A zona fronteiriça rural de Serrilhada (Brasil) ou Cerrillada (Uruguai) está
localizada a aproximadamente 60 quilômetros do município de Bagé e a 80 quilômetros de
Dom Pedrito, pelo lado brasileiro; já do lado uruguaio, a 52 quilômetros de Vichadero e a
75 quilômetros da cidade de Rivera. A divisa entre Brasil e Uruguai é firmada por marcos
de um lado e do outro da estrada que segue - o que não representa limite/separação para os
sujeitos que vivem em Serrilhada/Cerrillada.
Na estrada de Serrilhada/Cerrillada, um dos marcos pertencente ao Uruguai – Arquivo Pessoal
Estima-se haver cerca de 500 habitantes, a maioria dos sujeitos da localidade têm,
como profissão, o trabalho no campo – desempenham comumente funções nas estâncias da
proximidade. Na localidade, observa-se a coexistência de duas línguas como meio de
comunicação: o português e o espanhol, havendo predominância da primeira sobre a
segunda na comunicação de ambos os sujeitos de Serrilhada/Cerrillada. Em meio a esse
contexto bilíngue de fronteira situa-se uma escola uruguaia que atende tanto os alunos
uruguaios como brasileiros, contudo, o monolinguismo - é assumido como prática na
instituição escolar, ou seja, a língua espanhola é a única língua de ensino/instrução da
escola, corroborando para o fato de que questões políticas e ideológicas geralmente regem
as instituições, a partir de uma lógica centralista de adesão aos pilares que regem a noção
de Estado-Nação. Desse modo, do ponto de vista supra-institucional, é desconsiderado o
contexto fronteiriço onde se situa a escola; porém, seus atores sociais imediatos
(professores uruguaios, muitos deles com vínculos familiares no Brasil), não podem ignorar
a diversidade linguística vivenciada cotidianamente naquele meio escolar, pois tal postura
seria insustentável naquele contexto (cf. César e Cavalcanti 2007, p. 50).
.
Imagem da escola de Serrilhada/Cerrillada, onde se evidencia as cores azul e branco, a bandeira e o brasão
alusivo ao Uruguai –Arquivo Pessoal
3. Refletindo sobre o ensino-aprendizagem em regiões de fronteira
De acordo com Toranza; Tristant (2009), os problemas evidenciados na
aprendizagem de alunos que vivem em regiões de fronteira provem da pedagogia
monolíngue utilizada na maioria das escolas de fronteira. Em consequência, as autoras
apontam este cenário monolíngue idealizado (que não corresponde à realidade) como uma
forma de “violência simbólica” – fracasso escolar e exclusão.
Mostramos, a seguir, excertos da entrevista semiestruturada realizada com a
diretora/professora da escola de Serrilhada/Cerrillada, a fim de visualizarmos e, por
consequência, refletirmos as práticas linguísticas e discursivas decorrentes do contexto
fronteiriço:
E: Professora, eh durante as aulas é permitido que os alunos façam uso de sua língua materna, no caso os
brasileiros?
Professora: Si si... se permite, porque eles têm que se comunicar, e as vezes passa que eles não querem se
comunicar, porque não los vamos entender-lhes... ou de pronto eles passam a resmungar, então eles ficam
com aquele temor... pero, (...) se a língua materna é o português está permitido, porque eles têm que se
comunicar, porque é uma zona de fronteira e é isso... não podemos negar que se comuniquem, isso é uma
realidade da zona.
(...) dependendo da intimidade que tu tem com as pessoas ou tu hablas em espanhol ou hablas em português,
nosotros que tenhamos que pensar às vezes as palavras eh para não cometer errores, porque se está falando
com uma pessoa que fala bien português tens que pensar bien para não falar portunhol e, aqui na zona é uma
realidade que vivemos diariamente, é um costume tanto se comunica em espanhol quanto em português.
A imposição de uma língua em detrimento de outra, constitui uma prática de
“violência simbólica” exercida institucionalmente a partir da cultura escolar. Ainda,
Toranza; Tristant (2009) advertem que o sistema educativo tem estigmatizado a
constituição de línguas peculiares, como, por exemplo, o Português do Uruguai
(popularmente conhecido como portunhol) e colaborado com este quadro diglóssico,
sustentando, na sociedade fronteiriça, as desigualdades sociais. Cabe ao Português do
Uruguai apenas para a comunicação informal, sobretudo, restrita as comunidades menos
desenvolvidas e com pouca escolarização, logo, culminando ao fato do prestígio social de
uma dada língua, perpetuando-se a ideia de língua superior/língua inferior. A diglossia é,
pois, a coexistência de duas línguas em contato sendo que uma se sobrepõe a outra, ou seja,
uma exercendo status social enquanto a outra é desprestigiada socialmente. Remetendo-nos
à Serrilhada/Cerrillada percebemos não se tratar de uma comunidade diglóssica do qual os
sujeitos discursivamente prestigiem uma língua e não outra, porém, a instituição escolar da
localidade aparece como um espaço diglóssico, pois a língua de ensino é apenas uma – a
Língua Espanhola.
Em face disso, a “violência simbólica” trata-se de uma violência que sofre de
ocultamento, até mesmo pelos afetados por ela, ocorrendo uma espécie de “alienação
induzida” (LEFFA, 2005, p.10), de modo que os alunos são encorajados ou forçados
abdicar temporariamente de sua língua materna em detrimento da língua de ensino da
escola. Assim, revela-se uma prática que fere os direitos linguísticos dos sujeitos – escritos
na Declaração Universal dos Direitos Humanos, conforme Toranza; Tristant (2009).
Nesse sentido, falta sensibilização em relação à realidade linguística heterogênea
explícita nas aulas de escolas localizadas em regiões fronteiriças; assim, uma política
linguística culminante na formação docente faz-se necessária, pois seguindo as palavras de
Toranza; Tristant (2009, p. 8) “é hora de deixar de improvisar e de atuar frente a fatos
consumados” (tradução nossa).
Desse modo, é preciso dar crédito aos Projetos existentes como o Programa Escolas
Interculturais de Fronteira (PEIF) e o Programa de Ensino Bilíngue por Imersão Dual
Português/Espanhol (DUAL), voltados à questão da interculturalidade e do bilinguismo na
educação em regiões de fronteira.
O Programa Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF) promove o desenvolvimento
de um modelo de educação intercultural na fronteira. Inicialmente, suas atividades
pedagógicas foram instituídas por um Acordo Bilateral entre os Ministérios da Educação do
Brasil e da Argentina, para as zonas de fronteira. Posteriormente, vinculou-se à pauta do
Setor Educativo do MERCOSUL, passando, portanto, a constituir-se como um programa
multilateral do Brasil com demais países com que faz fronteira, como: Argentina, Uruguai,
Paraguai e Venezuela. Em relação ao funcionamento, o programa desenvolve-se a partir do
intercâmbio docente, ou seja, em dias determinados da semana as professoras brasileiras
trocam de lugar com as professoras das escolas do outro lado da fronteira e ministram suas
aulas
em
português
para
os
alunos
do
respectivo
país
vizinho.
Ocorrendo
concomitantemente com a ida da professora brasileira, a vinda da outra professora.
Já o Programa de Ensino Bilíngue por Imersão Dual Português/Espanhol
implementado em escolas fronteiriças no Uruguai, é desenvolvido e administrado pela
Administración Nacional de Educación Pública – ANEP, objetivando a formação de
indivíduos bilíngues. O Programa de Imersão Dual (Português/Espanhol) funciona dentro
de um projeto denominado “Tiempo Completo” o qual corresponde a uma carga horária
ampliada de 8 horas em vez de 4 horas. A metodologia adotada corresponde ao ensino das
duas línguas – português em um turno e espanhol no turno inverso, nos usos standard de
ambas as línguas, e não obstante, são dois professores que ministram as aulas, um em cada
turno/um em cada língua – sucedendo um mesmo tempo predispostos para o ensinoaprendizagem em ambas as línguas.
Apesar de estes projetos estarem em andamento e mostrarem de alguma forma que
o fazer pedagógico em regiões de fronteira, são projetos que apresentam limitações
referentes à expansão efetiva, visto que não atingem a maioria dos alunos fronteiriços,
especialmente aqueles que vivem em regiões fronteiriças rurais, como é o caso de
Serrilhada/Cerrillada. E, também poderíamos apontar como certa limitação nos projetos
algumas concepções teóricas e pedagógicas que ainda não estão tão claras; logo, os projetos
precisam ser constantemente tema de discussão e reavaliação por todos os envolvidos.
3.1 Educação sem fronteiras ou Educação na fronteira
Educação sem fronteiras exemplifica, para a proposta deste trabalho, uma ideia
trivializada e ingênua em relação à visão integracionista, pois compreende uma concepção
incoerente/inocente em relação à educação no contexto fronteiriço, regida por normativas
centralizadoras dos países em questão. Ao contrário de uma educação sem fronteiras,
buscamos advertir sobre a educação na fronteira, uma vez que, “é inviável pensar em um
ensino em regiões de fronteira, seja em qual nível for, que opere sobre as mesmas bases
pedagógicas e conceituais executadas em regiões não-fronteiriças” (IRALA, no prelo).
Desse modo, é preciso considerar no ensino-aprendizagem esse espaço peculiar e não
ocultá-lo.
Segundo Leffa (2005, p.10), “há uma discordância total entre o que a escola propõe
e o que o aluno faz - ou não faz. No caso de o aluno se submeter ao que a escola propõe,
sem compreender o que está fazendo, acaba perdendo sua individualidade, deixando-se
levar por uma manipulação “suave” da escola e da mídia” (grifos do autor). A mídia,
porque ocupa um papel na sociedade de suma importância, e, assim sendo, tem grande
influência na formação dos sujeitos que produzem e dão sentido aos seus discursos.
E: Tá, aqui na escola, existe um modo diferente de avaliar, de corrigir os alunos cuja língua materna é o
português?
Professora: Si, não se pode medir da mesma maneira, porque há alunos que estudaram 5 anos numa escuela
brasileira e quando vem para cá, não se pode avaliar da mesma maneira do que um aluno que já faz 5 anos
que estuda numa escuela uruguaya, e que já maneja o espanhol, se vai avaliar de uma maneira diferente...
sempre se tem que ser mais flexível (...)
E: A senhora nota... na oralidade que os alunos costumam misturar as duas línguas?
Professora: Si! Isto no dia a dia, eles falam mesclado, la la maioria dos lugares a língua materna é o
português nessa zona de acá (...)
E: E na escrita, a senhora vê isso também... deles mesclarem as duas línguas?
Professora: Si! Muito muito essa é uma grande dificuldade, porque na comunicação oral tu vais levando...
mas na escritura... tu te confundi bastante, porque as vezes eles estão produzindo um texto e escrevem em
português ou eles vêm perguntar como se escreve tal palavra... porque não sabem a tradução, a parte da
escritura é o que há mais dificuldade.
No exposto pela professora, percebemos que ao falar das práticas linguísticas dos
alunos ela não toma consciência que está na mesma situação, são os alunos que mesclam as
duas línguas (o português e o espanhol), não ela. Nesse sentido, podemos dizer que ao nos
dar a entrevista, a professora se coloca como a voz institucional apagando que ela também é
fronteiriça. Em face disso, vale dizer, a alternância de códigos é um aspecto comum entre
sujeitos fronteiriços que fazem uso de mais de uma língua. Em Carvalho (2007, p.73), “la
alternancia se define como el uso alternado de
dos idiomas dentro de un segmento
discursivo, frase o constituyente. Entre los bilíngües de las comunidades fronterizas en
Uruguay, es común el uso de portugués y español por el mismo hablante dentro de um
turno de habla”.
Observa-se, ainda, conforme podemos inferir do exposto pela professora, a questão
da valorização da escrita, esta técnica legitimada institucionalmente nas sociedades – logo
um artefato corrente nas esferas de poder. Desse modo, “a escola é o lugar onde
inevitavelmente somos afetados pela escrita [...] e onde, de entrada, o sujeito é
ideologicamente levado a silenciar a contradição entre a língua que o constitui quando
chega à escola e aquela que a escola o faz entender como legítima” (IRALA, no prelo).
Assim, a escrita dos alunos que não tem a língua de ensino da escola como língua materna
apresenta-se como um problema, dificuldade a ser superada para a professora, pois na
comunicação oral “tu vais levando”, porém na escrita não há tolerância, ou melhor,
dizendo, há uma “tolerância negativa”. Quanto à tolerância, Bento (2011) discorre sobre
duas modalidades – a negativa e a positiva, e faz a seguinte observação:
Pela tolerância negativa, o outro passaria a ser reconhecido e suportado,
não destruído física ou moralmente. A tolerância negativa seria o primeiro
passo após a intolerância. Pela tolerância positiva, a diversidade cultural
do outro, em vez de suportada, seria apreciada como característica positiva
do outro, sujeito pessoal e coletivo. A diversidade cultural entre os sujeitos
permaneceria nas duas modalidades de tolerância. Caso houvesse adesão
ás escolhas do sujeito interlocutor diferente, não haveria mais tolerância,
mas assimilação, perda da diferença pela adesão aos valores do outro
(BENTO, 2011, p.25).
E complementa: “a tolerância (negativa e positiva) realiza-se no contexto do
pluralismo, da diversidade cultural entre sujeitos” (BENTO, 2011, p.25).
Observa-se, a seguir, no excerto, abaixo transcrito, sujeito fronteiriço (brasileiro,
vive em Serrilhada/Cerrillada há 35 anos, pai de uma aluna da escola uruguaia da
localidade), inicia sua narrativa no que diz respeito à sua relação com a zona de fronteira.
E: E como é pro senhor morar numa zona de fronteira?
Sujeito: Morar numa zona de fronteira pra mim é muito bom, é muito interessante, até mesmo pela cultura, que
automaticamente eu já falo dois idioma, ih a gente se relaciona muito com pessoas do centro do Uruguai e do centro do
Brasil que é bastante diferente uns costumes dos outros ih pra nós uruguaios ih Brasil, aqui, em Serrilhada, pra nós é uma
coisa só... nós somos irmãos sureños e norteños, não temos essa diferença, não conhecemos fronteira, não temos essa
fronteira nem no idioma e nem no viver do dia a dia.
O sujeito admira a zona fronteiriça em que vive, expressando satisfação pela
fronteira. Essa satisfação parece se referir ao aspecto empírico da fronteira, próprio das
relações estabelecidas espontaneamente entre sujeitos de nacionalidades distintas, quando
menciona “até mesmo pela cultura, que automaticamente eu já falo dois idioma”. Note-se
que ele se refere à assimilação e não ao suportar como constantemente o fazem instituições
e sujeitos que versam sobre uma “tolerância negativa” em relação ao outro.
Essa satisfação revela-se, em seguida, atingir o discurso de irmandade, quando ele
afirma que “somos irmãos sureños e norteños”. Observe-se o efeito de sentido da
expressão “não conhecemos fronteira”: abarcando as línguas (português/espanhol) e o
cotidiano na zona fronteiriça, transcende o significado mais difundido do termo fronteira –
o limite entre dois estados distintos, para além de fronteira harmoniosa, significa fronteira
móvel.
Note-se, por outro lado, como, dessa narrativa de admirações e dessa expressão de
satisfação, sujeito fronteiriço se aliena, no sentido de que o leva a esquecer do fato que a
escola uruguaia da localidade em que a filha estuda não a reconhece, nem a filha e nem os
demais alunos-sujeitos (constituídos pela linguagem e pela história), visto que uma das
línguas (o português) coexistentes na comunicação dos sujeitos que vivem em
Serrilhada/Cerrillada não é considerada no ensino formal, e assim, a instituição escolar que
atende a zona categoricamente marca a fronteira.
Considerações finais
Os efeitos decorrentes do contato/conflito entre o português e o espanhol em zonas
de
fronteira
entre
Brasil-Uruguai,
especialmente,
na
zona
fronteiriça
rural
Serrilhada/Cerrillada abordou o tema do estudo que ora se encerra. As práticas linguísticas
e discursivas de sujeitos fronteiriços constituiu o objeto de estudo.
Decorremos que uma grande, quiçá a maior problemática do contato entre as línguas
português e espanhol ocorre, sobretudo, no ensino-aprendizagem em escolas situadas na
fronteira, onde se assume o monolinguismo como prática, o que demanda reconhecimento
institucional para este espaço peculiar, distinto de regiões não fronteiriças.
A linha entre os Estados do Brasil e do Uruguai parece converter-se num
lugar que permite nascer em um país e estudar em outro, [...] Um lugar
onde as famílias têm integrantes de ambas as nacionalidades, [...] Um
lugar que transforma os países do Brasil e do Uruguai em palavras
familiares como “cá” e “lá” ou “deste lado” e “do outro lado”, porque os
países estão pertos um do outro, vivem-se cotidianamente [...]
(SÁNCHEZ, 2002, p. 60).
Em face disso, os projetos (DUAL/PEIF) existentes que versam sobre uma
educação bilíngue e intercultural na fronteira precisam ser constantemente pauta de
discussão e reavaliação entre os envolvidos, e definitivamente serem expandidos e
prioritários no contexto fronteiriço. Assim, como já mencionado anteriormente “es hora de
dejar de improvisar y de actuar frente a hechos consumados” (TORANZA; TRISTANT,
2009, p. 8).
Por fim, espera-se, por meio deste texto contribuir para uma maior compreensão e
reflexão sobre o cenário sociolinguístico e discursivo de sujeitos fronteiriços.
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