Anais do I Congresso Internacional de Estudos do Discurso – I CIED

Transcrição

Anais do I Congresso Internacional de Estudos do Discurso – I CIED
Paulo Roberto Gonçalves-Segundo
Zilda Gaspar Oliveira de Aquino
(Organizadores)
I
I Congresso Internacional de Estudos do Discurso
Anais do
I Congresso Internacional
de Estudos do Discurso –
I CIED
São Paulo, 2015
Paulo Roberto Gonçalves-Segundo
Zilda Gaspar Oliveira de Aquino
(Organizadores)
Anais do
I Congresso Internacional de Estudos do
Discurso - I CIED
1ª edição
São Paulo
Editora Paulistana
2015
Copyright © 2015 Dos organizadores
Revisão técnica
Zilda Gaspar Oliveira de Aquino
Paulo Roberto Gonçalves-Segundo
Conselho editorial
Aline Saddi Chaves
Álvaro Antônio Caretta
Ana Elvira Luciano Gebara
Ana Rosa Ferreira Dias
Anna Flora Brunelli
Anselmo Pereira de Lima
Argus Romero Abreu de Morais
Artarxerxes Tiago Tácito Modesto
Beatriz Daruj Gil
Beatriz Regina Benradt Matinez
Cláudio Márcio do Carmo
Dylia Lysardo-Dias
Eduardo Calbucci
Eduardo Lopes Piris
Elis de Almeida Cardoso Caretta
Elizabeth Harkot-de-La-Taille
Eugenio Pagotti
Fábio Fernando Lima
Grenissa Bonvino Stafuzza
Helson Flavio da Silva Sobrinho
Isabel Cristina Michelan de Azevedo
Iraneide Santos Costa
Iran Ferreira de Melo
José Ribamar Júnior
Juciane dos Santos Cavalheiro
Kelly Cristina de Oliveira
Lineide do Lago Salvador Mosca
Luiz Antonio da Silva
Luiz Rosalvo Costa
Márcia Regina Curado Pereira Mariano
Margarete Nath Braga
Maria Eliza Freitas do Nascimento
Maria Flávia Figueiredo
Maria Helena da Nóbrega
Maria Helena Pistori
Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade
Maria Margarete Fernandes Souza
Maria Terezinha Py Elichirigoity
Maria Valíria Anderson de Mello Vargas
Marisa Grigoletto
Maurício Beck
Moisés Olímpio Ferreira
Monica da Silva Cruz
Nelson Barros da Costa
Paula de Souza Gonçalves Morasco
Paulo Ramos
Paulo Roberto Gonçalves Segundo
Ravel Faria Paz
Regina Célia Pagliuchi da Silveira
Renata Barbosa Vicente
Renato de Mello
Rosalice Botelho Wakim Souza Pinto
Sandro Luis da Silva
Sheila Vieira de Camargo Grillo
Soraya Maria Romano Pacífico
Tércio de Abreu Paparotto
Zilda Gaspar Oliveira de Aquino
Universidade de São Paulo
Reitor: Prof. Dr. Marco Antonio Zago
Vice-Reitor: Prof. Dr. Vahan Agopyan
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Diretor: Prof. Dr. Sérgio França Adorno de Abreu
Vice-Diretor: Prof. Dr. João Roberto Gomes de Faria
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
Chefe: Prof. Dra. Marli Quadros Leite
Suplente: Prof. Dr. Paulo Martins
Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa
Coordenadora: Prof. Dra. Ieda Maria Alves
Projeto Gráfico, Revisão e Diagramação
Gabriel Isola-Lanzoni
Gonçalves-Segundo, P. R.; Aquino, Z. G. O. (Organizadores). Anais do I Congresso Internacional de Estudos do Discurso – I CIED. São
Paulo: Editora Paulistana, 2015. 993p. ISBN978-85-99829-79-0. Acessível em: http://cied.fflch.usp.br/
1. Linguagem 2. Estudos do Discurso. 3. Análise do Discurso. 4. Semiótica. 5. Retórica. 6. Análise Crítica do Discurso. 7. Literatura. 8.
Teoria Bakhtiniana. 9. Estilística. 10. Linguística Aplicada. 11. Linguística Textual. 12. Análise da Conversação. 13. Estudos do Léxico.
Os artigos publicados nesta obra são de inteira responsabilidade de seus autores.
I Congresso Internacional de Estudos do Discurso
Grupo de Estudos do Discurso da Universidade de São Paulo
SUMÁRIO
Apresentação...................... ......... ..................................................... ................... 09
Paulo Roberto Gonçalves-Segundo
Zilda Gaspar Oliveira de Aquino
A experiência de Jimi Hendrix:
a narrativa heróica de um ícone da guitarra elétrica.......................................... .................. 10
Affonso Celso de Miranda Neto
A representação discursiva da vítima
no gênero sentença judicial...................................................................... ................... 26
Alba Valéria Saboia Teixeira Lopes
Um possível diálogo entre Patrick
Charaudeau e Michel Meyer..................................................................... ................... 42
Alex Fabiani de Brito Torres
"Você é livre? Mesmo?":
Uma análise discursiva da leitora ideal da revista Tpm....................................... ................... 60
Alice Vasques de Camargo
A construção referencial no ensino de produção
escrita: análise de textos de alunos do 4º ciclo de EJA........................................ ................... 81
Allan de Andrade Linhares
Comentário jornalístico virtual:
discursos em “diálogo”.................................................................... .......................... 94
Andre Cordeiro dos Santos
O discurso antilógico, o filosófico,
e o jogo verbal da conveniência............................................................... .................. .. 109
André Luiz Braga da Silva
Discurso, Ideologia e Relevância:
a representação da Ordem Social brasileira
pelo jornal Folha de S. Paulo.................................................................... .................. . 125
Breno Wilson Leite Medeiros
O discurso da diversidade linguística em um
livro didático de espanhol para brasileiros............................................. .................. ........ 143
Bruno Rafael Costa Venâncio da Silva
Miguel Afonso Linhares
A gestualidade como espaço de
projetabilidade de enunciados (des)preferidos......................................... .................. ....... 157
Cacilda Vilela de Lima
I Congresso Internacional de Estudos do Discurso
Grupo de Estudos do Discurso da Universidade de São Paulo
Práticas discursivas e exercício profissional:
o trabalho do professor de inglês em cursos de idiomas
à luz da ergologia e da concepção dialógica de linguagem......................... .................. .......... 182
Carlos Fabiano de Souza
O embate na mídia impressa nas eleições 2010....................................... ................. ........ 194
Célia Dias dos Santos
A responsabilidade enunciativa no gênero jurídico contestação.............. .................. .............. 214
Célia Maria de Medeiros
Maria das Graças Soares Rodrigues
Expressões multimodais de textos jornalísticos
para a construção do escândalo:
implicitos e contextos............................................................... ................. .............. 227
Deborah Gomes de Paula
Gênero discursivo: o texto teatral no
ensino-aprendizagem de língua estrangeira........................... ......... ................. ................ 241
Eduardo Dias da Silva
Enunciação: duas abordagens complementares................................ ................. ............... 258
Elisabete Guedes da Silva
O posicionamento de setores da imprensa
sobre a Ditadura Militar: uma análise de discurso crítica........................ ................. ............. 269
Emmanuel Henrique Souza Rodrigues
A representação de negros anônimos
em Raça Brasil: a construção da autoestima
minoritária em uma revista de nicho..................................................... ................. ....... 283
Filipe Montovani Ferreira
Entre o fato e o ideal feminista:
a construção da notícia em Fêmea..................................................... .................. ......... 305
Gerlice Teixeira Rosa
A memória na construção da identidade do sujeito
nipo-brasileiro representado pela literatura..................................................................... 321
Hugo Hajime Kimura
Roselene de Fátima Coito
Representação discursiva do homem do campo nas
histórias em quadrinhos de Chico Bento moço:
o caipira na cidade?................................................................... .................. ............ 338
Illa Pires de Azevedo
Uma abordagem semiótica do conto:
A Cartomante........................................................................... ................. ............. 356
Ione Vier Dalinghaus
Anailton de Souza Gama
I Congresso Internacional de Estudos do Discurso
Grupo de Estudos do Discurso da Universidade de São Paulo
Análise Crítica do Discurso para o estudo
da inclusão/exclusão de LGBT na imprensa brasileira............................... .................. ......... 370
Iran Ferreira de Melo
A Ergonomia da Atividade e a relação discursiva
entre o Trabalho prescrito e o Trabalho real........................................... .................. ......... 392
Irene Scótolo
O Sujeito no Discurso da Marcha das Vadias......................................... ................. .......... .. 413
Isaac Costa
O diabo, da tevê ao YouTube......................................................... .............................. 429
Ivana Soares Paim
Teorias do romance de Georglukács e de Mikhail Bakhtin:
Entre ética e estética................................................................... .............................. 442
João Carlos Felix de Lima
Implícito: uma estratégia discursiva
nas capas do jornal Meia-Hora........................ ............................... .............................. 454
Jonathan Ribeiro Farias de Moura
Análise Multimodal da Representação de Gêneros Sociais
em Livros Didáticos do Ensino Médio....................................... ....................................... 466
Joseli Ferreira Lira
Sônia Maria de Oliveira Pimental
A memória discursiva e as formas de silenciamentos no
(sobre) discurso do morador de rua:
Os efeitos de sentidos nos textos do jornal “Aurora da Rua”........................... ........................ 482
José Gomes Filho
Autoficção e discurso do íntimo...................................................... .............................. 503
Julia Scamparini
O dialogismo na obra Os Sertões de Euclides Da Cunha........................... .............................. 519
Jussaty Luciano Cordeiro Junior
A representação linguística de personagens-tipo na ficção....................... .............................. 527
Katiuscia Cristina Santana
Direto ao assunto com Dilma Rousseff: derrisão, humor e heterogeneidade................................. 542
Lígia Mara Boin Menossi de Araujo
Atribuição de identidade pela mídia aos atores sociais do
Movimento Passe Livre................................................................ .............................. 555
Lílian Noemia Torres de Melo Guimarães
Maria Sirleidy de Lima Cordeiro
I Congresso Internacional de Estudos do Discurso
Grupo de Estudos do Discurso da Universidade de São Paulo
O discurso apocalíptico da obra Vivendo no fim
dos tempos de Slavoj Žižek............................................................ .................... .......... 568
Lucas Frederico Andrade de Paula
Revisitando os conceitos e a análise linguístico-discursiva
de marcadores discursivos em gêneros da esfera jornalística.................... .............................. 586
Magno Santos Batista
Maria D’ Ajuda Alomba Ribeiro
Livro de autoajuda ajuda? Reflexões acerca do discurso
de autoajuda na modernidade avançada............................................ .............................. 605
Maria de Fatima Carvalho de Oliveira Felix
A representação discursiva da vítima e do agressor em
boletins de ocorrência................................................................. .............................. 618
Maria de Fátima Silva dos Santos
João Gomes da Silva Neto
Marcas da representação da fala no gênero inquérito policial.................... ............................. 637
Maria do Socorro Oliveira
A presença do leitor na revista Capricho: uma análise dialógica....................... ........................ 652
Maria Teresa Silva Biajoti
O gênero capa de revista na mídia impressa:
a constituição de sentidos implícitos na linguagem verbo-visual............................. ................. 663
Maria das Vitórias dos Santos Medeiros
Maria Assunção Silva Medeiros
O acabamento da personagem no amor do autor................................. .............................. 676
Maryllu de Oliveira Caixeta
Trabalhadores do Brasil, mis queridos descamisados: a (re) invenção do
imaginário social do trabalhador no Brasil e na Argentina........................... .................... .....
Mayra Coan Lago
690
Especificidades discursivas do webjornalismo independente.................... .............................. 703
Michelle Gomes Alonso Dominguez
"Filosofia de Anitta": a patemização como efeito e
estratégia discursiva em um artigo de opinião..................................... .............................. 716
Nadja Pattresi de Souza e Silva
Atenção, consciência, instrução e leitura de input
textual em L2: um estudo com os pronomes pessoais.............................. ............................. 726
Nívia Maria Assunção Costa
Le Silence De La Mer: Jeanne e a personificação da resistência.................. ............... ............... 745
Nyeberth Emanuel Pereira dos Santos
I Congresso Internacional de Estudos do Discurso
Grupo de Estudos do Discurso da Universidade de São Paulo
Expressividade lexical na poética de Paes Loureiro:
uma análise estilística dos Cantares Amazônicos.................................... ............................ 765
Raphael Bessa Ferreira
Elis de Almeida Cardoso
Textos multimodais e contextos no discurso publicitário:
expressões verbais e imagéticas com seus
implícitos culturais na representação do feminino................................. ....................... ....... 779
Regina Célia Pagliuchi da Silveira
Sentidos da docência:
um olhar para os discursos de professores de inglês............................... .............................. 798
Renata Helena Pin Pucci
Por dentro dos boxes:
uma análise das mobilizações dos/as docentes de Brasília....................... ...................... ........ 812
Risalva Bernardino Neves
O jeitinho (do) brasileiro na carta de Caminha:
batismo de uma identidade........................................................... .............................. 831
Rita de Cássia Aparecida Pacheco Limberti
O Discurso Negativo sobre o Brasil na Rede Social Facebook:
Fantasmas do Comunismo Imaginário ......................................... .........................
Ronaldo Adriano de Freitas
843
“Armaria nam”: a palavra - discurso nas tiras do bode gaiato..................... ............................. 858
Rosângela Gonçalves Cunha
A leitura nos gêneros da esfera literária em livros didáticos
do ensino fundamental: formação para o letramento crítico?..................... ............................. 876
Rosenil Gonçalina dos Reis e Silva
Simone de Jesus Padilha
Discurso e Prática Social na Idade Média............................................ .................. ............ 886
Selene Candian dos Santos
Motivação lexical: aspectos históricos e socioculturais
na antroponímia e na antonomásia
da cidade de São José do Jacuri – MG............................................... ............ .................. 897
Shirlene Aparecida da Rocha
A metáfora na construção discursiva da
(des)igualdade social no discurso do movimento ows..................................... ...................... 931
Thaysa Maria Braide de Moraes Cavalcante
Memórias de escola em "Magda Soares":
uma análise discursiva................................................................. .............................. 946
Thiago José Rodrigues de Paula
I Congresso Internacional de Estudos do Discurso
Grupo de Estudos do Discurso da Universidade de São Paulo
Memória discursiva nos contos de “Espinhos e Alfinetes”......................... ........... .................. 961
Thyago Madeira França
Opinião pública e protestos contra Collor em editoriais da Folha de S. Paulo................................ 974
Vinícius Sales do Nascimento França
I Congresso Internacional de Estudos do Discurso Página |9
Apresentação
Paulo Roberto GONÇALVES-SEGUNDO (USP)
Zilda Gaspar Oliveira de AQUINO (USP)
Neste volume, estão reunidos os artigos resultantes dos trabalhos apresentados no I Congresso
Internacional de Estudos do Discurso (I CIED), promovido pelo Grupo de Estudos do Discurso da
Universidade de São Paulo (GEDUSP)1 e realizado entre 06 e 08 de agosto de 2014 na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). O evento tinha como
objetivo fomentar um espaço de discussão de resultados de pesquisa orientados para as dimensões do
texto e do discurso, a partir de um debate aberto que considera a diversidade de linhas teóricas e de
encaminhamentos metodológicos, com um olhar especial para a multi e para a interdisciplinaridade.
O Congresso contou com a participação de cerca de trezentos participantes, entre comunicações,
mesas e conferências, brasileiros e estrangeiros, além de haver possibilitado, a um grande conjunto de
pesquisadores, a oportunidade de integrar diversos minicursos, ministrados por importantes pesquisadores
internacionais e nacionais, como Patrick Charaudeau, Malcolm Coulthard, Carmen Rosa Caldas-Coulthard,
Maria Aldina Marques, Alexandra Guedes Pinto e Elisa Guimarães.
Os sessenta e dois textos que compõem estes Anais, provenientes de uma seleção advinda de um
minucioso processo de avaliação cega de cada texto por pareceristas competentes, representam uma
parcela significativa dos trabalhos apresentados no Congresso e da multiplicidade de olhares sobre o texto
e o discurso que a pesquisa científica brasileira apresenta neste momento. São artigos que cobrem as
vertentes francesa e crítica de Análise do Discurso, a Teoria do Círculo de Bakhtin, a Linguística Textual, a
Retórica e a Argumentação, a Análise da Conversação, a Linguística Aplicada, a Estilística, a Semiótica, as
Linguísticas Cognitiva e Funcional, a Pragmática e os Estudos Lexicais.
Isso posto, desejamos a todos uma boa leitura.
1
O Grupo de Estudos do Discurso da Universidade de São Paulo (GEDUSP) reúne professores e estudantes de todos os níveis (da
Iniciação Científica ao Doutorado) que comungam o interesse pelo discurso ou pelo texto, entendidos, em termos amplos, como a
unidade de análise que considera a linguagem em uso. O objetivo central é a compreensão da produção de sentido em condições
determinadas. Articulado em torno de um objeto de estudo, o grupo não se filia a uma abordagem teórica, mas tem por princípio e
finalidade o debate e a discussão entre diferentes correntes teóricas sobre o discurso ou o texto. O GEDUSP funciona por meio de
reuniões periódicas de estudos, cursos de pós-graduação, simpósios, ciclos de palestras e publicações dos resultados de pesquisa e
compreende cinco subgrupos: Teorias da Argumentação, Teoria Dialógica dos Gêneros Discursivos, Análise Crítica do Discurso,
Análise da Conversação e Análise do Léxico no Discurso Literário.
GONÇALVES-SEGUNDO, Paulo Roberto; AQUINO, Zilda Gaspar de Oliveira | I CIED (2015) 09
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A Experiência de Jimi Hendrix: a narrativa heroica de um
ícone da guitarra elétrica
Affonso Celso DE MIRANDA NETO (USP)
[email protected]
Resumo: Celebrado ainda hoje como principal personagem no universo dos guitar heroes, Jimi Hendrix ocupa um
lugar sagrado no imaginário social como um ícone da guitarra elétrica e do rock. Como parte fundamental da nossa
tese sobre a mitologia dos heróis da guitarra, esse trabalho se propõe a compreender sua trajetória pessoal como
uma narrativa clássica do herói. A adaptação dos fatos reais para a saga ficcional será elaborada baseada em três
biografias disponíveis no mercado editorial. Nossa primeira tarefa é realizar essa transposição através do método de
análise morfológica de contos proposto por Propp em conjunção com os estágios da jornada do herói concebido por
Campbell. Nosso outro objetivo é empreender uma nova síntese para extrair e revelar a produção lógica de sentido na
perspectiva semiótica de Greimas. Nesse nível, o esquema actancial pretende mostrar as relações funcionais
primordiais do sujeito da narrativa para a ampliação do entendimento do significado do texto e da estrutura básica do
conteúdo da trama.
Palavras-chave: Jimi Hendrix; narrativa; semiótica; mitologia; herói.
1. Introdução
Jimi Hendrix é frequentemente indicado como o maior herói da guitarra elétrica de todos os tempos
por diversas enquetes realizadas em publicações especializadas sobre música e guitarra. Nascido em
Seattle, noroeste dos Estados Unidos, o afro-americano Hendrix emergiu de uma origem humilde para se
tornar um ícone do rock e da moda hippie. Ao despontar na cena londrina no fim dos anos 1960, todo seu
virtuosismo instrumental e sua maneira ousada e libidinosa de se apresentar no palco conquistaram a
crítica musical e o público, o que o levou a se tornar um mito da música popular, da noite para o dia.
Seu êxito comercial na indústria fonográfica foi resultado das diversas experiências acumuladas na
sua história de vida. Embora alguns autores já tenham estudado o universo guitar hero - termo utilizado
para se referir aos principais representantes dessa linhagem virtuosística de guitarra – uma visão
aprofundada e voltada para os fundamentos mitológicos dessa condição especial é uma lacuna existente na
literatura do rock. A questão aqui é: Por que muitos profissionais da imprensa tratam esses músicos como
deuses, heróis ou seres extraterrestes? É pertinente o uso da linguagem fantástica para qualificar a
trajetória desses guitarristas?
Nosso objetivo neste artigo é re/construir uma narrativa do herói apoiada sobre livros e artigos sobre
Jimi Hendrix com a finalidade de confirmar se tal conceito é justificado pelos acontecimentos de sua vida
relatados pelos autores. Esta tarefa será realizada sob a orientação dos métodos narrativos de Propp,
Todorov e Greimas, em conjunção com a jornada do herói de Campbell no intuito de confrontar teorias e
refletir sobre a melhor maneira de realizar a transição entre a realidade e a ficção. É necessário lembrar
que não é possível conceber tal tarefa sem a interpretação de cunho psicológico e estético uma vez que o
DE MIRANDA NETO, Affonso Celso | I CIED (2015) 10-25
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vínculo entre a vida espiritual e a material não se manifesta de forma direta nas ações, mas sim
tacitamente, na esfera subjetiva dos personagens.
No mercado editorial podem ser encontrados mais de vinte livros entre biografias e obras sobre a
carreira musical do guitarrista. Cada uma a sua maneira traz aspectos relevantes que contribuem para a
compreensão de sua jornada abreviada aos 27 anos de idade. De um ponto de vista pessoal, a jornalista
Sharon Lawrence (2005) e o irmão Leon Hendrix (2012) constroem suas narrativas baseadas principalmente
na memória dos diálogos e na observação privilegiada de quem conviveu intimamente com o guitarrista. Já
o livro feito por Steven Roby e Brad Schreiber (2010) através de uma extensa investigação desvela os anos
formativos de Hendrix ainda em solo americano, antes de sua transferência para despontar na indústria
fonográfica em Londres.
Diversos autores já se empenharam em pesquisas voltadas para diversos temas relacionados à obra
de Hendrix. Friedlander (2004) no capítulo “Reis da guitarra” reflete sobre a gênese dessa idolatria, e
discorre sobre sua trajetória musical, destacando seu estilo inusitado de tocar guitarra. Waksman (1999)
por sua vez concentrou-se na discussão sobre a natureza fálica de sua performance corporal enfocando
questões relativas ao fetiche da negritude dentro de um universo majoritariamente branco como o rock. A
condição simbólica de Hendrix foi também estudada por Milard e McSwain (2004) com o objetivo de
compreender a essência da prática guitar hero, ao explicitar alguns mitos e ritos reatualizados e presentes
na trajetória do guitarrista.
2. Personagens da narrativa
Em “Morfologia do Conto Maravilhoso” (2001), Propp ao analisar um corpo de mais de cem contos
do gênero folclórico, extrai uma estrutura narrativa de trinta e uma esferas baseadas na ação temporal de
funções realizadas por cada personagem presente na estória. Nesse formato, oito personagens são
responsáveis por empreender as ações que constroem o sentido da trama. O herói é o protagonista,
condutor da narrativa, sempre à procura de algo, ou seja, um objeto, uma pessoa ou um ideal. Roby e
Schreiber relatam uma entrevista concedida por Hendrix para o jornal inglês New Musical Express em 1967
no qual Hendrix resumiu sua missão na vida: “Ambição pessoal: ter meu próprio estilo musical. Encontrar
minha mãe novamente” (2002, p. 5).
De acordo com a maioria dos seus biógrafos, sua obsessão pela música manifestou-se muito cedo.
Segundo seu irmão caçula Leon Hendrix, a prática da experimentação sonora foi o traço fundamental que
definiu a personalidade de Buster1. Na infância, o hábito de esticar elásticos nos pés da cama ou amarrar
fios de arame para simular uma corda era comum. Já na adolescência, Buster era sempre visto tocando air
1
Hendrix era apaixonado por ficção científica e pedia para que o chamassem assim em homenagem ao ator principal da série de
televisão Flash Gordon, Buster Crabbe.
DE MIRANDA NETO, Affonso Celso | I CIED (2015) 10-25
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guitar2 pelo corredor do colégio ou mesmo empunhando uma vassoura como se fosse uma guitarra. De
fato, como veremos adiante, os relatos destacam que a música exerceu uma função importante na sua vida
como uma compensação/sublimação psicológica para a ausência da figura materna.
Essa carência afetiva teria tido seu início com a incompatibilidade de gênios demonstrada por seus
pais no ambiente familiar. Após Al Hendrix, seu pai, pedir o divórcio na justiça e requerer a guarda dos
filhos, a situação se agravou. A dificuldade em manter um emprego estável por não controlar o alcoolismo
e o vício em jogos de azar, o transformaram no primeiro antagonista da história. O papel de prejudicar o
herói na realização de seu objetivo é tarefa do vilão ou do anti-herói. Na trama, a conjunção entre sua
incompetência para gerir uma casa e sua incapacidade para reconhecer o talento musical de Hendrix
resultou na criação de uma imagem negativa refletida em uma convivência conflituosa entre ambos.
Nesse panorama, os poucos momentos compartilhados com a mãe, Lucille Hendrix, representaram a
passagem para uma esfera especial, o que fortaleceu sua condição como a princesa no desejo do herói. Seu
irmão Leon relembra: “O apartamento da mamãe por outro lado era uma recompensa. Tudo que nós
fazíamos juntos era excitante. Sem mencionar que ela fazia café, almoço e jantar. Nenhum de nós podia
pedir nada melhor do que aquilo” (2012, p. 20). Ao morrer jovem, Lucille Hendrix, se tornou uma imagem
idealizada na sua vida e obra3. A jornalista Sharon Lawrence (2005) relata mais de uma ocasião na qual
Hendrix mencionou a importância de sua mãe e lhe mostrou fotos dela no camarim, antes de se
apresentar.
Na condição de vilão, outros dois personagens emergem na narrativa. O primeiro deles, Ed Chalpin,
produtor musical de Nova York, se caracterizou pelo oportunismo com que se apropriou da inexperiência e
do descaso de Hendrix com relação aos trâmites legais e financeiros. Esse descompromisso monetário,
reflexo de sua natureza de total comprometimento com a criação musical, permitiu também que seu
empresário, Michael Jeffery, tirasse proveito das pressões exercidas na justiça pelos processos de Chalpin,
para lesar ainda mais suas contas. De certa forma, Jeffery pode ser definido tanto como vilão ou anti-herói,
por se revelar no final da carreira de Hendrix, um profissional interesseiro. Contudo, as biografias
confirmam sua conduta inescrupulosa desde o princípio de sua atividade como empresário, o que lhe
confere, sem dúvida, o status de vilão.
A partir do ano de 1969, Hendrix já manifestava sua insatisfação e frustração pessoal por ter de
cumprir a extenuante agenda de concertos e lançamentos fonográficos requeridos pela indústria cultural. A
aceitação passiva da pressão foi decorrência de sua fraqueza em não saber conduzir corretamente sua
carreira. Eric Clapton relata em sua biografia a presença constante de uma comitiva “dionisíaca” ao lado do
guitarrista em todos os momentos que o encontrava. Esse fator é representativo de como um dos
2
Tocar uma guitarra imaginária imitando a performance corporal de um guitarrista conhecido.
Nas letras de algumas de suas composições mais conhecidas, o guitarrista menciona sua personalidade e explicita o desejo de
revê-la no futuro. São elas: “The wind cries Mary”, “Little wing”, “Castle made of sand” e “Gypsy Eyes” “Angel”.
3
DE MIRANDA NETO, Affonso Celso | I CIED (2015) 10-25
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principais vilões de sua história foi sua própria personalidade. Sua trágica morte aconteceu no momento
em que necessitava de uma tomada de consciência para modificar o rumo de sua vida pessoal e
profissional.
A figura do doador – indivíduo responsável por aconselhar o herói e lhe dar um objeto mágico, não
necessariamente material - é compartilhada entre a modelo inglesa Linda Keith e o produtor musical Chas
Chandler, ex-baixista da banda The Animals. Este último entrou em cena indicado por Linda, primeira
pessoa a vislumbrar a possibilidade de uma carreira fonográfica para o guitarrista. Na época, pensando em
iniciar carreira como produtor musical, Chandler reuniu todos os esforços para investir na divulgação do
talento de Hendrix. De certa forma, o inglês se caracteriza também pela figura do despachante4 por
convencer Hendrix a ir para Londres, e de ajudante por se fazer presente em todos os momentos cruciais
de sua “aventura” musical, seja nos estúdios de gravação ou nas principais apresentações do princípio de
sua carreira.
Diversos são os ajudantes na sua história de vida, personagens caracterizados por auxiliar o herói no
momento dos maiores desafios que lhe são impostos. Billy Cox, seu amigo e baixista, conviveu
intensamente com Hendrix tanto nas experiências musicais no chitlins circuit5 no início da década de 1960,
quanto na sua fase final de carreira, integrando o grupo The Jimi Hendrix Experience. O baterista Mitch
Michel foi outro parceiro fundamental na sua trajetória fonográfica ao se encaixar perfeitamente no estilo
proposto pelo guitarrista. A sintonia fina existente entre a bateria e a guitarra é uma característica notável
em seus trabalhos.
No nosso entendimento, o principal ajudante e um personagem decisivo na trajetória de Hendrix foi
o engenheiro de estúdio Eddie Kramer. Seu domínio nas técnicas de gravação, ao realizar diversas
experimentações sonoras, inaugurou um novo paradigma na produção música popular. Todas as
ferramentas tecnológicas disponíveis para a guitarra foram empregadas para dar o timbre ideal almejado
por Hendrix em cada canção. O compartilhamento de conhecimento desta parceria está registrado
integralmente na indústria fonográfica. Por seu conhecimento estético das ideias musicais daquele, Kramer
ainda hoje é o curador da obra de Hendrix e responsável por quase todos os discos póstumos colocados no
mercado fonográfico.
É necessário citar ainda outras pessoas importantes na constituição do artista Hendrix. Faye
Pringeon, sua namorada na época em que tentava a sorte em Nova York antes da fama, foi quem o indicou
para diversos artistas de soul music6 como Sam Cook, The Isley Brothers e Curtis Knight. Segundo Hendrix,
somente com este último, sua forma original de tocar foi respeitada e estimulada, fato não observado nas
experiências anteriores. Sua participação na banda de Little Richard foi abreviada exatamente por sua
4
Personagem que orienta e convence o herói a partir imediatamente em busca de seu objetivo.
Circuito de bares e clubes destinados aos artistas negros na época da segregação racial nos Estados Unidos.
6
Gênero musical afro-americano nascido da mistura da música gospel e do rythm’n’blues no fim da década de 1950.
5
DE MIRANDA NETO, Affonso Celso | I CIED (2015) 10-25
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ousadia ao tocar guitarra com a boca ou atrás da cabeça, comportamento inaceitável para um cantor e
pianista considerado vaidoso. Entretanto, a postura confiante e extravagante de Richard seria um traço
determinante para o desenvolvimento de sua persona artística.
Outro anti-herói da narrativa é Noel Reading, baixista da formação original do The Jimi Hendrix
Experience. Personagem importante na concepção da sonoridade do grupo, Reading representou de forma
precisa “a figura ambígua que parece do bem, mas se revela contra o herói e é desmascarada no final.” Na
verdade, ao aceitar o papel de ser baixista na banda, mesmo sendo guitarrista de oficio, sua decisão se
revelou apenas uma estratégia para ganhar visibilidade no cenário musical. Sua relação com Hendrix
sempre foi conflitante e competitiva. Ao deixar a banda em 1968, sua tentativa de se estabelecer como
cantor e compositor no mercado se mostrou uma decisão totalmente equivocada, resultando apenas em
frustração e arrependimento.
Antes de conhecermos a estória de Hendrix, é preciso ressaltar que a nossa concepção de narrativa
se assemelha à reflexão de Todorov sobre a relação dicotômica entre mudança (contraste) e regularidade
(repetição) encontradas no curso na biografia de cada ser humano:
“A narrativa se constitui na tensão de duas forças. Uma é a mudança,o inexorável curso dos acontecimentos, a
interminável narrativada “vida” (a história), onde cada instante se apresenta pela primeira e última vez. É o caos que a
segunda forçatenta organizar; ela procura dar-lhe um sentido, introduzir umaordem. Essa ordem se traduz pela
repetição (ou pela semelhança)dos acontecimentos: o momento presente não é original, masrepete ou anuncia
instantes passados e futuros” (TODOROV, 2004, p. 21).
3. Construção da narrativa do herói
Segundo Campbell, o nascimento do herói está imerso em circunstâncias excepcionais presentes
desde sua gestação até o período da infância. Johnny Allen Hendrix veio ao mundo em 27 de novembro de
19427 em Seattle, após uma gravidez inesperada de sua mãe, Lucille Jeter Hendrix. Seus primeiros anos de
vida se passaram em uma casa de adoção na Califórnia, uma vez que com apenas 16 anos de idade, Lucille
não possuía condições financeiras, nem maturidade para criá-lo. Convocado para a segunda guerra
mundial, seu pai, Al Hendrix, não pôde acompanhar o parto. No entanto, ao término do conflito, Al
retomou a guarda do filho, e mudou seu nome para James Marshall Hendrix.
A troca de nome é apenas um dos fatos dramáticos ocorridos na sua infância. Todo esse período foi
marcado por grande instabilidade financeira da família, insegurança emocional e inúmeras transferências
de domicílio. A separação dos pais, ocorrida quando Hendrix tinha 10 anos, teve como consequência uma
dupla ausência afetiva. Se por um lado, a privação do contato com a mãe foi péssima para sua formação,
por outro lado, o convívio diário com seu pai não se mostrou benéfico devido à rotina de trabalho de Al. A
7
Quase um ano após o bombardeio do Império Japonês em Pearl Harbour que determinou a entrada dos Estados Unidos na
Segunda Guerra Mundial.
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saída da figura dos pais acarretou o surgimento de um indivíduo introvertido e distante, como destacam os
autores Roy e Schreiber (2010, p. 7).
O método de Propp até a esfera funcional IX pode ser aplicado na sua dinâmica familiar até sua saída
de Seattle. A primeira esfera funcional do conto maravilhoso correspondente à fase da preparação do herói
onde há afastamento de um dos membros da família, que no caso específico de Hendrix, se configura em
um movimento duplo. A primeira proibição imposta ao herói pode ser verificada na responsabilidade e nas
restrições que lhe foram imputadas ao ser obrigado a cuidar diariamente de seu irmão caçula Leon. Este
último, em sua biografia, narra episódios dramáticos em que Hendrix repartia a pouca comida disponível ou
furtava pães no supermercado para alimentá-lo, durante os longos sumiços de seu pai em virtude do
alcoolismo e do vício em jogos de azar. A segunda norma já tinha sido estabelecida anteriormente com a
proibição do encontro dos filhos com a mãe, fato que só ampliou a imagem da mãe como musa inspiradora
e objeto do desejo. Esse cerceamento ganhou dimensão trágica na ocasião da morte de Lucille Hendrix em
1958. A decisão do pai de Hendrix de impedir seu comparecimento no enterro foi uma atitude que jamais
seria esquecida pelo músico, como afirma Lawrence (2005, p. 14).
Como sua obra sempre esteve conectada com sua experiência de vida, a figura materna aparece por
diversas vezes nas letras de suas canções. Em “Castle made of sand”, presente no seu segundo disco,
Hendrix descreve de forma lírica a dinâmica familiar de sua infância e adolescência. No terceiro verso,
podemos ver como a morte de sua mãe causou um impacto profundo em sua obra:
"Havia uma jovem garota, que tinha o coração condenado, porque ela estava incapacitada para a vida, e não podia
emitir um som. E ela desejou e rezou que iria parar de viver, então ela decidiu morrer. Ela puxou sua cadeira de roda à
borda da baía, e olhando para suas pernas ela sorriu: "Você não vai me machucar mais." Mas então ela percebeu algo
que nunca tinha visto, isso a fez saltar e dizer: "Olha, um navio alado de ouro está passando no meu caminho" E
realmente isso não tem que parar... Isto apenas continuou, E então os castelos de areia deslizam no mar,
8
Eventualmente " (HENDRIX, “Castle made of sand” do disco “Axis: bold as Love”).
Sob a perspectiva do eixo actancial do desejo de Greimas, pode-se visualizar a disjunção provocada
pelo pai com a oposição entre o sujeito (Hendrix) e sua mãe Lucille,e também entre ele e o objeto violão.
Neste segundo caso, a objeção paterna foi direcionada para o interesse de Hendrix com a experimentação
do som9, e consequentemente com a música. O episódio de aquisição do violão é representativo da falta de
empatia do pai com o desejo do filho. A iniciativa de contrair uma dívida de cinco dólares na compra de
instrumento para Hendrix partiu de sua tia Ernestine Benson que convenceu Al Hendrix a aceitar a oferta
de um amigo. É importante frisar que Ernestine Benson foi uma figura importante na formação do
8
“There was a young girl, whose heart was a frown, because she was crippled for life, and couldn't speak a sound, and she wished
and prayed she would stop living, so she decided to die. She drew her wheel chair to the edge of the shore, and to her legs she
smiled "You won't hurt me no more." But then a sight she'd never seen made her jump and say "Look, a golden winged ship is
passing my way" And it really didn't have to stop...it just kept on going. And so castles made of sand slips into the sea, Eventually”
9
Nos três livros aqui selecionados há referência de situações em que Hendrix costumava executar uma vassoura como guitarra,
tanto em casa como no colégio.
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guitarrista, por lhe ter apresentado e compartilhado inúmeros discos de blues, como relatam Roy e
Schreiber (2010, P. 6).
No nível III da transgressão, Hendrix imediatamente se envolveu intensamente com música através
de diversas bandas no colégio e na cidade de Seattle. Mesmo em condições emocionais tão adversas, ele
formou os Velvetones e os Rocking Kings no ensino médio, e com os últimos venceu uma batalha de bandas
e atingiu o ponto alto do circuito da cidade, a casa de espetáculos Birdland. Naturalmente, sua decisão de
abandonar os estudos se tornou motivo de discussões e interrogatórios em casa, ainda mais com a
mentalidade pragmática de seu pai voltada para a exaltação da ideologia trabalhista. Desconsiderando seu
interesse por música, seu pai enquanto antagonista tentou convencê-lo a realizar trabalhos manuais em
casa.
A esfera funcional da informação de Propp caracteriza-se pelo momento em que Hendrix se envolve
em pequenos delitos na comunidade, e é obrigado a revelar para seu pai a participação em um pequeno
furto na região. Mesmo perdoado, sua participação em duas circunstâncias suspeitas definem seu destino.
Condicionado pela juíza do caso a decidir entre as casas de detenção ou o serviço militar, ele escolhe a
brigada paraquedista por causa do símbolo da águia. De fato, aqui se dá o momento em que o herói
explicita sua carência, usando esse episódio como pretexto para sair de um contexto limitador e buscar o
objetivo de se tornar músico profissional.
Segundo Campbell, esse é o momento de partida da jornada do herói que se caracteriza pelo
afastamento do vínculo paterno. Segundo Campbell:
“O desafortunado pai é a primeira intrusão radical de outra ordem de realidade na beatitude dessa reafirmação
terrena da excelência da situação no interior do útero; assim sendo, o pai é vivenciado primariamente como um
inimigo. Para ele é transferida a carga de agressão originalmente vinculada à mãe "má" ou ausente. Permanece com a
mãe (normalmente) o desejo vinculado à mãe "boa", ou presente, nutridora e protetora” (CAMPBELL, 1949, p.7).
O começo da viagem do herói foi provavelmente impulsionado por sua vida familiar conturbada, o
que lhe despertou o desejo de procurar novos ambientes. Nesse sentido, Campbell lembra que “A chamada
pode ser uma sensação por parte do herói de que algo está faltando em sua vida e que ele ou ela deve
procurar o que está faltando” (1949, p. 30). No serviço militar, Jimi Hendrix conheceu o baixista Billy Cox,
músico que se tornaria um dos seus grandes parceiros musicais. Após apenas nove meses, Jimi Hendrix foi
dispensado do exército, e junto com Cox começou sua aventura musical no chitlins circuit, formado por
bares e boates negras de Nashville, um dos berços do rock’n’roll.
Segundo Hendrix, esses locais foram decisivos para seu aprendizado e desenvolvimento musicais,
onde pôde experimentar diversos sons e criar um estilo original. Essa é a esfera funcional de Propp que
representa o início da reação do protagonista da história onde ele é submetido a diversos desafios e testes
de preparação para o futuro. O eixo actancial do poder proposto por Greimas começa a se definir aqui com
a entrada em cena de diversos ajudantes que vão auxiliá-lo na sua jornada e também de oponentes,
voltados para interferir negativamente na estória. Essa é a hora em que herói enfrenta seus medos e
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inseguranças, intitulada por Campbell como “recusa do chamado”, fase de hesitação cuja superação só é
possível com a participação de companheiros agindo ao lado do herói.
Sua busca o levou a Nova York onde se estabeleceu no Harlem, bairro negro do famoso Teatro
Apollo, templo da música soul. Ali, Hendrix venceu um concurso para guitarristas pelo qual ganhou um
prêmio de apenas vinte cinco dólares. Neste momento, nosso herói vai enfrentar muitos problemas
financeiros para se estabelecer não conseguindo chance em nenhuma casa para tocar. Assim, surge sua
primeira tutora, Faye Pridgeon, modelo que vai lhe indicar vários amigos músicos, entre eles, Ike and Tina
Turner, Isley Brothers, Sam and David e King Curtis, com os quais Hendrix vai ganhar visibilidade no cenário
musical, tocando, gravando e excursionando por todo território americano.
Sua temporada como sideman de bandas soul contribui decisivamente para o desenvolvimento do
seu estilo, tanto na parte rítmica da guitarra elétrica quanto na sua atuação cênica. Em documentário sobre
sua vida, Faye declarou que embora se posicionasse no fundo do palco, Hendrix impressionava por seu
estilo inusitado de tocar, e a partir de certo momento, já se constituía em um show à parte. É provável que
sua performance ousada tenha nascido da observação dos artistas negros de soul cujos “truques” eram
feitos para provocar as meninas nas primeiras filas. Neste sentido, podemos concluir que seu pragmatismo
musical baseado na experiência o levou a se apropriar de diversos elementos estéticos não somente
musicais de outros artistas para formar seu estilo original. E, sobretudo, o ambiente extremamente
desafiador e competitivo das plateias negras nos pequenos clubes do interior americano foi decisivo para
sua constituição como artista. Em uma de suas primeiras canções gravadas no disco de estreia intitulada
Highway Chile, Hendrix descreve as dificuldades e desafios enfrentados nessa fase:
“Sua guitarra pendurada nas costas, Suas botas empoeiradas e seu Cadillac Sears, Cabelo vermelho apenas soprando
no vento. Não via uma cama há muito tempo, o que é um pecado. Ele saiu de casa quando tinha dezessete anos. O
resto do mundo, ele desejava ver, E todo mundo que sabe da mesma velha história, pedra que rola não cria limo, e
Agora você provavelmente vai chamá-lo de vagabundo, Mas é um pouco mais profundo do que isso, ele é uma
rodovia Chile” (HENDRIX, “Highway Chile” do disco Are you experienced).
Em umas dessas turnês pelo sul dos Estados Unidos, Hendrix recebe o convite de Little Richards, um
dos músicos pioneiros do rock para integrar sua banda. O enorme desafio foi um período de experiência
impar para Hendrix, que já com seu estilo bem desenvolvido, entrou em conflito em diversos momentos
com a postura profissional do cantor e pianista. Mesmo com toda tensão relatada entre os dois, Richards se
tornou um modelo para o guitarrista, por ser um artista negro bem sucedido e autoconfiante que se
apresentava com vestuário extravagante e dominava a atuação cênica com maestria. É visível no figurino
usado por Hendrix no festival de Monterrey, a reprodução do estilo de se vestir de Richards.
Contudo, sem a liberdade necessária para se expressar plenamente, ele toma consciência de que
para realizar seu desejo como guitar hero deve seguir seus princípios e decide começar do zero em Nova
York. Lá, Hendrix vai assumir o apelido de Jimi James e com sua banda The Blue Flames vai se estabelecer
na cena musical do Greenwich Village, famoso reduto boêmio da época. No Café Wha, bar situado nesse
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local histórico onde floresceu o movimento contracultural da literatura beatnick e da música folk, Hendrix
vai ser descoberto por um segundo doador na sua trajetória, a modelo Linda Keith, namorada de Keith
Richards, guitarrista dos The Rolling Stones. Sua mediação foi importante para oferecer dois objetos
mágicos a Hendrix; uma guitarra modelo Fender Stratocaster e uma fita cassete com a música “Hey Joe”,
cuja versão se tornou o primeiro sucesso do guitarrista na indústria fonográfica.
Por intervenção da modelo, Chas Chandler, baixista da banda inglesa The Animals entrou em cena.
Iniciando sua carreira como produtor musical, Chandler convenceu o guitarrista a se transferir para Londres
com o intuito de gravar um disco. Segundo ele, na capital inglesa Hendrix teria a disposição todas as
ferramentas materiais e humanas, fato que seria determinante para sua entrada na indústria cultural.
Chandler se torna a figura tutelar que vai guiar o herói para enfrentar todos os desafios em um reino
desconhecido. Figura chave na trajetória de Hendrix, além de doador, ele atuou como personagem do
despachante, elemento que para Greimas integra o eixo de transmissão, responsável por conectar o
protagonista com seu objeto. Aqui, inicia-se a fase da transferência do herói para um mundo especial,
caracterizada por Campbell como a “passagem do primeiro limiar” (1949, p. 44).
Outro personagem importante ingressa na trama por motivação financeira. Chas Chandler convidou
o antigo empresário de sua banda The Animals para comandar a parte financeira. Michael Jeffery se
tornaria desde então, ao lado do pai de Hendrix, um grande vilão ou anti-herói na sua história. A ele são
imputadas diversas acusações de desvio de dinheiro durante a breve carreira de Hendrix. Segundo os
biógrafos, Jeffery fundou uma empresa chamada Yameta em um paraíso fiscal para onde enviava grande
parte da receita dos inúmeros shows realizados pelo guitarrista. Na verdade, sua função na história foi
desestabilizar o herói – no nível da falta de liberdade, do não poder não fazer - ao contratar diversas
apresentações equivocadas e assim esgotar a energia do protagonista da história.
Greimas reconhece no esquema narrativo de Propp uma estrutura polêmica, isto é, uma verdadeira
“semiótica da manipulação”, onde a função do vilão (ou antissujeito) é parte essencial da eficácia
semântica da história:
“Por sua leitura do esquema de V. Propp, Greimas percebeu que as narrativas inventadas pelo folclorista russo não
eram apenas histórias de um herói, mas também, ainda que forma menos explícita, a história de um vilão. Isso quer
dizer que a narrativa se constitui em uma estrutura polêmica, isto é, dois percursos narrativos opostos: o do sujeito e
do antissujeito, os quais visam um mesmo objeto-valor. O esquema narrativo funda-se em tal estrutura elementar, a
qual tem, portanto, estatuto necessariamente polêmico-contratual: uma disputa de objeto de valor entre sujeito e
antissujeito” (MENDES, 2013, p. 8).
A manipulação é definida por Greimas como “a ação do homem sobre os outros homens, visando a
fazê-los executar um programa dado; no primeiro caso, trata-se de um fazer-ser, no segundo de um fazerfazer.” (2013, p. 300) Podemos dizer que Hendrix foi pressionado por três vilões em sua efêmera trajetória
na indústria musical. O primeiro deles foi Ed Chalpin, um produtor de discos de Nova York que o convenceu
a assinar um contrato exclusivo de gravação sem ler. Neste momento, tem-se a mudança da competência
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modal de Hendrix, provocada pelo efeito da comunicação, que o impeliu, por sua falta de experiência no
ramo, a aceitar as condições impostas, por meio da sedução e da dimensão pragmática, que Greimas define
como uma passagem do não poder não fazer ao dever–fazer. Ao propor certos valores culturais positivos ao
músico no sentido de impulsionar sua visibilidade no meio musical e usar seu poder persuasivo, Chalpin se
beneficiou de uma clausula contratual que obrigava Hendrix a lhe conceder 5% dos direitos de todas suas
produções futuras.
Nos anos subsequentes, essa manipulação apoiada na modalidade de poder se tornou ainda mais
negativa por que foi explorada por seu empresário Michael Jeffery para lhe extorquir quantias absurdas de
dinheiro para pagamento dos processos impetrados por Chalpin. A essas justificativas de administrar sua
obra, somaram-se ainda já citadas manipulações de Jeffery através da marcação de uma intensa agenda de
shows. Essa intimidação foi feita somente com motivos financeiros sem se preocupar com as longas
distâncias e o pouco intervalo de tempo entre elas, que levaram Hendrix à exaustão no fim de 1968. De
fato, Hendrix se concentrava apenas em sua música, e não costumava se intrometer com a parte financeira.
Contudo, o músico a partir de um dado momento se viu encurralado por Jeffery, o que se configurou como
um código da submissão entendido por Greimas pela relação entre impotência e obediência. Podemos
dizer que foi essa falta de liberdade para conduzir sua carreira um dos motivos de sua tragédia pessoal.
Entretanto, outra grande fonte de frustração e manipulação foi seu pai Al Hendrix. Se não bastasse
ter impedido a conjunção com sua vontade de tocar um instrumento na infância e ter provocado a
disjunção na relação afetiva de Hendrix com sua mãe Lucille, após o sucesso de filho, Al Hendrix se tornou
um indivíduo extremamente interesseiro. Segundo Lawrence, o guitarrista costumava chamá-lo de “money
machine” por sua maneira descarada de abordar a questão financeira sem rodeios ou vergonha quando
entrava em contato com o filho. Hendrix chegou ao ponto de evitar estar na presença de seus familiares em
Seattle para se livrar da decepção de se sentir usado. Hoje o espólio de sua obra é comandado por Janie
Hendrix, filha do segundo casamento de Al, com quem Hendrix pouco conviveu. Segundo Lawrence (2005,
p. 263) Al Hendrix após retomar o espolio da obra de Jimi Hendrix mudou o discurso dizendo que sempre
apoiou o filho na decisão de tocar guitarra e se tornar um músico profissional.
Mesmo com todos esses antagonistas em seu caminho, Hendrix com seu vício por experiências
musicais, invadiu a capital inglesa como um furacão, tocando em todos os bares e boates da cena local no
ano de 1966. Segundo Eric Clapton, Hendrix preencheu uma lacuna dentro do movimento do rock inglês da
época ao mobilizar as bandas e os artistas. De certa forma, o músico cumpria um papel predestinado “na
medida em que o ato do herói coincide com aquele para o qual sua própria sociedade está pronta, ele
parece correr sobre o grande ritmo do processo histórico” (Campbell, p. 71-72). Não foi por acaso que para
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os olhos de muitos, ele representou uma imagem selvagem10 na terra por ter antecipado e traduzido o
inconsciente coletivo de uma geração.
A esfera narrativa XVI, representativa do combate direto, acontece uma semana depois de sua
chegada, no dia primeiro de outubro de 1966. No intuito de conhecer o guitarrista Eric Clapton, por
intermédio de Chandler, Hendrix solicitou uma participação em uma apresentação do Cream, ocorrida na
Escola Politécnica de Londres. Surpresos com o pedido - afinal ninguém havia realizado tal ousadia antes
em virtude da reputação de “supergrupo” do rock - os músicos aceitaram o pedido de Chandler. Com a
execução de apenas um blues de seu repertório, Hendrix se transformou em mito da noite para o dia, como
o homem que superou o “deus da guitarra”:
“Hendrix, em sua Stratocaster branca, executou uma deslumbrante e extensa versão de “Killing Floor”, do legendário
bluesman Howlin` Wolf, enquanto um triunfante Chas se postava ao lado do palco junto Eric Clapton. “Eric ficou
pálido, esmagado diante do talento de Jimi”, disse Chas. “Mal podia falar”. Para Clapton – reconhecido maior
guitarrsita da Inglaterra desde seu trabalho anterior com os Yardbirds e os Bluesbreakears de John Mayal – ouvir
Hendrix se derramar daquela forma, naquele momento, foi chocante e ameaçador” (LAWRENCE, 2008, p. 63).
O estigma adquirido pelo herói foi criar a imagem de selvagem da guitarra, fomentada na imprensa
por Chandler como “Black Elvis”. Sua performance violenta e sensual - na qual tocava a guitarra com os
dentes ou atrás da cabeça, movimentos corporais que simulavam um ato sexual com a guitarra - se
transformou em um traço fundamental de sua identificação na indústria de espetáculos. A partir daí, seu
corpo passou a ser um objeto estético, um símbolo da liberdade e da rebeldia, em virtude de seu ataque
físico na guitarra. Outro fator preponderante em sua atuação de palco era o estilo extravagante na
composição da indumentária que o tornou um ícone da moda psicodélica na cena de arte e consumo da
Swinging London.
O primeiro disco de sua banda The Jimi Hendrix Experience, Are you experienced, inaugurou um
novo paradigma na estética do rock. Essa produção redirecionou a história da guitarra ao desfilar um
repertório de técnicas novas como feedback e microfonia que consolidou definitivamente a “estética do
ruído” levantada por McSwain (1996). Sua estreita relação com o engenheiro de som Eddie Kramer, outro
companheiro inseparável do herói, o permitiu realizar diversas experimentações sonoras, concebendo
efeitos e sonoridades nunca ouvidas antes. Eric Clapton relata com fidelidade a impressão que o trabalho
causou na época:
“Jamais esquecerei o retorno a Londres após gravar Disraeli Gears, com todos nós excitados por termos feito o que
considerávamos um álbum inovador, uma combinação mágica de blues, rocke jazz. Infelizmente para nós, Jimi Havia
acabado de lançar o Are You Experienced, e era só o que as pessoas queriam ouvir.” (CLAPTON, 2007, p.105).
De forma precoce, Hendrix atinge seu primeiro objetivo de conceber um estilo musical original. O
momento de realização do herói é traduzido pela vitória pessoal de ter superado sua insegurança interna e
reparado momentaneamente sua carência. Contudo, o regresso e o processo de reconhecimento do herói
10
Ao chegar em Londres, ele ganhou o apelido de “Wild man from Borneo” por seu jeito selvagem de tocar e seu cabelo
desgrenhado, típico de Bob Dylan, seu ídolo na época.
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pode se prolongar na estrutura narrativa. Para Propp, essa esfera se caracteriza pelo domínio do espaço e
pelo deslocamento transformado em fuga se o herói irritou as forças opostas. Na trajetória de Hendrix esse
período assume a feição de uma nova busca, uma metáfora para reconquista de seu próprio território, os
Estados Unidos.
Figura 1. Hendrix em Monterrey: retorno do herói
Sua imagem mais conhecida, ajoelhado com a guitarra em chamas, aconteceu no festival Monterrey
Pop em 1967, primeiro evento de grande envergadura do rock. Na última música do repertório intitulada
“Wild thing” Hendrix realizou um tipo de “culto do fogo sagrado” no palco, de forma improvisada em
virtude da escalação das bandas11. Essa prática de utilização do fogo em rituais de comunhão e elevação
espiritual faz parte de diversas culturas e religiões – Maias, hindu, católica - desde os primórdios do
homem. No mito de prometeu, o fogo “é o princípio do conhecimento e do domínio da natureza. É
conquista da tecnologia” (Horta, 2011, p.12). Nessa celebração, Hendrix deu inicio a metáfora da “religião
elétrica”, termo com qual costumava definir sua música e a sentimento gregário que ela despertava nos
seus fiéis seguidores. Nesse sentido, Maffesoli afirma:
“A metáfora eucarística poderia ser aplicada a diversas aglomerações que ocorrem em torno de um desses objetosimajados, como o cantor de rock, a equipe esportiva, o intelectual famoso, ou mesmo o pregador religioso (Os
televangelistas, por exemplo), sem falar, evidentemente, do papa e de suas viagens, em grande pompa, que o levam
aos quatro cantos do mundo. Em cada um desses casos, o objeto-imajado inanimado anima uma comunidade”
(MAFFESOLI, 1995, p.129)
Essa apresentação representava o retorno do guitar hero a sua terra de origem o que se configura
um importante estágio na jornada clássica do herói. Após passar por tantos desafios e dificuldades, sua
função agora é compartilhar seu elixir de sabedoria para contribuir com a melhoria da sociedade:
“Terminada a busca do herói, por meio da penetração da fonte, ou por intermédio da graça de alguma personificação
masculina ou feminina, humana ou animal, o aventureiro deve ainda retornar com o seu troféu transmutador da vida.
O círculo completo, a norma do monomito, requer que o herói inicie agora o trabalho de trazer os símbolos da
sabedoria, o Velocino de Ouro, ou a princesa adormecida, de volta ao reino humano, onde a bênção alcançada pode
servir à renovação da comunidade, da nação, do planeta ou dos dez mil mundos.” (CAMPBELL, 1949, p. 114)
11
Segundo Pete Thousand, guitarrista do The Who, sua banda se recusou a tocar após o show de Hendrix. Como este último havia
“roubado” a cena em um show anterior na Inglaterra ao “sacrificar” sua guitarra, eles preferiram entrar antes. Assim, Hendrix
entrou após o The Who destruir seus instrumentos, fato que o levou a queimar e destruir sua guitarra novamente, mas dessa vez
de frente para câmeras e lentes da imprensa musical do mundo todo.
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Ainda sob a produção de Chas Chandler, Hendrix realizaria dois trabalhos seminais para o curso
tecnológico da guitarra elétrica e da música popular, os discos Axis bold as Love e Electric ladyland. Neste
último álbum está a canção “Voodoo Child”, cujo riff12 de introdução com o pedal de efeito wah wah é
reconhecido como um dos mais emblemáticos do rock. A letra da canção disseminou um mito trágico que
anunciava sua morte precoce. Se inserindo na tradição autoindulgente de clássico “hochiee cochiee man”
de Muddy Waters, nos versos ele se intitulava um predestinado, uma espécie de divindade com poderes
mágicos. Em uma das estrofes ele prenunciava sua transição para outro plano existencial: “Se eu não lhe
encontrar mais neste mundo, te encontrarei no próximo e não se atrase, não se atrase!” (HENDRIX,
“Voodoo Child”, Disco Electric Ladyland).
Sua tragédia pessoal começou a se delinear causada principalmente por sua insatisfação pessoal com
as exigências da indústria musical e as sabotagens e intimidações de seu empresário Michael Jeffery. Sua
concepção hedonista do “aqui e agora” deflagrada nas apresentações criou uma expectativa insaciável no
público por mais transcendência. Essa condição especial despertou a cobiça maléfica de toda sua máquina
administrativa composta por empresários, promotores de shows, donos de gravadoras, o que foi definitivo
para sua derrocada. Por outro lado, o guitarrista se deixou levar por decisões equivocadas no campo
profissional e fraquezas na esfera pessoal relacionadas ao uso de drogas. Eric Clapton relatou que Hendrix
possuía uma “comitiva dionisíaca” de parasitas e oportunistas, ao seu lado em todos os lugares que o
encontrava.
Sua estória biográfica se encontra sob a perspectiva estética na essência da tragédia, discutida por
Aristótelis na Poética. Segundo Suassuna, a primeira característica da tragédia é uma ação de caráter
elevado realizada pelo protagonista, na qual se enquadra a vida de Hendrix que colocou acima de tudo seu
amor pela música. Mas o elemento fundamental do personagem da tragédia que nos remete a Hendrix é
sua personalidade excepcional e ao mesmo tempo conflitante. Para Suassuna, o personagem trágico
sempre se vê em um conflito que o conduz um dilema. Por isso ele afirma que “Aí, ao contrário do que se
pensa, a tragédia é causada pela vontade e não pela fatalidade” (SUASSUNA, 2008, p. 129)
Assim, sua ambição profissional acabou deixando-o em um dilema entre preservar sua autonomia e
individualidade ou priorizar sua imagem pública. Neste sentido, Henderson atesta:
“Ouvimos repetidamente a mesma história do herói de nascimento humilde, mas milagroso, provas de sua força
sobre-humana precoce, sua ascensão rápida ao poder e à notoriedade, sua luta triunfal contra as forças do mal, sua
falibilidade ante a tentação do orgulho (hybris) e seu declínio, por motivo de traição ou por um ato de sacrifício
“heroico”, onde sempre morre” (JUNG, 1964, p. 110).
Um ano antes de morrer, Hendrix realizou uma obra imaterial icônica do século XX. No encerramento
do festival de Woodstock, o guitar hero interpretou uma versão “selvagem” do hino americanona guitarra
intercalando sons de bombas explodindo, tiros de metralhadoras e aviões. Sua atitude de trazer para o
12
Pequeno motivo melódico repetido pela guitarra que geralmente define uma canção de rock.
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quintal americano a experiência da guerra do Vietnã desencadeou reações opostas. De um lado, os que
acharam sua versão desrespeitosa e subversiva, de outro, os que consideraram seu passado como
paraquedista, uma atitude patriótica. A indumentária utilizada por Hendrix apresentava franjas em baixo
dos braços, como se fossem asas, o que aumentou sua simbologia como um arquétipo primitivo da
transcendência. Na segunda estrofe, de uma de suas ultimas canções, a balada “Angel”, ele cantava a
chegada de uma mulher em forma de anjo que o levava para outra existência:
“Com certeza, esta manhã veio a mim Asas de prata em silhueta contra o amanhecer de uma criança. E meu anjo
disse-me: "Hoje é o dia para que você possa subir, Pegue minha mão, você vai ser meu homem, Vai ascender" E então
ela me elevou aos céus,E eu disse, "Voe meu doce anjo, Voe pelo céu, Voe, meu doce anjo, sempre vou estar ao seu
13
lado " (HENDRIX, “AngeL” em First raws of rising Sun).
4. Considerações finais
O legado deixado pelo herói Jimi Hendrix tem várias dimensões. No plano tecnológico, suas
inovações nas técnicas de gravação e o desenvolvimento de efeitos eletrônicos foram decisivos para o
desenvolvimento da guitarra elétrica, e da música de modo geral. No plano musical, seu estilo particular de
tocar e compor que inclui o repertório harmônico, melódico e rítmico serviu de modelo e inspira até hoje
diversos guitar heroes como Pepeu Gomes, John Frusciante, Steve Ray Vaughan e Mike McCready. No ano
de 2013, Eddie Kramer, o engenheiro de áudio que o ajudou a construir o estúdio Electric Ladyland, lugar
idealizado para as experimentações musicais do guitarrista, colocou no mercado mais um disco de Hendrix
com músicas inéditas, provando que sua morte só ocorreu no plano físico.
Os esquemas narrativos propostos por Propp, Campbell e Greimas se adaptaram perfeitamente à
biografia de Jimi Hendrix. Sua estória pessoal e profissional pode ser vista como uma repetição das
tragédias clássicas, o que nos remete a definição da narrativa como um equilíbrio de forças entre a
repetição dos fatos e a mudança inexorável do tempo. De fato, o diálogo entre as diversas teorias de
análise da estrutura narrativa proporcionou um maior entendimento da trama ao permitir-nos visualizar as
ações desempenhadas por Jimi Hendrix em sua busca por reconhecimento como músico, e as
manipulações exercidas pelos vilões que incidiram negativamente em sua trajetória e o levaram ao seu
destino fatal. Sua condição de mito da guitarra elétrica e da música popular permanece até hoje viva
porque sua vida é um símbolo da luta de um ser humano por um ideal mais elevado, o que fortalece
perfeitamente sua representação social como um herói clássico.
Referências bibliográficas
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1949.
13
“Sure enough this morning came unto me, Silver wings silhouetted against the child's sunrise. And my angel she said unto
me,"Today is the day for you to rise, Take my hand, you're gonna be my man, You're gonna rise "And then she took me high over
yonder. And I said, "Fly on my sweet angel,Fly on through the sky, Fly on my sweet angel,Forever I will be by your side“
DE MIRANDA NETO, Affonso Celso | I CIED (2015) 10-25
I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 24
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DE MIRANDA NETO, Affonso Celso | I CIED (2015) 10-25
I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 25
Abstract: Celebrated today as the main character in the world of guitar heroes, Jimi Hendrix holds a sacred place in the
social imaginary as an icon of the electric guitar and rock. As a key part of our thesis about the mythology of guitar
heroes, this study aims to understand his personal journey as a classical hero narrative. The adaptation of the real
facts to the fictional saga will be prepared based on three biographies available in the publishing market. Our first task
is to accomplish this through implementing the method of morphological analysis of stories proposed by Propp in
conjunction with the stages of the Hero's Journey designed by Campbell. Our second objective is to undertake a new
synthesis to extract and reveal the logical production of meaning in Greimas semiotic perspective. At this level, the
actantial scheme aims to show the primary functional relationships of the subject of the narrative to expand the
understanding of the semantic meaning of the text structure and basic content of the plot.
Keywords: Jimi Hendrix; narrative; semiotic; mythology; hero.
DE MIRANDA NETO, Affonso Celso | I CIED (2015) 10-25
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A representação discursiva da vítima no gênero sentença
judicial
Alba Valéria Saboia Teixeira LOPES (UFRN)
[email protected]
Resumo: Esta comunicação apresenta resultados preliminares de uma pesquisa de mestrado em que objetivamos
analisar como a representação discursiva da vítima é construída no gênero sentença judicial a partir de pontos de vista
de enunciadores distintos. O estudo fundamenta-se no quadro teórico geral da linguística textual e, mais
especificamente, nos pressupostos da análise textual dos discursos, teoria desenvolvida por Jean-Michel Adam (2011).
A análise é complementada com outras noções teóricas da linguística do texto, do gênero e do discurso jurídico. Em
termos metodológicos, é uma pesquisa documental que se orienta pelo método do raciocínio indutivo-dedutivo,
apresentando um caráter qualitativo e descritivo. Para a investigação do corpus, selecionamos uma sentença coletada
do sítio do Tribunal de Justiça de São Paulo. Os resultados preliminares indicaram que o processo de construção de
uma “imagem” textual é complexa e depende das escolhas feitas pelo locutor/enunciador. Nesse sentido, observamos
que a representação dos sujeitos é muito mais evidente em alguns de seus aspectos, saberes, intenções e valores que
essa figura traduz. Acreditamos que nossas reflexões contribuirão para o desenvolvimento de novas pesquisas na área
da linguística em textos do âmbito jurídico.
Palavras-chave: Representação discursiva; sentença judicial; discurso jurídico; categorias semânticas da Rd; PdV.
1. Introdução
O estudo apresenta resultados iniciais de pesquisa de mestrado que tem como objetivo analisar
como as representações discursivas da vítima são construídas no gênero sentença judicial a partir de
pontos de vista de enunciadores distintos. Focalizada na dimensão semântica do texto, “*...+ a noção de
representação discursiva supõe que todo texto constrói, de forma mais ou menos explícita, ‘imagens’ – i.é,
representações – do seu enunciador ou de seus enunciadores, do seu destinatário ou dos seus
destinatários, assim como dos temas tratados.” (Cf. RODRIGUES et al., 2014, p. 250).
O trabalho fundamenta-se no quadro teórico geral da linguística textual e, mais especificamente, nos
pressupostos da análise textual dos discursos (ATD), teoria desenvolvida por Jean-Michel Adam ([2008]
2011). Outros autores também colaboram para o desenvolvimento da fundamentação teórica de nossa
pesquisa, dentre eles, Koch (2004, 2011), Marcuschi (2007, 2008), Rodrigues, Silva Neto e Passeggi (2010,
2014). Para a análise do corpus, selecionamos uma sentença coletada do portal de serviços do Tribunal de
Justiça de São Paulo (TJSP) – Poder Judiciário, em Consulta de Julgados de 1° Grau1 com a temática da
violência contra a mulher.
Em termos metodológicos, é uma pesquisa documental que se orienta pelo método do raciocínio
indutivo-dedutivo, apresentando um caráter qualitativo e descritivo. De modo a contribuir e evidenciar a
construção da representação discursiva da vítima no texto jurídico, nossas análises lançaram mão de
1
Site disponível – www.esaj.tjsp.jus.br/cjpg/
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algumas categorias semânticas da Rd: a referenciação (designações do referente), a modificação (dos
referentes e das predicações) e a predicação (de ação, de estado, de mudança de estado). É relevante
destacar que apresentamos as categorias de análise separadamente apenas como um critério didático, pois
estão totalmente imbricadas. A separação é tão somente por uma questão de maior clareza na
apresentação e sistematização dos dados.
Inicialmente, apresentamos na fundamentação teórica o nosso objeto de estudo, a representação
discursiva (Rd) e as categorias semânticas de análise. A segunda parte do trabalho focaliza a análise do
corpus e a discussão dos resultados. Por fim, tecemos os comentários dos resultados obtidos enfatizando a
relevância da pesquisa.
2. A Representação discursiva na construção do objeto de discurso
A Representação discursiva é utilizada pela ATD como uma das principais noções da dimensão
semântica do texto ao lado das correferências, anáforas, isotopias e colocações. De acordo com Adam
(2011, p. 113), “*...+ a atividade discursiva de referência constrói, semanticamente, uma representação, um
objeto de discurso comunicável”. Nesse sentido, o autor explica que a forma mais simples de construção de
uma representação discursiva se dá na associação de uma estrutura a um sintagma nominal ou verbal,
embora a representação possa, semanticamente, reduzir-se a um nome ou um adjetivo. O processo de
construção da Rd leva em conta as finalidades, as intenções, os objetivos e os pressupostos culturais do
interpretante. Assim, a Rd é semanticamente construída pelo falante realizando um trabalho interpretativo
e coerente que permite as interligações das unidades textuais. Para Adam (2011), “o texto é, ao mesmo
tempo, uma proposição de mundo (Rd) e de sentido, um sistema de determinações e um espaço de
reflexividade metalinguística” (Ibid., p.115).
A noção de representação discursiva é mais aprofundada na obra de Adam (1999)2 em que ele se
apoia no conceito de esquematização de Grize (1990, 1996)3, (Cf. RODRIGUES et al., 2010). Nesse
entendimento, a esquematização compreende “a representação atualizada em e por um discurso,
representação de um objeto para um sujeito – i.e., um conjunto de informações que significam em função
de um problema, de uma finalidade, de uma tarefa a cumprir.” (Apothéloz, Borel, Péquegnat, 1984 apud
Passeggi, 2001, p. 249)4. Para entendermos melhor a noção de esquematização é imprescindível a
compreensão do que vem a ser “lógica natural” de Grize (1996),
Lógica natural refere-se, então a uma lógica não matemática que se desenvolve
naturalmente com a aquisição de uma língua, por oposição a linguagens construídas para
2
Adam, Jean-Michel. 1999. Linguistique textuelle:des genres de discours aux textes. Paris: Nathan.
3 Grize, Jean-Blaise. 1996. Logique naturelle et communications. Paris: Presses Universitaires de France.
______. 1990. Logique et langage. Paris: Ophrys.
4 Apothéloz, Denis, Borel, M-J., Péquegna. Discours et raisonnement. In: Grize 1984.
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fins particulares. [...] a lógica natural trabalha sempre com textos e discursos – os textos
constituindo a expressão visível das atividades discursivas. (PASSEGGI, 2001, p. 247).
Compreendemos que a “lógica natural” é aquela que não está condicionada, ou não se reduz
somente à formalização dos elementos linguísticos, ou seja, é “*...+ uma lógica dos conteúdos discursivos
que engloba uma lógica dos objetos e uma lógica dos sujeitos.” (Ibid., p. 247). Com o intuito de estudar o
funcionamento da comunicação, a lógica natural considera cinco postulados: o dialogismo, a situação de
interlocução, as representações, os pré-construídos culturais e a construção dos objetos. Para o momento
e, de acordo com os nossos objetivos, nos deteremos nos três últimos postulados. Desse modo, Passeggi
(2001) explica que
[...] o postulado das representações remete às ‘representações mentais’ dos
interlocutores [...] ela assume que os interlocutores têm representações e que estas são
fundamentais na comunicação discursiva. O postulado dos pré-construídos culturais
estabelece que os interlocutores mobilizam um conjunto de conhecimentos préconstruídos, de natureza cultural e social, a começar pela própria língua utilizada. [...] o
postulado da construção dos objetos refere-se ao fato de que o discurso constrói objetos
de pensamento, a partir da significação dos termos que utiliza. Esses objetos remetem aos
referenciais do discurso, que devem ser, pelo menos parcialmente, comuns aos
interlocutores. (PASSEGGI, 2001, p. 247).
O autor acrescenta que, embora o sistema linguístico seja o mesmo para todos os interlocutores, a
transmissão de suas experiências na comunicação ocorre parcialmente. Dessa maneira, conforme Passeggi
(2001), “a construção dos objetos de discurso deve ser, necessariamente, uma co-construção, na medida
em que estes são sempre objetos ad hoc que devem adequar-se a propósitos discursivos específicos e
momentâneos.” (Ibid., p. 248).Ainda nas palavras do autor, “*...+ não basta partilhar um mesmo saber, é
preciso saber que o outro o possui.” (Ibid., p. 248). Só assim é possível, de uma maneira recíproca, a
construção e a interpretação dos sentidos textuais.
O conceito de esquematização discursiva, proposta por Grize (1996) é apresentado por Adam (2013,
p. 96) a partir de quatro razões que autor considera como principais:
Quadro 1. Esquematização
Esquematização discursiva
Processo → Dinâmico
Esquemática
Coconstrução→ Dialogismo
Definição
“*...+ cada uma das proposições que constituem o texto é somente
uma fase em um movimento argumentativo dinâmico complexo que
prepara e conduz ao seguinte”.
“Esquematizar é construir um esquema, isto é, uma representação
discursiva por definição parcial e seletiva de uma realidade. [...] Essas
esquematizações passam por predicações que se apoiam não sobre
conceitos “verdadeiros”, mas sobre noções, ocasionando alguma
imprecisão que faz com que cada destinatário deva sempre interpretar o
que lhe é proposto e, de esquematização em esquematização, as noções se
transformem e evoluem”.
“É próprio da essência de uma esquematização ser reconstruída por
seu destinatário, portanto, ser interpretada”.
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Proposição de imagens
É a construção de uma imagem a partir do interpretante, “sujeito no
mundo’, com sua função (lugar) e o(s) papel (éis) que assume, com seus
fins próprios, seus pré-construídos culturais e representações da situação
de enunciação, do objeto do discurso, de seu auditório (B) e as
representações sociais de si mesmo”.
A partir das definições elencadas pelo autor, é possível compreender que a construção dos sentidos e
das “imagens” textuais passa por um processo em que os interlocutores mobilizam um conjunto de
conhecimentos pré-construídos – de natureza social, histórica e cultural, a começar pela própria linguagem.
No entanto, o processo de construção de uma representação discursiva implica uma negociação ou uma
troca de informações entre os interlocutores. De acordo com Passeggi (op. cit., p. 248), “a comunicação só
é possível se os interlocutores partilham de um conjunto de pré-construídos”. O autor explica ainda que
são os pré-construídos que fazem simultaneamente do texto um produto verbal e social.
Em relação aos termos “imagens” e “representações”, conforme a terminologia de Grize (1996) apud
Passeggi (2001), destacamos no quadro abaixo algumas de suas distinções:
Quadro 2 – Imagens e Representações
Imagens
- elementos visíveis no texto;
- são propostas pelo discurso;
- a construção através de pistas
fornecidas no esquema.
Representações
- têm uma existência mental;
- só podem ser inferidas;
- a construção ou (re)construção
através dos interlocutores, num
processo
de
interpretação
da
esquematização.
Nesse sentido, Adam (2011) explica que “todo texto é uma proposição de mundo que solicita do
interpretante uma atividade *...+ de (re) construção dessa proposição de (pequeno) mundo ou Rd”. (Ibid., p.
114). A partir desse movimento recíproco, o leitor é convidado a construir e (re)construir um trabalho
interpretativo e coerente que permite as interligações das unidades textuais. Para o autor a construção das
representações discursivas só é possível quando o falante ativa, nesse processo, seu conhecimento de
mundo, bem como suas competências cognitivas. Em conformidade com o autor, Dubois e Mondada (2003,
p. 17) explica construção ou a representação dos objetos de discurso pelo sujeito é uma atividade marcada
pela “instabilidade constitutiva e observável através de operações cognitivas ancoradas nas práticas, nas
atividades verbais e não-verbais, nas negociações dentro da interação.” Portanto, somente a partir da
comunhão desses elementos o indivíduo é capaz de construir uma representação que leva em conta
também a expressão do seu ponto de vista. Desse modo, Adam (2011) explica que
[...] toda representação discursiva [Rd] é a expressão de um ponto de vista [PdV] e que o
valor ilocucionário derivado da orientação argumentativa é inseparável do vínculo entre o
sentido de um enunciado e uma atividade enunciativa significante. Enfim, o valor
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descritivo de um enunciado só assume sentido na relação com o valor argumentativo
desse enunciado. O sentido de um enunciado (o dito) é inseparável de um dizer, isto é, de
uma atividade enunciativa significante que o texto convida a (re) construir. (ADAM, 2011,
p. 113).
Segundo Passeggi et al. (2010), a Rd, além de expressar um PdV, é responsável também pela
construção das imagens do locutor, do auditório e dos participantes no texto. Nesse sentido, para a
construção ou (re)construção dos objetos do mundo ou objetos de discurso o interpretante/analista deve
ter como suporte as categorias semânticas para a análise dos textos. Serão sobre elas que falaremos a
seguir.
2.1 Categorias semânticas da Rd
Nesta seção, destacamos algumas categorias semânticas de análise das Rd, de modo a nos permitir
em nossa investigação a descrição do processo de construção textual das representações discursivas da
vítima no gênero sentença judicial. Essas categorias constituem-se de elementos linguísticos que aparecem
materializados no texto através de substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, pronomes, articulando-se
entre si e formando um todo significativo. Como mencionamos, as categorias utilizadas serão: a
referenciação, a predicação e a modificação. Antes de iniciarmos a análise do corpus, convém refletir,
mesmo que suscintamente, sobre o conceito de cada uma dessas categorias, para que tenhamos uma
melhor percepção dos fenômenos linguísticos que nos propomos analisar.
Vale ressaltar que, para a descrição das categorias sinalizadas, tomaremos como embasamento
teórico a linguística textual a partir da abordagem da ATD proposta por Adam (2011), as categorias lógicodiscursivas de Grize (1996) apud Passeggi (2001), bem como os trabalhos de Koch (2011), Marcuschi (2008),
Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2010) e os estudos linguísticos e gramaticais com Castilho (2012) e Neves
(2006). Para esse momento, as categorias serão apenas apresentadas e posteriormente serão retomadas
em nossas análises. A título de ilustração, utilizamos alguns exemplos do corpus.
2.1.1 Referenciação
De acordo com Koch (2011, p.79), referência seria “*...+ aquilo que designamos, representamos,
sugerimos quando usamos um termo ou criamos uma situação discursiva referencial com essa finalidade”.
Conforme a autora, não se trata, portanto, de rotular ou “etiquetar” as coisas ou os objetos do mundo da
forma como percebemos ou compreendemos. A atividade de referir vai além da simples relação entre os
elementos textuais, ela liga os elementos do texto inferidos no cotexto ou evocando elementos do
contexto (extralinguísticos). Para Castilho (2012, p. 126), a referenciação é “a função pela qual um signo
linguístico representa quaisquer entidades do mundo extralinguístico, reais ou imaginário.”.
Transcrevemos a seguir exemplos de termos que referenciam:
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(§2°) “*...+ o réu praticou ato libidinoso com M.A.S., mediante fraude e meio que impediu e dificultou
a manifestação de vontade da vítima.”
(§2°) “Ele se identificou como Padre A, ofereceu à vítima seus serviços espirituais, posto que
soubera esta que ele realizava tal mister, envolvendo orações e atitudes do gênero.”
Em relação à progressão referencial, Marcuschi (2008, p. 141) explica que “diz respeito à introdução,
identificação, preservação, continuidade e retomada de referentes textuais, correspondendo às estratégias
de designação de referentes e formando o que se pode denominar cadeia referencial”. Focalizando o
“paradigma designacional”, adotaremos em nossas análises o conceito de referenciação como tematização
(ou categorização) e retematização (recategorização).
2.1.2 Predicação
Conforme Rodrigues et al. (2010), o conceito de predicação “remete tanto à operação de seleção dos
predicados, isto é, à designação dos processos, no sentido amplo (ações, estado, mudanças de estado)”.
Para Neves (2006), a predicação é um processo básico de constituição do enunciado que leva em
consideração a centralidade do verbo, sendo o sujeito o escopo da predicação. Castilho (2012, p.243)
define a predicação como “um processo de atribuição de traços semânticos”, ou seja, ela é responsável por
atribuir sentidos a elementos constantes no enunciado, como podemos observar nos enunciados:
Exemplo:
(§2°) “Ele se identificou como Padre A, ofereceu à vítima seus serviços espirituais, *...+”.
(§2°) “A vítima, assustada, pediu para que o acusado abrisse a porta, *...+”
2.1.3 Modificação (Referentes/ Predicação)
Em Queiroz (2013) encontramos a definição de modificação como “categoria que apresenta as
propriedades ou qualidades tanto dos referentes como das predicações. Está ligada tanto ao sujeito, por
meio de adjetivos e/ou expressões adjetivas, quanto às ações verbais dos predicados”. Nesse sentido, os
modificadores desempenham função atributiva e qualificadora, contribuindo para a construção do objeto
referenciado.
Exemplo:
(§10°) “*...+ a vítima apresentou-se um tanto aflita ao depor *...+.”
(§11°) “Ficou bastante constrangida com toda aquela situação.
3. Análise do corpus
Nesta seção, pretendemos exemplificar, através da análise realizada na amostra, como as categorias
semânticas da Rd, a referenciação, a modificação e a predicação, colaboram e evidenciam a construção da
representação discursiva da vítima no gênero sentença judicial. A construção dessa representação
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seráfocalizada sob o ponto de vista de enunciadores distintos que no texto sinalizaremos como E1
(enunciador 1) que representa o PdV do juiz e E2 (enunciador 2) representado pelo PdV do agressor.
Para este momento e, de acordo com nossos objetivos, selecionamos, no texto, expressões que
contribuíram de modo mais específico, para a construção das imagens da vítima no texto em estudo. É
relevante esclarecer que, para a análise dos enunciados, este item e os seguintes, foram agrupados em
blocos de acordo com suas proximidades semânticas. A estratégia auxilia ao interpretante/analista uma
organicidade tornando o texto um produto analisável.
Antes de iniciarmos nossa análise, é relevante esclarecer que o E1, representado pela figura do juiz,
constrói a figura da vítima a partir de fontes diferentes e em partes específicas no texto. Observamos essa
primeira construção no espaço da sentença reservada ao relatório. Os dados referentes à vítima são
informações obtidas no boletim de ocorrência até o inquérito policial. Uma segunda construção do
referente vítima, também sob o PdV do E1, fundamenta-se em outras informações que se baseiam na
jurisprudência, na doutrina, na lei, enfim, dados que embasam a motivação ou fundamentação do texto
jurídico.
3.1 A representação discursiva da “vítima” sob o PdV do E1 (juiz)
a) “assustada”, “aflita”, “alarmada”, “constrangida”, “acuada”, “indignada”.
Quadro 3. Representação discursiva da “vítima”
N
Exemplo
Modif. do Referente
N.
“vítima”
01
(E1’) “A vítima, assustada, pediu para que o acusado abrisse a porta, *...+.”
“assustada”
02
(E2’) “*...+ a vítima apresentou-se um tanto aflita ao depor, o que fez na “aflita”
ausência do acusado.”
03
(E3’) “*...+ Ficou mais alarmada, quando sentiu que ele desceu as mãos.”
“alarmada”
04
(E5’) “Ficou bastante constrangida com toda aquela situação, *...+”
“constrangida”
05
(E6’) “*...+ a vítima, encontrando-se à sós com o acusado, viu-se por ele “acuada”
acuada.
06
(E7’) “A vítima se mostrava indignada e dizia ter tido problemas com o “ indignada”
padre da Vila Maria *...+.”
A representação discursiva de “vítima” sob o PdV d E1, foi construída a partir de alguns
modificadores que desempenharam, nos enunciados, função atributiva e qualificadora. Esses operadores
LOPES, Alba Valéria Saboia Teixeira | I CIED (2015) 26-41
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contribuem para a construção de sentido do referente e permite ao leitor visualizar a imagem do objeto
que o enunciador quer evidenciar.
Nesse sentido, observamos que os adjetivos selecionados pelo E1 mantêm uma estreita relação de
contiguidade semântica, ou seja, os termos, “assustada” > “aflita” > “acuada” > “indignada” descrevem o
estado emocional da vítima, além de ajudar na construção do cenário/espaço no qual ela está inserida. Nos
enunciados (E2’), “um tanto aflita”, (E3’) “mais alarmada” e (E5’) “bastante constrangida”, foram utilizados
operadores discursivos intensificadores que interferem e modificam as propriedades dos adjetivos
predicados “aflita”, “alarmada” e “constrangida”, objetivando ressaltar essas características no objeto.
b) “firmeza”, “sinceridade”, “convincente”
Quadro 4. Representação discursiva da “vítima”
N
Exemplos
Modif. do Referente
N.
“vítima”
01
(E9’)
0
“É o que ocorre nos autos, onde se evidencia a firmeza e sinceridade “firmeza” e
de relato feito pela vítima *...+”
sinceridade”
02
(E10’)
0
“*...+ descreveu os fatos de formaconvincente, apontando o acusado
como autor do delito.”
“convincente”
O objeto “vítima” é redesignado pelos termos “relato” e “fatos”, a partir de um processo associativo
que passa a fazer parte constitutiva do referente, contribuindo para a construção de sua imagem. Assim,
por analogia, são atribuídas à imagem da “vítima” as expressões “firme”, “sincera” e “convincente”,
traçando um novo perfil para o sujeito, ou seja, o de ser uma pessoa firme, sincera e convincente. Os
modificadores empregados adquirem função qualitativa e asseverativa, atribuindo um sentido de valor a
cada termo.
Nesse sentido, as expressões, “assustada”, “aflita”, “alarmada”, “constrangida”, “acuada” e
“indignada”, especificam e individualizam o referente em relação ao seu estado. Já as expressões “firme”,
“sincera” e “convincente” podem ser atribuídas por analogia ao caráter ou atitudes da vítima.
Nesse processo, tem-se a construção da cadeia referencial:
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Quadro 5. Cadeia referencial
Vítima
“assustada”
“aflita”
“alarmada”
“constrangida”
“acuada”
“indignada”
“firme”
“sincera”
“convincente”
Estado
Atitude
3.2 A representação discursiva da “vítima” sob o PdV do E2 (agressor)
a) “promíscua”, “frequentava baladas”, “não cuidava do filho”.
Quadro 6. Representação discursiva da “vítima”
N
Exemplos
Modif. do Referente “vítima”
01
(E’12) “’M.’ era promíscua *...+”
“promíscua”
02
(E’12) “*...+ frequentava baladas *...+”
“frequentava baladas”
03
(E’12) “*...+ não cuidava do filho.”
“não cuidava do filho”
N.
Observamos que no (E’12) o enunciador retematiza o objeto de discurso “vítima” utilizando a
designação “M”, nome da vítima ou “ela” anáfora pronominal. Essa estratégia é um recurso intencional do
enunciador que, ao realizar a mudança de um lexema para outro, muda também a estrutura semântica do
referente, ou seja, apaga-se a figura da “vítima” e agora se evidencia outro objeto de discurso que não se
confunde com o anteriormente analisado criando-se um distanciamento entre os dois referentes tornandoos também objetos opostos semanticamente.
Em (E’12) a expressão “promíscua” apresenta-se como um modificador com função aspectualizante.
Nesse contexto, o termo selecionado insere no referente um atributo que produz um efeito de sentido
negativo e depreciativo. As expressões “frequentava baladas” e “não cuidava do filho”, a partir dos verbos
“frequentava” e “cuidava”, formam um bloco de significações que podem ser construídas em decorrência
das ações verbais do referente. Podemos inferir, a partir da informação, “frequentava baladas”, uma
característica atributiva, ou seja, que ela era “baladeira” e gostava de festas. O verbo “cuidava” vem
antecedido do advérbio de negação “não” intensificando de forma negativa as ações do referente, ou seja,
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é possível inferir, levando-se em conta as atitudes de “M.”, que ela pode ser caracterizada como uma mãe
relapsa e negligente em relação aos cuidados e educação de seu filho.
b) “carregada”, “possessão”
Quadro 7. Representação discursiva da “vítima”
N
Exemplos
Modif.
do
“vítima”
N.
Referente
01
(E13’) “*...+ ela estava muito carregada, bem como para que não
acreditasse em tudo que ela viesse a falar.”
“carregada”
02
(E14’) “Sentiu que ela tinha uma possessão e o corpo dela balançou.”
“possessão”
Em (E’13) o elemento “carregada”, particípio com valor de adjetivo, recebeu como modificador o
advérbio “muito”, que gramaticalmente funciona como graduador intensificador do adjetivo, alterando,
assim, suas propriedades semânticas. A expressão “carregada” foi utilizada no texto no sentido conotativo.
A metáfora utilizada para o termo impõe e requer do interpretante a ativação de seu conhecimento de
mundo e cultural, ou seja, o contexto no qual a expressão está inserida remete a um termo bastante
utilizado pelas religiões/seitas significando “aquele que possui sobre si espíritos malignos.”5 (Cf. Wikipédia).
A expressão é complementada com a expressão (E’14) “possessão” que significa, de acordo com o
contexto, “alguém que está sob o efeito de forças sobre-humanas, sob o domínio do mal.” (Cf. Dicionário
Aurélio)6.
A relação paradigmática construída a partir do PdV do segundo enunciador (E2) para representar
discursivamente o objeto “vítima”, aqui retematizado pelos elementos “M.” e pelo pronome anafórico
“ela”, baseou-se em dois aspectos distintos e ao mesmo tempo equivalentes. Nesse sentido, a
representação discursiva do referente é evidenciada pelo seu estado, “promíscua”, “muito carregada”,
“possessão” e por suas ações, “frequentava baladas”, “não cuidava do filho”.
A relação paradigmática construída a partir do PdV do E2:
Quadro 8. Representação discursiva da “vítima”
modificação
5
6
“M”
“ela”
“promíscua”} Atitude
“muito carregada”
“possessão”
WIKIPÉDIA. A enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org>. Acesso em: 08 jun. 2014.
Dicionário do Aurélio, disponível em <http://www.dicionariodoaurelio.com/>. Acesso em: 07 jun. 2014.
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Estado
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Predicação
“frequentava baladas”
“não cuidava do filho”
Ações
3.3 A representação discursiva da “vítima” sob o PdV do E1 (juiz)
A representação discursiva da vítima é focalizada novamente sob o PdV do E1 concentrando-se em
dois momentos distintos apresentados nos quadros que seguem.
a) “firme”, “segura”, “coesa”, “coerente”, “verossímil”.
Quadro 9. Representação discursiva da “vítima”
N.
001
Exemplos
Modif. do Referente “vítima”
(E15’) “Em crimes de natureza sexual, rotineiramente
praticado às escondidas, presentes apenas os agentes ativo
e passivo da infração, a palavra da vítima assume
preponderante importância, por ser a principal, senão a
única prova de que se dispõe. Quando firme, segura,
coesa, coerente e verossímil, deve prevalecer sobre a
inadmissão de responsabilidade do réu.”
“firme”
“segura”
“coesa”
“coerente”
“verossímil”
Os termos “firme”, “segura”, “coesa”, “coerente” e “verossímil”, relacionados à expressão “palavra
da vítima” se ligam ao referente vítima por analogia. Nesse sentido, o objeto de discurso recebe como seus
modificadores, adjetivos modalizadores asseverativos. Dessa forma, ao analisarmos cada modificador
separadamente, observamos que existe uma relação de gradação entre os elementos, “firme” > “segura” >
“coesa” > “coerente” > “verossímil”. São expressões qualificadoras que tem como objetivo agregar valor ao
referente e reforçar o PdV do enunciador. Essa estratégia, além de incorporar ao objeto de discurso traços
valorativos, intenciona induzir o leitor sobre a veracidade imputada ao enunciado.
b) “solteira”, “casada”, “viúva”, “uma vestal inatacável”, “meretriz de baixa formação moral”,
“senhora do seu corpo”, “pessoa de comportamento duvidoso”.
Quadro 10. Representação discursiva da “vítima”
N.
01
Exemplos
Modif. do Referente “vítima”
E16’) “Não importa seja a vítima solteira, casada ou viúva,
uma vestal inatacável ou uma meretriz de baixa formação
moral.”
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“solteira”
“casada”
“viúva”
“uma vestal inatacável”
“uma meretriz de baixa
formação moral”
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02
03
(E17’) “Em qualquer hipótese, é ela senhora de seu corpo e “senhora de seu corpo”
só se entregará livremente, como, quando, onde e a quem
for de seu agrado.”
(E18’) “Protege-se a liberdade sexual da mulher, sem “pessoa de comportamento
nenhuma distinção ou exigência, não colhendo a tentativa duvidoso”
de se demonstrar ser a vítima pessoa de comportamento
duvidoso.”
Em (E’16), os modificadores do referente, “solteira”, “casada” ou “viúva”, apresentam função
predicativa distribuindo-se gradativamente no enunciado, sinalizando, de acordo com o contexto, para uma
condição social do referente, ou seja, remete ao estado civil. Em seguida, o enunciador utiliza o termo
“uma vestal inatacável” que, semanticamente tomado em conjunto com as expressões anteriores, incidem
sobre o objeto de discurso um sentido respeitoso, apreciativo, reforçando a representação discursiva da
vítima, uma vez que estão situados no campo da construção de uma imagem positiva dessa figura. No
entanto, observamos que o enunciado se encerra com uma expressão depreciativa e negativa, “uma
meretriz de baixa formação moral”. O jogo das expressões antagônicas é utilizado intencionalmente pelo
enunciador para reforçar o sentido de vítima que, de acordo com o contexto, não deve ser construído a
partir de fatores sociais, pessoais ou morais, mas das situações ou fatores externos à sua vontade, que
podem torná-la uma vítima.
A expressão (E’17) “senhora de seu corpo” explicita um valor de posse, de domínio atribuído ao
referente que, inserida no contexto, ressalta uma avaliação pessoal do enunciador de acordo com a
orientação argumentativa que ele pretende imprimir em seu texto, ou seja, “*...+ é ela senhora de seu corpo
e só se entregará livremente, como, quando, onde e a quem for de seu agrado.”. Em (E’18) “pessoa de
comportamento duvidoso” recupera as informações constantes no parágrafo anterior e fecha um ciclo de
significações sobre a construção da imagem do objeto, ou seja, a vítima > “solteira” > “casada” > “viúva” >
“uma vestal inatacável” > “uma meretriz de baixa formação moral” > “uma pessoa de comportamento
duvidoso” é ela > “senhora do seu corpo”.
A cadeia referencial construída.
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Quadro 11. Representação discursiva da “vítima”
Vítima
“solteira”
“casada”
Estado
“viúva”
“firme”
“segura”
“coesa”
Atitudes
“coerente”
“verossímil”
“uma vestal inatacável”
“uma meretriz de baixa formação moral” Atitudes
“pessoa de comportamento duvidoso”
Negativas
“senhora de seu corpo” Ind. Posse
4. Considerações finais
Observamos que em todas as ocorrências citadas, o E1 (juiz) construiu a representação discursiva da
“vítima” elencando aspectos e valores que, de um modo geral, foram os elementos essenciais na
construção dessas ‘imagens’. Nesse sentido, a construção dessa representação passa pelo que Perelman
(1989)7 atribui ao modo como se desenvolve a argumentação, ou seja, o orador/enunciador ao desenvolver
sua argumentação, parte das teses que já são admitidas pelo seu ouvinte/leitor, uma imagem prévia ou
pré-construída do sujeito. Assim,
[...] toda argumentação depende, tanto para suas premissas quanto para seu
desenvolvimento principalmente, do que é aceito, do que é reconhecido como
verdadeiro, como normal e verossímil, como válido: desse modo, ela se ancora no social,
cuja caracterização dependerá da natureza do auditório. (Cf. AMOSSY, 2013, p. 123).
A escolha dos elementos destacados por E2 (agressor) contribuiu para a caracterização de uma
imagem negativa do objeto e, intencionalmente, objetivou desqualificar e lançar dúvidas sobre a figura de
“vítima” construída pelo E1.
Já a imagem da “vítima” desenvolvida por E1 (juiz) na parte da fundamentação do texto foi
construída de um modo mais genérico. Dessa forma, em sua argumentação o enunciador não favorece uma
“vítima” em específico, mas incorpora em sua tese elementos, a partir dos fatos, da lei e da jurisprudência,
que podem caracterizar e dar uma forma ao referente, tornando-o prototípico.
5. Conclusão
7
Chaim Perelman. Rhétoriques. Éditions de I’Université de Bruxelles. 1989.
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Em nosso trabalho, buscamos analisar as representações discursivas da vítima construídas na
sentença judicial a partir de pontos de vista de enunciadores distintos. Para auxílio em nossas análises,
lançamos mão de três categorias semânticas da Rd, a referenciação, a predicação e seus modificadores.
A polifonia ou os diferentes PdV presentes no texto apontam para sentidos distintos do termo
“vítima”, que podem aproximar-se ou distanciar-se de acordo com a orientação argumentativa do texto. A
análise demonstrou que o processo de construção de uma imagem é complexa e depende das escolhas
feitas pelo locutor/enunciador e dos objetivos que ele quer alcançar com seu texto. Nesse sentido,
observamos que a representação de uma pessoa é muito mais evidente em alguns de seus aspectos,
saberes, intenções e valores que essa figura traduz.
Diante da importância social do texto forense e, em especial, da sentença judicial na vida dos
cidadãos, percebemos a relevância em desenvolver pesquisas que abordem o estudo da dimensão
semântica do texto, principalmente na construção das representações dos objetos de discurso, pois esses
elementos são essenciais no processo argumentativo.Nosso trabalho encontra-se em sua fase inicial de
pesquisa, no entanto, acreditamos que nossas reflexões contribuirão para o desenvolvimento de novas
pesquisas na área da ATD e, notadamente, nos textos de caráter jurídico.
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LOPES, Alba Valéria Saboia Teixeira | I CIED (2015) 26-41
I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 41
Abstract: This paper presentspreliminary resultsofa researchthataimed toexamine howthediscursive representationof
the victimis builton gendercourt judgmentfrom pointsof viewofdifferentenunciators. The studyis based on thegeneral
theoretical frameworkof textuallinguistics, and more specifically, the assumptions oftextualdiscourse analysis,theory
developed byJean-Michel Adam(2011). The analysisiscomplemented by othertheoretical notionsof linguistictext,
gender, andlegal discourse. In methodologicalterms, isa documentary researchthat is guidedbythe inductive-deductive
method, showing a qualitativeand descriptive.Forthe investigation of thecorpus, we selected a sentencecollected
fromwebsite of the Courtof Justiceof SãoPaulo. Preliminary resultsindicated thatthe process ofbuilding
atextual"picture" is complex anddepends on choices madeby the speaker/utterer. In thissense, we notethat the
representationof thesubjectismuch moreevident in someof its aspects, knowledge, intentions andvalues that
thisfiguretranslates. We believe thatour reflectionswill contribute tothe development of newresearch
inlinguisticstextsinthe legalframework.
Keywords:discursiverepresentation;court judgment; legal discourse; semantic categoriesofRd; PdV.
LOPES, Alba Valéria Saboia Teixeira | I CIED (2015) 26-41
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Um possível diálogo entre Patrick Charaudeau e Michel
Meyer
Alex Fabiani de Brito TORRES (UFMG)
[email protected]
Resumo:O objetivo deste artigo é comparar os autores Patrick Charaudeau e Michel Meyer, evidenciando as
aproximações e as diferenças entre suas teorias. Quanto às aproximações, serão analisadas as seguintes variáveis:
concepção de língua; concepção de linguagem; como o teórico considera o outro(tu) na sua teoria; e princípio do jogo.
Quanto às diferenças, serão analisadas as seguintes variáveis: dimensão investigada; natureza da linguagem; principal
conceito utilizado em sua teoria; e concepção de contexto. Foram utilizadas, principalmente, as seguintes referências
teóricas: Charaudeau (2001, 2004, 2006, 2008 e 2010), Meyer (1982, 2007a, 2007b e 2008). Escolheu-se uma
metodologia qualitativa, dividindo-se em: método comparativo e bibliográfico. Evidencia-se a complementaridade
entre essas duas teorias, apesar de cada autor priorizar uma abordagem diferente.
Palavras-chave: Patrick Charaudeau; Michel Meyer; aproximações; diferenças; teorias.
1. Introdução
A Análise do Discurso e a Argumentação Retórica apresentam comunalidades. A hipótese desta
investigação é a de que talvez as dimensões discursiva e retórico-argumentativa tenham muitos pontos em
comum, não excludentes e possam ser pensadas numa relação de complementaridade, e não de exclusão.
Escolheu-se uma metodologia quantitativa (LAVILLE; DIONNE, 1999). O método relativo a essa
metodologia subdivide-se em: a) comparativo, em função do cotejamento que se fará de elementos que
dão sustentabilidade à teoria de Patrick Charaudeau e à teoria de Michel Meyer; e b) bibliográfico, visto
estar este artigo teoricamente localizado no cruzamento entre a retórica e a argumentação e a
semiolinguística e ter como marco teórico: Meyer (2007, 2008 e 2010) e Charaudeau (2001, 2004, 2006,
2008 e 2010).
Elaboraram-se dois quadros: o primeiro trata das aproximações entre os elementos que sustentam
ambas as teorias: concepção de língua, concepção de linguagem, a noção de jogo, a presença do outro na
sua teoria: Charaudeau, no discurso; e Meyer, na retórica (argumentação) e no princípio do jogo. O
segundo trata das diferenças entre essas duas relevantes teorias: dimensão investigada, natureza da
linguagem, principal conceito utilizado em sua teoria e concepção de contexto.
2. Desenvolvimento
O Quadro 1 ilustra a aproximação entre esses autores:
TORRES, Alex Fabiani de Brito | I CIED (2015) 42-59
I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 43
Quadro 1. Aproximações entre Charaudeau e Meyer
Dimensões
Charaudeau
Fenômeno complexo
Meyer
Fenômeno complexo
Concepção de
Opacidade da linguagem
Integração entre a não transparência
linguagem
Expressa perguntas, problemas,
e a transparência da linguagem
respostas e soluções
No discurso: como sujeito
interpretante, parceiro, interlocutor, Na retórica (argumentação): como
protagonista, protagonista do ato de auditório, interlocutor, questionador,
linguagem, interlocutor-receptor,
questionador-implícito, questionadorreceptor, adversário, leitor, auditório, destinatário, protagonista
Como o teórico
considera o outro (o tu) sujeito, ator da linguagem
na sua teoria
Os principais termos utilizados são
parceiro, sujeito interpretante e
O principal termo é destinatário
sujeito destinatário
Valorização dos princípios de
Valorização dos princípios de alteridade e
alteridade e de cooperação
de cooperação
Presente em sua teoria: ajustamento
Presente em sua teoria: negociação da
Princípio do jogo
entre a encenação do dizer e a
distância entre os interlocutores
relação contratual do fazer
Fonte: Adaptado de Charaudeau (2001, 2006, 2008 e 2010) e de Meyer (1982, 2007a, 2007b e 2008).
Observem-se as análises acerca das variáveis apresentadas:
A) Concepção de linguagem
Charaudeau (2010, p. 7) concebe a linguagem como
[...] um fenômeno complexo que não se reduz ao simples manejo das regras de gramáticas
e das palavras do dicionário, como tendem a fazer crer a escola e o senso comum. A
linguagem é uma atividade humana que se desdobra no teatro da vida social e cuja
encenação resulta de vários componentes, cada um exigindo um ‘savoir faire’, que é
chamado de competência.
Esse autor a concebe sob as dimensões social e psicológica, priorizando os vínculos sociais e
psicológicos entre os seus usuários, chamados por ele de sujeitos de linguagem, que são, simultaneamente,
diferentes e semelhantes. A linguagem lhes permite viver em sociedade. Ele a concebe como encenação,
uma atividade humana que se joga (ou se encena) nos palcos da vida social, havendo, para tanto, a
necessidade de uma competência discursiva. A competência discursiva é um conjunto de competências
(uma competência situacional, uma competência semiolinguística e uma competência semântica): a
competência situacional se refere à situação de comunicação. Considera a finalidade da situação e a
identidade dos locutores e dos interlocutores. A competência semiolinguística
[...] consiste em saber organizar a encenação do ato de linguagem de acordo com
determinadas visadas (enunciativa, descritiva, narrativa, argumentativa), recorrendo às
categorias que cada língua nos oferece. [...] competência semiolinguística [...] consiste em
saber construir sentido com a ajuda de formas verbais (gramaticais ou lexicais),
recorrendo aos saberes de conhecimento e de crença que circulam na sociedade, levando
TORRES, Alex Fabiani de Brito | I CIED (2015) 42-59
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em conta os dados da situação de comunicação e os mecanismos de encenação do
discurso (CHARAUDEAU, 2010, p. 7).
O próprio sentido da linguagem envolve dois processos bastante complexos: o explícito, enquanto
testemunha de uma atividade estrutural, está ligado à simbolização referencial. Utilizamos, nesse processo,
operações de comutação, no estabelecimento de oposição entre os signos, e também operações de
combinação entre os signos. Tais operações são resultantes de paráfrases estruturais, baseando-se na
relação de exclusão entre os signos. Esse primeiro processo possibilita, na linguagem, um jogo de
reconhecimento morfossemântico construtor de sentido:
“A produção dessas paráfrases estruturais permite que se efetue na linguagem um jogo
dereconhecimento morfossemântico construtor de sentido, que remete à realidade que
nos rodeia (atividade referencial), conceituando-a (atividade se simbolização). É por isso
que vamos nomeá-la Simbolização referencial” (CHARAUDEAU, 2010, p. 25).
O segundo processo complexo é relativo ao implícito enquanto testemunha de uma atividade serial
da linguagem. Ele se refere à significação da linguagem, envolvendo as condições de produção e de
interpretação da linguagem. Nesse processo, construímos, enquanto sujeitos de linguagem, paráfrases
seriais, as quais se relacionam a um jogo de remissões:
“A produção dessas paráfrases permite que se efetue, na linguagem, um jogo de
remissões constantes a alguma coisa além do enunciado explícito, que se encontra antes e
depois do ato de proferição da fala. É um jogo construtor da significação de uma
totalidade discursiva que remete a linguagem a si mesma como condição de realização
dos signos, de forma que estes não signifiquem mais por si mesmos, mas por essa
totalidade discursiva que os ultrapassa: vamos, pois, nomeá-la Significação *...+”
(CHARAUDEAU, 2010, p. 25).
Charaudeau (2010, p. 27) concebe, assim, a linguagem enquanto fenômeno conflitual, concernente à
produção e à interpretação de atos de linguagem, envolvendo um duplo movimento: o movimento
exocêntrico, ligado à atividade serial,
“*...+ movido por uma força centrífuga que obriga todo ato de linguagem (e, portanto,
todo signo) a se significar em uma intertextualidade que é como um jogo de interpelações
realizados entre os signos, no âmbito de uma contextualização que ultrapassa –
amplamente- seu contexto explícito”.
O movimento endocêntrico está ligado à etividade estrutural, em sentidos de referência e de
simbolização; há uma rede de relações entre um signo e outros signos:
“*...+ movido por uma força centrípeta que obriga o ato de linguagem (e, logo, os signos
que o compõem) a ter significado, ao mesmo tempo em um ato de designação de
referência (no qual o signo se esgota em função de troca) e em um ato de simbolização;
nesse ato o signo se instala dentro de uma rede de relações com outros signos (rede
comandada pela atividade serial) e se constitui como valor de diferença. Corresponde a
esse movimento a atividade estrutural que garante a construção do sentido da
Simbolização referencial” (CHARAUDEAU, 2010, p. 27).
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Ainda com relação à complexidade da linguagem, esse autor destaca a incompletude do Explícito e
que a determinação da significação do ato de linguagem cabe ao Implícito (O Implícito comanda o
Explícito). Assim, o autor concebe o ato de linguagem (A de L). por meio da seguinte fórmula (equação):
“*...+ A de L= *Explícito x Implícito+ *...+ C de D”. C de D seriam as Circunstâncias de Discurso.
Charaudeau (2010, p. 20) admite a existência de duas grandes tendências acerca das teorias
constituídas sobre linguagem:
[...]uma que se caracteriza por sua concepção de linguagem-objeto-transparente, por seu
método de atividade de abstração, e se interessa por do que nos fala a linguagem; outra
que se caracteriza por sua concepção de linguagem-objeto-não-transparente, por seu
método de atividade de elucidação, e se interessa por como nos fala a linguagem.
Esse autor defende a relevância desses dois tipos de abordagem para a semiolinguística, a
necessidade de integrá-los, “*...+ em uma mesma problemática, pois a linguagem é produzida de tal forma
que acaba sendo marcada pelo selo da discordância e da concordância” (CHARAUDEAU, 2010, p. 20).
O interessante é que, quando analisa os sujeitos de linguagem, especificamente o sujeito
interpretante (TUi), Charaudeau (2010, p. 46) utiliza o termo opacidade (“relação de opacidade”):
Assim sendo, se supomos que o TUd está em relação de transparência com a
intencionalidade do EU, o TUi, ao contrário, se encontra em uma relação de opacidade
(Grifo nosso) com essa intencionalidade, já que não é uma criatura do EU. O TUi só
depende dele mesmo e se institui no instante exato em que opera um processo de
interpretação.
Em conformidade com o autor, os processos de produção e de interpretação de textos estão ligados
às intencionalidades dos sujeitos de linguagem. Tanto os locutores quanto os interlocutores possuem
intencionalidades nos atos de linguagem. Quando o EU se comunica, fabrica (constrói) um destinatário
ideal: o TUd. Esse Tud (sujeito destinatário) sempre estará presente no ato de linguagem. Assim, eu EU
exerce um domínio sobre o TUd e supõe haver uma transparência de sua fala para o TUd. Por sua vez, o TUi
(sujeito interpretante), está ausente do ato de enunciação que o EU produziu e não está sob o domínio do
EU. Assim, o TUi pode realizar uma interpretação da intencionalidade do
EU, diferentemente da
intencionalidade que o EU idealizou para o TUd, implicando, assim, numa relação de opacidade, conforme a
passagem acima.
Charaudeau (2010, p. 17) concebe, ainda, o ato de linguagem
[...] como um objeto duplo, constituído de um Explícito (o que é manifestado) e de um
Implícito (lugar de sentidos múltiplos que dependem das circunstâncias de comunicação.
Por sua vez, Meyer (2007, 2008) concebe a linguagem em termos problematológicos, como a
diferença problematológica entre os interlocutores (locutor e auditório). Assim, a linguagem estaria
vinculada à existência de um problema na comunicação, de uma questão, havendo, então, a necessidade
de uma resposta de uma solução. Ela permitiria aos usuários da língua uma negociação na redução dessa
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diferença. Nesse sentido, parece haver uma aproximação entre essa concepção de linguagem e o campo
científico, especialmente quanto à relevância da existência de um problema e da busca de sua resolução.
No livro Lógica, linguagem e argumentação, Meyer (1982, p. 129) vincula a linguagem à resolução de
problemas, aproximando a linguagem do campo científico:
O recurso à linguagem inscreve-se no quadro geral da acção humana. Os homens agem
em função dos problemas que se lhes colocam e com os quais se devem enfrentar pelo
simples facto de existirem. Neste sentido, o uso da linguagem é resolução de problemas.
Há apenas duas maneiras de encarar um problema com a ajuda da linguagem: ou
expressamo-lo porque a sua resolução depende de outro problema, ou solucionamos um
outro problema que se prende com a questão ou que interessa eo ipso à questão tratada.
Meyer (1982, p. 129) considera a diferença entre questões e respostas a diferença que constitui a
linguagem:
Dado que a diferença entre questões e respostas, concebida como a diferença entre
problemas e soluções, é a diferença constitutiva da linguagem, esta diferença deve
indicar-se formalmente com clareza.
Esse autor postula que “A dualidade fundamental da linguagem é a diferença questão-resposta [...]
(MEYER, 1982, p. 132). Essa diferença é chamada por ele de “diferença problematológica”, materializandose “*...+ na oposição do explícito e do implícito” *...+ (MEYER, 1982, p. 132).
Para esse autor, o uso da linguagem se centra no par questão-resposta, implicando nas seguintes
consequências:
“1) Todo o uso da linguagem é a resposta a um certo problema, inclusive quando se trata
de expressá-lo.
2) Se o objectivo de toda a resolução é apresentar uma resposta, o problema que originou
esta resposta não se coloca mais, a partir do momento em que esta é proposta. A partir
desse momento, o objectivo não é dizer os problemas, mas dizer as soluções. Daí resulta
que a oposição solução/problema corresponde à oposição explícito e implícito. Um
problema não se diz, mesmo quando se expressa, um problema não se declara, ele colocase.
3) Responder através da linguagem, apelar para o explícito para tratar certo problema é
pôr em forma. A forma é aquilo através do qual se indica a diferença problemas/soluções,
e enquanto linguagem estabelece uma barreira entre eles segundo a linha de demarcação
do implícito (informe) e do explícito (formado).
4) Quando se responde a um problema expressando-o, esta resolução parcial que apela
explicitamente a uma resolução complementar, indica-se formalmente como resolução
parcial *...+” (MEYER, 1982, p. 130).
Esse autor destaca a diferença entre a demonstração matemática, em que encontramos uma
questão e a univocidade de uma resposta, havendo, consequentemente, o acordo, a adesão; e de outro
lado, o raciocínio formal, para o qual, verificamos, também, a existência de uma questão, mas várias
alternativas de respostas, e não apenas uma única resposta.
Meyer (2007b, p. 85) utiliza o termo opacidade para se referir à linguagem. Trata-se de uma
dificuldade:
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No uso da linguagem existe portanto uma opacidade ou uma dificuldade que procuramos
vencer ou simplesmente manifestar. Queremos submeter uma questão a outrem,
partilhá-la com ele, porque ela lhe interessa por razões parecidas com as nossas, ou
porque pode contribuir para a resolver. Também podemos propor-lhe uma resposta, mas
corremos o risco de ele a desaprovar e rejeitar; ou, pelo contrário, poderá aderir a ela por
‘boas razões’ ou simplesmente porque lhe agrada. A linguagem, tal como a usamos,
suscita uma questão sobre a qual o auditório deve responder, por vezes contra a sua
vontade, ou à qual (se é preciso agir e reagir) lhe solicitamos expressamente que
responda. O auditório é assim confrontado com uma pergunta, directamente ou de
maneira derivada por intermédio de uma resposta.
B) Como o teórico considera o outro (o tu) na sua teoria
Charaudeau, em sua teoria, atribui uma grande relevância aos sujeitos de linguagem, dentre os quais
o outro (tu) no processo linguageiro, sendo esse considerado necessário à constituição do eu. Destaca,
ainda, o seu papel de intérprete no ato de linguagem e a utilização, por parte desse ator sociodiscursivo e
do locutor, de saberes compartilhados. Para esse autor, a comunicação está ligada à questão identitária:
identidade dos sujeitos de linguagem, dotados de intencionalidades. Para a compreensão do outro (tu), o
autor utiliza, às vezes, conceitos que evidenciam a existência de uma relação complementar entre os
princípios de alteridade e de cooperação, não sendo, portanto, esse outro visto como um ator coadjuvante
na encenação linguageira: interlocutor (CHARAUDEAU, 2010, p. 25, 57), sujeito interpretante
(CHARAUDEAU, 2010, p. 29, 45, 58), interpretante (CHARAUDEAU, 2010, p. 29), ator da linguagem
(CHARAUDEAU, 2010, p. 32), sujeito-interlocutor (CHARAUDEAU, 2010, p. 44), TU- destinatário
(CHARAUDEAU, 2010, p. 44), sujeito destinatário (CHARAUDEAU, 2010, p. 47), destinarário (CHARAUDEAU,
2010, p. 56), sujeito da linguagem (CHARAUDEAU, 2008, p. 11), parceiro de um ato de comunicação
(CHARAUDEAU, 2008, p. 12, 15) e parceiro (CHARAUDEAU, 2008, p. 13, 15, 15, 15, 22, 22, 22, 22, 25, 28).
Os principais termos usados por Charaudeau, para se referir ao outro(tu) no discurso, são sujeito
interpretante, que implica em uma atividade de parceria, e sujeito destinatário, que evidencia uma relação
de protagonismo):
[...] sujeito interpretante (TUi)] (CHARAUDEAU, 2001, p. 32). Esse autor concebe [...]
sujeito interpretante (TUi) [...] o parceiro que tem a iniciativa do processo de
interpretação. Ele constrói uma interpretação – que pode ser muda ou se exprimir por
uma interação qualquer – em função dos mesmos três componentes – com as hipóteses
de saber que ele é levado a elaborar sobre o sujeito comunicante (EUc) -, e através da
percepção do ritual linguageiro (CHARAUDEAU, 2001, p. 32). [...] o sujeito destinatário
(TUd) (CHARAUDEAU, 2001, p. 32).
A relação que se estabelece entre o sujeito comunicante e o sujeito interpretante é de parceria: “*...+
parceiros legitimados *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 15), “*...+ os parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 15),
“*...+ identidade dos parceiros *...+”, “*...+ identidade dos parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 15), “*...+ os
parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 16), “*...+ os parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 16), “*...+
parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 20), . “*...+ parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 22), “*...+
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parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 22), “*...+ os parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 23), “*...+ um
dos parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 23), “*...+ parceiro *...+ (CHARAUDEAU, 2001, p. 30), “*...+
estatutos sociais dos parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2001, p. 30), “*...+ os parceiros estão presentes?”
(CHARAUDEAU, 2001, p. 31), “*...+ os parceiros são suscetíveis” (CHARAUDEAU, 2001, p. 31), “*...+ cada um
dos parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2001, p. 31), “*...+ dois parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 13), “*...+
os parceiros da comunicação *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 15), “*...+ parceiros *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p.
28).
Esse autor considera a parceria entre o sujeito comunicante e o sujeito interpretante assimétrica,
sendo que o Euc ocupa uma posição central, e o Tui está presente numa relação de inferioridade:
Entretanto, não há simetria entre as atividades do EUc e do TUi. Se o resultado do
processo de produção pode ser estudado através das características da encenação do
dizer, configurada no texto, o resultado do processo de interpretação só pode ser captado
de duas formas: seja através do texto de interação (e tal captação, por mais interessante
que seja, só pode ser parcial), seja de forma psico-experimental, isto é, testando-se os
sujeitos interpretantes [...] (CHARAUDEAU, 2001, p. 32).
O outro (tu) é também considerado por Charaudeau como protagonista: o sujeito destinatário (TUd).
O sujeito enunciador (EUe) e o sujeito destinatário são concebidos como protagonistas da interação
linguageira:
Na interação linguageira, somos confrontados com dois protagonistas: o sujeito
enunciador (EUe) e o sujeito destinatário (Tud), que se definem como seres de fala da
encenação do dizer, produzida pelo EUc e interpretada pelo TUi. Estes seres de fala
assumem diferentes faces de acordo com os papéis que lhes são atribuídos pelos
parceiros do ato de linguagem em função da relação contratual (CHARAUDEAU, 2001, p.
32).
Nessa relação de protagonistas, prevalece a noção de papéis atribuídos aos parceiros no ato de
linguagem, por meio da relação contratual.
Esse autor utiliza, ainda, vários termos para se referir ao outro: interlocutor, “*...+ protagonista *...+”
(CHARAUDEAU, 2001, p. 32), protagonista do ato de linguagem, interlocutor-receptor, receptor, adversário,
leitor, auditório, “*... sujeitos da linguagem *...+” (CHARAUDEAU, 2001, p. 27), ator da linguagem, “*...+
destinatário-leitor *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 12). “*...+ o interlocutor (ou destinatário)” (CHARAUDEAU,
2008, p. 14), “*...+ para agir sobre o outro *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 15), “*...+ sujeito interpretante *...+”
(CHARAUDEAU, 2008, p. 21, 22, 24), “*...+ dois protagonistas *...+” (CHARAUDEAU, 2008, p. 24). “*...+ sujeito
destinatário” (CHARAUDEAU, 2008, p. 28).
Charaudeau (2004, p. 154- 155) admite a ambiguidade do termo ‘destinatário’:
Com efeito, tanto ele representa o receptor* exterior ao processo de enunciação do
sujeito falante, o indivíduo que recebe efetivamente a mensagem e a interpreta, quanto o
sujeito ideal, visado pelo sujeito falante, que o inclui no seu ato de enunciação*. Por outro
lado, o que não simplifica as coisas, o destinatário pode ser a instância à qual se dirige
explicitamente e que é por isso, marcada como tal no enunciado ou assinalada por índices
exteriores (olhar, gesto ou mímica, turno de fala organizado) ou ele pode ser o
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destinatário segundo ou indireto [...] que não é a instância à qual se dirige explicitamente,
mas uma outra, implícita. Sem contar que o termo destinatário, no seu uso corrente,
designa aquele a quem é endereçada uma carta, qualquer que seja o uso que dele é feito.
Dito de outra maneira, a questão que se coloca a propósito do emprego desse termo é a
de saber se ele designa o receptor empírico que se encontra numa posição simétrica
àquela do emissor* como parceiro do ato de troca verbal, ou aquele que se encontra no
interior do processo de enunciação, numa posição simétrica àquela do enunciador* e à
qual o locutor acredita que ele se dirige. Várias propostas de distinção são feitas por
diversos autores, de acordo com o ponto de vista teórico e metodológico que defendem.
Apesar de admitir essa limitação do termo destinatário, esse autor o utiliza várias vezes em sua
teoria.
Meyer também utiliza vários termos, para se referir ao outro (tu) na retórica: “*...+ auditório *...+”
(MEYER, 1982, p. 134-148; MEYER, 2007, p. 43-56); “*...+ interlocutor *...+” (MEYER, 1982, p. 129-142;
MEYER, 2007, p. 43); “*...+ questionador” (MEYER, 1982, 140-141); “*...+ questionador implícito (MEYER,
1982, p. 140); “*...+ questionador-destinatário” (MEYER, 1982, p. 143-149); “*...+ protagonistas *...+” (MEYER,
1982, p. 145), “*...+ protagonista *...+” (MEYER, 1982, p. 146).
Os principais termos utilizados por ele, para essa finalidade, são, respectivamente: destinatário
(principal termo), auditório e interlocutor.
Tanto Charaudeau quanto Meyer, quando analisam essa variável, destacam a relevância do princípio
do dialogismo na constituição do eu e o princípio da cooperação, nos usos concretos da língua, na
enunciação, na pragmática.
C) Princípio do jogo
Esse princípio é central na teoria de Charaudeau (2001, p. 29), especificamente o conceito de
contrato de comunicação, que considera os sujeitos de linguagem portadores de intencionalidades,
havendo, nesses atores sociodiscursivos, enquanto jogadores, o desejo de ganhar o jogo, diante dos riscos
presentes no ato de linguagem:
Todo ato de linguagem corresponde a uma dada expectativa de significação. O ato de
linguagem pode ser considerado como uma interação de intencionalidades cujo motor
seria o princípio do jogo: “Jogar um lance na expectativa de ganhar”.
Nesse sentido, o ato de linguagem é compreendido por Charaudeau como uma espécie de aposta,
como algo incerto no encontro dialético entre interlocutores: “*...+ a aposta contida no ato de linguagem
*...+” (CHARAUDEAU, 2010, p. 44); “O fato de perder a aposta *...+” (CHARAUDEAU, 2010, p. 44). “Porém, já
vimos inúmeros casos em que esse tipo de ‘aposta’ fracassa” (CHARAUDEAU, 2010, p. 47). Assim, cada
sujeito de linguagem assume o papel de jogador, realizando a sua aposta no ato de linguagem.
O vocábulo jogo aparece com muita frequência na obra de Charaudeau, evidenciando a sua
determinação na aposta dos sujeitos de linguagem, os quais se comportam e agem como jogadores:
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“A finalidade do ato de linguagem (tanto para o sujeito enunciador quanto para o sujeito
interpretante) não deve ser baseada em sua configuração verbal, mas, no jogo (grifo
nosso) que um dado sujeito vai estabelecer entre esta e seu sentido implícito. Tal jogo
(grifo nosso) depende da relação dos protagonistas entre si e da relação dos mesmos com
as circunstâncias de discurso que os reúnem” (CHARAUDEAU, 2010, p. 24).
“A produção dessas paráfrases estruturais permite que se efetue na linguagem um jogo de
reconhecimento morfossemântico construtor de sentido, que remete à realidade que nos
rodeia (atividade referencial), conceituando-a (atividade de simbolização” (CHARAUDEAU,
2010, p. 25).
“A produção dessas paráfrases permite que se efetue, na linguagem, um jogo de
remissões constantes a alguma coisa além do enunciado explícito, que se encontra antes e
depois do ato de proferição da fala” (CHARAUDEAU, 2010, p. 25).
Meyer também utiliza o princípio do jogo em sua teoria. A negociação da distância entre os
interlocutores é uma espécie de jogo, quando o autor se refere à retórica da interação:
Jogar com a distância entre indivíduos a propósito de uma questão requer uma dupla
estratégia, relativa ao auditório [...]. Portanto, é preciso combinar uma dupla abordagem:
jogar (grifo nosso) com os valores e com o éthos, dar uma resposta ao problema (MEYER,
2007a, p. 51).
Armengaud (2006, p. 36) admite a relevância de Wittgenstein, para estabelecer o paradigma da
comunicabilidade, em substituição ao paradigma da expressividade, destacando dois pontos:
1) não há, de um lado, o pensamento e, de outro, a linguagem: indissociáveis, eles geram
um ao outro, simultaneamente; 2) já não há mais linguagem própria ao indivíduo,
“linguagem privada”, posteriormente traduzida em linguagem pública. Falar é seguir
regras, e só é possível seguir uma regra como atividade politicamente controlada, no
exercício da comunicação.
Wittgenstein (1996 citado por ARMENGAUD, 2006) utiliza a expressão “jogo de linguagem”, “*...+
para designar esse ambiente complexo no qual as mensagens tomam sentido [...]. Um jogo é
essencialmente uma atividade regulada e compartilhada. É também uma “forma de vida”.
Wittgenstein (1996 citado por ARMENGAUD, 2006) assim concebe o termo “jogo de linguagem”:
A expressão jogo de linguagem deve indicar aqui que falar uma língua faz parte de uma
atividade, de um modo de viver. Imagine a variedade dos jogos de linguagem com a ajuda
dos exemplos seguintes e de outros mais: - ordenar ou agir segundo regras; - descrever
um objeto em função de sua aparência ou de suas medidas; - fabricar um objeto seguindo
instruções; - levantar uma hipótese e submetê-la a verificação; - representar por meio de
quadros e de diagramas os resultados de uma experiência; - inventar uma história; - fazer
teatro; - cantar cantigas de roda; - resolver charadas; - pedir; - agradecer; - amaldiçoar;
cumprimentar; - rezar.
Vale destacar, em conformidade com o princípio do jogo presente na linguagem, a existência de
regras, tanto para os jogos quanto para a linguagem, o que implica na importância dos variados usos da
língua; em que não se pode desconsiderar a presença do outro no processo interenunciativo; que o outro
constitui o eu; que a comunicação envolve a interação social, o princípio da cooperação e o princípio da
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influência; que não somos somente seres individuais, mas também seres coletivos; que temos
intencionalidades; que há riscos, cálculos na comunicação, sendo a mesma uma espécie de partida.
O Quadro 2 ilustra as diferenças entre Charaudeau e Meyer.
Quadro 2. Diferenças entre Charaudeau e Meyer
Dimensões
Dimensão investigada
Charaudeau
Discursiva
Natureza da linguagem
Problematológica
Principal conceito utilizado em
sua teoria
Contrato de comunicação
Concepção de contexto
Contexto: interno ao ato de
linguagem
Meyer
Retórica
Problematológica: natureza
apocrítico-problematológica da
discursividade
Negociação da distância entre os
interlocutores para redução dessa
diferença
Contexto enquanto mediador
Fonte: Adaptado de Charaudeau (2001, 2006 e 2008) e de Meyer (1982, 2007a e 2008).
Observem-se as análises acerca das variáveis apresentadas:
A) Dimensão investigada
Quanto à dimensão investigada, Charaudeau analisa a discursiva. Interessa-lhe o discurso, embora a
sua análise também considere a utilização dos argumentos, principalmente quanto ao uso de estratégias
discursivas, por parte dos interlocutores.
Charaudeau (2001, p. 26) propõe a utilização do conceito discurso em dois sentidos:
Em um primeiro sentido, discurso está relacionado ao fenômeno da encenação do ato de
linguagem. Esta encenação depende de um dispositivo que compreende dois circuitos: um
circuito externo, que representa o lugar do fazer psicossocial (o situacional) e um circuito
interno, do dizer. [...]. Em um segundo sentido, discurso pode ser relacionado a um
conjunto de saberes partilhados, na maior parte das vezes, de modo inconsciente, pelos
indivíduos pertencentes a um dado grupo social. Os discursos sociais (ou imaginários
sociais) mostram a maneira pela qual as práticas sociais são representadas em um dado
contexto socio-cultural e como são racionalizadas em termos de valor: sério/descontraído,
popular/aristocrático, polido/ impolido, etc..
Por sua vez, Meyer aborda a dimensão retórica (argumentativa), em termos epistemológicos,
considerando a existência de diferenças entre os interlocutores, de distâncias. Concebe como retórica “*...+
a negociação da diferença entre os indivíduos sobre uma questão dada” (MEYER, 2007a, p. 25).
Esse autor vincula a argumentação à persuasão, ao convencimento do interlocutor, destacando a
relevância dessa dimensão, relacionando-a ao discurso:
A argumentação tem efeitos retóricos visando agradar, convencer, fazer aquiescer, ela
opera, pois sobre uma hierarquia de valores no seio da qual se inscrevem as noções postas
em relação no argumento. Relação logo hierarquização, logo avaliação: o implícito, as
crenças do auditório, as pressuposições, os valores, são a sua medida. A dimensão
argumentativa seria essencial à linguagem porquanto todo discurso procura persuadir
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aquele a quem se dirige. Por outro lado, caracterizamo-la igualmente como raciocínio não
formal, não constringente, por oposição ao raciocínio lógico, à necessidade rigorosa e sem
apelo. Estas duas definições estão ligadas: argumenta-se porque os raciocínios não se
encadeiam com a necessidade absoluta das matemáticas, existe por isso lugar para um
possível desacordo (MEYER, 1982, p. 144).
Para Meyer (1982), há uma relação entre a argumentação e a teoria do questionamento. O
argumento é concebido por ele como “*...+ um aviso sobre uma questão *...+” (MEYER, 1982, p. 145). “*...+ o
argumento é a resposta que ocupa o lugar de conclusão face à questão” (MEYER, 1982, p. 145). Assim,
haveria uma relação entre a argumentação, a questão e a conclusão; em outras palavras, uma relação
entre linguagem e epistemologia.
Esse autor sustenta a relevância da argumentação para a linguagem, em função do caráter
persuasivo do discurso. Considera a existência de uma relação entre um explícito e um implícito a condição
para a existência da argumentação.
Ele defende que, na demonstração matemática, verificam-se a adesão e o acordo, em função da
univocidade da resposta, diferentemente do que ocorre na linguagem:
A demonstração matemática convence porque, acerca duma dada questão, temos que
acertar esta resposta. Daí a decisão e o acordo. Quanto ao raciocínio não formal ele não
nos garante que a questão levantada não permaneça em aberto devido à ausência de um
procedimento constringente de resolução. Daí a possibilidade da alternativa permanecer e
da contradição poder surgir (MEYER, 1982, p. 144-145).
Meyer (1982) admite que a ação humana está vinculada à existência de problemas, sendo a
linguagem usada, muitas vezes, na tentativa desua resolução. Assim, a linguagem teria uma função de
possibilitar o estabelecimento de um pacto entre os interlocutores. Trata-se de uma possibilidade, de uma
aposta, e não de uma certeza.
Meyer (1982, p. 145) concebe argumentação enquanto colocação de questões, nos sentidos
epistemológico e discursivo, compreendendo o argumento como
“*...+ a resposta que ocupa o lugar de conclusão face à questão. Ao inverso das
matemáticas, as regras de passagem e as premissas permanecem implícitas ao contexto:
elas não fazem problemas. A passagem da questão à resposta é a inferência através do
contexto e da informação que ela oferece. Inversamente, o destinatário é um
questionador que por seu lado, remota à questão levantada pela resposta que infere
desta a outra através do contexto”.
Ainda em conformidade com esse autor, a argumentação estaria condicionada à existência de “*...+
uma relação entre um explícito e um implícito” (MEYER, 1982, p. 145). Funcionaria enquanto
“ *...+ exigência de uma conclusão, eventualmente de uma certa decisão a tomar (o fazer
crer) [...] a respeito do problema colocado no contexto da sua ocorrência, contexto que
fornece aos protagonistas os recursos informativos necessários à inferência da respostaconclusão” (MEYER, 1982, p. 145).
B) Natureza da linguagem abordada
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A natureza problematológica da linguagem, para Charaudeau, se localiza no encontro dialético, o
qual envolve os processos de produção e de interpretação, especificamente na zona de intercompreensão
suposta. A FIG. 1 ilustra o ato de linguagem, concebido por Charaudeau (2010, p. 45) como “*...+ um ato
enunciativo entre quatro sujeitos (e não 2), lugar de encontro imaginário de dois universos de discurso que
não são idênticos *...+”, em que aparece a zona de intercompreensão suposta.
Figura 1- Ato de linguagem, conforme Charaudeau.
UNIVERSO DE DISCURSO DO EU
EU Processo de produção  TU
Zona de
intercompreensão
suposta
EU’  Processo de interpretação TU’
UNIVERSO DO DISCURSO DO T’
Fonte: Charaudeau (2010, p. 45).
Charaudeau prioriza a natureza problematológica da linguagem, em função de sua opacidade, de sua
complexidade, da existência de conflitos entre os interlocutores e da necessidade de um acordo, de uma
cooperação, para a manutenção da vida social.
Para efeito de ilustração, citaremos um trecho, extraído do seu estudo sobre o discurso político, em
que o valor a que esse autor se refere é o valor defendido pelo político, em seu discurso:
Assim a encenação do discurso político oscila entre a ordem da razão e da paixão,
misturando logos, ethos e pathos para tentar responder a questão (grifo nosso) que
supostamente se coloca o cidadão: “O que me leva a aderir a este ou àquele valor?”
(CHARAUDEAU, 2006, p. 84).
Essa problemática, na visão desse autor, é explicada por meio da noção de contrato de comunicação,
considerando, principalmente, a existência do outro, do interlocutor, envolvendo o princípio de pertinência
do ato de comunicação e, por conseguinte, do contrato de comunicação:
[...] O princípio de pertinência, que faz duas exigências: a) de um lado, que o interlocutor
(ou destinatário) possa supor que o locutor tem uma intenção, um projeto de fala, que
dará ao ato de linguagem sua motivação, sua razão de ser; b) de outro lado, que eles
possuam em comum um mínimo de dados que constituam esse ato, na falta dos quais não
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poderá dialogar. De outro modo, que eles possam reconhecer a existência de certos
saberes sobre o mundo, dos valores que são atribuídos a esses saberes e das normas que
regulam os comportamentos sociais por rituais linguageiros. Esse conjunto representa o
que chamamos “saberes partilhados”. Sem esses saberes, não há possibilidade de
estabelecer uma intercompreensão e, portanto, não há pertinência no ato de
comunicação (CHARAUDEAU, 2008, p. 14).
Já Meyer trata da natureza problematológica da linguagem, focando a natureza apocríticoproblematológica da questão. Em conformidade com Meyer (2007a, p. 40), “*...+ ‘apocrítico’ significa o que
responde, o que resolve; ‘problematológico’, o que expressa uma questão, mas também o que a suscita”. A
sua preocupação é de cunho mais filosófico. Para efeito de ilustração, citamos este trecho:
Com o éthos, o páthos e o logos, somos remetidos aos três problemas extremos e
inseparáveis (Grifo nosso) que o homem coloca para si mesmo desde sempre: o eu com o
éthos, o mundo com o lógos e o outro com o páthos. Com a retórica, o eu, o outro e o
mundo são implicados em uma interrogação (grifo nosso) em que o outro é solicitado
como auditório, como juiz e como interlocutor, posto que é instado a responder (Grifo
nosso) e a negociar (grifo nosso). Com a ciência, dada a obrigação da objetividade, não
deveria haver essa tripla dimensão, mas a vida em sociedade é feita de forma tal que as
opiniões são múltiplas, problemáticas (grifo nosso) que a retórica se esforça para afrontar
(MEYER, 2007a, p. 30-31).
Meyer (1982, p. 101) admite a relevância do questionamento na linguagem:
A relação com o mundo é questionamento. A linguagem natural é eloquente a este
respeito, pois não existem termos definíveis sem a intervenção de interrogativos:
‘Napoleão é o vencedor de Austerlitz’ ou ‘a poltrona é vermelha’ só são descrições
verdadeiras de estados do mundo se qualquer coisa responder às questões que estas
proposições são para o mundo. Elas lêem-se: ‘Napoleão é aquele que venceu Austerlitz’ ‘a
poltrona é o objecto que tem a cor vermelha’. E se ignorarmos o que é vermelho ou
Austerlitz, podemos ainda complicar: ‘... a cidade a que chamamos Austerlitz ‘, ‘... a
propriedade que...’. Cada uma destas interrogativas abre, como mundos possíveis, as
respostas alternativas que elas admitem. O número mínimo é dois, pois a questão só tem
afirmação (‘Sim, ...’) ou a negação (‘Não, ...’) como respostas possíveis a alternativa como
várias possibilidades de respostas possíveis. Enfim, quando procuramos identificar o que
está em questão num discurso, fazêmo-lo explicitamente com a ajuda de partículas
interrogativas: ‘O homem que venceu em Austerlitz que perdeu em Waterloo’ referem-se
ao mesmo indivíduo. A linguagem natural faz frequentemente a economia da sua relação
questionando o mundo, pois que, a maior parte das vezes, sabemos e compreendemos o
que é que está em questão quando falamos daquilo que se fala.
Em outra obra (Lógica, linguagem e argumentação), Meyer (1982, p. 101) corrobora essa ideia: “Isto
quer dizer que a relação a um mundo qualquer que ele seja é interrogação. É assim que se descobre a
referência. A relação com o mundo é questionamento”.
Esse autor considera as relações retóricas (ethos, logos e pathos) “*...+ como fontes de respostas, que
podem ser argumentos ou espaços para argumentos *...+” (MEYER, 2007a, p. 30).
Em conformidade com Meyer (2007a), as dimensões retóricas (ethos, logos e pathos) exprimem
questões e respostas. Assim, não há motivo para privilegiar uma dessas dimensões, e sim tratá-las
sistematicamente, em pé de igualdade.
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Meyer (2007a, p. 27) postula que a retórica “*...+ aborda a pergunta pelo viés da resposta,
apresentando-a como desaparecida, portanto resolvida *...+”, diferentemente da argumentação, que “*...+
parte da própria pergunta, que ela explicita para chegar ao que resolve a diferença, o diferencial, entre os
indivíduos”. Desde Austin vê-se a preocupação com um instrumento básico de interpretação, a que Meyer
também coloca no centro de suas investigações: o que está em questão quando dizemos?
A natureza problematológica da linguagem, para esse autor, envolve os saberes partilhados entre os
interlocutores. Em conformidade com Meyer (2007a, p. 39), esses saberes “*,,,+ geram os lugares comuns,
as ideias convencionais, as opiniões em vigor na sociedade. Eles são simétricos ao éthos”.
Verificam-se, então, aproximações entre esses autores: o problema da linguagem está relacionado
aos saberes partilhados entre os interlocutores, os quais estão situados no âmbito do extralinguístico: a
questão do princípio de pertinência, para Charaudeau e a questão do contexto, para Meyer.
C) Principal conceito utilizado em sua teoria
O principal conceito utilizado na teoria semiolinguística de Patrick Charaudeau é contrato de
comunicação, vinculando-o à identidade dos parceiros, às finalidades e aos papéis linguageiros. É centrado
na ideia de aliança entre os parceiros
[...] em uma espécie de aliança objetiva que lhes permite co-construir sentido e se
legitimar. Na ausência do reconhecimento de um tal contrato, o ato de comunicação não
tem pertinência e os parceiros não têm direito à palavra (CHARAUDEAU, 2008, p. 17).
Esse autor destaca a relevância do contrato de comunicação:
Ele é o que estrutura a situação na qual se desenvolvem as trocas linguageiras ao
organizá-las de acordo com os lugares ocupados pelos parceiros da troca, a natureza de
sua identidade, as relações que se instauram entre eles em função de certa finalidade
(CHARAUDEAU, 2006, p. 53).
O contrato de comunicação evidencia uma possibilidade de um acordo, mas não uma certeza:
A noção de contrato pressupõe que os indivíduos pertencentes ao mesmo corpo de
práticas sociais estejam suscetíveis de chegar a um acordo sobre as representações
linguageiras dessas práticas sociais. Em decorrência disso, o sujeito comunicante sempre
pode supor que o outro possui uma competência linguageira de reconhecimento análoga
à sua. Nesta perspectiva, o ato de linguagem torna-se uma proposição que o EU faz ao TU
e da qual ele espera uma contrapartida de conivência (CHARAUDEAU, 2008b, p. 56).
Quanto a Meyer, o principal conceito utilizado é o de distância, que está relacionado às diferenças
entre os sujeitos. Esse autor admite a importância do conceito de distância, na retórica, considerando-o
complexo:
O que constitui a sua diferença, e mesmo o seu diferencial, é certamente múltiplo, e pode
ser social, político, ético, ideológico, intelectual - e sabe-se lá o que mais-, mas uma coisa é
certa: se não houvesse um problema, uma pergunta que os separasse, não haveria debate
entre eles, nem mesmo discussão (MEYER, 2007a, p. 25).
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Assim, o conceito de contrato de comunicação, de Charaudeau, e o de distância entre os sujeitos
(interlocutores), de Meyer possui certas aproximações: evidenciam a existência de conflitos entre os
indivíduos em sociedade; de assimetria entre os processos de produção e de interpretação da significação;
a complexidade da linguagem e a necessidade de realização de um acordo entre esses atores sociais, por
meio de um contrato de comunicação, no caso de Charaudeau; ou de uma negociação das distâncias entre
os sujeitos, por parte de Meyer, envolvendo as dimensões retóricas (ethos, logos e pathos). Há, portanto,
entre esses autores, a defesa da ideia de realização de um pacto entre os interlocutores, para a sua
convivência e a relavância do outro na constituição dos sujeitos.
Meyer (2007a) não utiliza o termo contrato de comunicação, mas utiliza termos afins: “transação
lingüística” (grifo nosso) (MEYER, 2007a, p. 43), “negociação da diferença” (grifo nosso) (MEYER, 2007a, p.
25).
D) Noção de contexto
Para Charaudeau (2010, p. 69), o conceito contexto “*...+ é interno ao ato de linguagem e sempre
configurado de alguma maneira (texto verbal. Imagem, grafismo, etc.) *...+”. Divide-o em contexto
linguístico e contexto discursivo:
O contexto linguístico designaria então a vizinhança verbal de uma determinada palavra,
podendo variar em dimensão. O contexto discursivo designaria os atos de linguagem
existentes (aqueles que já foram produzidos) numa determinada sociedade e que
intervêm na produção/ compreensão do texto a interpretar. Por exemplo, para
compreender (nos anos 90) a manchete de jornal ‘Junto ao muro’ é necessário mobilizar
os atos de linguagem concernentes ‘à queda do muro de Berlim’.
Esse autor postula a existência de uma diferença entre contexto e situação de comunicação. Em
conformidade com Charaudeau (2010, p. 69), situação “*...+ se refere ao ambiente físico e social do ato de
comunicação *...+ é externa ao ato de linguagem, embora constitua as condições de realização desse ato”.
O ato de linguagem, para Charaudeau, se produz dentro de uma situação de comunicação. Nela, que
“*...+ que constitui um espaço de troca” *...+ (CHARAUDEAU, 2010, p. 70), a posição central é ocupada pelo
falante (locutor), o qual se coloca em “*...+ em relação com um parceiro (interlocutor)” (CHARAUDEAU,
2010, p. 70),
Em sua teoria sobre a retórica, Meyer (1982, p. 134) atribui uma grande relevância ao conceito de
contexto, concebido por ele como
[...] o mediador da diferença problematológica aquele pelo qual se instaura efetivamente
um acto, isto é hic et nunc, uma diferença entre o que questiona e o que responde. [...] o
contexto comporta necessariamente pelo menos dois questionadores. Um para o qual a
resposta é resposta se mais, outro para o qual a resposta levanta problemas. Isto significa
que a resposta não é enquanto algo que continua a colocar problemas: ou porque não se
resolve a questão que se propunha resolver, ou porque suscita uma ou mais questões que
expressaria ou ajudaria a resolver. Em todos os casos, ela exige uma resposta dado que é
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questão, resposta que pode ir ao silêncio da aprovação ou do desinteresse, à negação
como rejeição pura e simples.
Assim, o contexto não é considerado por esse autor como um pano de fundo, mas um mediador,
tendo um papel relevante na linguagem. Meyer (2007b, p. 89) considera o contexto como uma posição em
que os saberes dos interlocutores são partilhados: “O que é então o contexto senão a posição relativa dos
interlocutores, aquilo que sabem do outro, mas também aquilo que sabem que o outro sabe que eles
sabem?”
Tanto o conceito de situação de comunicação (Charaudeau) quanto o de contexto (Meyer)
evidenciam a relevância dos interlocutores, de seus saberes partilhados na comunicação, a complexidade
da linguagem. Trata-se do extralinguístico.
3. Considerações finais
Verificamos, assim, a existência de várias aproximações entre as teorias de Patrick Charaudeau e de
Michel Meyer, embora cada um desses teóricos aborde uma dimensão diferente: Charaudeau, a discursiva;
Michel Meyer, a retórica (argumentativa), implicando numa relação de complementaridade, e não de
exclusão, em relação às seguintes variáveis: 1) concepção de língua; 2) natureza da linguagem; 3) como
teórico considera o outro(o tu) na sua teoria; e 4) princípio do jogo.
Destacam-se também diferenças entre essas teorias, quanto às variáveis analisadas: 1) dimensão
investigada; 2) natureza da linguagem; 3) principal conceito utilizado em sua teoria; e 4) concepção de
contexto.
A principal diferença entre essas teorias se refere à variável concepção de contexto.
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TORRES, Alex Fabiani de Brito | I CIED (2015) 42-59
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Abstract: The purpose of this article is to compare the authors Patrick Charaudeau and Michel Meyer, evidencing the
approximations and differences between their theories. As to approximations, the following variables will be
analyzed: conception of language; language conception; as the theoretical considers the other in his theory; and
principle of the game. As to differences, the following variables will be analyzed: investigated dimension; nature of
language; main concept used in his theory; and designing context. They were used mainly the following theoretical
references: Charaudeau (2001, 2004, 2006, 2008 and 2010), Meyer (1982, 2007a, 2007b and 2008). It was chosen a
qualitative methodology, dividing into: comparative and bibliographical method. It is evidenced complementarity
between these two theories, although each author prioritize a different approach.
Keywords: Patrick Charaudeau; Michel Meyer; approximations; differences; theories.
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“VOCÊ É LIVRE? MESMO?”: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DA
LEITORA IDEAL DA REVISTA TPM
Alice Vasques de CAMARGO (USP)
[email protected]
Resumo: Neste artigo, analisa-se o manifesto “Você é livre? Mesmo?”, publicado pela revista feminina Tpm em 2012,
a fim de estabelecer o perfil de leitora ideal traçado discursivamente no texto. Tem-se como referencial teórico a
Análise Crítica do Discurso, que permite um olhar detalhado para o contexto do corpus e uma abordagem voltada para
as relações de poder que se estabelecem discursivamente na sociedade. Em termos de metodologia, utiliza-se o
Sistema de Avaliatividade, de Martin e White (2005), que, nos parâmetros da Linguística Sistêmico-Funcional, ancorase no sistema linguístico para buscar depreender as estratégias linguístico-discursivas de marcação da subjetividade e
da intersubjetividade nos textos. Os resultados apontam que a leitora ideal projetada no discurso distancia-se do
perfil de leitora ideal das demais revistas femininas. Foram analisadas marcas de Engajamento (contração e expansão
dialógica) no texto que contrapõem as crenças, objetivos e ideologia das mulheres que leem a Tpm e das mulheres
que se rendem aos padrões de beleza e comportamento difundidos na grande mídia. Chegamos, então, a um perfil de
leitora ideal que diverge ideologicamente das demais leitoras de revistas femininas, mas que no âmbito de classe
econômica e social é muito semelhante.
Palavras-chave: revista feminina; leitora ideal; manifesto; análise crítica do discurso; avaliatividade.
1. Introdução
O objetivo deste artigo é analisar o manifesto “Você é livre? Mesmo?”, publicado pela revista
feminina Tpm em 2012, a fim de estabelecer o perfil de leitora ideal traçado discursivamente no texto.
Busca-se caracterizar a leitora ideal construída no discurso através dos posicionamentos e alinhamentos
ideológicos adotados pelo autor com relação a valores e crenças sobre a mulher brasileira contemporânea,
seu papel na sociedade e seus interesses.
A pesquisa aqui apresentada consiste num recorte do projeto de mestrado em andamento que visa,
por meio da análise dos editoriais da revista em foco, depreender a representação social da mulher que se
faz na revista e qual a relação que se estabelece entre o discurso da Tpm e os demais discursos
contemporâneos da mídia a respeito da mulher, por meio de uma abordagem dialógica e interdiscursiva.
Tal proposta mostra-se relevante na medida em que o entendimento da representação da mulher na
mídia contemporânea possibilita o desenvolvimento de ações de contraideologia e contrapoder em relação
à opressão social de gênero. Tem-se, portanto, um horizonte de importância social que parte de uma
questão linguística-discursiva, nos moldes das pesquisas em Análise Crítica do Discurso.
Cumpre-se acrescentar também que esta pesquisa pretende colaborar para a aplicação e o
desenvolvimento da Análise Crítica do Discurso e do Sistema de Avaliatividade, usada aqui como
metodologia, tendo em vista que ambas são linhas de pesquisa recentes, que, aos poucos, vêm ganhando
espaço no cenário das pesquisas em discurso no Brasil.
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2. Referencial teórico
Como dito anteriormente, a presente pesquisa parte do referencial teórico da Análise Crítica do
Discurso (doravante ACD). A seguir, delineia-se brevemente um pouco do histórico desta corrente e seus
principais pressupostos e objetivos.
2.1 Análise Crítica do Discurso
Em 1979, o trabalho teórico Language and Control, dos britânicos Fowler, Hodge e Kress, dá início a
uma nova linha de estudos do discurso, inicialmente denominada Linguística Crítica (LC,) e que durante as
décadas de 1980 e 1990 cresceu e se tornou a Análise Crítica do Discurso (ACD) ou Análise de Discurso
Crítica (ADC) (MELO, 2009; WODACK, 2004).
Assim como a Análise do Discurso (AD), de linha francesa, a ACD (ou ADC) trata o discurso como
prática social, mas, ao contrário da primeira, entende que qualquer manifestação discursiva pode ter papel
tanto reprodutor como transformador de ideologias e relações de poder (MELO, 2012). Pode-se dizer ainda
que:
A ACD não pretende realizar uma análise do discurso apenas como procedimento
epistemológico sobre a língua, antes, propõe analisar a linguagem como fenômeno de
mudança/transformação social, entendendo o discurso como uma prática social que
reflete e constitui as relações humanas. Assume, assim, de modo explícito, um caráter
ativista na luta por democracia social, na medida em que denuncia práticas de dominação
e conflitos sociais que impedem a dinâmica democrática da sociedade e permite aumentar
a consciência de como a linguagem contribui para a dominação de umas pessoas sobre as
outras, já que essa consciência é o primeiro passo para a emancipação (MELO, 2012, p.
12).
Entre os nomes paradigmáticos da ACD, podem-se destacar dois expoentes: Teun Van Dijk e Norman
Fairclough. O primeiro, com formação inicial em Amsterdã e atual prática em Barcelona, volta-se para a
vertente sociocognitiva dos estudos discursivos, preocupando-se com as práticas discursivas que
institucionalizam a sociedade e com as cognições sociais que permeiam essas práticas (MELO, 2009). A
noção de acesso discursivo, formulada por ele, e a questão da exclusão social são centrais para esse
pesquisador.
Fairclough é britânico, e a principal característica de sua abordagem da ACD é a proposta do modelo
tridimensional de análise do discurso, proposto em 1989 e aprimorado em 1992. No que chama de Teoria
Social do Discurso, Fairclough elenca três dimensões do discurso: texto, prática discursiva e prática social. A
análise, portanto, compreenderia três etapas, incluindo as três dimensões. Sendo assim, o autor amplia os
estudos linguísticos ao incorporar perspectivas sociais à análise do discurso, o que dá origem a uma teoria
profundamente interdisciplinar.
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A partir de seu livro Analysing discourse, Fairclough busca uma aproximação com o funcionalismo de
Halliday, para o qual a relação entre as funções da linguagem e a organização do sistema linguístico é um
traço geral da linguagem humana (RESENDE e RAMALHO, 2005).
Nas palavras de Melo (2012), a LSF
[...] concebe a linguagem como um fenômeno multifuncional, porque realiza três tipos de
funções diferentes, aos quais Halliday denomina de macrofunções da linguagem. São elas:
ideacional, interpessoal e textual, correspondentes a três realizações simultâneas:
representar a realidade, refletindo e construindo sistemas de conhecimentos, crenças e
imagens sociais (função ideacional); estabelecer relações sociais e identidades (função
interpessoal); e organizar a ordenação do texto para indicar os propósitos comunicativos
do faltante (função textual) (MELO, 2012, p. 72-73, grifos do autor).
Fairclough propõe uma recontextualização da teoria de Halliday e articula essas macrofunções com
os conceitos de gênero, discurso e estilo, propondo o uso, através desse diálogo, de três tipos de
significado: o significado representacional, acional e identificacional. Assim, na análise de textos, a ACD
sugere que os elementos estruturais sejam descritos com a finalidade de se verificar de que modo
cooperam para a construção de cada um desses significados.
Partindo, então, dessa proposta de Fairclogh de articulação entre os princípios da ACD e a LSF, buscase fazer uma análise do corpus aqui enfocado por meio do Sistema de Avaliatividade, de Martin e White
(2005), que, nos parâmetros da LSF, ancora-se no sistema linguístico para depreender as estratégias
linguístico-discursivas de marcação da subjetividade e da intersubjetividade nos textos, com foco na função
interpessoal da língua. A seguir, trata-se um pouco mais detidamente desta vertente teórica.
2.2 Sistema de Avaliatividade
Conforme visto brevemente na seção anterior, o Sistema de Avaliatividade é um sistema teórico
derivado da LSF com foco na função interpessoal da língua. Deste modo, a teoria de Martin e White
interessa-se:
[...] pelo interpessoal na linguagem, pela presença subjetiva de escritores/falantes em
textos na medida em que adotam posturas com relação tanto ao material que eles
apresentam quanto àqueles com quem se comunicam. Interessa-se pela forma como
escritores/falantes aprovam e desaprovam, se entusiasmam e abominam, aplaudem e
criticam, e pela forma como eles levam seus leitores/ouvintes a fazerem o mesmo.
Interessa-se pela forma como os textos constroem comunidades que compartilham
sentimentos e valores e pelos mecanismos linguísticos através dos quais se compartilham
emoções, gostos e avaliações normativas. Interessa-se pela forma como
escritores/falantes constroem para si identidades autorais ou personae particulares, pela
forma como eles se alinham ou desalinham com os interlocutores, reais ou potenciais, e
pela forma como eles constroem para seus textos uma audiência ideal ou pretendida
1
(MARTIN e WHITE, 2005, p. 1, tradução nossa).
1
No original: “*...+ with the interpersonal in language, with the subjective presence of writers/speakers in texts as they adopt
stances towards both the material they present and those with whom they communicate. It is concerned with how
writers/speakers approve and disapprove, enthuse and abhor, applaud and criticise, and with how they position their
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A partir deste entendimento, é possível compreender a adequação desta teoria aos objetivos aqui
pretendidos, pois tal vertente instrumentaliza a análise no sentido de contribuir com a metodologia
necessária para a identificação dos alinhamentos ideológicos que são construídos no texto e que projetam
um determinado perfil de leitora ideal para a revista. Antes, porém, da apresentação do corpus e da
análise, faz-se necessário entender um pouco melhor a estrutura desta teoria.
O Sistema de Avaliatividade apresenta um sistema semântico-discursivo de categorias de marcação
da subjetividade e da intersubjetividade nos textos. Esse sistema possui três domínios que interagem, mas
que podem ser assim divididos para que determinadas categorias sejam enfocadas dependendo dos
objetivos da análise.
Os três domínios são: Engajamento, Atitude e Gradação. O primeiro, sobre o qual recai o foco deste
trabalho, trata dos posicionamentos discursivos, do grau de comprometimento do enunciador em relação
ao texto, bem como do papel das diversas vozes e opiniões que se colocam no discursivo, possui, portanto,
uma abordagem essencialmente dialógica; o segundo diz respeito aos sentimentos expressos no discurso,
incluindo reações emocionais, julgamentos e avaliações de comportamentos, fatos, ações etc.; ao terceiro,
cabe a análise da amplificação ou atenuação de fenômenos, como também a maior ou menor definição de
categorias, eventos ou mesmo avaliações (MARTIN e WHITE, 2005).
Cada um desses domínios se subdivide em outras categorias que vêm auxiliar a análise de modo a
definir com maior precisão os mecanismos semânticos-discursivos de marcação da subjetividade. No
entanto, para a análise aqui proposta, apenas o primeiro domínio será contemplado, o que diz respeito ao
Engajamento, por se mostrar adequado aos objetivos pretendidos.
A seguir, há um detalhamento maior acerca do sistema do Engajamento, para que se entenda sua
aplicação na análise apresentada posteriormente.
2.2.1 Engajamento
O Engajamento provê categorias de análise essenciais para a identificação do leitor ideal. Martin e
White (2005), assim explicam:
Em primeiro lugar, interessa-nos o papel que [os recursos de posicionamento
intersubjetivo] desempenham nos processos de construção de significados pelos quais o
falante/escritor negocia relações de alinhamento/desalinhamento vis-à-vis às várias
posições de valores referenciadas pelo texto e, portanto, vis-à-vis às comunidades
socialmente constituídas de atitudes e crenças compartilhadas associadas a essas
posições. Por “alinhamento/desalinhamento”, entendemos a concordância/discordância
com relação a avaliações comportamentais ou crenças e pressupostos sobre a natureza do
mundo [...]. Notamos, a este respeito, que, quando falantes/escritores declaram suas
readers/listeners to do likewise. It is concerned with the construction by texts of communities of shared feelings and values, and
with the linguistic mechanisms for the sharing of emotions, tastes and normative assessments. It is concerned with how
writers/speakers construe for themselves particular authorial identities or personae, with how they align or disalign themselves
with actual or potential respondents, and with how they construct for their texts an intended or ideal audience”.
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próprias posições de atitude, eles não estão apenas se autoexpressando [...], mas ao
mesmo tempo convidam outras pessoas a endossar e compartilhar com eles esses
sentimentos, gostos ou avaliações normativas que estão anunciando. Assim, declarações
de atitude são dialogicamente dirigidas no sentido de alinhar o destinatário em uma
comunidade de valores e crenças partilhados (MARTIN e WHITE, 2005, p. 95, tradução
2
nossa).
Para entender o Engajamento, é necessário ter em mente o pressuposto de que “todos os
enunciados verbais são, em última análise, dialógicos” (WHITE, 2004, p. 192). O conceito de dialogismo é
emprestado da teoria bakhtiniana, bem como o de heteroglossia, fundamental para a abordagem do
Engajamento. A partir deles, os autores definem que os enunciados podem ser divididos em duas
categorias: monoglóssicos, quando não fazem nenhuma referência a outras vozes ou pontos de vista
discursivos; e heteroglóssicos, quando invocam ou permitem alternativas dialógicas (MARTIN e WHITE,
2005). Declarações categóricas, cujo contexto comunicativo cria o efeito de serem únicas, não dialógicas, se
encaixam na categoria de monoglóssicas. Já para enunciados heteroglóssicos, White (2004) enumera as
seguintes opções:

Refutar: posicionar-se contrariamente, rejeitar uma posição oposta através de:
 Negação.
 Contraposição (concessão ou contraexpectativa).

Declarar: apresentar uma posição como altamente plausível, descartando outras alternativas,
através de:
 Concordância (usar expressões como “naturalmente”, “é claro”, “obviamente” ou alguns
tipos de pergunta retórica).
 Afirmação (que inclui o uso de expressões como “eu afirmo que...”, “a verdade é que...”,
“não há dúvida que...”).
 Endosso (como em “X demonstrou que...”, “X provou que...”).

Considerar: apresentar uma alternativa entre outras, invocando as demais posições possíveis,
por exemplo com o uso de expressões como “aparentemente”, “talvez”, “pode ser que...”,
“provavelmente” etc.

Atribuir: apoiar uma proposição em uma voz externa, considerando outras alternativas
dialógicas em formulações de:
 Reconhecimento (como “X disse que...”, “de acordo com X...”, “na opinião de X...”).
2
No original: “First, we are concerned with the role they play in meaning making processes by which the speaker/writer negotiates
relationships of alignment/disalignment vis-à-vis the various value positions referenced by the text and hence vis-à-vis the sociallyconstituted communities of shared attitude and belief associated with those positions. By ‘alignment/disalignment’, we refer to
agreement/disagreement with respect to both attitudinal assessments and to beliefs or assumptions about the nature of the world
[...]. We note, in this regard, that when speakers/writers announce their own attitudinal positions they not only self-expressively
[...], but simultaneously invite others to endorse and to share with them the feelings, tastes or normative assessments they are
announcing. Thus declarations of attitude are dialogically directed towards aligning the addressee into a community of shared
value and belief”.
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 Distanciamento(que envolve o uso de expressões como “correm rumores que...”, “X alega
que...”).
Os enunciados heteroglóssicos são divididos, então, em duas categorias: expansão dialógica e
contração dialógica. A primeira abarca os casos de refutação e declaração, enquanto a segunda
compreende enunciados de consideração e atribuição. Conforme White (2004, p. 194), “A diferença está no
grau no qual um enunciado, por meio de uma ou mais palavras, levanta posições e vozes dialógicas
alternativas (expansão dialógica), ou, ao contrário, age no sentido de desafiar, dispersar ou restringir o
escopo dessas posições ou vozes (contração dialógica)”.
Como efeito de sentido, o enunciado que provoca uma expansão dialógica, ou seja, levanta posições
ou vozes dialógicas alternativas, acarreta um menor nível de comprometimento do enunciador; já o
enunciado de contração dialógica, que restringe o escopo de posições ou vozes alternativas, gera um maior
nível de comprometimento do enunciador em relação à posição que toma em seu texto.
3. Contexto
3.1 Revistas femininas e mulher na sociedade
Lançando um olhar panorâmico pelo cenário atual das revistas femininas brasileiras, vemos uma
massa de publicações voltadas para os temas de beleza, sexo, saúde, relacionamento, moda e
comportamento, com poucas variações. Também é possível observar que, em sua maioria, trata-se de
periódicos voltados às mulheres brancas, heterossexuais e classe média, como já constatou Heberle (2004).
A importância do estudo da mídia feminina é assim apresentada pela autora:
A relevância de se estudar RF [revistas femininas] pode ser atestada não só pelo fato de
que elas representam uma das indústrias mais lucrativas da mídia, que atinge um público
considerável em vários países, mas também pelas informações e pressuposições
importantes que veiculam sobre a identidade das mulheres na sociedade contemporânea.
Ao se investigar os traços lexicogramaticais dos textos das RF, ao se utilizar “lentes
críticas”, levando-se em conta as dualidades/polarizações/contradições contidas nelas,
pode-se compreender melhor, creio eu, os discursos que permeiam essas publicações e
sua relação com as diversas práticas sociais na contemporaneidade (HEBERLE, 2004, p.
87).
O cenário atual, no entanto, não pode ser distanciado de um histórico que constituiu e consolidou o
gênero, do qual pode-se ter uma boa noção através do trabalho de Buitoni (2009) e de Andrade (2009,
2010). Desde o início, as revistas femininas são marcadas por ambiguidades e paradoxos entre a libertação
e a emancipação feminina e a tentativa de enquadrar a mulher dentro de um padrão de beleza,
comportamento e, principalmente, de consumo. Buitoni (2009, p. 15) pontua: "São as ambiguidades da
imprensa feminina: ela foi instrumento de democratização da moda, trouxe informação sobre sexo,
contribuiu para a revolução sexual e, todavia, sugere a colocação de próteses como uma grande conquista
de beleza e identidade”.
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Estamos diante, portanto, de uma prática discursiva arraigada num contexto de prática social, em
que temos a mulher enquanto grupo historicamente oprimido e prejudicado dentro de uma sociedade que
se alinha aos parâmetros patriarcais, machistas, capitalistas e heteronormativos ocidentais. A tentativa de
manter, portanto, a mulher dentro de padrões de beleza, comportamento e consumo condizentes com a
lógica dominante é, dessa maneira, reforçada pela grande mídia, da qual as revistas femininas são parte
fundamental e poderosa. Ainda conforme Buitoni (2009):
A relação entre a imprensa feminina e a mulher implica questões mais abrangentes, como
o papel social da mulher ou sua participação política. E aí entra a ideologia. [...]
À primeira vista, receitas de culinária, conselhos de beleza, contos de amor e outros
assuntos – comuns às revistas, seções e suplementos do mundo inteiro – são neutros.
Porém, se sairmos da superfície, veremos que a imprensa feminina é mais “ideologizada”
que a imprensa dedicada ao público geral. Sob a aparência de neutralidade, a imprensa
feminina veicula conteúdos muito fortes (BUITONI, 2009, p. 21).
3.2 A revista Tpm
Lançada em 2001, a revista Tpm tem periodicidade mensal e tem uma tiragem de 36 mil exemplares.
É a publicação feminina da editora Trip, cuja principal revista é a Trip, voltada para o público masculino. O
nome Tpm, além de aludir à tensão pré-menstrual, é uma sigla de Trip para mulheres. A revista masculina
Trip foi lançada em 1986, possui periodicidade mensal e uma tiragem e 40 mil exemplares, é, portanto,
uma publicação bem mais antiga e de maior alcance que a revista Tpm, cuja descrição, copiada a seguir,
pode ser encontrada no site da editora:
Não é exagero dizer que a Tpm mexeu com os padrões da mídia feminina no Brasil.
Lançada em 2001 a revista segue na contramão do que prega a maioria das publicações
femininas no país, que a cada mês repete receitas e promessas sobre temas como beleza,
sexo, relacionamentos e carreira. Com conteúdo inovador, a Tpm não acredita
em fórmulas prontas e mostra mulheres contemporâneas vivendo em um mundo real sem
perder o bom humor e o jogo de cintura. Desde a criação do Manifesto Tpm, em 2012,
algumas matérias questionam os padrões impostos pela sociedade às mulheres, como a
busca pelo corpo perfeito ou uma família “margarina”. [...] (EDITORA TRIP, 2014).
A apresentação do periódico feita pela editora já nos coloca frente à proposta da revista de se
distanciar da maioria das revistas femininas e buscar um conteúdo mais inovador, portanto, uma nova
representação da mulher e de seus interesses, comportamentos, posturas etc. Também cita-se o Manifesto
Tpm, objeto que será aqui analisado justamente com o intuito de buscar saber qual a leitora ideal para o
qual o manifesto é dirigido e, assim, identificar os alinhamentos ideológicos dessa leitora e sua relevância
no contexto das práticas sociais em que se inserem.
O Manifesto Tpm foi publicado em abril de 2012 no número 120 da revista. O título é “Você é livre?
Mesmo?” e é assinado pelo diretor editorial da revista, Fernando Luna, embora, no interior do texto, digase que o manifesto foi escrito a muitas mãos pela equipe de redação da revista. Seu formato é um texto
publicado como editorial na edição impressa da revista e que hoje ocupa um lugar específico dentro do
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siteda Tpm. Além do texto, o manifesto também é constituído por imagens acompanhadas de legendas e
algumas frases isoladas do texto principal. O texto completo bem como a parte visual que compõe o
Manifesto Tpm está no Anexo I.
É interessante salientar que a revista Tpm, apesar de ser uma publicação recente se comparada a
revistas femininas brasileiras bastante tradicionais, como Marie Claire e Claudia, já foi alvo de algumas
pesquisas e estudos acadêmicos de diferentes áreas. Em sua edição de 2009 do livro Mulher de papel,
Dulcília Buitoni pontuou o potencial transgressor da Tpm, mas não deixou de constatar que o periódico se
encaixa na lógica paradoxal da imprensa feminina, já que tenta se desprender de padrões dominantes e, ao
mesmo tempo, precisa se inserir no contexto capitalista de consumo, que depende, em certa medida,
desses padrões: “*...+ entendo que há um paradoxo implícito no discurso dessas publicações: tentar abrir
brechas para a transformação de padrões e publicar páginas e páginas de anúncios de cosméticos e artigos
de luxo, aconselhar dietas, apontar celebridades como imagem ideal e modelo de comportamento”.
4. Análise do corpus
A análise do Manifesto Tpm foi feita a partir da leitura e identificação de trechos do texto em que
houvesse recursos de expansão ou contração dialógica. Dividiram-se, então, estes trechos de acordo com
essas duas categorias e foram verificados os efeitos de sentido gerados, conforme foram sendo
identificadas as relações interdiscursivas presentes no texto.
É importante ressaltar que a parte do manifesto em que há citações diretas de trechos retirados de
outras revistas femininas foi analisada separadamente do restante do texto, para que houvesse uma clara
diferenciação entre o discurso assumido pela voz autoral que representa a revista Tpm e o discurso das
outras revistas, o discurso sobre o qual se fala.
Para uma melhor visualização e quantificação dos dados, os resultados da análise foram dispostos
nas tabelas a seguir, que se organizam da seguinte forma: na primeira coluna estão copiados do manifesto
os trechos relevantes para a análise, quando houver partes em negrito, significa que a parte destacada é a
que está sendo considerada, quando não houver, considera-se o trecho por inteiro; na segunda coluna está
detalhada a relação interdiscursiva que os elementos linguísticos do trecho possibilitam identificar, ou seja,
estão discriminados os discursos rejeitados ou com os quais se dialoga no trecho; na terceira coluna,
quando houver conteúdo, há comentários pertinentes quanto às estratégias linguísticas que colaboram
para a identificação da construção do perfil de leitora ideal do trecho, como recursos linguístico-discursivos,
implícitos contextuais etc.
A relação interdiscursiva foi classificada desta maneira: para o subsistema de contração dialógica,
consideraram-se as opções refutação por negação, refutação por contraexpectativa, declaração por
concordância, declaração por afirmação ou declaração por endosso; para o subsistema da expansão
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dialógica, as classificações possíveis foram consideração, atribuição por reconhecimento ou atribuição por
distanciamento, conforme explicado anteriormente no tópico sobre o Sistema de Avaliatividade.
Tabela 1. Recursos de contração dialógica no Manifesto Tpm
Trecho retirado do manifesto
Você é livre? Mesmo?
Relação interdiscursiva
Refutação por
contraexpectativa: questiona
discurso que diz que a
mulher é livre.
Enfim, se alguém acredita
mesmo que isso tudo seja
possível ou ao menos razoável,
não precisa de uma revista.
Refutação por negação:
rejeita a alternativa de que
as pessoas que acreditam
nisso precisam de uma
revista.
Declaração por afirmação:
rejeita a alternativa de que
as pessoas que acreditam
nisso precisam de outra
coisa que não ajuda
profissional.
Declaração por afirmação:
rejeita a alternativa de que
algum deles não tenha
aparecido em capas de
revistas, ou seja, rejeita
possibilidade de que sejam
frases inventadas.
Declaração por afirmação:
rejeita a alternativa de que a
leitora da revista Tpm
acredita no discurso das
outras revistas.
Declaração por afirmação
seguida de refutação por
negação: rejeita a alternativa
de que a leitora da revista
Tpm queira ser tratada como
“mulherzinha”.
Precisa de ajuda profissional.
Pois é, todos os desatinos
acima, absolutamente todos,
estamparam capas recentes de
publicações femininas.
Se você está aqui (ótimo, teria
sido estranho falar sozinho até
agora), é porque quer ficar
longe dessa conversa de
comadres.
Prefere ser tratada como
mulher, não como mulherzinha.
E você não está sozinha.
Observações
Refere-se diretamente à leitora (você
– segunda pessoa do singular), evoca
diálogo íntimo, proximidade.
Pressupõe uma resposta positiva à
primeira pergunta e questiona a
veracidade da resposta, abrindo maior
espaço para a alternativa negativa: a
leitora não é livre.
Implícito: não deveria acreditar.
Efeito de que não é normal acreditar
nos discursos das revistas femininas.
Alto nível de comprometimento do
enunciador, acentuado pela gradação
de força de quantificação numérica.
Referência direta à leitora (você).
Uso da primeira pessoa: marca
presença da voz autoral masculina.
Depreciação do discurso das outras
revistas: “conversa de comadres”.
O uso do presente do indicativo cria a
imagem da leitora ideal que se alinha
ideologicamente com a revista.
Depreciação da forma como as outras
revistas tratam a mulher:
“mulherzinha” evoca tratamento da
mulher como ingênua e infantil.
Refutação por negação:
rejeita a possibilidade de a
leitora achar que é a única
que se alinha
ideologicamente com a
revista Tpm.
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Uma turma que se espanta
quando lê "operação biquíni" na
caixa de cereais (você só queria
tomar seu café da manhã
sossegada).
Que quer autonomia para
decidir o que fazer com o
próprio corpo.
Não se conforma em ganhar
menos que o cara na mesma
função.
E ainda estranha tanta mulher
meio pelada fazendo o papel de
cenário em programas de TV.
Contra os novos clichês
femininos e os velhos
estereótipos que cismam em se
reinventar desde o tempo de
nossas avós (aliás, devidamente
homenageadas nas fotos do
manifesto).
Contra qualquer tentativa de
enquadrar a mulher em um
padrão, cercar seu desejo e
diminuir suas possibilidades.
Se liberdade é ser a mulher que
você quer ser, diz aí: você é
livre?
10 truques para arranjar
namorado? Mas tá bom
solteira...
50 posições para enlouquecer
seu homem? Relaxa e goza.
Declaração por afirmação:
rejeita a alternativa de que a
leitora acha natural querer
emagrecer ao tomar café da
manhã.
Declaração por afirmação: e
leitora da Tpm não quer que
digam para ela o que fazer
com o próprio corpo.
Refutação por negação:
rejeita a alternativa de que a
leitora ache natural ganhar
menos que um homem na
mesma função.
Declaração por afirmação: a
leitora da Tpm não acha
natural a exploração do
corpo feminino pela mídia.
Refutação por negação
(“contra”): rejeita velhos e
novos discursos
padronizados sobre as
mulheres.
Declaração por afirmação:
rejeita que esses discursos
tenham acabado.
Declaração por concordância
(“devidamente”): rejeita que
as mulheres de gerações
passadas não devam ser
homenageadas.
Refutação por negação:
rejeita os discursos de
padronização da mulher.
Declaração por afirmação:
rejeita que liberdade seja
outra coisa que não ser o
que você quiser ser (“se”
conclusivo e não condicional,
semelhante a “já que”, o que
pode ser observado pelo uso
do indicativo).
Refutação por
contraexpectativa (“mas”):
rejeita o discurso que diz que
a mulher necessariamente
deseja estar em um
relacionamento afetivo.
Refutação por
contraexpectativa: rejeita
Uso do coletivo: cria imagem de grupo
de leitoras da revista Tpm. Inclui a
leitora nesse grupo através do uso da
segunda pessoa: você.
Subentende-se que a leitora da Tpm
trabalha fora, em cargo que pode ser
desempenhado por mulheres ou
homens.
Rejeição do tratamento da mulher
como objeto.
Rejeita discursos das demais revistas
femininas.
Subentende-se que a leitora da revista
é da mesma geração do enunciador
(“nossas avós”), o que, pelas fotos do
manifesto (mulheres das décadas de
1950, 1960), mostra que a leitora faz
parte de uma geração jovem (entre 18
e 30 anos, aproximadamente).
Ideal de liberdade: livrar-se de
imposições, padrões e estereótipos
que cerceiem os desejos e
possibilidades da mulher.
Referência direta à leitora (você).
Uso da primeira pessoa: simula voz da
leitora. Subentende-se que a leitora é
heterossexual.
Subentende-se que a leitora é
heterossexual.
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Amo as crianças. Mas vamos
sair sem elas hoje?
Barriga chapada em 15 dias?
Claro, agora conta outra.
Contar calorias? Com tanta
coisa melhor para contar...
Eu não visto 38. E daí?
Mulher só é feliz se casar. Quem
disse?
Não deu conta de tudo hoje?
Você não é a única.
Não sei cozinhar. Mas peço
delivery como ninguém.
que a mulher deve buscar
dar prazer ao homem em
primeiro lugar.
Declaração por afirmação:
rejeita a alternativa de que a
mulher não ama seus filhos.
Refutação por
contraexpectativa (“mas”):
rejeita a alternativa de que,
mesmo amando-os, ela não
deva sair sem eles.
Refutação por negação:
rejeita que a mulher acredite
pode emagrecer muito em
apenas 15 dias.
Refutação por
contraexpectativa: rejeita
que a mulher deva/queira
contar calorias, ou seja,
queira emagrecer.
Refutação por negação: nem
todas as mulheres vestem
38.
Refutação por
contraexpectativa: rejeita a
alternativa de que a mulher
deve se importar/se
preocupar por não vestir 38,
ou seja, por não estar magra
o suficiente.
Declaração por afirmação:
rejeita que a mulher possa
ser feliz solteira. Refutação
por contraexpectativa:
questiona o discurso que diz
que a mulher só é feliz se
casar.
Refutação por negação:
rejeita que a mulher sempre
deva dar conta de tudo.
Refutação por negação:
rejeita que é incomum as
mulheres não darem conta
de tudo que têm para fazer.
Refutação por negação:
rejeita a alternativa de que
toda mulher sabe cozinhar.
Refutação por
Uso da primeira pessoa: simula voz da
leitora.
Evoca ideal de maternidade, instinto
materno: mãe deve amar as crianças.
Evoca a ideia de casal jovem, devido
ao contexto (filhos, crianças).
“Hoje” faz uma marcação temporal:
não é sempre e nem tem
periodicidade definida, portanto, sair
sem os filhos pode acontecer, mas é
uma exceção.
Entende-se essa negação através do
recurso da ironia no trecho.
Uso da primeira pessoa: simula voz da
leitora. Rejeição do ideal de magreza
feminina.
Uso da expressão popular “quem
disse?” como forma de desqualificar
um argumento.
Uso da primeira pessoa: simula voz da
leitora.
Rejeita ideal de mulher prendada na
cozinha.
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Não me faço de vítima. Nem da
moda.
Parecer 10 anos mais jovem?
Estou bem assim.
Sou dona de casa. Dona da
minha casa.
Toda mulher sonha em ter
filhos. Hein?!?
Vida perfeita? Só existe no
Facebook.
contraexpectativa (“mas”):
rejeita a alternativa de que a
mulher deveria se
envergonhar por pedir
delivery.
Refutação por negação:
rejeita discurso de que
mulher se faz de vítima e
que mesmo aquelas que não
se fazem são vítimas da
moda, no sentido de não
terem opinião própria com
relação ao assunto, apenas
seguirem o padrão.
Declaração por afirmação:
rejeita o discurso que diz que
a mulher deve/quer parecer
mais jovem.
Declaração por afirmação:
rejeita alternativa de que a
mulher deve cuidar da casa,
mas não necessariamente
ser dona da casa, no sentido
de ser proprietária e ter
autoridade dentro dela.
Declaração por afirmação:
rejeita a alternativa de que
nem toda mulher sonha em
ter filhos. Refutação por
contraexpectativa:
questiona/estranha o
discurso anterior, de que
toda mulher sonha em ter
filhos.
Declaração por afirmação:
rejeita ideia de que vida
perfeita seja uma realidade,
a não ser nas redes sociais,
ou seja, no mundo virtual,
que não é o real, é falso.
Uso da primeira pessoa: simula voz da
leitora.
Uso da primeira pessoa: simula voz da
leitora.
Rejeita ideal de juventude.
Uso da primeira pessoa: simula voz da
leitora.
Evoca ideal de propriedade e de
autoridade.
Alusão à rede social Facebook, o que
implica uma leitora envolvida com o
meio virtual.
Tabela 2. Recursos de expansão dialógica no Manifesto Tpm
Trecho retirado do manifesto
Você é livre?
Se alguém acredita que vai
encontrar numa revista,
qualquer revista, a fórmula
Relação interdiscursiva
Consideração. A pergunta
abre duas alternativas
dialógicas: ser livre ou não.
Consideração. Condicional
“se” abre duas alternativas
dialógicas: acreditar ou não.
Observações
Referência direta à leitora (você).
Implícito: não deveria acreditar.
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para:
Enfim, se alguém acredita
mesmo que isso tudo seja
possível ou ao menos razoável,
não precisa de uma revista.
Se você está aqui (ótimo, teria
sido estranho falar sozinho até
agora), é porque quer ficar
longe dessa conversa de
comadres.
Se liberdade é ser a mulher que
você quer ser, diz aí: você é
livre?
Amo as crianças. Mas vamos
sair sem elas hoje?
Consideração. Condicional
“se” abre duas alternativas
dialógicas: acreditar ou não.
Consideração. Condicional
“se” abre alternativa
dialógica: poderia não haver
ninguém lendo.
Referência direta à leitora (você).
Uso da primeira pessoa: marca
presença da voz autoral masculina.
Consideração. A pergunta
abre duas alternativas
dialógicas: a leitora pode ou
não ser livre.
Consideração. O fato de ser
uma pergunta abre espaço
para alternativas dialógicas:
podem sair ou não.
Referência direta à leitora (você).
Uso da primeira pessoa: simula voz da
leitora.
Evoca ideal de maternidade, instinto
materno: mãe deve amar as crianças.
Evoca a ideia de casal jovem, devido
ao contexto (filhos, crianças).
“Hoje” faz uma marcação temporal:
não é sempre e nem tem
periodicidade definida, portanto, sair
sem os filhos pode acontecer, mas é
uma exceção.
Com as tabelas, é possível verificar que há muito mais casos de contração dialógica do que de
expansão dialógica no texto, o que é coerente com o gênero trabalhado, o manifesto, que se caracteriza
por um alto teor de comprometimento do enunciador.
Através da análise, no que diz respeito aos alinhamentos/desalinhamentos ideológicos traçados pelo
texto, é possível afirmar que a leitora ideal da revista Tpm:

Não gosta/acredita em fórmulas para alcançar ideais de beleza, magreza, juventude, mas não
rejeita necessariamente esses ideais.

Não quer ser tratada de modo infantilizante, como se fosse ingênua.

Não quer que digam para ela o que fazer com o próprio corpo.

Não se conforma em ganhar menos que os homens na mesma função.

Não acha natural a exploração midiática do corpo feminino.

É contra os padrões femininos que diminuam os desejos ou possibilidades da mulher.

Possui ideal de liberdade: ser a mulher que ela quer ser.

Não acha que estar solteira é ruim.

Não se preocupa exclusivamente em dar prazer ao homem durante o sexo.

Ama os filhos, mas não precisa sair sempre com eles.
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
Não acredita em fórmulas para emagrecimento.

Acredita que há preocupações mais importantes do que tentar emagrecer.

Não se importa por não estar magra.

Não acredita que mulher só pode ser feliz se casar.

Não dá conta de todas as tarefas que têm que fazer no dia.

Não acredita que mulher sabe/deveria saber cozinhar.

Não se faz de vítima.

Não segue a moda.

Não quer parecer mais jovem.

É dona de sua própria casa.

Não sonha em ter filhos.

Não acredita que é possível ter uma vida perfeita.

Conhece/atua em redes sociais.
Esse perfil demonstra que há um claro paralelo entre os discursos correntes acerca da mulher,
presentes na mídia de massa, e o discurso da revista Tpm, com poucos pontos de convergência (o amor
materno e a atuação em redes sociais) e uma maioria de pontos divergentes, principalmente no que tange
aos ideais de beleza, magreza, juventude etc.
Em contrapartida, analisando-se mais atentamente o perfil socioeconômico/social/cultural da leitora
ideal da revista, observa-se um padrão bastante comum às demais publicações femininas, ou seja, trata-se
de uma mulher jovem, de média renda, que trabalha fora de casa, vive na zona urbana e é heterossexual.
Podemos ainda listar os efeitos criados a partir desses perfis: a imagem de uma leitora que é madura,
sã (nem infantil nem louca), que é real, independente, possui postura política acerca da desigualdade de
gêneros, é consciente dos ideais de beleza e padrões femininos a que está exposta.
Alguns mecanismos linguísticos demonstram a busca do enunciador pela adesão da leitora, ou seja,
estratégias de alinhamento ideológico. O uso da segunda pessoa (“você”), é um deles, e também acarreta
um efeito de intimidade e um ethos de confidente, amigo, para o enunciador. O uso da primeira pessoa
também busca colocar o discurso na voz da própria leitora, criando a imagem da mulher que compartilha e
reproduz o discurso da revista, o que traz um tom de realidade ao discurso. Em alguns pontos, também
observou-se a ênfase na coletividade (“você não está sozinha”, “uma turma”, “você não é a única”), o que
cria a ideia de uma comunidade discursiva com as mesmas crenças da revista.
A simulação desse diálogo direto, no entanto, não é de maneira alguma uma inovação do periódico
da editora Trip, pelo contrário, é um recurso bastante comum na imprensa feminina desde sua criação.
Vós, tu você: o texto na imprensa feminina sempre vai procurar dirigir-se à leitora, como
se estivesse conversando com ela, servindo-se de uma intimidade de amiga. Esse jeito
coloquial, que elimina a distância, que faz as ideias parecerem simples, cotidianas, frutos
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do com senso, ajuda a passar conceitos, cristalizar opiniões, tudo de modo tão natural que
praticamente não há defesa. A razão não se arma para uma conversa de amiga. Nem é
preciso raciocinar argumentos complicados: as coisas parecem que sempre foram assim
(BUITONI, 2009, p. 191).
Desse modo, a revista Tpm faz uso de recursos linguístico-discursivos semelhantes aos das demais
revistas femininas para buscar desqualificar o conteúdo destas. Há, portanto, uma aproximação da forma
discursiva entre a Tpm e suas concorrentes, mas um distanciamento ideológico.
5. Considerações finais
Através da análise do manifesto, é possível verificar que as crenças e valores com as quais a revista
Tpm e suas leitoras ideais/potenciais se alinham rejeitam determinados estereótipos femininos da mídia.
No entanto, não é possível afirmar que esses posicionamentos se sustentam ao longo das reportagens da
revista, para isso, seria necessária outra análise, com um corpus mais abrangente. Ainda assim, a iniciativa
aponta para uma mudança na representação do comportamento e dos interesses da mulher, muito
embora a mulher representada e a leitora ideal construída continuem sendo de um segmento muito
específico da sociedade, o mesmo revelado pelas demais publicações femininas e não aleatório: aquele
cujo potencial consumidor é muito maior, dado seu perfil social dominante (classe média, urbana,
heterossexual).
Para finalizar, cumpre retomar uma consideração de Buitoni (2009), na qual ela insere a revista Tpm
apontando o pressuposto que se põe a ela como um problema: o paradoxo de ser transgressora, mas ser
consumível por um mercado cristalizado. Em sua reflexão, Buitoni retoma a importância de percebermos as
publicações femininas enquanto práticas discursivas dentro de um cenário de práticas sociais que perpetua
ideologias patriarcais, machistas, racistas, heteronormativas e de classes sociais dominantes. Esse paradoxo
e essa perspectiva crítico-discursiva servirá de eixo orientador da pesquisa de Mestrado em andamento a
respeito da representação da mulher na revista Tpm.
Como fazer uma revista vendável e ser “femininamente” correta? Algumas tentativas,
como a americana Ms. e a brasileira Tpm são a prova de que é possível trilhar outros
caminhos. No mundo ocidental, televisão, publicidade e revistas femininas se aliam na
construção de imagens dominantes, num contexto de globalização crescente. As revistas
femininas sempre foram poderosos elementos na construção da identidade da mulher. No
reino da cultura da imagem, a aparência ajuda a produzir o que somos – ou pelo menos o
modo como somos percebidos (BUITONI, 2009, p. 14).
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Anexos
Anexo I – Manifesto Tpm
Você é livre? Mesmo?
Se alguém acredita que vai encontrar numa revista, qualquer revista, a fórmula para:
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
1) ficar jovem para sempre,
2) botar silicone sem risco,
3) barriga zerada com aula de 8 minutos,
4) ser linda, poderosa e feliz, aos 20, 30 e 40 anos,
5) looks certeiros para ter sucesso no trabalho,
6) pílulas que vão deixar cabelo, pele e corpo perfeitos,
7) feitiço do tempo: tudo para adiar (e muito) sua plástica,
8) ler nas cartas como despertar sua força interior,
9) ter qualquer homem, um superemprego, todo o tempo do mundo,
10) alcançar sucesso, dinheiro, glamour... e todos os homens a seus pés,
11) fazer qualquer homem se comprometer,
12) a plástica light,
13) desvendar 100 dilemas amorosos,
14) superar a ex dele na cama,
15) etc. etc. etc.
Enfim, se alguém acredita mesmo que isso tudo seja possível ou ao menos razoável, não precisa de
uma revista. Precisa de ajuda profissional. Urgente. Então por que, com uma ou outra exceção, se insiste
nessa cantilena? Pois é, todos os desatinos acima, absolutamente todos, estamparam capas recentes de
publicações femininas. Inclusive a "plástica light" que certamente engorda menos que a "plástica regular" e
talvez mais que a "plástica zero".
Olhando por outro ângulo: se uma empresa decidisse usar uma dessas frases para vender seu
produto, o Procon entraria em ação. Propaganda enganosa. Essas promessas funcionam como uma versão
cor-de-rosa daqueles anúncios antigos, em que médicos defendiam os benefícios do cigarro à saúde do
fumante.
Se você está aqui (ótimo, teria sido estranho falar sozinho até agora), é porque quer ficar longe dessa
conversa de comadres. Prefere ser tratada como mulher, não como mulherzinha. E você não está sozinha.
Só de Tpm são 49 mil exemplares impressos, mais 40 mil seguidores no Twitter, 18 mil no Facebook e 230
mil visitantes no site.
Uma turma que se espanta quando lê "operação biquíni" na caixa de cereais (você só queria tomar
seu café da manhã sossegada). Que quer autonomia para decidir o que fazer com o próprio corpo. Não se
conforma em ganhar menos que o cara na mesma função. E ainda estranha tanta mulher meio pelada
fazendo o papel de cenário em programas de TV. Daí o Manifesto Tpm, escrito a muitas mãos aqui na
redação dirigida pela Carol Sganzerla, com participação especial de Paulo Lima, Ciça Pinheiro, Nina Lemos,
Rafaela Ranzani, Ana Paula Wheba e Denise Gallo.
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Contra os novos clichês femininos e os velhos estereótipos, que cismam em se reinventar desde o
tempo de nossas avós (aliás, devidamente homenageadas nas fotos do manifesto). Contra qualquer
tentativa de enquadrar a mulher em um padrão, cercar seu desejo e diminuir suas possibilidades. Essas
ideias dão o tom a uma série de eventos, ações e reportagens pelas próximas edições.
Se liberdade é ser a mulher que você quer ser, diz aí: você é livre?
Fernando Luna, diretor editorial
10 truques para arranjar namorado? Mas tá bom solteira...
50 posições para enlouquecer seu homem? Relaxa e Goza.
Amo as crianças. Mas vamos sair sem elas hoje?
Barriga chapada em 15 dias? Claro, agora conta outra.
Contar calorias? Com tanta coisa melhor para contar...
Eu não visto 38. E daí?
Mulher só é feliz se casar. Quem disse?
Guia do sexo? Gosto mais do meu jeito.
Não deu conta de tudo hoje? Você não é a única.
Não sei cozinhar. Mas peço delivery como ninguém.
Não me faço de vítima. Nem da moda.
Parecer 10 anos mais jovem? Estou bem assim.
Sou dona de casa. Dona da minha casa.
Toda mulher sonha em ter filhos. Hein?!?
Vida perfeita? Só existe no Facebook.
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LUNA, Fernando. Você é livre? Mesmo? Tpm. São Paulo, ano 11, n. 120, abr. 2012. Disponível em:
<http://revistatpm.uol.com.br/manifesto/index.php>. Acesso em: 23 set. 2014.
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Abstract: In this article, we analyze the manifest "Você é livre? Mesmo?" published by the women’s magazine Tpm in
2012, in order to establish a profile of the ideal reader discursively mapped in the text. The Critical Discourse Analysis
is the theorical reference, which allows a detailed look at the context of the corpus and a focused approach to the
power relations that are established discursively in society. In terms of methodology, we use the Theory of Appraisal,
by Martin and White (2005), that in the parameters of Systemic Functional Linguistics, is anchored in the linguistic
system to seek the linguistic and discursive strategies and the marks of subjectivity and intersubjectivity in the texts.
The results show that the ideal reader designed differ from the ideal reader of other women's magazines. We study
the brands of Engagement (dialogic contraction and expansion) in the text that contradict the beliefs, goals and
ideology of the women who read the Tpm and women who surrender to the standards of beauty and behavior
widespread in the mainstream media. We come to an ideal reader profile that diverges ideologically from other
readers of women's magazines, but is very similar socially and economically.
Keywords: women's magazine; ideal reader; manifest; critical discourse analysis; Appraisal.
CAMARGO, Alice Vasques | I CIED (2015) 60-80
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A construção referencial no ensino de produção escrita:
análise de textos de alunos do 4º ciclo de EJA
Allan De Andrade LINHARES (PUC-SP)
[email protected]
Resumo: Os referentes não são simples rótulos que designam as coisas do mundo, mas são construídos e
reconstruídos no e pelo discurso, segundo os propósitos dos sujeitos. Este estudo amparando-se em uma perspectiva
sociocognitivo- interacional, a qual concebe o texto como o lugar da interação e construção dos sentidos, em que os
sujeitos são ativos, atores e construtores sociais (Koch ,2007; Koch; Cunha-Lima, 2009) e de referência como um
processo (Mondada e Dubois, 2003; Koch, 2005, 2007; Apothéloz e Reicheler-Béguelin, 1995), propõe-se investigar as
estratégias empregadas pelo professor para o ensino de produção textual. Para tanto, analisamos os passos seguidos
por uma professora do 4º ciclo da modalidade EJA para trabalhar com a construção da referência na discussão de um
texto e, sobretudo, nas produções escritas dos alunos sobre o texto estudado. Nosso corpus é constituído pela
transcrição da aula gravada em áudio, material recolhido no local (produção textual dos alunos com correções
propostas) e notas. O corpus analisado neste trabalho mostrou-nos que a professora, na condução da aula de leitura e
nas orientações das correções dos textos dos alunos, não dá a devida atenção à (re)construção referencial, aspecto
que traz implicações para a atividade de leitura e compreensão de textos.
Palavras-chave: construção da referência; ensino; produção textual; compressão textual; sentidos.
1. Introdução
O homem vive inserido em práticas interacionais. Nesse envolvimento, seleciona estratégias
construídas, intersubjetivamente, a partir de atividades cognitivas e discursivas, para nomear as coisas do
mundo e, assim, atingir aos seus propósitos argumentativos. Logo, o processo de produção textual, seja
oral ou escrito, é, essencialmente, marcado por estratégias referenciais. Nesse sentido, traçamos o
seguinte questionamento norteador: Como é tratada a referenciação no ensino de escrita da EJA? Com o
intuito de responder a essa questão, traçamos o seguinte objetivo:investigar as estratégias empregadas
pelo professor para o ensino de produção textual.
Este estudo amparou-se em uma perspectiva sociocognitivo- interacional, a qual concebe o texto
como o lugar da interação e construção dos sentidos, em que os sujeitos são ativos, atores e construtores
sociais (Koch ,2007; Koch; Cunha-Lima, 2009) e de referência como um processo (Mondada e Dubois, 2003;
Koch, 2005, 2007; Apothéloz e Reicheler-Béguelin, 1995).
Metodologicamente, analisamos os passos seguidos por uma professora do 4º ciclo da modalidade
EJA para trabalhar com a construção da referência na discussão de um texto e, sobretudo, nas produções
escritas dos alunos sobre o texto estudado.Nosso corpus é constituído pela transcrição da aula gravada em
áudio, material recolhido no local (produção textual dos alunos com correções propostas) e notas. O corpus
analisado neste trabalho mostrou-nos que a professora, na condução da aula de leitura e nas orientações
das correções dos textos dos alunos, não dá a devida atenção à (re)construção referencial, aspecto que traz
implicações para a atividade de leitura e compreensão de textos.
LINHARES, Allan de Andrade | I CIED (2015) 81-93
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Acreditamos que este artigo colabora para inquietar os professores de EJA sobre a importância de
considerar, no ensino de leitura e produção de texto, as contribuições da referenciação, já que, por meio
das análises aqui empreendidas, apresentamos reflexões sobre como essa área de pesquisa na Linguística
do Texto proporciona meios para se chegar, com mais facilidade, à unidade de sentido. Ratifica-se a
relevância desta produção ao se refletir que poucos trabalhos têm investigado questões relativas ao
ensino-aprendizagem de língua materna em EJA. Assim, há ainda uma grande lacuna em relação a
pesquisas que abordem questões de ensino-aprendizagem, sobretudo de línguas, em EJA.
2. Referenciação e sociocognição: uma interface necessária para a construção de
sentidos por meio da produção textual
Nesta seção, abordamos conteúdos relativos à Linguística de Texto, em especial à perspectiva da
referenciação, com vistas a um maior esclarecimento e contextualização dessa abordagem, que se afina
com os pressupostos da sociocognição assumidos pela agenda atual da respectiva área de estudo. Além
disso, a referenciação é basilar nesta produção, cujo objeto de estudo, reiteramos, diz respeito ao trato
dado pelos professores às estratégias de referenciação no ensino de escrita.
2.1 A concepção de base sociocognitivista: novo redimensionamento para os
estudos do texto
Em decorrência de uma evolução das Ciências Cognitivas para uma concepção de mente corpórea,
constrói uma noção de texto mais ampla, a qual considera, para a construção dos sentidos, uma articulação
de aspectos cognitivos, linguísticos, sociais e culturais. É essa mudança de foco, a qual coloca em primeiro
plano os processos de construção do sentido, afastando-se, portanto, da mera identificação de unidades
estruturais ou de predição sobre sequências bem-formadas, a responsável por alterar substancialmente a
agenda dos estudos linguísticos, os quais, a partir de então, respaldam-se em uma concepção de texto de
cunho sociocognitivista (SALOMÃO, 1999).
Nessa perspectiva, a linguagem não existe em função da geração de sequências arbitrárias de
símbolos nem tampouco para oferecer repertórios de unidades sistemáticas, mas em função do uso e da
interação. Conceber a linguagem nesses termos é voltar-se à concepção de linguagem como um
mecanismo cognitivo.
Na esteira de uma visão sociocognitiva, emerge a perspectiva da referenciação, que amplia
sobremaneira as possibilidades de estudo do texto voltadas para a construção dos sentidos. A
referenciação, como veremos em seção posterior, é uma atividade discursiva, logo, ao nos referirmos às
coisas do mundo, ativamos contextos que nos possibilitam construir uma orientação argumentativa. Se os
referentes são construídos no e pelo discurso, os sujeitos sociais constroem interpretação para as coisas do
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mundo. Por essa razão, o estudo do contexto é importante, haja vista que ele, também, é produto dessas
interpretações, as quais são ancoradas, por exemplo, nos conhecimentos dos interlocutores, no lugar social
por eles ocupado, no conhecimento que os participantes têm da situação comunicativa.
Nos estudos da referenciação, por exemplo, ao produzir um texto, eu posso aludir a um mesmo
referente de maneiras bem diferentes (recategorizando-o) considerando a evolução do discurso, ou seja,
considerando o trabalho cognitivo que o produtor desenvolve a fim de atender a um propósito discursivo.
Os referentes são construídos, portando, na interpretação e o contexto surge a partir da interpretação que
os sujeitos fazem sobre algo, partindo de seus modelos mentais, mas, também das pistas linguísticas
presentes na materialidade textual. Os modelos mentais não servem para representar de forma objetiva os
eventos de que trata o discurso, mas caracterizam a maneira como os usuários da língua constroem a seu
modo esses eventos, partindo, por exemplo, de seus objetivos, de seus conhecimentos prévios (VAN DIJK,
2012).
2.2 A Referenciação
Os fundamentos de cunho sociocognitivista concebem a referência como um processo dinâmico que
privilegia as relações intersubjetivas e sociais. Nesse processo, as versões do mundo são publicamente
construídas e avaliadas em conformidade com as finalidades e ações dos enunciadores (MONDADA, 2005).
Mondada e Dubois (2003) compreendem a referência não como uma questão estritamente
linguística, mas como um fato que simultaneamente diz respeito à cognição e à utilização da linguagem em
contexto e em sociedade, propondo, assim, a substituição da noção de referência pela de referenciação e,
consequentemente, a de referente pela de objeto de discurso. Nessa perspectiva, ao referir, os
interlocutores elaboram objetos de discurso que, sendo construídos e desenvolvidos discursivamente, não
podem ser vistos como expressões referenciais que refletem os objetos do mundo e as representações
cognitivas, mas como entidades que (re) constroem a realidade extralinguística dentro do processo de
interação. Dessa forma, “a realidade é construída, mantida e alterada não pela forma como nomeamos o
mundo, mas, acima de tudo, pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele”. (KOCH, 2005, p.
33-34).
Conforme Mondada e Dubois (2003, p. 42), “os nomes enquanto rótulos correspondem aos
protótipos e colaboram para a sua estabilização ao curso de diferentes processos”. Os protótipos são
compartilhados pelos indivíduos através do processo de interação e estabilizados socialmente. Esse
protótipo compartilhado lexicalmente evolui para o estereótipo, configurado como uma representação
coletiva. Essa evolução está fundamentada não mais em valores de verdade, mas em convenções sociais
sobre as formas de nomear o mundo.
LINHARES, Allan de Andrade | I CIED (2015) 81-93
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As autoras explicam, ainda, que o processo de estabilização das categorias discursivas ocorre, em
nível linguístico, através da lexicalização e de sua ocorrência no interior das práticas discursivas, por meio
das anáforas nominais, as quais podem ser concebidas, simultaneamente, como uma maneira de ilustrar a
questão da evolução dos referentes e como um modo de estabilizar ou focalizar uma denominação
particular. Além da estabilização das categorias do discurso em níveis psicológicos e linguísticos, há a
estabilização através dos processos de inscrição, tais como a escrita, a imprensa e a imagem, as quais
podem ser vistas como móveis, uma vez que circulam em amplas redes, ou imóveis, visto que são fixas e
não sofrem modificações em seu movimento. Essas inscrições podem, ainda, ser reproduzidas, o que
permite não somente sua circulação, mas sua comparação no tempo e no espaço.
Todas essas considerações reafirmam o caráter dinâmico do processo de referenciação e,
consequentemente, dos objetos de discursos, os quais são (re) construídos no cerne das atividades
cognitivas e interativas. Dessa forma, como defendem os autores, esses objetos uma vez ativados podem
ser alterados, desativados, reativados, recategorizados, construindo-se ou reconstruindo-se, no transcorrer
da progressão textual, o sentido. Nesse contexto, segundo Koch (2007), na constituição da memória
discursiva fazem parte as seguintes operações:
a) construção/ativação (introdução de um referente textual, até então não mencionado,
passando a preencher um nódulo); b) reconstrução/reativação (um nódulo é novamente
ativado na memória); c) desfocalização/desativação (ativação de um novo objeto de
discurso, deslocando a atenção para outro referente textual desativando aquele que
estava em foco anteriormente). Porém seu endereço cognitivo continua no modelo
textual, podendo ser reativado a qualquer momento. (KOCH, 2007, p. 62).
Essas estratégias operacionais podem ser acionadas durante a construção textual. Isto é, se, por um
lado, a ativação e reativação estabilizam o modelo textual, por outro, ele sofre contínuas modificações,
quando novas referenciações forem realizadas. Isso porque, durante o processo, outros objetos são
introduzidos ou aqueles já presentes recebem outras informações ou avaliações. Assim, o objeto de
discurso é dinamicamente (re)construído à proporção que a ele vão sendo atribuídas novas (re)
categorizações ou formas subjetivas de designação desse objeto.
As principais estratégias de progressão referencial, segundo Koch (2007), que permitem a construção
de cadeias referenciais das quais descendem as categorizações ou as recategorizações de referentes no
discurso são:

uso dos pronomes ou elipses (pronome nulo): realiza-se por meio de formas que exercem a
função de pronome (os pronomes, advérbios pronominais e numerais), sendo descrita como
pronominalização (anafórica ou catafórica) de elementos co-textuais.

uso de expressões nominais definidas: recebem essa denominação as formas linguísticas
construídas a partir de um determinante (definido ou demonstrativo) seguido de um nome,
dentre as quais constituem objeto desta reflexão as descrições definidas, as nominalizações e
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as rotulações metalinguísticas ou metadiscursivas, e ainda aquelas que funcionam como
anáfora indireta.

uso de expressões nominais indefinidas: caracteristicamente servem como introdutores de
novos referentes textuais, porém, podem apresentar-se com funções anafóricas.
Assim sendo, essas formas referenciais assumem, na progressão textual, funções relativas aos
aspectos cognitivo-discursivos, semântico-pragmáticos, argumentativos e textuais.
2.2.1 Expressões referenciais recategorizadoras: um processo avaliativo na
progressão referencial
Considerando a proposição de que os referentes ou objetos de discurso evoluem e são modulados na
cadeia textual haja vista os propósitos dos sujeitos no contexto interacional, o produtor pode valer-se, para
a designação de um dado objeto, de uma gama de expressões linguísticas. Assim,
a cada momento do discurso, o locutor dispõe, para designar um objeto dado, de uma
série não-fechada de expressões linguísticas utilizáveis em condições referenciais iguais.
Não apenas este locutor tem o direito de selecionar aquilo que acha mais apto a permitir a
identificação do referente, mas ele pode, por recategorizações, para acrescentar ou
suprimir, modular a expressão referencial em função das intenções do momento, estas
podem ser de natureza argumentativa, social etc. (APOTHÉLOZ; REICHELER-BÉGUELIN,
1995 apud LIMA, 2007, p. 81).
Apothéloz e Reicheler-Béguelin (1995) entendem, portanto, que a recategorização é uma estratégia
de designação, uma vez que é possível desconsiderar a designação padrão, isto é, a categorização e adaptála aos propósitos argumentativos.
Nesse contexto, Zavam (2007), fundamentando-se nos escritos desses mesmos linguistas, afirma que
ao abordarem as questões da evolução referencial e as estratégias de designação ressaltam que “as
expressões anafóricas servem não só para fazer referência a um objeto, mas também para impor
modificações a esse mesmo objeto”. (ZAVAM, 2007, p. 127). Enfatizando, então, as expressões anafóricas,
o processo de recategorização lexical é descrito pelos autores contemplando os seguintes níveis de
ocorrência do processo: a) quando a transformação é operada pelo próprio anafórico; b) quando o
anafórico não considera os atributos do referente; c) quando o anafórico considera os atributos do
referente e os homologa. Considerando, apenas, o primeiro nível de ocorrência, no qual as modelações ou
transformações são realizadas pelo próprio anafórico, têm-se a seguinte classificação: recategorização
lexical explícita; recategorização lexical implícita e modificações da extensão do objeto ou de seu estatuto
lógico. (APOTHÉLOZ; REICHELER-BÉGUELIN, 1995 apud LIMA, 2007, p. 82). Dentre esses tipos, direcionamos
nossa atenção às recategorizações lexicais explícitas, julgando que essas se configuram, essencialmente,
como uma predicação de avaliações do referente.
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Conforme os escritos dos referidos autores, a anáfora direta correferencial é recategorizadora, uma
vez que está marcada por lexemas que induzem a um ponto de vista sobre o referente. Nesse sentido,
Apothéloz e Reicheler-Béguelin (1995), ao assumirem que as expressões recategorizadoras propõem um
viés axiológico, “admitem que a argumentação, enquanto função discursiva essencial da recategorização
teria em lexemas axiologicamente marcados uma estratégia explicita de manifestação de tal propósito”.
(APOTHÉLOZ; REICHELER-BÉGUELIN, 1995 apud ZAVAM, 2007, p. 128). Assim, é válido ressaltar que tais
lexemas assumem esse caráter axiológico em se considerando o contexto de uso.
3. Estratégias referenciais e ensino de escrita: uma análise
Guiados pelo objetivo de investigar as estratégias empregadas pelo professor para o ensino de
escrita, sobretudo no que se refere aos processos referenciais, analisaremos os encaminhamentos
sugeridos por uma professora de 4º ciclo da modalidade EJA de uma escola pública municipal de ParnaíbaPI nas análises das produções escritas. Essa proposta de produção foi sugerida pela professora a partir da
leitura do texto-fonte Essa mulher. Nosso corpus é, portanto, constituído por transcrição de uma aula
gravada em áudio e notas de campo. Esclarecemos que esses dados advêm de nossa pesquisa de
mestrado1, realizada em 2011, e que eles são inéditos, haja vista que não foram utilizados como objeto de
análises para os objetivos que tínhamos naquele momento.
A partir da análise empreendida, será possível perceber, portanto, se a reflexão sobre as estratégias
de referenciação é uma preocupação da professora no ensino de escrita. E, diante dos resultados dessa
análise, discutiremos a necessidade de o professor priorizar um ensino de escrita inspirado na reconstrução
da coerência textual, processo em que os nossos alunos necessitam avaliar como os referentes se mantêm
e como evoluem no discurso.
O texto escolhido pela professora para iniciar a atividade estava no capítulo 5 do livro adotado pela
escola: Educação e diversidade, 2º segmento do ensino fundamental, 4ª etapa (7ª série), volume I. Esse
capítulo tinha como foco o estudo da coesão e coerência textual. O texto discute, essencialmente, a (re)
construção do referente mulher. O objeto de discurso foi introduzido no título e, anaforicamente, foi sendo
recategorizado ao longo do texto, ou seja, como o referente mulher foi recebendo novas denominações
(rebatizado). Apresentamos, abaixo, o texto estudado:
1
A pesquisa Concepções e práticas de leitura na EJA: uma experiência com professores de 4º ciclo, vinculada ao Programa de
Mestrado em Letras da Universidade Federal do Piauí (UFPI), foi concluída em 2012.
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Quadro 1. Texto da música Essa Mulher
Essa mulher
De manhã cedo, essa senhora se conforma
Bota a mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos
Ah. como essa santa não se esquece de pedir pelas mulheres
Pelos filhos, pelo pão
Depois sorri, meio sem graça
E abraça aquele homem, aquele mundo
Que a faz, assim, feliz
De tardezinha, essa menina se namora
Se enfeita, se decora, sabe tudo, não faz mal
Ah, como essa coisa é tão bonita
Ser cantora, ser artista
Isso tudo é muito bom
E chora tanto de prazer e de agonia
De algum dia, qualquer dia
Entender de ser feliz
De madrugada, essa mulher faz tanto estrago
Tira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca o bar
Ah, como essa louca se esquece
Quanto os homens enlouquece
Nessa boca, nesse chão
Depois, parece que acha graça
E agradece ao destino aquilo tudo
Que a faz tão infeliz
Essa menina, essa mulher, essa senhora
Em que esbarro toda hora
No espelho casual
É feita de sombra e tanta luz
De tanta lama e tanta cruz
Que acha tudo natural.
Para iniciar o estudo do texto, a professora propôs que os alunos fizessem uma leitura silenciosa e,
posteriormente, uma leitura em grupo. Após a leitura, a docente propôs uma atividade, cujo enunciado
solicitava:
Professora: Com base na leitura da música que acabamos de ler e discutir, Essa
Mulher, elaborem um texto sobre o que vocês entenderam.
Atendendo à solicitação da professora, alguns alunos produziram um texto e a entregaram. Faremos,
aqui, o registro dos textos dos dois alunos que, também, participaram da discussão na aula de leitura.
Transcrevemos, na íntegra, os textos produzidos:
Aluno 1: A música fala de uma submiça. Ela faz tudo o que o marido dela que.
Parece que é um objeto daqueles machista.
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Aluno 2: Eu intendi que o texto mostra uma mulher conformada com a rotina di
caza. A conformada só faz o que o marido e os filhos quer. É louca na cama pra
sigurar o maridão. Aí dexa de ser só dona de casa, fica sensual. Isto tudo é o que a
mulher vai tendo que fazer.
Os textos registrados foram concedidos pela professora (material recolhido no local), após as
correções empreendidas por ela. Faremos uma breve análise dessa correção a fim de perceber se há
consideração das estratégias para a construção e reconstrução da referência ao longo do processo de
escrita.
3.1 Ensino de produção escrita: análises empreendidas pela professora
Destacamos as sinalizações observadas na avaliação dos textos dos alunos. Os encaminhamentos
sugeridos ao texto do aluno A foram:

Passou um traço sobre a palavra submiça e, sobre ela, grafou submissa.

Acrescentou um “r” ao verbo querer, já que o aluno o utilizou em terceira pessoa: ela quer.

Circulou os termos ela e dela. Produziu um quadro com uma espécie de nota: A aproximação
desses termos gera uma musicalidade, ou seja, um eco. Além disso, evite as repetições
desnecessárias (ela/dela).

Acrescentou um “s” para marcar o plural do termo machistas. Puxou uma seta e fez a seguinte
observação: Ver concordância.
A avalição da professora ao texto do aluno B manteve o mesmo perfil assumido na correção do texto
de A. Destacamos as sinalizações observadas:

Marcou com um traço a palavra intendi e, sobre ela, grafou entendi.

Sublinhou a expressão di caza e, sobre ela, grafou de casa.

Sublinhou a forma verbal quer e, com uma seta direcionada ao final do texto, registou: o
sujeito do verbo querer é o marido e os filhos, então o verbo tem que ficar no plural, querem.
Atente para a concordância!

Sublinhou a oração É louca na cama pra sigurar o maridão e sugeriu a seguinte grafia: Na
cama, comporta-se como louca porque quer segurar o maridão. A nova redação foi motivada
porque a professora considerou que faltava clareza. Sugeriu, ainda, alteração da palavra
sigurar para segurar.

Sublinhou a palavra dexa e propôs a redação deixa.

Marcou o pronome isto e sugeriu a troca por isso, pois, segundo ela, quando retomamos
informações já apresentadas, o demonstrativo a ser usado é o isso.
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Refletindo sobre a prioridade dada pela professora ao fazer a correção dos textos dos alunos,
dialogamos com os PCN:
Quando se toma o texto como unidade de ensino, os aspectos a serem tematizados não se
referem somente à dimensão gramatical. Há conteúdos relacionados às dimensões
pragmática e semântica da linguagem, que por serem inerentes à própria atividade
discursiva, precisam, na escola, ser tratados de maneira articulada e simultânea no
desenvolvimento das práticas de produção e recepção de textos. (BRASIL, 1998, p. 78).
A partir dessas considerações, fica entendido que o ensino de língua não tem funcionalidade se
desarticulado das práticas de linguagem, haja vista que o texto é constituído por atividades cognitivas e
linguístico-discursivas. Assim, constatamos que a professora não priorizou aspectos envolvidos na
construção da argumentação dos alunos, as estratégias referenciais que eles selecionaram para construir
seus propósitos. Cabe, então, refletir que a correção empreendida volta-se para reflexões de cunho
metalinguístico, já que se restringe à análise das formas linguísticas, desvinculadas de suas funções no
contexto enunciativo. Entendemos, todavia, que ensinar Língua Portuguesa é desenvolver competência
comunicativa em situações de comunicação. Concordamos com Cavalcante (2001, p. 17) que “*...+ o texto é
uma construção que cada um faz a partir da relação que se estabelece entre enunciador,
sentido/referência e coenunciador, num dado contexto sociocultural”.
Acreditamos que as sugestões da professora são válidas, porém, esse tipo de orientação não poderia
representar um fim em si mesmo. Atividades de reflexão sobre a linguagem (epilinguísticas) são mais
produtivas, haja vista que, os sujeitos aptos a refletir sobre a linguagem, são capazes de compreender uma
gramática. (GERALDI, 1998).
Em sua correção, a professora não analisou o trabalho de construção referencial realizado pelos
alunos, fato que colaboraria para a construção de sentidos do texto, além do que os alunos se tornariam
habilitados a recuperar a referência por meio das pistas sinalizadas em textos diversos.
3.2 Redimensionando o ensino de escrita à luz dos estudos da referenciação
Após a análise das estratégias utilizadas pela professora na correção dos textos dos discentes,
apresentaremos algumas reflexões sobre as estratégias referenciais já utilizadas, produtivamente, por
esses alunos, as quais transcrevemos em seção anterior; bem como algumas reflexões, centrados nos
estudos da Referenciação, a fim de inquietar sobre a importância da construção da referência para a
produção da argumentação, a qual vai sendo constituída, por exemplo, por expressões avaliativas que
esclarecem determinados posicionamentos, ao passo que colaboram para a manutenção da coerência.
No texto do aluno A, percebemos que utiliza estratégias de referenciação distintas. Destaca-se como
estratégia correferencial a retomada do objeto de discurso mulher por meio da recategorização, fenômeno
anafórico por excelência. Nesse caso, uma anáfora direta. Ao recategorizar o referente como “submiça”, o
aluno assume uma avalição, ou seja, impõe uma modificação ao objeto de discurso, a qual representa um
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posicionamento discursivo desse enunciador. Recurso semelhante acontece ao se referir à mulher como
“objeto”. Percebemos, claramente, que, ao recategorizar o referente com essa expressão referencial,
continua a construir a avaliação de que a mulher seria uma coisa do homem, sobre a qual tem domínio e a
usa segundo a sua vontade. A fim de garantir a continuidade textual, o aluno faz uma remissão ao referente
já recategorizado, por meio do pronome de 3ª pessoa ela/dela. Esse recurso garante a progressão
referencial. Todas essas formas de reconstruir a referência são escolhas que marcam o projeto de sentido
do aluno e funcionam, também, como recursos para que o leitor apreenda a orientação argumentativa do
texto (KOCK; ELIAS, 2010).
Evidenciamos, ainda, que o aluno A, fiel ao propósito enunciativo assumido, seleciona estratégias
para a progressão referencial, o que prova as ligações coesivas que foram estabelecidas. Assim, entende-se
que a continuidade estabelecida pela coesão é uma continuidade de sentido, logo, na produção de A, a
coesão foi assegurada. Em relação à coerência, o aluno se manteve fiel ao eixo temático, pois as
recategorizações e os outros recursos referenciais viabilizaram a progressão temática (CAVALCANTE, 2011).
Considerando que o capítulo em estudo tinha como foco discutir coesão e coerência textual, seria
conveniente que a professora considerasse as estratégias referenciais que os alunos utilizaram para a
construção de seus propósitos discursivos.
No texto do aluno B, o objeto de discurso mulher foi transformado ou recategorizado por meio da
expressão referencial “conformada”. Possivelmente, o aluno reconstrói o referente ativando um modelo de
mulher sem perspectivas e subjugada aos afazeres do lar, monta-se, então, um estereótipo de dona de
casa. O aluno negocia por meio da interação estabelecida com o texto e, recorrendo ao seu acervo
sociocultural, uma versão para o referente apresentado na música analisada. Acreditamos, ainda, que,
ativando uma visão machista da sociedade, mantém a recategorização do referente “louca”, já construído
pelas autoras do texto. Ao dizer que a mulher é louca na cama para sigurar o maridão, justifica a ideia de
que, além de servir aos filhos e aos maridos com atividades as mais diversas possíveis, também se prepara
para receber o marido, satisfazendo os desejos sexuais dele. Continuando com a progressão referencial, o
aluno utiliza processo de sumarização utilizando o pronome demonstrativo neutro isto. Realiza um
encapsulamento anafórico, portanto. Esse recurso foi utilizado para resumir todas as posturas que a
mulher precisa assumir como uma dona de casa aos moldes machistas. As estratégias referenciais eleitas
pelo aluno contribuem para a progressão textual e ao eixo temático assumido.
Com a análise dos textos produzidos pelos alunos, percebemos a fluência que têm com os processos
referenciais para a construção do propósito discursivo pretendido. Inquieta-nos, porém, que essas escolhas
não foram exploradas pela professora. Explorar o uso de expressões referenciais nas aulas de produção
textual é mister a fim de proporcionar a reconstrução da coerência textual, avaliando como os referentes
se mantêm e como evoluem no discurso.
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4. Considerações finais
Ao escrever fazemos referências às entidades, ao modo como elas de reconstroem no momento em
que interagimos. Os sujeitos, ao se referirem às entidades, constroem seus propósitos. Uma das maneiras
de se verificar os propósitos ou intenções dos enunciadores de um texto é analisar a função discursiva de
elementos referenciais, considerando que as formas como esses são apresentados ou (re) apresentados
pressupõem o modo de manifestação do enunciador diante do que está sendo exposto.
O corpus analisado neste trabalho mostrou-nos que, na condução da aula de produção de texto, não
é dada a devida atenção à (re) construção referencial, aspecto que traz implicações para a atividade de
construção de sentidos nas produções textuais. Entendemos, porém, que, ao elaborarmos um texto,
guiamos os coenunciadores por processos referenciais, para os objetivos que desejamos alcançar, mas que
eles alcançaram a seu modo, conforme suas experiências e sua visão das coisas.
Acreditamos e defendemos, neste artigo, que o professor precisa retomar os textos produzidos pelos
alunos a fim de gerar um momento de reflexão sobre as escolhas que eles fizeram, observando a
ocorrência de emprego das expressões referenciais, atentando para as estratégias referenciais utilizadas
para atender a um propósito comunicativo específico e de que forma foram cognitivamente sendo
construídas até chegarem a se expressarem no tento por meio de uma forma linguística.
Reiteramos que esta pesquisa colabora para inquietar os professores de EJA sobre a importância de
considerar, no ensino de leitura e produção de texto, as contribuições da referenciação. Apresentamos
reflexões sobre como essa área de pesquisa na Linguística do Texto proporciona meios para se chegar, com
mais facilidade, à unidade de sentido.
Referências bibliográficas
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coerência em atividades de compreensão e produção de textos. Revista Um mundo de letras: práticas de
leitura e escrita, São Paulo, Boletim 3, p. 63-79, abr. 2007.
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oralidade, escrita, leitura. São Paulo: Contexto, 2011.
GERALDI, João Wanderley. Linguagemeensino:exercíciosdemilitânciaedivulgação. Campinas, SP: ALB &
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KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Referenciação e orientação argumentativa. In: KOCH, Ingedore Grunfeld
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______. Introdução à Linguística Textual: trajetórias e grandes temas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2.
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MONDADA, Lorenza; DUBOIS, Danièle. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma
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MONDADA, Lorenza. A referência como trabalho interativo: a construção da visibilidade do detalhe
anatômico durante uma operação cirúrgica. In: KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; MORATO, Edwiges Maria;
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Abstract:The objects of speech, which comes from text linguistics, are not simply labels that name everything in the
world because they are built and adapted by the speech according to the subjects’ purpose. This present study is based
on an interactive, sociocognitive perspective in which provide a place of interaction and construction of meanings to
texts and proposes to investigate the strategies applied by the teachers to teach textual production according to the
authors (Koch ,2007; Koch; Cunha-Lima, 2009) focused on the fact the subjects are active that are considered social
constructor of the process of giving sense to texts and the reference as a process with (Mondada e Dubois, 2003; Koch,
th
2005, 2007; Apothéloz e Reicheler-Béguelin, 1995). For this, we analyze one teacher’s steps of 4 grade EJA (classroom
just for older students) to work with reference construction through discussion of texts, mainly, in the students’ written
production about these texts. The audio recorded in class, the students’ written production and notes compose our
material of analysis. The data from analysis in this study has shown us that the teacher does not teach how to improve
the students’ texts by writing the correct form, so they could see what is not right. She does not give appropriate
attention to the improvement of the texts, which it brings implication to reading and comprehension activities.
Keywords: Construction of reference; teaching; textual production; textual comprehension; senses.
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Comentário jornalístico virtual: discursos em “diálogo”
Andre Cordeiro dos SANTOS (UFPE)
[email protected]
Resumo: Neste estudo, buscamos esclarecer, à luz da teoria dialógica da linguagem, com base nos estudos do circulo
de Bakhtin, aspectos da natureza dialógica e da constituição do gênero comentário virtual escrito em jornais e revistas
on-line. Partimos do pressuposto de que todo enunciado surge a partir de outros que o precederam e pressupõe
sempre uma atitude responsiva ativa a um interlocutor, seja esse real ou não (VOLOCHINOV, 1930). Considerando a
diversidade dos estudos sobre o tema, nosso objetivo é compreender o funcionamento discursivo do gênero em
suporte digital. Essa escolha se deveu à influência que as Tecnologias da Informação e da Comunicação exercem na
sociedade atual e por percebermos que elas têm gerado mudanças que influenciam a composição dos enunciados
concretos da língua e, consequentemente, dos gêneros discursivos. Analisamos, aqui, questões estruturais e também
discursivas no que se refere à constituição do gênero. Para a investigação, selecionamos sete comentários retirados
de duas revistas on-line com temática semelhante – a greve dos professores das universidades públicas ocorrida em
2012. Os resultados revelaram que o gênero comentário se caracteriza essencialmente como uma prática discursiva
dialogizada, que comporta as características de um enunciado concreto, e é fortemente marcado pelo dialogismo
interdiscursivo e interlocutivo.
Palavras-chave:gêneros discursivos; tecnologias;dialogismo; comentário virtual; diálogo.
1. Introdução
Sabemos que vivemos em uma sociedade que está em constante processo de mudança em
decorrência do surgimento de novas técnicas e de novas tecnologias que condicionam e são condicionadas
por fatores políticos, culturais, econômicos entre tantos outros aspectos. A linguagem, por ser mediadora
das práticas sociais, também está exposta a fatores diversos e é de se esperar que ela seja algo mutável e
que sofra influência direta das novas técnicas/tecnologias ao longo do tempo.
Nesse hall de mudanças, os falantes também são afetados e afetam a sociedade, pois eles podem
passar a ter novas necessidades comunicativas, abandonar outras, mudar práticas de linguagem já
instauradas de acordo com o contexto de produção de cada época.
Nesse processo de mudança das formas linguísticas de interação, podemos ver que as novas
Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) têm sido um dos seus principais propulsores. Com as TIC,
têm surgido novos espaços discursivos que fazem surgir novas práticas sociais e gêneros discursivos: os
digitais. Ou seja, os gêneros discursivos usados para determinadas funções, com o passar do tempo, e sob
as influências da sociedade e suas tecnologias, passam por mudanças em sua organização e, com isso,
oferecem aos falantes, novas possibilidades.
É o caso do gênero comentário que, sob essas influências, foi passando por mudanças e hoje, com o
advento das TIC, é um gênero de grande importância na construção de debates públicos sobre diversos
assuntos nos ambientes virtuais (ROSA e SANTOS, 2012). Por isso, tomamos esse gênero, o comentário
jornalístico virtual, como objeto de estudo, neste trabalho.
SANTOS, Andre Cordeiro dos | I CIED (2015) 94-108
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A partir da análise de exemplares dessa prática discursiva, buscamos caracterizá-la, caracterizando,
também, sua natureza dialógica. Junto a isso, buscaremos: caracterizar o locus virtual que suporta esta
prática; investigar os seus aspectos dialógicos de composição; investigar a presença de diferentes discursos
nessa prática; e, investigar em que medida essa prática discursiva vem se oferecendo ao leitor como um
espaço que lhe dá “voz e vez”.
Para cumprir os objetivos acima, utilizamos como corpus comentários de revistas (Veja e IstoÉ) e de
jornal (Folha de São Paulo) virtuais, que falam sobre a greve dos professores das universidades federais em
2012.
2. A natureza dialógica da linguagem e suas formas de materialização
O ser humano é por natureza um ser de linguagem e por meio dela vive em sociedade, comunica-se e
constrói suas relações, sendo-lhe possível interagir, relatar, expor, informar, criticar, opinar. Essa
necessidade de interagir faz com que surjam “formas” de linguagem como meio de interação entre
indivíduos que compartilham um conjunto de fatores e aspectos que os fazem seres capazes de interagir
entre si.
Diante disso, a interação humana se caracteriza como sendo de natureza dialógica. Em uma situação
de interação, nossas falas estão sempre povoadas por nossas intenções, orientações discursivas e pelos
aspectos que constituem o contexto de produção que condicionam nossas enunciações (BAKHTIN, 1997;
VOLOCHINOV, 2002). Mas não são apenas esses aspectos que condicionam nossos discursos, mas o fato de
que estes estão sempre dirigidos a um interlocutor, a uma ou mais pessoas. Constantemente levamos em
consideração o outro em nossas enunciações: suas reações, expressões, respostas. O movimento contrário,
do interlocutor para o locutor, também ocorre já que, no processo de interação, o interlocutor nos é
responsivo. Isso é o que caracteriza a chamada natureza dialógica da linguagem, ou seja, o outro e os
elementos contextuais estão sempre implicados naquilo que se fala e no “como” se fala.
Sendo assim, a interação pressupõe sempre uma atitude responsiva ativa e se dá na relação
constitutiva com o outro e com o próprio ser, já que estes sempre estão implicados em qualquer
enunciação, mesmo que esse outro não seja um indivíduo real (VOLOCHINOV, 1930, p. 1). Ou seja, todo
dizer deve orientar-se “para os ‘já-ditos’, *...+ é orientado para a resposta *...+ e é intensamente
dialogizado”, como afirma Faraco (2006, p. 58) a partir dos estudos do Círculo de Bakhtin.
Dessa forma, o enunciado se pauta, desde o princípio, na possível reação-resposta do outro. Nisso
está implícito que o enunciador leva em consideração o contexto em que se encontra, no qual se realiza a
interação, e que o próprio interlocutor é constituinte desse contexto, não se podendo, assim, separar o
enunciado do seu contexto de produção, pois este é peça-chave para o seu entendimento. Sendo assim, o
SANTOS, Andre Cordeiro dos | I CIED (2015) 94-108
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enunciado, “ao mesmo tempo em que responde (no sentido de tomar uma posição socioaxiológica), espera
uma resposta (espera que outros assumam uma posição socioaxiológica)” (FARACO, 2006, p. 57).
Para os estudos enunciativos dos discursos, o enunciado comporta além da parte linguística a parte
ideológica (VOLOCHINOV, 1930, pp. 2-3). Como é a forma da manifestação da interação social, ele também
se caracteriza pela sua natureza dialógica: surge a partir da interação discursiva que se torna concreta
através dos falantes a fim de interferir em seu meio, ou esferas das quais faz parte, fazendo emergir o
dialogismo interlocutivo. No entanto, um enunciado nunca será o primeiro nem será o último a ser criado
posto que está em uma cadeia de enunciados que mantêm um elo entre si, evidenciando enunciados que o
antecederam e apontando para outros que o sucederão (VOLOSHINOV, 2002). Assim, implícita ou
explicitamente, a interação também pressupõe outros discursos, anteriores ou não, caracterizando o
dialogismo interdiscursivo1. Esses são princípios básicos da interação aos quais estão relacionados às
manifestações dos gêneros discursivos.
São os enunciados que se caracterizam como as formas pelas quais a língua ganha vida e se
concretiza na comunicação real, permitindo a existência dos discursos (aqui visto como produção verbal,
enunciação) dos falantes.
3. Alguns apontamentos sobre gêneros discursivos
Estando os textos jornalísticos situados na esfera discursiva jornalística, constituindo uma prática
discursiva, tomaremos como aporte os estudos de Bakhtin (1997, pp. 278-327) sobre gêneros do discurso,
autor que é tido até hoje como referência sobre o tema pelos seus estudos da linguagem como meio de
interação em âmbito social. Para esse autor (1997, pp. 278-327), os gêneros do discurso são “tipos
relativamente estáveis de enunciados” que surgem em determinadas esferas sociais e comportam
“conteúdo
temático,
estilo
e
construção
composicional”.
Portanto,
falar
em
interação
é,
impreterivelmente, falar em gêneros, pois essas formas de interação social, dentro dos mais variados
contextos, são as bases de todas as formas de interação por meio da linguagem verbal, ou seja, sempre que
interagimos, fazemo-lo por meio dos gêneros.
Bakhtin (1997, pp. 278-327) classifica os gêneros discursivos em dois grandes grupos: os gêneros
primários e os secundários. Os gêneros primários, segundo o autor, fazem parte da comunicação imediata,
que se molda e se realiza no próprio momento de interação; os secundários são gêneros que se servem dos
primários para a criação daqueles mais complexos, caracterizando uma comunicação não imediata.
Dessa forma, os gêneros, para o autor, são inesgotáveis porque as atividades humanas são
ininterruptas e as trocas verbais e/ou trocas culturais, que estão na base do estudo, são vistas pelo filósofo
1
Cunha (2011, p.7) alerta para o fato de os termos “dialogismo interlocutivo e dialogismo interdiscursivo” não se encontrarem em
Bakhtin, mas em AUTHIER-REVUZ e BRES.
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segundo critérios enunciativos. Nesse sentido, Cunha (2000, p. 3) diz que Bakhtin estuda o gênero na
perspectiva do enunciado, observando suas fronteiras, acabamento, expressão do locutor, relação com
outros enunciados e para a responsividade dos interlocutores.O que a autora traz está no clássico texto Os
gêneros do discurso em Bakhtin (1997) em que se pode perceber a participação do gênero como aspecto de
manifestação da linguagem.
Assim, a dialogização dos discursos exige a compreensão desses conceitos, mas também a
investigação de como esse fenômeno se manifesta no caso do jornalismo virtual já que esse espaço
discursivo se mostra diverso do impresso em papel embora altere pouco as fronteiras entre os enunciados.
A que se observar também nesse espaço digital a (inter)relação entre verbal e não-verbal para a construção
dos sentidos visto que a hipermídia pressupõe não apenas o verbal.
4.Comentário e sua organização (para)textual
Pertencendo, o nosso corpus, a esfera jornalística virtual, convém fazer uma caracterização ainda que
sumária do jornalismo virtual. Segundo Ribeiro (2009, pp. 4-5) na fase atual do jornalismo virtual há
algumas características que se configuram como relevantes na constituição do mesmo. São elas:
multimidialidade/convergência, uso de diferentes mídias; interatividade, possibilidade de interação do
leitor com a informação; hipertextualidade, ligação com outras fontes de informação; possibilidade de
personificação, seleção dos produtos jornalístico de acordo com as suas preferências; memória,
capacidade de oferecer acesso a arquivos quase infinito relacionados à informação veiculada; e
instantaneidade, possibilidade de publicação em tempo real.
Dentre essas possibilidades do jornalismo virtual, está a possibilidade de o leitor interagir com o que
lê, a interatividade. Essa possibilidade vem constituindo espaços discursivos nos quais, por meio do
comentário, o leitor ganha “vez e voz”, ou seja, o leitor deixa de ser um leitor que recebe informação, mas
não interage diretamente com ela, e passa a ser um leitor-escritor que interage com a informação.
Todorov (1976, p. 49) defende que “um novo género é sempre a transformação de vários géneros
antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação”. Baseando-se no que defende o autor e levando
em consideração o ingresso no mundo virtual, acreditamos o gênero comentário jornalístico virtual,
constitui-se, então, pelo deslocamento do gênero no que se refere ao suporte. Em decorrência dessa
mudança, o comentário virtual introduziu no gênero modificações textuais e/ou peritextuais que
condicionam a leitura. Dessa forma, o lugar do comentário é oferecido ao leitor abaixo da notícia, numa
caixa de diálogo na qual pode registrar sua opinião e esse modo de opinar muda a maneira do leitorescritor se portar diante de sua escrita.
Além disso, o ambiente jornalístico virtual, ao qual o gênero comentário está veiculado, está repleto
de paratextos que, mesmo se constituindo como textos “independentes”, não fazendo parte do gênero em
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questão, tornam-se constituintes do todo e acabam, de alguma forma, afetando a leitura e interpretação
do gênero. Nesse sentido, como afirma Gennete (2009, p. 10),
o paratexto é uma ‘zona indecisa’ entre o dentro e fora, não tendo um limite fixado nem
para o interior (próprio texto) nem para o exterior (discursos do mundo que se fazem
presentes no texto) [...] é um lugar de ação sobre o público.
Esses paratextos geralmente estão relacionados à divulgação de produtos, ou até mesmo de links de
outras seções ou notícias do site. Devido a isso, o comentário jornalístico virtual está cercado de outros
textos, os paratextos, que acabam por condicionar a leitura, pois, na maioria das vezes, como no caso
acima, a função dos paratextos, como dito por Gennete (2009, p. 10), é agir sobre o público, chamar a
atenção do leitor, ou seja, os paratextos “disputam” com os comentários a atenção do leitor.
No entorno do comentário, o leitor também se depara com “instruções” (ou com um link para elas)
dadas pelo site antes de enviar sua opinião. Essa é uma forma de regrar a escrita pública a fim de evitar
desconfortos.
Com isso, percebemos que o gênero comentário é um gênero que se oferece ao público para
promoção de debates, porém este debate deve se dar obedecendo-se a determinadas regras. É importante
ressaltar que cada empresa de comunicação fornece suas próprias regras, no entanto, elas, geralmente,
são similares.
Mesmo impondo regras aos leitores, como forma de regular a escrita nesse ambiente virtual, em
alguns casos, a empresa de comunicação mostra junto ao comentário do seu leitor, nota na qual se isenta
de qualquer responsabilidade com a opinião expressa.
Em termos de recepção, todo texto é afetado, ao longo da história de sua leitura, pelos diferentes
graus de interpretação aplicados a ele. Nesse sentido, o comentário virtual, vem se mostrando um espaço
ampliado em relação à carta do leitor por comportar, obviamente, comentários de muitos leitores ao
mesmo tempo além de ser possível a réplica de outro leitor. É bem verdade que a interação entre o escritor
e leitor de textos não é uma novidade do virtual, pois há vários gêneros impressos que cumprem esse papel
tais como a carta do leitor, artigo de opinião entre outros.
O que o comentário virtual propicia de novo é a possibilidade de fácil interação entre leitor-autor,
pois o leitor pode dar sua opinião sobre o que leu e postá-la na Web de forma fácil. Como “todo e
qualquer” leitor tem a possibilidade de deixar sua opinião a respeito do que leu, é comum a presença de
discursos diversos entre os comentários a que, por exemplo, uma notícia virtual está exposta. A partir
disso, torna-se interessante observar e analisar como os comentários, apesar de estarem atravessados por
diferentes discursos, mantêm relações de dependência com o texto principal, e como o gênero comentário
propicia o “dialogo” entre os diferentes discursos, ou seja, como o outro (ou seu discurso) sempre é levado
em conta na composição de todo e qualquer discurso, como diz Volochinov (1930, pp. 2-3). Passemos a
análise.
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5. O comentário virtual: a natureza discursiva do gênero
Aqui iremos analisar comentários jornalísticos virtuais retirados das Revistas Veja e IstoÉ a fim de
apontar as propriedades discursivas do gênero. Para tanto, iremos mostrar textos jornalísticos com seus
comentários das revistas anteriormente citadas e faremos uma análise das posições ideológicas assumidas
pelos usuários da comunidade de leitores. Aqui verificaremos: a. de quem parte e a quem se dirige o
enunciado; b. as fronteiras, o acabamento do enunciado; c. quais relações discursivas o enunciado mantém
com outros enunciados; d. qual o contexto da enunciação.
Figura 1. Texto-base para comentários na revista Veja on-line
A notícia alvo dos comentários dos leitores (Sindicato diz que greve dos professores das federais
continua), como gênero, traz consigo algumas especificidades. Sua função é informar e para isso, como na
notícia acima, ela deve responder às seguintes perguntas “quem?” (o Sindicato Nacional dos Docentes das
Instituições de Ensino Superior *Andes+), “o quê?” (“informou *...+ que a greve continua”), “quando?”
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(“nesta segunda feira” expressão que apesar de não determinar um tempo específico, denota tempo),
“onde?” (quando a notícia traz “a greve dos professores federais continua”, conclui-se que o “onde?” são
nas universidades federais do Brasil) e “por quê?” (por que os professores federais querem reestruturação
da carreira).
A notícia aparentemente se mostra neutra2 em relação ao tema, não tomando partido nem dos
professores nem do governo. Porém, ao atentar-se às questões textuais, percebe-se que há alguns rastros
que orientam em direção à posição “assumida” e “defendida” pela revista/jornalista. Isso pode ser visto já
no subtítulo “crise nas universidades federais” (na quinta linha pós-imagem), pois a palavra “crise” denota
que as universidades estão passando por problemas que as põem em situação difícil; ao dizer que “os
ministérios do planejamento e da educação já disseram em várias ocasiões que as negociações com a
categoria estão encerradas”, que o “sindicato protocolou uma contra proposta em que abre mão do
aumento salarial e dá preferência à reestruturação da carreira” e que o “MEC disse que o documento não
seria analisado”, o texto demonstra certa intransigência por parte do governo em relação à busca de uma
solução, um acordo, para o impasse que se tinha com os servidores federais (docentes das universidades
federais). Passemos aos comentários desta notícia.
Comentário – Usuário 1
“Democratico. Mas, eles nem precisam entrarem em greve pois acham que a educação
brasileira eh referencia. busque nos sites de busca por revalidação de diploma ilegal e fique por
dentro dos absurdos dos acadêmicos e das historias dos exilados acadêmico brasileiros.”
O comentário do usuário 1 se monstra responsivo à notícia, mas também ao discurso da crítica à
greve. O leitor inicia seu comentário com um aparente gesto de concordância com o discurso a favor
professores das universidades federais. Ao enunciar “Democratico”, o usuário 1 se refere ao discurso do
texto-base e dá a entender que acha que estes estão em uma luta democrática, justa. Mas na continuidade
da leitura do comentário percebemos a ironia, pois ao dizer “Mas, eles nem precisam entrarem em greve
pois acham que a educação brasileira eh referencia” ironiza o fato de que se os professores consideram a
educação brasileira referência é porque são responsáveis por essa educação. Então as condições de
trabalho que os mesmos enfrentam não é tão ruim assim. No seu comentário, o usuário 1 ainda fala de
supostos “absurdos” referentes à revalidação de diplomas e histórias de exilados acadêmicos brasileiros,
utilizando para iniciar essa parte do texto a forma verbal imperativa “busque... e fique por dentro”,
referindo-se ao público. Nesse ponto percebemos que o autor leva em consideração o leitor do seu
comentário na composição do texto, caracterizando o dialogismo interlocutivo. Seu objetivo é, na verdade,
denunciar que as federais não revalidam diplomas de cursos feitos no exterior. Para esse
leitor/comentarista, as federais brasileiras se consideram melhores que as estrangeiras e não conferem
2
Outra característica da notícia é busca da neutralidade, embora saibamos que não exista um texto totalmente neutro.
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grau de mestres e doutores aos que entram no país e não têm seus diplomas reconhecidos, tornando-se
“exilados acadêmicos” no Brasil.
Comentário– Usuário 2
“O impasse vai continuar, nessas e em outras categorias mais organizadas, por essa razão que
não sendo devidamente tratada na mídia: os objetos abusos salarias nas duas casas do
Legislativo. É uma situação de injustiça e ultraje que se pode suportar um tempo, mas não todo
o tempo. À medida que se aprofunda a democracia e seu pressuposto de igualdade perante a
Lei, ninguém aguenta mais esses acintes”
No comentário 2, o usuário 2 demonstra um discurso anti “governo” (ou corrupção, abusos etc.) e
em favor da democracia. No seu comentário, o autor diz que “o impasse vai continuar”, pois os
funcionários, não só os professores como também outras categorias, não suportam mais os abusos “nas
duas casas do poder legislativo”, ou seja, na Câmara dos Deputados e no Senado. Aqui o comentarista
retoma discursos anteriores e postos sobre os altos salários dos deputados e senadores enquanto outras
categorias ganham pouco. Segundo o autor do texto, essa situação de injustiça não pode ser duradoura
quando se quer a consolidação da democracia. O usuário 2 crítica a “mídia” por não dar a devida atenção
assuntos como esses porque a sociedade não debate o tema dos “abusos salariais nas duas casas do
legislativo”. Ele demonstra, através de seu discurso, reprovação a determinadas atitudes corruptas do
“governo”. O comentário inicia remetendo ao tema “impasse”, a não discussão do tema pela mídia e a
impossibilidade de suportar a desigualdade salarial dentro do país.
Comentário – Usuário 3
“Nessa brincadeira, vamos ter o semestre perdido! Dia 17 vai fazer 4 MESES que estamos sem
aula! UM ABSURDO! Tanto por parte do governo quanto por parte dos professores, pois isso já
está virando palhaçada”
O comentário do usuário 3 demonstra uma posição discursiva assumida, a de estudante. Nele fica
claro o descontentamento com a situação: professores paralisados e a intransigência do governo, isso pode
ser percebido na primeira sentença de seu texto “Nessa brincadeira, vamos ter o semestre perdido!”. Nele
também percebemos o uso de um recurso comum na linguagem da internet, uso de letras maiúsculas3 para
dar ênfase (ou expressar grito) a determinada “fala”. No caso, o usuário 3 utiliza-se desse recurso em “4
MESES” e “UM ABSURDO!”, focando o tempo de duração da greve, quase 4 meses no momento do seu
comentário e a avaliação que ele faz da situação de impasse entre professores e governo. Ele reforça sua
posição de desagrado à situação dizendo que a situação “já está virando uma palhaçada”.
Comentário – Usuário 4
“Que me desculpemos meus amigos que são das Ifes, o assunto é polêmico e poderá causar
mais polêmica, mas vou encarar porque é um apelo de uma mãe de universitário de curso de
horário integral que não permite que ele tenha outra atividade senão estudar. A greve dos
professores da universidades não vai acabar? Meu filho e os universitários que conheço, e que
3
Recurso usado para dar foco a algum elemento textual. Também pode ser usado para representar que a pessoa está irritada,
gritando.
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não possuem estágio nem estão integrados em um grupo de pesquisa, estão nervosos demais o
que contamina até a família. Mais de 110 dias, sem previsão de acordo, é muito tempo para o
intelecto, não acham? Não seria melhor reconsiderar e pensar nos estudantes? A luta é pra lá
de legítima (acordo não cumprido, classe não beneficiada e tantas outras), mas na “briga”
atual sinto que quem está perdendo é o aluno. Sabemos, conhecemos e sentimos n pele as
dificuldades nas áreas da saúde, educação, infraestrutura, enfim. Perdoem se estiver errada,
mas percebo que está formando um cabo de guerra em um ano eleitoral. Juro que não sei o
que mais podemos fazer, certamente os mestres e doutores enquanto formadores de opinião e
lideres preparadíssimos possam encontrar alternativas. Talvez, ao invés de buscarmos
aumentos e benefícios salariais, pudéssemos fazer uma greve ou um movimento nacional para
estabelecer um teto máximo para os salários dos cargos de confiança e para os eleitos (os
políticos)? Por favor, repensem. É um desabafo e apelo de uma mãe!”
No comentário do usuário 4, percebemos o cruzamento de diferentes discursos. A autora do texto
diz que sabe que a “luta é pra lá de legítima”, e com isso reconhece que a greve dos “professores das IFES”
é uma luta justa. Mas enquanto mãe apela aos professores para repensarem o movimento já que está
vendo o filho e outros estudantes ficarem “nervosos”, o que, segundo ela, afeta até a família. Nesse
entrecruzar de discursos percebemos que o discurso da mãe se sobressai. Embora reconheça o valor dos
professores como “formadores de opinião”, “preparadíssimos”, reconheça a luta justa da classe, o projeto
de ser apelo é cumprido ao longo do comentário. A esse discurso associa a crítica aos altos salários dos
políticos como forma de atingir o governo e reconhecer que greve legítima também seria fazer um
movimento maior em favor de outras reivindicações. O enunciado tem interlocutor certo: os professores
visto que, como “desabafo e apelo de mãe”, eles poderiam solucionar o problema de seu filho acabando
com a greve. Esses interlocutores, aliás, participam de seu círculo de amizade porque ela enuncia: “amigos
que são professores da ifes”. O projeto do enunciado, que é ser um apelo, constata que o aluno, porque
estuda numa universidade federal não pode trabalhar, logo, fica ocioso e atrofia o intelecto. O enunciado é
finalizado com uma frase de efeito: Por favor, repensem. É um desabafo e apelo de mãe! E o que se vê é
que o comentário, também, é lugar de denúncia, de apelo e cumpre outro papel além de comentar.
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Figura 2. Reportagem da revista IstoÉon-line
O texto-base para os comentários da revista IstoÉ on-line é uma reportagem que tem como
objetivo trazer fatos sobre “o custo da greve” ao leitor de maneira abrangente. Em síntese, na reportagem,
são expostos os gastos com o evento; fala-se da quantidade de dias que a greve dura e trata do impasse
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entre professores e governo que poderia ter sido evitado, pois os professores foram a primeira categoria
em greve a receber proposta de reajuste e que, devido à divisão entre os sindicatos, o governo lançou uma
segunda proposta, não aceita pela maioria dos professores que queriam um aumento maior. Aponta-se o
que a proposta feita aos professores representaria para os cofres públicos; além disso, na reportagem, falase dos prejuízos para alunos, para pesquisas, para a sociedade e para as próprias universidades brasileiras
que perdem posições entre as melhores universidades em escalas internacionais. A reportagem é finalizada
com a exposição de uma imagem em cores fortes, na qual se expõe os números da greve: prejuízos, datas
de reposição, quantidade de professores em greve e alunos sem aulas entre outros números sempre nas
cores preto e vermelho retomando os discursos de esquerda.
Por ser feita em cima de números, gastos, custos, prejuízos [...], a reportagem caracteriza um
discurso contra a greve dos professores federais, pois em momento algum na reportagem há menção dos
motivos, além do aumento salarial, que levaram os professores à greve. Passemos à análise dos
comentários.
Os comentários da revista IstoÉ trazem como elementos peritextuais a data de publicação, hora de
publicação e link para denunciar o comentário caso algum leitor o reconheça como fora dos padrões
permitidos para o lugar.
Os comentários 5 e 6 abaixo serão considerados de modo englobado porque há responsividade do 6
em relação ao 5.
Comentário –Usuário 5
“É necessário que os professore independente do pensamento radical dos sindicatos, tenham
compromisso e respeito com os seus alunos. Toda a sociedade apóia a greve, mais tudo tem
limites e esta já esta no topo máximo, sacrificar impiedosamente milhões de jovens é um ato
desrespeitoso com o ser humano”
Como podemos perceber, o usuário 5 inicia seu texto se referindo a um discurso anterior, o da
notícia, em “é necessário que os professores independente do pensamento radical dos sindicados tenham
compromissos com os alunos”. Dessa forma, no comentário supracitado, percebemos marcas de
direcionamento a outrem, caracterizando o dialogismo interlocutivo. Esse discurso encontra lugar nos
discursos midiáticos de que os sindicatos sempre foram radicais e seria esse “pensamento radical” que teria
segurado os professores no movimento de greve, segundo a autora do comentário. Se de um lado “toda a
sociedade apóia a greve”, para ela o movimento já passou dos limites e se constitui num “ato
desrespeitoso”, pois sacrifica “milhões de jovens”.
Comentário – Usuário 6
“Elisângela, eu terminei meu semeste e aguardo o retorno, mas é preciso ver como o governo
tem sido intransigente! Há mais de 1 ano enrola e não faz nada de concreto no sentido de
reestruturar a carreira. Não tem dinheiro para o magistério federal, mas pode perdoar 17 bi de
dívida das particulares?”
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É interessante observar o funcionamento discursivo deste comentário. Aqui, o usuário 6 é responsivo
ao usuário 5, pois inicia seu comentário se dirigindo a “Elisângela”, autora do texto anterior, caracterizando
o dialogismo interlocutivo. Em seu texto, o usuário 6 assume que cumpridora de suas atribuições ao
enunciar “... eu terminei meu semestre” e, ao contrário do que o usuário 5 disse, foi responsável, pois
terminou as atividades antes de entrar na greve, e com isso demonstra fazer parte do grupo de professores
federais em greve, ressaltando que é preciso ver que o governo “tem sido intransigente”,pois este não tem
dado a devida atenção à questão da reestruturação da carreira. Por fim, o usuário 6 questiona o fato de
que se o governo não tem dinheiro para dar aumento aos professores por que perdoou a divida de bilhões,
deixando espaço para respostas futuras. A autora do comentário traz uma informação decerto
desconhecida dos leitores e de sua interlocutora. Com isso, aposta na incoerência política de perdoar a
dívida de universidades particulares e não investir nas universidades públicas.
O comentário a seguir traz temáticas mais abrangentes, apontando as iniciativas do governo de
interiorizar a educação como algo utópico.
Comentário – Usuário 7
“Se até hoje não foi possível garantir qualidade na universalização da saúde(SUS)é uma utopia
tentar abrir novas Uni/Inst.Federais em qualquer cidade,enquanto deixam sucatear as
antigas,pagando baixos salários à maior parte dos professore/funcionários. A politicagem está
levando esta nação ao caos”
O usuário 7 inicia o texto com uma crítica ao governo, pois diz ser “utopia”, se “não foi possível
garantir qualidade na universalização da saúde(SUS)” querer abrir novas universidades sem dar a
necessária atenção às antigas e ainda pagando “baixos salários aos professores/funcionários”. Sendo assim,
demonstra uma posição de responsividade em relação a discursos anteriores e aos discursos expressos na
reportagem.O usuário 7 finaliza seu comentário dizendo que “a politicagem está levando esta nação ao
caos” e com isso fica, subentendido que a expansão universitária tem sido um gesto de “politicagem” que
tem gerados problemas, tais como a greve, e com isso a situação de “caos” do momento, retomando com
isso o texto base. Novamente a frase de efeito marca a conclusão do enunciado no comentário.
A partir da análise dos comentários podemos perceber que todos demonstram a defesa de ponto de
vista e com isso se percebe que o gênero comentário traz consigo marcas de seu enunciador (CUNHA,
2000, p.3). Os comentários têm começo, meio e fim: iniciam com uma retomada de discursos (direta ou
indiretamente) para introduzir seu ponto de vista depois. Trazem argumentos que fundamentam esse
ponto de vista e finalizam com uma proposição conclusiva ou uma frase de efeito.
O comentário se caracteriza como estando posto em uma cadeia de discursos, caracterizando-se
como um elo entre discursos anteriores e possíveis discursos-respostas. No entanto, apesar dessa relação
com outros discursos, apresenta fronteiras que o caracterizam como enunciado. Por estar posto como um
elo entre discursos e, consequentemente, interlocutores, é um gênero que se caracteriza essencialmente
pela sua natureza dialógica, principalmente pelo dialogismo interdiscursivo (CUNHA, 2000, p.3).
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Outro ponto observado é a coexistência de vários discursos no mesmo ambiente virtual que vem se
caracterizado como uma forma de dar “vez e voz” ao usuário, pois este não é mais apenas um leitor que
não interage diretamente com a informação. Através do espaço para comentário no jornal virtual, o leitor
pode deixar sua opinião de forma rápida e acessível a partir dos avanços das TIC que fizeram surgir as redes
e colocando o suporte como ambiente que traz implicações sobre a leitura e escrita (MARCUSCHI, 2003).
5. Considerações finais
As TIC estão cada vez mais presentes no dia a dia das pessoas e isso tem gerado mudanças em toda a
sociedade, dita da informação. No que se refere à linguagem, como visto neste texto, elas têm feito surgir
novos espaços discursivos e, consequentemente, novas práticas sociais das quais emergem os gêneros
digitais, como é o caso do comentário virtual.
Sabendo que os gêneros discursivos, por serem enunciados relativamente estáveis (BAKHTIN, 1997),
comportam uma parte textual e outra discursiva, nesse trabalho analisamos essas duas partes do gênero, e
junto a elas analisamos, também, a parte paratextual do gênero, pois esta é relevante para a compreensão
do gênero comentário virtual, por se caracterizar como uma zona indecisa entre o dentro e o fora do
gênero e de ação sobre o público/usuário (GENNETE, 2009, p.10).
A partir das análises, percebemos que as TIC proporcionaram ao gênero comentário nova forma de
interação e criaram um espaço onde os leitores podem interagir entre si e com o texto lido. Notamos com
isso que esse espaço se torna democrático no sentido de que nele se encontram diferentes vozes e
discursos – embora ainda regrados.
Tornou-se bem visível também que a interdiscursividade, fenômeno linguístico base da constituição
do gênero comentário, marca o gênero em questão modificando as formas de leitura e permitindo réplicas.
O leitor tem, então, contato com o texto (e o discurso veiculado) e a partir disso, constitui seu “próprio”
texto (e discurso) concordando ou desaprovando o texto lido.
Além disso, outro fenômeno linguístico que ficou evidente a partir das análises foi a
interlocutividade. No comentário jornalístico virtual percebemos que os usuários interagem entre si,
construindo diálogos marcados pela troca de turnos que caracterizam as réplicas e evidenciam que os
enunciados estão postos em uma cadeia de relação com enunciados (e com indivíduos) que o precederam
e com outros que o sucederão.
Servindo-nos das concepções do circulo de Bakhtin, especificamente dos estudos de Bakhtin e
Volochinov, no que se refere à linguagem, enunciado e gênero, tornou-se possível olhar para o gênero
comentário enquanto prática discursiva caracterizada pela sua natureza dialógica de composição, pois os
estudos desses filósofos da linguagem serviram ao intuito inicial de analise da prática discursiva.
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Referências bibliográficas
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<http://www.gelne.org.br/RevistaGelne/arquivos/artigos/art_314fe21c4a9d0298ff354aa211c52024_145.p
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FARACO, C.A. Linguagem e diálogo – as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar, 2006.
GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. A questão dos suportes dos gêneros textuais; DLCV-V1, n.1, João Pessoa out2003.
RIBEIRO, A. E. et al. Folheando de mentira: leitura de jornais impressos na Web. [s. l.] Contemporanea, vol.
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___________. (1930) A Estrutura do enunciado. Tradução de Ana Vaz, para uso didático, com base na
tradução francesa de Todorov, T. (La structure de l’énoncé), publicada em Mikhaïl Bakhtine- le principe
dialogique, suivi de Ecrits du cercle de Bakhtine.Paris, Seuil, (1981).
___________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec (10ª. ed.), [1979], 2002.
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Abstract: In this paper, we seek to clarify, in the light of dialogic theory of language, based on studies of the Circle of
Bakhtin, dialogic aspects of the dialogic nature and the constitution of genre virtual commentary written in
newspapers and online magazines. We assume that every utterance comes from others before and always
presupposes an active responsive attitude to the interlocutor, real or not (Voloshinov, 1930). Considering the diversity
of studies on the topic, our aim is to understand the discursive operation of genre in digital form. This choice was due
to the influence that the information and communication technologies play in today's society and because we realize
that they have generated changes that influence the composition of concrete utterances of the language and thus the
speech genres. We have analyzed here, structural and discursive points that regard to the constitution of the genre. For
research, we have selected seven commentary taken from two online magazines with similar theme - the strike of
teachers in public universities occurred in 2012. Results showed that the genre commentary is essentially characterized
as a dialogic discursive practice, that includes the characteristics of a concrete utterance, and it is strongly marked by
interdiscursive and interlocutory dialogism.
Keywords: speech genres; technologies; dialogism; virtual commentary; dialogue.
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O discurso antilógico, o filosófico, e o jogo verbal da
conveniência1
André Luiz Braga da SILVA (PPGFIL-USP)
[email protected]
Resumo: Este trabalho tem por objetivo elucidar a prática discursiva denominada “Técnica da Contradição” ou
“Antilógica”. Esta atividade era muito comum na antiguidade grega clássica, e, no caldeirão cultural da época, foi
muitas vezes confundida com a prática da filosofia. Para entender então em que consistiria esta técnica, e quais as
semelhanças e diferenças existentes entre discurso antilógico e discurso filosófico, serão feitas análises e
interpretações das várias referências presentes na obra do filósofo grego Platão. No quadro que este autor traça da
Antilógica – em diálogos como Parmênides, Fedro, República, Teeteto e Sofista – sobressairá toda uma interessante
atmosfera de combate argumentativo, violência na discussão e imaturidade por parte daqueles que a exercem. Tais
características serão contrapostas, pelo filósofo grego, à prática discursiva da filosofia. Por fim, chamaremos atenção,
ainda, para outros aspectos dessa Técnica da Contradição – aspectos esses que parecem estar plenamente vivos na
sociedade até os dias atuais.
Palavras-chave: Platão; antilógica; erística; filosofia; sofística.
1. Introdução
Na defesa de uma posição num debate intelectual, de um discurso ideológico, ou mesmo de uma
causa política, causam-nos espécie os casos em que o defensor altera a sua posição, passando a não
defender mais o que antes defendia. Dentre esses casos, os mais notáveis são, sem dúvida, os mais
extremos: aqueles em que se passa a defender a tese ou causa oposta. E é notável o fato de que não
apenas julguemos dignos de atenção esses casos; na verdade, costumamos considerá-los reprováveis.
Dignos de censura. Não estou, obviamente, me referindo às situações em que o defensor, por reflexão,
chegou à conclusão de que a tese ou posição que defendia era falha ou indefensável. Refiro-me aos casos
em que a mudança é pautada por mera conveniência, pelo interesse do momento, pelo oportunismo. E a
história enche nossos livros de casos assim. Vejamos alguns poucos exemplos; um bem antigo, e os demais
mais recentes.
Quando, no século V a.C., o mundo grego antigo foi a todo custo golpeado pela política expansionista
do império Persa, dando ocasião a algumas das mais históricas batalhas navais da época, a manutenção de
sua independência deveu-se, em larga medida, à atuação de seu mais talentoso político e general,
Temístocles. Mas, se a lealdade desse político grego com sua pátria e com a liberdade que ela proclamava
parecia tão inquestionável, qual não deve ter sido a surpresa dos gregos quando tomaram conhecimento
dos fatos que se seguiriam: Temístocles, sendo injustamente acusado de um crime, fugiria por inúmeras e
inúmeras terras, até que, errante, acabaria por buscar abrigo na própria terra inimiga, a Pérsia. Conta-se
que, quando o político ateniense chegou ao país estrangeiro, o mesmo contra o qual tantas vezes lutara,
ele fez amizades com habitantes locais, e pediu ao grão-vizir uma audiência com o Rei. O Vizir, que não
1
Revisado por Yasmin Tamara Jucksch.
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conhecia sua identidade, e que era leal servidor do soberano persa, quis saber por que um estrangeiro, que
não prestava obediência nem reconhecia a magnificência da realeza local, queria uma audiência.
Temístocles então, explicitando suas intenções – agora tão diferentes de outrora –, teria respondido: “Mas
eu venho *…+ justamente para aumentar a fama e o poder do Rei, e eu vou não apenas observar os seus
costumes *…+, mas vou induzir mais homens a fazer exatamente isso: prestar obediência a ele.” E,
conseguindo a audiência e angariando, através dela, a confiança do soberano, o ex-político inimigo teria se
tornado um importante servo do outro estado, contribuindo inclusive na expansão e manutenção do
império Persa2.
Em termos bem menos grandiosos e épicos, a política dos nossos tempos atuais também apresenta
exemplos similares de mudanças de posições. Às vezes, o cenário é apenas a discussão em torno a decisões
de alguns impostos e finanças governamentais. Nessas discussões, inclusive, a mudança de posição
defendida pode ocorrer em bem menos tempo do que no caso daquele político grego. Veja-se o caso de
uma discussão desse tipo, na corte britânica do século XX, quando, comentando-a, o 27o. Conde de
Crawford, David Lindsay, escreveu:
*…+ Meus colegas não ousam ir tão longe o quanto eu desejaria em reconhecer o direito
do Tesouro em participar dos rendimentos: embora eu esteja esperançoso para haver um
relatório unânime, Lord Blanesburgh é difícil: ele sempre muda a sua opinião, e repudia à
noite o que aceitou à tarde. (VINCENT, 1984, p. 505)
Em outros casos, a mudança de posição em relação à tese defendida pode não vir assim tão
rapidamente; pode ser necessário, até, o intervalo de alguns anos. Ainda que com uma redação um tanto
quanto corrida, a notícia publicada em 11 de Junho de 2012 no blog “Poder e Café” vale a pena ser citada:
MINC MUDA DISCURSO, QUANDO LHE INTERESSA
A preocupação do Secretário *…+ do Ambiente do Estado, Carlos Minc, em relação à
preservação ambiental de Maricá, município hoje governado pelo Prefeito Quaquá, que é
de seu partido *…+, já foi outra. Em 2006, por exemplo, ele *…+ foi autor de uma Indicação
Legislativa que previa, entre outras coisas, a preservação ambiental do local e a
regularização fundiária; ou seja, muito diferente do que ele estimula hoje em termos de
investimentos no local, principalmente em relação à construção do Terminal Ponta Negra
– TPN. Segundo uma leitora deste blog, de Maricá, não houve nem tem havido qualquer
cuidado em relação a APA [sc. Associação de Proteção Ambiental] de Maricá. Segundo a
PETROBRAS e a TRANSPETRO, o projeto de ampliação do Terminal em Angra [outro
município] é o melhor investimento da empresa para atendimento das operações do PréSal, sob todos os aspectos técnicos e econômicos avaliados, mas o Governo do Estado tem
um entendimento diferente – sob a regência da Secretaria de Ambiente. *…+ Amanhã (12),
haverá uma reunião com o Ministério das Minas e Energia, dentro da série de
movimentações que vêm sendo feitas pelas autoridades de Angra e outros parceiros que
vão aderindo à causa. *…+ o que estou mostrando é que, assim como no caso *da Usina
Nuclear] Angra 3, o sr. Carlos Minc sempre muda de opinião quando os ventos de seus
interesses lhe sopram favoráveis, sabe-se lá à custa de quê. Pergunto: isso é política de
Estado? [sic.] (PODER E CAFÉ. 11 de Jun. 2012)
2
Cf. PLUTARCO, Temístocles 27, 1-28, 4.
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Essa notícia apresenta-nos um outro exemplo de mudança de posição em relação à tese defendida,
por motivos aparentemente exteriores à própria tese: em relação às construções em determinada área de
proteção ambiental, o autor da matéria acusa o político de ter alterado por completo sua posição,
sugerindo inclusive razões de interesse próprio para tanto. Por fim, o último caso a ser mencionado,
recentíssimo, diz respeito às eleições presidenciais que ainda estão em curso em nosso país. Trata-se do
caso da assunção, na discussão sobre os direitos dos homossexuais, de uma posição sobre o tema no
Programa de Governo de uma das candidatas à Presidência da República, posição essa que foi alterada no
dia seguinte devido à inconveniência gerada pela polêmica posição que havia sido por ela anteriormente
assumida. Vejamos como o incidente foi divulgado em 30 de Agosto de 2014 no sítio eletrônico do grupo
Estadão:
COMITÊ DA CANDIDATA *…+ À PRESIDÊNCIA AFIRMA TER HAVIDO 'FALHA *…+ NA
EDITORAÇÃO' DO PROGRAMA LANÇADO E DIVULGA 'ERRATA'
Decorridas menos de 24 horas do lançamento oficial de seu programa de governo, a
candidata *…+ à Presidência, Marina Silva, emitiu nota oficial para retificar o que havia
prometido em relação à defesa dos direitos da população homossexual. Alegando “falha
processual na editoração do texto” divulgado, ela recuou em relação aos pontos mais
polêmicos e rejeitados pelos pastores de denominações evangélicas, onde se abriga parte
considerável de seu eleitorado. Ontem, após a divulgação do programa, ao mesmo tempo
em que as redes sociais registravam manifestações de apoio da comunidade LGBT,
pastores e políticos da bancada evangélica disparavam críticas, insinuando que Marina
perderia o apoio do eleitorado de suas igrejas. *…+ (ESTADÃO. 30 ago. 2014)
A prática de defender ora um discurso, ora outro – inclusive discursos incompatíveis e opostos entre
si -, ainda que frequente e muitas vezes realizada com competência por nossos representantes políticos e
advogados, não parece constituir hoje em dia uma atitude metodologicamente organizada. É-lhes uma
atitude útil, no calor dos debates eleitorais e em tribunais, mudar de tese conforme a conveniência; e,
assim, “bailando conforme a música”, eles visam sempre angariar a vitória sobre o adversário na discussão.
Mas esta não lhes parece ser uma atividade organizada, enquanto método ou prática discursiva. Isso,
porém, nem sempre foi assim. Na cidade de Atenas clássica, os eloquentes debates intelectuais dos séculos
V e IV a.C., rendendo plateia, fama, poder político e riqueza (como hoje?), deram ensejo a que uma prática
discursiva desta mesma ordem se tornasse muito bem organizada – seja do ponto de vista de seus
métodos, de seus nichos de atuação, e de seus grupos de ensino. E é sobre tal atividade que o presente
artigo será voltado. Concentrando-se no exposto sobre o tema pelo filósofo grego Platão, o presente
trabalho buscará elucidar os principais aspectos dessa modalidade discursiva que fora tão comum em sua
época: a “Técnica da Contradição” ou “Antilógica”.
O esclarecimento de seu modo de ser, pela análise dos textos, revelará que esta prática não podia
ser considerada de modo algum de pouca importância naquele tempo. E, por outro lado, fazendo um
paralelo com certos discursos atuais, exemplificados em parte pelas notícias acima citadas, será fácil
perceber que a essência dessa prática não pode ser considerada também ausente em nossos dias atuais.
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Quanto à importância dela na antiguidade, ele é em parte devida ao fato de que duas das mais famosas e
importantes práticas discursivas da Grécia antiga, a Sofística e a Erística, poderem ser entendidas
precisamente como subtipos dessa Técnica da Contradição3. Outra razão para esta importância é o fato de
que esta atividade caminhava lado a lado com uma outra prática discursiva contemporânea dela, fato que
muitas vezes deu ocasião a alguma confusão entre ambas. Esta outra atividade era a própria Filosofia, nos
termos em que era ensinada por Platão e praticada pelo seu grupo de discípulos na Academia. A elucidação
a que me proponho no presente trabalho pretende, portanto, justamente entender a Técnica da
Contradição com base nos termos de sua proximidade e distância da prática filosófica. Ou, se se quiser
assim colocar: pretende-se entender as semelhanças e diferenças existentes entre discurso antilógico e
filosófico. Para buscar este entendimento, seguirei um percurso traçado através das várias referências
presentes nas obras platônicas. Estas, tendo sido escritas sob a forma de debates filosóficos dramatizados,
os “diálogos”, dar-nos-ão um rico quadro sobre o tema.
2. A capacidade da Antilógica sobre os discursos
A primeira pista para um entendimento desta técnica encontra-se na abertura da obra Parmênides4.
Nela, conta-se que dois personagens, os ilustres filósofos Zenão e Parmênides de Eleia, vêm à cidade de
Atenas para um festival religioso, as Grandes Panateneias. Seus conhecidos atenienses então aproveitam o
ensejo para se dirigirem a eles e ouvirem a leitura dos escritos de Zenão – leitura, ao que parece, ainda
inédita naquela cidade5. Após a leitura, o personagem Sócrates, um rapaz de cerca de vinte anos, inicia uma
série de críticas às supostas originalidade e pretensão dessa obra6. Para se defender, Zenão vai alegar que
este livro, escrito para provar a não existência de coisas múltiplas, foi produzido “não impulsionado pelo
desejo de honra de um homem mais velho, (…) mas pelo desejo de vitória de um jovem” 7. Tais palavras,
aparentemente, funcionam como uma justificativa para Zenão diminuir o valor de seus próprios escritos8.
Para nossos objetivos, importa dar atenção a esta interessante e curiosa associação: 1) Zenão de Eleia
praticava uma dada técnica que 2) estava ligada à concepção de juventude e 3) a um certo espírito de
batalha e vitória no uso do discurso; além disso, 4) seu discurso, por ser concebido nestas condições, tem
menos valor. Não há ocasião aqui para esboçarmos nós mesmos uma relação dessa técnica com a própria
obra de Zenão; vejamos então o esboço que disso fez o próprio Platão. Em outra obra sua, o Fedro, ele
detalha mais a sua opinião a respeito desta técnica desse outro pensador:
3
Conforme nota 12.
PLATÃO. Parmênides 127a7-b1.
5
PLATÃO. Parmênides 127c3-4.
6
PLATÃO. Parmênides 128d10-11.
7
PLATÃO. Parmênides 128d10-11.
8
De fato, ele diz que alguém surrupiou o texto e o publicou sem ele refletir se devia fazer isso ou não. Cf. PLATÃO. Parmênides
128d7-e1.
4
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SÓCRATES. [...] Que fazem as partes nos tribunais? Não contradizem, ou o que diremos
que elas fazem?
FEDRO. Fazem isso mesmo.
SÓCRATES. Sobre o que é justo e o que é injusto?
FEDRO. Sim.
SÓCRATES. Assim, aquele que possui esta técnica fará aparecer, às mesmas pessoas, a
mesma coisa como justa por um lado, e, por outro, se ele quiser, como injusta?
FEDRO. Claro.
SÓCRATES. E nas assembleias políticas, ele não fará o povo da cidade considerar a mesma
coisa, por um lado, boa, por outro, o contrário?
FEDRO. Assim mesmo.
SÓCRATES. Ora, e não nos é bem conhecida esta técnica do 'Palamedes Eleata', com a
qual ele fazia as mesmas coisas parecerem, aos ouvintes de seu discurso, como sendo
parecidas e diferentes, unas e múltiplas, paradas e em movimento?
FEDRO. Com certeza.
SÓCRATES. Logo, não apenas nos tribunais e assembleias políticas se dá a Técnica da
Contradição, mas, ao que parece, se existe uma técnica assim, ela seria uma técnica única,
que abarcaria qualquer tema de discussão. E, com tal técnica, alguém seria capaz de fazer
existir correlação entre todas as coisas, e a qualquer pessoa, bem como seria capaz de
trazer à luz as correlações distinguidas por qualquer outra pessoa. (PLATÃO. Fedro 261c4e4)
O primeiro ganho desta passagem é que ela devidamente ‘dá o nome aos bois’. A técnica permeada
por um espírito jovem e amante da batalha verbal e da vitória, associada na outra obra a Zenão, não só é
novamente associada a ele9, como agora recebe seu nome: “Técnica da Contradição” ou “Antilógica”10. O
próprio nome já mostra que se trata de uma técnica discursiva, posto que o núcleo do étimo “antilógica” é
lógos (“discurso” no idioma grego). O aparente tom reprobatório que víamos incidir sobre tal técnica no
diálogo Parmênides11 confirma-se nesta passagem do Fedro com o fato de ela ser entendida aqui como
uma “arte de ilusão e do engano”12. Isto porque, pela manipulação dos argumentos, ela visa o
convencimento do interlocutor a respeito de qualquer mensagem escolhida pelo emissor do discurso. E isto
para Platão tem caráter negativo; já veremos porquê.
Importa agora chamar atenção para esse modus operandi desta técnica que a passagem citada acima
nos informou. Trata-se de 5) uma atividade que, através do discurso, é capaz de fazer uma tese aparecer
9
Entre a unanimidade de comentadores que identificam a figura do “Palamedes Eleata” com a de Zenão, podemos citar, desde
Diógenes de Laércio, na antiguidade, até Nestor Cordero e Luc Brisson, na atualidade. Cf. DIOGENES LAERTIOS, IX, 25; CORDERO,
1991, p. 114; BRISSON, in PLATON, 2000 (1989), p. 222, nt. 335.
10
O termo grego antilogiképode ser traduzido como “Técnica da Contradição”, “da Controvérsia”, “da Contestação”, etc; ou pode
simplesmente ser transliterado para “Antilógica”.
11
Conforme já comentado, Zenão alega ter escrito sua obra quando jovem para diminuir o valor da mesma, como se não soubesse
se ela devia ser levada a sério.
12
Palavras de Francis Mac Cornford (1980, p. 68).
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tanto de um modo como do modo oposto, tanto como verdadeira como falsa, às mesmas pessoas – da
maneira que aprouver ao mestre antilógico13. Além disso, foi dito que 6) a Técnica da Contradição seria
aplicável a todos os assuntos, o que daria a ela, em tese, uma abrangência universal sobre o discurso: ela
pode gerar argumentos sobre tudo. Nestes termos, a Antilógica representaria, sem dúvida, uma atividade
em algum sentido próxima da filosofia, a qual, na época, também possuía um escopo largo de atuação.
Diante de tal semelhança, e para evitar confusão de sua atividade com a outra – que lhe parece condenável
–, Platão se vê obrigado a expor as suas diferenças14.
3. A refutação e o prazer na hostilidade da Antilógica
Vejamos agora uma passagem de outra obra sua acerca desta técnica:
SÓCRATES. Ao modo dos antilógicos, parece que, no que tange a consensos sobre as
palavras, nós chegamos ao nosso próprio consenso. E nos regozijamos por esta vitória de
nosso discurso. Assim, nós que afirmamos não sermos disputadores mas filósofos,
enveredamos sem querer pelas práticas destes homens terríveis. (PLATÃO. Teeteto 164c7d2)
A primeira caracterização que nos chega dos homens antilógicos é então esta: são homens
“terríveis”. Salientemos que isto não necessariamente tem um sentido negativo: se, por um lado, o adjetivo
era usado, no idioma grego, para caracterizar os monstros e bestas da literatura, por outro, também era
usado por Platão para falar de homens de sabedoria elevada, como os filósofos Sócrates e Parmênides15.
Outro ponto importante da passagem é que ela frisa um daqueles primeiros traços da Técnica da
Contradição trazida à baila na obra Parmênides: o espírito de vitória e batalha. E acrescenta ainda ao rol de
termos deste nicho mais um, a “disputa”, que se associa nessa obra com outros dois: a “batalha” e a “luta”.
No entanto, a passagem não se limita a isso, e vem a adicionar mais duas características fundamentais à
Antilógica: 7) a noção de que as discussões desta prática giram sobretudo em torno às palavras; e 8) a ideia
13
Para exemplos desta “capacidade”: PLATÃO. Eutidemo, 296d; 298a; 301b.
De fato, em todas as próximas referências platônicas, será notável a preocupação de separar ambas as práticas. Em algumas
ocorrências, a Técnica da Contradição é expressamente nomeada; em outras, não o é. A ausência de nomeação em várias
referências levou muitos comentadores importantes a identificar que em algumas passagens estaria em jogo uma prática discursiva
da época, a Erística. De fato, nestas passagens, Platão sempre trata a Antilógica e a Erística nos mesmos termos (seja verbos, seja
adjetivos), nunca fazendo diferenciação entre ambas – à exceção de uma única vez. Creio que o que interessasse para esse filósofo
grego era fundamentalmente a contraposição destas duas práticas com o que ele entende por filosofia ou dialética, e, nesse
sentido, uma generalização didática, que englobasse Antilógica e Erística, é de plena utilidade. Desse modo, a exemplo desse
filósofo grego, eu empregarei aqui neste meu trabalho uma visão de conjunto que não diferencia estas duas práticas, por isso se
mostra funcional para os fins deste artigo. Há apenas um momento de sua obra em que Platão diferenciou a Técnica de
Contradição da Erística, identificando-as em todas as outras referências, como se fossem uma única coisa. Nesse sentido, recuso a
posição de George Kerferd, por me parecer muito tênue a concessão que o comentador faz ao restringir esta identificação, como se
ela de fato não refletisse uma coincidência conceitual na maioria esmagadora de suas ocorrências. Entendo que a única exceção a
esta identificação é feita por Platão na obra Sofista, no trecho 225a-e, onde ele mostra que, na verdade, a Erística é uma parte ou
subtipo da antilógica – na verdade, a principal parte, aquela que mais lhe interessa. Kerferd não faz referência a este trecho do
Sofista. Cf. KERFERD, 2003, p. 109.
15
Para monstros, há o exemplo da medusa em HOMERO, Odisseia XI, 633-635. Para a figura de Sócrates, veja-se PLATÃO, Banquete
193e4-5; o sofista Górgias também é dito “terrível” nesta mesma obra (198c3-4). Para a figura de Parmênides, veja-se PLATÃO,
Teeteto 183e5-6, que é uma citação de HOMERO, Ilíada III, 172.
14
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de regozijo ou prazer que se tem neste uso “bélico” do discurso. Tais novas características serão
comentadas logo mais, onde será mais oportuno. Avancemos.
Um trecho de maior adjetivação a Técnica da Contradição encontrará no diálogo República. O
momento da discussão em que isso acontece é precisamente quando se está a falar, nessa obra, sobre a
educação dos filósofos e sobre os elementos de devida ou indevida presença na formação deles. Isto é,
àquilo que se deve dar acesso e a que não se deve dar:
SÓCRATES. Ora, então não será sensato, e muito, não deixar estes homens enquanto
novos tomarem gosto pela argumentação nos discursos? Pois presumo que não passe
desapercebido que os rapazes novos, quando primeiro sentem o gosto da argumentação,
usam-na como se fosse um brinquedo. Estes jovens utilizam sempre a argumentação para
a contradição, e, imitando os refutadores, vão eles mesmos refutar outros, alegrando-se
como filhotinhos de cachorro, sempre a rasgar e dilacerar nos discursos quem estiver
próximo.
GLAUCO. É assustador como se alegram com isso.
SÓCRATES. E, quando já refutaram muita gente, e foram também refutados por muita
gente, veem-se então na situação dura de não acreditar em nada do que antes
acreditavam. A partir disso, as outras pessoas indispõem-se com eles e com tudo o que
tange à filosofia.
GLAUCO. Nada mais verdadeiro.
SÓCRATES. Mas o contrário acontece com um homem mais maduro, posto que este não
desejará participar desta loucura. Este homem agirá como quem quer dialogar e quer
buscar a verdade, de modo oposto àquele que com seu brinquedo se alegrava, brincando
e contradizendo. E um indivíduo assim mais velho será mais comedido e fará a sua
ocupação mais honrada que desonrada. (PLATÃO. República VII, 539 b1-d1)
Neste longo trecho, vemos enumerados vários dados acerca da Antilógica. De início, chamo atenção
para a apresentação da mesma contraposição, que víamos ser feita na obra Parmênides: de um lado, a
honra e a maturidade associadas ao dialogar e à filosofia; do outro, o espírito mais novo, tomado pelo
gosto da batalha verbal e da vitória, associado à refutação e à Técnica da Contradição. Sobre essa última
prática, é interessante notar que, como bem apontou George Kerferd16, ela é costumeiramente descrita por
Platão como algo em que se “adentra sem querer”, isto é, um tipo de uso do discurso no qual corremos o
risco de praticar, muitas vezes, involuntariamente. A confirmação desta ideia está presente, na passagem
citada acima, na figura do nítido poder de sedução desta prática, que vitima sobretudo os jovens. É dito
que eles, em sua inexperiência e frivolidade, encontram-se, quando primeiro 'tocam' a argumentação nos
discursos, em grave risco de tomarem um gosto desmedido por ela, e de, assim seduzidos, debandarem
para a Antilógica17. E isso se confirmaria no fato de estes jovens, alegres com o poder dos argumentos nos
discursos, abrirem mão da seriedade e passarem a utilizá-los como jogos ou brinquedos. Por isso, dentre
duas teses opostas, qualquer uma parece-lhes ser defensível: a argumentação e o uso do discurso são
16
17
KERFERD, 2003, p. 110-111.
PLATÃO. República VII 539a8-b3.
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apenas jogos para estes jovens alcançarem a vitória. Como podemos perceber, isto que modernamente
chamamos de “idade mental”18 (por falta de termo melhor), tinha para Platão um papel fulcral no caminho
que o seu educando seguiria na sua formação – e, nisto, leia-se: a direção da filosofia ou a direção não
filosófica. Por isso, é dito que o homem de espírito mais maduro, no contato com os argumentos, tenderá
sempre a imitar os praticantes do diálogo, isto é, aqueles que buscam a verdade: para este autor grego 19,
estes seriam os verdadeiros filósofos. Já os outros, identificados como espíritos mais jovens, facilmente
seduzíveis pelo “gosto” da argumentação, tenderão a alegrar-se em sempre usá-la como brinquedo para a
todo custo contradizer aqueles que conversam com eles20.
O núcleo desta brincadeira ou jogo argumentativo, conforme se leu no trecho, é a “refutação”. Os
jovens, como que entorpecidos pelo calor dos argumentos, perder-se-iam numa prática definida no texto
como “loucura”, a saber: refutar a quem quer que seja, bem como ser refutado. Nestas suas insanas
disputas argumentativas, estas pessoas alegrar-se-iam como cachorrinhos, dilacerando nos argumentos a
todas as pessoas e a todas as teses levantadas, sejam elas verdadeiras ou falsas. A preocupação não é qual
a tese ou posição é a verdadeira ou a melhor, mas sim qual a mais conveniente de acordo com cada
circunstância do debate21. Portanto, nesse quadro da Antilógica da República, mais vivo do que os
anteriores, Platão acrescenta ainda mais três características essenciais a esta prática: 9) a refutação; 10) a
violência; 11) a alegria. Sobre a primeira, ela constitui o ponto de intersecção entre a Técnica da
Contradição e a Filosofia22. Esse ponto em comum, todavia, não implica que ambas as práticas discursivas
possam ser identificadas, haja vista Platão não considerar a refutação exclusividade da sua própria
prática23. Sobre as duas últimas características, elas constituem sem dúvida um ponto de delimitação entre
as duas atividades discursivas. Antes de eu explorar um pouco mais este limite, recapitulemos as principais
características levantadas da Antilógica até então:
1) é uma técnica discursiva associada a Zenão de Eleia;
18
Utilizo aqui o termo “idade mental” em vez de “faixa etária” porque temos, tanto na obra Sofista quanto na Eutidemo, a
referência a homens velhos com intelecto imaturo, semelhante a este tipo de jovens. Pelo testemunho do diálogo Fedro, já citado,
Zenão de Eleia parece ser considerado um desses homens que exerceu a Antilógica mesmo já em idade madura – embora, como
vimos, ele próprio tenha alegado, no Parmênides, que escreveu parte de seus argumentos quando era jovem. Cf. PLATÃO, Sofista
251a-b; Eutidemo 272b-c; Parmênides 128d; Fedro 261c-e.
19
PLATÃO. República VII 539c5-7.
20
PLATÃO. República VII 539c7-8.
21
Característica desta técnica também aludida no Eutidemo. Cf. PLATÃO, Eutidemo 272a-b; 275e.
22
Não parece ser discutível que a refutação seja parte constitutiva da prática filosófica platônica, nos termos em que ela é
apresentada em suas obras. Além do irrefreável espírito refutatório que o personagem Sócrates apresenta em todos os ditos
diálogos de juventude de Platão, fato que ajudou a cunhar a expressão “refutaçãosocrática”, todo leitor do diálogo Sofista se
lembrará de duas passagens clássicas do diálogo sobre esta questão: 1) na primeira, Sócrates diz que o Estrangeiro seria um
“refutador divino”, e que, combatendo a desmedida e guardando a justiça, é um “filósofo de verdade” (PLATÃO, Sofista 216 a4;
b6); e, 2) na segunda passagem, a atividade filosófica, na figura da 6ª. Definição, tem como núcleo de sua prática não outra coisa
que a própria “refutação” (PLATÃO, Sofista 226d-231a). Cf. também o estudo SILVA, 2005, p. 47-56.
23
Essa não exclusividade está patente em pelo menos duas passagens platônicas: 1) no trecho da obra Sofista citado na nota
anterior (216b), onde a palavra “refutador”, por um lado, é empregada na discussão do diálogo tendo-se em vista um filósofo, e,
por outro lado, o personagem Teodoro, ao ouvi-la, associa-a à Antilógica ou Erística. A outra passagem também já foi citada por
mim: trata-se de República VII 539 b1-d1, onde Platão afirma que o âmago da Antilógica é também o discurso, e, mais
especificamente, no que tange a ele, a prática da refutação.
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2) estava ligada à concepção de juventude, ou, mais especificamente, à de imaturidade e
inexperiência;
3) apresenta um certo espírito de batalha e vitória no uso do discurso;
4) é um tipo de uso do discurso que tem menos valor (quando comparado à filosofia);
5) é uma técnica do engano, que seria capaz de fazer uma tese aparecer tanto verdadeira quanto
falsa às mesmas pessoas, pautada pelo interesse de quem faz o discurso;
6) é uma técnica de abrangência universal sobre o discurso: poderia gerar argumentos sobre
qualquer assunto;
7) suas discussões giram sobretudo em torno às próprias palavras;
8) seus praticantes sentem um grande regozijo ou prazer no exercício dessa atividade;
9) a principal ferramenta utilizada é a refutação da tese a que se opõe, seja qual tese for; a refutação
e a vitória sobre o adversário acaba, então, sendo também o objetivo;
10) aplica a refutação sem comedimento e com frequência de modo violento;
11) tal violência traz a mais insana alegria aos seus praticantes.
4. Antilógica e Filosofia: ânimos, práticas e objetivos
Em alguns momentos ele [sc. Henry Miller] pode dizer as coisas
mais delicadas e profundas. Mas esta sua ternura é traiçoeira
porque quando ele senta para escrever, ele rejeita isso; ele não
escreve com amor mas com raiva, ele escreve para atacar, para
ridicularizar, para destruir. Ele sempre está contra alguma coisa. A
raiva o incita; é-lhe um combustível. A raiva me envenena.
Anaïs Nin
Como eu dizia, chamavam atenção, na passagem que fora citada, duas notórias nuances que a
refutação adquire na Antilógica, ausentes na filosofia: a alegria e a violência. Nas obras platônicas, o
filósofo é apresentado como aquele que quer dialogar (República VII 539b-c), que injeta nos debates toda
uma atmosfera de amizade (Teeteto 167e); até quando repreende e refuta alguém, é dito que ele o faz com
ternura, pois no fundo quer educar a pessoa (Sofista 230d). Já os praticantes da Técnica da Contradição são
apresentados como empenhados com todas as suas forças em vencer, ‘abater’ e ‘dilacerar’ na
argumentação a outra pessoa. O grau de violência sugerido pela ideia de um animal rasgando a carne do
outro (República VII 539b6), bem como certas passagens de batalha verbal contidas na obra Eutidemo24,
permite-nos dizer que Platão bem poderia ter inventado para os antilógicos o termo “delinquentes juvenis
no âmbito do discurso”, pois parece ser exatamente isso que ele tem em mente a respeito destas pessoas.
A noção de delinquência é reforçada quando se atenta para o que esse rapazes sentem durante a execução
24
Cf. PLATÃO. Eutidemo277c-d; 294d; 295d; 303a; República VII 539c2-3
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de suas violentas lutas discursivas: regozijo e prazer, associados à mais vívida alegria25. Vemos assim uma
alusão à combinação de juventude, violência, prazer e alegria, que talvez fosse comparável – não pelas
pessoas e ações em que aparece, mas pela intensidade - ao retrato desta combinação pintado por Stanley
Kubrick, em seu clássico A clockwork orange (1971).
Estas últimas características desta prática discursiva são realmente aspectos importantes da
caracterização feita por Platão. Isto porque as ideias de violência, alegria e brincadeira aparecem em
praticamente todas as suas referências à Antilógica. Se a obra Fedro apresentava-a como a técnica de, sob
quaisquer condições, argumentar em nome de teses ou posições contrárias, os diálogos República e o
Teeteto estabelecem assim o animus que atravessa esta argumentação. É fato que já havia sido antecipado,
na passagem 164c do diálogo Teeteto (citada acima), que o indivíduo antilógico regojizava-se com a força
da argumentação em seus discursos. Agora, foi visto que o texto da República foi ainda mais longe, dizendo
que os argumentos são os brinquedos desse homem, e que ele joga violentamente com eles, sentindo nisso
um prazer e uma alegria assustadores. Este quadro, aos olhos do filosófico homem mais velho, é a mais
reprovável loucura florescendo numa juventude imatura.
A contraposição entre a infantilidade, frivolidade e violência da antilógica, com a maturidade,
seriedade26 e serenidade da filosofia ficará ainda mais cristalina num outro trecho do diálogo Teeteto:
[...] E tu, não sejas injusto no método de fazer perguntas e respostas. Pois seria muito
contrassenso alguém que diz importar-se com o agir corretamente passar a sua vida
sempre cometendo injustiças na argumentação. Se é injusto, nestas coisas, quando
alguém não se estabelece uma fronteira bem definida entre uma coisa e a outra. Pois o
diálogo genuinamente filosófico é coisa diferente das dilacerações da disputa verbal. Esta
se dá através do brincar e abater o quanto for possível; aquele, é antes a ocupação séria
do dialogar, que corrige o interlocutor apenas por mostrar-lhe os seus erros. [...] Se tu
fizeres o contrário *…+ do que estou te dizendo, resultará *...+ que estes que te
acompanham em vez de amantes da sabedoria [sc.: filósofos], tornar-se-ão, quando se
tornarem mais velhos, detestadores destas coisas. Assim, se tu deres ouvido a mim, terás
junto de ti não a hostilidade e a combatividade de que falei, porém o espírito amistoso da
filosofia, para analisar de modo verdadeiro os discursos [...]. (PLATÃO. Teeteto 167e1168b4)
A preocupação de Platão, como fica nítido em várias das passagens citadas, é sobretudo esta:
delimitar as fronteiras entre a filosofia e a violenta prática que, se aninhando em sua vizinhança, como que
tenta seduzir seus jovens estudantes: a Técnica da Contradição. Enquanto a primeira, sendo a ocupação
séria do dialogar, apresenta o espírito amistoso necessário para o alcance da verdade, corrigindo os erros
do interlocutor sem humilhá-lo, porque aspira à sua melhoria, a segunda é constituída das dilacerações das
lutas verbais, da alegria em brincar e abater ao máximo, mediante um espírito bélico e hostil que lhe é tão
característico. Todo o diálogo platônico Eutidemo é uma mostra desse tipo de prática. Uma das
25
26
Para exemplos, veja-se PLATÃO. Eutidemo 275e; 276c;d; 278b-e; 283b; 300d; 303b.
Cf. PLATÃO, Eutidemo 288b-d; 293a.
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consequências deste “ânimo” gladiador dos antilógicos, o texto ainda informa, é arrebatar a indisposição e
o ódio das outras pessoas “para com eles e para com tudo o que tange à filosofia”27.
Aqui, um pequeno parêntese é oportuno: por que a indisposição provocada pela Técnica da
Contradição não recai apenas sobre ela, mas também sobre a filosofia? Por que a filosofia é também
execrada nesse quadro formado? O motivo é algo já mencionado algumas vezes por mim linhas acima: a
confusão corrente na época entre as duas práticas28. Conforme vimos, tanto a Filosofia quanto a Antilógica
são práticas discursivas que têm como núcleo a refutação. Todavia, já foram aqui traçadas algumas
diferenças nesse quesito, que podem ser resumidas em três aspectos: a) a dose de refutação que elas
administram sobre o interlocutor numa discussão, b) o fim visado com isso e c) o estado de espírito que as
guiam. A filosofia o faz comedidamente, porque visa a melhoria do interlocutor e o alcance da verdade, e
seu tom é sério - mesmo porque reconhece a dificuldade real que os objetos de seu estudo representam. A
Técnica da Contradição aplica a refutação de modo completamente desmedido, “irracional” (Teeteto
167e2) ou “louco” (República, VII 539c6), sempre em tom de alegria e brincadeira, visando tão somente a
vitória e o abatimento do adversário; refutar por refutar.
5. Considerações Finais: os fundamentos de Antilógica e Filosofia
Até o presente momento, vimos a separação que Platão operou entre as duas práticas, tanto no
âmbito das ações quanto na do aspecto ‘psicológico’ delas, demarcando fronteiras bem definidas.
Entretanto, o estudo das obras platônicas como um todo –o chamado corpus platonicum –nos mostra que
as diferenças entre práticas discursivas sociais de sua época revelavam sim diferenças de visão de mundo,
de realidade. Isto é, os aspectos operacionais destas práticas, os quais víamos até então no presente artigo,
distinguem-se porque partem de pressupostos filosóficos distintos. A primeira pista sobre isso foi dada na
obra Teeteto, no trecho 164c7-9. Nesse trecho foi afirmado que as discussões dos homens antilógicos de
alguma maneira giravam em torno de consensos sobre palavras, detalhe ao qual eu não me ative no
momento da citação do trecho. A mesma ideia, entretanto, retornará no diálogo República, apontando
para onde devemos chegar:
[SÓCRATES] Que especial que é, Glauco, o poder da Técnica da Contradição!
[GLAUCO] Como assim?
[SÓCRATES] É que, segundo me parece, ela é capaz de fazer muitas pessoas enveredarem
por ela sem querer! Pois, ocorre que, por vezes, as pessoas, estando de fato numa luta
verbal, presumem que não estão – mas pensam que estão dialogando e fazendo filosofia!
Pois dialogar filosoficamente é ser capaz de analisar o conteúdo do discurso segundo as
Ideias; ao passo que a luta verbal da Antilógica é, baseando-se apenas nas palavras,
27
PLATÃO. República VII 539c2-3
Por isso, na obra Eutidemo, chama-se até a erística de filosofia (305b). Tal confusão também é perceptível em um já aludido
trecho do Sofista, no qual o personagem Sócrates usa o termo “refutador”, tendo em mente um filósofo, e Teodoro, ao ouvi-lo,
pensa na Antilógica ou Erística. Cf. PLATÃO, Sofista 216b-c.
28
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procurar contradições nos discursos, sem achar que é necessário um genuíno diálogo
filosófico entre as pessoas. (PLATÃO. República V, 454a1-9)
Agora, a contraposição entre a Filosofia e a Técnica da Contradição ganha uma nuance diferente, e,
certamente, do ponto de vista do pensamento platônico, bem mais radical que as anteriores. Ao esmiuçar
os métodos empregados por cada uma das práticas, Platão nesta passagem aponta para os fundamentos
filosóficos que as movem. O homem antilógico é aquele que, com base apenas nas palavras, brincando com
sintaxe e semântica, persegue e cria contrariedades no discurso. O filósofo, por seu turno, é aquele que se
demora na análise do discurso, determinando e avaliando o conteúdo dele com base sobretudo na relação
entre as Ideias. De um lado, a perseguição das contrariedades e diferenças a respeito apenas das palavras e
suas inter-relações – como tão vigorosamente apresentado no diálogo Eutidemo29. Do outro, a análise
minuciosa das implicâncias e contrariedades no que tange às próprias Ideias referidas pelas palavras. E aqui
está a chave para enxergar a separação, na raiz, entre estas duas práticas discursivas. Para a Filosofia, as
consonâncias e contrariedades entre as palavras remetem a relações e oposições entre as Ideias que estão
implicadas pelo discurso. Para a Antilógica, esse salto do âmbito da mera manifestação discursiva para o
referencial inteligível não existe; ou, se existe, não obedece às relações intrínsecas a este conteúdo
inteligível. Platão parece entender que a preocupação da Técnica da Contradição restringe-se a jogos de
oposições entre as palavras; pois os princípios filosóficos que lhe servem de subsídio não permitem uma
investida, da parte do debatedor antilógico, para algo além disso30. Nesse sentido também é que foi dito
aqui que há um descompromisso com a verdade na Antilógica, que lhe permite argumentar no sentido
tanto de defender quanto de refutar teses absolutamente opostas. Este descompromisso, de fato, é
absoluto, é radical: verdade e falsidade dizem respeito ao conteúdo do discurso e suas inter-relações com a
realidade. Inter-relações estas nas quais a Técnica de Contradição não está interessada e nem poderia
estar: pois, se moldasse seu discurso com base nelas, impossível seria a esta técnica defender teses
contrárias. Já na filosofia, a discussão sobre as relações e oposições entre as palavras no discurso parte daí
para elevar-se ao nível daquilo a que o discurso se refere. Ela não se atém assim apenas à mera oposição e
articulação entre os termos, mas principalmente às próprias relações entre a realidade e os entes
inteligíveis referidos pelos termos: as Ideias. Na obra platônica, a apresentação deste plus de capacidade da
filosofia aparece de modo claro no diálogo Sofista, onde a dialética é definida – de três modos diferentes! –
exatamente como a arte que detém o conhecimento das oposições e articulações entre estes entes
inteligíveis (253b-e). Outra apresentação desta superioridade da filosofia sobre a Técnica de Contradição
29
Por exemplo: PLATÃO, Eutidemo277e.
Como o que importa aos antilógicos é a vitória da argumentação de seus discursos sobre aqueles do adversário, eles na verdade
não estão fundamentalmente presos a nenhum princípio filosófico em especial. Eles podem até mesmo se valer, de acordo com o
momento da batalha verbal, de inspirações filosóficas aparentemente díspares... É possível ver, por um lado, que o efeito de
surpresa e humor de seus discursos advém muitas vezes de eles abusarem da multiplicidade de sentidos para uma mesma palavra.
Por outro, não é difícil ver eles também se valerem, quando lhes convém, de princípios filosóficos de inspiração eleata,
identificando a palavra com a coisa, de modo a que todo discurso fosse verdadeiro - porque seria impossível não dizer o que a
coisa é. Cf. PLATÃO, Eutidemo 278b-c; 283d;285a; 285e-286c; 305a.
30
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está retratada no diálogo Parmênides, onde a Teoria das Ideias platônica é apresentada justamente para
resolver os problemas que a obra antilógica de Zenão levantava mas não tinha como resolver. O que Platão
parece ter em mente é que a Antilógica não tinha como resolvê-los porque estava com o foco do olhar
preso apenas a artimanhas com as palavras e ao gracejo infantil de apresentá-las em assertivas absurdas.
Fato este bem ilustrado de tão cômica maneira31 em várias passagens do Eutidemo, como a que se segue:
[DIONISIDORO] [...] Dize-me, tu tens um cão?
[CTEUSIPO] Tenho, e um cão bem mau [...].
[DIONISIDORO] De qualquer forma, ele tem filhotinhos?
*CTEUSIPO+ Sim, *…+ maus também, como ele, e muito.
[DIONISIDORO] Então, o pai deles é este cão, não é?
[CTEUSIPO] Com certeza; pois eu mesmo vi-o cruzando com a cadela.
[DIONISIDORO] E então, diga-me, ainda: o cão não é teu?
[CTEUSIPO] Claro [...].
[DIONISIDORO] Então, veja só! Sendo pai, ele é teu, de modo que o cão vem a ser teu pai,
e tu, por isso, vem a ser irmão dos cachorrinhos.” (PLATÃO, Eutidemo 298d7-e5)
Faltava à Antilógica um olhar que, ultrapassando as meras palavras, conseguisse 'enxergar' o
verdadeiro aspecto do discurso, aquilo a que no fundo ele se refere: a rede de relações entre as Ideias,
segundo a qual “verdade” e “falsidade” referem-se a como Ideias podem ou não serem conectadas num
discurso (Sofista 259e5-6). Uma atenção à possibilidade ou impossibilidade destas conexões é que
impediria conclusões absurdas como esta citada acima. Nessa brincadeira ou jogo verbal do “caso” do
cachorro, a Técnica de Contradição manipulou e misturou as palavras “teu” e “pai”, mostrando, no
discurso, uma associação entre as duas ideias implicadas por estes termos. Duas ideias que, no caso do
cachorro e seu dono, não apresentam nenhuma relação entre si: “paternidade” e “pertença/propriedade”.
Na manipulação antilógica dos discursos, o descompromisso com a verdade e a adesão a qualquer
tese de acordo com a conveniência, revelam portanto uma ignorância, ou não respeito, à existência de
relações não-manipuláveis entre as Ideias referidas. E é precisamente disso que, para Platão, a filosofia não
pode desviar sua atenção. Por isso, em sua obra Parmênides, é-nos possível ver a afirmação de que, quando
mais velho e mais treinado nos argumentos e discursos, o filósofo é capaz de resolver problemas que
Técnica da Contradição levanta mas que não tem como resolver32. Isto é, o filósofo, amante da sabedoria,
31
Nas brincadeiras no uso do discurso, várias são as interpretações dos inegáveis recursos cômicos empregados por Platão na obra
Eutidemo. Dentre elas, podemos destacar a de Carmen Paes, que, com perspicácia, conecta a paródia aí em jogo ao elénchos da 6a.
definição do diálogo Sofista (226b-231b). A comentadora aponta, assim, para a “refutação”, o elo comum, conforme vimos, entre
Filosofia e Antilógica, ponto de intersecção das duas práticas: “(...) sortilégios de um Platão parodiador, de um Platão-EutidemoDionisodoro, mais sedutor de que habitualmente já é; que mobiliza recursos do riso, do cômico do discurso, da exageração retórica.
São sutilezas, pistas secretas que acabam expondo ao leitor mais atento à estrutura do diálogo e não só à sua literalidade, o "sério"
do problema do silêncio, da instituição do sentido e do "lugar" de onde fala a sofística de nobre estirpe, a que se referiu o
Estrangeiro, em OSofísta”. Cf. PAES, 1997, p. 149.
32
PLATÃO, Parmênides 130e; 135a; 135d.
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possuirá justamente a capacidade de uma madura visão de conjunto das oposições e inter-relações entre
as Ideias, visão que destrincha e reunifica as várias nuances de referenciais implicados num discurso.
Talvez, essa concepção de que não se pode desviar a atenção dessas relações, e de que a noção de
verdade é mais forte do que a conveniência de um momento, não seja apenas “platônica”. Talvez, essa
concepção insista em estar presente também dentro de nós, mesmo com tantos séculos já passados. Seria
possível? Voltemos nosso olhar para a abertura deste meu texto, e para as três notícias do mundo
contemporâneo lá citadas. Lendo-as com cuidado, não podemos chegar à conclusão de que, no fundo, é
essa mesma concepção de verdade como algo mais importante que conveniência, que, ainda que não mais
chamada de “filosofia”, vige por trás das críticas recebidas por aquelas três figuras aludidas? Ou, dito de
outro modo: ainda que não tenhamos mais a pretensão de nos nomearmos como “sábios” ou “filósofos”,
como fazíamos outrora, continuamos ou não continuamos a repreender os “antilógicos” que dão as caras
pelos nossos tempos?
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Abstract: In this paper we aim to elucidate the discursive activity called “Technic of Contradiction” or “Antilogic”. This
activity was very common in the greek classical antiquity, and, in that cultural miscelaneous, people often confused it
with philosophical labour. For understanding what was this technics, and which similarities and diferences there were
between antilogical and philosophical discourse, we will make analisis and interpretation of many references to it at
greek philosopher Plato's works. In the picture of Antilogic made by him – in dialogues as Parmenide, Phaedrus,
Republic, Theaetetus and Sophist – it will arise some interesting atmosphere of argumentative battle, violence in the
discussion and immaturity of antilogic men. Plato will oppose these qualities to those of discursive ativity of
philosophy. Finally, we will pay atention to others aspects of Technic of Contradiction – aspects that seem totally alive
in our time's society.
Keywords: Plato; antilogic; eristic; philosophy; sophistry.
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Discurso, Ideologia e Relevância: um estudo
representação da Ordem Social brasileira pelo jornal
Folha de S. Paulo
Breno Wilson Leite MEDEIROS (USP)1
[email protected]
Resumo: Este artigo busca investigar, à luz da perspectiva sociocognitiva da Análise Crítica do Discurso, o jogo
discursivo em uma notícia impressa publicada pelo jornal Folha de S. Paulo (FSP) referente ao Pedido de Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental de Número 54. Este processo estabeleceu uma interpretação válida para
todos os membros da administração pública direta e indireta no território brasileira. Se uma gestante de feto sem
cérebro decidisse interromper a gravidez, tratar-se-ia de um crime de “aborto” ou de uma “medida terapêutica”? A
metodologia desta pesquisa é proposta por Van Dijk (2013). A investigação demonstrou que comentários e ações de
membros Igreja Católica a respeito da atuação do STF neste processo foram considerados pela representação da
ordem social ou ideologia do jornal publicamente relevante, ou seja, tópico de uma notícia. Linguisticamente, o autor
da notícia promoveu uma recategorização lexical explícita dos agentes envolvidos no contexto da anencefalia jogando,
de um lado, com os termos “gestante” e “mãe”, do outro, “feto” e “filho”. Essa recategorização alterou sutilmente o
conhecimento do leitor com relação à lide no contexto jurídico, sem levar em consideração nas condições de
produção a instância do Supremo Tribunal Federal no cenário político brasileiro.
Palavras-chave: análise crítica do discurso; teoria do contexto; ideologia; referenciação; Supremo Tribunal Federal.
“And death shall be no more; death, thou shalt die”
John Donne
1. Introdução
No dia 10/07/2004, o jornal Folha de S. Paulo (FSP) publicou em sua versão impressa uma notícia na
seção Justiça com a manchete seguinte: “Para bispo, dor da mãe não justifica aborto”.
A partir da perspectiva da Análise Crítica do Discurso (ACD), a qual entende que compete aos
analistas do discurso desvelar as estratégias discursivas de manutenção das desigualdades sociais, em
especial aquelas focadas no controle das mentes dos membros de grupos minoritários, decidimos analisar o
objeto-do-discurso, bem como o volume de conhecimento jurídico considerado de fundo-comum evocado
pela notícia, em especial a posição do Supremo Tribunal Federal(STF) no cenário político brasileiro.
Nesse contexto, a notícia será analisada através da descrição estrutural do gênero noticioso (1988) e
da teoria do contexto (1998,2008) propostos por Van Dijk articulando-se com o ponto-de-vista
historiográfico de Costa (2006) a respeito do STF e a perspectiva de Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995)
sobre a Referenciação.
1
Aluno de mestrado do programa de Pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa, Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas, FFLCH, Universidade de São Paulo.
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2. Hipótese
A hipótese é a de que as diferenças de valor aspectual das palavras existentes no bouquet do campo
semântico da reprodução da espécie humana, ou seja, os diferentes valores do uso das palavras “mulher”,
“gestante” e “mãe” foram intencionalmente manipulados pelo editor a fim de marcar a posição do jornal
com relação ao tema através de um contraste com o discurso da Igreja Católica. Essa recategorização
lexical explicita, nomeada como “aspectualização” por Reichler-Béguelin, cria dois objetos-do-discurso na
notícia criando uma dissonância cognitiva no leitor.
3. Procedimentos metodológicos
A metodologia desta pesquisa é análise de conteúdo na versão proposta por Van Dijk em Análise
Crítica do Discurso: um apelo em favor da diversidade(VAN DIJK, 2013[2001]). Esta metodologia filia-se à
tradição do discurso como um objeto tridimensional, a qual tem origem em Aristóteles.
Os três elementos presentes no triângulo proposto por Van Dijk são o Discurso ou a língua em uso, a
Cognição e a Sociedade. Ele parte do consenso entre alguns linguistas do texto de que os gêneros do
discurso são os contextos. A sua proposta para este conceito é a de que eles são modelos mentais
especializados nos parâmetros superestruturais, macroestruturais e microestruturas de instanciação do
discurso, ou seja, da produção e interpretação do texto. Além disso, para ele, a cognição é a interface
necessária para se estabelecer qualquer relação entre o discurso e a sociedade, porque tais relações, desde
o nível global (histórico, social, grupal, etc.) até o nível interpessoal (ou contexto situacional) não ocorrem
de forma direta ou linear.
Na instância do texto, a sua análise do conteúdo é realizada em dois níveis. No nível pragmático ou
macroestrutural, o modelo (mental) de contexto é responsáveis pelos atos de fala, estratégias de polidez,
variações lexical e sintática, figuras retóricas, entonação, grau de formalidade, ou seja, todas as possíveis
variações discursivas indexadoras do contexto. A análise da macroestrutura revela o objeto do discurso
através da inferenciação de proposições que resumem o conteúdo de cada episódio do gênero do discurso
em uso. A microestrutura, por sua vez, é controlada por um modelo mental específico, o modelo de evento,
o qual é responsável pela movimentação tópico na linearidade textual. No final da análise do texto, tem-se,
de um lado, a ideia claramente expressa por uma proposição inferida da forma profunda e o “fio” lexical
depreendido da superfície textual. Todos esses elementos constituem o objeto-do-discurso.
Essa análise do conteúdo do discurso através do texto permite a interpretação de significados
implícitos ou indiretos, pressuposições, alusões, vagueza e a observação da construção do objeto-dodiscurso a partir da seleção lexical, passando-se pelo tópico até o nível do enunciado. Além disso, é possível
observar as estratégias sociossemióticas de apresentação positiva da face de si e negativa da face do outro,
a repetição (ou a estratégia de “martelar na cabeça” uma ideia), dentre outras estratégias. Elas são as
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responsáveis pela manutenção ou alteração das crenças dos sujeitos do discurso, ou seja, são as
responsáveis pela alteração do seu conhecimento de mundo mediante a utilização de modelos mentais, os
quais são a interface entre o social e o individual.
4. O acontecimento jurídico: o Pedido de Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental de Número 54.
Em um documento disponível no site do Ministério Público Federal2, de autoria de Luís Roberto
Barroso, recém-empossado ministro do Supremo Tribunal Federal, tem-se uma descrição dos bastidores do
Pedido de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de número 54 (ADPF 54). Em março de
2004, compareceram ao seu escritório de advocacia à época, Luís Roberto Barroso e Associados, as
doutoras Débora Diniz, antropóloga e diretora da ONG ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e
Gênero), Dafne Horovitz, médica e geneticista do Instituto Fernandes Figueira (centro de referência
materno-infantil da Fiocruz) e o Procurador da República Dr. Daniel Sarmento.
O objetivo comum desses cidadãos era o de estabelecer interpretação única para o contexto da
anencefalia dentro da esfera jurídica brasileira. A existência de interpretações distintas a respeito da
questão tornou-se insustentável depois do caso de Gabriela de Oliveira Cordeiro.
O feto de Gabriela foi diagnosticado como anencefálico. Em 06 de novembro de 2003, através da
Defensora Pública do RJ, ela e seu marido solicitaram ao Juiz do Fórum da Comarca de Teresópolis-RJ, Dr.
Paulo Rudolfo Tostes, alvará autorizando-a a submeter-se ao procedimento médico e à equipe de
profissionais a efetuar a interrupção terapêutica da gestação. O juiz da comarca de Teresópolis negou o
pedido de Gabriela e seu marido.
A necessidade de solicitar autorização judicial devia-se ao fato de que o Código Penal Brasileiro3
prevê a antecipação terapêutica do parto ou interrupção da gestação em duas situações. Em caso de
gravidez resultante de estupro (o chamado aborto sentimental) e em caso de risco de vida da gestante (a
medida terapêutica). Alguns membros do Ministério Público já haviam processado gestantes e profissionais
da área da saúde que efetuaram o procedimento de interrupção terapêutica no caso de anencefalia a partir
da interpretação de que a anencefalia não era se encaixava na exceção prevista pelo diploma penal. Diante
da resposta negativa do juiz da primeira instância, Gabriela levou o seu caso ao Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro.
2
http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/direitos-sexuais-ereprodutivos/aborto/conheca_bastidores_discussao_anencefalia_luis_roberto_barroso.pdf
3
De acordo com o Decreto Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, Código Penal Brasileiro, na Parte Especial, Título I, Capítulo I,
lê-se no artigo 124 que a gestante que induzir seu organismo ao aborto ou que lhe permita que outrem o efetue receberá pena de
detenção de 1 a 3 anos e o artigo 126 pune o terceiro que com consentimento da gestante efetuar o aborto com pena reclusão de
1 a 4 anos de prisão. O artigo 128 afirma que não se pode punir o aborto efetuado por médico em caso de I – risco de vida da
gestante e II – se a gestação é resultado de um estupro e a gestante consentiu com a sua interrupção.
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A Desembargadora Gizelda Leitão Teixeira emitiu liminar autorizando o procedimento e Gabriela deu
entrada no hospital. Porém, no dia seguinte, o Presidente do Tribunal, José Murta Ribeiro, cassou a decisão
dela. O caso prosseguiu, então, sendo encaminhado para o Superior Tribunal de Justiça. Nesse momento,
entrou na questão o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, presidente do movimento Pró-vida da Igreja Católica.
Ele entrou com um pedido de habeas corpus junto àquele tribunal em favor da “vida” do feto de Gabriela.
O caso ressoou no Supremo Tribunal Federal através do habeas-corpus de número 84.025-6/RJ. O
Ministro Joaquim Barbosa assumiu a relatoria do caso e chegou a elaborar voto favorável ao pedido de
Gabriela. Infelizmente, porém, devido às decisões conflitantes e ao tempo que a questão tomou até
chegar-se à instância do STF, Gabriela deu a luz; e, sete minutos depois, a sua filha Maria Vida faleceu. Essa
situação expôs negativamente a face de todo o Judiciário brasileiro.
Nesse contexto, uma movimentação social por parte daqueles cidadãos em propor a ADPF 54 e do
STF em considerá-la relevante buscou encerrar as disputas ideológicas sobre esse assunto dentro do
Judiciário. Tal mudança não foi, contudo, resultado de uma evolução da sociedade brasileira a respeito da
questão do aborto em particular e do direito de se poder dispor do próprio corpo em geral, mas (bem de
acordo com a visão de Gramsci com relação à ideologia) pela exposição pública das contradições internas
de um dos três poderes fundamentais da República brasileira.
Portanto, o engajamento desses cidadãos e do próprio STF foi no sentido de obter uma decisão
superior, válida em todo o território nacional, de tal forma que qualquer gestante que recebesse o
diagnóstico de anencefalia do seu feto e que decidisse por interromper a sua gestação estaria amparada
legalmente e não passaria pela mesma experiência vivida por Gabriela. Na sua argumentação, o advogado e
atual Ministro do STF afirmou que, historicamente, a comunidade médica era quem estabelecia os critérios
referentes ao risco de vida da mãe. Por isso, o caso de Gabriela havia exposto, publicamente, uma
contradição de interpretação de princípios constitucionais basais tais como o do direito à vida e da direito à
dignidade da pessoa humana (dentre outros) entre os membros de todos os níveis do Judiciário brasileiro.
A ADPF 54 foi protocolad no 17/06/2004 em nome da Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Área da Saúde. Em 23/06/2004 a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) pediu vistas dos autos
por 5 dias e a sua participação como Amicus Curiae no processo. Em 25/06/2004, o pedido da CNBB foi
negado pelo Ministro-relator Marco Aurélio Mello. No mesmo dia, a CNBB repetiu o pedido. No dia
01/07/2004 o Ministro-relator emitiu decisão liminar monocrática autorizando o aborto de fetos
anencefálicos em todo o território nacional. Esta decisão foi referendada pelo Plenário (embora
posteriormente membros do Plenário do STF tenham tentado desconhecer até mesmo o processo, bem
como a liminar) e mantida até o encerramento do processo em 2012. No dia 06/07/2004 a CNBB pediu
novamente a participação no julgamento como parte interessada. No dia 10/07/2004, a notícia que será
analisada neste artigo foi publicada no jornal FSP.
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5. Embasamento teórico
5.1 O STF: a “caixa-de-ressonância”
Segundo (Costa, 2006), a ideia de se criar no Brasil uma Corte Suprema tendo como modelo a
Suprema Corte dos Estados Unidos da América já existia entre os membros da elite do Império. Antes
mesmo da conspiração republicana de 1889, causada pela dissonância da superestrutura do Império em
relação à nova estrutura social, já se fazia necessário a criação de uma instituição que decidisse em última
instância lides de ordem pública e privada. Essa função era desempenhada pela figura do Imperador e pelo
Conselho de Estado. Com o desmoronamento do Império e o desaparecimento da figura do imperador,
este vácuo foi preenchido pelo STF.
O decreto de número 510, de 22 de Junho de 1890, estabeleceu a constituição provisória da
República dos Estados Unidos do Brasil e dispôs os termos a respeito da criação, composição e das
competências do STF. A primeira constituição republicana, de 1891, confirmou-as na íntegra. Assim, desde
o início da República, o STF teve e tem como funções primordiais decidir da constitucionalidade dos atos
dos demais poderes, julgar os litígios entre Estados e a União, e defender, em última instância, os direitos
dos cidadãos. Em outros momentos, seus poderes foram aumentados, ora diminuídos. Durante os períodos
de exceção, ele foi simplesmente “silenciado”. Porque institucionalização do STF (bem como do modelo
republicano no Brasil) não tem sido fácil. Nas palavras da autora (2006: 23):
Em um país onde as sublevações e os golpes de estado se repetem, as constituições se
sucedem e o estado de direito tem sido várias vezes interrompido por períodos de
exceção; em um país em que o executivo, de tempos em tempos, ignora dispositivos
constitucionais, dissolve o congresso, governa por decreto, emite a torto e a direito
medidas provisórias que se perpetuam (...) prende e desterra cidadãos sem nenhum
processo (...) é de se esperar que essa Corte funcione como uma caixa de ressonância que
registra os ritmos agitados da história nacional.
Uma pergunta relevante é a relação entre a mídia e o STF dentro de um escopo histórico maior a fim
de observarmos as mudanças na visibilidade do terceiro poder pela mídia. Porque a invisibilidade do
terceiro alimenta a ignorância da população com relação às funções de uma corte suprema, ou seja, de um
espaço onde as consonâncias e dissonância sociais expandam-se através das “ondas” do discurso, e não
através da suspensão do Estado de Direito, ou de luta armada, bem como de golpes de estados.
Tal espaço existe dentro da conservadora e autoritária sociedade brasileira, e, voltando no tempo,
percebemos que a relação da população e da imprensa com o STF na primeira República era diferente em
comparação com os longos períodos de ditadura e exceção. De acordo com a narrativa historiográfica de
Costa, ela é parecida com a que tem ocorrido desde a redemocratização, ou seja, desde a reintrodução do
STF no palco político nacional:4
4
A respeito da emergência do STF no cenário político nacional pela mídia desde a redemocratização apoio-me no cuidadoso
trabalho de Fabiana Luci de Oliveira e Falcão. (Oliveira & Falcão, 2013)
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No meio desses confrontos múltiplos, o recém-criado Supremo Tribunal Federal era
chamado a se manifestar, julgando pedidos de habeas corpus. As decisões eram
examinadas pela imprensa e debatidas na Câmara. Os ministros tornavam-se alvo de
críticas, de defesas e de ataques. As sessões eram concorridas. O tribunal transformava-se
no teatro para o gozo do público que lotava as galerias e se manifestava ruidosamente a
favor e contra argumentos e decisões: vaiava, assobiava, aplaudia os discursos e os
acórdãos, apesar das reiteradas advertências do presidente, que ameaçava os
manifestantes de expulsão. (2006: 28)
5.2 A Análise Crítica do Discurso
Neste contexto, a análise de apenas uma notícia sobre a cobertura de um processo no STF pela FSP
nos fornecerá apenas um insight inicial sobre a representação da ordem social deste jornal e o lugar do STF
nesta cena. A relevância de tal estudo deve-se ao importante papel da mídia em geral na construção desta
representação social.
Segundo Van Dijk (1998), a hegemonia de certos grupos sobre outros dentro de uma sociedade
ocorre, dentre outras formas, do ponto de vista discursivo, ou seja, através do controle da informação.
Certamente, há um controle sobre o acesso aos veículos de comunicação e à determinados gêneros do
discurso. Um desses gêneros são as notícias.
As notícias veiculadas em diferentes suportes (televisivo, internet, papel impresso) são uma das
principais fontes de informação e, consequentemente, de formação das crenças e opiniões dos leitores e
são, frequentemente, utilizadas pelos atores sociais como argumento de autoridade. Se algum conteúdo foi
noticiado é porque é publicamente relevante e tem estatuto de fato.
No caso da esfera jurídica, em especial do STF após a criação da TV Justiça dentre outras mídis, o
acesso da população aos discursos dessa esfera tornou-se maior. Entretanto, o volume de conhecimento
necessário para a compreensão dos discursos proferidos pelos atores sociais deste grupo é muito alto, e a
mídia acaba por ser a principal fonte de informação a respeito dos eventos que ocorrem neste campo.
Por isso, Van Dijk defende a posição de que a Análise Crítica do Discurso não é uma linha de pesquisa
dentre outras, como, por exemplo, a Gramática Gerativo-transformacional ou a Gramática Sistêmicofuncional, nem é uma subárea da Análise do Discurso como a Psicologia Discursiva ou a Análise da
Conversação. Ela não é nem um método, tampouco uma teoria que possa ser aplicada diretamente aos
problemas sociais. Na verdade, ela pode ser aplicada em combinação com qualquer tipo de abordagem ou
subárea das ciências humanas e das ciências sociais. Mais exatamente, a ACD é uma perspectiva – crítica –
de produção do conhecimento, ou seja, ela é uma perspectiva politicamente explícita de análise do
discurso. Por isso, ela foca-se em problemas sociais através da análise de textos à luz de contextos na
produção e reprodução de formas abusivas de poder.
Seguindo esses princípios meta-teóricos, apresentaremos algumas das direções que Van Dijk segue
ao fazer ACD. Dada a sua orientação multidisciplinar, a expressão mais abrangente que ele usa para referir-
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se ao seu jeito de fazer ACD é ‘sócio-cognitiva’. Essa definição não significa que o seu pensamento a
respeito da ACD é limitado apenas aos aspectos social e cognitivo ou a uma combinação dessas duas
dimensões. Em outras palavras, qualquer que seja a outra dimensão que a ACD trate pela sua forma
específica de fazer análise do discurso, ela obviamente precisa dar conta de pelo menos alguns dos
detalhes estruturais, das estratégias e das funções do texto.
Van Dijk entende o “discurso” de forma ampla, ou seja, como “evento comunicativo”, incluindo a
interação conversacional, a modalidade escrita da língua, bem como a expressão corporal, facial,
diagramação do texto, imagens ou qualquer outra “semiose”. A “cognição” envolve tanto a pessoal,
quanto a social: as crenças, objetivos, avaliações e emoções e qualquer outra estrutura “mental” ou da
“memória”, tais como: representações ou processos, envolvidos no discurso e na interação. E “sociedade”
significa a inclusão tanto do nível local ou micro, tais como as interações interpessoais, quanto às de níveis
mais altos, como as estruturas sociais e políticas, definidas em termos variados, tais como grupos, relações
de grupos (dominância ou desigualdade), movimentos sociais, instituições, organizações, processos sociais,
sistemas políticos até as estruturas mais abstratas das sociedades e das culturas.
A combinação das dimensões cognitiva e social, porém é a definidora do contexto (nos níveis local e
global) do discurso. Porque, o fato empiricamente observável é que mesmo estando numa “mesma”
situação, as pessoas produzem sentido de forma diferente. A sua teoria do contexto busca responder
como, exatamente, as pessoas produzem sentido de forma diferente.
5.3 O gênero notícia impressa.
Em seu estudo a respeito do gênero noticia, Van Dijk (1988) propôs um esquema para o gênero
noticioso a partir da análise quantitativa e qualitativa da cobertura jornalística de um mesmo
acontecimento com repercussão mundial. Esse esquema ou superestrutura discursiva foi definido de várias
formas pela Psicologia discursiva: frames, scripts, esquemas, etc. A proposta atual de Van Dijk é a de que
um gênero do discurso, como o da notícia, é um tipo de modelo mental especializado. Ele é responsável
pelo controle do volume de informação ativada da memória para a produção, em sentido inverso, a
interpretação do discurso através do texto.
Nessa perspectiva, os gêneros dos discursos são analisáveis em episódios. Como a estrutura dos
gêneros é definida em função do uso social do discurso, cada gênero do discurso tem a sua rede de
episódios. A ativação e o preenchimento dos episódios são mais ou menos estáveis já que sabemos que as
pessoas não produzem sentido da mesma forma apesar de estarem na “mesma” situação.
As notícias, em geral, cuidam de acontecimentos passados considerados publicamente relevantes. Os
episódios desse gênero são os seguintes. A manchete deve ser uma macroproposição (com sujeito e
predicado) que resume todo o conteúdo da notícia e, geralmente, é editada em letras maiores do que as
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demais para chamar a atenção do leitor. Às vezes, a notícia contém “lead”. Trata-se de uma
macroproposição com mais informações do que a manchete. Nesse caso, ela pode conter além do(s)
sujeito(s) e predicado(s) informações como tempo, espaço, modo da ação, etc.
A próxima categoria episódica da notícia é(são) o(s) “evento(s) principal(is)”. Essa categoria organiza
todas as informações recentes a respeito do acontecimento(s) narrado. Se um evento tiver um histórico
prévio, ou seja, não for único ou inédito, uma notícia de boa qualidade apresentará um resumo histórico do
tema. Essa categoria foi nomeada por Van Dijk como “background”. Em termos cognitivos, o “background”
é importante por atualizar o modelo de evento na memória de longo prazo do leitor e, se for o caso,
atualizá-la com novas informações ou corrigir informações divulgadas erroneamente em notícias prévias. O
episódio “background” é articulado por Van Dijk em dois subitens: “circunstâncias” e “História”. O subitem
“circunstância” difere do item “história” pelo escopo temporal. Aquele limita-se temporalmente a, no
máximo, semanas. Este pode abranger anos. O subitem “circunstância”, por sua vez, divide-se em dois. O
“contexto”, que tem por escopo o período imediatamente anterior ao “acontecimento principal” e aos
“eventos prévios”, que não são tão próximos temporalmente, ou seja, limitam-se a semanas.
Se algo aconteceu e é noticiado, esse acontecimento pode ter consequências. O episódio
“consequências”, por sua vez, divide-se em dois: um chamado “eventos/ações” e outro chamado “reações
verbais”. Normalmente, o episódio “comentário” retoma conteúdo semântico do “background”, mas não
de forma idêntica, por ocorrer uma seleção da informação tida como mais importante do “background” e
pela inserção de outras vozes, tais como a de atores sociais com algum valor de autoridade. “Evento
principal”, “background” e “consequência” são o coração do discurso noticioso.
5.4 A macroestrutura do texto: o tópico
Por razões discursivas, cognitivas e sociais, os tópicos do discurso desempenham um papel
fundamental na comunicação. Definidos como “macroestruturas semânticas” e derivadas dos significados
locais (microestruturas ou sintagmas), os tópicos representam o que o discurso “quer dizer” em termos
globais, incorporam as informações mais importantes de um discurso, e explicam a coerência geral do texto
e da fala. Eles são os significados globais que os atores sociais atualizam cognitivamente na produção e
compreensão do discurso, o “essencial”, o que será rememorado por eles. Portanto, a movimentação dos
tópicos, que é observável diretamente na seleção lexical e inferível através da depreensão de uma
proposição que condensa a informação de cada episódio do discurso, é uma das formas de análise da
ideologia.
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O objeto-do-discurso, produto da Referenciação, é um constructo altamente complexo onde a
escolha de cada palavra no código linguístico é uma prova da posição ideológica do ator na cena social. 5
Assim, os tópicos definidos a partir dos significados locais não podem ser observados diretamente, mas
inferidos ou determinados pelos atores sociais em títulos, manchetes, sumários, resumos, sentencias
temáticas ou conclusões. Estes podem ser usados pelos atores sociais como um esquema estratégico para a
inferência ou distribuição tópica – de acordo com a intenção do falante ou escritor.
Falantes e escritores podem, assim, enfatizar significados, controlar a compreensão e influenciar a
formação do modelo de contexto do qual o discurso parte. Porque os tópicos têm um papel tão
importante, e desde que a análise tópica pode também ser aplicada a corpora maiores, Van Dijk recomenda
começar a análise a partir deles.
Uma vez que os sumários são, por definição, a expressão dessas macroestruturas, pode-se – por
razões práticas – simplesmente listar os tópicos do discurso sumarizando-os, um método recursivo - como o
modelo da gramática gerativo transformacional - em vários níveis de abstração. Entretanto, a interpretação
de um texto nunca será a mesma.
5.5 Significados locais: a construção dos objetos-do-discurso
Neste artigo, nos serviremos da Semântica do Discurso propostos por Apothéloz e Reichler-Béguelin
(1995) através da leitura de Koch e Marcuschi (1998) dessa teoria da Referenciação. Esta defende a posição
de que a sequencialidade diz respeito à introdução, continuidade, identificação, retomada, etc. de
referentes textuais através de estratégias de designação de referentes. A topicidade diz respeito ao(s)
assunto(s) tratado(s) ao longo do texto e a(s) sua(s) progressão. Esses processos são distintos e
complementares entre si. O primeiro (a sequenciação) é condição necessária e suficiente ao segundo (a
topicalização). Entretanto, a topicalização é apenas suficiente sequencialidade.
A sequencialidade introduz entidades que não são estáveis e tampouco dadas a priori. Assim, a
sequencialidade parece ser responsável pela construção e manutenção de tópicos, pois o primeiro passo do
processo discursivo é a introdução de um referente que, em seguida, é associado a um tópico. Como os
discursos raramente são monotópicos ou lineares, os autores se perguntam de que forma sabemos qual o
referente de um item lexical do discurso quando ele não está cotextualmente explicitado, ou seja, anafórica
ou cataforicamente determinado?
5
A respeito das origens clássicas da teoria da Ideologia de Van Dijk , ele filia-se à vertente aristotélica pela definição da unidade
mínima de análise do discurso como uma proposição e não um nome ou sintagma. Segundo o trabalho fundamental de Neves,
(Neves, A vertente grega da gramática tradicional, 1987[1983]), Aristóteles nomeou de “lógos apofântico” a luz ou a revelação
promovida pela ação discursiva. Ele é o fundador do paradigma de todas as teorias da linguagem que a entendem como uma
objeto tridimensional. Pois ele foi o primeiro a articular de um lado a referência e as suas duas dimensões e de outro o referente.
Além disso, delimitou a análise do lógos à proposição, ou seja, uma construção com no mínimo um sujeito e um predicado uma vez
que naturalmente não falamos apenas por nomes.
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A sua resposta defende a crença de que por maior que seja a carga semântica dos itens lexicais, eles
não são capazes de construir os objetos-do-discursivos sozinhos. À medida que o discurso avança, ele cria
objetos-de-discurso ao mesmo tempo em que organiza os tópicos de uma forma particular. Portanto, a
atividade de designação referencial discursiva não postula que os fatos e os fenômenos existam na
realidade. Pois, “os fatos e os fenômenos são como que necessidades (realidades) discursivas.”
Dentro desse contexto, Koch e Marcuschi depreenderam três pressupostos apresentados abaixo
sobre a relação entre a Língua e o Discurso na perspectiva daqueles autores:
a)
“A língua é heterogênea, opaca, histórica, variável e socialmente constituída, não servindo
como mero instrumento de espelhamento da realidade.”
b)
“Do ponto de vista ontológico, o mundo (a realidade extra-mental) não se acha de uma vez por
todas definido, identificavelmente demarcado e precisamente delimitado. A discretização do
mundo empírico não é um dado apriorístico e sim uma elaboração cognitiva. Isso equivale a
dizer que o mundo fenomênico, externo, a possível extensão referencial de nossos itens
lexicais, não está à disposição, pronta para receber as designações pura e simplesmente. Tratase de um contraponto linguagem-mundo necessário para estabelecer uma relação equilibrada
entre os dois primeiros pressupostos.”
c)
“A referenciação, tal como a tratam Mondada e Dubois (1995), é um processo realizado
negociadamente no discurso e que resulta na construção de referentes, de tal modo que a
expressão referência passa a ter um uso completamente diverso do que se atribui na literatura
semântica em geral. Referir não é mais atividade de "etiquetar" um mundo existente e
indicialmente designado, mas sim uma atividade.”
5.6 O sistema de controle do conhecimento: a base-comum e o modelo de
contexto.
Ainda falta uma questão. Se a língua não encerra todo o conhecimento, como as informações
ativadas na memória e percebidas pelos sentidos são processadas, ou seja, consideradas relevantes ou não
pelos sujeitos do discurso? Se forem irrelevantes, elas não estão presentes na cognição. Se forem
relevantes, elas podem ser dissonantes ou consonantes com o conhecimento do sujeito do discurso.
Para Van Dijk (2012), os atores sociais não formam somente modelos mentais do contexto em que
eles estão interagindo, mas também a respeito dos eventos ou situações em que eles estão falando ou
escrevendo a respeito. Assim, a coerência local e global do discurso não é definida somente em termos de
relações funcionais entre suas proposições (tais como generalização, especificação, exemplo, explanação),
mas também pelas relações dos “fatos” referidos por essas proposições, tais como as relações de causa-econsequência.
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Porém, não são os fatos “reais” que simplesmente definem a forma como os atores interpretem
esses mesmos fatos, mas as maneiras particulares como os atores sociais os definem ou os interpretam no
modelo de evento. Essas interpretações são pessoais, subjetivas, enviesadas, incompletas ou
completamente imaginárias. Em outras palavras, os discursos são interpretados como coerentes em
relação aos modelos mentais que os atores sociais têm a respeito do evento (situação social) e do contexto
(gênero do discurso).
Nesse sentido, Van Dijk (1998) estabelece uma classificação dos tipos de conhecimentos envolvidos
na produção e interpretação do discurso. Há o conhecimento, as atitudes e a ideologia.
Conhecimento: ele distingue as diferentes formas de conhecimento nomeadamente através de
conhecimento pessoal, conhecimento de grupo e conhecimento cultural. O conhecimento pessoal é
representado em modelos mentais como eventos específicos, pessoais. O conhecimento de grupo é
compartilhado por grupos sociais específicos, tais como profissionais, movimentos sociais ou corporações
comerciais e corresponde às ideologias. Tal conhecimento é naturalmente enviesado, e não é reconhecido
como parte da “base-comum” ou “fundo-comum” pelos outros grupos. E, portanto, caracterizados como
mera “crença”. Em princípio, todo conhecimento socialmente compartilhado pode ser pressuposto no
discurso público (base-comum). Porém, tal conhecimento de base-comum muda constantemente, e o que
é de base-comum ontem, pode ser ideologia de grupo ou crença hoje (como no caso da ideologia cristã).
Atitudes: as atitudes são opiniões socialmente compartilhadas, tais como as opiniões das pessoas a
respeito do aborto. Estas são, de modo geral estruturas complexas, ou seja, consistem de um grupo de
proposições avaliativas. Do mesmo modo que o conhecimento geral pode influenciar os modelos mentais,
as proposições gerais ou atitudes podem também serem “particularizadas” em opiniões específicas e
pessoais nos modelos mentais.
Ideologias: as ideologias são definidas como representações sociais de base dos grupos. Elas estão na
base do conhecimento e atitudes dos grupos tais como socialistas, neoliberais, ecologistas, feministas, bem
como antifeministas. Elas têm provavelmente uma estrutura esquemática que representa a imagem-de-si
de cada grupo, descrevendo as formas de tornar-se membro, os objetivos, as atividades, as normas e os
recursos de cada grupo. Elas são os princípios básicos que organizam as atitudes compartilhadas dos
membros de um grupo. Nesse sentido, a ideologia racista organiza as atitudes de um grupo dominante a
respeito da imigração, da educação ou do mercado de trabalho.
O sistema de controle do conhecimento na produção e compreensão do discurso a partir de é
teorizado por ele através da aplicação de um sistema de controle composto de cinco estratégias.
K1: Assumir que os receptores sabem o que eu lhes disse antes.
K2: Assumir que os receptores não sabem do conhecimento pessoal que eu adquiri desde minha
última comunicação com eles.
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K3: Assumir que os receptores conhecem aquilo de que nós (no caso, o jornal) já os informamos
antes.
K4: Assumir que os receptores tem o mesmo conhecimento cultural que você.
K5: Assumir que os receptores compartilham o conhecimento de todas as comunidades epistêmicas
mais abrangentes de que fazem parte.
A aplicação dessas estratégias na produção e compreensão discursiva permitem controlar o volume
de conhecimento ativado de todas as partes da cognição para a memória de trabalho dos participantes da
interação e, principalmente, construir intersubjetivamente o objeto-do-discurso. Com relação aos gêneros
do discurso em geral, a diferença entre a teoria do contexto de Van Dijk e as demais está, desde o início, na
diferença de perspectiva com relação à noção do texto. A noção de modelo mental utilizada por Van Dijk
deve-se ao fato dela corresponder às suas expectativas teóricas com relação à descrição da competência
comunicativa dos falantes à luz da preservação da diferença entre o nível profundo (discurso) e superficial
(texto) da forma. Assim, o seu argumento de base é o fato de que a relação entre a estrutura social, a
situação de comunicação e o evento comunicativo não são diretas, mas intermediadas pela cognição,
interpondo, assim, um nível psicológico na sua teoria do contexto.
6. Análise
Está disponível para o leitor na última página deste artigo a macroestrutura semântica da notícia
agora em análise. Partindo-se da descrição arbórea do gênero de Van Dijk, observamos que todos os
episódios do gênero notícia foram ativados no texto. Na manchete lemos: “Para bispo, dor da mãe não
justifica aborto.” Qual bispo afirmou isso? Qual a causa da dor da mãe? Por qual motivo essa dor não
justifica o “aborto”? A lead de fato preenche esses argumentos informando ao leitor que Dom Odilo
Scherer afirmou que o sofrimento de uma grávida de feto com anencefalia não justifica a interrupção da
gravidez. Desses dois primeiros episódios pode-se inferior que: 1) Para a FSP um comentário de um Bispo a
respeito de uma decisão do STF é um acontecimento de interesse público. 2) O contraste entre a seleção
dos termos “aborto” atualizado pela voz da Igreja e “sofrimento de grávida de feto com anencefalia” são a
prova de a FSP é ideologicamente alinhada com o STF a respeito da atitude tomada diante da anencefalia.
O jogo ideológico continua no próximo episódio: evento principal. Partindo-se da representação da
Ordem Social pelo jornal FSP, o comentário de Dom Odilo é um acontecimento publicamente relevante
uma vez que a Igreja é, nas palavras do sacerdote, a favor da dignidade da vida e do ser humano.
Entretanto, ao avançarmos na leitura da noticiamos, observamos que a FSP preenche o episódio
“background” de forma estratégica. A notícia informa ao seu leitor que, historicamente, os fetos com
anencefalia não sobrevivem fora do útero. Além disso, informa que, eventualmente, ou seja, na semana
passada o Ministro Marco Aurélio Mello liberou a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos através de
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uma liminar. Por fim, temos a definição do contexto (tão caro a Linguística do Texto). O conteúdo deste é o
mesmo da manchete, porém com uma outra atitude. Logo abaixo temos dois parágrafos da notícia onde
podemos observar com maior precisão o jogo ideológico, ou seja, o jogo de palavras:
“Em entrevista ao semanário ‘O São Paulo’, da arquidiocese da capital paulista,
dom Odilo disse que a igreja "é a favor da vida e da dignidade do ser humano, não
importando o estágio do seu desenvolvimento ou condição na qual se encontre"
“A mulher que gera um filho com anencefalia pode passar por um drama grave e
por muitos sofrimentos, sabendo que o feto pode morrer ainda no seu seio ou então logo
depois de nascer”. Temos que ter muita compreensão com essa mãe, e a sociedade dispõe
de muitos meios para ajudá-la. Mesmo o risco para a saúde da mãe pode ser controlado
pela medicina. Mas o sofrimento da mãe não é justificativa suficiente para tirar a vida do
6
filho dela’, afirmou dom Odilo ao semanário.”
Pensando a respeito de um contexto onde uma mulher precisa escolher entre conduzir ou não uma
gestação, há no bouquet que compõe este campo semântico diversas possibilidades de seleção lexical.
Assim, o efeito de sentido do enunciado “a gestante matou o feto” é bastante diferente do enunciado “a
mãe matou o filho”. Partindo-se disso, nos dois parágrafos acima, verificamos claramente que o objeto-dodiscurso na voz da Igreja começa com o termo “mulher” é re-categorizado lexicalmente de forma explícita
para “mãe”. Da mesma forma, ocorre a recategorização do objeto-do-discurso “filho” é re-categorizado
lexicalmente para “feto” e, em seguida, é retomado como “filho”. Essas re-caterogizações são uma prova
de que a FSP alinhou-se ideologicamente com o STF a respeito da anencefalia, entretanto deu voz a outros
atores sociais mostrando-se portanto um jornal com uma visão plural da Ordem Social brasileira. O
fenômeno linguístico-discursivo de recategorização lexical é descrito por Apothéloz e Reichler-Béguelin
(1995: 15) como:
“On voit ici que modifier le point de vue sur un objet de ce type – un procès –, c’est
aussi généralement modifier des paramètres de ce procès : celui-ciest d’abord saisi comme
un procès transitif, donc non symétrique (cette acquisition), puis comme symétrique (la
transaction), puis comme non transitif et non symétrique (l’opération). Du point de vue
lexical, ces trois dénominations marquent une progression versun substantif de plus en
plus hyperonymique. Outre les changements de perspective sur leprocès que cette
procédure induit, il n’est bien sûr pas exclu que ces changements de dénominations soient
motivés par le souci d’éviter la répétition.”
Saindo-se do nível do interdiscurso e passando ao texto, podemos analisar também o uso do
modalizador « pode » no parágrafo supracitado. Koch (2012: 50) afirma que “os indicadores modais,
também chamados de modalizadores em sentido estrito, são igualmente importantes na construção do
sentido do discurso e na sinalização do modo como aquilo que se diz é dito”. Os argumentos modalizados
por D. Odilo como possível são:
6
a)
A mulher que gera um filho com anencefalia pode sofrer
b)
Sabendo que o seu feto pode morrer no seu vente ou assim que nascer
c)
Até mesmo o risco para a saúde da mãe pode ser controlado pela medicina
Os destaques em negrito ou itálico são nossos.
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As proposições modalizadas como “possíveis” são argumentos contrários à ideologia da Igreja
Católica defendidos pela comunidade médica e pelo STF. O simples gesto de modalizar o argumento de
outro ator social altera o seu estatuto argumentativo, ou seja, uma proposta deixa de ser considerada um
fato sempre que ela for questionada ou colocada como possível ou qualquer outra atitude que altere o
estatuto retórico da ideia no fundo-comum do grupo.
Desta forma, ao aplicarmos estes princípios de controle no discurso reportado da Igreja Católica,
observamos que essa série argumentativa funciona como contrapeso a fim de amplificar o argumento final
e principal, também quase-lógico, do discurso da Igreja Católica: o argumento por sacrifício
Por fim, chegamos à última questão proposta: Qual modelo de evento do jornal FSP podemos
depreender a partir da análise da notícia?
Podemos afirmar que do ponto de vista macrossocial, no nível do jogo entre os poderes
republicanos, a Igreja Católica é considerada um ator importante no cenário social brasileiro, de tal forma
que os dois últimos episódios ativados na notícia é a reação do bispo de Porto Alegre à decisão do STF,
através da edição de uma cartilha que exclui o título de cristão dos partidos que forem a favor do aborto,
bem como a projeção da expectativa da Igreja Católica: a de que a atitude do STF a respeito da anencefalia
poderia ser um primeiro passo para a legalização da eutanásia no Brasil.
7. Considerações Finais
Este artigo analisou uma notícia produzida pelo jornal FSP e publicada em 10/07/2004 que veiculou a
informação de que o Secretário-geral da CNBB havia comentado a liminar concedida pelo Ministro Marco
Aurélio Mello a respeito da APDF 54. O Bispo de Porto Alegre afirmou que iria editar uma cartilha
orientando os católicos a não votarem em partidos de políticos a favor do aborto. Verificou-se que as
alterações do modelo de contexto e evento do leitor a respeito do aborto foram realizadas a partir da
recategorização dos valores télico do bouquet do campo semântico referente ao processo de reprodução
humana. Essa recategorização lexical explicita alterou o modelo de contexto do leitor a respeito do aborto
desde o micronível linguístico discursivo, ou seja, dos significados locais até o macronível tópico.
Assim, de acordo com o discurso da Igreja Católica, as mulheres que abortam são “mães”, em
oposição ao discurso dos idealizadores da ADPF 54 e da FSP que nomeiam estas mulheres como
“gestantes”. A estratégia argumentativa do discurso da Igreja Católica foi a da argumentação quase-lógica
do Sacrifício.
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Anexos
Anexo 1 – Macroestrutura semântica da notícia
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Abstract: This paper investigates in accordance with the socio-cognitive perspective of Critical Discourse Analysis the
representation of Brazilian Social Order in a news published by the newspaper Folha de S. Paulo (FSP) about the
judgment of “Pedido de Arguição de Descrumprimento de Preceito Fundamental de número 54” by the Brazilian
Supreme Court: “Supremo Tribunal Federal”. It established a unique interpretation for all members of the direct and
indirect public administration in Brazilian territory about the context of anencephaly. If a pregnant woman without
fetal brain decided to terminate the pregnancy, would be her decision a crime of "abortion" or a just a "therapeutic
measure"? The methodology of this research is the one proposed by Van Dijk (2013). The investigation has shown, on
one hand, that some comments and actions from members of Catholic Church regarding the performance of the STF in
this process were considered as contextually relevant as a news story by FSP. On the other hand or Linguistically, the
author of the news have played with the words “pregnant" and "mother" on one side, and "fetus" and "son" on the
other. This re-categorization subtly altered the context of the readers regarding the deal in its legal context and also
the role of Supremo Tribunal Federal in the Brazilian political scene.
Keywords: critical discourse analysis; theory of context; ideology; referencing; federal supreme court.
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O DISCURSO DA DIVERSIDADE LINGUÍSTICA EM UM LIVRO
DIDÁTICO DE ESPANHOL PARA BRASILEIROS
Bruno Rafael Costa Venâncio da SILVA (IFRN)1
[email protected]
Miguel Afonso LINHARES (IFRN)2
[email protected]
Resumo: A ciência linguística tal como desenvolvida pelo estruturalismo herdou e reforçou a tradição ocidental de
encarar as línguas como objetos imutáveis e invariáveis, constituindo alguma espécie de corrupção quase toda
mudança e quase toda variação. Isto se tem refletido no ensino-aprendizagem de línguas, quer materna quer
adicionais, pela marginalização de todo dialeto ou socioleto diferente da norma-padrão, os quais, não raro, têm
negada a sua própria condição de parte da língua (“isto não é português”, “isto não é espanhol”). Neste sentido, o
objetivo deste trabalho é analisar o discurso de um livro didático de Espanhol acerca da variação dessa língua. Com
efeito, o ensino-aprendizagem do espanhol tem estado cada vez mais presente na escola brasileira, de modo que a
produção de livros didáticos para a educação básica sob a condição de serem produzidos por brasileiros(as) mais o
fato de ser uma língua de uma extensão territorial vasta e, consequentemente, de uma variação abundante tornam
este tipo de análise bastante interessante, a qual é instrumentalizada mediante o arcabouço teórico-metodológico da
Análise do Discurso Crítica, mormente a partir da leitura de Fairclough (2001) e Thompson (2009). Se bem dito livro
didático apresente um avanço em face de conjunturas passadas, por procurar levar a variação linguística à aula
evitando um tratamento purista da questão, ainda se constata muito forte o atravessamento do eurocentrismo, pelo
qual a norma-padrão do espanhol europeu aparece frequentemente como não marcada ou como ponto de partida ou
de referência.
Palavras-chave: Variação linguística; Ensino de Espanhol; Análise do Discurso Crítica.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A heterogeneidade da língua espanhola, longe de ser um problema para o professor, deve ser
contemplada na sala de aula para que os discentes a entendam a partir do funcionamento de cada uma das
variedades em seus diferentes contextos, sejam geográficas (diatópicas), sociais (diastráticas) ou estilísticas
(diafásicas).A visão de língua homogênea, com um sistema invariável, atrelada aos projetos de construção
de Estados-nação, ainda se encontra arraigada no contexto escolar, privilegiando a norma-padrão como
modelo de língua ideal, e não como uma das expressões do sistema heterogêneo, com um propósito
específico.
Algumas tentativas de incluir variantes da norma não padrão no ensino de língua materna em nosso
país foram severamente criticadas no entorno não acadêmico, reforçando uma visão preconceituosa da
sociedade, que ainda atribui etiquetas como “certo” ou “errado” a alguns elementos linguísticos que não
1
Professor de língua espanhola do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, Campus Natal –
Cidade Alta. Atua nos cursos de Guia de Turismo e Licenciatura em Espanhol. Mestre em Linguagem e Ensino pela Universidade
Federal de Campina Grande.
2
Professor de língua espanhola do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, Campus Currais
Novos. Atua em cursos técnicos integrados ao Ensino Médio e na Licenciatura em Espanhol. Mestre em Linguística Aplicada pela
Universidade Estadual do Ceará.
SILVA, Bruno Rafael Costa Venâncio; LINHARES, Miguel Afonso | I CIED (2015) 143-156
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coincidem com a gramática normativa, mas que fazem parte da fala espontânea, inclusive de falantes
cultos em contextos mais informais.
Grigolleto (2003) pesquisa nos livros didáticos as representações sobre os brasileiros, os estrangeiros
e a língua inglesa na construção da identidade dos alunos. A pesquisadora identifica um discurso de união e
homogeneidade da língua inglesa, caracterizado pelo apagamento da diversidade linguística, dando uma
ideia de “língua homogênea”, trazendo conceitos de identidades fixas, sem reflexão sobre a diversidade,
pelos quais o aluno deve somente se encaixar na cultura do outro, já que a língua inglesa e as sociedades
que a possuem como idioma nacional “não merecem” serem comparadas com outras, fechando o espaço
para problematizações de construções de identidades (não como algo fixo) e diferenças culturais.
Nesta mesma linha, objetiva este trabalho entender o discurso da diversidade linguística em um
manual didático de língua espanhola adotado por escolas brasileiras de Ensino Médio, visto que o espanhol
é um idioma bastante plural, vinculado a diversas realidades linguísticas que muitas vezes são apagadas ou
silenciadas no processo de ensino-aprendizagem. Mais especificamente, buscamos responder à seguinte
pergunta: de que forma a diversidade linguística é contemplada nesses manuais e quais são as relações de
poder estabelecidas para a escolha de uma ou outra variedade linguística como modelo para o ensino?
Nosso artigo está dividido em quatro partes: a primeira refere-se ao referencial teórico, baseado
tanto em estudos de variação e ensino de espanhol quanto nas teorias dos Estudos Críticos da Linguagem,
que serviram de base para a análise. A segunda detém-se nos procedimentos metodológicos da pesquisa.
Na terceira, desenvolvemos nossas análises, para, na última parte, realizar as considerações finais de nosso
trabalho.
2. REFERENCIAL TEÓRICO
Para uma discussão mais organizada dos temas tratados neste artigo, optamos por dividi-lo em duas
partes. No primeiro momento, discorreremos sobre a relação entre a variação linguística e o ensino de
língua espanhola no Brasil, pontuando sua importância, contrastando estudos que comprovam o que
acontece na prática, tanto na elaboração de materiais quanto na sala de aula. No segundo momento,
apoiar-nos-emos sobre as teorias da Análise do Discurso Crítica, especialmente em Fairclough (2001) e nas
categorias de análise de Thompson (2009), que nos ajudarão a direcionar nossa pesquisa em face do
material didático.
2.1. Variação linguística e ensino de língua espanhola no Brasil
As Orientações Curriculares Nacionais (OCN) de Língua Espanhola para o Ensino Médio (2006)
sugerem aos professores de espanhol que mudem a pergunta “¿Qué español enseñar?” para “¿Cómo
enseñar el español, esta lengua tan plural?”. A partir de uma visão de um espanhol heterogêneo, os
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autores das OCN apontam-nos problemas como a priorização do espanhol da Espanha, por ser considerado
“melhor” ou “puro”, bem como a falsa dicotomia do espanhol como dois blocos opostos
(Espanha/América). Situação essa que é bastante criticada por Fontanella de Weinberg (1993), a qual
define o espanhol americano como o conjunto de variedades linguísticas faladas na América, definidas
geográfica e historicamente, não esquecendo o complexo e variado caráter do processo de colonização
nem suas implicações linguísticas.
Além disso, a preferência pela variedade castellana, representada pela fala de Madrid, é gerada por
outros fatores. Moreno Fernández (2010) afirma que:
Muchos profesores universitarios brasileños han recibido formación o han perfeccionado
sus conocimientos profesionales en España, por lo que no es extraña una actitud favorable
hacia la variedad castellana y hacia su uso en las aulas, actitud y uso reforzados por la
3
amplia oferta de materiales didácticos elaborados y publicados desde España . (MORENO
FERNÁNDEZ, 2010, p. 185)
Apesar desse favorecimento, Moreno Fernández (2010) reforça que o ensino de espanhol deve estar
centrado nas necessidades imediatas dos alunos, trazendo à discussão um fator importante na elaboração
do programa de espanhol: o entorno brasileiro.
Con todo, más allá de la procedencia geolingüística, más allá de las actitudes proclives
hacia esta o aquella variedad, la realidad sociolingüística de Brasil ofrece un horizonte
general en el que el español de América ha de alcanzarse con un especial protagonismo.
Un español de América que podrá hablarse con más o menos acento, con más o menos
calcos sintácticos es lo de menos, pero que debe hacer fácil y fluida la comunicación con
los hispanohablantes de los países socios del MERCOSUR. (…) *S+on siempre las
necesidades y expectativas de los aprendices para qué quieren aprender español, dónde
lo van a usar, con quién se van a comunicar, con qué fines las que han de juzgar un
4
programa de español como adecuado o como improcedente. (MORENO FERNÁNDEZ,
2010, p. 185-186)
Outra possiblidade para solucionar o problema dessa dicotomia, apontado pelas OCN (2006), foi a de
optar pelo “espanhol neutro”, ou Español estándar, eliminando marcas distintivas de diversas regiões. Ao
trazer essa questão nesse documento, também seconsidera de difícil padronização, exemplificando o caso
do tratamento de segunda pessoa do plural informal. Acreditamos que para o tratamento de segunda
pessoa do singular informal esse tema é ainda mais complicado, devido às possibilidades de realização.
3
Muitos professores universitários brasileiros receberam formação ou aperfeiçoaram seus conhecimentos profissionais na
Espanha, o que justifica uma atitude favorável em relação à variedade castelhana e a seu uso na sala de aula, atitude e uso
reforçados pela ampla oferta de materiais didáticos elaborados e publicados pela Espanha (tradução nossa).
4
Com tudo, além da procedência geolinguística, além de determinadas atitudes a uma ou outra variedade, a realidade
sociolinguística do Brasil oferece um horizonte geral ao espanhol americano um papel de protagonista. Um espanhol da América
que poderá ter mais ou menos sotaque, com mais ou menos decalques sintáticos, mas que deve facilitar a comunicação com os
hispanófonos dos países sócios do MERCOSUL. (…) São sempre as necessidades e expectativas dos aprendizes para que querem
aprender espanhol, onde vão usá-lo, com quem vão se comunicar, com que fins um programa de espanhol deve ser considerado
adequado ou improcedente (tradução nossa).
SILVA, Bruno Rafael Costa Venâncio; LINHARES, Miguel Afonso | I CIED (2015) 143-156
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Em seu livro, Carricaburo (1997) explica os usos de tú, vos e usted optando por uma divisão por
países. Entretanto, essa autora ratifica, inclusive, que os usos dentro de um mesmo país podem dar-se de
maneiras diferentes por variáveis e situações de interlocução diversas. Geralmente, os livros didáticos de
língua espanhola publicados do Brasil não costumam contemplar o pronome de tratamento vos ou
costumam relegá-lo apenas a uma “curiosidade”, apesar de estar mais estendido que o pronome de
tratamento vosotros, exclusiva da variedade peninsular (VENÂNCIO DA SILVA, ALVES DA SILVA, 2007), por
uma questão histórica e de preconceito linguístico, e porque muitos deles, como já dito, foram produzidos
na Espanha, o grande mercado editorial de livros de espanhol.
Vilhena (2013, p. 64-74) coloca em questão a simplificação da língua espanhola no material didático
quando se adota esse espanhol abstrato, a ponto de construir uma alteridade adulterando, desprezando a
convivência e o confronto de vozes no universo hispanófono. Esse pesquisador aponta ainda que os
materiais didáticos, mesmo dentro dessa visão de abstração e homogeneização da língua, ainda se
encontram presos ao espanhol europeu como modelo de variedade e léxico.
Eres Fernández (2002, p. 10) não acredita que a predominância de uma variante no material didático
constitui um problema, visto que o professor tem a liberdade de apresentar outras aos seus estudantes,
entendendo o livro como um recurso a mais na sala de aula. A autora entende que o professor terá mais
trabalho porque terá de selecionar materiais que reflitam outras modalidades de língua e de cultura, além
daquelas que são encontradas no livro, podendo ser textos de leitura, vídeos, gravações de áudio e, até
mesmo, a própria variedade do professor.
Sobre esse papel, um estudo sobre o modelo que os professores de espanhol adotam no ensino
desse idioma, realizado por Andión Herrero (2008), sinaliza a necessidade de a formação do corpo docente
ser adequada para poder refletir sobre diversas questões relativas ao ensino, entre elas a variação e seu
lugar na sala de aula.
En los profesores –o aspirantes a serlo– ha calado la razonable idea de que no basta con
ser nativo o tener un dominio cuasi nativo del español; hay que estar bien preparado y
saber más de planificación curricular, adquisición, metodología, gramática, fonética y
léxico aplicados a la enseñanza, pragmática, lenguajes específicos… y variedades de la
5
lengua (ANDIÓN HERRERO, 2008, p. 168).
Entretanto, Andión Herrero (2008, p. 169) afirma que os professores não negam a heterogeneidade
do espanhol, porém possuem um conhecimento desigual relacionado à variação linguística, o que os leva,
muitas vezes, a não conseguir explicar casos de variação dialetal, gerando assim, incerteza, estresse, além
de poder conduzi-los a dar respostas equivocadas. Alguns professores podem, inclusive, corrigir alunos que
5
Nos professores de espanhol – ou aspirantes – penetrou a ideia razoável que não basta ser nativo ou ter um domínio quase
perfeito do espanhol, tem que estar preparado e ter conhecimento de planificação curricular, aquisição, metodologia, fonética e
léxico aplicado ao ensino, pragmática, gramática, linguagem específicas... e variedades da língua (tradução nossa).
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usam variantes que eles desconhecem, as quais podem ter sido adquiridas através de professores
anteriores, falantes de variedades diferentes, gerando assim uma atitude negativa do aluno.
É inequívoco que atualmente ensinar uma língua adicional exige mais do que o domínio da gramática
ou a reprodução de situações comunicativas que os alunos memorizem e reproduzam como uma simples
criação de hábitos. Courtillon (1984) afirma que
*a+pprendre une langue étrangère c’est apprendre una culture nouvelle, des modes de
vivre, des attitudes, des façons de penser, une logique autre, nouvelle, différente, c’est
entrer dans un monde mystériuex au début, comprendre les comportements individuels,
augmenter son capital de connaissances et d’informations nouvelles, son propre niveau de
6
compréhension (COURTILLON, 1984, apud MANNA, 2009, p. 211).
As competências que nossos alunos devem atingir são múltiplas quando pensamos na proposta
intercultural para o ensino de línguas adicionais, exigindo que o professor transite por diversas áreas.
Lucchesi (2004, p. 171-179) aponta que a competência linguística do falante é multidialetal, ou seja, que ele
é capaz de lidar com a heterogeneidade do sistema, sem problemas de decodificação. Evidentemente, o
autor faz referência ao falante nativo de uma dada língua materna, que ao longo de sua vida entrou em
contato com sistemas linguísticos de diversas comunidades de fala diferentes da sua, enriquecendo seu
repertório linguístico para que a eficácia na comunicação não seja comprometida. Propomos uma
transposição desse conceito para o ensino de línguas adicionais, na qual o professor deve facilitar o contato
com diversas variedades da língua-meta, para que o aluno tenha a capacidade de decodificar essa
heterogeneidade e não comprometer a comunicação, entendendo a variação, tanto em sua língua materna
como na língua que está aprendendo, como um fenômeno comum e sistemático. Ao incluir o conceito de
competência multidialetal, não sugerimos que o ideal de língua que deve ser alcançado seja a de um
falante nativo, porém não podemos deixar de refletir sobre as necessidades de comunicação dos alunos na
língua-meta e nas interferências que podem ocorrer caso tal língua seja ensinada como um sistema
homogêneo, desvinculado das culturas e valores de uma sociedade.
2.2. Posições ideológicas e políticas no discurso
Segundo Rajagopalan (2003), o produzir ciência constitui uma prática social que, como tal, é
atravessada por conotações ideológico-políticas. Apesar dos materiais didáticos quererem atingir uma
suposta neutralidade, sabemos que seus autores deixam tais conotações transparecerem em seus discursos
e na forma como elaboram suas unidades didáticas. Entretanto, fica a questão: do quê ou de quem o
discurso da diversidade linguística em materiais didáticos de língua espanhola está a serviço? Parece lógico
pensar que os livros didáticos adotados de editoras espanholas privilegiem o espanhol peninsular, bem
6
Aprender uma língua estrangeira é aprender uma nova cultura, modos de viver, atitudes, maneiras de pensar, uma outra lógica,
nova, diferente, é entrar em um mundo misterioso no começo, compreender comportamentos individuais, argumentar seu capital
de conhecimento e informações novas, seu próprio nível de compreensão (tradução nossa).
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como sua cultura (especialmente a do centro da Espanha, apagando, por exemplo, a variedade linguística e
cultura das regiões bilíngues, com a Catalunha, a Galiza, o País Basco e outras). Não obstante, a partir da
implementação do Programa Nacional do Livro Didático (PNDE) desde 2011, as escolas públicas passaram a
receber três coleções de língua espanhola elaboradas por autores brasileiros, de modo que surge outra
questão: de que forma a diversidade linguística é contemplada nesses manuais e quais são as relações de
poder estabelecidas para a escolha de uma ou outra variedade linguística como modelo para o ensino?
Ainda que a Análise do Discurso francesa tenha desempenhado com anterioridade certa abordagem
crítica ao repensar de maneira bastante profunda a episteme do estruturalismo a partir do olhar marxista,
Fairclough (2001) objeta que o peso da análise linguística nessa nova disciplina foi demasiado leve como
para tratar os conceitos de ideologia e poder em conformidade com a importância deles. Destarte, se bem
a Análise do Discurso francesa parte de uma perspectiva social, por desatender ao caráter dialógico passível
de ser convenientemente abordado pela análise linguística, acaba continuando a apresentar uma visão
estática das relações de poder, ressaltando o “papel desempenhado pelo amoldamento ideológico dos
textos linguísticos na reprodução das relações de poder existentes” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 20).
Neste sentido, a Teoria Social do Discurso não se restringe à dimensão ideológica observável nos
textos, mas vai além, abordando inclusivamente a mudança discursiva em consonância com a mudança
social e cultural. Daí que para Fairclough (2001) a ação linguageira constitua uma forma de prática social,
não meramente uma atividade individual que reflete determinadas variáveis situacionais. Como prática
social, fica pressuposto a essa ação linguageira uma imbricação da linguagem com a sociedade na forma de
uma relação dialética: o discurso molda as relações sociais e também é moldado por elas. Em uma palavra,
sem deixar de ser representação, o discurso é ação, é um modo de os sujeitos agirem sobre os outros e
sobre o mundo. No dizer do próprio autor:
aqui está a importância da discussão de Foucault sobre a formação discursiva de objetos,
sujeitos e conceitos. O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da
estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias
normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são
subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de
significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado.
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 91)
Esse modo de ação que é o discurso é constituído de três dimensões simultâneas: prática social,
prática discursiva e texto, como ilustra a figura a seguir.
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Figura 1. Dimensões do discurso
Cada dimensão comporta um efeito na dialética do discurso: a constituição de identidades sociais e
posições de sujeito para os sujeitos sociais em um sentido mais amplo e para os tipos de eu em um mais
estrito. O discurso acha-se na constituição das relações sociais e assim contribui para a formação de
sistemas de conhecimento e de crença. Como explica o autor:
A prática discursiva é constituída tanto de maneira convencional como criativa: contribui
para reproduzir a sociedade (identidades sociais, relações sociais, sistema de
conhecimento e crença) como é, mas também contribui para transformá-la. (...) Uma
perspectiva dialética também é um corretivo necessário a uma ênfase indevida na
determinação do discurso pelas estruturas, estruturas discursivas (códigos, convenções e
normas), como também por estruturas não-discursivas. Desse ponto de vista, a
capacidade da palavra ‘discurso’ de referir-se às estruturas de convenção que subjazem
aos eventos discursivos reais, assim como aos próprios eventos, é uma ambigüidade feliz,
mesmo se de outros pontos de vista possa gerar confusão. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 92-93)
Portanto, diferentemente do estruturalismo epistemológico, pelo qual a prática discursiva e o evento
discursivo são encarados como instâncias de estruturas discursivas, pela Teoria Social do Discurso a prática
discursiva e o evento discursivo relacionam-se de forma complexa com as estruturas, parciais e
contraditórias. Desse modo, o discurso mantém uma relação dialética com os elementos ideológicos,
políticos, econômicos, culturais do social, mas não é reduzido por eles:
O discurso como prática política estabelece, mantém e transforma as relações de poder e
as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades, grupos) entre as quais existem
relações de poder. Já o discurso como prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e
transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder. A prática
política e a ideológica não são independentes uma da outra, pois a ideologia são os
significados gerados em relações de poder como dimensão do exercício do poder e da luta
pelo poder. Assim, a prática política é a categoria superior. Além disso, o discurso como
prática política é não apenas um local de luta de poder, mas também um marco
delimitador na luta de poder: a prática discursiva recorre a convenções que naturalizam
relações de poder e ideologias particulares e as próprias convenções, e os modos em que
se articulam são um foco de luta. (FAIRCLOUGH, 2001, p.94)
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Consoante cada domínio ou ambiente institucional, diferentes tipos de discurso podem ser
investidos política e ideologicamente de maneiras particulares. Mais que isso: esses diferentes tipos de
discursos podem envolver-se igualmente de maneiras particulares, sendo, então, reinvestidos. É preciso,
então, que a Análise do Discurso Crítica saiba pender ora sobre textos específicos ora sobre a chamada
ordem de discurso, expressão que Fairclough (2001) tomou de Foucault fazendo-a corresponder à
estruturação social da linguagem e à sua relação com certas práticas sociais.
Contudo, é forçoso reconhecer que a palavra ideologia não é dos termos mais pacíficos nas
Humanidades, o que impeliu Fairclough (2001) a decidir-se por determinada concepção. A escolha recaiu
sobre a teorização da ideologia operada por Thompson:
À medida em que o termo “ideologia” escorregou para a arena política e foi jogado contra
os filósofos por um imperador sob estado de sítio, o sentido e a conotação do termo
começou a mudar. Deixou de se referir apenas à ciência das idéias e começou a se referir
às idéias mesmas, isto é, a um corpo de idéias que, supostamente, seria errôneo e estaria
divorciado das realidades práticas da vida política. (...) A ideologia como ciência positiva e
eminente, digna do mais alto respeito, gradualmente deu lugar a uma ideologia como
idéias abstratas e ilusórias, digna apenas de ridicularização e desprezo (THOMPSON, 2009,
p. 47- 48).
Por essa concepção, a ideologia está a serviço da reprodução da ordem social que favorece os
indivíduos e os grupos dominantes: corresponde às “maneiras como o sentido, mobilizado pelas formas
simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação” (THOMPSON, 2009, p. 79). A sua
operacionalização dá-se de cinco modos: legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação.
Cada modo pode desenvolver-se por diferentes estratégias. A seguir, apresentar-se-ão superficialmente
tais operações.
Legitimação – Mediante essa operação certos fatos são representados como legítimos
(quando não o são, subentenda-se).
Dissimulação – As relações de dominação são ocultadas, obscurecidas ou mesmo
negadas.
Unificação – Constrói-se uma unidade para certos indivíduos, independentemente das
suas diferenças e das condições e dos meios pelos quais tal unidade é construída.
Fragmentação – Assim como se pode construir uma unidade a despeito das diferenças,
pode-se destruir uma unidade ressaltando a diversidade.
Reificação – Retratação de uma situação transitória como permanente ou natural. Pode
acontecer através de naturalização, eternalização e nominalização.
3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Esta pesquisa caracteriza-se por ser qualitativa, visto que os dados serão analisados e interpretados a
partir das descrições de um livro didático de uma coleção de língua espanhola. Algumas etapas serão
realizadas para a descrição: a) leitura de reconhecimento; b) leitura exploratória; c) leitura seletiva; d)
leitura reflexiva e e) leitura interpretativa.
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Quanto à abordagem metodológica, optou-se pela pesquisa bibliográfica, visto que o corpus para
análise é composto por um livro didático de espanhol adotado pelo PNLD. Das três coleções, optamos por
escolher uma delas, por duas razões: a) todas as autoras são brasileiras e b) no manual do professor há um
tópico para discutir a diversidade linguística. O manual escolhido foiEl arte de aprender español (2010), de
Deise Cristina de Lima Picanço e Terumi Koto Bonnet Villalba, da Base Editorial, da cidade de Curitiba, no
estado do Paraná. Analisamos as duas primeiras unidades do primeiro volume do manual. Além da
pesquisa bibliográfica, necessitamos realizar uma pesquisa documental visto que o “manual do professor”,
encontrado no Livro do Professor, é um documento de consulta que norteia a atividade docente.
As categorias de análise da nossa pesquisa, como mencionado anteriormente, são as enumeradas
por Thompson (2009, p. 79), para estabelecer ou sustentar as relações de dominação: legitimação,
dissimulação, unificação, fragmentação e reificação.
4. ANÁLISE DO LIVRO DIDÁTICO
A nossa análise começa pelo “manual do professor”, para perceber as noções de língua que
sustentam o trabalho de elaboração do material didático das autoras. O capítulo 4, Las variaciones y la
reflexión sobre los aspectos lingüísticos en las prácticas socioverbales, do manual do professor concentra-se
diretamente em nossa questão de pesquisa, como abordado no parágrafo a seguir:
En ese sentido, discutimos en algunos momentos especiales la variación lingüística de las
regiones hispanohablantes, principalmente las que presuponen cambios no solamente
léxicos sino también estructurales, como el voseo. No la abordaremos como un tratado
académico, pues considerados que lo más importante es que el alumnado se conscientice
de la riqueza regional. Es necesario y esencial que los alumnos perciban sin prejuicios que
hay formas distintas tanto en su lengua como en la extranjera, sin hacer juicios de valor
sobre el origen de la lengua y la importancia de cada país en el escenario internacional
(PICANÇO, 2010, p.12).
Como podemos perceber, as autoras optam por trabalhar em “momentos especiais” a “riqueza
regional” da variação linguística do espanhol, de forma que o conhecimento nesse âmbito é tratado como
uma curiosidade que não faz parte do sistema linguístico. Além disso, as autoras abordam o voseo como
um desses “momentos especiais” dedicados à variação linguística. Nesse ponto, já podemos observar uma
relação de fragmentação, na qual o voseo, uma das marcas do espanhol americano, é tido como um
conteúdo separado do padrão da língua espanhola e que não merece o mesmo espaço que o pronome de
tratamento tú, sinalizando uma legitomação do tú em detrimento do vos.
As autoras trazem, através de um recurso de discurso direto, uma citação de Fanjul (2004), que
afirma que os alunos querem de alguma forma identificar-se com o espanhol de algum país (“español de
España” ou “de Argentina”). Entretanto, Fanjul (2004) afirma que esse processo de identificação não é
factível, devido ao contexto de aprendizagem do aluno – aprendiz de espanhol no Brasil – que terão
professores de diversos países e materiais de lugares diversos. Apesar disso, as autoras no Livro do Aluno,
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na unidade 2, página 46, trazem uma imagem de vários ônibus pintados com as bandeiras de diversos
países hispano-americanos e com seus mapas por trás, circulando em uma mesma rodovia, vinculando o
uso da variante lexical a um país, negando a possibilidade de variação dentro de cada um, utilizando-se de
um claro processo de unificação.
Figura 2. Variantes lexicais para ómnibus
Além disso, apesar de a imagem estar vinculada a um texto intitulado “variantes
hispanoamericanas”, a Espanha, país pertencente à Europa, não à América, aparece, e não aleatoriamente,
no topo, como um processo de dissimulação: o eurocentrismo é colocado como modelo ideal na escolha do
léxico, enquanto que as demais variantes aparecem embaixo ou marginadas. Há também, nessa imagem,
um processo de legitimação, no qual, por exemplo, tem-se buseta como a variante lexical da Colômbia,
negando a possibilidade de que os colombianos utilizem outra variante que não buseta, além de não
explicitar em que casos se utiliza essa variante. Da mesma forma que colectivo na Argentina é utilizada
somente para ônibus que circulam dentro da cidade, enquanto que os que circulam fora dos limites de uma
cidade recebem o nome de ómnibus. Identificamos também um processo de fragmentação, negando a
possibilidade de que outro país ou região utilize autobús, já que essa variante está vinculada somente ao
espanhol da Espanha. Na página 51, as autoras fazem o oposto da proposta em seu manual do professor,
no qual se propõem não se ensinar o espanhol identificando-o por regiões, visto que se trabalha um texto
intitulado “Castellano rioplatense”, identificado por elas mesmas como o espanhol falado na Argentina e no
Uruguai.
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Figura 3. Castelhano rio-platense
Araújo (2013) aponta diversos trabalhos de zonificação do espanhol nos quais a Argentina se
encontra vinculada a mais de um bloco, inclusive sendo dividida em sete regiões linguísticas, de modo que
há um claro processo de unificação, gerando apagamento da diversidade que possa haver na forma de
falar, além de um processo de reificação, no qual todo o bloco de espanhol rio-platense tem uma forma de
falar que não está vinculada a nenhum processo de mudança, e sim estático.
Por último, apesar de as autoras não marcarem as variantes fonéticas no Manual do Professor,
encontramos repetidos processos de reificação no quadro fonético-fonológico da língua espanhola
adotados pelas autoras às páginas 37 e 38. As autoras tratam os alofones ou variantes fonéticas como
realidades linguísticas fechadas e que não estão em processo de mudança linguística. Temos como exemplo
as pronúncias das letras <b> e <v> como uma única realidade, como o fonema /b/ para ambas, anulando a
possibilidade de que, em diversas regiões hispanófonas, esses fonemas ainda se encontram em
competição, ou como a letra <s> em início de palavras, que só pode ser representada como /s/, anulando
outro fenômeno em processo de mudança em regiões do sul da Espanha com o fonema /θ/ (interdental
fricativo).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como observamos ao longo do artigo, as relações de dominação em um livro didático no Ensino
Médio produzido por autoras brasileiras também mostram uma visão do espanhol como um idioma
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homogêneo, com pouca variação e com atenção especial ao espanhol da Espanha (centro-norte) como um
modelo a ser seguido, reservando os “momentos especiais”, ditos pelas próprias autoras, para as
variedades hispano-americanas.
Apesar de tudo, diferente de muitos manuais, as unidades que foram objeto de pesquisa desse
manual mostram um avanço, visto que durante anos o espanhol da América nem sequer era mencionado
ou estava recluído ao final dos capítulos, como curiosidades que não mereciam atenção de sistematização.
A unidade 1 desse manual busca relacionar a cultura de nosso país aos povos hispano-americanos, através
de legados culturais como quadros e poemas. A unidade 2, apesar das relações de dominação identificadas,
trabalha com variações regionais e sociais do espanhol de uma maneira bastante aberta, tirando o
protagonismo dos diálogos de repetição frequentes em livros de idiomas, abarcando uma grande
diversidade de gêneros. As autoras são conscientes de que a diversidade linguística do espanhol existe e
deve ser abarcada, tornando o livro didático como um mediador de diversas realidades linguísticas.
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Abstract: The linguistic science, as developed by structuralism, inherited and reinforced the Western tradition of
looking at language as immutable and invariable objects, constituting as corruption almost every change and almost
every variation. This has been reflected in the teaching and learning of languages, either maternal or additional,
through the marginalization of every dialect or sociolect different from the standard-norm, which, often, have their
condition of part of the language have been denied ("this is not Portuguese "," this is not Spanish "). In this sense, the
objective of this study is to analyze the speech of a Spanish textbook regarding the variation of that language. Indeed,
the teaching and learning of Spanish have been increasingly present in Brazilian schools, so that the production of
textbooks for basic education under the condition of being produced by Brazilians, plus the fact that it is a language
that spreads through a vast territory and thus presents abundant forms of variation, makes this kind of analysis very
interesting, which is manipulated by the theoretical and methodological framework of the Critical Discourse Analysis,
especially from the lectures of Fairclough (2001) and Thompson (2009 ). If it is true that this textbook presents a
breakthrough in the face of past situations, to seek taking linguistic variation to class avoiding a purist addressing of
the issue, it also appears very strongly the crossing of Eurocentrism, whereby the European standard-norm often
appears as unmarked or as a starting point or reference.
Keywords: linguistic variation; Spanish education; Analysis of Critical Discourse.
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A gestualidade como espaço de projetabilidade de
enunciados (des)preferidos
Cacilda VILELA (USP)
[email protected]
Resumo: Valendo-se das noções de (1) projetabilidade - dimensão da linguagem na qual alguns elementos estão em
jogo antes de serem produzidos ou completados - e (2) (des)preferência – relação entre pares adjacentes cuja
produção da primeira parte do par restringe as possibilidades de produção da segunda parte, e essas produções,
respondendo (ou não) às expectativas do interlocutor, só são determinadas como (des)preferidas dentro da ação
construída pelo trabalho interacional dos interlocutores - da Análise da Conversa e das teorias que defendem fala e
gestualidade como um único processo discursivo multimodal, esse estudo busca contribuir com o entendimento da
maneira como a gestualidade auxilia na antecipação dos enunciados (des)preferidos ao prenunciar as ações que estão
por vir. Utilizando o programa ELAN para transcrever as modalidades linguística e gestual, esta pesquisa apresenta
uma análise qualitativa e multimodal da interação semi-espontânea de uma díade (esposa-esposo), mostrando como
a gestualidade, atuando no espaço de projetabilidade dos enunciados e em concomitância à fala, produz uma
coerência semântica entre elas. Contudo, isso não significa que as modalidades expressem os mesmos significados.
Apesar de apresentarem propriedades diferentes, tais modalidades interagem na produção e na compreensão do
discurso num processo recíproco, resultando em unidades comunicacionais com significados mais complexos.
Palavras-chave: gestualidade; Análise da Conversa; projetabilidade; pares adjacentes, (des)preferência.
1. Introdução
Seguindo as ideias propostas pelas novas teorias cognitivas e filosóficas que atribuem ao corpo em
ação um papel de produtor de significado e entendem a linguagem humana como um sistema complexo,
dinâmico, adaptativo e multimodal, sendo social, cultural e historicamente situada; mais especificamente,
da linha teórica que defende a fala e a gestualidade como um único processo de formação discursiva no
qual há a integração de modos diferentes de expressão, esta pesquisa apresenta uma análise da relação
entre a fala e a gestualidade, defendendo que a gestualidade faz parte do espaço de projetabilidade dos
tipos de enunciados que serão produzidos pelos interlocutores, seja para auxiliar os interlocutores na
interpretação desses enunciados, seja para facilitar a preparação de ações vindouras.
Os arcabouços teóricos desta pesquisa vinculam-se às proposições dos Estudos da Gestualidade e da
Análise da Conversa, sob viés etnometodológico. Dos Estudos da Gestualidade, seguem-se os pressupostos
que afirmam que os indivíduos, ao interagirem, criam uma unidade comunicacional coesa e indissociável
que se vale tanto da modalidade linguística quanto das modalidades paralinguística1 e gestual2. Esse ato
comunicacional coeso acontece mesmo que em certas ocasiões algumas modalidades sejam priorizadas
sobre outras. Quando a gestualidade e a fala atuam concomitante e conjuntamente, observa-se uma
1
Segundo Poyatos (2002), paralinguística é a parte dos enunciados linguísticos relacionados a aspectos não-linguísticos que
acompanham a língua. Esses aspectos, na língua falada, por exemplo, referem-se ao volume, velocidade, ritmo, tom, expressão da
voz, pausas, silêncios, onomatopeias e a emissão de sons como hum, tchss etc que influenciam a mensagem do enunciado.
2
A modalidade gestual nessa pesquisa é entendida como “ações corporais visíveis com estatuto enunciativo” (KENDON, 2004, p.2),
englobando as ações e expressões faciais, gestos manuais, orientação de corpo, postura corporal, distância entre os interlocutores,
movimentos de cabeça, direção do olhar etc
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coerência semântica entre elas. Contudo, isso não quer dizer que essas modalidades expressem os mesmos
significados. Apesar de apresentarem características e propriedades diferentes, tais modalidades interagem
na produção e na compreensão do discurso mediante um processo recíproco cuja resultante será uma
unidade comunicacional com significado mais complexo.
Das contribuições da Análise da Conversa, utilizam-se, principalmente, os conceitos de
(des)preferência e de projetabilidade na organização sequencial da conversa. A (des)preferência, baseia-se
na concepção de como as ações são construídas e respondidas e de como o entendimento intersubjetivo é
constituído, sendo uma relação entre pares adjacentes. Para cada primeira parte do par, há uma limitação
de possibilidades para a segunda parte do par. De forma geral, os enunciados preferidos são aqueles que
respondem às expectativas do interlocutor por meio de ações normais que são vistas, mas não notadas. Os
enunciados despreferidos apresentam uma ausência notável, sendo marcados por várias complexidades
estruturais de mitigação e postergação antes de serem proferidos. Segundo Sacks (1987), na organização
sequencial da conversa, observa-se a preferência para o acordo, para o aceite de pedidos e convites, para a
ação de falar um interlocutor de cada vez na dinâmica de organização de turnos, para os reparos
autoiniciados etc. Contudo, a preferência só poderá ser determinada dentro das circunstâncias nas quais a
ação foi construída, pois as atividades sociais dependem do trabalho interacional de cada um dos
membros, continuamente engajados, na situação ou evento. Além disso, as pesquisas mostram que a
preferência também depende de fatores situacionais e culturais. Observou-se que, em enunciados
autodepreciativos, há uma preferência pelo desacordo, assim como em debates políticos. A tendência a
falar um de cada vez na organização de turnos não é verificada, por exemplo, nas culturas italiana o e
indiana nas quais há a preferência pela sobreposição de turnos como forma de sociabilidade e de sinalizar o
interesse no outro e no tópico interacional. Dessa forma, a (des)preferência vincula-se tanto às ações
iniciais quanto às suas respostas e depende das circunstâncias de produção, não sendo dada
antecipadamente. É possível, no entanto, aos participantes da interação projetarem aspectos potenciais da
produção dos enunciados. Essa capacidade de projetar as ações do interlocutor vincula-se à habilidade
cognitiva dos seres humano que lhes permite antecipar o desenrolar dos eventos. Schegloff (1984)
incorporou essa habilidade cognitiva à dimensão da língua, nomeando-a de espaço de projetabilidade,
defendendo que alguns dos elementos da língua entram em jogo antes de efetivamente terem sido
produzidos ou completados. Baseado nesses pressupostos da AC e dos Estudos da Gestualidade, essa
pesquisa busca observar como a gestualidade é parte integrante dos enunciados (des)preferidos ao dar
pistas a respeito do tipo de ações vindouras, permitindo aos interlocutores se prepararem prontamente
para as ações futuras que atuarão na interação.
Utilizando o programa ELAN para transcrever as modalidades linguística e gestual, esse estudo
apresenta uma análise qualitativa e multimodal de uma interação face-a-face semi-espontânea. A partir da
conversa de uma díade, o casal Rosê e Gerson, junto há quase 30 anos, mostra-se como a gestualidade,
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atuando no espaço de projetabilidade dos enunciados e, em concomitância à fala, revela como o ser
humano é oportunista em relação ao uso da linguagem na escolha dos elementos que julga ser os mais
eficientes para construir a interação em curso.
2. Os Estudos da Gestualidade
A gestualidade como objeto de investigação tem atraído estudiosos desde a Antiguidade Clássica
com abordagens e perspectivas de entendimento muito diversas. Nesses mais de 25 séculos da história
humana, alguns temas são recorrentes: a relação da gestualidade com a retórica; com a fisiologia e as
emoções; ou a relação da gestualidade com a língua, pensamento e comunicação. Entretanto, a maior
parte desses estudos se norteou pela ideia da separação ente língua e corpo. Apesar de os modos de
hesitação, os estilos do falante, os padrões de entoação, a qualidade da voz, a postura corporal, a
orientação do corpo, as expressões faciais, as direções do olhar, os gestos etc serem percebidos como
extremamente relevantes nos processos interacionais, eles eram estudados e interpretados
independentemente do conteúdo proferido pela fala. Na segunda metade do século XX é que o interesse
pelos estudos da gestualidade associados à língua passa a ter mais destaque. A partir da proposição de
Elizabeth Bates, defendendo que tanto a linguagem corporal quanto a língua desenvolveram-se em
conjunto, provenientes das mesmas combinações cognitivas, vê-se o surgimento de uma nova abordagem
teórica para os estudos da língua e dos movimentos corporais como um único sistema integrado com
modos de expressão distintos. Diversas pesquisas foram realizadas mostrando essa relação línguagestualidade como sistema único. Kendon (1980) relata um experimento no qual o pesquisador pediu aos
participantes de seu estudo que suprimissem todos os movimentos de cabeça, as expressões faciais e os
gestos enquanto falavam. Nenhum dos indivíduos foi completamente eficaz na execução da tarefa e a fala
apresentou uma diminuição em relação às variações entoacionais e à fluência. A seleção lexical também
ficou comprometida. Bavelas e colegas (1992) mostraram que a gestualidade do falante diminui muito
quando seu interlocutor não tem acesso à sua gestualidade e também que, nessa situação de
inacessibilidade da gestualidade do falante, há uma redução e espaçamento da produção de feedback do
interlocutor. Em outra pesquisa, Bavelas e colegas (1995) constataram que o falante também reduz a
produção da sua gestualidade quando está conversando com um interlocutor que não é ativo na conversa
(e.g. pesquisador). Essas pesquisas são exemplos de como a gestualidade coverbal na interatividade é
importante, demonstrando como o falante, além de proferir o conteúdo pretendido, espera por outros
elementos visuais da linguagem emitidos paralelamente para incluir e coordenar com o seu interlocutor a
montagem da interação face-a-face momento a momento. Além disso, “a gestualidade interativa não é
apenas movimento muscular e não deve ser puramente descrita em termos cinésicos, ela é símbolo que
exibe significado” (McNEILL, 1985, p. 105).
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Todas as formas de gestualidade, portanto, são importantes e agregam sentido aos enunciados, além
de auxiliar na construção das interações face-a-face. Contudo, nota-se que as ações faciais recebem uma
atenção especial, tanto na produção quanto na interpretação dos enunciados por parte dos participantes
da interação. Credita-se isso ao fato de a face humana concentrar quatro dos comumente conhecidos cinco
sentidos - olfato, paladar, audição e visão – e ser a parte do corpo que apresenta maior concentração de
músculos por área. Os 44 músculos da face permitem que se realizem mais de 10.000 ações faciais
diferentes, sendo aproximadamente 3.000 destinadas à sinalização das emoções e o restante para atos
comunicativos e fisiológicos (EKMAN, 2011, p.14). Apesar dessa atenção especial às ações faciais para a
construção conjunta e colaborativa da conversa, os estudos das ações faciais coverbais ainda são em
número reduzido. Grande parte dos estudos das ações faciais, até recentemente, era dedicado ao
entendimento das emoções. Um dos primeiros trabalhos a mostrar que as ações faciais veiculam
significados que não apenas os emocionais foi realizado por Ekman e Friesen (1969). Ekman (1997)
apresenta uma diferenciação entre as expressões faciais das emoções e as ações faciais vinculadas à fala.
Ekman defende que as ações faciais fazem parte da estrutura da conversa e do fluxo da fala, sendo
coordenadas com a sintaxe verbal e governadas pelas regras que organizam a produção discursiva,
enquanto as expressões faciais estão mais relacionadas às reações emocionais. Essas reações emocionais
podem estar relacionadas com o que está sendo dito ou não. Ekman exemplifica essa distinção ao
comentar o relato de uma pessoa que disse estar com medo do resultado de uma biópsia. Quando a
palavra medo foi pronunciada, a pessoa apertou seus lábios horizontalmente, referindo-se facialmente ao
medo. Essa ação facial indicadora de medo quando em sincronia com a fala ocorre bem mais rápido do que
quando ela é apresentada sozinha, indicando que não é uma ação emotiva, mas uma ação facial que serve
para ilustrar o que está sendo dito. Diferentemente, quando o indivíduo reage facialmente a uma crítica
recebida; por exemplo, com uma ação facial assimétrica de torcer o nariz e a boca para o lado (ação facial
indicadora de desprezo), essa ação facial pertenceria à categoria das expressões faciais das emoções, pois
essa ação facial indicaria o estado interno do indivíduo provocado pelo comentário do seu interlocutor.
Nesse caso, a duração dessa expressão facial seria mais prolongada do que a ação facial produzida
coverbalmente. Entretanto, quando o indivíduo, em posição de ouvinte, portanto, de fornecedor de
feedback, valendo-se da mesma ação facial indicadora de desprezo, reagisse facialmente ao enunciado do
seu interlocutor, mas de maneira a sinalizar o seu comentário e rejeição ao que foi enunciado previamente,
essa ação estaria vinculada à fala e não à emoção, apresentando, portanto, uma duração mais reduzida.
Sendo assim, vê-se que ambos os tipos de ações faciais ocorrem na conversa, mas essas ações faciais são
de naturezas diferentes, podendo, segundo Ekman (1997), serem diferenciadas conforme a duração da
ação facial. Outras pesquisadoras que merecem destaque nos estudos de ações faciais em coocorrência
com a fala são Janet Beavin Bavelas e Nicole Chovil. Essas pesquisadoras entendem a linguagem como um
sistema único multimodal e multissensorial que só ocorre em sua plenitude nas interações sociais. Bavelas
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e Chovil se interessam em investigar a linguagem nas interações face-a-face, pois, para elas, há inúmeras
manifestações comunicativas que só acontecem nas interações presenciais. Para corroborar essa
declaração Bavelas e Chovil (1997, 2000) apresentam os estudos sobre sorrisos de Chovil (1997),
Fernandez-Dols e Ruiz-Belda (1995) e Kraut e Johnston (1979) nos quais se constatou que as pessoas
sorriem mais quando estão em interação social. Apresentam também as pesquisas de Gilbert e colegas
(1987) nas quais os autores verificaram que quando as pessoas estão sozinhas e não sabem que estão
sendo gravadas e são submetidas a forte odores, as ações faciais não são tão claras e fáceis de serem
identificadas quanto aquelas produzidas para fins de interação. Trazem ainda os estudos de Bavelas e
colegas (1986) a respeito de como a imitação facial das pessoas aumenta quando em presença de outras,
especialmente quando um dos indivíduos sente dor ou está sendo submetido a esforço físico. Igualmente
relevantes são os trabalhos de Chovil (1991) e Clark e Gerrig (1990) e nos quais se descreve uma variedade
de ações faciais com funções semânticas e sintáticas, além de reações na face do interlocutor que oferecem
suporte para que o diálogo tenha continuidade.
Os resultados de pesquisa dos Estudos da Gestualidade, portanto, mostram que as ações gestuais
coverbais realizam funções discursivas importantes, podendo exemplificar, completar, acrescentar, repetir,
contradizer, enfatizar, questionar ou comentar o conteúdo semântico dos enunciados. As ações gestuais
podem antecipar, substituir ou acompanhar a modalidade linguística, mas também podem ser produzidas
sem apresentar qualquer relação com essa modalidade. As mesmas ações gestuais ou a combinação de
ações gestuais adquirem significados diferentes dependendo do contexto.
Em relação à classificação das ações gestuais, o que se observa na literatura são diferentes critérios
muitas vezes criando alguma confusão quando se analisa o resultado das pesquisas. Esse problema parece
ser devido à própria natureza da gestualidade como um modo de expressão da linguagem humana que
pode servir a diferentes propósitos simultaneamente. A classificação que será utilizada no presente estudo
é aquela que divide a gestualidade em dois grandes grupos: a gestualidade associada à positividade e a
gestualidade associada à negatividade. Como exemplos de gestualidade associada à positividade têm-se os
acenos de cabeça, os sorrisos Duchenne3 e as ações e expressões faciais da alegria e surpresa etc. Para a
gestualidade associada à negatividade, veem-se os headshakes, os sorrisos não-Duchenne, o franzir das
sobrancelhas, o apertar dos olhos, o enrugar/torcer o nariz, a contração/retração e o torcer dos lábios, o
colocar a língua para fora, as ações e expressões faciais de tristeza, raiva, nojo, medo e surpresa etc. Essa
classificação é apenas didática já que uma ação gestual pode atuar em determinado contexto como uma
3
Segundo Ekman e Friesen (1982) e Ekman (1992), o sorriso Duchenne, também conhecido como sorriso verdadeiro, envolve a
contração de três músculos faciais: 1) zigomático maior (responsável pela elevação dos cantos da boca); 2) orbicular ocular
(responsável pela elevação das bochechas e como consequência a formação de pés-de-galinha ao redor dos olhos); e 3) risório
(responsável por puxar os cantos dos lábios para fora). Esse tipo de sorriso indica alegria, diversão ou contentamento genuíno por
parte de quem o emite e, quanto maior for a atuação do músculo risório, mais genuína será a manifestação de emoção positiva.
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gestualidade associada à positividade e em outro como uma gestualidade associada à negatividade.4 Qual
ação gestual será utilizada, dependerá das intenções comunicativas do indivíduo e do contexto criado pelos
outros modos de expressão em dada situação de uso. Sem se analisar todo esse complexo, não há qualquer
possibilidade de se estabelecer um sentido para o ato comunicativo humano que não seja parcial e restrito.
É preciso ter em mente que a real interpretação da contribuição de cada uma das ações gestuais coverbais
nas interações presenciais só pode ser atribuída localmente.
3. A Análise da Conversa
Uma das grandes contribuições da Análise da Conversa (AC) para o entendimento da interação
humana é o conceito de organização sequencial da conversa. Para Sacks (1992), a conversa cotidiana,
aparentemente caótica, apresenta uma organização sistemática e essa organização se faz presente em
todas as etapas da conversa. A constatação da natureza ordenada da conversa advém da observação de
resultados reconhecidamente similares que vieram de análises de conversas nas quais observou-se que os
participantes empregaram estratégias e estruturas semelhantes em contextos semelhantes. A conversa,
portanto, é realizada por meio de práticas recorrentes que os interlocutores empregam com a finalidade de
realizar certas ações em contextos particulares e que serão reconhecidas como ações apropriadas pelos
outros participantes para aquela situação. Sendo assim, percebe-se que a conversa não é randômica e nem
desorganizada. Contudo, a organização sistemática da conversa não implica em uniformidade estrutural,
estando a organização a cargo dos próprios participantes que construirão conjuntamente a interação,
valendo-se de diferentes estratégias dentro de dada a situação, mas sempre organizando a interação de
forma ordenada e sistemática. Dessa forma, a produção do participante depende da, e para, a situação da
interação, sofrendo certas restrições baseadas na produção precedente de seu interlocutor, além de ser
afetada não só pelas possibilidades de sua própria produção futura, mas também pela interpretação que se
pretende extrair para a produção executada. O contexto situacional da conversa, portanto, é dinâmico e
precisa ser renegociado a cada ponto da interação. Os participantes estruturam sua fala de forma a
demonstrar a compreensão que eles tiveram da fala precedente e o entendimento que esperam ser
veiculado na fala vindoura do interlocutor. Na visão de Goodwin e Goodwin (1992), a maneira mais eficaz
para que os entendimentos ocorram é organizar a fala em turnos, já que esse tipo de estrutura
conversacional permite que o entendimento compartilhado seja criado e ratificado momento a momento.
4
Como exemplo desse intercâmbio entre as categorias, observa-se a ação facial da surpresa, listada em ambas as categorias. Isso
deve-se ao fato de a surpresa, geralmente, ser uma ação introdutória de uma segunda ação, ou seja, ser uma ação antecipatória ou
da ação facial da alegria ou da ação facial da tristeza(EKMAN, 2011). Sendo assim, a sua interpretação, se é uma gestualidade
associada à positividade ou à negatividade, estará a cargo da constituição interacional do momento.
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As pesquisas da AC mostram que, em geral, os turnos são organizados aos pares, estando o turno de
um participante intimamente vinculado ao turno de seu interlocutor. Por exemplo, um cumprimento é
convencionalmente seguido de outro cumprimento; uma despedida, de uma despedida; uma pergunta, de
uma resposta; um convite ou pedido, de um aceite ou recusa; uma assertiva, de uma concordância ou
discordância; uma queixa, de uma desculpa e/ou explicação etc. Schegloff e Sacks (1973) nomearam esse
tipo de enunciados conjuntos de par adjacente, considerando essa organização sequencial como a unidade
básica que estrutura a conversa. Grosso modo, o par adjacente é caracterizado pela composição de dois
turnos ordenados que são realizados por falantes diferentes, sendo que esses turnos devem apresentar
forte relação entre si e devem ser configurados com relativa proximidade um do outro. No entanto, essa
proximidade não implica contiguidade, pois muitos turnos podem ocorrer entre os dois turnos básicos que
compõem o par adjacente; isto é, não importa a extensão da sequência conversacional, a unidade básica do
par adjacente sempre será passível de identificação. Os dois turnos que constituem o par adjacente são
ordenados de tal forma que o primeiro, necessariamente, ocorre antes do segundo: uma pergunta sempre
precederá uma resposta. Sendo assim, observa-se que um tipo de enunciado é estruturado para iniciar
certas ações, enquanto outros são destinados a complementar a ação iniciada. O tipo de enunciado
iniciador de ação denomina-se primeira parte do par adjacente (first pair part), doravante FPP, e o tipo de
enunciado que segue à ação iniciada recebe o nome de segunda parte do par adjacente (second pair part),
doravante SPP. A relação entre a FPP e a SPP se estabelece pelas restrições impostas à SPP pelo tipo de
enunciado produzido como FPP. Quando se produz uma FPP, não é qualquer SPP que será aceita, a SPP
deve ser um tipo apropriado de enunciado que satisfaça às exigências do tipo de ação desencadeada pela
FPP. Sendo assim, a uma pergunta espera-se ouvir uma resposta e não um cumprimento ou despedida.5
À essa organização sequencial coerente, liga-se a noção de organização de estrutura preferencial. A
preferência, portanto, baseia-se na relação entre os pares adjacentes e na concepção de como as ações são
construídas e respondidas e de como o entendimento intersubjetivo é constituído. Sacks (1987) apresenta
que o conceito de preferência relaciona-se às diferentes possibilidades com as quais as ações
conversacionais podem ser executadas, sendo que, em determinados contextos, algumas ações serão
evitadas ou postergadas e outras apresentarão a tendência a serem produzidas imediatamente. Goodwin e
Heritage (1990) exemplificam que, geralmente, a pronta aceitação de um convite ou pedido é tida como
uma ação normal e esperada, enquanto uma recusa imediata pode ser entendida como uma ação rude ou
hostil. As ações que são rotineira e prontamente produzidas, respondendo às expectativas, ou seja, tidas
como normais, ordinárias e cotidianas e que são vistas, mas não notadas, são denominadas de enunciados
preferidos. Essas ações, por serem consideradas as ações normais, geralmente, são produzidas com maior
5
Essa organização sequencial de par adjacente pergunta-despedida pode ser possível, mas não é a usual e nem a esperada. Caso ela
ocorra, o entendimento e a aceitação dessa organização sequencial dependerão dos acordos entre os interlocutores no arranjo
interacional construído colaborativa e conjuntamente momento a momento.
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frequência e em contiguidade à FPP que as precede. Para Sacks (1987), dois aspectos são fundamentais
para entender como a estrutura de preferência organiza sequencialmente a conversa: a preferência pelo
acordo e a preferência pela contiguidade. Observemos os exemplos:
(1) Foi um excelente filme, não é?
(2) O filme não foi muito bom, não é mesmo?
Sacks (1987) descreve que em ambos os exemplos se projeta uma trajetória de enunciado
preferencial pelo acordo. Em (1), uma preferência pela resposta afirmativa, enquanto em (2) espera-se uma
resposta pela negação. Sacks defende que sempre há uma preferência pelo acordo na SPP do par adjacente
pergunta-resposta. Mas essa assertiva de Sacks não implica dizer que os participantes numa interação
sempre buscam o acordo entre eles. É mais produtivo entender que Sacks propõe a preferência pelo
acordo na trajetória de projeção da produção de enunciados. Como exemplifica Liddicoat (2011), é difícil
imaginar alguém “concordando” com um convite, uma oferta, ou um pedido. O esperado é o “aceite”.
Entretanto, é plenamente plausível verificar a preferência pelo acordo nas SPPs, dependendo da maneira
como foram construídas as FPPs de convite. Tendo essa ideia em perspectiva, Sacks (1987) identificou a
tendência à estrutura preferencial para a aceitação de pedidos, convites e ofertas, para a concordância nos
casos das FPPs do tipo assertiva, para a desculpa em reclamações etc, além de verificar a preferência para
reparos autoiniciados (SCHEGLOFF etal, 1977) e para a ação de falar um interlocutor de cada vez na
dinâmica de organização de turnos (SACKS etal, 1974). Ligadas à contiguidade e ao acordo como ações de
sinalização de enunciados preferidos, Pomerantz (1984) e Kotthoff (1993) identificaram outras estratégias
de atuação nesse tipo de enunciado: (a) a repetição total da FPP na SPP (ex.: A: O dia está lindo/ B: O dia
está lindo); (b) a intensificação na SPP do que foi veiculado na FPP (ex.: A: O dia está lindo/ B: O dia está
maravilhoso); (c) as paráfrases/traduções (ex.: A: O spalla tocou muito bem ontem/ B: O primeiro violino
tocou muito bem ontem); e (d) a complementação da FPP (ex.: A: Isso parece ah hum ...[as...] assustador/B:
Isso parece [assustador]).6 Em relação aos enunciados considerados despreferidos, eles são vistos como
aqueles que apresentam uma “ausência notável” (KOTTHOFF, 1993, p.194), sendo menos frequentes e
marcados por vários tipos de complexidade estrutural antes de serem proferidos que causam atrasos e
postergações na sua produção, tais como: (a) pausas e silêncios; (b) hesitações; (c) perguntas e pedidos de
esclarecimento; (d) concordância inicial fraca seguida de contraposição (ex.: é/sim/bem/humhum etc,
mas...); (e) repetição parcial do enunciado do falante; e (f) explicações e desculpas.
As noções de preferência e despreferência, portanto, são essencialmente de natureza social e
expressam o fato de que algumas respostas são consideradas problemáticas na interação social, enquanto
outras não o são. Contudo, os sinais que possam dar pistas ao analista de que determinado enunciado é
6
Os exemplos apresentados têm apenas caráter didático e foram mostrados com o objetivo de ilustrar as referidas estratégias.
Para se confirmar se realmente as SPPs são enunciados preferidos muito mais precisaria ser observado como as modalidades
paralinguística e gestual, além da própria situação na qual a conversa estaria se desenrolando.
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(des)preferido são apenas isso – sinalizações. Como já alertava Garfinkel (1967), toda a linguagem humana
é indexical. As atividades sociais não são simplesmente dadas e independem das ações dos membros da
interação naquele momento. Ao contrário, as atividades sociais devem ser vistas como realizações
derivadas do trabalho interacional de cada um dos membros, continuamente engajados, naquela situação
ou evento. Pela concepção da atividade interacional como trabalho, Garfinkel percebe a ordem da
atividade social tanto como produto quanto como processo das ações dos membros da interação. Sob essa
perspectiva, portanto, a preferência só poderá ser determinada dentro das circunstâncias nas quais a ação
foi construída. A preferência situada torna-se bastante evidente em certas situações nas quais os
desalinhamentos e desacordos são os enunciados preferidos. Pesquisas mostram que a preferência
também depende de fatores situacionais e culturais. Observou-se que em enunciados autodepreciativos,
há uma preferência pelo desacordo (POMERANTZ, 1984), assim como em sequências de disputa
(KOTTHOFF, 1993; BLUM-KULBA etal, 2002), jogos (GOODWIN etal, 2002) e em debates políticos
(HERITAGE, 2002). As culturas francesa (YAEGER-DROR, 2002) e judaica (SCHIFFRIN, 1984) também
privilegiam o desacordo como forma de exercitar a arte da argumentação e, assim, tornar a conversa mais
satisfatória. A tendência a falar um de cada vez na organização de turnos não é verificada, por exemplo, nas
culturas italiana e indiana nas quais há a preferência pela sobreposição de turnos como forma de
sociabilidade e de sinalizar o interesse no outro e no tópico interacional (O'CONNELL etal. 1990). Segundo
Coates (1994 e 2007), a conversa entre amigas também se rege pela sobreposição de turnos como forma
preferida para a demonstração de amizade e intimidade. Sendo assim, o que constitui uma ação esperada,
ou uma ausência de ação esperada, depende do conhecimento indexicalizado dos participantes dentro da
atividade social que eles criaram conjuntamente. Dessa forma, a (des)preferência vincula-se tanto às ações
iniciais quanto às suas respostas e depende das circunstâncias de produção, não sendo dada a priori.
É possível, no entanto, aos participantes da interação projetarem aspectos potenciais da produção
dos enunciados. Essa capacidade de projetar as ações do interlocutor vincula-se à habilidade cognitiva dos
seres humano que lhes permite antecipar o desenrolar dos eventos. Tratando das unidades de construção
de turno em particular, Schegloff (1984) incorporou essa habilidade cognitiva à dimensão da língua,
nomeando-a de espaço de projetabilidade, defendendo que alguns dos elementos da linguagem entram em
jogo antes de efetivamente terem sido produzidos ou completados, antecipando ao interlocutor o
momento que este deverá/poderá intervir na interação.7 Devido a essa capacidade de projeção é que se
observa na estrutura conversacional a agilidade na mudança de turno sem qualquer tipo de atraso. A
comparação entre as interações indivíduo-indivíduo e homem-agentes artificiais também deixa essa
7
Nas palavras de Schegloff: *…+ it appears central to the organization of tightly coordinated turn-transfer from one speaker to a
next that aspects of some current turn are projected, and are available to analysis by a recipient-potential-next-speaker before
their actual occurrence; for example, the type of turn (question, quotation, disagreement, etc.), and roughly where the turn might
come to completion *…+. Another example is afforded by Jefferson's (1973) discussion of "recognition points," that is, points in the
production of a turn at which its recipient can recognize, and display recognition of, what is being done or said before it has actually
been done/ said, or before the doing/saying has been completed (SCHEGLOFF, 1984, p.267-268).
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habilidade evidente. Os indivíduos já estão prontos para iniciar seus turnos e fornecer seus enunciados
assim que o turno precedente do falante esteja completo. No caso dos agentes artificiais, em posição de
interlocutor, é necessário que haja a finalização de enunciado do falante para só então eles serem capazes
de produzir seus enunciados (embora cada vez mais os gaps entre os turnos estejam diminuindo). É por
essa razão que muitas vezes nos impacientamos na interação com agente artificial. O recurso da
projetabilidade também explica a existência da sobreposição de fala entre os interlocutores ao evidenciar a
prontidão dos interlocutores para interagir. Os indivíduos não precisam e, muitas vezes, não esperam pela
completude do enunciado do falante para intervir na conversa. Outro sinal da evidência da projetabilidade
é a complementação do enunciado do falante realizada pelo interlocutor antes mesmo que o falante
termine o seu enunciado, mostrando também o caráter colaborativo da interação conversacional.
Um último ponto teórico que precisa ser abordado refere-se a um tipo específico de estrutura de
expansão dos pares adjacentes. Os pares adjacentes potencialmente podem ser expandidos depois que já
atingiram a sua completude pela SPP. Segundo Schegloff (1990), o fenômeno que ocorre quando
enunciados são produzidos depois da SPP que sejam reconhecidamente associados ao par adjacente
precedente é denominado de pós-expansão. O tipo de pós-extensão que não projeta qualquer tipo de fala
futura além do próprio turno no qual foi produzido é denominado de pós-expansão mínima. Geralmente
esse tipo de ação é realizada por apenas um turno, sendo projetado com a proposição de encerrar uma
sequência e conhecido como turno de fechamento de sequência (sequence closing thirds), doravante SCT.
Os tipos de SCTs mais comuns são ok, está bem, tá certo, éh etc. Liddicoat (2011) afirma que ok é o turno
mais comumente utilizado para encerrar sequências que receberam uma SPP preferencial. Acrescenta que
uma assertiva avaliativa também pode ser encontrada nessas sequências de encerramento:
(3) A: Estava pensando se você e Marcos não gostariam de jantar aqui em casa na sexta?
B: Sim, nós podemos.
A: Que bo::m
Liddicoat (2011) explica que o par adjacente convite-aceite em (3) se encerra com a assertiva de A,
mostrando a sua avaliação positiva na forma como a SPP foi realizada. Embora o mais usual seja a
ocorrência de apenas um turno para as SCTs, isso não significa que não possa haver mais de um turno
envolvido nesse tipo de encerramento de sequência:
(4) A: Vamos fazer a pesquisa amanhã às 7:00?
B: Será divertido.
A: Então tá bem.
B: Ok.
A: Você já pensou em algo?
Em (4) é possível observar que os enunciados Então tá bem e Ok pertencem à sequência de
encerramento do par adjacente convite/pedido-aceite. Pomerantz (1984) observou que as estratégias de
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sinalização de enunciados preferenciais como repetição total, intensificação, paráfrase e complementação
também podem ocorrer nas SCTs quando os turnos estiverem intimamente relacionados ao par adjacente
precedente e não projetarem qualquer tipo de fala futura para além desses turnos. Em (4), pode-se
entender o enunciado Ok como uma paráfrase de Então tá bem.
4. Metodologia
As correntes teóricas que norteiam essa pesquisa de gestualidade coverbal em interação face-a-face
privilegiam os dados públicos e naturais. Apesar de o ideal ser o dado totalmente espontâneo, algumas
dificuldades técnicas de captação dos dados sugerem que a melhor opção são os dados semiespontâneos.8
Essa decisão refere-se à dificuldade de registrar as ações gestuais com a clareza necessária à análise
pretendida de maneira totalmente espontânea, já que o registro da gestualidade, principalmente das ações
faciais, deve ser realizado com o uso de câmeras e, de preferência, pela combinação de duas ou mais
câmeras para cada participante. A gravação da interação face-a-face da díade (Rosê e Gerson) ocorreu na
casa da pesquisadora durante uma reunião de amigos. Os participantes foram informados de que a
pesquisa, em linhas gerais, tinha como objetivo analisar a comunicação na interação face-a-face. Após
assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, os participantes, sentados um de frente para o
outro, foram deixados sozinhos numa sala, para conversar sem nenhum tópico previamente definido, por
aproximadamente 30 minutos. Foram utilizadas quatro câmeras: duas, posicionadas atrás de cada
participante, com o auxílio de tripés, para a filmagem frontal das ações faciais do respectivo interlocutor e
duas câmeras para a filmagem da lateral/diagonal dos corpos dos participantes.
Para a transcrição das modalidades linguística e gestual foi utilizado o programa ELAN9 que permite
uma transcrição multimodal realizada em trilhas. As trilhas trabalhadas nesse estudo foram baseadas no
modelo que é usado pelo grupo do LLIC da USP.10 As trilhas de codificação para cada participante da
modalidade gestual são: direção do olhar, movimentos de cabeça, posição das sobrancelhas, posição das
pálpebras, configuração dos lábios, posição dos ombros, posição do corpo, unidades gestuais, fases do
gesto, tipos de gesto e descrição dos gestos. Cada uma dessas trilhas utiliza vocabulários controlados
específicos.11 Para a transcrição das ações gestuais utilizou-se como referente o próprio corpo do
8
Leite e McCleary (2013) argumentam que as condições de gravação (com hora marcada e a presença de câmeras) e o fato de uma
conversa ter sido solicitada por um pesquisador contribuem para a diminuição da espontaneidade do discurso produzido. Nesse
sentido, os dados provenientes deste tipo de metodologia tendem a ser chamados de dados semi ou quase-espontâneos.
9
ELAN (Eudico Linguistic Annotator) é um programa livre do Max Planck Institute de Nijmegen (Holanda), desenvolvido,
inicialmente, para atender as necessidades das pesquisas na área da psicolinguística.
10
O Laboratório de Linguagem, Interação e Cognição (LLIC), sob a supervisão dos Profs. Drs. Evani de Carvalho Viotti e Leland
Emerson McCleary, vem desenvolvendo um modelo de transcrição para as línguas orais e sinalizadas desde 2002. O modelo
utilizado pelo grupo foi proposto em McCleary e Viotti (2007), avançado em Leite (2008) e revisto em McCleary e colegas (2010).
11
Vocabulários controlados são repertórios fechados de anotações, representados por siglas e/ou números. As possibilidades de
anotações de cada vocabulário controlado variam de uma trilha para outra e baseiam-se nas convenções propostas para um
arquivo-modelo de transcrição do ELAN desenvolvido dentro do grupo LLIC da USP.
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participante.12 Para a modalidade linguística, há a trilha da fala, segmentada em unidades entoacionais13,
cuja transcrição foi realizada por meio de adaptações às regras propostas por Jefferson (2004).
5. Análise de um fragmento da interação face-a-face da díade Rosê-Gerson
Durante os 30 minutos de interação da díade, o casal conversou sobre diferentes temas. O
fragmento proposto para análise se inicia após 10 minutos de gravação, quando o casal finaliza um dos
temas desenvolvidos e passa a outro tópico. A análise refere-se aos momentos iniciais desse novo tópico. O
esposo (Gerson) propõe que eles passem a falar sobre os filhos, mas a esposa (Rosê) recusa a proposta. O
Gerson sugere, então, que eles abordem o assunto da viagem da Rosê para Sligo (Irlanda) onde ela
participará de um congresso sobre literatura irlandesa. Essa segunda sugestão é acatada pela esposa e os
dois passam a conversar sobre esse tema.
Para facilitar a visualização dos pontos propostos na análise, traz-se a transcrição da fala as fotos
pertinentes às ações gestuais selecionadas que, acredita-se, tenham contribuído para que os interlocutores
interpretassem a recusa ao tema proposto pelo esposo como um enunciado preferido. A estrutura de
segmentação em unidades entoacionais utilizada no programa ELAN será mantida igualmente na
transcrição linguística.
12
Por exemplo, quando se descreve que houve um movimento lateral de cabeça para a esquerda, essa descrição refere-se à
lateralidade do participante e não à lateralidade percebida pelo observador-pesquisador.
13
DuBois e colegas (1990) definem unidades entoacionais (UEs) como pequenos agrupamentos prosódicos com um sentido mínimo
e coerente. Chafe (1994) acrescenta que as UEs são unidades de processamento cognitivo e linguístico que constituem a forma
mais natural de segmentação do discurso. Chafe propõe que as características das UEs envolvem uma ou mais das especificações
que seguem: a) mudanças na frequência (tom); b) mudanças na duração (abreviação ou alongamento das sílabas ou palavras); c)
mudanças na intensidade (volume); d) alternâncias entre vocalização e silêncio (pausas); e) mudanças de diferentes tipos na
qualidade da voz; e f) mudanças no turno.
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1
R:
2 FPP1a G:
3
ISs[o ]
[Ah], de que [que nós vamos fa]LAR?
+++++++++++++++++++++
R:
[ é
4 FPP1b G:
desses FIlhos?
+++++++++++++
5 SPP1 R:
NÃO, n|ão|, [FIlho N]ÃO
6
G:
7
R:
A[I::, que COIs ]a
G:
[não, FIlho não]
i s s o ]
[ n ã o ]
S
8
C
9
R: [Não::, pelo amor de Deus]
10 T1
G: [chega de faLAR de filho ]
11
R: não, pe[lo amor de De]us
12
G:
13
R:
[então
tá
bo][m ]
[éh]
14FPP2a G: vamos faLAR do que?
15FPP2b
da sua via|gem?|
16 SPP2 R:
17
AI, da minha VIA::[gem]
G:
[da ]=
S
C
T2
18
=[ s u a |VIA|gem ]
+++++++++++++++
19
R:
20
G:
[ ( ) da minha vi ][a g e m]
[que deL][Í c i a]
+++++++++
21
R:
22
G:
[eu tô T]ÃO feli[z
]
[S::]lIgo
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Nessa análise propõe-se apresentar como a ação conjunta dos interlocutores permitiu que um
enunciado, aparentemente despreferido, fosse construído como um enunciado preferido. Tomemos os
dois pares adjacentes sinalizados na transcrição linguística:
(5) FPP1 - G: Ah, de que que nós vamos falar? Desses filhos? (linhas 2 e 4)
SPP1 - R: Não, não, filho não (linha 5)
(6) FPP2 - G: Vamos falar do que? Da sua viagem? (linhas 14-15)
SPP2 - R: Ai, da minha viagem (linha 16)
Em (5) e (6), observa-se que o trajeto de construção das FPPs “pede” pelo acordo, ou seja, pela
resposta preferencial de aceite ao convite para falar sobre determinado assunto. A estrutura sintática dos
pares adjacentes é praticamente a mesma. Primeiro o Gerson faz a pergunta, indagando sobre qual assunto
o casal passaria a conversar e, logo a seguir, sem esperar pela resposta da sua esposa, ele sugere um tema.
No primeiro par adjacente (5), há a recusa da esposa com a repetição do termo do tema proposto (filho),
enquanto no segundo (6), a Rosê aceita a sugestão também repetindo o tema sugerido (viagem). Some-se
que a prosódia empregada pelo Gerson em ambas as FPPs foi bastante semelhante. Além disso, há
similaridade também na produção das FPPs do Gerson no que se refere à expressão facial empregada. Ao
observarmos as fotos 1 e 3a, nota-se uma semelhança na ação facial. Em ambas o Gerson encontra-se com
os lábios entreabertos, revelando um sorriso contido ao finalizar de proferir a respectivas sugestões –
desses filhos e da sua viagem. No entanto, nota-se que há uma diferença de “qualidade” entre os dois
sorrisos. Enquanto o sorriso da foto 1 parece ser mais contido, o sorriso da foto 3a apresenta-se mais vivaz,
aproximando-se do que a literatura da gestualidade chama de sorriso Duchenne. Em relação às ações da
Rosê, verifica-se que, em ambos os casos, a resposta da Rosê foi produzida de forma contígua à FPP de seu
esposo, ou seja, sem qualquer pausa ou hesitação. Dentro dessa estrutura e baseada na tendência que os
indivíduos têm em entender o aceite de uma sugestão como uma ação preferencial, esperava-se que a SSP1
da Rosê no primeiro par adjacente (5) apresentasse pelo menos uma das características de enunciados
despreferidos - pausa, hesitação, atrasos e/ou mitigações. No entanto, tal situação não ocorre. A SSP 1 da
Rosê é produzida com as características de um enunciado preferido, ou seja, em contiguidade à FPP 1 do seu
esposo. Há ainda a semelhança na ênfase das ações faciais da Rosê. Na foto 2, percebe-se que a Rosê
rejeita a proposta filho com bastante veemência.14 Os olhos fechados e as sobrancelhas franzidas são ações
gestuais associadas à negatividade que sinalizam uma recusa à situação (EIBL-EIBESFELDT, 1989; EKMAN,
1979). Nesse caso, à sugestão do Gerson a respeito de falar sobre os filhos do casal. Nota-se que a Rosê
aceita a sugestão para falar a respeito da sua viagem com igual entusiasmo (fotos 3b e 4). Na foto 3b, assim
que o Gerson pronuncia da sua viagem? a Rosê apresenta uma configuração facial com algumas das ações
faciais que compõem a morfologia da expressão facial da surpresa - levantar das sobrancelhas, elevação da
14
Caso o enunciado de rejeição fosse construído como um enunciado despreferido, as ações faciais não apresentariam essa
configuração enfática. Ainda que apresentassem ações faciais associadas à negatividade, essas ações seriam mais sutis.
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pálpebra superior e abertura da mandíbula (EKMAN, 2011). Embora a elevação das pálpebras não esteja
presente nesse momento, esse movimento pode ser notado na foto 4. Nessa foto, tem-se então a
composição da morfologia da surpresa com a da alegria, representada aqui pelo amplo sorriso com o qual a
Rosê produz o seu enunciado de aceite (SPP2). Então, a questão que se coloca é o que diferiu no par
adjacente (5) em relação ao (6) para que ele também fosse tomado como uma ação preferida.
Uma possível pista, proveniente da análise linguística, sugere que o uso da expressão desses filhos,
empregada pelo Gerson para referir-se aos seus próprios filhos, parece indicar um distanciamento do
Gerson em relação ao tema sugerido. Afirmar, porém, que a uso da expressão desses filhos foi o que
sinalizou para a Rosê que a recusa ao tema filhos seria bem aceita pelo Gerson revela-se fraca. Contudo,
quando incorpora-se à análise a dimensão da modalidade gestual, percebe-se que o Gerson, ao proferir a
sua FPP1, realiza sutis headshakes durante a produção de [...]que nós vamos falar? Desses filhos? (linhas 2
e 4).15 Sendo assim, o que se defende é que a resposta da Rosê, sua SPP1, está plenamente condizente com
a sinalização fornecida por seu esposo ao produzir sua FPP1. Acredita-se que os headshakes, associados à
utilização da expressão desses filhos, tenham indicado à Rosê que a resposta preferida e esperada por seu
esposo, nesse caso, poderia ser a recusa à sugestão. A proposta do Gerson parece ter sido efetivamente
“não vamos falar sobre filhos”.
Alguém poderia argumentar que o headshake estaria exercendo outra função nesse enunciado,
como por exemplo, enfatizar certos itens lexicais ou marcar a fronteira das unidades entoacionais. Embora
o headshake possa realmente exercer diferentes funções nos enunciados (M. GOODWIN, 1980; KENDON,
2002, 2004; McCLAVE, 2000; McClAVE et al., 2007; SCHEGLOFF, 1987), aqui ele parece exercer a sua função
prototípica de gestualidade associada à negatividade, ou seja, negar o conteúdo proferido pelo enunciado,
pois, caso o headshake fosse empregado para dar ênfase ao enunciado, ou parte dele, haveria uma pista
enfática também na prosódia, fato que não ocorreu. Se fosse empregado para marcar a fronteira das
unidades entoacionais, o movimento não seria contínuo entre as duas unidades entoacionais que
compõem a FPP1. Outra indagação que poderia surgir é que a resposta prontamente ativa e enfática da
Rosé (SPP1) não sinalizaria a produção de um enunciado preferido (nesse caso a recusa à sugestão), já que
os enunciados despreferidos entre interlocutores que mantêm certo grau de intimidade (familiares e
amigos) não obedecem às mesmas “regras” de mitigação e/ou postergação de produção. Embora haja
situações nas quais a preferência seja pelo desacordo (resposta à auto-depreciação, sequências de disputa
etc), alguns pesquisadores, como por exemplo, Kauffman (2002), Yaeger-Dor (2002) e Hedberg e Sosa
(2003) verificaram que as “regras” de mitigação e postergação de enunciados despreferidos se aplicam
igualmente às interações entre interlocutores com relação de intimidade, principalmente entre familiares,
15
Essa movimentação da cabeça do Gerson pode ser visualizada na transcrição linguística, indicada pelos sinais ++++++ e pela seta
dupla na foto 1.
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ou seja, a recusa da Rosê deveria ter trazido certas marcas de mitigação e/ou postergação se realmente seu
enunciado estivesse sendo produzido como um enunciado despreferido.
Outra estratégia empregada pelos interlocutores que ajuda a corroborar a defesa da proposição de
que efetivamente a recusa da Rosê foi a resposta esperada e preferida pelo Gerson encontra-se na
sequência de encerramento (SCT1) do par adjacente FPP1-SPP1. Primeiramente, observa-se o fato de haver
uma repetição total do enunciado da Rosê (SPP1) por seu esposo Gerson:
(7) SPP1 - R: Não, não, filho não (linha 5)
G: Não, não filho não (linhas 6 e 8)
A Rosê produz – não, não, filho não (linha 5) - e imediatamente o Gerson repete o enunciado – não,
não, filho não (linhas 6 e 8). Nota-se, inclusive que essa repetição se dá por sobreposição. Antes mesmo de
a Rosê terminar a sua fala – [...] filho n[...] (linha 5), o Gerson já começa a repetição - não (linhas 6).
Segundo Pomerantz (1984), a repetição total do enunciado do interlocutor pode indicar um alinhamento
ou afiliação na produção de enunciados preferidos. Além disso, Liddicoat (2011) notou que é comum, em
pares adjacentes preferidos, que o tipo de sequência de encerramento desses pares seja por meio da
repetição das palavras do interlocutor. Embora Goodwin e Goodwin (1987) tenham apresentado exemplos
de repetição total como uma forma de desacordo, essa repetição em situações de desacordo ocorre de
forma diferente. Geralmente há uma pausa entre os turnos de repetição e a prosódia empregada pode ser
descrita como prosódia irônica ou de deboche ou ainda de desafio. Essas marcas não se encontram
presentes nesse episódio, corroborando a interpretação do enunciado discordante ter sido o preferido
nesse momento da interação.
Continuando a SCT1:
(8) R: Ai que coisa. Não pelo amor de Deus (linhas 7 e 9)
G: Chega de falar de filho (linha 10)
Nota-se que a Rosê produz - ai que coisa. Não pelo amor de Deus (linhas 7 e 9) e imediatamente o
Gerson produz - chega de falar de filho (linha 10) traduzindo e/ou complementando a fala de sua esposa.
Tal como a repetição, essa paráfrase e/ou complemento também se dá por sobreposição. Assim que a Rosê
finaliza ai que coisa (linha 7), o Gerson produz o seu chega de falar de filho (linha 10) em sobreposição à
fala de sua esposa não pelo amor de Deus (linha 9). Pomerantz (1984) e Liddicoat (2011) mostram que a
paráfrase e a complementaridade também são marcas das SCTs de enunciados preferidos. Aqui, observa-se
esse tipo de ação no fragmento analisado. Pode-se interpretar a ação do Gerson tanto como uma
estratégia da paráfrase, quando ele “traduz” os enunciados da sua esposa ai que coisa. Não pelo amor de
Deus (linhas 7 e 9) para chega de falar de filho (linha 10) quanto como uma estratégia de
complementaridade da fala de sua esposa ao “completar” os enunciados ai que coisa. Não pelo amor de
Deus (linhas 7 e 9) com chega de falar de filho (linha 10). Tem-se ainda no SCT1 o alinhamento de
enunciados preferidos pelos turnos do Gerson então tá bom (linha 12) e o da Rosê éh (linha 13).
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Em suma, as estratégias multimodais da FPP1 do Gerson que fizeram com que a sua esposa optasse
por produzir uma SPP1 de recusa cuja ação construída pelo casal pudesse ser interpretada como uma ação
de produção de enunciado preferido ao invés de enunciado despreferido, no primeiro par adjacente do
fragmento apresentado, foram o sorriso contido do Gerson (foto 1), os headshakes enquanto produzia os
enunciados [...]que nós vamos falar? Desses filhos? (linhas 2 e 4) e o emprego da expressão desses filhos
(linha 4) em coocorrência à modalidade gestual. A opção da esposa em interpretar as ações linguísticas e
gestuais do esposo como uma antecipação da expectativa de recusa da sugestão proferida por ele mostrouse correta. Com essa projeção do tipo de enunciado que seu esposo esperava, a Rosê optou por produzir o
seu enunciado de recusa, que de forma geral é realizado como um enunciado despreferido com estratégias
de mitigação e postergação, com as características de um enunciado preferencial, ou seja, em contiguidade
ao enunciado de seu esposo e de forma bastante enfatizada nas ações faciais. Para sinalizar à Rosê que seu
entendimento a respeito da expectativa de recusa como opção preferencial estava o correto, o Gerson
empregou outras estratégias que aparecem em enunciados preferenciais, a saber, a repetição integral e o
uso da paráfrase e/ou complementaridade do enunciado da Rosé durante as ações da sequência de
encerramento do primeiro par adjacente.
Contrastando com a decisão inicial, durante a produção do primeiro par adjacente, de optar por
entender que seu esposo esperava uma recusa à sugestão para falar de filhos como a ação preferida, no
segundo par adjacente, a Rosê interpretou que o Gerson esperava que ela aceitasse a sua proposta de
conversar a respeito da viagem para a Irlanda. Acredita-se que as pistas multimodais que o Gerson
forneceu foram o sorriso, embora ainda contido, mais amplo e próximo do sorriso Duchenne (foto 3a),
ausência de outras ações associadas à negatividade, como por exemplo o headshake empregado no
primeiro par adjacente, e a ausência de itens linguísticos com conotação valorativa. Tal como no primeiro
par adjacente, o Gerson sinalizou para a esposa que a interpretação em aceitar a sua proposta para
conversar sobre a viagem como forma preferencial estava correta. Na sequência de encerramento (SCT 2)
desse segundo par adjacente, o Gerson utilizou a repetição total do enunciado de seu interlocutor com os
ajustes dêiticos necessários:
(9) SPP2 – R: Ai da minha viagem (linha 16)
SCT2 G: da sua viagem (linhas 17-18)
R: ( ) da minha viagem (linha 19)
A Rosê produz – ai da minha viagem (linha 16) - e imediatamente o Gerson repete o enunciado – da
sua viagem (linhas 17-18) - e a Rosê novamente repete – ( ) da minha viagem (linha 19). Tal como
anteriormente, as repetições se dão por sobreposição. Antes mesmo de a Rosê terminar a sua fala –
[...]gem (linha 16), o Gerson já começa a repetição – da [...] (linha 17). Quando ele produz – [...] sua
viagem (linha 17) é a vez da Rosê o sobrepor com – ( ) da minha vi[...] (linha 19), demonstrando o
alinhamento dos interlocutores na interação (POMERANTZ, 1984).
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E continuando a SCT2:
(10) R: ( ) da minha viagem (linha 19)
G: que delícia (linha 20)
R: Eu tô tão feliz (linha 21)
Nota-se igualmente, como na produção do primeiro par adjacente, o uso da estratégia de paráfrase
para encerrar esse segundo par adjacente. Porém dessa vez, é a Rosê e não o Gerson quem se vale dessa
estratégia. A Rosê produz – ( ) da minha viagem (linhas 19) e antes que ela complete o enunciado o Gerson
já produz – que delícia (linha 20). Assim que ele finaliza de produzir - que del[...] (linha 20), a Rosê,
antecipando o possível ponto de relevância para a troca de turno, já produz – eu tô tão feliz (linha 21),
“traduzindo” o sentimento proposto pelo Gerson. Lá uma metáfora gustativa, aqui uma descrição de
estado interno de emoção positiva. Acrescente-se ainda que quando o Gerson produz – [...] sua viagem,
que delí[...] (linhas 17, 18 e 20) ele realiza headshakes e um sorriso Duchenne bem mais amplo do que os
anteriores. Essa gestualidade pode ser visualizada na foto 5.16 Acredita-se que, nesse enunciado ocorre um
exemplo da ação gestual headshake exercendo a sua função enfática. Ressalta-se que os headshakes foram
empregados em parte dos enunciados e não nos enunciados integrais como ocorrera no primeiro par
adjacente. Além disso, durante a produção dos headshakes, nota-se uma mudança na prosódia utilizada
pelo Gerson. A prosódia empregada também favoreceu a ênfase a esses enunciados: da sua VIAgem e que
deLÍcia (linhas 17,18 e 20). A Rosê, por sua vez, mostra a sua “alegria” em tratar do tema proposto como
pode ser visualizado na foto 6, exibindo o seu amplo sorriso Duchenne de contentamento.
Em resumo, na análise proposta viram-se exemplos de como a ação conjunta, negociada momentoa-momento na interação, é a responsável para o estabelecimento se determinado enunciado deve ser
interpretado como preferido ou despreferido. Inicialmente o Gerson produziu um enunciado formulado de
forma afirmativa na dimensão linguística, exceto pela escolha do item lexical desses (que pode ser
considerado pejorativo para a situação) que, aparentemente, “pedia” pela resposta preferencial de aceite
da sugestão proposta por ele. No entanto, na dimensão gestual, observou-se que o Gerson produziu
headshakes e um sorriso contido que, nessa situação, puderam ser interpretados como ações gestuais
associadas à negatividade. A composição dessas duas dimensões coatuantes parece ter assegurado à sua
esposa Rosê que a recusa à sugestão de tratar do tema filhos poderia ser produzida como um enunciado
preferido, ou seja, de forma contígua e sem qualquer traço de mitigação e/ou postergação. A interpretação
“correta” da Rosê foi confirmada pelo Gerson ao valer-se das estratégias de repetição total e uso de
paráfrase e complementaridade dos enunciados da Rosê para a execução da sequência de encerramento
do referido par adjacente sugestão-recusa.
16
A seta dupla vermelha indica a existência de um headshake e as duas setas simples chamam a atenção para a atuação do
orbicular ocular e a contração mais acentuada do zigomático maior e do músculo risório.
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No segundo par adjacente sugestão-aceite, o Gerson também formulou a sua proposta em forma
afirmativa, mas sem a coocorrência dos headshakes e empregando um sorriso mais vivaz e mais próximo
do sorriso Duchenne. A Rosê aceita a proposta e produz o seu enunciado de forma bastante enfática na
modalidade gestual tal como fizera para o primeiro par adjacente. Lá, utilizando ações gestuais associadas à
negatividade (olhos fechados e sobrancelhas franzidas), aqui, valendo-se de ações gestuais associadas à
positividade (levantar das sobrancelhas, olhos abertos e mandíbula “caída” (ações faciais semelhantes à
expressão facial da emoção de surpresa) e sorriso Duchenne (ação facial prototípica da expressão facial da
emoção de alegria). Novamente, observaram-se as estratégias de repetição total e uso de paráfrase dos
enunciados dos interlocutores para a produção da sequência de encerramento referente ao par adjacente
sugestão-aceite. Percebe-se, portanto, que as mesmas ações gestuais podem exercer funções diferentes
nos enunciados e, quando associadas a outras ações gestuais, podem agregar camadas significativas às suas
compreensões iniciais. Além disso, viu-se que a gestualidade, executada no espaço de projetabilidade da
língua, pode ser a chave interpretativa para que os interlocutores optem por determinada ação interativa
em detrimento de outras.
6. Considerações finais
Afiliada às teorias interacionais e ao ramo das teorias da cognição que entende o corpo como um
produtor de significados, ao defenderem a linguagem humana como um sistema complexo, dinâmico,
adaptativo e multimodal, sendo social, cultural e historicamente situada, essa pesquisa mostrou a análise
qualitativa e multimodal de um fragmento da interação semi-espontânea de um casal junto há quase 30
anos, defendendo que a gestualidade faz parte do espaço de projetabilidade dos tipos de enunciados que
serão produzidos pelos interlocutores, seja para auxiliar os interlocutores na interpretação desses
enunciados, seja para facilitar a preparação de ações vindouras.
A utilização de uma conversa face-a-face para a análise multimodal deve-se à crença de que é pela
análise de conversas cotidianas que os pesquisadores mais se aproximam da maneira como os indivíduos
lidam com as estruturas sintáticas da língua e com as ações gestuais coverbais, deixando entrever como a
gestualidade ressalta as dimensões cognitivas não só da modalidade linguística, mas igualmente do
processo de produção dos enunciados. Das observações realizadas, notou-se que as ações gestuais só
adquirem significado efetivo dentro de determinado contexto, corroborando as ideias dos estudiosos da
gestualidade que declaram que as ações gestuais nas interações face-a-face demonstram como o falante,
além de proferir o conteúdo pretendido, espera por outros elementos visuais da linguagem, emitidos
paralelamente, para incluir e coordenar com o seu interlocutor a montagem da interação momento a
momento. Os resultados deixam evidente que as mesmas ações gestuais ou movimentos combinados
adquirirem significados diferentes que só podem ser interpretados localmente e que a organização
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sequencial da conversa exerce um papel relevante para a análise das ações em curso durante a interação.
Na análise proposta viram-se exemplos de como a ação conjunta, negociada momento-a-momento na
interação, é a responsável para o estabelecimento se determinado enunciado deve ser interpretado como
preferido ou despreferido, podendo a gestualidade, executada no espaço de projetabilidade da língua, ser a
chave interpretativa para que os interlocutores optem por determinada ação interativa em detrimento de
outras, uma vez que a gestualidade pode auxiliar na antecipação dos enunciados (des)preferidos ao
prenunciar as ações que estão por vir.
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Abstract: Taking into account the notions of (1) projectability - dimension of language in which some elements are in
play before being made or completed - and (2) (dis)preference - relationship between adjacent pairs whose production
of the first-pair part restricts the possibilities of the second-pair part production, and these productions, responding (or
not) to the expectations of interlocutors, can only be determined as (dis)preferred utterances into the action built by
the interactional work of interlocutors – from Conversation Analysis and theories that defend speech and gestures as a
single multimodal discursive process, this study aims to contribute to the understanding of how gestures can anticipate
(dis)preferred utterances, foretelling the actions that are to come. Using the ELAN program to transcribe linguistic and
gestural modalities, this research presents a qualitative and multimodal analysis of semi-spontaneous interaction of a
dyad (husband and wife), showing how gestures, acting within the projectability space of utterances and co-occurring
with speech, produce a semantic coherence between them. However, this does not mean that the different modalities
express the same meaning. Despite displaying different properties, such modalities interact in the production and
comprehension of language in a reciprocal process, resulting in communicational units with more complex meaning.
Keywords: gesture; Conversation Analysis, projectability space; adjacent pairs; (dis)preference
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Práticas discursivas e exercício profissional: o trabalho do
professor de inglês em cursos de idiomas à luz da
ergologia e da concepção dialógica de linguagem
Carlos Fabiano de SOUZA (IFF/UFF)
[email protected]
Resumo: Cursos livres de idiomas são espaços idiossincráticos de ensino de línguas estrangeiras (LEs) nos quais
profissionais licenciados e não licenciados têm, de longa data, atuado ministrando aulas de língua inglesa (LI). O
trabalho do professor de línguas nesses ambientes educacionas reveste-se de características bastante peculiares e,
embora estejam presentes no cenário brasileiro de ensino-aprendizagem de LEs há mais de 70 anos, pode-se dizer
que os bancos acadêmicos têm negligenciado a sua importância, pois é escassa a pesquisa sobre eles na literatura
especializada. Nessa perspectiva, o presente trabalho pretende apresentar um recorte teórico-metodológico, cujo
objetivo é utilizá-lo para investigar a fala de profissionais que ministram aulas de LI em cursos livres sobre o seu
trabalho. Assim, formulamos o nosso estudo a partir da abordagem ergológica da atividade (SCHWARTZ, 1997) que
leva em conta o estudo das atividades humanas e, em especial, a atividade de trabalho. Além disso, ancoramos nossas
análises na concepção dialógica de linguagem (BAKHTIN, 1997), a qual vai ao encontro da complexidade do ser
humano, do seu trabalho e da língua enquanto espaço de interação verbal. Por ser um projeto ainda em fase de
desenvolvimento, não há resultados a serem apresentados.
Palavras-chave: cursos de idiomas; professor de inglês; ergologia; concepção dialógica de linguagem; trabalho
docente.
1. Introdução
O trabalho do professor se reveste de particularidades que colocam em evidência a complexidade de
desenvolver sua atividade profissional em um universo institucional permeado por relações sociais,
hierárquicas, de caráter interativo. Em outras palavras, podemos dizer que se trata primordialmente de
“*...+ um trabalho onde o trabalhador se relaciona com o seu objeto de trabalho fundamentalmente através
da interação humana” (TARDIF, 2012, p.22).
Nessa perspectiva,
o docente raramente atua sozinho. Ele se encontra em interação com outras pessoas, a
começar pelos alunos. A atividade docente não é exercida sobre um objeto, sobre um
fenômeno a ser conhecido ou uma obra a ser produzida. Ela é realizada concretamente
numa rede de interações com outras pessoas, num contexto onde o elemento humano é
determinante e dominante e onde estão presentes símbolos, valores, sentimentos,
atitudes [...] Essas interações são mediadas por diversos canais: discurso,
comportamentos, maneiras de ser, etc. Elas exigem, portanto, dos professores, não um
saber sobre um objeto de conhecimento nem um saber sobre uma prática e destinado
principalmente a objetivá-la, mas a capacidade de se comportarem como sujeitos, como
atores e de serem pessoas em interação com pessoas (TARDIF, 2012, p.49-50).
Nessas interações, o professor não só estabelece uma relação dialógica com os seus educandos e
colegas de trabalho, mas também tem a possibilidade de veicular saber sobre o seu trabalho. Desse modo,
é possível investigar a fala do professor como uma instância capaz de fornecer informações relevantes no
que concerne à atividade de trabalho desse profissional, pois os “*...+ professores, no exercício de suas
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funções e na prática de sua profissão, desenvolvem saberes específicos, baseados em seu trabalho
cotidiano e no conhecimento de seu meio” (TARDIF, 2012, p.38). São esses saberes que, de certo modo,
nos interessam, pois eles tendem a nos dar pistas acerca do fazer docente em ambiente de atuação
profissional.
Pode-se dizer que, de forma resumida, conhecer a sua matéria, sua disciplina e seu programa, além
de possuir conhecimentos relativos às ciências da educação e à pedagogia, e desenvolver um saber prático
com base na sua experiência cotidiana com os alunos tornam-se aspectos primordiais da constituição da
imagem de professor ideal (TARDIF, 2012).
Por outro lado, o ofício docente, caracterizado como profissão de interações humanas, é
multifacetado, complexo “na medida em que trabalhar sobre e com seres humanos repercute sobre o
professor, sobre seus conhecimentos, sua identidade, sua experiência profissional” (TARDIF & LESSARD,
2013, p.9).
No que tange ao processo ensino-aprendizagem de LI, especialmente, percebe-se que o trabalho do
professor de LE é revestido de peculiaridades e, sobremaneira, deve se caracterizar por ser um fazer
reflexivo e crítico, pois ensinar não é uma atividade neutra.
E no caso do ensino de língua estrangeira a criticidade é particularmente importante para
se garantir que os valores da cultura estrangeira que necessariamente fazem parte dessa
aprendizagem sejam entendidos a partir de uma postura crítica, que tem como objetivo
formar o cidadão brasileiro, antes de mais nada (CELANI, 2008, p.37).
É interessante notar que embora a LI em cursos livres de idiomas ocupe um lugar de destaque no
cenário brasileiro de ensino de LEs, com constante crescimento e expansão dessas instituições,
notoriamente, encontram-se poucos trabalhos sobre esses espaços de atuação profissional do professor de
LE nos bancos acadêmicos. Podemos inferir que isso se dá em função de cursos dessa natureza não serem
regulamentados por órgãos do governo (como o MEC, por exemplo).
Salienta-se que a escassez de referencial teórico sobre os cursos privados de idiomascaminha na
contramão de um ramo de oferta de ensino de línguas que opera em território nacional há mais de 70
anos, com bastante sucesso e amplas perspectivas de longevidade, pois, de acordo com a Associação
Brasileira de Franquias (ABF) – dados de 2012 –, há mais de 70 redes de idiomas no Brasil. Cabe ainda
destacar que a oferta de cursos de inglês em cursos livres é ainda muito maior, visto que esses dados não
consideram as escolas que não funcionam como franquias de redes.
Assim, levantar dados de pesquisa sobre esse campo de ensino é considerar as múltiplas relações
que emergem do ensinar e aprender em ambientes dessa natureza, e a sua configuração como espaços
onde profissionais licenciados e não licenciados têm a oportunidade de desenvolver o seu trabalho.
Nessa perspectiva, investigar a fala do professor de inglês em cursos livres sobre o seu trabalho, à luz
de um enfoque ergológico e dialógico, é lançar uma lente de análise sobre a atividade docente nesses
espaços de atuação profissional, sem deixar, entretanto, de acentuar o caráter complexo que envolve a
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vida do ser humano enquanto um sujeito que usa a língua como possibilidade concreta de interação verbal.
A ergologia, enquanto perspectiva epistemológica pluridisciplinar – em virtude de a atividade humana ser
muito complexa para se compreender e analisar através de uma única disciplina (TRINQUET, 2010) –,
permite-nos abordar a realidade da atividade humana e a capacidade inerente do ser humano de trabalho.
Atrelada a essa perspectiva, entendemos que é possível estabelecer uma relação de aproximação
entre estudos com enfoque na abordagem ergológica e no dialogismo do Círculo de Bakhtin. Vale destacar
que há uma impossibilidade latente de se conceber a realidade multifacetada de nossa atividade laboriosa
sem levar em consideração a capacidade do ser humano de interagir por meio da linguagem. Assim,
na teoria de Bakhtin, ou análise dialógica do discurso, a ideia de dialogismo está ligada à
própria concepção de língua como interação verbal. Afinal, não existe enunciado concreto
sem interlocutores. O próprio fato de um autor levar em consideração seu interlocutor
direto ou indireto quando produz um enunciado já confere à língua esse caráter dialógico
(SILVA, 2013, p.52).
Portanto, epistemologicamente falando, esboçar um estudo com foco em práticas linguageiras, que
perpassam as relações que ocorrem em situação de trabalho docente, requer mobilizar um conjunto de
saberes e concepções concernentes ao escopo de abrangência da perspectiva ergológica e da concepção
dialógica de linguagem.
A seguir, o texto se organiza em três sessões. Na primeira sessão, apresentamos alguns
apontamentos relativos aos cursos de idiomas no Brasil, bem como questões concernentes ao ensino de LI
nessas instituições. Em seguida, discorremos sobre a abordagem ergológica e a concepção dialógica de
linguagem. Por fim, apresentamos as considerações finais.
2. O ensino de inglês em cursos livres
No que se refere à história do ensino não regular de LI no Brasil, ou seja, tomando por base as
instituições que desempenham o papel de oferecer aos educandos aulas de LE sem a regulamentação
oficial por parte de órgãos do governo federal (o MEC, particularmente), tem-se nos cursos livres de
idiomas um espaço profícuo de desenvolvimento do trabalho do professor de línguas. Essas escolas, de
longa data, têm atuado no cenário nacional com constante crescimento e expansão. Por não serem
passíveis de regulamentação pelo Ministério da Educação, optamos por usar esta designação neste
trabalho – a qual é comumente utilizada quando se refere a esta modalidade de ensino.
No entanto, pode-se afirmar que o labor do professor de inglês no mercado privado de ensino de
idiomas é pouco explorado. Esse fato é corroborado pelo número quase que inexistente de pesquisas sobre
essas escolas, como lugar de trabalho do professor de línguas, na literatura especializada. Uma das
principais referências é o trabalho de Freitas (2010), no qual ela trata do “trabalho do professor de
espanhol em cursos de línguas”. Na esteira dessa investigação, pode-se citar também a pesquisa de
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Fernandes (2013) que buscou investigar, por meio do que diz o professor de espanhol sobre o seu trabalho,
“as imagens que ele constrói sobre si e sobre a sua atividade no curso livre de idiomas e no ensino regular”.
Observemos o seguinte apontamento de Schütz (2011):
Cursos de línguas são classificados como “cursos livres” pelo Ministério da Educação, não
estando sujeitos a qualquer tipo de controle nem de reconhecimento. Tampouco as
secretarias estaduais regulamentam cursos livres. Pode-se ensinar inglês assim como
informática ou karatê (SCHÜTZ, 2011, aspas do autor).
Nesse aspecto, levando-se em conta o contexto da legislação brasileira – no qual não há menção aos
cursos privados de línguas –, entende-se que é bastante conflituosa a afirmação feita por Schütz (2011)
segundo a qual essas instituições são classificadas pelo Ministério da Educação como livres. De outra forma,
acredita-se que, vulgarmente, tornou-se lugar comum chamar os cursos não regulamentados por lei
específica de cursos livres por não ser mandatória a regularização de funcionamento desses junto a órgãos
governamentais de cunho educacional, ainda que essa nomenclatura cause certo estranhamento em
virtude do termo “livre” ser bastante multifacetado.
No entanto, no decreto nº 2.208, de 17 de abril de 1997, foi possível encontrar uma brecha na lei,
pois, de acordo com o artigo 4º do referido decreto,
a educação profissional de nível básico é modalidade de educação não-formal e duração
variável, destinada a proporcionar ao cidadão trabalhador conhecimentos que lhe
permitam reprofissionalizar-se, qualificar-se e atualizar-se para o exercício de funções
demandadas pelo mundo do trabalho, compatíveis com a complexidade tecnológica do
trabalho, o seu grau de conhecimento e o nível de escolaridade do aluno, não estando
sujeita à regulamentação curricular (BRASIL, 1997).
Dessa maneira, de acordo com o decreto citado – com fundamento na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional –, depreende-se que poderia se cogitar a possibilidade de enquadrar esses cursos na
modalidade de educação profissional de nível básico, ainda que eles não estejam sujeitos à regulamentação
curricular, cuja oferta livre dar-se-ia em função das demandas do mundo do trabalho e da sociedade. Além
disso, não haveria, inclusive, exigência de escolaridade prévia do aluno.
Entretanto, o decreto de 1997, que regulamentava o § 2º do artigo 36 e os artigos 39 a 42 da Lei nº
9.394, de 20 de dezembro de 1996 – a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional –, foi
revogado pelo decreto nº 5.154, de 23 de julho de 2004. Com a revogação, houve um apagamento dessa
não formalidade de oferta de curso na modalidade de ensino profissional de nível básico, cujo novo texto
do artigo 4º ficou assim:
A educação profissional técnica de nível médio, nos termos dispostos no § 2º do art. 36,
art. 40 e parágrafo único do art. 41 da Lei nº 9.394, de 1996, será desenvolvida de forma
articulada com o ensino médio, observados: I – os objetivos contidos nas diretrizes
curriculares nacionais definidas pelo Conselho Nacional de Educação; II – as normas
complementares dos respectivos sistemas de ensino; e III – as exigências de cada
instituição de ensino, nos termos de seu projeto pedagógico (BRASIL, 2004).
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Infere-se, portanto, que uma não regulamentação por órgãos do governo, especialmente o
Ministério da Educação, por motivos óbvios, tende a eximir essas unidades de ensino da obrigatoriedade de
obter, por parte deste Ministério, credenciamento institucional, autorização e reconhecimento de curso
para funcionar plenamente. E, por outro lado, torna-se inapropriado enquadrar os cursos livres na
modalidade de educação profissional de nível básico. Pois, na forma da lei, não há respaldo para tratarmos
de cursos de idiomas dessa natureza segundo esta nomenclatura.
No que concerne à certificação, acredita-se que toda instituição concebida como curso livre pode vir
a emitir certificado ao educando em conformidade com a carga horária dos seus programas de ensino, que,
geralmente, podem variar quanto às horas, meses e/ou anos de duração. Da mesma forma, cabe à
instituição elaborar o seu programa de curso e gerenciar o seu quadro de funcionários, o que requer,
sobretudo, estabelecer critérios próprios de contratação, treinamento, etc.
É interessante ressaltar que cabe à legislação brasileira regulamentar as modalidades de Ensino
Fundamental, Médio, Técnico e Superior em âmbito nacional. No entanto, com o intuito de promover a
educação profissional em todo país, prevista no artigo 39 da Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o
governo abriu espaço para a “qualificação profissional, inclusive formação inicial e continuada de
trabalhadores” (redação dada pelo decreto nº 8.268, de 2014). Ao concebermos a formação em LE,
enquanto possibilidade de qualificação profissional, tornar-se-ia bastante pertinente fazer uso corrente da
categoria curso livre como itinerário formativo não regular no âmbito de ensino no Brasil. O que vai ao
encontro de se considerar a urgência em atender a população brasileira, permitindo a todos alcançarem
sua profissionalização rápida para atuação em diversas áreas no mercado de trabalho.
É válido salientar, ainda, que esses estabelecimentos de ensino privado de línguas já foram, inclusive,
citados no documento oficial Orientações Curriculares para o Ensino Médio do Ministério da Educação
(BRASIL, 2006). Ao discorrer sobre os casos de instituições regulamentadas pelo MEC que têm optado por
inserir em seus espaços formativos aulas de LE, fora da grade escolar, o documento afirma que
essas instituições abrem uma estrutura paralela em forma de centro de línguas para seus
próprios alunos, com organização semelhante as dos cursos de idiomas: turmas menores
e formadas segundo o nível linguístico identificado por testes de conhecimento do idioma
estrangeiro; horários fora da grade escolar e aulas ministradas pelo professor da escola
[...] (BRASIL, 2006, p.89, grifo meu).
Em termos estruturais, observa-se que os cursos livres em território nacional brasileiro podem ser
classificados em três tipos específicos: os institutos/centros binacionais, escolas franqueadas e escolas
independentes.
Centros binacionais são instituições mais tradicionais, bem mais preocupadas com a qualidade.
Aparentemente, eles desenvolvem um trabalho sério, com uma proposta de atuação menos comercial do
ponto de vista de mercado expansivo. Muitos operam sob a nomenclatura de instituto, cujo objetivo
principal é promover e divulgar a cultura dos países da língua alvo, em especial, Inglaterra e Estados
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Unidos. Grande parte dessas escolas adota um aparato metodológico convencional, atrelado a um plano
didático.
Por outro lado, definimos os cursos franqueados como sendo escolas que operam sob o mesmo
nome dentro de um sistema de franquia. Esse tipo de prática organizacional lança mão do uso de
concessão e transferência de marca (bandeira), recursos tecnológicos, consultoria operacional, produtos ou
serviços. Escolas dessa natureza investem fortemente em propaganda e empregam professores que podem
variar quanto à formação especializada.
Ressalta-se que nessas escolas o livro didático ocupa um papel fundamental. Ele é indispensável para
o desenvolvimento dos programas de ensino – um norteador das práticas desenvolvidas em sala de aula
pelo professor. Isso se deve muito ao fato de que é de grande interesse dessas instituições comercializarem
material didático seriado em massa. Muitas dessas escolas, inclusive, são vinculadas a editoras próprias.
O sistema de franquia não só deixa de levar em conta as qualidades do professor, como também
limita o seu trabalho, engessando muitas vezes o seu poder de criação. O professor se vê imerso em uma
série de fórmulas de sucesso (receitas mágicas), sequências de rotinas, enfim, práticas, por vezes,
descontextualizadas. As aulas se tornam uma repetição de procedimentos e rotinas adquiridos quase
sempre nos treinamentos oferecidos pela própria rede franqueadora.
Finalmente, chamamos de escolas independentes aqueles espaços de ensino-aprendizagem de LE
que são criados pela iniciativa de profissionais qualificados, com competência própria, que, em sua maioria,
já tiveram a experiência de passar por uma franquia, porém, dispensam a receita didática e a estrutura
operacional de um franqueador. A base de divulgação de muitas dessas escolas é a política do “boca a
boca”. Embora esse tipo de propaganda seja uma interessante fonte de informação para atrair novos
alunos, se não tiver um bom investimento por parte da escola, torna-se muito difícil se manter no
competitivo mercado de ensino privado de línguas em cursos livres, em virtude da acirrada concorrência
com as grandes franquias.
Esses ambientes de ensino têm cooperado para a manutenção da crença de que basta falar inglês
para se tornar um professor de LE. Essa afirmação vai ao encontro do que diz Celani (2008) quando pontua
que “a profissão, e particularmente a profissão de ensinar línguas estrangeiras, é invadida por todos os
lados. Qualquer um pode ser professor.” Em outras palavras, qualquer sujeito que fale inglês fluentemente
tem chances reais de conseguir uma vaga como professor de LI em cursos livres, pois nesses há uma ênfase
maior em práticas de conversação (oralidade).
Um aspecto que não se deve desconsiderar é a questão da desvalorização para com a atividade de
trabalho do professor se entendemos que o fazer docente é um papel que deve ser desempenhado por um
profissional licenciado, obrigatoriamente sujeitos com formação acadêmica; assim, a natureza dessa
formação e, consequentemente, os diversos resultados que dela advêm, em termos de sua qualidade e
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eficácia, são, em larga escala, da responsabilidade do professor, cuja atividade é certamente especializada
(CELANI, 2008, p.26).
Desse modo, essa dicotomia parece ser o quadro mais revelador do trabalho de ensinar LI em cursos
livres de idiomas. Pois, são essas duas representações de profissionais que atuam nesses ambientes de
ensino (SOUZA, 2013).
3. Uma análise ergológica e dialógica: rotas investigativas na interface entre
trabalho docente e linguagem
Interessa-nos nesta rota de investigação mobilizar alguns conceitos advindos da perspectiva
ergológica e a intersecção desses com a concepção dialógica de linguagem.
Primeiramente, cabe-nos pontuar que a Ergologia é uma abordagem pluridisciplinar cujo surgimento
se deu na França entre os anos de 1980 e o final da década de 1990, com o intuito de intervir nas situações
de trabalho (MOTTA, 2012, p.73).
Podemos afirmar que os estudos de base ergológica surgiram a partir de reflexões desenvolvidas
pelo filósofo francês Yves Schwartz, partindo, inclusive, de conceitos provenientes da Ergonomia Situada da
Atividade francesa sobre a relação dicotômica que há entre o trabalho prescrito e o real. Nessa vertente,
verifica-se que o trabalho prescrito não se concretiza, de fato, como o trabalho realizado.
Dessa maneira, para a Ergonomia Situada, o termo trabalho prescrito refere-se ao trabalho que é
designado pela empresa ao trabalhador em consonância com condições previamente determinadas e cujos
resultados a serem alcançados são esperados. Nesse caso, este tipo de trabalho é considerado a tarefa,
visto que é estabelecido a priori, constituindo-se num conjunto de normas e procedimentos que precisam
ser seguidos no desenrolar da situação de trabalho. Em contrapartida, entende-se por trabalho real o que o
trabalhador faz, de fato, almejando dar conta de sua tarefa, levando em consideração condições reais de
realização e com resultados efetivamente atingidos. Esta é a sua atividade, ou seja, o modo como o
trabalhador cumpre os seus objetivos (FREITAS, 2010, p.71-72).
Segundo Trinquet (2010), a Ergologia deve ser concebida como uma abordagem que consiste em
estudar toda atividade humana e, particularmente, a atividade humana do trabalho. Ainda para esse autor,
conhecer melhor a realidade complexa de nossa atividade laboriosa [...] analisar sob quais
condições ela se realiza efetivamente, o que permite organizá-la melhor e, portanto,
torná-la mais eficaz e rentável, tanto em seus aspectos econômicos quanto sociais e
humanos, sem ter de forçar a sua intensidade e/ou sua cadência. Diante dessa postura,
como conceber uma metodologia de pesquisa em um domínio ligado ao trabalho que não
leve em consideração a sua complexidade intrínseca [...]?(TRINQUET, 2010, p.95).
Este apontamento coloca-nos diante da grande problemática que envolve o trabalho, pois mesmo a
explicitação do termo em si é bastante complicada, na medida em que este pode assumir diversos sentidos
e múltiplas apropriações a depender da abordagem de análise a ser seguida.
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Nesse aspecto, é de nosso interesse discorrer sobre a concepção de trabalho empregada pelo
referencial ergológico, cujo enfoque leva em conta as múltiplas e intrincadas relações humanas que
perpassam a atividade de trabalho e, consequentemente, a vida do trabalhador.
Este, por sua vez, é um sujeito que faz uso da linguagem como uma das mais importantes
características humanas, pois o ser humano é um ser de linguagem. Assim, segundo Souza-e-Silva (2002),
eleger as interações no trabalho como objeto de estudo traz como consequência a
necessidade de uma nova postura por parte do(a) linguista, que é obrigado a recorrer a
noções e/ou categorias de análise advindas de outras disciplinas e a fazer empréstimos
diversificados no âmbito de sua própria disciplina, sem abrir mão [...] da noção de
dialogismo, princípio constitutivo da linguagem [...] (SOUZA-E-SILVA, 2002, p.63).
Na busca dessa interface entre trabalho e linguagem de que trata Souza-e-Silva (2002), e
especialmente o trabalho docente para a nossa rota investigativa, quanto à atividade linguageira, ressaltase que toda complexidade envolvida nas interações no trabalho implicam numa relação inerente à
linguagem, pois como nos adverte Nouroudine (2002),
quando a linguagem é ela própria trabalho, isto é, funciona como parte legitimada da
atividade, ela adota, ao mesmo tempo em que revela, essa complexidade. Portanto,
complexidade do trabalho e complexidade da linguagem, de um certo ponto de vista, se
confundem. A linguagem como trabalho não é somente uma dimensão, dentre outras, do
trabalho, mas ela própria se reveste de uma série de dimensões (NOUROUDINE, 2002,
p.21).
Em virtude dessa complexidade de que se revestem o trabalho e a linguagem, para o
desenvolvimento de nossos estudos, opta-se por um itinerário de investigação que leva em conta a relação
intrínseca entre ambos, a partir de um enfoque no qual se considera a linguagem sobre o trabalho –
perspectiva epistemológica apropriada do enquadramento metodológico desenvolvido por Lacoste (1998),
em que a autora em questão distingue três instâncias de práticas linguageiras, a saber: a linguagem como,
no e sobre o trabalho.
Para Lacoste (1998), a linguagem como trabalho é aquela usada durante e para a realização da
atividade. Por outro lado, a linguagem no trabalho não se relaciona diretamente com a execução da
atividade, mas é aquela que se concretiza na própria situação de trabalho. No entanto, a linguagem sobre o
trabalho é fruto da produção de saberes acerca da atividade em si, seja durante a sua realização, entre os
próprios atores das práticas de linguagem, seja em algum questionamento subsequente (LACOSTE, 1998).
Em virtude de nossa proposta buscar, na fala de professores, apreender os saberes sobre a atividade
de trabalho deles, não podemos nos esquecer de que a linguagem é um meio também pelo qual esses
profissionais estabelecem uma relação com o seu objeto de trabalho. Como bem salientado por Leffa
(2008), o professor de LEs toca o ser humano na sua essência pelo objeto do verbo, que é a própria língua,
estabelecendo, desse modo, uma relação com a fala. Nesse aspecto, lançar mão da concepção dialógica de
linguagem em nossa empreitada investigativa faz-se relevante, pois esta vai ao encontro da necessidade do
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ser humano de se comunicar, interagindo com o outro em diferentes esferas da atividade e da existência
humana, a partir do uso de enunciados concretos e dialógicos (BAKHTIN, 1997).
Nessa concepção, “o enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real,
estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes” (BAKHTIN, 1997, p.294). Desse modo,
a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas
linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação
ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua
(BAKHTIN, 2009, p.127, grifos do autor).
Acreditamos que as contribuições do Círculo de Bakhtin no que se refere ao dialogismo, tende a nos
auxiliar na construção de um caminho metodológico de coleta de dados centrada na produção de textos
(orais e/ou escritos) de profissionais que ministram aulas de inglês em cursos de idiomas sobre o trabalho
deles. Esses textos devem ser apreendidos como enunciados – compreendidos como eventos dialógicos,
pois, em vez de apenas responderem a questões da investigação, os mesmos atuam como um momento de
interação da comunicação verbal na perspectiva discursiva. Portanto, segundo Bakhtin (1997), o enunciado
é a unidade real da comunicação verbal. Por isso, a fala só existe, de fato, sob a forma concreta dos
enunciados produzidos por um indivíduo que é entendido como um sujeito de um discurso-fala. Ou seja, “o
discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora
dessa forma” (BAKHTIN, 1997, p.293).
Por essa razão, ao investigar a linguagem produzida sobre o trabalho, considerando a língua como
uma atividade concreta de trocas verbais, é possível realizar “um estudo linguístico-discursivo de caráter
dialógico da situação de trabalho, integrando ao fenômeno verbal o atributo “industrioso”, relativo à
potência humana de agenciamentos da vida” (FREITAS, 2010).
Em sentido mais amplo, essa lente de análise não deve negligenciar o vínculo existente entre a língua
e a vida, pois “a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também
através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua” (BAKHTIN, 1997, p.282).
4. Considerações finais
Por se tratar de um projeto ainda em fase de desenvolvimento, no qual a produção do corpus ainda
está em fase inicial, não há resultados de análise que possam ser apresentados. Espera-se, assim, não
apenas investigar as falas dos profissionais que atuam ministrando aulas de LI em cursos livres de idiomas
sobre o seu trabalho, mas, sobretudo, trazer contribuições no que diz respeito à compreensão da
complexidade do trabalho do professor de línguas que atua nesse contexto específico de ensinoaprendizagem de LE, dando visibilidade para que esses sujeitos e o seu trabalho, nesse lócus de atuação
profissional, tornem-se objetos de outras discussões teórico-metodológicas, em âmbito acadêmico.
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Abstract: Language courses are idiosyncratic spaces of the teaching of foreign language (FL) where graduate and nongraduate professionals have been teaching English language (EL) for such a long time. The language teacher’s work,
within these educational environments, is covered by rather peculiar characteristics and, although they have been
present in the Brazilian scenario of the teaching-learning of FLs for over 70 years, we may say academic data have
been neglecting their importance, since there is a lack of considerable numbers of researches about them in the
specialized literature. In this perspective, the current paper aims to present a theoretical-methodological framework,
whose objective is to be used to investigate the speech of professionals who teach EL lessons, at language courses,
about their work. Thus, we have formulated our study based upon the ergologic approach (SCHWARTZ, 1997), which
takes into account the study of human activities and, particularly, the work activity. Besides, our analyses have been
grounded on the dialogic conception of language (BAKHTIN, 1997), which encompasses the human being’s complexity,
their work and the language as a space for verbal interaction. Since it is a project still under development, there are no
results to be presented.
Keywords: language courses; English teacher; ergology; dialogic conception of language; teaching work.
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O embate na mídia impressa nas eleições 2010
Célia Dias dos SANTOS (UEL)1
[email protected]
Resumo:Este trabalho visa a analisar o papel da mídia na produção e na circulação de sentidos, em textos
midiáticos impressos, no eixo da política como espetáculo. Para tanto, foram analisadas três entrevistas de
dois dos candidatos à Presidência da República, nas eleições de 2010: Dilma Rousseff e José Serra. As
entrevistas escolhidas foram: Dilma solta o verbo, Acabou o 'Risco Brasil’ eOuvir, argumentar, decidir. A
primeira foi publicada pela revista CartaCapital. As duas últimas, com Rousseff e com Serra,
respectivamente, foram publicadas pela revista Veja. Para a análise do corpus realizaremos um estudo
qualitativo, buscando operacionalizar os conceitos de formação discursiva, posicionamento e ethos. A
nossa análise tem como suporte teórico a Análise do Discurso, principalmente nas perspectivas de
Charaudeau e Maingueneau, autores que discutem o caráter enunciativo do discurso político.
Contemplamos também os referenciais teóricos de outros horizontes, como os da área da comunicação, da
linguística textual e da análise da conversação. De acordo com os resultados obtidos, verificamos como as
instituições midiáticas CartaCapital e Veja se posicionaram diante das candidaturas à presidência da
República, principalmente de Dilma Rousseff e José Serra, no pleito de 2010.
Palavras-chave: mídia impressa; entrevista; eleições; interação; posicionamento.
1. Introdução
Como se sabe, a partir de meados do século XX, os ambientes midiáticos (impresso, audiovisual e
oral) passaram a orientar os rumos das eleições presidenciais. Verificamos que a influência da mídia foi
crescendo nos pleitos de 1989, quando Collor se elegeu em 2º turno, apoiado, então, pelos principais
meios de comunicação do país.
A potencialização do campo das mídias manifesta-se evidente em inúmeros
acontecimentos que conformam a eleição de 1989: o caráter de eleição solteira.; a
expectativa de uma experimento inédito de eleição presidencial em uma sociedade
ambientada pela mídia; a legislação eleitoral que permite sem restrições a utilização das
gramáticas midiáticas, desenvolvidas no país em um patamar técnico altamente
qualificado; a competente elaboração estratégico-plástica das campanhas, em especial, a
de Lula e de Collor e, por fim, as interferências político-eleitorais explícitas, inclusive
comprometedoras, de parte da mídia em episódios como o sequestro de Abílio Diniz e a
edição realizada pelo Jornal Nacional do último debate entre Collor e Lula. (RUBIM;
COLLING, 2005, p.172)
As eleições desse ano tiveram um papel fundamental na história das eleições para presidente. Nesse
pleito, houve apenas votação para presidente. O Brasil saía do governo Sarney, um período econômico e
social bastante difícil, além disso havia 22 candidatos ao cargo. A esse respeito, Rubim e Azevedo (1998, p.
192) afirmam:
1
Professora colaboradora do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina. Este artigo
baseia-se na tese Interação Midiática: uma análise do embate na imprensa escrita nas eleições 2010, defendida em 2014, junto ao
Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (UEL).
SANTOS, Célia Dias dos | I CIED (2015) 194-213
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Sem dúvida, a eleição presidencial de 1989, realizada depois de 29 anos sem eleições
diretas para presidente, aparece como acontecimento detonador de um boom imediato e
posterior de reflexões sobre o enlace mídia e política. Pode-se afirmar que este
acontecimento eleitoral, ao fazer emergir em toda sua potência estas novas conexões
entre mídia e política, começa verdadeiramente a conformar um campo de estudos sobre
comunicação e política no país, perpassado por olhares sintonizados com esta nova
circunstância de sociabilidade acentuadamente midiatizada.
O “fenômeno” Collor transformoua eleição de 1989 em um marco para as novas disputas políticas a
serem travadas no país por causa do papel decisivo da mídia e, em especial, pela cobertura jornalística,
realizada durante a campanha eleitoral. Nas eleições de 1994, as emissoras passaram a ampliar o espaço
dedicado às eleições. A cobertura midiática proclamou a vitória, no primeiro turno, de Fernando Henrique
Cardoso.
Em 1998, o presidente Fernando Henrique Cardoso reelegeu-se e, nas eleições de 2002, Luís Inácio
Lula da Silva, após concorrer pela quarta vez ao cargo de presidente da república, chega ao poder. Em
2006, apesar da crise política que marcou as eleições,tivemos a vitória da situação. O petista Luís Inácio
Lula da Silva disputou o segundo turno das eleições com o tucano Geraldo Alckmin e foi reeleito. Coimbra
(2007), em artigo intitulado “A mídia teve algum papel durante o processo eleitoral de 2006?”, assevera
que, nesse pleito, a mídia não conseguiu influenciar um eleitorado já previamente estruturado, havendo
assim um descolamento entre a opinião dos eleitores e a posição editorial da maioria dos jornais e revistas
da grande imprensa. Nas comemorações populares, após a divulgação do resultado final, surgiram faixas
nas ruas com os dizeres: “O povo venceu a mídia” (LIMA, 2007, p. 12).
Na eleição de 2010 para presidente da república, os meios de comunicação expandiram o espaço
para a midiatização2 das eleições. Além do horário político gratuito, os principais candidatos participaram
de entrevistas nos principais telejornais, revistas, além de debates em horários nobres. Vários dispositivos
midiáticos foram colocados a favor da política e ela passa a exercer um papel crucial na definição dos
impactos, nas atitudes e opiniões dos indivíduos e, por conseguinte, na opinião pública. Por isso, elegemos
entrevistas impressas dessa época, publicadas em Veja e CartaCapital, como corpus para nossa análise. A
escolha dessas revistas se justifica por sua penetração em segmentos sociais específicos e por se
constituírem como disseminadoras dos discursos que definem as dinâmicas políticas e sociais.
Vemos com significativas diferenças a eleição de 2010: foi a primeira vez, em mais de 20 anos, que o
petista Luiz Inácio Lula da Silva não se candidatou; foi uma eleição em que se sobrepôs um discurso
marcado pelo continuísmo também por parte do candidato de oposição e, por último, um pleito com duas
candidatas do gênero feminino, Dilma Rousseff (PT) e Marina Silva (PV), figurando entre os três principais
candidatos.
2
Para Rubim (2002), a “midiatização designa a mera veiculação de algo pela mídia, enquanto a espetacularização, forjada pela
mídia ou não, nomeia o processamento, o enquadramento e a reconfiguração de um evento através de inúmeros expedientes”
SANTOS, Célia Dias dos | I CIED (2015) 194-213
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No período escolhido, os embates entre governo e oposição e a troca de acusação entre os
candidatos ganharam espaço nos meios de comunicação. Na ocasião, mídias, como jornal e televisão,
manifestaram suas opções político-partidárias. Nas palavras de Indursky (1999, p. 185), “o que nos mostra
que a imprensa não é neutra, que ela assume um posicionamento, muito embora haja lugar, em seu
âmbito, para a polifonia”.
Em razão dos propósitos desta pesquisa, emergem algumas questões para serem respondidas ao
longo do nosso itinerário: podemos desvendar o ethos de cada uma dessas mídias, tomando por base a
construção dos efeitos de sentido das entrevistas como um todo? Qual a força do ethos dessas mídias
impressas? Parcialidade ou imparcialidade? Que imagem elas querem vender ao público leitor?
2. Jornalismo em revista: Veja e CartaCapital
Os jornalistas Victor Civita e Mino Carta criaram a revista Veja e leia3, hoje denominada somente
Veja, uma publicação da Editora Abril S. A., composta nos moldes de Life. Veja apresenta seções fixas sobre
cinema, literatura, música e traz entrevistas com personalidades de todas as áreas do conhecimento.
Martins e De Luca (2008, p. 219), ao tratar do objetivo da criação da revista, retomam o editorial assinado
por Victor Civita:
O Brasil não pode mais ser o velho arquipélago separado pela distância, o espaço
geográfico, a ignorância, os preconceitos e os regionalismos: precisa de informação rápida
e objetiva a fim de escolher os rumos novos. Precisa saber o que está acontecendo nas
fronteiras da ciência, da tecnologia e da arte no mundo inteiro. Precisa acompanhar o
extraordinário desenvolvimento dos negócios da educação, do esporte, da religião.
Precisa, enfim, estar bem informado. E esse é o objetivo de Veja.
Lançada no Brasil em 09 de setembro de 1968, poucos meses antes do AI-5, que endureceu as
restrições civis no país, como a liberdade de expressão,aspublicações de Veja chegaram a ser mutiladas e
apreendidas. O contexto político em que a Veja nasceu foi fundamental para sua história. Desde sua
criação, “sob o comando inovador de Mino Carta, consolidou-se como um símbolo de resistência, embora
nunca tenha flertado mais a fundo com a esquerda brasileira” (HENRIQUE, 2002, p. 146). Muito pelo
contrário, na opinião de Segurado (2007, p. 230), pesquisadora em comunicação e política, “As publicações
do Grupo Abril são ardorosas defensoras e propagadoras do Consenso de Washington e do neoliberalismo
e adversárias ferrenhas da política externa do governo Lula. No campo político, embora se declare
imparcial na cobertura (um vício da imprensa brasileira), alinha-se claramente ao bloco PSDB/PFL”.
A primeira capa, cuja tiragem foi de 700 mil exemplares, trazia sobre um fundo vermelho, os
símbolos do comunismo, a foice e o martelo, e a chamada “O Grande Duelo no Mundo Comunista”. Victor
3
De acordo com “A história secreta de Veja” (SOUZA, 1988), essa expressão(Leia),que funciona como complementar ao nome,
vinha acima do título, em letras bem pequenas, como forma encontrada pela editora para contornar o registro internacional da
revista americana Look.
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Civita4, na edição comemorativa de 20 anos da revista (1988), em entrevista, disse que “não gostou, porque
poderia parecer que estávamos fazendo propaganda dos comunistas”. Com sete anos de idade, Veja
tornou-se o destaque do mercado brasileiro e, no começo da década de 1980, a revista alcançava 500 mil
exemplares em algumas edições. As pautas que mais fortaleceram a revista foram a cobertura das eleições,
de planos econômicos e da campanha das Diretas, em 1984. O público alvo da revista são as classes B
(50%) e C (26%) da população brasileira (EDITORA ABRIL, 2013). Veja conta com aproximadamente 900 mil
assinantes. Cada exemplar da revista é lido por seis pessoas, em média, e pouco mais da metade é do sexo
feminino.
O jornalista Mino Carta, ex-diretor de Veja, demitido em 1975 por pressão dos militares, em agosto
de 1994, publicou a primeira edição de CartaCapital, revista mensal na sua criação, depois quinzenal e
desde 2001 semanal. Para Santos (2009, p. 51), CartaCapital apresenta “*...+ um tom bastante personalista,
característica que deixa explícita ao leitor. Diferentemente das demais semanais, CartaCapital defende que
os meios de comunicação como um todo assumam publicamente suas afinidades político-partidárias”.
Exemplo disso é o fato de a revista ter tornado explícito, nos períodos eleitorais de 2002 e 2006, em seus
editoriais, o posicionamento favorável ao candidato à presidência Luís Inácio Lula da Silva. A revista
também costuma criticar a imprensa nacional, principalmente a Rede Globo e a Editora Abril, proprietárias
das suas concorrentes: Veja e Época.
Em entrevista concedida ao Diário Regional (OLIVEIRA, 2013), em 27 de abril de 2013, ao ser
questionado sobre o posicionamento da revista, Mino Carta faz as seguintes considerações:
(3) DR – Como o senhor se defende daqueles que acusam a Carta Capital de ser pró-petista?
Carta - Eu aconselho que perguntem se ela é petista ao ministro (das Comunicações) Paulo Bernardo
ou ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Ou então ao ex-ministro e atual governador do Rio
Grande do Sul, Tarso Genro. A Carta Capital pratica o jornalismo honesto e diz o que pensa. É só isso.
O fato de ter escolhido a candidatura Lula, em 2006, ou a candidatura Dilma, em 2010, não significa
que nós sejamos petistas. Nós praticamos de alguma maneira uma análise política que nos leva a
escolher o candidato que, na nossa visão, é o melhor.
Um dos diferenciais da revista é a utilização de vocabulário menos coloquial, que pressupõe um
público leitor com conhecimento de mundo sobre história e economia em geral. As entrevistas são
veiculadas na seção Seu País e na seção Ideias e possuem, em geral, duas ou três páginas, incluindo texto
verbal e não verbal. Manuela Carta, publisher de CartaCapital, por ocasião do lançamento do novo projeto
gráfico da revista, em maio de 2013, em entrevista concedida a Meio & Mensagem (MANZANO, 2013),
reafirma a postura da revista quanto ao número e ao perfil dos seus leitores:
4
“Os 20 anos de Veja”. OESP. 10/9/88.
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(1) M&M: A CartaCapital acredita que, na disputa pelo público das semanais, há espaço para mais
crescimento ou sua tendência é consolidar-se como uma revista que dialoga com um público mais
segmentado e diferente das outras revistas?
(2) Manuela: Nunca quisemos ser uma revista para um milhão de leitores, somos diferenciados das
demais revistas semanais de informação, tanto em público quanto em conteúdo, somos
segmentados e assim permaneceremos. Somos a revista que tem o público mais qualificado,
segundo Estudos Marplan/EGM entre as semanais de informação, e mais qualificado também que a
revista Exame, que é quinzenal. A pesquisa que fizemos nos mostrou que temos uma demanda
reprimida, um público leitor que, quando conhece e experimenta a revista, gosta, portanto temos aí
um espaço para ocupar.
A revista CartaCapital, enquanto instituição jornalística, tem sua imagem associada à imagem do seu
fundador e diretor de redação, o jornalista Mino Carta. Mas quem é Mino Carta? Que papel ele
desempenha na revista CartaCapital?
Em depoimento à Revista Imprensa, o jornalista Tião Gomes Pinto faz revelações significativas para o
delineamento da personalidade de Mino:
Ele foi obrigado a fazer a CartaCapital porque não tinha dono de revista que pudesse
conviver com ele. Precisa ter jogo de cintura. O Mino tem vocação extraordinária para
descobrir o que o leitor precisa e deve ler. Ele é um editor que prioriza a revista não pelo
que o leitor quer ler, mas sim pelo que ele deve ler. (NALDONI, 2013).
Demetrio "Mino" Giuliano Gianni Carta, mais conhecido como Mino Carta, dirigiu as equipes de
criação de publicações que fizeram história na imprensa brasileira, como Quatro Rodas, Jornal da Tarde,
Veja, IstoÉ e CartaCapital, da qual é proprietário e também diretor de redação. Mino Carta está associado a
um estilo jornalístico combativo. Postura crítica, comentários ácidos e ironia são características comumente
atribuídas por quem conhece o jornalista. Questionado se o jornalismo de CartaCapital é exemplo a ser
seguido pela imprensa brasileira, Mino Carta (TONETTI, 2005) assevera:
Eu acho que nós praticamos um jornalismo excepcional. Se você comparar a CartaCapital
com o resto da imprensa brasileira, dá pena. Isso eu sei porque tenho colegas estrangeiros
que confirmam claramente. O jornalismo brasileiro é muito ruim. Você não acompanha o
mundo pela imprensa brasileira, você não sabe o que acontece. E não é ruim somente por
obra de um projeto ardiloso, feito para nivelar por baixo, desprezar o leitor, o ouvinte ou o
telespectador. Não é só por isso. É porque os jornalistas não acreditam naquilo que fazem.
E eles fazem coisa ruim, um mau jornalismo.
Hoje, CartaCapitalconta com uma tiragem de 65 mil exemplares semanais (MIDIAKIT, 2012),
auditados pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC) do mercado brasileiro. As pesquisas ainda apontam
que 90% dos leitores da revista são das classes A e B.
2.1. Concepções de entrevista
Segundo Belo (2006), a prática de entrevistar pessoas com o fito de obter informações começou no
início do século XX. A partir daí, a arte de entrevistar para apurar notícias e fatos foi incorporada à prática
jornalística. Em toda entrevista, além de se pretender uma troca de informações, há um acréscimo, pois,
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segundo o filósofo Martin Buber (1982), no diálogo em que a relação eu-tu é plena, tanto entrevistador
quando entrevistado modificam-se.
De acordo com o linguista alemão H. Steger (apud MARCUSCHI, 1986, p.16), existem dois tipos de
diálogos: o assimétrico e o simétrico. O diálogo assimétrico é caracterizado pela alternância dos
interlocutores nos papéis de falante e ouvinte e caracterizam as entrevistas, os inquéritos, a interação em
sala de aula, pois somente um dos participantes detém o poder da palavra, podendo iniciar, concluir,
dirigir, orientar e, até mesmo, exercer pressão sobre outros participantes.
No diálogo simétrico, supõe-se que todos os participantes tenham o mesmo direito à auto-escolha
da palavra, do tema, do tempo de permanência com a fala. Um exemplo que caracteriza bem essa
modalidade é a conversação cotidiana e natural. Contudo, não deixamos de considerar que: a) o diálogo
simétrico pode ter momentos de dissimetria (assimetria); b) nas interações assimétricas pode haver a
inversão de papéis.
A entrevista é considerada um diálogo assimétrico, uma vez que normalmente não há
coparticipação, já que o entrevistador é quem dirige, controla a conversa. De acordo com Galembeck
(1995, p.58):
Na conversação assimétrica, um dos interlocutores ‘ocupa a cena’, por meio de uma série
de intervenções de nítido caráter referencial, ou seja, de intervenções nas quais se
desenvolve o tópico ou o assunto do fragmento. O outro participante só contribui com
intervenções episódicas, secundárias em relação ao tópico do fragmento conversacional.
Além disso, existe uma assimetria no sentido inverso, conforme Halperín (2002, p.13): “Nosso sujeito
está no centro da cena – o elegemos por ser um personagem público ou porque é um homem chave no
tema que exploramos -, e nós, facilitando seu contato com os leitores e ouvintes.”
Charaudeau (2010, p. 214) considera que a entrevista, o bate-papo e a conversa são situações
dialogais bem próximas, no entanto:
A entrevista, ao contrário das duas outras, exige uma diferenciação de status, de tal modo
que um dos parceiros seja legitimado no papel de “questionador” e outro no papel de
questionado-com-razões-para ser questionado”. A alternância de fala se acha então
regulada e controlada pela instância entrevistadora segundo suas finalidades.
3.A Mídia e seus movimentos nas eleições 2010
As mídias não são a própria democracia, mas são o
espetáculo da democracia. (CHARAUDEAU, 2010, p. 20)
Os processos eleitorais são extremamente complexos e dinâmicos, diferenciados, é claro, em sua
lógica, em se tratando de acontecimentos nacionais, regionais ou locais. O posicionamento e a participação
da mídia impressa, em tempo de eleições, podem mudar atitudes e comportamentos dos eleitores.
Conforme Charaudeau (2010, p.253),
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é claro que as mídias nos impõem suas escolhas dos acontecimentos. Não é, como dizem,
porque elas tornem visível o invisível, mas porque só tornam visível aquele visível que
decidiram nos exibir, e esse visível não é necessariamente igual àquele que o cidadão
espera ou deseja: agenda midiática, agenda política e agenda cidadã não são sempre as
mesmas.
Assim, uma vez mais ressaltamos que a mídia pode, por vezes, influenciar a maneira de se pensar a
política e que ela tem ferramentas suficientes para transformar a seu favor tanto o aspecto material quanto
o semântico dos enunciados políticos. Nesse sentido, ela opera um trabalho discursivo convergente com o
seu ponto de vista. Charaudeau (2010, p. 151) designa de “modos discursivos” as categorias que
correspondem à especificidade das instruções dadas, no caso, pela situação de comunicação midiática.
A entrevista é um acontecimento provocado, pois, em um espaço determinado, ela fomenta, aguça,
incita o confronto de ideias. E essa provocação sempre impõe um ponto de vista por meio do qual os
assuntos serão abordados.
Ramonet (2003, p. 246), adotando o seguinte ponto de vista: o poder midiático é o meio utilizado
para nos passar a ideia de globalização, faz a seguinte afirmação:
O sistema midiático assim constituído em oligopólios, e com a tendência de continuar se
concentrando cada vez mais, é o segundo poder que rege o mundo atual – o primeiro é o
poder econômico e financeiro – e funciona como o aparato ideológico da globalização.
Sendo oportuna a comparação com a informática: “*o sistema midiático+ é o sistema que,
em certa medida, constitui o modo de inscrever, no disco rígido de nosso cérebro, o
programa para que aceitemos a globalização.
Com relação à eleição para presidente, há de se considerar que desde a “era Collor”, o caráter de
espetáculo na política está cada vez mais acentuado em nosso país. É claro que as mudanças nas
sociedades de massa tornam o ideal de democracia dependente dos mass media. Em 2010, vimos surgir os
weblogs de candidatos, além de outros dispositivos, como as redes sociais de relacionamento e microblogs,
os quais possibilitaram uma forma de campanha completamente nova no país. Os presidenciáveis foram
transformados em atores, em espaços distintos da máquina midiática.
Segundo Charadeau (2008), a espetacularização trabalha as diferentes encenações, suscitando
interesse, emoção, terror ou compaixão. Esses aspectos permitem que o discurso midiático seja
dramatizado, ficcionalizado por meio dos modos de escritura.
Passaremos, em seguida, à análise do nosso corpus, formado por três entrevistas: da revista
CartaCapital, com Dilma Rousseff, analisaremos uma entrevista intitulada “Dilma solta o verbo” (6
jun.2010); da revista Veja - com José Serra, "Ouvir, argumentar, decidir"(17 abr.2010) - e - com Dilma
Rousseff, “Acabou o ‘Risco Brasil’ ” (16 jun.2010).
Em nosso percurso analítico, interpretaremos os seguintes trechos, retirados do corpus delimitado:
(i)título, (ii) parágrafo inicial de apresentação do entrevistado e (iii) jogo de perguntas e respostas que
apresentam mais pistas enunciativas.
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3.1. Das entrevistas impressas em Veja e CartaCapital
3.1.1 Os títulos das entrevistas
Revista CartaCapital:
“Dilma solta o verbo”
Com a construção do enunciado, “Dilma solta o verbo”, CartaCapital mostra Dilma Rousseff como
uma mulher forte, corajosa e resistente que não tem medo de falar o que pensa.
Revista Veja:
(a) “Ouvir, argumentar, decidir” (Serra)
(b) “Acabou o ‘Risco Brasil’ ” (Dilma)
Os verbos, no título da entrevista do candidato José Serra (a), sugerem a imagem de um político com
muita capacidade para governar, criando assim um ethos de político centrado, aquele que sabe o que faz e
apto para decidir em nome da nação. Verificamos também que, apesar das orações estarem justapostas,
houve o estabelecimento de uma gradação que inspira um tom de causa e consequência, ou seja, busca-se
a implicação de um evento em outro, sinalizando que o interlocutor talvez possa constatar o fato de José
Serra ser mais “confiável”, porque suas decisões estão fundamentadas no “argumento” e na “escuta”.
O título “Acabou o Risco Brasil” é resultado do interdiscurso da oposição e, de certa forma, também
da mídia que, na ocasião, fazia questão de salientar a pouca experiência política da candidata. Retoma
também o termo empregado na eleição de 19895, aquela em que que Collor venceu, liderada por meses
por Lula e Brizola, e na qual se chegou a discutir o fenômeno “Brizula”, ou risco6 “Brizula”, dando-se por
definitivo que um dos dois venceria.
3.1.2 Sobre a apresentação dos Candidatos
É de praxe, antes do jogo de perguntas e respostas, que o entrevistado seja apresentado ao leitor,
definindo assim o seu perfil político e nível de influência na área.
3.1.2.1 José Serra por Veja
É com o enunciado posto a seguir que Veja abre a entrevista de José Serra em 17 de abril de 2010.
5
No cenário eleitoral de 1989, havia uma polarização muito clara. No campo da direita: Fernando Collor (PRN), Paulo Maluf (PDS),
Guilherme Afif (PL), Aureliano Chaves (PFL) e Ronaldo Caiado (PSD). No campo da esquerda: Lula (PT, com PCdoB e PSB), Leonel
Brizola (PDT), Mário Covas (PSDB), Ulysses Guimarães (PMDB) e Roberto Freire (PCB) (FERNANDES, 2010).
6
Nas eleições de 2002, uma propaganda da atriz Regina Duarte, que gerou grande repercussão, também chamava a atenção para o
risco de eleger Lula presidente. “Tô com medo. Faz tempo que eu não tinha esse sentimento. Porque eu sinto que o Brasil nessa
eleição corre o risco de perder toda a estabilidade que já havia conquistado. [...] nós temos dois candidatos à Presidência. Um eu
conheço, é o Serra, o homem dos genéricos, do combate à AIDS. O outro eu achava que conhecia. Mas hoje eu não conheço mais.
Tudo o que ele dizia mudou muito. Isso dá medo na gente”. (Horário Eleitoral gratuito - campanha José Serra) (Grifo nosso).
(SAVARESE, 2010)
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(4) Nenhum outro político brasileiro tem no currículo uma vida pública como a de José Serra, 68
anos, candidato do PSDB à sucessão de Lula. Jovem, presidia a União Nacional dos Estudantes (UNE)
quando veio o golpe de 64, que o levou ao exílio, expatriação que duraria até 1978. De volta ao
Brasil com diploma de economia no bolso, foi secretário do planejamento, deputado constituinte,
senador, ministro do Planejamento e da saúde, prefeito e governador.[...]. (VEJA, 17/04/2010) (grifos
nosso)
O enunciado de apresentação do candidato marca uma formação discursiva ideológica da instituição,
que procura, consequentemente, influenciar a opinião do leitor da revista, elogiando o candidato tucano,
apresentado como o melhor e mais qualificado dentre os demais candidatos. Considerando que “... mesmo
quando escrito, um texto é sustentado por uma voz – a de um sujeito situado para além do texto”
(MAINGUENEAU, 2001, p.95), o enunciador mobiliza informações da carreira política do candidato,
reforçando a imagem favorável de altamente qualificado.
A apresentação valoriza a biografia do candidato, enfatizando a sua longa trajetória política. Em
quase 50 anos de carreira, José Serra esteve presente nos momentos principais da história brasileira, como
no golpe militar ocorrido em 1964, que estabeleceu, no Brasil, uma ditadura militar até 1985. Nos primeiros
dias após o golpe, uma violenta repressão atingiu os setores politicamente mais mobilizados à esquerda no
espectro político, como, por exemplo, o CGT, a União Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas
e grupos católicos, como a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Ação Popular (AP).
Logo depois do golpe de 1º de abril, Serra se refugiou na embaixada da Colômbia e seguiu para a
França. Na ocasião, militares combateram sem piedade qualquer ameaça comunista ou manifestações
contra o governo, marcando a história7 do Brasil com atos autoritários.Assim, o fato de Serra ter sido
deslocado do território original, na época da ditadura, o qualifica como um forte candidato, porque o exílio
lhe garantiu preparo e experiência para ocupar cargos públicos.
Ainda na apresentação, a revista reproduz uma fala de Serra, na qual se percebe o tom de
desprestígio e de reprovação com relação a Dilma Rousseff:
(4) Veja: Hoje me choca ver gente que sofreu sob a ditadura no Brasil cortejando ditadores que
querem a bomba atômica, que encarceram, torturam e matam adversários políticos, fraudam
eleições, perseguem a imprensa livre, manipulam e intervêm no Legislativo e no Judiciário. Isso é
incompatível com a crença na democracia e o respeito aos direitos humanos. (Veja, 17/04/2010)
(grifos nossos)
7
Ao tratar do papel que a grande mídia desempenhou na preparação e sustentação do golpe militar, argumenta: “não são poucos
os atores envolvidos no golpe de 1964 – ou seus herdeiros – que continuam vivos e ativos. A grande mídia brasileira, apesar de
muitas e importantes mudanças, continua basicamente controlada pelos mesmos grupos familiares, políticos e empresariais”.
(LIMA, 2014)
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Na citação anterior, verificamos a intertextualidade do discurso de Serra, construída com uma
referência indireta ao apoio do PT (Lula e Dilma) ao presidente do Irã em 2009. Na ocasião, a visita ao
Brasil do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, selou o reconhecimento internacional da legitimidade
do programa nuclear iraniano, criticado pelos EUA e por Israel por supostamente desenvolver armas
atômicas mediante um programa alegadamente pacífico.
3.1.2.2. Dilma Rousseff por Veja e CartaCapital
Apresentação de Veja: Acabou o “Risco Brasil”
A revista Veja abre a entrevista de Dilma Rouseff, intitulada “Acabou o ‘Risco Brasil”, em 16 de junho
de 2010, com o seguinte trecho:
No começo, Dilma Rousseff estranhou o papel de candidata à Presidência da República. Em
comparação com o cotidiano acelerado de ministra-chefe da Casa Civil do governo Lula, as primeiras
semanas de pré-campanhalhepareceram umas férias sem muita graça. Na semana que precedeu
sua indicação oficial pelo PT, ela tinha voltado ao ritmo de multitarefas e a mente estava ocupada
com os mais diversos assuntos. "Estamos retomando o poder territorial dos bandidos no Rio de
Janeiro. Droga se combate com inteligência, força e dando opções de trabalho e lazer aos jovens", diz
ela, animada com os resultados da parceria do governo federal com o governador Sérgio Cabral.
Dilma criticou José Serra, o candidato do PSDB, por ter fustigado o governo da Bolívia e sua leniência
no combate ao tráfico de drogas. "Lá também vamos precisar de parceria para destruir os centros de
refino de coca, e brigar com o governo boliviano não é um bom caminho." Dilma falou a VEJA sobre
drogas, PMDB, juros, inflação, crescimento e sua vida na prisão por crimes políticos no regime
militar. (Veja, 16/06/2010) (grifos nossos).
O que nos chama a atenção, no fragmento de apresentação, é a sugestão de que o cargo de
presidente tivesse sido imposto à candidata por Lula, conforme verificamos nos trechos: “estranhou o
papel...” e “...as primeiras semanas de pré-campanha lhe pareceram umas férias sem muita graça”.
A voz midiática de Veja coloca a candidata como submissa às decisões do então presidente Lula. Ao
enunciar os trechos, nesse momento, cria uma imagem de ofuscamento da pré-candidata, o que nos
remete à proposição de Pêcheux (1995, p. 161):
Uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhe
seria 'próprio', vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui
em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou
proposições que mantêm com outras palavras, expressões ou proposições da
mesma formação discursiva (PÊCHEUX, 1995, p. 161)
Ainda, nesse texto introdutório, de apresentação de Dilma Rousseff, a exemplo da entrevista com
José Serra, a revista reproduz sua fala, bem mais amena, sobre o seu adversário:
(6) Veja: [...] Dilma criticou José Serra, o candidato do PSDB, por ter fustigado o governo da Bolívia e
sua leniência no combate ao tráfico de drogas. “Lá também vamos precisar de parceria para destruir
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os centros de refino de coca, e brigar com o governo boliviano não é um bom caminho”. (Veja,
16/06/2010) (grifos nosso)
Apresentação da CartaCapital: “Dilma Solta o Verbo”
Nos enunciados de CartaCapital, a ex-ministra é representada sob a perspectiva de
comprometimento, segurança e força, a começar pela descrição do cenário da entrevista: “Dilma Rousseff
posta-se bem à frente da própria imagem”.
Um enorme painel da candidata ao lado de seu mentor, o presidente Lula, punhos cerrados no ar,
emoldura o cenário da entrevista. Dilma Rousseff posta-se bem à frente da própria imagem.
Desconfortável no início com perguntas pessoais, ela se solta aos poucos, enquanto defende as
realizações do atual governo e explica o que pretende fazer se eleita. Basicamente, aprofundar o
processo de inclusão social que, afirma, não se esgota em um ou dois mandatos. Talvez por isso, ao
se referir a uma eventual gestão sua, prefira a palavra "período". No centro desse "período",
promete, estará o compromisso de levar o País ao clube das nações desenvolvidas, com a
erradicação da miséria, o foco na educação e na cultura. "Minha meta é levar nossa população à
classe média, no mínimo." Dilma não é Lula. É uma discípula, uma aluna. Mas uma aluna aplicada,
vê-se. Como nunca disputou eleição, a ex-ministra da Casa Civil replica o "mestre" ao usar o recurso
de contar historinhas nas respostas por vezes pouco concisas. Também se percebe na candidata o
cuidado de evitar certas polêmicas durante a campanha, o que não inclui fugir às perguntas sobre
seu envolvimento na luta armada durante a ditadura. "Tenho muito orgulho de ter resistido do
primeiro ao último dia". Alvo de seguidas denúncias, nunca comprovadas, desde que Lula anunciou
ser ela a sua candidata ao governo, afirma não acreditar que a imprensa brasileira seguirá o exemplo
da venezuelana e se tornar cada vez mais hostil diante da possibilidade crescente de permanência do
PT no poder. Por ser contraproducente. "De que adianta? Mais do que somos criticados, e daí?" Na
entrevista, a pré-candidata disse ser contra a descriminalização das drogas, defendeu a reconstrução
do Estado e repeliu os estereótipos. "Nunca me senti uma pessoa infeliz. Não sou carente, sou
alegre”. (CartaCapital, 06/06/2010) (grifos nosso).
Na construção do texto, o enunciador mobiliza mecanismos que buscam elevar a candidata, emprega
palavras e expressões de cunho positivo e entusiasta, como podemos verificar nos fragmentos que seguem:
“alvo de denúncias, nunca comprovadas” e “Dilma não é Lula. É uma discípula, uma aluna. Mas uma aluna
aplicada, vê-se”. Essas escolhas, no funcionamento discursivo, contribuem para a construção do ethos próLula e consequentemente pró-Dilma, uma vez que ela é a escolhida para dar continuidade8 ao governo
petista no Brasil.
Quando diz que Dilma replica o “mestre”, ao colocar aspas em “mestre”, reforça a imagem de Dilma
como seguidora dos passos de Lula. Nas aspas colocadas em “nunca me senti uma pessoa infeliz. Não sou
carente, sou alegre”, o enunciador marca um distanciamento entre a voz da revista e a voz da própria
Dilma, na tentativa de romper estereótipos. Com relação à interpretação do uso das aspas, estamos de
acordo com Maingueneau (2001, p. 163), quando este afirma que “o leitor deve construir uma
8
Nas palavras da própria Dilma: "O meu projeto é dar continuidade ao governo do presidente Lula. Mas não é repetir. É avançar e
aprofundar." (DELGADO, 2010)
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determinada representação do universo ideológico do enunciador para conseguir ter sucesso na
interpretação pretendida”.
3.2 Sobre as perguntas de CartaCapital para Dilma Rousseff
CC: Neste ano, o Brasil pode escolher a primeira mulher presidente. Faz diferença?
Faz toda a diferença, porque tem uma história de poucos direitos para as mulheres. Até o direito de
voto para as mulheres é muito recente no Brasil, menos de cem anos. E ainda têm grandes
desigualdades, que vão desde – apesar de as mulheres terem maior nível de escolaridade – ganhar
dois terços do salário dos homens até o fato de existir violência familiar contra a mulher. Outro dia
aproximou-se de mim um casal jovem, o rapaz carregava um menino de uns 3 anos, e a mulher, uma
moça loira, vinha com uma menina, de vestido comprido, bonitinha, cabelo encaracolado. Chamava
Vitória. E a mãe falou assim: “Eu trouxe a Vitória para que você diga a ela que as mulheres podem,
que mulher pode”. Eu olhei pra Vitória e perguntei: ‘mulher pode o quê?’ E ela: “ser presidente”. Eu
disse: ‘Vitória, mulher pode ser presidente. Porque isso faz parte do sonho que toda criança tem:
quero ser pirata, toureiro. Mas também pode querer ser presidente e mulher nunca quis. Uma
menina que quer é sinal dos tempos. E ela se chama Vitória, achei simbólico’.
CC: Mas existe um modo feminino de governar?
Tem um modo feminino inegável na vida privada. Nós cuidamos, providenciamos e incentivamos. É
interessante levar isso para a vida pública. Vou contar outra historinha. Foi uma senhora, de seus 50
anos, a um sindicato, muito incomodada com a oposição homem e mulher. E ela sintetizou o
problema da seguinte forma: “Somos 52% da população, mas os outros 48% são nossos filhos. De
maneira que, se formos presidentes, fica tudo em casa. Ou seja, damos conta de cuidar das mulheres
e dos homens, até porque a nossa relação com os homens não é de oposição. O olhar feminino não é
excludente”.
CC: Já foi, nos primórdios do feminismo.
Talvez no começo, porque, sempre que se afirma alguma coisa, torna a diferença muito forte. A
mulher, para ter consciência de que era discriminada, teve de fazer esse movimento. Mas não
acredito que, hoje, esse seja um processo que crie diferenciação, desigualdade. Nenhuma política
feminina é uma política anti-homem.
CC: Acha que vão surgir muitos pretendentes... presidente e de visual novo?
É o tipo da coisa que não dá tempo nem de a gente pensar, nessa função. Agora, não sou contra,
não, viu? As pessoas namorarem, coisas assim. Acho bom.
CC: Se a senhora fosse se comparar a uma mulher governante, estaria mais para Michelle Bachelet
ou para Margaret Thatcher?
Ah, Bachelet, sem dúvida, óbvio. Não tenho a posição conservadora da Thatcher.
CC: Mas a pintam como dama-de-ferro, não?
É um estereótipo. Toda mulher é dama-de-ferro? Nunca vi um senhor-de-ferro, você já viu algum?
A primeira pergunta da entrevista destaca a possível vitória de Dilma, ainda que procure um
distanciamento da proposição “(...)..pode escolher a primeira mulher presidente(...)”. Na sequência,
asperguntas feitas pelo enunciador de CartaCapital evocam o tema mulheres presidentes de uma maneira
leve, tecendo comentários sutis acerca do novo visual da candidata, o destaque à aparência e o reforço à
beleza como um modo de distinção feminina.
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Verificamos referências à vida privada da candidata e a menção de aspectos da vida, entendidos,
comumente, como de âmbito pessoal, com insinuações sobre a possibilidade de mudança de status após a
“bem provável” eleição.
Nas perguntas em questão, o enunciador traz à tona referências sobre a
personalidade de Dilma, como “durona”, “sargentona”, dotada de temperamento forte e ainda tida como
uma negociadora intransigente e técnica, associando então a ministra ao estereótipo de “Dama de Ferro”.
Lembrando que, para Amossy e Pierrot (2003), a noção de estereótipo está relacionada ao conceito de préconstruído, pois ambos, estereótipo e pré-construído, dizem respeito a conceitos que estão cristalizados,
gravados, fixados no imaginário social.
CC: Como a senhora recebe essa acusação, que deve se intensificar durante a campanha, de ter
sido “terrorista”?
Tenho dúvidas de que vai se itensificar uma coisa dessas, porque é contraproducente. A discussão
sobre a resistência à ditadura é contraproducente para quem não resistiu. Sinto muito orgulho de ter
resistido do primeiro ao último dia, de ter ajudado o País a transitar para a democracia e de não ter
mudado de lado.[...] O que queríamos caracterizar naquele momento era a existência de uma
violência de Estado que levou pessoas, nos mais variados locais, a tomar posições firmes diante da
ditadura. Eu tomei. (CartaCapital, 06/06/2010).
A revista CartaCapital também aborda a participação da candidata na luta armada durante a
ditadura, contudo a maneira como a pergunta é elaborada coloca Dilma em posição de vítima. Há uma
ênfase negativa sobre a conduta da candidata. O trecho “como a senhora recebe essa acusação” confirma a
afirmação anterior.
3.3 Sobre as perguntas de Veja para Dilma Rousseff
Veja:a sua opção pela luta armada na juventude vai ser um assunto da campanha eleitoral. As
pessoas querem saber se a senhora deu tiros, explodiu bombas ou sequestrou? (Veja, 16/06/2010)
Estou pronta para esse debate. Pertenci a organizações políticas que praticaram esses atos. Mas eu
jamais me envolvi pessoalmente em alguma ação violenta. Minha função era de retaguarda. Os
processos militares que resultaram em minha condenação mostram isso com clareza. Nunca fui
processada por ações armadas. Tenho muito orgulho de ter combatido a ditadura do primeiro ao
último dia. A ditadura foi muito ruim. Cassaram os partidos políticos, fecharam órgãos de imprensa,
criaram mecanismos de censura, torturaram... Mas o pior de tudo é que tiraram a esperança da
minha geração. Quem tinha 15 ou 16 anos de idade quando foi dado o golpe de 64 não enxergava o
fim do túnel. De um jovem cheio de energia e sem esperança podem-se esperar reações radicais
Veja: é fácil falar vendo o filme de trás para a frente, mas hoje parece indiscutível que o pessoal da
luta armada não queria a volta da democracia, mas apenas trocar uma ditadura de direita por
outra de esquerda. A senhora tinha consciência disso?(Veja, 16/06/2010)
Olha aqui, no meio da luta essas coisas nunca ficavam claras. O objetivo prioritário era nos livrar da
ditadura, e lutamos embalados por um sentimento de justiça, de querer melhorar a vida dos
brasileiros. Foi um período histórico marcante em todo o mundo. Os jovens franceses estavam nas
barricadas de maio de 68. Jovens americanos morriam baleados pela polícia nos câmpus
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universitários em protesto contra a Guerra do Vietnã, a mais impopular das guerras dos Estados
Unidos, um conflito que aos nossos olhos tinha uma potência tecnomilitar agressora sendo derrotada
por um país pequenino, mas valente. Nossa simpatia com o lado mais fraco era óbvia. Depois
daquela fase eu continuei lutando pela democracia no antigo MDB e no PDT. Nesse processo, eu
mudei com o Brasil, mas jamais mudei de lado.
As perguntas do enunciador de Veja ressaltam o passado de militância política da candidata nos
grupos de esquerda, na tentativa de rotular a candidata como terrorista. Na construção das perguntas de
Veja, observamos um direcionamento contrário às ações da candidata, no período da ditadura, focalizando
o acontecimento de maneira negativa.
Em “A sua opção pela luta armada...”, oentrevistador traz à tona um tema polêmico. Uma
curiosidade do público, segundo ele, que quer saber o que a candidata fez no período de regime militar,
conduzindo o questionamento e enumerando as possíveis ações cometidas pela candidata nesse período:
“deu tiros, explodiu bombas ou sequestrou”.
(11) Estamos de acordoque os alicerces dessa robustez foram lançados durante os oito anos do
governo Fernando Henrique Cardoso? (Veja, 16/06/2010). (Grifo nosso).
Na pergunta supracitada, apesar da suposta imparcialidade de Veja, constatamos que a instituição se
posiciona, ao utilizar a primeira pessoa do plural, que pode incluir tanto o entrevistador quanto o corpo
editorial da revista. A questão pede o aval da candidata em relação ao presidente Fernando Henrique
Cardoso, o responsável pela política econômica e pela estabilidade financeira do Brasil, na opinião da
revista.
3.4 Sobre as perguntas de Veja para José Serra
Veja: Depois que os repórteres da sucursal da Veja em Brasília desvendaram uma tentativa de
aloprados do PT de, uma vez mais, montar uma central de bisbilhotagem de adversários, as
operações foram desautorizadas pela cúpula da campanha. O senhor responsabiliza a candidata
Dilma Rousseff diretamente pelas malfeitorias ali planejadas? (grifo nosso).
O enunciado de Veja, na pergunta feita ao candidato José Serra, ressaltando os termos “aloprados”,
“bisbilhotagem” e “malfeitorias”, inscreve-se no interior de uma formação discursiva (FD) antipetista.
Retoma aqui o “escândalo dos aloprados”, aquele em que petistas foram presos em São Paulo, às vésperas
das eleições de 2006, quando se preparavam para comprar um dossiê contra o então candidato do PSDB ao
governo de São Paulo, José Serra. Era uma tentativa de implicar Serra no crime de desvio de recursos
públicos. De acordo com Stangler (2011), “o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tentando diminuir a
importância do episódio, expressão pela qual o caso é lembrado até hoje”.
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Como o Senhor conseguiu governar a cidade e o estado de São Paulo sem nunca ter tido uma única
derrota importante nas casas legislativas e sem que se tenha ouvido falar que lançou mão de
“mensalões” ou outras formas de coerções sobre vereadores e deputados estaduais?
Há na pergunta em questão um direcionamento, uma condução, que destaca as qualidades do
candidato. Assim, o elogio ao candidato tucano e os comentários sobre episódios de corrupção ligados ao
partido opositor (PT) explicitam o posicionamento da instância midiática Veja, contrária ao PT e favorável
ao PSDB.
4. Considerações finais
Considerando as eleições como “um momento e um procedimento – ritualizado, periódico e
legitimado – de escolha e investidura de dirigentes (representativos) para exercício de poder (eres) na
sociedade” (RUBIM, 2000, p.91) e levando em conta que, desde a “era Collor”, o caráter de espetáculo na
política está cada vez mais acentuado em nosso país, pois os meios de comunicação apresentaram uma
cobertura diferenciada que foi evoluindo a cada pleito, o nosso trabalho representa uma interpretação
sobre o embate na imprensa escrita nas eleições de 2010.
Empreendemos uma análise do papel da mídia na produção e circulação de sentidos, no eixo da
política como espetáculo, por meio das entrevistas das revistas impressas Veja e CartaCapital de
presidenciáveis nas eleições de 2010. Essas revistas desempenham um papel importante na formação da
opinião pública e apresentaram posicionamentos políticos distintos durante a cobertura da campanha
presidencial. Focalizamos, em nossa pesquisa, as entrevistas, porque, conforme Charaudeau (2008, p.291):
Nas entrevistas, nos vemos às voltas com encenações diversas, seja porque os jornalistas
‘paparicam’ os convidados fazendo perguntas preparadas e convenientes, seja porque
procuram obter revelações, perseguindo o que se encontraria escondido sob o que é dito:
o segredo.
Conforme abordamos no referencial teórico, as entrevistas são gêneros textuais oriundos de textos
orais e circulam na mídia de forma escrita. Por isso temos poucas informações sobre o que é realmente
mobilizado no momento de sua produção oral, tais como pausas, hesitações, tom de voz e ainda
informações visuais, como gesticulação e postura. Além desses aspectos, consideramos o fato de a
entrevista constituir um discurso de interação assimétrica.
Ao fazermos os recortes para análise, procuramos apresentar evidências enunciativas que
respondessem nossas perguntas iniciais, segundo as quais as instituições midiáticas CartaCapital e Veja
enunciam do lugar discursivo com uma parcialidade explícita pelas instituições, o que direciona uma
tomada de posição frente às candidaturas à presidência da República. Concordamos com Fausto Neto
(2004, p.121), quando ele afirma: “em situações de complementaridades ou não, política e mídias se dão as
mãos para apontar os caminhos que a ‘outra ponta’, os eleitores, devem fazer para tornar a política numa
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realidade, por sinal, já definida por aqueles campos”. Neste artigo, procuramos apresentar uma de outras
possíveis análises do embate, na mídia impressa, nas eleições de 2010, considerando que a mídia tem um
papel de protagonista na definição dos debates que circulam nos espaços públicos.
Os resultados da análise indicam que, nas eleições de 2010, o candidato à presidência José Serra, do
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), é o representante de Veja. A revista aproveita qualquer
oportunidade para colocar José Serra como o “mais bem preparado” para assumir o cargo de presidente do
Brasil. O título da entrevista do candidato tucano, “Ouvir, argumentar, decidir”, é desdobrado na
apresentação do candidato feita pela revista e lhe confere credibilidade. Além do título e da apresentação,
a análise do direcionamento das perguntas são indicadores de uma formação discursiva antipetista.
O posicionamento de Veja é contrário com relação ao Partido dos Trabalhadores (PT), aproveitando
todas as oportunidades para expor falhas do partido. A organização dos enunciados das entrevistas
desfavorecia Dilma Rousseff, com textos opinativos negativos em relação à sua conduta e ao seu passado
político.
Entendemos que, no embate da cobertura jornalística da disputa à presidência do Brasil, em 2010, a
produção discursiva da revista CartaCapital inscreveu-se em uma formação discursiva petista. A revista
assumiu uma posição política claramente simpatizante em relação ao governo federal petista, desde a
gestão de Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda que Mino Carta prefira assegurar que a CartaCapital não é petista
e que a escolha de Lula em 2006 e a candidatura de Dilma em 2010 foram apenas resultados de análise
política.
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Abstract: This work aims to analyze the role of media in the production and circulation of meanings, in printed media
texts, in the axis of politics as a spectacle. Therefore, we analyzed three interviews of two candidates running for
presidency in the elections of 2010: Dilma Rousseff and José Serra. The chosen texts were: Dilma solta o verbo,
published in the CartaCapital magazine; Acabou o ‘Risco Brasil’ and Ouvir, argumentar, decidir. The last two ones with
Rousseff and Serra, respectively, both published by Veja magazine. For the analysis of the corpus we will hold a
qualitative study seeking to operationalize the concepts of discursive formation, positioning and ethos. Our analysis is
theoretically based on the Discourse Analysis, especially in Charaudeau and Maingueneau’s point of view, authors who
discuss the declarative nature of the political discourse. We also include the theoretical frameworks of different areas
such as communication, textual linguistics and conversation analysis. According to the results, we see how the media
institutions CartaCapital and Veja positioned themselves in relation to the nominations for presidency, mainly of Dilma
Rousseff and José Serra, in the election of 2010.
Keywords: print media; interview; elections; interaction; positioning
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A responsabilidade enunciativa no gênero jurídico
contestação
Célia Maria de MEDEIROS (UFRN)1
[email protected]
Maria das Graças Soares RODRIGUES (UFRN)2
[email protected]
Resumo:Propomos-nos com este trabalho descrever, analisar e interpretar a Responsabilidade Enunciativa (RE) em
contestações, gênero discursivo circunscrito ao domínio jurídico. Para tanto, elegemos como objeto o estudo das
seções “Das preliminares” e “Do mérito” da contestação, compreendendo, assim, respectivamente, a defesa no plano
do processo e a contra-argumentação à pretensão da parte autora. Nossa ancoragem teórica situa-se na perspectiva
da Análise Textual dos Discursos (ADAM, ([2008] 2011a), o que nos permitirá trabalhar os planos de texto. Por fim,
descreveremos e analisaremos a (não) assunção da responsabilidade enunciativa em nossos dados, subsidiando-nos
na Linguística Enunciativa (RABATEL, 2008a, 2009).O tipo de pesquisa é documental, de caráter qualitativointerpretativista. Para este artigo, selecionamos 1 (uma) contestação do nosso corpus de pesquisa doutoral. Os dados
revelam que o locutor – enunciador primeiro (L1/E1), instância responsável pela materialidade dos enunciados,
assume o conteúdo proposicional.
Palavras-chave:análise textual dos discursos; responsabilidade enunciativa; plano de texto; contestação; gênero
jurídico.
1. Introdução
Este trabalho apresenta resultados iniciais de pesquisa de doutorado que tem como tema a
responsabilidade enunciativa no gênero contestação, gênero discursivo circunscrito ao domínio jurídico.
Propomos-nos a descrever os planos de texto nas seções “Das preliminares” e “Do mérito”,
compreendendo, assim, respectivamente, a defesa no plano do processo e a contra-argumentação à
pretensão da parte autora, bem como a analisar a responsabilidade enunciativa a partir da perspectiva da
qual o enunciador assume o ponto de vista.
Nossa ancoragem teórica situa-se na abordagem da Análise Textual dos Discursos (ATD), enfoque
desenvolvido por Adam ([2008] 2011a), objetivando analisar a produção co(n)textual de sentido,
fundamentada na análise de textos concretos. No que se refere à responsabilidade enunciativa,
acompanharemos os estudos de Rabatel (2008a, 2009). Para fundamentar o discurso jurídico, trazemos
Rodrigues et al. (2014), Lourenço (2013) e Palaia (2010).
Nossa pesquisa de doutorado está vinculada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da
Linguagem (PPgEL) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e integra o Grupo de Pesquisa
da Análise Textual dos Discursos (ATD). Metodologicamente, trata-se de um estudo que se insere no
1
Doutoranda em Linguística Teórica e Descritiva pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
2
Professora Associada II do Departamento de Letras, do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem e do Mestrado
Profissional em Letras da UFRN.
MEDEIROS, Célia Maria de; RODRIGUES, Maria das Graças Soares | I CIED (2015) 214-226
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paradigma qualitativo de caráter interpretativista e o tipo de pesquisa é documental. O corpus é
constituído por contestações oriundas do 2º Juizado Especial Cível da Zona Sul da Comarca de Natal-RN.
Para este trabalho, selecionamos 1 (uma) contestação (C1) cuja temática versa sobre alegação de danos
morais advindos da suposta má prestação de serviços e de suposto vício no produto.
O texto está dividido em três partes: na primeira, abordamos os diferentes posicionamentos da
responsabilidade enunciativa a partir de linguistas da enunciação; na segunda, apresentamos a estrutura
composicional do gênero jurídico contestação à luz do conceito de plano textual; na terceira, ilustraremos a
análise e, por fim, teceremos as considerações finais.
2. Responsabilidade Enunciativa
A responsabilidade enunciativa (RE) constitui-se como uma das principais noções e categorias da
análise textual dos discursos (ATD), situa-se na dimensão enunciativa e refere-se ao enunciado elementar
do texto que expressa um ponto de vista (ADAM, 2011a). Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2010)
asseveram que a noção de RE não é consensual entre os teóricos que se dedicam ao seu estudo. Para tanto,
focalizaremos em vários autores, entre eles Culioli, Nølke e a ScaPoLine (Nølke, Fløttum, Noren), Adam e
Rabatel.
Para Culioli (1971, p. 4031), “toda enunciação supõe responsabilidade enunciativa do enunciado por
um enunciador”, mais precisamente, tem assento no critério da asserção.
[...] quando eu digo, em seguida, o que é a asserção e o que há nela: eu tenho de dizer, ou
seja, tornar público, o que eu sei, o que acredito, o que penso (é um retorno à validação)
que tal coisa é o caso, se não existe uma teoria do engajamento em seu interior, gostaria
de saber o que é uma asserção! Sou levado a definir a afirmação estrita: Eu, enquanto
sujeito, sujeito, ou seja, fonte subjetiva [...] (CULIOLI; NORMAND, 2005, p. 166-167, grifo
dos autores).
Segundo Culioli e Normand (2005), o engajamento é concebido como a materialização pelo ato de
dizer, de afirmar algo, em que o sujeito se compromete a asseverar algo, assim como os destinatários,
sendo o interlocutor responsável por validar ou completar o enunciado. Desse modo, a responsabilidade
enunciativa pode ser utilizada para descrever duas coisas: a asserção no sentido estrito e o simples fato de
dizer.
Por outro lado, de acordo com Nølke, Fløttum e Nóren (2004) – proponentes da Teoria Escandinava
da Polifonia Linguística – ScaPoLine –, assumir a responsabilidade enunciativa é ser a fonte da enunciação,
é estar na origem, é assumir a paternidade. Para esses autores, os pontos de vista (abreviados pdv) são
entidades semânticas compostas por uma fonte, um julgamento e um conteúdo. Essa definição é
apresentada por eles da seguinte forma: “*x+ JULGA (p), onde *x+ simboliza a fonte, JULGA o julgamento e
(p) o conteúdo” (NØLKE; FLØTTUM; NORÉN, 2004, p. 31). Nessa visão, estar comprometido com uma
proposição significa ser responsável por ela ou ser a fonte dela.
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Temos em Rabatel (2008a, p. 21) a seguinte definição para responsabilidade enunciativa: “*...+ o
sujeito responsável pela referenciação do objeto exprime seu PDV (ponto de vista) tanto diretamente, por
comentários explícitos, como indiretamente, pela referenciação, ou seja, através de seleção, combinação,
atualização do material linguístico”.
Rabatel (2009, p. 85) postulou “a ‘noção de quase-RE’ para os enunciadores segundos, aos quais
pode-se imputar um PDV, mesmo que eles não tenham dito nada”. A esse respeito, Rodrigues, Passeggi e
Silva Neto (2010, p. 153) afirmam que
esse postulado o distancia de Ducrot (1984), uma vez que, para esse autor, assumir a
responsabilidade enunciativa é falar, é dizer. Isso também distancia Rabatel (2009) da
ScaPoLine, uma vez que, para ele, pode-se imputar um ponto de vista PDV, mesmo a
quem não tenha falado, mesmo a quem não está na origem do enunciado.
Rabatel (2009, p. 71) explicita que “todo enunciado pressupõe uma iminência que se responsabiliza
pelo que é dito, seguindo os quadros de referência, o dictum, o sintagma, o conteúdo proposicional, a
predicação, conforme o esquema minimal da enunciação ‘EU DIGO’ (‘o que é dito’)”. Para o autor, os
diferentes modos de marcar um PDV têm a ver com as relações ocorridas entre locutor e enunciador. As
relações são oriundas do modo como o locutor e o enunciador, enquanto produtores do texto, posicionamse a respeito do PDV de outros enunciadores, ou seja, qual sua posição no tocante ao discurso de outrem
que eles expõem em seus textos.
Sobre esse aspecto, Rabatel (2008a) afirma que o sujeito do PDV pode ser identificado da seguinte
maneira:
i)
o locutor/enunciador primeiro, produtor do texto e/ou gerenciador das informações (pode ser
um narrador);
ii)
os enunciadores com quem o locutor/enunciador dialoga (enunciadores segundos, que são
nomeados no texto; podem ser os personagens de uma narrativa);
iii) um enunciador dóxico (enunciador anônimo ou genérico, que assinala um dizer ou saber
social).
Esses sujeitos apontam diferentes perspectivas que atravessam a matriz enunciativa.
Adam (2011) concebe a responsabilidade enunciativa na equivalência de ponto de vista, que grafa da
seguinte forma: PdV. Assim, a RE de uma proposição “ou ponto de vista (PdV) permite dar conta do
desdobramento polifônico” (ADAM, 2011, p. 110) presente nos enunciados. O grau de responsabilidade
enunciativa de uma proposição é suscetível de ser marcado por um grande número de unidades da língua,
“como os índices de pessoas, os dêiticos espaciais e temporais, os tempos verbais, as modalidades, os
diferentes tipos de representação da fala, as indicações de quadros mediadores, os fenômenos de
modalização autonímica e as indicações de um suporte de percepções e de pensamentos relatados”
(ADAM, 2011, p. 117).
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Adam (2011) postula a responsabilidade enunciativa como assunção ou não assunção por
determinadas entidades ou instâncias acerca do que é enunciado, ou na atribuição de alguns enunciados a
certas instâncias.
De acordo com as abordagens da Linguística Enunciativa, podemos afirmar que nem sempre o
locutor coincide com o enunciador, bem como as relações entre o par locutor/enunciador geram pontos de
vista, perspectivas que marcam o posicionamento do sujeito no discurso.
No que concerne à não assunção dos enunciados, temos em Guentchéva (1994, 1996) o estudo do
mediativo, mais precisamente, quando o PdV é assinalado por introdutores como segundo, de acordo com,
para etc., pois os enunciados não são assumidos pelo locutor-narrador. A autora esclarece que diversas
línguas possuem procedimentos gramaticais que permitem ao enunciador significar os diferentes graus de
distância que ele toma no que tange à responsabilidade enunciativa dos conteúdos veiculados no
enunciado, ou seja, essa noção permite materializar, de maneira explícita, quando o enunciador não é a
primeira fonte da informação e quando ele não assume a responsabilidade pelo conteúdo veiculado no
texto.
Vimos que a categoria da responsabilidade enunciativa está integrada na análise textual dos
discursos a partir da contribuição de diferentes autores. Diante disso, nosso objeto, que é o gênero jurídico
contestação, focaliza no estudo dessa dimensão textual e se justifica nessa linha teórica, principalmente
porque
[...] ao propor o estudo do texto jurídico, tendo como foco um nível de organização textual
– a Responsabilidade Enunciativa, a partir de uma perspectiva linguística - a ATD, vindo de
outro domínio do conhecimento, como a Linguística, estamos ofertando ao texto jurídico
uma nova leitura, que não aquela comungada no seio da hermenêutica jurídica que
concebe a língua na sua imanência e, assim, aprisiona o sentido do texto [...] a linguagem
é indispensável ao direito, porque é ela quem possibilita sua existência. O conhecimento
sobre o poder da linguagem para o direito reside desde os seus primórdios tanto no seu
estabelecimento enquanto práxis, quanto na constituição da ciência jurídica [...]
(LOURENÇO, 2013, p. 16).
Ainda, nessa direção, Rodrigues et al. (2014, p. 245) entendem que “desvelar a linguagem jurídica,
buscando compreender os eixos centrais das normas que nos mobilizam, é uma tarefa valiosa, porque pode
contribuir para que sejam asseguradas direitos e deveres, porém, é inesgotável, porque há muito a ser dito,
a ser interpretado”.
Para analisarmos a responsabilidade enunciativa no gênero jurídico contestação, seguiremos a
proposta de Adam (2011), bem como a de Rabatel (2008a, 2009).
3. O plano textual do gênero jurídico contestação
Compreendemos que a “contestação” é um gênero textual/discursivo por apresentar os elementos
formadores apontados por Bakhtin (2003): estilo, estrutura composicional e tema, além de ser evento
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comunicativo vinculado a uma prática social institucionalizada. Lourenço (2008), baseando-se em Bakhtin
(2003), enfatiza que a propriedade de o autor deixar marcas de sua individualidade é menos propícia em
gêneros do discurso que requerem uma forma padronizada, como alguns documentos oficiais, ordens
militares, entre outros.
A contestação é um gênero discursivo do domínio jurídico que, segundo Parizatto (1991), constitui-se
como peça processual de defesa mais importante no processo civil, uma vez que exprime o ato escrito pelo
qual o réu nega, contradiz, defende-se das alegações do autor despendidas em pedido inicial, fazendo
argumentações para descaracterizar a ação contra si ajuizada, com alegações de fato e de direito sobre a
matéria ventilada.
A existência da contestação significa que o processo já foi instaurado. Com ela, faculta-se ao
Réu/requerido (por meio do enunciador advogado) apresentar ao Juiz (coenunciador/ 1º destinatário ou
receptor) sua réplica aos fatos apresentados na inicial. Dessa maneira, qualquer afirmação presente na
petição inicial e que não seja respondida será considerada verdadeira. Também, diversamente da petição
inicial, a contestação não exibe níveis diversos de interação, pois não é endereçada aos autoresrequerentes, mas sim à ação proposta (TULLIO, 2013).
Na contestação, o réu poderá se manifestar sobre aspectos formais e materiais. Os argumentos de
origem formal se relacionam à ausência de alguma formalidade processual exigida e que não fora cumprida
pelo autor em sua peça inicial. Esses argumentos, dependendo da gravidade, podem ocasionar o fim do
processo antes mesmo de o magistrado apreciar o conteúdo do direito pretendido. A imperfeição apontada
pelo réu retiraria do autor a possibilidade de seguir adiante, ou retardaria o procedimento até que seja
sanada a imperfeição. Essa é a chamada defesa indireta.
Já os aspectos materiais se referem ao conteúdo do direito que o autor reivindica, sendo mérito da
causa. É a chamada defesa direta ou de mérito, na qual o réu ataca o fato gerador do direito do autor, ou as
consequências jurídicas que o autor pretende. O art. 300 do Código de Processo Civil dispõe acerca da
contestação: “Art. 300. Compete ao réu alegar na contestação toda a matéria de defesa, expondo as razões
de fato e de direito, com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir”.
Segundo Palaia (2010, p. 36), a contestação basicamente se divide em sete partes:
i)
o endereçamento;
ii)
a identificação das partes, da ação, do procedimento e do processo;
iii) o resumo da inicial;
iv) a arguição em preliminares e pedidos de extinção do processo;
v)
o ataque ao mérito;
vi) o pedido de improcedência da ação e de condenação do autor às custas e honorários; e
vii) o pedido de produção de provas.
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Esses requisitos organizadores da contestação correspondem aos “planos de texto” que, para Adam
(2011, p. 257, grifos do autor), “*...+ desempenham um papel fundamental na composição macrotextual do
sentido. Referem-se ao que a retórica colocava na disposição, parte da arte de escrever e da arte oratória
que regrava a ordenação dos argumentos tirados da invenção”.
Desse modo, enquanto gênero discursivo/textual, a contestação pode exemplificar um plano de
texto fixo, justificando-se por apresentar em sua estrutura composicional uma padronização e uma
formalização próprias dos textos/documentos do domínio jurídico, obedecendo à forma prescrita em lei,
pois, conforme Adam (2011, p. 258), “um plano de texto pode ser convencional, isto é, fixado pelo estado
histórico de um gênero ou subgênero de discurso” ou “ocasional, inesperado, deslocado em relação a um
gênero ou subgênero de discurso”.
A contestação a seguir, que faz parte do nosso corpus de pesquisa doutoral, nos permitirá esclarecer
como se materializam e como se estruturam seus planos de texto.
Quadro 1. Planos de texto da contestação 1 – (C1)
i)
Endereçamento
ii)
Identificação
das
partes, da ação, do
procedimento e do
processo
iii) Resumo da inicial
iv) Das prelimares
EXCELENTÍSSIMO(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) DE DIREITO DO 2º JUIZADO ESPECIAL CÍVEL
DA ZONA SUL DE
NATAL/RN
XXXXX, já qualificada no processo eletrônico da ação que lhe move XXXXX, também
já qualificada, vem, por intermédio de seu procurador signatário, respeitosamente,
na presença de Vossa Excelência, apresentar, consoante aos fatos e fundamentos
jurídicos que passa a expor:
A autora é proprietária de um Climatizador de ar fabricado por essa reclamada
desde 25 de novembro de 2012. Alega, no entanto, que um mês após a aquisição o
aparelho apresentou vício.
Todavia, relata que ante o falecimento de sua mãe, só teve condições de
contatar a assistência técnica em 06 de agosto de 2013, e que apesar do
atendimento, o produto permanece com defeito até a presente data, pois não
obteve êxito no conserto nem na troca do produto.
Diante disso, ajuizou a presente ação requerendo a restituição do valor pago
pelo aparelho, bem como indenização pelos danos morais supostamente
experimentados.
Contudo, conforme ficará demonstrado, não assiste razões fáticas nem jurídicas
quanto aos alegados danos morais advindos da suposta má prestação de serviços e
do suposto vício no produto.
Assim, pugna-se pela improcedência total da demanda, conforme os
fundamentos jurídicos e pedidos a seguir apresentados.
Da retificação do polo passivo
A pessoa jurídica XXXXX foi citada para o presente processo, como requerida,
com endereço que não lhe corresponde. Assim, contando com o princípio da BoaFé, com fim de evitar cerceamento de defesa e decretação de revelia, que
implicariam em mácula ao devido processo legal, requer-se a retificação do
endereço do polo passivo da supracitada pessoa jurídica.
[...]
Exceção de Incompetência Ratione Materiae
Excelência, a presente lide, com o devido respeito, extrapolaria a competência
do Juizado Especial Cível para julgá-la, uma vez que seria necessária a produção de
prova pericial, tanto à parte autora para que demonstre o fato constitutivo de seu
direito, quanto às rés, haja vista que não há indício fático de que haja vício no
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v)
Do Mérito
produto.
Não há nada que ao menos indique o suposto defeito do aparelho.Dessa forma,
o mero relato do problema pelo autor não pode substituir o laudo técnico. Com a
necessidade de apurar tecnicamente a existência ou não de vício ou defeito no
aparelho, para que se possa responsabilizar a fabricante, necessária se faz a prova
pericial, contudo, a incompatibilidade da presente demanda com o procedimento
inerente ao Juizado Especial impede seu processamento.
[...]
Caso ultrapassada a preliminar de incompetência em razão da matéria, o que se
admite apenas por argumentar, informa-se que jamais houve ausência de serviço
ou qualquer pretensão resistida da requerida.
A praxe, quando há reclamação com a requerida, é que se envie assistência
técnica especializada, de acordo com o artigo 18 do CDC, que garante ao fornecedor
o direito ao conserto, para que permaneça o consumidor com seu produto, porém
consertado.
[...]
Como bem lembra o ilustre José Guilherme Werner, a intenção do legislador,
quando criou o Código de Defesa do Consumidor, foi a de garantir o equilíbrio na
relação entre consumidor e fornecedor ou prestador de serviços: [...]
Isso posto, requer:
vi) Do pedido
vii) Data e assinatura
a) o recebimento e a juntada desta petição e documentos ao processo;
b) a produção de todos os meios de provas em Direito admitido, especialmente a
documental, testemunhal e, ainda, o depoimento pessoal da parte demandante,
sob pena de confissão;
c) a retificação do polo passivo, conforme as razões expostas;
d) o acolhimento da preliminar suscitada, extinguindo o processo sem
julgamento de mérito;
e) a total improcedência da ação em todos os pedidos formulados na peça
incoativa, conforme o disposto na Lei; [...]
Nesses termos, pede deferimento.
XXXX, 09 de dezembro de 2013.
ADVOGADO
OAB/ XXXX
O exemplo ilustra os planos de texto de uma contestação, conforme anunciado por Palaia (2010).
Podemos observar que o plano de texto mantém-se fixo (ADAM, 2011a), seguindo o movimento retórico de
responder às questões: (i) e (ii) quem? Esse vocativo nos aponta para quem se destina a contestação, bem
como a identificação da parte autora e da parte ré; (iii), (iv), (v), (vi) e (vii) o quê? quando? onde? como?
por quê? Denotam o objeto da contestação e as questões que constituem a narrativa no resumo da inicial,
bem como a argumentação nas seções das preliminares e do mérito.
4. Análise do corpus
O gênero jurídico contestação é um ato processual que se compõe de diversas alegações e
manifestações reunidas em duas principais fases, quais sejam: as alegações em preliminares e as alegações
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de mérito. Para este trabalho, focalizaremos a análise em uma contestação (C1) que integra o nosso corpus
de pesquisa doutoral.
Com o objetivo de examinar os planos de texto em tais alegações (seções das preliminares e do
mérito), considerando os estudos de Adam ([2008] 2011) e Rabatel (2008a, 2009), também descreveremos
e analisaremos a assunção da responsabilidade enunciativa em nossos dados. Utilizaremos excertos da
contestação (C1), denominando de Exemplo 1, Exemplo 2 etc. Ressaltamos que o destaque na análise será
realizado em negrito.
4.1 O plano de texto na seção “Das Preliminares”
As preliminares visam a atacar o processo que veicula a pretensão do autor. Elas estão enumeradas
no artigo 301 do Código de Processo Civil, que, reforce-se, não atacam o direito do autor, e sim o próprio
processo por onde corre o pedido dele.
De acordo com o Art.301 do Código de Processo Civil, compete-lhe, porém, antes de discutir o
mérito, alegar:
I - inexistência ou nulidade da citação;
II - incompetência absoluta;
III - inépcia da petição inicial;
IV - perempção;
V - litispendência;
VI - coisa julgada;
VII - conexão;
VIII - incapacidade da parte, defeito de representação ou falta de autorização;
IX - convenção de arbitragem; (Alterado pela L-009.307-1996)
X - carência de ação;
XI - falta de caução ou de outra prestação, que a lei exige como preliminar.
A esse respeito, os dados da C1, nessa respectiva seção, apontam para a incompetência absoluta,
haja vista que o Juízo para o qual a presente ação foi dirigida é incompetente para o exame e
processamento da causa, conforme explicitado nos exemplos 1, 2 e 3.
Exemplo 1
Isso posto, requer-se o acolhimento da preliminar ora suscitada a fim de, reconhecendo a
incompetência absoluta do juízo em razão da matéria, extinguir o processo sem resolução do
mérito, nos termos do artigo 51, II, da Lei n. 9.099/95.
Exemplo 2
Excelência, a presente lide, com o devido respeito, extrapolaria a competência do Juizado Especial
Cível para julgá-la, uma vez que seria necessária a produção de prova pericial, tanto à parte autora
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para que demonstre o fato constitutivo de seu direito, quanto às rés, haja vista que não há indício
fático de que haja vício no produto.
Exemplo 3
[...] Com a necessidade de apurar tecnicamente a existência ou não de vício ou defeito no aparelho,
para que se possa responsabilizar a fabricante, necessária se faz a prova pericial, contudo, a
incompatibilidade da presente demanda com o procedimento inerente ao Juizado Especial impede
seu processamento.
4.2 O plano de texto na seção “Do Mérito”
Na seção do mérito, o réu deve investir contra a pretensão do autor, visando destruir o apoio das
razões que o encorajaram a ir a juízo. Isso pode ocorrer mediante defesa indireta ou direta. A primeira
resulta reconhecer o fato jurídico em que se funda a ação, mas outro fato lhe é oposto, que impede,
modifica ou extingue o direito do autor. A segunda implica atacar a verdade dos fatos, negando sua
existência ou mudando sua configuração, com vistas à improcedência da ação (PALAIA, 2010, p. 53).
Na C1, em análise, percebemos a defesa direta, marcada pela negação dos fatos. Vejamos os
exemplos 4, 5, 6 e 7.
Exemplo 4
[...] informa-se que jamais houve ausência de serviço ou qualquer pretensão resistida da requerida.
Exemplo 5
[...] Contudo, ressalte-se, a produção de prova pericial no presente caso seria indispensável, tanto à
parte demandante para que demonstrasse o fato constitutivo de seu direito, quanto à ré, para que
possa provar a inexistência de vício ou defeito de fabricação no produto [...].
Exemplo 6
Portanto, havendo a necessidade de prova pericial, torna-se incompatível a presente demanda com
o procedimento inerente a este ilustre órgão, impedindo seu correto processamento.
Exemplo 7
A XXXXX não recebeu nenhum valor da autora pela compra do aparelho. Não sendo possível, por
conseguinte, que a empresa devolva a demandante uma quantia que não recebeu.
4.3 A responsabilidade enunciativa no texto
O advogado XXXXX, produtor do gênero discursivo contestação, nosso corpus de análise neste artigo,
é procurador signatário da parte ré, a empresa XXXXX, e será representado por L1/E1, ou seja, o
“Enunciador 1 (E1) é o Locutor 1 (L1)” (RABATEL, 2008a), que assume a responsabilidade enunciativa pelo
conteúdo proposicional, ilustrado a seguir nos exemplos 8, 9, 10 e 11.
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Exemplo 8
Excelência, a presente lide, com o devido respeito, extrapolaria a competência do Juizado Especial
Cível para julgá-la, uma vez que seria necessária a produção de prova pericial, tanto à parte autora
para que demonstre o fato constitutivo de seu direito, quanto às rés, haja vista que não há indício
fático de que haja vício no produto.
O locutor – enunciador primeiro (L1/E1), primeira instância responsável pela materialidade dos
enunciados –, ou seja, o advogado – assume o conteúdo proposicional, uma vez que a construção de
asserções constitui-se em uma das formas mais evidentes de envolvimento no enunciado.
Exemplo 9
Não há nada que ao menos indique o suposto defeito do aparelho.Dessa forma, o mero relato do
problema pelo autor não pode substituir o laudo técnico. Com a necessidade de apurar tecnicamente
a existência ou não de vício ou defeito no aparelho, para que se possa responsabilizar a fabricante,
necessária se faz a prova pericial, contudo, a incompatibilidade da presente demanda com o
procedimento inerente ao Juizado Especial impede seu processamento.
Os modalizadores não há nada/ necessária afirmam o PDV de L1/E1, portanto, marcam a assunção
da responsabilidade enunciativa.
Exemplo 10
Deixe-se claro, desde já, que a referida menor complexidade não é aquela relativa à complexidade
jurídica, mas sim à analisada sob o ponto de vista da prova técnica que se fará necessária para o
adequado julgamento da lide.
Temos em (10) a responsabilidade assumida, pois o uso de modalizadores deixa-se claro/ necessária
afirma o PDV de L1/E1.
Exemplo 11
Aliás, este é o entendimento disposto no Enunciado 54 do Encontro Nacional dos Coordenadores
dos Juizados Especiais Cíveis: A menor complexidade da causa para a fixação da competência é
aferida pelo objeto da prova e não em face do direito material.
Em (11), percebemos, nos termos de Rabatel (2009), quase uma responsabilidade enunciativa, pois a
afirmação, segundo L1/E1, está contida no Enunciado 54 do Encontro Nacional dos Coordenadores dos
Juizados Especiais Cíveis. Em relação à hierarquização dos enunciadores segundos, L1/E1 enuncia como
subenunciação.
5. Considerações finais
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Compreendemos, pelos excertos analisados, que, a partir da superfície linguística e discursiva dos
enunciados, o ponto de vista de L1/E1 é marcado nas assertivas, principalmente, pelo uso dos
modalizadores “não há nada”, “necessária”, “deixe-se claro”, o que nos permite perceber o envolvimento
do enunciador, uma vez que, no gênero jurídico contestação, em juízo, a parte ré produz argumentos
contrários que visam a combater a parte oposta, devendo apresentar provas técnicas, criadas no discurso.
A pesquisa encontra-se em sua fase inicial, contudo, já podemos depreender, através da análise
dessa contestação (C1), que o plano de texto apresenta uma estrutura fixa, tendo em vista que a estrutura
composicional caracteriza-se como estabilizada pelo estado histórico do gênero. No que concerne à
responsabilidade enunciativa, o L1/E1 assume o conteúdo proposicional.
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Abstract: This paper proposes with this paper to describe, analyze and interpret Enunciative Responsibility (RE) in
contestation, discursive genre circumscribed to juridical domain. “Preliminaries” and “Merit” sections of contestation
were chosen like object of study, thus comprehending both defense of process plan and counter argumentation to the
claim of plaintiff. Our theoretical anchoring is situated on Discourses Textual Analysis (ADAM, ([2008] 2011a)
perspective, which allow us for working with text plans. Finally, it is described and analyzed (not)-assumption of
Enunciative Responsibility in our data, with subsidy of Enunciative Linguistics (RABATEL, 2008a, 2009). This research is
documentarist, assuming qualitative-interpretative character. For this paper, one contestation from authors’ doctoral
research corpus was selected. Data reveal primary enunciator-speaker (L1/E1), instance responsible for materializing
statements, assumes propositional content.
Keywords: eiscourses textual analysis; enunciative responsibility; text plan; contestation; juridical genre.
MEDEIROS, Célia Maria de; RODRIGUES, Maria das Graças Soares | I CIED (2015) 214-226
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EXPRESSÕES MULTIMODAIS DE TEXTOS JORNALÍSTICOS
PARA A CONSTRUÇÃO DO ESCÂNDALO: IMPLICITOS E
CONTEXTOS
Deborah Gomes de PAULA (PUC/SP-UNIP)
[email protected]
Resumo:Esta comunicação situa-se na Análise Crítica do Discurso (ACD) e tem por tema a relação texto e contexto
para a representação do escândalo em textos jornalísticos brasileiros multimodais impressos. Tem-se por objetivo
geral contribuir com os estudos do discurso jornalístico e por objetivos específicos: 1. examinar a seleção e a
combinação de expressões visuais e verbais, em textos jornalísticos brasileiros para representação do escândalo; 2.
verificar os contextos e suas funções, na produção/compreensão de textos multimodais (visual e verbal). As análises
buscaram examinar as relações cotextuais entre imagens e expressões verbais, assim como os contextos de sua
produção discursiva, para a representação do escândalo. Kress e van Leeuwen (1996), ao tratarem da mudança social
ocorrida, durante a globalização, definem o texto multimodal como um produto do discurso, visto como uma ação,
que combina o verbal com imagens e cores em uma semiose. Conclui-se que os elementos selecionados pelo produtor
participam de sistemas de conhecimento, armazenados na memória social e individual. Considera-se que a ativação
do armazenado nem sempre é consciente, pois a ideologia do Poder, que tem acesso ao público, pelos discursos,
passa a influenciar as pessoas, levando-as a sustentar essa ideologia por sua reprodução textual, no e pelo discurso.
Palavras-chaves: discurso jornalístico, escandalo, multimodalidade, análise crítica do discurso.
1. Apresentação
Essa comunicação está situada na área da Análise Crítica do Discurso em interface com a Semiótica
Social. Tem por tema as estratégias utilizadas pelos jornais paulistanos na construção do escândalo nas
notícias veiculadas pelo jornal-empresa que dá acesso ao público-leitor, a partir dos textos curtos (as
manchetes e charges). Para tanto, selecionamos exemplos atuais que focalizan a construção social do
problema da corrupção no governo e da violência a partir do mensalão.
O Escândalo do Mensalão ou “esquema de compra de votos de parlamentares” é o nome dado à
maior crise política sofrida pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2005/2006. A
expressão mensalão popularizada pelo então deputado federal Roberto Jefferson em entrevista à Folha de
S. Paulo com repercussão nacional, é uma variante da palavra “mensalidade” usada para se referir a uma
suposta “mesada” paga a deputados para votarem a favor de projetos de interesse do Poder Executivo.
De acordo com Thompson (2002:43) os escândalos, em alguns casos, estão relacionados à aplicação,
ou à afirmação dos próprios valores e normas. Assim, temos a construção do escândalo por meio da
“denúncia” feita pelo Deputado Roberto Jefferson que, no decorrer das apurações, incorporou em seu
discurso um caráter moralizador, quando, na realidade, o que motivou a denúncia foi a falta de repasse do
total em dinheiro estipulado e acordado com o PT - partido do governo.
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A noção de violência está vinculada à noção de escândalo, para além do fato acontecido, uma vez
que, uma das estratégias do jornal para conseguir a adesão do público leitor é a persuasão pelo impacto
emocional e subjetivo.
De acordo com Dias (2003:102), a noção jurídica de violência está ligada à idéia de força. A
caracterização dessa força como violência depende do ponto de vista pela qual se focaliza o fato. Esse
ponto vista é constituído por valores, crenças e princípios dos indivíduos em interação social, os quais
estabelecerão uma unidade na diversidade e consequentes critérios avaliativos utilizados pelos grupos
sociais a que pertencem.
Nesse contexto, temos a construção do campo semântico da violência constituído por lexicalizações
como: poupa. derruba, decapitam. E também de forma reduzida, os gestos representados nas fotos que
reforçam e/ou se opoem à ideia veiculada pelo texto jornalístico. Os gestos adquirem função de interjeição,
informação de base cultural, um uso do brasileiro para estabelecer sentido, é uma maneira de estabelecer
diálogo quando o interlocutor apresenta uma discordância com o locutor. De modo geral, num contexto
zero, descontextualizado, tem um efeito de sentido, mas no uso efetivo adquire função de interjeição (pois
adquire outra função).
Thompson (2002:40) traz uma definição prática, em que escândalo “se refere a ações ou
acontecimentos que implicam certos tipos de transgressões que se tornam conhecidos de outros e que são
suficientemente sérios para provocar uma resposta pública”. Alguma forma de transgressão é condição do
escândalo. Assim o escândalo se refere primariamente a ações, acontecimentos ou circunstâncias.
O escândalo que implica ações ou acontecimento são aqueles que transgridem ou contradizem
valores, normas ou códigos morais. Para o autor, os valores ou normas devem ter determinado um grau de
moral, ou seja, na relação entre o individual e o social, no interstício entre o cultural e o ideológico, há uma
dialética perpassada pela moral.
A mídia, de modo geral, tem grande acesso ao público e dessa forma exerce um papel na construção
social da opinião, sendo assim, é necessário entender as estratégias utilizadas pela mídia para a construção
dessa opinião. O texto jornalístico, a partir da intenção argumentativa, tem por objetivo conduzir a leitura
do público-leitor, fazendo com que ele se identifique com o ponto de vista do enunciador. Durante o
processamento da informação recebida no uso efetivo da língua, dependendo da focalização do fato no
mundo, ocorre apagamento do processo histórico (discurso modificado). Dessa forma, a representação do
fato traz características sociais e ideológicas que influenciam a formação da opinião.
Nesse sentido, segundo Van Dijk (1997), as opiniões devem ser compreendidas na relação entre as
Categorias Cognição, Sociedade e Discurso, pois as opiniões são construídas na dimensão cognitiva, por
meio da interação social dos participantes, suas ações e funções.
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2. Sociedade, Cognição e Discurso
Tem-se por pressuposto de que há uma interação entre o individual e o social, pois, este, guia o
individual, mas o individual modifica o social. Tal pressuposto é base da Análise Crítica do Discurso, em
quaisquer de suas vertentes. Sendo assim, entende-se que há uma inter-relação entre as categorias
analíticas Sociedade, Cognição e Discurso, pois cada uma dessas categorias se define pelas demais. A
Sociedade é vista como um conjunto de grupos sociais, sendo que, cada grupo é composto por pessoas que
têm os mesmos objetivos, interesses e propósitos e, por essa razão, focalizam o que acontece no mundo, a
partir do mesmo ponto de vista; isso resulta em uma forma de avaliação (positiva/negativa) contida na
representação mental como forma de conhecimento, que é construída socialmente. A Cognição refere-se
às representações mentais-tipos e gêneros de discurso que atuam na interação do individual (evento
discursivo particular) e o social (cognições sociais intra, inter e extragrupo social). Todas as formas de
conhecimento, seja individual ou grupal são expressas em textos, no e pelo Discurso. Assim, os
conhecimentos sociais são modificados embora contenham raízes históricas, de forma que o velho (já
sabido) guia a construção do novo (informação nova) e este modifica o velho.
Para Van Dijk (2000) a interação entre jornal-empresa e público-leitor implica a noção de contexto (
global e local), para se entender as notícias como discurso, ou seja, o discurso da notícia é uma prática
discursiva sócio-interacional que constrói as notícias, para serem publicadas no veículo jornal.
Para o autor (1997) o discurso da notícia é institucionalizado e relativo à ideologia da empresa-jornal
que tem por objetivo construir a opinião para seus leitores, de forma a dominar as suas mentes. Como todo
discurso institucionalizado, o discurso da notícia compreende a relação das categorias discursivas: Poder,
Controle e Acesso.
Esta comunicação está delimitada às categorias Controle (redação final) e Acesso (veículo jornal) e
trata das estratégias utilizadas pela redação do jornal, embora se saiba que a ideologia do Poder, que é o
jornal-empresa, atua sobre o Controle da redação para que o texto enunciado tenha Acesso ao público.
As categorias Poder, Controle e Acesso objetivam construir as opiniões dos leitores. Uma opinião é
uma forma de conhecimento avaliativa, que não pode ser tratada como verdade, na medida em que não
pode ser conferida no mundo. Logo, o leitor que não é expectador do evento noticioso torna-se obrigado a
aceitar a notícia que dá Acesso a ele.
A notícia como discurso jornalístico participa como um dos discursos da mídia. Segundo Van Dijk
(1980), a fabricação da notícia ocorre em várias etapas. Compreendo um contexto local e um global. O
contexto global é definido por seus participantes que são agrupados pelas categorias Poder, Controle e
Acesso.
O contexto local é definido por atores, pessoas, que são responsáveis pela fabricação da notícia, as
quais são guiadas por uma determinada escala de valores ideológicos do Poder.
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Para Charaudeau (2006: 19) “as mídias não transmitem o que ocorre na realidade social, elas
impõem o que constroem do espaço público.” Segundo o autor, mesmo a imagem tem um caráter de
produzir efeitos de sentidos no interlocutor.
Segundo Thompson (2002), escândalo é um evento midiático, em que a mídia cria um novo fato,
assim, é um fenômeno social que pode trazer sérias consequências, tanto para o âmbito particular quanto
social. Assim, a mudança social traz mudança no discurso, assim os textos multimodais passam a ser
privilegiados, na medida em que inter-relacionam o linguístico e as imagens.
Desse modo, com a globalização, os textos multimodais se inter-relacionam de maneiras
diversificadas, uma vez que as representações verbais e visuais podem estabelecer equivalência,
completude ou ainda contradição. Assim, Kress e van Leeuwen (1996) definem o texto multimodal como
um produto do discurso, visto como uma ação, que combina o verbal com imagens e cores em uma
semiose. Para tanto, há uma natureza simbólica nas representações existentes nesses textos, decorrentes
de relações providas pelos recursos semióticos que precisam ser investigadas.
Extraídos do jornal paulistano Folha de S.Paulo (FSP), apresentamos exemplos de que a linguagem
das negociações entre redator/leitor é realizada a partir de uma interação que busca construir um acordo
de forma a recorrer aos conhecimentos sociais comuns entre eles. As análises realizadas seguiram um
procedimento teórico-analítico e estão delimitadas às estratégias utilizadas pela redação dos jornais
selecionados.
O método adotado para a análise dos textos teve como ponto de partida a seleção lexical utilizada
nas manchetes e para os segmentos selecionados e inter-relacionados.
A seleção lexical é um recurso de grande importância, pois, é através dela que se estabelecem as
oposições, os jogos de palavras, as metáforas, o paralelismo rítmico, etc. Existem palavras que, colocadas
estrategicamente no texto, trazem consigo uma carga poderosa de implícitos.
A análise apresentada tem como principal pressuposto o marco das cognições sociais. Segundo
Silveira (2000), o marco das cogniçoes sociais é um conjunto de conhecimentos que estabelecem
parâmetros avaliativos para os seres e suas ações no mundo, a partir do que é contemporaneamente
vivenciado modificando a experiência do já vivido anteriormente.
Durante a interação comunicativa, considerar-se a orientação argumentativa para reformulação do
marco de cognição social, sendo assim, a refutação é uma estratégia importante pois na mudança de
orientação argumentativa estabelece meios de inclusão de argumentos por meio da aceitabilidade ou
rejeição.
3. Resultados Obtidos
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Os resultados obtidos indicam que os conhecimentos avaliativos são formados na inter-relação entre
o individual e o social, reproduzida no e pelo discurso, e pela cognição social, guiado pela cultura do grupo
social no qual está inserido, apesar da diversidade e variabilidade dos valores e normas que regem a
conduta dos indivíduos em contextos específicos.
De acordo com Thompson (2002), as normas que regem transações financeiras são também
propensas ao escândalo, especialmente quando as transgressões envolvem séria desonestidade e
corrupção, por exemplo, no caso do “Escândalo do Mensalão”:
A título de exemplificação, alguns enunciados referentes aos episódios do “Escândalo do Mensalão”:
Manchete: PT dava mesadas de 30 mil a parlamentares, diz Jefferson (FSP 04/07/2005)
Para além da manchete, temos a imagem utilizada pelo jornal para representar o evento como uma
denúncia. Jefferson com as mãos junto à cabeça com um quadro circular ao redor da cabeça,
representando uma auréola, no remete ao contexto religioso, de fé.
Pela perspectiva da multimodalidade, as categorias de análise para a imagens propõem verificar a
utilização do espaço como intencional, ou seja, as categorias mais utilizadas são: alto e baixo,
respectivamente a projeção do ideal e real e lado esquerdo e direito, respectivamente dado e novo, que
projetam a ideia de conhecido e novidade em realçao à informação veiculada.
Nesse caso, temos a foto de Jefferson centralizada e mais alta, representando o ideal nesse contexto
político, que é a denúncia e logo abaixo temos a foto do jogador da seleção brasileira, Robinho sinalizando
os gols que foram efetuados com os dedos levantados. Assim, temos a ideia idealizada que é a denúncia
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realizada por uma pessoa “boa” (representado pela auréola e o gesto das mãos) e a seguir o reforço
positivo da noção de nacionalidade, ou seja, a ideia relacionada à realidade que é o desempenho do Brasil
na área dos esportes.
Entende-se que a transgressão com os valores morais e culturais como a noção de religiosidade pode
ser tratada como violencia, na medida em que, rompe com os valores e as cognições sociais do públicoleitor ao vincular o ato político e a representação religiosa da santidade.
Para Thompson (2002), existem escândalos que são transgressões de segunda ordem, onde o foco
inicial da atenção se desdobra desviando o foco para outro lugar. Como por exemplo:
Manchete: Jefferson poupa Lula e culpa Dirceu - FSP 15/06/2005
Manchete: Presos decapitam cinco em rebelião
A manchete, ao designar poupa e considerando a imagem de Jefferson representando uma arma,
retoma a ideia de que o político está “mirando” o alvo a ser atingido, no caso derruba José Dirceu. Já na
manchete abaixo: “Presos decapitam cinco em rebelião” temos como um progressão temática construída a
partir do tema da notícia, representado de forma diferente, com avaliação diferente, pois se refere a
mesma noção de violência em comparação com o gesto da arma e a possibilidade de poupar uns e não
outros, ou seja, a noção de que a corrupção tanto para um quanto para o outro é a mesma, com projeção
de graus diferentes para as consequências.
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Thompson (2002:45) destaca uma outra característica do escândalo que se refere às ações ou
acontecimentos que implicam um grau de ocultamento. Para se tornar um escândalo, uma ação ou
acontecimento devem se tornar conhecidos de outros, ou outras pessoas devem acreditar firme e
plausivelmente que existam. Diferente da corrupção e do suborno, que podem existir (muitas vezes
existem de fato) quando outros não sabem a respeito deles, o escândalo é sempre, um caso “público”.
Manchete: ‘Mensalão’ derruba José Dirceu
O escândalo é construído a partir de estratégias textuais e multimodais para causar uma reação no
público leitor, em alguns casos, ficam ofendidos e até chocados, ou seja o fato noticioso foi construído de
modo a gerar uma emoção, causar a indignação do leitor.
As respostas dos outros, numa visão pragmática, constituem uma atuação performativa,conforme
os atos de fala de Austin. O escândalo é construído tanto pela resposta dos outros como pelo próprio ato
de transgressão.
As formas de expressão, os atos de fala, aqui se referem a categoria Comentários do esquema da
notícia proposto por Van Dijk (2000)uma vez que não são todos os atos de fala que tem efeito performático
adequado aos objetivos ideológicos da empresa-jornal.
De acordo com Thompson (2002), o escândalo pode se rerefir a ações ou acontedimentos que
implicam certos tipos de transgressões que se tornam conhecidos de outros e são suficientemente sérios
para provocar uma resposta pública. Como por exemplo:
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Manchete: Pit bull Suárez é escarraçdo dos estádios – FSP 26/06/14
Linha-fina: Fifa proíbe atacante de ficar no hotel do Uruguai após a mordida
Lead: O atacante Luis Suárez sofreu a maior punição da história das Copas por morder o italiano
Chiellini. O atleta pegou nove jogos de suspensão, terá de ficar quatro meses longe do futebol
(incluindo partidas pelo seu time, o Liverpool) e, nesse período, não poderá entrar em estádios onde o
Uruguai estiver jogando. Ele ainda pagará multa e teve que deixar o hotel da seleção. O Uruguai nega
que Suárez tenha mordido o adversário. Ele deixou o Pais.
O escândalo não pressupõe apenas certo grau de conhecimento público, ele também pressupõe
certo grau de desaprovação pública. O conhecimento da ação por parte do interlocutor coincide ou se
sobrepõe, à sua desaprovação; julgamentos epistêmicos e avaliativos se incorporam às respostas de alguns
indivíduos que ficam sabendo da transgressão. Em alguns casos, ficam ofendidos e até chocados.
As respostas dos outros, numa visão pragmática, constituem uma atuação performativa,conforme os
atos de fala de Austin. O escândalo é construído tanto pela resposta dos outros como pelo próprio ato de
transgressão.
As formas de expressão, os atos de fala, aqui se referem a categoria Antecendentes do esquema da
notícia proposto por Van Dijk (2000)uma vez que não são todos os atos de fala que tem efeito performático
adequado aos objetivos ideológicos da empresa-jornal.
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Punições da Copa
Cabeçada de Pepe
1 jogo
Cotovelada de camaronês
3 jogos
Mordida de Suárez
9 jogos
De acordo com essa tabela, projetam-se os graus de violência nesse cenário de futebol, de acordo
com as punições, assim a partir do ato cometido pelo jogador e a sanção recebida, ocorre a representação
de valor sua repercussão.
O escândalo nesse exemplo advém da construção de um discurso que Thompson chama de
infamante, para expressar diferentes graus de desaprovação, desde uma leve repreensão e espanto até o
ultraje sem limites.
Para a construção do escândalo, o jornalista recorre tanto a avaliações culturais quanto ideológicas
da Memória Social, rompendo com elas, a fim de construir o fato noticioso e seus comentários, segundo a
ideologia da empresa-jornal.
A título de exemplificação temos uma capa da revista Veja e uma capa da revista Istoé de
29/08/2014 que representam o acontecimento no mundo: a morte de Eduardo Campos como fato
noticioso no cenário eleitoral.
A escolha do papel social implica num conjunto de papéis para se interrelacionar; por exemplo, a
expectativa em relação ao papel do político (cada sociedade representa de uma maneira), dependendo das
ações e do grupo social os papeis tem caracterizações diferentes e estabelecem relações sociais diferentes.
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Na construção dos contextos e o discurso jornalístico, os papéis sociais em interação buscam a
preservação da face. Os papéis são unidades psicossociais que constroem uma estrutura para a sociedade.
(Moscovisci, 2010).
Na perspectiva do Interacionismo simbólico, cada um escolhe um papel e um conjunto de papéis
para se interrelacionar. De acordo com a teoria dos papéis, ao ler os textos situados no discursos, quais
papéis sociais aquele discurso considera para construir a referenciação no texto.
Assim no discurso jornalístico, as questões são: o que é notícia e como estabelece similitude com o
cotidiano quais são esses papéis?
Nas capas de revistas Veja e Isto é temos a representação do fato noticioso decorrente da morte
trágica do político Eduardo Campos que morreu na manhã do dia 13 de agosto de 2014, em um desastre de
avião em Santos.
Natural da capital pernambucana de Recife, Eduardo Henrique Accioly Campos nasceu em 1965 e é
formado em Economia pela Universidade Federal de Pernambuco. Neto do ex-governador de Pernambuco
Miguel Arraes, Eduardo sempre esteve ligado à política e iniciou uma participação mais ativa como
presidente do Diretório Acadêmico da universidade que estudou. Em 1987 participou da criação da
primeira secretaria de Ciência do Nordeste e em 1990 filiou-se ao PSB onde conseguiu o seu primeiro
mandato como Deputado Estadual de Pernambuco. Quatro anos depois conseguiu ser eleito Deputado
Federal, em 1995 ficou ao serviço de Pernambuco como Secretário do Governo e em 1996 como Secretário
da Fazenda. Em 1998 foi reeleito como Deputado Federal e outra vez em 2002. Em 2004 foi Ministro da
Ciência e Tecnologia e em 2006 foi eleito pela primeira vez ao cargo de governador de Pernambuco, sendo
reeleito em 2011.
A representação da morte trágica como sendo a perda de um político de conduta “ilibada” num
momento tão importante para o país, dá a possibilidade de ressemantizar, reorganizar os papéis sociais e
suas relações nessa nova cena política. Assim, temos as expressões: “Não vamos desistir do Brasil” em que
são incluídos aqueles que acreditam que as possibilidades de mudanças que o candidato projetava deverá
ter continuidade pelos que acreditam nessa ideia. Temos na capa da revista Isto é uma representação da
atuação política do candidato como “legado” como se o candidato tivesse esse encaminhamento antes do
acontecimento trágico. Desse modo, temos a Marina como “herdeira” desse legado e a questão se Marina
conseguirá atravessar esse percurso até as urnas levando esse legado.
A partir da ostensividade dada ao acontecimento no mundo, ocorre a construção do fato noticioso
que indicam desdobramentos e encaminhamentos para a eleição 2014.
Assim temos a reconstrução da noção de “legado” para as ações do político Eduardo Campos como
se essas ações tivessem uma grau de heroicidade, assim a representação estabelecida traz a ideia de que
ele tinha algo a dizer e fazer, mas não pode exercer naquele momento. Aquilo que é público é o “que se
refere ou é destinado ao povo, à coletividade (1975).
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Dessa forma, o que se destina ao povo, à coletividade é o que poderia ser feito, incorporando a idéia
de credibilidade para os outros papéis que se interrelacionam com este. Ao construir essa idéia de
credibilidade, todos estão envolvidos, assim essa emoção é construída com o objetivo de buscar uma
reação ao fato, assim temos o que Michaud (2001) trata como estados de violência e atos de violência, na
medida em que vivemos um estado de violência por conta da corrupção generalizada e temos alguns atos
de violência que são pontuados, destacados no decorrer dos eventos.
De acordo com Thompson (2002), o escândalo pode se rerefir a ações ou acontedimentos que
implicam certos tipos de transgressões que se tornam conhecidos de outros e são suficientemente sérios
para provocar uma resposta pública. Como por exemplo:
Marina
Por Cartunista Alpino | Blog do Alpino – sex, 15 de ago de 2014
De acordo com o cenário eleitoral atual podemos dizer que a Marina tornou-se candidata de fato
após o acidente que matou Eduarco Campos. Antes disso, a associação entre os dois candidatos parecia
meio “improvisada” para atender objetivos políticos eleitorais.
Assim, Marina passou a ocupar um papel social de real adversária politica, que tenta propor soluções
para os problemas do país.
Segundo a charge, a informação de base cultural, um uso do brasileiro para estabelecer sentido, é
uma maneira de estabelecer diálogo quando o interlocutor apresenta uma discordância com o locutor.
O escândalo nesse exemplo advém da construção de um discurso que Thompson chama de
infamante, para expressar diferentes graus de desaprovação, desde uma leve repreensão e espanto até o
ultraje sem limites.
Em síntese, constata-se que a Folha de S. Paulo tem como estratégia jornalística caracterizar alguns
movimentos sociais por uma designação mais hierarquizada, uma vez que o público-leitor, no centro dos
conflitos sociais, precisa de uma ordem no caos dos acontecimentos e o jornal presta esse serviço.
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4. Considerações finais
Os resultados obtidos indicam que os conhecimentos avaliativos são formados na inter-relação entre
o individual e o social, reproduzida no e pelo discurso, e pela cognição social, guiado pela cultura do grupo
social no qual está inserido, apesar da diversidade e variabilidade dos valores e normas que regem a
conduta dos indivíduos em contextos específicos.
Assim, de acordo os objetivos específicos propostos, temos:
1. examinar a seleção e a combinação de expressões visuais e verbais, em textos jornalísticos brasileiros
para representação do escândalo;
A seleção lexical ocorre por meio do saber já instituído e essas representações (verbais e não verbais)
cognitivas e sociais são estruturas dinâmicas que se modificam constantemente no interior dos grupos
humanos, no curso da interação comunicativa das pessoas e dos grupos sociais.
A relação de comparação ocorre por meio de um traço de similitude, assim temos os semas já
configurados para cada palavra em uma relação de contigüidade sintagmática que mobiliza uma seleção
lexical diferenciada, estabelecendo uma relação metafórica.
2. verificar os contextos e suas funções, na produção/compreensão de textos multimodais (visual e
verbal).
Tendo em vista os conhecimentos sociais já instituídos na sociedade no intra, inter e extra grupos
sociais, os conhecimentos ressemantizados são atualizados pela contemporaneidade dos fatos acontecidos
e representados como notícia.
Segundo Charaudeau & Maingueneau (2004:423) a refutação “supõe, se não uma retomada palavra
por palavra do discurso a ser refutado, ao menos uma conexão com esse discurso, sua ‘colocação em
cena’”.
Desse modo, a refutação exemplificada pela manchete ocorre por meio da adesão inicial às
definições pré-estabelecidas e na progressão do discurso a “colocação em cena” das palavras escolhidas
temos a refutação e/ou rejeição do já sabido, conhecido pelo novo em uma nova relação de paridade
(recontextualização).
A designação é retomada, estrategicamente, para atribuição de outros valores culturais e
ideológicos, reforçados pelas estratégias multimodais na construção do fato noticioso.
Na perspectiva do discurso jornalístico o Poder da empresa-jornal guia as ações do Controle de forma
a permear os diferentes textos publicados relativos à narrativa diária de um fato noticioso. Assim, os textos
multimodais jornalísticos são construídos como um mosaico de citações intertextuais, ou seja, decorrem da
absorção e transformação de outros textos.
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Conclui-se que existem entre a designação e o referente designado, implícitos culturais, que são
modificados pelos conceitos ideológicos e/ou culturais, para construir simbolicamente, os conhecimentos
de mundo que são reelaborados e passam a construir novos significados.
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Abstract: This paper is located in Critical Discourse Analysis (CDA) and has as theme the relation text and context for
the representation of the scandal in printed multimodal Brazilian newspaper articles. Has the general objective to
contribute to the studies of journalistic discourse and specific objectives: 1. examine the selection and combination of
visual and verbal expressions in Brazilian journalistic texts to the scandal representation; 2. verify the settings and
functions, production / understanding of multimodal texts (visual and verbal). The analysis sought to examine the
cotextuais relations between images and verbal expressions and the context of his discursive production, to represent
the scandal. Kress and van Leeuwen (1996), when dealing with the social change that occurred during the globalization
define the multimodal text as a product of the speech, seen as an action that combines verbal with images and colors
in a semiosis. We conclude that the elements selected by the producer participate in knowledge systems, stored in the
social and individual memory. It is considered that activation stored is not always conscious, as the ideology of power,
which has access to the public, by speeches, is now influencing people, leading them to support this ideology by its
textual reproduction, in and by speech .
Keywords: journalistic discourse, scandal, multimodality, critical discourse analysis.
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Gênero discursivo: o texto teatral no ensinoaprendizagem de língua estrangeira
Eduardo Dias da SILVA (SEEDF e NECAL/UnB)1
[email protected]
Resumo: neste artigo de metapesquisa qualitativa de modalidade documental interpretativista concebe-se a
linguagem como um processo de interação entre sujeitos sócio-historicamente situados, ou seja, uma linguagem que
desempenha um papel primordialmente social. Privilegia-se uma prática da Linguística Aplicada (LA) que busca
contribuições para uma possibilidade de mudança no contexto de ensino-aprendizagem de uma Língua Estrangeira
(LE). É evidente que a produção de sentidos compreende vários elementos que vão além dos verbais, como olhar,
gestos, movimentos faciais e entonação na fala. A essas formas-padrão intrinsecamente relacionadas à vida
sociocultural denominam-se gêneros discursivos e sem eles não há comunicação. Assim, consideramos o texto teatral
como pertencente ao gênero teatral que comporta o escrito e o dito e é uma modalidade de uso da língua – fala. O
texto teatral, por sua vez, enquadra-se, como ponto de partida, no gênero discursivo primário formado nas condições
das comunicações verbal e não verbal imediatas e espontâneas. Conforme esse gênero se integra e se transforma em
complexo (gênero discursivo secundário) adquire modos diversificados de referenciar os contextos linguisticamente
criados na língua para favorecer a fala. Esperamos encorajar o desenvolvimento de outras metapesquisas sobre o
texto teatral como mediador de língua estrangeira, buscando formas de fazer com que a teoria alcance a prática e
nela se reflita.
Palavras-chave: Gênero discursivo; Texto teatral; Ensino-aprendizagem de língua estrangeira.
1.Introdução
Inicialmente, discutiremos as teorias de língua e de linguagem com o objetivo de justificar o
arcabouço teórico aqui utilizado. Em seguida, abordaremos o texto teatral, suas definições e características
como pertencente ao construto texto estético, de acordo com o proposto por Ubersfeld (1996), Pierra
(2006) e Pavis (2002); e a teoria dos gêneros discursivos proposta por Bakhtin (2010).
O sócio-interacionismo discursivo de Marcuschi (2010; 2012; 2013), o papel do ritmo e da voz em
Bajard (2002; 2005) são também alvos de análise e reflexão, pois auxiliam a apropriação da oralidade ou
práticas orais no ensino-aprendizagem de Língua Estrangeira (LE). O francês é o idioma adotado para a
averiguação da aplicação do texto teatral como mediador destas práticas em Massaro (2001; 2007; 2008),
da USP, e em Reis (2008; 2011; 2012), da UnB, vistos em suas abordagens na perspectiva do professor
reflexivo de Perrenoud (2000; 2008), no exercício das suas práticas reflexivas, conforme Ortiz-Alvarez
(2009) e Zeichner (1993).
2. Língua e linguagem
1
Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em metodologia do ensino de língua estrangeira e
portuguesa pela Uninter. Licenciado em Letras Francês – língua e literatura pela UnB. Professor de Educação Básica na Secretaria
de Estado de Educação do Distrito Federal. Membro do Núcleo de Estudos Críticos e Avançados em Linguagem da Universidade de
Brasília (NECAL/UnB).
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Concebemos a linguagem como um processo de interação entre sujeitos sócio-historicamente
situados e não mais a língua isolada do contexto em que é produzida segundo Cunha (2010), ou seja, a
linguagem desempenha um papel primordialmente social. Dessa forma, o uso da linguagem está ligado aos
diversos campos da atividade humana e pode ser historicamente construído em torno das trocas nas
interações sociais.
Alicerçado neste pressuposto da linguagem e para se evitar a prática de ensino que tenha como foco
meramente as acomodações de trocas linguísticas, privilegia-se uma prática da Linguística Aplicada (LA)
que busca contribuições para uma possibilidade de mudança no contexto de ensino-aprendizagem de uma
LE.
Ao compreender que a língua é construída socialmente e que ela produz mudanças nos participantes
de um determinado contexto, percebe-se a relevância da disposição de um olhar mais crítico sobre as
práticas de ensino de línguas estrangeiras. Isso porque, segundo Marcuschi (2012), não existe um uso
significativo da língua fora das inter-relações situadas. Assim, a língua e a linguagem tornam-se
pertencentes à comunidade e não a indivíduos concebidos isolada e independentemente. É considerando
tal perspectiva de língua e linguagem que esta pesquisa foi desenvolvida, indo além de uma concepção que
considere a língua apenas no seu aspecto estrutural ou sistêmico. Aborda-se, portanto, a língua como um
processo dinâmico de construções.
Por outra perspectiva, que trata a língua como uma atividade cognitiva ou apenas um sistema de
representação, pode-se incorrer no risco de outra redução, que a confina à sua condição exclusiva de
fenômeno mental e sistema de representação conceitual. A língua envolve atividades cognitivas, mas não é
um fenômeno apenas cognitivo, pois, de acordo com a teoria sócio-interacionista, como esclarece Vygotsky
(1989) no livro Pensamento e linguagem, há que se levar em conta pesquisas sobre a importância da
linguagem no desenvolvimento do pensamento:
O pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e inata, mas
determinado por um processo histórico e cultural e tem propriedades e leis específicas
que não podem ser encontradas nas formas naturais de pensamento e fala. Uma vez
admitido o caráter histórico do pensamento verbal, devemos considerá-lo sujeito a todas
as premissas do materialismo histórico, que são válidas para qualquer fenômeno histórico
na sociedade humana (VYGOTSKY, 1989, p. 63).
Pode-se entender que o pensamento dos indivíduos se organiza e se desenvolve pelo acúmulo lento
de interações e experiências socioculturais e históricas mediadas na/pela linguagem entre os indivíduos em
uma dada comunidade. Pode-se entender ainda que o desenvolvimento do pensamento é determinado
pela linguagem e que isso se estende para além dos limites da ciência natural, ou seja, a natureza do
próprio desenvolvimento da linguagem se transforma do biológico para o sócio-histórico.
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É por tal razão que o uso do termo língua não se refere a um sistema de regras determinado,
abstrato, regular e homogêneo, nem às relações linguísticas imanentes. Ao contrário, de acordo com
Marcuschi (2010),
a concepção de língua pressupõe um fenômeno heterogêneo (com múltiplas formas de
manifestação), variável (dinâmico, suscetível a mudanças) histórico e social (fruto de
práticas sociais e históricas), indeterminado sob o ponto de vista semântico e sintático
(submetido às condições de produção) e que se manifesta em situações de uso concretas
como o texto e o discurso (p. 43).
A língua, a linguagem e o gênero discursivo são vistos na perspectiva do uso e não do sistema. Logo,
é evidente que a produção de sentidos compreenda vários elementos que vão além dos verbais, como
olhar, gestos, movimentos faciais e corporais e entonação na fala.
Versando sobre o entendimento do que é uma LE, vinculado aos pressupostos discutidos sobre a
língua e linguagem, mencionados anteriormente, entende-se que a língua envolve múltiplos processos da
intersubjetividade. Para se ensinar-aprender uma LE faz-se necessário dar atenção ao conjunto, integrando
o sujeito que aprende, o sujeito que ensina e o ambiente: no caso, a instituição, a sociedade constituinte da
comunidade linguística tanto da língua-alvo como também da Língua Materna (LM) e demais ambientes
nos quais ocorram o processo de ensinar e aprender uma língua.
A LE remete ao estranho, ao desconhecido, ao novo que pode trazer desafios, prazeres ou até
mesmo bloqueios e inibições, pois ela mexe com a língua que constitui os sujeitos (professores e
aprendentes) e vai mais além! Ela quebra ou, até mesmo, confronta os conceitos, as crenças e os signos já
existentes, dentro da consciência de cada sujeito carregada pela LM que o constitui. Como bem explicado
por Anderson, “aprender uma outra língua é se constituir uma palavra outra, ou seja, um tornar-se outro”
(1990, p. 173, apud REIS, 2008, p.126).
Colaborando na concepção de LE como um processo dinâmico de construções sociais tem-se a
Abordagem Comunicativa (AC), apresentada por Almeida Filho (1993) – o grande precursor dos estudos no
Brasil –, como o sentido de interação de sujeitos sócio-históricos na construção e na compreensão do
discurso via comunicação; porém, o sentido que ele atribui à palavra comunicação não se restringe àquele
trabalhado na década de 1970, oriundo da Teoria da Comunicação (TC), nem tampouco sua visão faz
perdurar o caráter behaviorista e tecnicista como era comum até então. Para o autor e para os adeptos
dessa linha de pensamento, a comunicação na nova língua, no caso específico da LE, conforme elencado
por Basso (2008), é entendida como uma
interação social propositada tendo como participantes sujeitos históricos, portanto com
trajetórias únicas, embora moldadas pelo contexto social em que se encontram. Esses
participantes, embora providos de capacidades intrínsecas distintas, colocam-se juntos,
parceiros no embate para modular a construção e a compreensão do discurso,
procurando alcançar os diferentes sentidos propostos (p. 129).
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A língua insere os indivíduos em contextos sócio-históricos e isso permite que eles se entendam. A
língua é uma forma de ação, ou seja, um trabalho desenvolvido colaborativamente entre os indivíduos na
sociedade. Como constatado por Pinto,
a linguagem pode ser vista sob dois ângulos: como conhecimento e como instrumento
social. Fala e escrita, como formas de manifestações da linguagem, ocorrem em
ambientes sociais distintos, com exigências específicas quanto à sintaxe e às estruturas
textuais. Devido às suas próprias formas textuais e genéricas, fala e escrita diferem quanto
às estruturas e funções características, fazendo com que, no âmbito do ensino, haja uma
estreita ligação entre linguagem e cognição. Fala e escrita, por conseguinte, compõem
modelos cognitivos que estão disponíveis para seus usuários (2010, p. 52).
A fala e a escrita são manifestações da linguagem que se desenvolvem no social, independentemente
do lugar e do momento, e que se diferem também em suas estruturas e tipologias; contudo, ambas
convergem para uma mesma finalidade que é a comunicação e a interação dos indivíduos. O uso desses
modelos cognitivos – fala e escrita – passa pela composição da intencionalidade dos sujeitos no como,
quando, onde e porque se manifestar.
Ao falar outra língua, o sujeito representa o mundo e representa a si mesmo por meio de imagens
construídas na cadeia linguístico-discursiva. Serrani (1998, p. 135) chama de tomada da palavra significante
em uma ou mais línguas quando “o sujeito assume uma posição discursiva que reflete as relações de poder
e os processos identificatórios estabelecidos na e pela língua”.
Desse modo, a tomada da palavra afeta, desloca, muda o sujeito que se encontra/confronta e se
embrenha em apre(e)nder uma língua, na medida em que tal evento deixa marcas no corpo (como as
dificuldades do aparelho fonador em produzir os novos sons ou os gestuais que advêm com a nova língua),
provoca mudanças, que podem impactar as formações discursivas fundadoras do sujeito, a saber “as que
teceram seu inconsciente, o interdiscurso preponderante na rede de regularidades enunciativas do âmbito
familiar, marcada também pela historicidade social mais ampla” (Serrani, 1998, p. 146). Assim, só é possível
pensar em aprendizagem quando “o outro é (in)corporado, fagocitado” (Coracini, 2007, p. 11).
3. Gêneros discursivos e texto teatral
Na ênfase do conceito de língua e de linguagem inseridas dentro de uma produção sócio-interacional
e pertencentes ao gênero discursivo como pretendemos salientar, tem-se o termo dialogismo que nos
remete a diálogo, evidentemente. Isso não significa que apenas o diálogo face a face seja dialógico, pois
na teoria de Bakhtin, ou análise dialógica do discurso, a ideia de dialogismo está ligada à
própria concepção de língua como interação verbal. Afinal, não existe enunciado concreto
sem interlocutores. O próprio fato de um autor levar em consideração seu interlocutor
direto ou indireto quando produz um enunciado já confere à língua esse caráter dialógico
(SILVA, 2014, p.52).
Assim, o discurso é feito no/para o entendimento-compreensão-intencionalidade dos participantes
ativos, seja no discurso oral, seja no escrito: aqueles últimos são determinados pelo campo da atividade
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humana a que tal enunciado se refere de maneira circular, dinâmica e heterogênea que levam em conta as
vivências dos participantes e seus domínios estruturais da linguagem.
Ainda, segundo este autor, um texto é sempre orientado ao outro e deste sempre aguarda uma
resposta ou a compreensão ativo-responsiva. O leitor/ouvinte sempre irá responder, seja imediatamente,
seja tardiamente. A resposta é variada, pode concordar, discordar, complementar etc. Ao mesmo tempo,
ao produzir o enunciado - dado que este sempre aguarda uma resposta - o falante leva em consideração o
seu respondente e seu enunciado sofre a influência do enunciado que antecipa como resposta.
Há uma grande identificação do pensamento de Bakhtin com a metáfora do diálogo, e isso a tal
ponto que já se tornou habitual e generalizado designar este pensamento pelo termo dialogismo. Faraco
(2013, p.60), na intenção de tornar claro este termo em Bakhtin, infere que a palavra diálogo, contudo,
“tem várias significações sociais, o que pode afetar a recepção do pensamento de Bakhtin”. Sendo assim,
esclarece:
O próprio Bakhtin criticou, em vários momentos, a ideia de um dialogismo estreito. É
preciso, por isso neste ponto, fazer até mesmo um esforço de compreensão do sentido de
diálogo nos trabalhos de Bakhtin para termos condições de explorar seu poder heurístico
[...]. [Assim, para tal, o] diálogo designa, comumente, determinada forma composicional
em narrativas escritas, representando a conversa dos personagens. Pode designar
também a sequência de fala dos personagens no texto dramático [teatral], assim como o
desenrolar da conversação na interação. [...] Portanto, o evento do diálogo estará no foco
de atenção de Bakhtin, mas não como forma composicional e sim como “um documento
sociológico altamente interessante”, isto é, como um espaço em que mais diretamente se
pode observar a dinâmica do processo de interação das vozes sociais. [...] em outras
palavras, podemos dizer que, no caso específico da interação, Bakhtin se ocupa não com o
diálogo em si, mas com o que ocorre nele, isto é, com o complexo de forças que nele atua
e condiciona a forma e as significações do que é dito ali [...] (pp. 60-61).
Em consonância com esses posicionamentos, a proposta aqui é a de mostrar que todo o uso e
funcionamento da linguagem se dão em textos e discursos orais e escritos produzidos e recebidos em
situações enunciativas (diálogos), ligados a domínios discursivos da vida cotidiana e realizados em gêneros
que circulam na sociedade.
A ideia de discurso também fortalece a aprendizagem da língua pela ótica da prática da linguagem,
como pode ser observado em Santos (2013) ao anotar que
o discurso é construído quando o uso da língua a coloca em movimento, fazendo-a
efetivamente existir. Pelo discurso o homem implica o sentido das palavras para construir
a significação que acha mais adequada ao momento a que se refere. A língua, como
sujeito e como objeto, compreende-se como realizadora de ação capaz de multiplicidade,
entretanto, quando o faz escolhe um modo específico com o objetivo de ser coerente com
o ambiente no qual está inserida (p. 25).
Pode-se vislumbrar o uso da língua como a ação plena para o ensino-aprendizagem. A sala de aula e
outros ambientes de ensino-aprendizagem mostram-se como um espaço de vivência da LE. Assim, a
oralidade é explicitada como elemento crucial de um contexto de ensino-aprendizagem comunicativo. Para
desenvolvê-la, é preciso considerar a língua em seu uso real, pois “ela é determinada tanto pelo fato de que
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procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém”, de acordo com Bakhtin (2004 *1929+, p.
113).
Na medida em que produzem enunciados, os sujeitos se baseiam em formas-padrão relativamente
estáveis que se constituem sócio-historicamente, de acordo com as práticas comunicativas e interacionais
em que estão inseridos. A estas formas-padrão intrinsecamente relacionadas à vida sociocultural
denominamos gêneros discursivos, por meio dos quais se realizam todos os textos. Desse modo, não há
comunicação sem os gêneros discursivos, não importando a estrutura discursiva. De acordo com Bakhtin,
para falar, utilizamo-nos sempre dos gêneros do discurso, em outras palavras, todos os
nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de
estruturação de um todo. Possuímos um rico repertório dos gêneros do discurso orais (e
escritos) (2000, p. 301).
Assim, o indivíduo constitui-se como ser social na medida em que ele dispõe do uso dos gêneros
discursivos e essa interação sociodiscursiva é feita na e pela fala, porém não de forma única e excludente,
que apesar de relativamente estável, possui suas características de imprevisibilidade e subjetividade tal
qual é a representação do indivíduo2. Mesmo apresentando estrutura relativamente estável, não se pode
concluir que os gêneros são formas linguísticas rígidas e inflexíveis. Ao contrário, a natureza dos gêneros é
altamente dinâmica e instável, visto que se constituem como um produto sociodiscursivo e, como tal,
acompanham as transformações pelas quais passa a sociedade.
Os gêneros não se limitam a formas linguísticas: mais do que estruturas à disposição dos sujeitos, os
gêneros, conforme explica Marcuschi (2012, p. 20), “são entidades sócio-discursivas e formas de ação social
incontornáveis em qualquer situação discursiva”. Elesconfiguram respostas às necessidades comunicativas
que se apresentam nas mais diversas esferas de atividades humanas. Segundo Bakhtin,
todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre
relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos
desta utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que
não contradiz a unidade nacional de uma língua (2000, p. 279).
Com isso, pode-se ressaltar que tais formas-padrão relativamente estáveis encontram-se no âmago
da vida sociocultural, contribuindo para estabilizar e organizar as atividades comunicativas cotidianas, visto
que indicam um alto poder preditivo e interpretativo das ações humanas. Por esta razão, é possível aferir
que os gêneros “caracterizam-se muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do
que por suas peculiaridades linguísticas e estruturais” (Marcuschi,2012, p. 20).
Logo, para compreender a importância dos gêneros discursivos para as atividades comunicativas do
dia a dia e para as do ensino de línguas, não basta ficarmos atidos aos aspectos linguísticos e estruturais,
uma vez que são mais relevantes os aspectos comunicativos, funcionais e interacionais.
2
Os termos sujeito, indivíduo e participante são utilizados indiscriminadamente e sem distinção neste artigo, como pertencentes ao
mesmo eixo de significação –o ser humano – como identidade social, política, ideológica (res)significada no tempo e no espaço
socialmente identificados.
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A diversidade de gêneros é plausível por sua própria natureza. Como acontece de acordo com as
necessidades que se apresentam em cada esfera de atividade humana e tendo-se em vista que estas
esferas também são bastante diversificadas, apresentando necessidades igualmente diversas, é natural que
tenha surgido grande variedade de gêneros. Toda a explanação até aqui é plausível para dizer que
consideramos o texto teatral como pertencente ao gênero teatral, que comporta o escrito e o dito e é uma
modalidade de uso da língua – fala. A propósito, no que diz respeito à oralidade, segundo Marcuschi
afirma,
seria uma prática social interativa para fins comunicativos que se apresenta sob variadas
formas ou gêneros textuais fundados na realidade sonora; ela [oralidade] vai desde uma
realização mais informal a mais formal nos mais variados contextos de uso (2010, p. 25).
O texto teatral, como modalidade de uso da língua (fala), utiliza uma série de recursos expressivos de
outra ordem, tal como a gestualidade, os movimentos do corpo e a mímica. Neste aspecto, cabe mencionar
os estudos de Bajard (2002; 2005) que trazem na semiologia do teatro sua explicação do encontro do texto
com outras linguagens, quando o texto teatral passa da página à voz. Assim, a fala
seria uma forma de produção textual-discursiva para fins comunicativos na modalidade
oral (situa-se no plano da oralidade, portanto), sem a necessidade de uma tecnologia além
do aparato disponível pelo próprio ser humano. Caracteriza-se pelo uso da língua na sua
forma de sons sistematicamente articulados e significativos, bem como os aspectos
prosódicos (MARCUSCHI, 2010, p. 25).
A compreensão de prática social confirma-se na ênfase da própria concepção de língua a partir do
uso, por isso o ensino-aprendizagem também precisa partir do pressuposto de que “as línguas se fundam
em usos e não o contrário”, como Marcuschi (p. 16) apresenta.
Entretanto, antes de adentrar nas especificidades do texto teatral, pertencente aos gêneros literário
e teatral, faz-se necessário situá-lo nas definições de Bakhtin (2010) de gêneros primários e secundários
para melhor orientar a reflexão ora apresentada. Nas palavras de Bakhtin, a distinção não é meramente
funcional, mas sim uma tentativa de minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros discursivos e a
dificuldade daí advinda de definir a natureza geral do enunciado. Com isso,
os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas
de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um
convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado
(predominantemente o escrito) – artístico, científico, sociopolítico, etc. No processo de
sua formação eles [gêneros discursivos complexos] incorporam e reelaboram diversos
gêneros discursivos primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação
discursiva imediata (2010, p. 263).
É importante salientar que os gêneros primários (simples) não carecem de desenvolvimento, nem
são tidos como desorganizados; eles são oriundos, isso sim, de uma comunicação verbal ou não verbal
espontânea. Com isso, a distinção que se deve ter é que o gênero primário se faz presente na comunicação
discursiva imediata. À medida que estes gêneros integram os complexos (gêneros discursivos secundários)
transformam-se e adquirem um caráter especial, passando do imediatismo para a concretude.
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Ainda na colaboração da distinção entre os gêneros discursivos primários e secundários de Bakhtin,
os estudiosos Dolz e Schneuwly (2011) elencam as dimensões do gênero discursivo primário como sendo a
troca, interação, controle mútuo pela situação, assim como o funcionamento imediato do gênero como
entidade global comandando todo o processo, como uma só unidade e também não havendo nenhum ou
pouco controle metalinguístico da ação linguística em desenvolvimento.
Nos gêneros discursivos secundários, os autores supracitados trazem à tona as definições que eles
consideram como: a) modos diversificados de referência a um contexto linguisticamente criado; b) modos
de desdobramento do gênero; e c) a existência e a construção de um aparelho psíquico de produção de
linguagem que não funciona mais na comunicação verbal espontânea de Bakhtin.
Dentre outras maneiras, isso se faz linguisticamente pela criação de instrumentos linguísticos que se
referem a um contexto. Quanto mais um gênero é autônomo com relação a uma situação imediata, mais o
aparelho linguístico criado na língua para falar dele se enriquece e se torna complexo, assegurando sua
coesão interna e externa no seu controle, na sua avaliação e na sua definição.
Em Bronckart (1993), os gêneros discursivos primários (ou livres) estabelecem uma relação imediata
com as situações nas quais são produzidos, assim estruturados pela ação ao ponto que os gêneros
discursivos secundários (estandardizados) seriam estruturados na ação que estabelecem com a situação
mediada pela produção. Desta forma, distingue-se do gênero discursivo primário submetendo-se a um
estruturante próprio, convencional, de natureza especificamente linguística do tipo: narração, discurso
teórico, romance, etc.
O texto teatral, por sua vez, enquadra-se, como ponto de partida, no gênero discursivo primário
(simples) formado nas condições das comunicações verbal e não verbal imediatas e espontâneas, aquele da
ideologia do cotidiano e também na interação e no controle mútuo da situação. Conforme esse gênero se
integra e se transforma em complexo (gênero discursivo secundário), aquele dos sistemas ideológicos
constituídos, adquirindo, assim, modos diversificados de referenciar os contextos linguisticamente criados
na língua para favorecer a fala, o gênero primário se enriquece e se desenvolve. Para legitimar nossas
ideias e partindo desta premissa, cabe comentar que
Voloshinov não entende estas duas esferas [gêneros primário e secundário] como
realidades independentes, mas em estreita interdependência. Ele vê a espera dos
sistemas ideológicos constituídos [gênero secundário] como se consolidando a partir das
práticas da ideologia do cotidiano [gênero primário] e, ao mesmo tempo, se renovando
continuamente por meio de um vínculo orgânico com estas mesmas práticas que abrigam,
segundo ele, os indicadores primeiros e mais sensíveis das mudanças socioculturais e [...]
essas mudanças vão encontrar, mais tarde, sua expressão nas produções ideológicas mais
elaboradas [gênero secundário] que, por sua vez, acabam por exercer uma forte influência
sobre as práticas do cotidiano [gênero primário] (FARACO, 2013, pp. 62-63).
A diferença específica reside no tipo de relação com a ação, a regulação ocorre na e pela própria
ação de linguagem no gênero primário. Quando os gêneros primários se desenvolvem através das
interações discursivas, tornam-se complexos (gêneros secundários) e, assim, tornam-se também
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instrumentos de construções novas, modos de desdobramento do gênero que caracterizam sua autonomia
em relação ao contexto.
A aparição de um novo sistema – o dos gêneros secundários, no caso – não faz tabula rasa do que já
existe. “O novo sistema não anula o precedente, nem o substitui”, de acordo com Dolz e Schneuwly (2011,
p. 30). Daí nossa defesa do texto teatral originar-se no gênero primário e ao desenvolver-se na interação
discursiva se perfaz como gênero secundário; logo os gêneros primários são instrumentos de criação dos
gêneros secundários. É, pois, necessário se pensar, segundo Dolz e Schneuwly (2011, p. 31), “a um só
tempo, na profunda continuidade e na profunda ruptura que a passagem de um a outro introduz”.
Com o impedimento de propor um método de análise de textos modernos e contemporâneos, uma
vez que a multiplicidade e a riqueza de formas pode parecer um obstáculo para contemplar todas as
metodologias de leitura e interpretação do texto teatral, segundo Pavis3 (2002).
Por isso, este autor, por considerar prudente, elenca as seguintes ferramentas necessárias de
tomada de consciência do texto teatral para sua leitura e interpretação: a) situar o texto teatral
historicamente nas classificações de clássico, realista, absurdo, existencialista e outros; b) verificar se o
texto teatral é de teoria teatral ou do teatro propriamente dito; e c) utilizar-se de diferentes mecanismos
de leitura, pois a palavra em ação é mais presente no texto teatral em si do que em outros gêneros
adaptados para o teatro.
O impedimento de análise do texto teatral também é levantado em Ubersfeld (1996) ao dizer que o
texto é uma arte paradoxal e, aprofundando em suas reflexões, vai mais longe ao indagar que essa
característica paradoxal pode ser estendida a Arte como um todo.
O teatro é uma arte paradoxal. Podemos ir mais longe e ver a mesma arte do paradoxo,
tanto na produção literária primeira representação concreta, tanto eterna
(indefinidamente reproduzível e repetível) e instantânea (nunca reprodutível como
4
idêntico a si mesmo): arte performática que é um dia e nunca o mesmo no dia seguinte
(UBERSFELD, 1996, p. 11).
A arte paradoxal, levantada por Ubersfeld, explica-se e se aplica pelas múltiplas leituras do texto
teatral, sempre engajadas e motivadas pelo momento histórico-social dos seus participantes (no nosso
caso, professores e aprendentes). Assim, é uma representação concreta, pois se trata, antes de tudo, de
uma produção literária, visto aí sua perenidade como gênero teatral pertencente ao gênero literário e do
qual faz parte o texto teatral; é também instantânea, como arte performática podendo ser encenada ou
lida dramaticamente. No caso da leitura, fazendo-se valer de técnicas teatrais, ou seja, da teatralidade.
Em sua concepção de texto teatral, Reis (2008) também traz à luz a complexidade de enquadramento
epistemológico do termo, referindo-se a ele como tendo
3
« Il est devenu très difficile de proposer une méthode d’analyse des textes modernes et contemporains, car la multiplicité et la
richesse des formes semblent échapper à toute saisie méthodique ».(PAVIS, 2002, p. VII). (tradução nossa)
4
« Le théâtre est un art paradoxal. On peut aller plus loin et y voir l’art même du paradoxe, à la fois production littéraire er
représentation concrète; à la fois éternel (indéfiniment reproductible et renouvelable) et instantané (jamais reproductible comme
identique à soi): art de représentation qui est d’un jour et jamais la même le lendemain ». (tradução nossa)
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características do texto oral alguns ― “efeitos de conversação”, ou ainda, algumas marcas
da linguagem falada, tais como interrupções, lapsos, balbucios, falas regionais e
populares, mudanças de registro, além do tom, a entonação, o ritmo, a fluência, que
podem ser determinados pela rubrica ou mesmo pelo tipo de escrita do autor. Logo, como
existe a intenção do autor por trás de cada fala da personagem, nada é deixado ao acaso,
os esquemas de interação são, de certa maneira, “purificados” com o objetivo de atingir
um equilíbrio entre “efeitos estéticos” e “efeitos de conversação” (p. 41).
De acordo com o excerto acima, percebe-se um leque de possibilidades no que tange à expressão
oral, pois ao mesmo tempo em que o texto teatral trabalha sobre a linguagem comum, os “efeitos
estéticos” descritos pela autora, favorecem uma ampliação do vocabulário dentro dessa “purificação” da
conversação.
Trabalhar com o texto teatral, portanto, favorece “o estudo da natureza dos enunciados e dos
gêneros discursivos é, segundo nos parece, de importância fundamental para superar as concepções
simplificadas da vida do discurso, do chamado fluxo discursivo, da comunicação” (BAKHTIN, 2000, p.269),
pois enquanto dispositivos de comunicação que aparecem em certas condições sócio-históricas específicas,
seu reconhecimento aufere aos sujeitos sociais mais consciência acerca da própria linguagem. Além disso,
as percepções sobre fluência, ritmo, pausas e tonicidade de palavras se fariam presentes no contato
linguístico e oral entre os participantes. Nos dizeres de Reis (2011),
o texto teatral tem uma relação estreita com a linguagem falada, que varia, no entanto, de
acordo com a preocupação mais ou menos naturalista dos dramaturgos. Os dramaturgos
criam “efeitos de conversação” que, contudo, não reproduzem uma verdadeira conversa,
pois, está presente, igualmente, no diálogo teatral, um componente estético. O ator, ou
qualquer pessoa na posição de “dizer” o texto, deve, portanto, poder articular cada réplica
sem dificuldade e com prazer. Esse efeito estético passa pelo “poético” na dimensão da
função poética da linguagem, descrita por Jakobson, na qual a ênfase recai sobre o lado
palpável do signo, sobre o significante e sobre as combinações possíveis dos elementos
concretos da linguagem. Nesse processo o autor não escolhe as palavras unicamente pelo
seu valor informativo, mas por seus efeitos estéticos de ritmo, entonação e sonoridades
(p. 217).
Ainda na delimitação epistemológica do texto teatral, ratificamos a definição de texto de Umberto
Eco, que o considera como uma máquina “preguiçosa” e “esburacada”, necessitando do outro para fazer e
dar sentido a essa engrenagem:
o texto é uma máquina preguiçosa, que exige do leitor um renhido trabalho cooperativo
para preencher espaços de não-dito ou de já-dito que ficaram, por assim dizer, em branco,
então o texto simplesmente não passa de uma máquina pressuposicional (2002, p. 11).
No texto teatral a “preguiça” ou “buracos” se tornam mais evidentes, pois temos características
“tanto da língua oral (entonação, gestos), quanto da língua escrita (predição, antecipação) e a sua plena
realização pode se concretizar ou não na encenação”, como também salienta Reis (2008, p. 36). A mesma
dificuldade de leitura/interpretação é levantada por Pierra ao observar que
assim como todo texto literário, o texto teatral é esburacado e os atores devem levar em
consideração os vários sujeitos da enunciação, a saber, os que estão presentes no textopersonagens e os das didascálias no qual se encontra o autor. Tudo isso é destinado a um
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duplo receptor o público e um Outro para quem se destina toda obra, todo discurso
poético5 (2006, p. 75).
Para facilitar o uso e a compreensão do texto teatral em ambientes de ensino-aprendizagem, assim
como os demais textos em LE nos quais estão contidos muito elementos informativos a serem trabalhados
ao mesmo tempo, faz-se necessário, de acordo com Pietraróia (1997, p. 94) “facilitar as leituras, ensinando
o aprendente a descobrir pontos de referência sólidos, tais como a percepção dos índices visuais e da
estrutura do texto, o reconhecimento do tema, das ideias principais e etc.”
Sendo o texto teatral naturalmente “lacunoso” ou “esburacado”, a preparação de leitura ou
atividade de pré-leitura para os leitores – proposta por Pietraróia (1997) –, inclusos aqui professores e
aprendentes, pode guiar e organizar melhor a interação com o que está sendo lido, selecionando
elementos realmente pertinentes para sua compreensão. Isso porque, conforme Schneuwly; Dolz (2011),
para que os objetivos de ensino-aprendizagem de um gênero possam ser atingidos, as práticas escolares
devem ser norteadas pelo que eles chamam de modelo didático do gênero e suas respectivas sequências
didáticas, no nosso caso, o texto teatral. Salientamos, no entanto, que é só de um ponto de vista teórico
que os autores afirmam ser possível falar em modelos de gênero. Na prática, bem sabemos que os gêneros
não são modelos rígidos, mas formas culturais e cognitivas de ação social, segundo Marcushi (2012).
As sequências didáticas, certamente, possibilitam práticas de leitura, de escrita, e o trabalho com a
oralidade em sala de aula de LE. E são elas, a nosso ver, as responsáveis por um projeto pedagógico
completo e eficaz com o gênero texto teatral, (re)colocando-o no seu lugar original e reconhecendo seu
valor sócio-histórico, estabelecendo metas e objetivos claros a serem alcançados nos diferentes módulos
de estudo (leitura, produção escrita e circulação). Para tanto, é necessário que os professores criem
condições para que os aprendentes possam apropriar-se das características discursivas e linguísticas desse
gênero em situações de comunicação real.
Sentimo-nos impelidos e encorajados a realizar esta pesquisa no entendimento de que ela revela
indícios da atividade de co-enunciação, de construção de sentidos e de subjetividades que é a leitura
trazida à tona graças ao texto teatral como mediador na apropriação da oralidade no ensino-aprendizagem
de LE para inaugurar um novo percurso não somente para nós, pesquisadores, mas também aos
participantes (professores e aprendentes) aqui envoltos.
Dentre os múltiplos percursos que o texto literário pode designar, exibir e apresentar pretende-se
ressaltar neste artigo aquele percurso do texto teatral, por considerar que uma de suas especificidades
resulta de um paradoxo extremamente fértil para o contexto do ensino-aprendizagem de uma LE: o “texto
teatral pertencente à esfera da língua escrita que, ao mesmo tempo, se projeta sobre/se destina à espera
de língua falada”, de acordo com Massaro (2007, p. 5).
5
« Ainsi que tout texte littéraire, le texte théâtral est troué et les acteurs doivent tenir compte de plusieurs sujets d’énonciation, à
savoir ceux présents dans les textes-personnages et celui des didascalies où se retrouve l’auteur. Tout cela est adressé à un double
récepteur qui est le public et cet Autre à qui s’adresse toute oeuvre, toute parole poétique » (PIERRA, 2006. p. 75). (tradução nossa)
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O texto de teatro gera, pela sua própria essência, uma entrada paradoxal: certa perspectiva da
escrita – leitura – simultânea e interagente com certa perspectiva do oral – la mise-en-voix–,6 ou seja, nos
termos de Bajard (2002; 2005), atividade de comunicação vocal do texto.
Deve-se lembrar de que não menos importante, além do interlocutor presumido, há também outras
“vozes” num enunciado. Essas vozes (dizemos também discursos) podem aparecer de maneira evidente,
marcadas linguisticamente pelo recurso do uso do discurso relatado, seja ele direto, indireto ou indireto
livre presentes, de forma explícita ou não para tal na leitura ou na encenação do texto teatral.
O texto teatral em sua vida paradoxal, ora como texto propriamente dito, ora como encenação,
remete-nos a outro conflito: a oposição interna do texto teatral entre diálogo e rubrica. Esta última traz
uma marca externa ao texto, tipográfica, representando, às vezes, a intencionalidade do autor/dramaturgo
em relação à identidade, ações e até mesmo às emoções das personagens. Tal recurso tem como função
informar o quê, como, onde e quando dizer na representação de uma cena.
O diálogo é a apresentação do texto em forma discursiva, o uso concreto das palavras por meio do
exercício da fala dos atores/participantes (professores e aprendentes) caracterizando as personagens. Eis
uma forma de discurso que é o reconhecimento do teatro e do seu texto como sendo um gênero literário e
também um elemento essencial para a teatralidade.
Em Bronckart (1999), observa-se também o texto teatral como sendo um produto efetivo de uma
ação de linguagem realizada simultaneamente no âmbito de uma determinada formação social, no quadro
semiótico particular de uma das várias facetas das línguas naturais e ainda no quadro semiótico particular
da linguagem teatral que, utilizando formas comunicativas que nelas estão em uso, torna-se um entre os
vários gêneros discursivos possíveis.
Deve-se salientar que o teatro como meio de comunicação difere essencialmente das trocas
linguajeiras do cotidiano efetuadas na realidade. O texto teatral e as interações nos diálogos são
verossímeis, ou seja, parecem imitar os diálogos reais. Contudo, não se pode dizer que não há naturalidade
e espontaneidade nas trocas entre as personagens/participantes no desenvolver dos seus discursos.
Em síntese, as peripécias do discurso teatral são verossímeis na medida em que buscam elementos
da realidade da fala humana e fogem do real porque trazem certa intencionalidade do autor/dramaturgo
na voz da personagem, dos atores e participantes, aliado a elementos externos como, por exemplo, o
espaço cênico e a interpretação.
O texto teatral, sendo essencialmente um ato dialogal, exige o uso da voz, sendo que a “transmissão
vocal do texto”, por sua vez, exige também a presença de um “mediador/transmissor” que se impõe entre
o texto e o receptor. Valendo-se, assim, como um ator na fala de um texto teatral, o uso do próprio corpo,
6
Indubitavelmente, o poema também concebe relações entre essas duas esferas; no entanto, este não se destina necessariamente
à mise-en-voix (oralização).
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por meio de gestos, olhar, respiração, transforma-se num tipo de segundo emissor ou facilitador das
emissões.
Nessa perspectiva, encontramos alguns traços de teatralidade e, estabelecendo uma relação
enunciativa sobre o assunto em questão, cita-se Reis, que por meio do pensamento de Bajard diz ser
importante
ressaltar ainda que esse tipo de transmissão também não é o que se costuma chamar de
“leitura em voz alta”. Elie Bajard (2001) define de forma clara e objetiva cada uma dessas
atividades com o intuito de evitar o que chamou de “confusão terminológica”. Para isso
faz uma retrospectiva histórica das modalidades da passagem oral dos textos,
descrevendo, em primeiro lugar, o que ele chama de “ruminação do texto”, *...+ outra
modalidade de “vocalização”, a de uma atividade voltada para os outros, tinha como
objetivo comunicar oralmente um texto escrito para uma pessoa que não soubesse ler, ou
impossibilitada de fazê-lo e *...+ uma outra, terceira modalidade foi chamada de “leitura
em voz alta” ou ainda “leitura expressiva” (2008, p.48).
Na intenção de eliminar a confusão terminológica, Bajard (2002; 2005) propõe o termo dizer o texto
em contrapartida de “leitura em voz alta” ou “leitura expressiva” como uma possível alternativa para o
trabalho oral com textos, no caso deste artigo o texto teatral. Por conseguinte, a “transmissão vocal do
texto” ou “leitura em voz alta” é o uso de várias linguagens, como, por exemplo, da linguagem corporal
também preconizada no livro de Pierra (2006).
4. Considerações finais
Na transmissão vocal do texto, o papel do “mediador”, podendo ser o professor e/ou aprendente, é
levar aos ouvintes o prazer do texto, compartilhando as emoções, o gosto de ler e para tal este mesmo
mediador se valerá de recursos da teatralidade como o uso da voz, do gesto, do olhar e do ritmo do texto
(sonoridade). É interessante, sempre, lembrar que o objetivo maior aqui defendido não é a encenação
propriamente dita e sim o texto, podendo o mediador aproveitar-se mais ou menos dos elementos cênicos,
dependendo dos seus objetivos propostos.
Outro ponto marcante no uso dos textos teatrais são as várias possibilidades de vozes ou dizeres. O
dizer do professor não seria uma voz normativa para os aprendentes, mas, sim, mais um viés de
transmissão e cada “mediador” pode ainda descobrir várias maneiras de dar voz ao texto, pois isso ocorre
graças ao fato de o texto teatral possuir um caráter polissêmico segundo Bakhtin, podendo ser objeto de
várias leituras com várias vozes sociais7.
7
Voz social é concebida, neste trabalho, dentro de uma perspectiva social mais global. Naturalmente a sociedade e seus sistemas
constantemente são transformados, uns passam por ascensão, outros estão em decadência e o que acontece entre estes processos
são as transições que também podem ser entendidas como interações, realizadas pelo ser humano. Enfim, o mais importante é que
estas vozes sociais desencadeiam fatos e ações de interdependência e, sendo assim, interferem diretamente em todas as pessoas
envolvidas na sociedade. Retomando para o nível discursivo, essas tendências desencadeadas, através das vozes da enunciação,
influenciam outras pessoas; consequentemente, estas tomarão outras posições diante dessas vozes e assim tecerão suas
enunciações.
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A transmissão oral ou, na terminologia de Bajard (2005), o dizer do texto teatral pode transpor
obstáculos no ensino-aprendizagem de uma LE, fazendo o aprendente experimentar a língua/cultura do
outro/estrangeiro, fazê-lo sentir-se mais próximo e vivenciando a LE de forma mais aberta, natural e
dinâmica. Assim, a LE deixa de ser um produto do outro e o aprendente começa a reconhecê-la e a
percebê-la como sua, dando forma ao seu eu estrangeiro com o apoio do corpo e da voz que se manifestam
em LE.
Almejamos que as leituras obtidas com esta pesquisa sobre o texto teatral no ensino-aprendizagem
de língua estrangeira como mediador na apropriação da oralidade em LE consigam, “apesar de ainda
restrita a circulação no meio acadêmico, contribuir para o avanço sobre o conhecimento dos intervenientes
desta alternativa pedagógica”, segundo Silva (2014, p. 92). Se a contribuição se efetivar, poderemos
concluir que o nosso empenho ao longo da pesquisa e da elaboração deste artigo como devidamente
recompensado.
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Abstract: On this qualitative, documental and interpretative metasearch article,language is seen as an interaction
process among individuals socially and historically placed, i.e. a language that performs mainly a social role. Taking
into account this language assumption and avoiding teaching practices aiming merely linguistic exchanges
accommodations, an Applied Linguistics practice is privileged. This practice pursues contributions for a possibility of
changing the teaching-learning of a Foreign Language (LE). It is clear that producing senses comprises many elements
that go beyond the verbal ones, such as the look, gestures, facial movements and speaking intonation. Those pattern
forms which are intrinsically related to social and cultural life are named discursive genres and there is no
communication without them. Thus, we consider the theatrical text as belonging to the theatrical genre that comprises
the written and spoken language and it is a kind of language and speaking use. On the other hand, the theatrical text
fits, as a starting point, the primary discursive genre grounded on the conditions of verbal and non-verbal immediate
and spontaneous communication. While this genre is integrated and becomes complex (secondary discursive genre), it
also gets diversified ways of making references to contexts which are linguistically created in the language to favour
the speech. We would like to encourage the development of other metasearches on theatrical text as a foreign
language mediator, looking for ways to make theory reach practice and reflects itself on practice.
Keywords: Discursive genre; Theatrical text; Foreign language teaching-learning process.
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Enunciação: duas abordagens complementares
Elisabete Guedes da SILVA (Uniritter)
[email protected]
Resumo: As teorias enunciativas têm o sujeito como ponto de partida de suas reflexões. É na enunciação que ocorre a
comunicação viva, sendo esse o contexto de desenvolvimento de práticas discursivas situadas. Inserido nesse
contexto teórico, o presente artigo apresenta reflexões sobre duas formas de conceber a enunciação. Por um lado,
apresentamos concepções sobre os estudos enunciativos de Benveniste, para tratar das formas linguísticas
constitutivas do ato enunciativo. Por outro lado, apresentamos reflexões sobre estudos enunciativos bakhtinianos,
para pensar a enunciação como um fenômeno social, de ordem exterior ao indivíduo e produzida na interação verbal.
Palavras-chave: enunciação; ato enunciativo; sujeito; interação verbal.
1. Introdução
Os pressupostos teóricos que norteiam os estudos enunciativos representados por Benveniste e
Bakhtin envolvem diferentes níveis da língua. Benveniste trata da enunciação como um ato individual do
sujeito, constituída processualmente na estrutura da língua por meio de certas categorias linguísticas. Para
esse autor, o sujeito é caracterizado na enunciação como um sujeito linguístico que se constitui na relação
entre um eu que ao se enunciar evoca um tu. Essas categorias denominadas de categorias de pessoas, só
passam a existir no exercício da língua, ou seja, nos discursos que circulam na sociedade. Nesse sentido, o
autor afirma que “fora do discurso efetivo, o pronome não é senão uma forma vazia, que não pode ser
ligada nem a um objeto nem a um conceito. Ele recebe sua realidade e sua substância somente no
discurso” (BENVENISTE, 2006, p. 69). Nesse ambiente verbal é que ocorre a interação entre locutor e
interlocutor.
Na perspectiva de Bakhtin, a enunciação desenvolve-se na esfera única da interação verbal, portanto,
é entendida como fenômeno social. Na visão desse autor, o sujeito é constituído na enunciação a partir das
relações dialógicas da língua em uso. Segundo estudos bakhtinianos, a palavra não chega até nós sem estar
contagiada por signos ideológicos que tecem os fios dos enunciados.
Com base nessas duas vertentes teóricas, compreende-se que embora Benveniste trate a enunciação
por meio das formas linguísticas e Bakhtin conceba a enunciação como fenômeno puramente social, as
duas abordagens são complementares, pois têm o sujeito como ponto de partida para a reflexão sobre a
linguagem. Amparado nessas perspectivas teóricas, este artigo trata, no primeiro momento, da estrutura
formal da enunciação, conforme postula Benveniste e, em um segundo momento, apresenta ideias
bakhtinianas sobre a enunciação na esfera social da língua. Por fim, discorre sobre a língua em uso, que é
um aspecto abordado nas duas teorias tratadas neste artigo.
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2. Émile Benveniste: a estrutura formal da enunciação
A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização. (BENVENISTE)
Conforme Benveniste, a enunciação é produzida na instância do discurso, pois “antes da enunciação,
a língua não é senão possibilidade da língua. Depois da enunciação, a língua é efetuada em uma instância
de discurso” (BENVENISTE, 2006, p. 83). Nessa perspectiva, o sujeito apropria-se da língua e produz
sentidos através dos discursos, na interação verbal.
Os discursos, por meio de seus enunciados, são vias importantes para manifestação dos indivíduos.
Segundo o autor, “a linguagem é para o homem um meio, na verdade, o único meio de atingir o outro
homem, de lhe transmitir e de receber dele uma mensagem”. (BENVENISTE, 2006, p.93). A linguagem é a
possibilidade da subjetividade por “conter sempre as formas linguísticas apropriadas à sua expressão”
(Benveniste, 2005, p. 289). Essas formas, no entanto, são vazias, passam a tomar sentido no exercício do
discurso. Ao encontro do pensamento de Benveniste, Bakhtin assegura que a enunciação é um fenômeno
social que emerge do interior do indivíduo e é contornada pelo contexto. Nessa visão, a língua é
compreendida no uso por meio das relações discursivas. Benveniste afirma que “*...+ somente a língua
torna possível a sociedade. Poder-se-á dizer, nesse caso, que é a língua que contém a sociedade”
(BENVENISTE, 2006, p.63). Nesse sentido, o linguista considera não ser possível atingir o homem separado
da linguagem e nem atingi-lo reduzido a si mesmo. Encontramos no mundo um homem que fala com outro
homem (BENVENISTE, 2005). Assim, o sujeito só tem consciência de si mesmo por “contraste”, ou seja,
quando um eu é empregado na língua está pressuposto um tu e essa relação ocorre de forma dialógica
conforme declara:
Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha alocução um tu.
Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade –
que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa por eu [...]. A
linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito remetendo a ele
mesmo como eu no seu discurso. (BENVENISTE, 2005, p. 286).
Nesse contexto linguístico, a subjetividade é percebida materialmente nos enunciados. As formas
que possibilitam essa materialidade são representadas pelos pronomes e verbos disponibilizados no
interior da língua. Benveniste observa que as condições de emprego das formas não são idênticas às
condições de emprego da língua, que são mundos diferentes, e que a diferença implica “uma outra maneira
de ver as mesmas coisas, uma outra maneira de as descrever e de as interpretar” (BENVENISTE, 2006, p.
81). Partindo desses pressupostos, pode-se entender que a enunciação como fenômeno da língua pode ser
estudada sob diferentes aspectos, dos quais três são citados pelo autor.
O primeiro é a realização vocal da língua que se caracteriza pelos atos fonéticos, pela emissão dos
sons de um determinado idioma. O segundo é o mecanismo desta produção que consiste na conversão
individual da língua em discurso.
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Aqui a questão- muito difícil e pouco estudada ainda - é ver como o ‘sentido’ se forma em
‘palavras’, em que medida se pode distinguir entre as duas noções e em que termos
descrever sua interação. É a semantização da língua que está no centro deste aspecto da
enunciação, e ela conduz à teoria do signo e à análise da significância. (BENVENISTE, 2006,
p. 83).
O terceiro aspecto, sob o qual o autor concentra a sua abordagem, é a definição da enunciação “no
quadro formal de sua realização” (BENVENISTE, 2006, p. 83). O objetivo é “esboçar, no interior da língua, os
caracteres formais da enunciação a partir da manifestação individual que ela atualiza” (BENVENISTE, 2006,
p. 83). Entre esses caracteres alguns são necessários e permanentes e outros são incidentais, ligados às
peculiaridades de cada idioma.
A enunciação é o ato de produzir o enunciado. Como ato individual, desenvolve-se por meio do
“emprego das formas linguísticas” (BENVENISTE, 2006, p. 81) que obedece a “um conjunto de regras que
fixam as condições sintáticas nas quais as formas podem e devem aparecer, uma vez que elas pertencem a
um paradigma” (BENVENISTE, 2006, p. 81).
O processamento desse método de análise por meio das formas requer a definição de elementos do
jogo. Para que ocorra interlocução entre forma e uso, existem categorias gramaticais que se revestem de
formas linguísticas que não aparecem claramente senão no “exercício da linguagem e na produção do
discurso” (BENVENISTE, 2006, p.68). Benveniste elege duas categorias do discurso como fundamentais: a
de pessoa e a de tempo. A de pessoa é representada pelo pronome eu que evoca, “explicitamente ou não,
o pronome tu para se opor conjuntamente a ele”. (BENVENISTE, 2006, p.69).
Assim, é por meio da categoria gramatical de pessoa, representada pelo pronome eu, que o sujeito
se marca na linguagem. Esse sujeito ao pronunciar o eu o assume e “se marca” no discurso de forma
singular e individual. Sobre esse sujeito singular o autor declara:
Aquele que fala se refere sempre pelo mesmo indicador eu a ele-mesmo que fala. Ora,
este ato do discurso que enuncia eu aparecerá, cada vez que ele é reproduzido, como o
mesmo ato para aquele que o entende, mas para aquele que o enuncia, é cada vez um ato
novo, ainda repetido mil vezes, porque ele realiza a cada vez a inserção do locutor num
momento novo do tempo e numa textura diferente de circunstâncias e de discursos.
Assim, em toda a língua e a todo momento, aquele que fala se apropria desse eu, este eu
que, no inventário das formas da língua, não é senão um dado lexical semelhante a
qualquer outro, mas que, posto em ação no discurso, aí introduz a presença da pessoa
sem a qual nenhuma linguagem é possível. (BENVENISTE, 2006, p. 68-,69).
O colocar em funcionamento a língua por um ato individual processa-se primeiramente pela
emergência dos índices de pessoa (a relação eu/tu). Para Benveniste, essa relação só pode ser produzida na
e pela enunciação, como afirma ao dizer que “o termo eu denotando indivíduo que profere a enunciação, e
o termo tu, o indivíduo que aí está presente como alocutário” (BENVENISTE, 2006, p, 84). Dessa mesma
natureza e relacionados à mesma estrutura da enunciação, são os índices de ostensão, ou seja, a categoria
dos pronomes e advérbios como, por exemplo, este e aqui. Os pronomes pessoais e demonstrativos são
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definidos como classe dos indivíduos linguísticos. Em outras palavras, os pronomes pessoais e
demonstrativos sempre nos remetem a pessoas, momentos, lugares.
Essas categorias colocam-se em oposição aos termos nominais “que enviam sempre e somente a
conceitos” (BENVENISTE, 2006, p. 85). Nessa perspectiva, os indivíduos têm esse estatuto pelo fato de que
nascem na enunciação. Eles são produzidos por um acontecimento individual. A terceira série de termos da
mesma natureza são as formas verbais. Nas palavras de Benveniste “os ‘tempos’ verbais cuja forma axial, o
‘presente’, coincide com o momento da enunciação, fazem parte deste aparelho necessário”. (BENVENISTE,
2006, p. 85).
Na visão do autor, a categoria de tempo nasce do presente na e pela enunciação, pois as formas
verbais, por convocarem o sujeito linguístico, criam o sentido do presente. A experiência humana do
tempo se dá pela língua. O autor refere-se a três níveis de tempo: o físico (determinado por cada indivíduo,
ligado ao aspecto psíquico), o tempo crônico (socializado, o tempo do calendário) e o linguístico. O tempo
crônico nos fornece pontos de referência que
[...] dão a posição objetiva dos acontecimentos e que definem também nossa situação em
relação a estes acontecimentos. Eles nos informam no sentido próprio onde estamos na
vastidão da história, qual o nosso lugar em meio à sucessão infinita dos homens que
viveram e das coisas que aconteceram. (BENVENISTE, 2006, p. 73).
Para o autor, há de se estabelecer distinções entre o tempo crônico e o tempo linguístico, e situar um
acontecimento no tempo crônico é uma coisa, “outra coisa é inseri-lo no tempo da língua” (BENVENISTE,
2006, p. 74), referindo-se ao tempo linguístico. O tempo linguístico está ligado de forma orgânica ao
exercício da fala e é organizado e definido como função do discurso. O tempo linguístico tem como eixo o
presente, como o autor explicita na seguinte afirmação:
O presente é propriamente a origem do tempo. Ele é esta presença no mundo que
somente o ato de enunciação torna possível, porque, é necessário refletir bem sobre isso,
o homem não dispõe de nenhum outro meio de viver o ‘agora’ e de torná-lo atual senão
realizando-o pela inserção do discurso no mundo. (BENVENISTE, 2006, p. 85).
Dessa maneira, o tempo é orientado pelo presente que se caracteriza linguisticamente na
enunciação, orientando a posição do sujeito no mundo. É pela inserção no discurso dada pela relação eu/tu
que o sujeito passa a existir no aqui/agora. Por fim, reside no tempo presente a propriedade de reinvenção
a cada vez que um indivíduo fala em função de cada momento ser um momento novo, ainda não vivido. A
enunciação, além das formas que comanda, cria condições para o desenvolvimento das funções sintáticas.
Os arranjos sintáticos suscitam a interrogação, em primeiro lugar, que suscita uma resposta, a intimidação,
que ocorre por meio de ordens, e a asserção que remete a proposições afirmadas positivamente ou
negativamente, tendo como referência as palavras sim e não.
As categorias linguísticas de pessoa e tempo constituem a materialidade do ato enunciativo que se
desenvolve na língua em uso e se manifesta em enunciados. É por meio dos enunciados materializados nos
discursos que o locutor dialoga com um interlocutor. A enunciação é a possibilidade concreta de “unir o
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ouvinte ao locutor por um laço de sentimento, social ou de outro tipo” (BENVENISTE, 2006, p. 90). Nessa
perspectiva, a enunciação pode ser compreendida como portadora de dupla significação que articula
sentido e forma. Dessa maneira, pode-se estabelecer relações com a visão de Bakthin que compreende o
sujeito com um ser social, portanto, constituído na interação entre discursos. A enunciação promove a
existência de certas categorias linguísticas. Na visão de Benveniste, relaciona a forma e o sentido,
desdobrando-se como fenômeno social por meio dos enunciados nos discursos, favorecendo, assim, a
atribuição de sentido na língua. A linguagem, nessa função, pode ser entendida como um modo de ação
dos sujeitos, pois, como disse Émile Benveniste, antes mesmo de servir para comunicar, a linguagem auxilia
a viver.
3. Mikhail Bakhtin: a enunciação como fenômeno social
A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o discurso
interior. As dimensões e as formas dessa ilha são determinadas pela situação da
enunciação e por seu auditório. (BAKHTIN)
Os estudos enunciativos bakhtinianos fundamentam-se nos aspectos sociais da linguagem.
Categorias do pensamento de Bakhtin como sujeito, elocução e enunciação apresentam-se como
fundamentais para compreensão desse fenômeno. A elocução é o elo da cadeia verbal, composta da parte
verbal expressa e pela parte não verbal; é sempre ideologicamente contagiada e a enunciação é a unidade
linguística real. Para o autor, o sujeito da enunciação é um sujeito social, responsável por estar no mundo e
responsivo. Segundo Lunardelli, Bakhtin não elabora um conceito de sujeito. Nas palavras dessa autora, a
noção se constrói na relação:
A noção emerge da enunciação e na interrelação entre diálogo e alteridade – é impossível
conhecer o sujeito fora do discurso que produz. Trata-se de um sujeito primeiramente
concreto, por isso não transcendental e não abstrato. É sujeito único e sua relação com o
espaço e o tempo é singular, pois espaço e tempo são também únicos para ele.
(LUNARDELLI, 2012, p.28-49).
A enunciação como um processo que envolve diferentes elementos linguísticos caracteriza-se pelos
aspectos não verbais que a constituem. Conforme Bakhtin, a enunciação é entendida como um fenômeno
social, produzida na interação entre os sujeitos. Para o autor, “na prática viva da língua a consciência
linguística do locutor e do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas, mas
apenas com a linguagem no sentido de conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma particular”
(BAKHTIN, 2006, p.96).
A palavra como constitutiva da enunciação é significada e valorada no contexto social e ideológico
em que está inserida. Na visão bakhtiniana, não pronunciamos ou escutamos palavras, “mas verdades ou
mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc.” (BAKTHIN, 2006,
p. 96). As palavras estão sempre carregadas de um sentido ideológico. O autor afirma que é dessa maneira
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“que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias
ideológicas concernentes à vida” (BAKHTIN, 2006, p.96).
A palavra não nos é apresentada como um item do dicionário. Ela chega até nós como parte de
enunciações de diferentes locutores, enunciações da comunidade e pela própria prática linguística desses
locutores. A palavra deve ser considera no contexto e na estrutura concreta da enunciação.
A palavra isolada de seu contexto, inscrita no caderno e apreendida por associação com
seus equivalentes russos, torna-se por assim dizer, sinal torna-se uma coisa única e, no
processo de compreensão, o fator de reconhecimento adquire um peso muito forte. Em
suma, um método eficaz e correto de ensino prático exige que a forma seja assimilada não
no sistema abstrato da língua, isto é, como uma forma sempre idêntica a si mesma, mas
na estrutura concreta da enunciação, como signo flexível e variável. (BAKHTIN, 2006,
p.97).
Nesse sentido, o autor tece considerações a respeito das diferenças entre um sinal da língua e um
signo linguístico. O primeiro passa por um processo de identificação enquanto que o segundo passa por um
processo de descodificação, de compreensão. O sinal é identificado, o signo é descodificado. O sinal é
instrumento que serve para designar algum objeto ou acontecimento, faz parte dos objetos técnicos, não
faz parte do domínio da ideologia. Para o autor, “as palavras são tecidas por uma multidão de fios
ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais”.(BAKTHIN, 2006, p.40).
As palavras, como signos ideológicos, orientam por meio dos enunciados a fala de um locutor
direcionada a um interlocutor, em determinado contexto comunicativo, nessa perspectiva,
[...] a língua materna – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical – não chega
ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciações
concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação
discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam. Nós assimilamos as formas da língua
somente nas formas das enunciações e justamente com essas formas. (BAKHTIN, 2003,
p.282-283).
Assim como as palavras, as orações são unidades da língua de natureza gramatical e de pensamentos
relativamente acabados. Para Bakhtin, “a oração enquanto unidade da língua tem natureza gramatical,
fronteiras gramaticais, lei gramatical e unidade” (BAKHTIN, 2003, p. 278). Fundamentado em Bakhtin, Fiorin
também considera que “as palavras e as orações são as unidades da língua, enquanto os enunciados são
unidades reais de comunicação” (FIORIN, 2014, p. 168). Segundo Fiorin, os enunciados têm como
característica a presença de um autor, enquanto “as unidades da língua não pertencem a ninguém, os
enunciados revelam sempre uma posição de autoria” (FIORIN, 2014, p. 169).
Na visão bakhtiniana, definir com precisão a relação da oração com o enunciado ajuda a esclarecer as
fronteiras entre um e outro. Em síntese, na oração o sujeito não estabelece relação com outro sujeito, no
enunciado “há precisamente delimitada a alternância dos sujeitos do discurso, a qual termina com a
transmissão da palavra ao outro” (BAKHTIN, 2003, p.275). Os enunciados e seus tipos, ou seja, os gêneros
do discurso são determinantes no fluxo linguístico da história humana. Na perspectiva bakhtiniana “os
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enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre a história da
sociedade e a história da linguagem” (BAKHTIN, 2003, p. 268).
Nesse sentido, a enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, “é uma resposta a alguma
coisa e é construída como tal” (BAKTHIN, 2006, p.99). Para o autor, na enunciação monológica “os fios que
ligam a palavra a toda a evolução histórica foram cortados” (BAKTHIN, 2006, p. 105).
Esse processo desenvolve-se na interação social, ultrapassando a simples identificação da palavra e
descodificação do signo. Os enunciados são produzidos na esfera social em uma situação comunicativa que
envolve locutor e interlocutor. O uso da língua é concretizado por meio de enunciados, eles são elos na
cadeia de comunicação, são individuais e únicos.
Um enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada esfera. As
fronteiras desse enunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos falantes. Os
enunciados não são diferentes uns dos outros nem são auto-suficientes, conhecem-se uns
aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhe
determinam o caráter. O enunciado está repleto de ecos e lembranças de outros
enunciados, aos quais está vinculado no interior da esfera comum da comunicação verbal.
O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados
dentro de uma dada esfera. (BAKHTIN, 1997, p.316).
Nessa perspectiva teórica, o texto
é a representação da consciência que reflete algo. Quando um texto se torna objeto da
cognição, podemos falar de reflexo de um reflexo [...]. Dois fatores que determinam texto
e o tornam um enunciado: seus problemas (a intenção) e a execução desse projeto.
(BAKTHIN, 1997, p. 340).
A intenção é o querer dizer do autor expresso via elementos linguísticos. A execução é o significado
social que este dizer assumirá em um determinado contexto não verbal, nesse sentido, relaciona-se com as
condições de produção. O texto materializa-se por meio dos elementos linguísticos que o constituem, os
enunciados inserem-se em um contexto extralinguístico e estão situados na esfera da metalinguagem.
Nessa direção Machado afirma que:
[...] todo texto é a articulação de discursos-língua que se manifestam nas enunciações
concretas cujas formas são determinadas pelos gêneros discursivos. Vale dizer que texto
está para a língua assim como o enunciado está para os gêneros discursivos; esta é a
lógica que determina as relações dialógicas e, consequentemente, a teoria do enunciado,
de onde partimos para compreender as concepções fundamentais de Bakhtin sobre a
textualidade. (MACHADO, 2001, p.237).
Ao considerar o texto como um orientador das práticas discursivas, Bakhtin não está se referindo ao
texto isolado do seu contexto de realização. Ao contrário, argumenta que os textos se tornam enunciados
quando considerados para além dos aspectos verbais que os constituem. Também encontramos em
Benveniste ideias que rementem à essa visão, pois, para esse autor, a língua só passa a existir na relação
entre sujeitos e na relação dos sujeitos com o mundo por meio dos discursos. Nessa perspectiva, Rojo
afirma que “os gêneros e os textos/enunciados a eles pertencentes não podem ser compreendidos,
produzidos ou conhecidos sem referência aos elementos de sua situação de produção”. (ROJO, 2005,
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p.196). Segundo a autora, a relação entre locutor e interlocutor, parceiros da enunciação, não ocorre no
vazio social, ela é estruturada e determinada pelos papéis sociais em diferentes instituições e situações de
produção do discurso. Nas palavras da autora:
O fluxo discursivo dessas esferas cristaliza historicamente um conjunto de gêneros mais
apropriados a esses lugares e relações, viabilizando regularidades nas práticas sociais da
linguagem. Esses gêneros, por sua vez, refletirão este conjunto possível de temas e de
relações nas formas e estilos de dizer e enunciar. (ROJO, 2005, p. 196).
Os discursos são caracterizados pela alternância de sujeitos que, no processo dialógico da linguagem,
constituem-se como indivíduos inseridos em determinado contexto histórico e social. Dito de outra
maneira, os enunciados que caracterizam determinados gêneros do discurso possibilitam condições para
que os indivíduos “conversem” com objetivo de comunicar. Essa perspectiva dialoga com a posição de
Benveniste que concebe a enunciação como um evento de dupla significação, por um lado visto pela
semiótica (forma) e, por outro lado, visto pela semântica (sentido). Dessa maneira é possível ao sujeito se
marcar na língua e existir por meio dos discursos que circulam socialmente.
Nessa troca, há ambiente verbal favorável à produção do sentido. Pela relevância desse diálogo com
a vida que a enunciação pode provocar, destacamos as palavras de Marchezan, citando
Volochinov/Bakhtin:
‘A vida *...+ não afeta um enunciado de fora; ela penetra e exerce influência num
enunciado de dentro, enquanto unidade e comunhão da existência que circunda os
falantes e unidade e comunhão de julgamentos de valor essencialmente sociais, nascendo
deste todo sem o qual nenhum enunciado inteligível é possível. A enunciação está na
fronteira entre a vida e o espaço verbal do enunciado; ela, por assim dizer, bombeia
energia a uma situação da vida para o discurso verbal, ela dá a qualquer coisa
linguisticamente estável o seu momento histórico vivo, o seu caráter único. Finalmente, o
enunciado reflete a interação social do falante, do ouvinte *...+’. (MARCHEZAN, 2014, p.
115)
Nessa visão, as relações dialógicas da língua suscitam uma alternância de vozes enunciadas no
interior dos discursos. Para Marchezan, as relações dialógicas existem nos enunciados concretos, que são
elaborados no processo da interação sócio-histórica. Os enunciados estão no domínio de uso da língua,
sendo constitutivos da enunciação que se desenvolve na esfera social da linguagem. Embora Benveniste
olhe para as relações internas da língua para compreender a enunciação, e Bakhtin olhe para os aspectos
não verbais do fenômeno, os dois autores tomam como ponto de reflexão da linguagem o sujeito na
relação com o mundo que o cerca, sob o qual ele interage e produz sentido na língua viva.
4. Enunciação: duas abordagens complementares
A enunciação promove a existência de certas categorias linguísticas, desdobrando-se como
fenômeno social por meio dos enunciados nos discursos.
Este fenômeno da linguagem favorece a
atribuição de sentido na língua. Na perspectiva de Benveniste, a enunciação desenvolve-se pelo ato de
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“colocar a língua em funcionamento” e realiza-se enquanto ato comunicativo nos discursos. Bakhtin afirma
que a enunciação se processa a partir do discurso interior, contornada pelos fatos sociais que a
determinam.
Os sujeitos, conforme esses teóricos, só passam a existir no discurso, ou seja, na língua em uso.
Tanto na visão de Benveniste quanto na visão de Bakhtin os sujeitos da enunciação constituem-se na
relação entre um locutor e um interlocutor. Bakhtin assegura que o sujeito se constitui na relação dialógica
da linguagem e Benveniste sustenta que o sujeito é instituído na relação entre um eu e um tu por meio de
formas linguísticas inventariadas no interior da língua.
Nessas duas formas de conceber a enunciação, os discursos são meios para manifestações
discursivas dos indivíduos. Assim, a língua no uso social favorece a atribuição de sentido por parte do
ouvinte/falante aos fatos que os rodeiam. Benveniste, ao afirmar que antes da enunciação a língua é
apenas possibilidade de língua, refere-se exatamente a essa ideia, ou seja, a enunciação promove uma
certa relação com o mundo. Conforme defende Bakhtin, é possível ao indivíduo produzir sentido por meio
das relações linguísticas dadas em um determinado tempo marcado histórica e socialmente.
A partir dessas colocações, pode-se afirmar que tanto Benveniste quanto Bakhtin compreendem a
função da língua como mediadora entre o homem e o homem e entre o homem e o mundo. Nesse diálogo
com a vida, a enunciação nos serve como fundamento linguístico para refletirmos sobre o sujeito em
interação com o meio social.
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Abstract: The theories of enunciation have the subject as the starting point for their reflections. It is in enunciation that
the living communication occurs, this being the context of development of situated discursive practices. Inserted in this
theoretical context, this article presents reflections on two ways of conceiving enunciation. On the one hand, we
present conceptions about Benveniste’s studies on enunciation to address the constitutive linguistic forms of the
enunciative act. On the other hand, we present reflections about Bakhtinian studies on enunciation, in order to think
the enunciation as a social phenomenon, exterior to the individual and produced in the verbal interaction.
Keywords: enunciation; enunciative act; subject; verbal interaction.
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O posicionamento de setores da imprensa sobre a
Ditadura Militar: uma análise de discurso crítica
Emmanuel Henrique Souza RODRIGUES (UnB)
[email protected]
Resumo: Um golpe de Estado civil-militar instaurou no Brasil, a 1º de Abril de 1964, uma ditadura que durou até 1985.
O objetivo deste trabalho é a demonstração do apoio de setores da mídia ao Golpe e as estratégias que construíram
discursivamente para tecer esse posicionamento. Escolhemos a apresentação da coleção das edições sobre o Regime
Militar da Revista Veja como objeto de análise. A teoria que fundamenta a leitura do corpus é a Análise de Discurso
Crítica (CHOULIARAKY & FAIRCLOUGH, 1999), onde o discurso é apresentado como um momento das práticas sociais.
Também na Análise de Discurso Crítica se encontra a metodologia de análise discursiva utilizada. Usamos, ainda,
interpretações fundamentadas na Teoria da Representação dos Atores Sociais (VAN LEEUWEN, 2008) e aportes da
Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2014). Neste trabalho, a etapa de explicação foi feita pela
apresentação da conjuntura histórica; a etapa interpretativa foi feita pela Análise de Discurso Crítica e Teoria da
Representação dos Atores Sociais; a etapa descritiva foi feita com o aporte da Linguística Sistêmico-Funcional. Os
resultados da analise apontam um posicionamento mais favorável aos governos militares por parte da Revista.
Palavras-Chave: Ditadura Civil-Militar, Discurso da Mídia, Análise de Discurso Crítica, Linguística Sistêmico-Funcional,
Representação dos Atores Sociais.
1. Introdução
Na segunda metade do século XX, muitos países na América Latina foram regidos por ditaduras
militares. Isso pode ser explicado se formos observar a história desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Depois da guerra, teve início uma grande tensão entre o bloco socialista e o capitalista, o socialista liderado
pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o capitalista pelos Estados Unidos da América
(EUA). Isso deu início ao período chamado de Guerra Fria, uma vez que haviam conflitos – por isso chamada
de Guerra – mas não teve confrontos armados – por isso chamada de Fria. Essas tensões fizeram com que
várias regiões do planeta fossem disputadas, entre elas a América Latina, que tiveram o avanço de forças
direta ou indiretamente ligadas à URSS, sendo esses avanços combatidos pelos EUA. Este trabalho versará
sobre a Ditadura Militar brasileira, que esteve inserida nesse processo de Guerra Fria e foi inaugurada com
o Golpe de abril de 1964, de maneira breve, para contextualizar a apresentação da coleção de edições da
Revista Veja sobre a Ditadura Militar.
A metodologia para análise desse momento discursivo se dá na proposição da Teoria da
Representação dos Atores Sociais (TRAS) como ferramenta metodológica para a Análise de Discurso Crítica
(ADC). A Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) é também base do arcabouço teórico que usamos e é a
ferramenta que, junto à ADC, usamos para fazer descrever o discurso. A interpretação do discurso, sendo a
parte da análise na qual se observa no discurso os processos de produção, distribuição e consumo dos
discursos, olhando para as relações de poder e analisando a dialética nas relações da linguística, fica a cargo
da metodologia própria da ADC. Faremos uma discussão breve sobre esse arcabouço teórico e, a partir do
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que apresentaremos, vamos fazer nossa discussão. Uma outra parte, a explicação, faremos indo para o
elemento sociológico, com os aportes da história, nos quais serão apresentados os momentos históricos
dos quais os discursos presentes nos requerimentos tratam. Iniciaremos a discussão com esse último
ponto.
2. Os anos de chumbo: contextualizando o momento político
A contextualização histórica será feita, nessa seção, em dois momentos: o da política interna e o da
política externa. É dessa maneira que nós podemos entender melhor os motivos do Golpe Militar de 1964 e
a ditadura subsequente que aconteceu em nosso país.
Sob a política externa, nesse contexto de tensões e de avanços político-ideológicos das duas
correntes, socialista e capitalista, já referidas na introdução do trabalho, podemos destacar Cuba que, na
Revolução com desfecho a 1º de janeiro de 1959, derrubou Fulgêncio Batista e dominou a Ilha, instaurando
um regime filiado ao bloco socialista. Também houve, por exemplo, a vitória de Salvador Allende no Chile
que, embora não tivesse filiação política direta e apoio econômico da URSS tal qual Cuba, é apontado como
o primeiro presidente marxista eleito no mundo, estando ideologicamente, de alguma forma, ligado ao
bloco soviético. O Chile estava sob uma forte disputa interna entre grupos políticos divergentes, o que
culminou em um golpe militar a 11 de Setembro de 1973 (FICO et al., 2008). Essas situações, como aponta
Fico (2008), foram apoiadas pelos EUA, que não permitiam que governos à esquerda, alinhados, ao menos
ideologicamente, com o bloco socialista, acontecessem na América Latina. “A Guerra Fria forneceu o
contexto global para um anticomunismo patológico e os Estados Unidos, por sua vez, contribuíram para a
formação ideológica dos militares latino-americanos” (SOUZA, 2011, p. 161). Ocorreram golpes em outros
países além do Chile, como na Argentina, Uruguai, Bolívia e outros. No Brasil isso aconteceu em 1964,
quando o presidente João Goulart é deposto em 1º de Abril1, sob a alegação que queria implantar um
regime comunista no país, e assume a presidência o General Humberto de Alencar Castelo Branco,
anteriormente Chefe do Estado-Maior do Exército.
No ambiente interno, o Brasil viveu profundos conflitos políticos desde a primeira metade do século
XX. Isso pode ser claramente simbolizado pela Era Vargas e o seu fim, em 1945, com um golpe militar, que
depôs o presidente Vargas e restaurou a democracia, que desde 1930 estava de alguma forma cassada. O
Golpe Militar de 1964 pode ser explicado a partir dos movimentos que estavam presentes desde o fim da
Era Vargas, passando pelas tensões que ocasionaram o seu suicídio, em 1954, os conflitos do governo de
Juscelino Kubistchek para, então, chegar no ambiente do golpe, com os governos de Jânio Quadros e João
Goulart. O legado de Vargas na política nacional foi posto em cheque em 1964:
1
Apesar da data de 31 de março de 1964 ser a data colocada pelos militares como sendo a do dia do golpe, devido à sua efetivação
no dia 1º de abril, essa é a data que alguns estudiosos, com Rollemberg (2006), colocam como sendo o dia no qual aconteceu a
instauração do Regime Militar, dessa forma sendo o dia do Golpe Militar de 1964.
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Não é de espantar que a deposição em março de 1964 de seu principal herdeiro, o
presidente João Goulart, e o afastamento da cena política de um grande número de
partidários do PTB e do PSD tenham proporcionado uma conjuntura negativa para o
cultivo de sua memória. Os militares que tomaram o poder em 1964 apresentavam-se
como aqueles que iriam pôr fim à Era Vargas (FERREIRA, 2006, p. 3).
A combinação dos elementos externos e internos permitiu a ditadura que se instaurou no país após a
deposição de João Goulart e durou de 1964 a 1985. Tivemos como presidentes Castelo Branco, Costa e
Silva, Médici, Geisel, Figueiredo. Esse período, devido ao fechamento do regime, ficou conhecido como os
Anos de Chumbo.
Os militares tinham planos de tomar o poder desde 1954, no governo de Getúlio Vargas quando
retornou à presidência pelo voto popular (FERREIRA, 2006). Diante do ambiente de crise, Vargas “deixa a
vida para entrar na história”. Nos anos 60, o Brasil foi regido pelos presidentes Kubitschek e, depois, Jânio
Quadros, que renunciou, deixando uma crise no governo e, na sequência, a cadeira presidencial a João
Goulart. O novo presidente propôs reformas ao país, as chamadas Reformas de Base, como a agrária,
política, urbana etc. Parte da população, regida pelos direitistas, não aprovavam as ações progressistas e
foram parte da organização que, com o apoio dos EUA e setores conservadores da Igreja Católica, deu o
golpe de estado em 1964 (TOLEDO, 2004)
O Regime Militar foi marcado por dezessete Atos Institucionais (AI), sendo os primeiros cinco os que
vão desenhar a ditadura no país. O AI 5, no governo de Costa e Silva, promoveu o maior fechamento dos
Anos de Chumbo (BRASIL, 2014). Nesse período, a repressão estava extrema, todo aquele que discordasse
das ações do regime militar poderia ser enquadrado na lei de segurança nacional e sofrer imputações
devido a isso. A repressão à imprensa foi poderosa, os grupos que lutavam contra a ditadura eram
arrasados, como foi a Guerrilha do Araguaia ou episódios como a chacina da Lapa. À medida que as
repressões aumentavam, também aumentava a resistência. Há um grande saldo de mortos e desaparecidos
sob condições não bem explicadas e que agora se está tentando elucidar com os trabalhos das Comissões
da Verdade.
A documentação desse período da história é importante para que se saiba o que aconteceu de fato
nos anos de chumbo. Há diversas fontes das quais podemos retirar essas informações. É interessante frisar,
porém, que o discurso é uma instância que nos possibilita a leitura da ideologia do que produz o
determinado discurso. O discurso porta a representação da realidade na qual o sujeito está inserido e,
dessa forma, o sujeito expressa aquilo que ele pensa através do discurso, reproduzindo suas visões de
mundo. Os discursos podem ser portadores de ideologia, entendo que ideologias são
significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades
sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas
discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformações das
relações de dominação. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 117).
As ferramentas para a verificação dessas ideologias na análise dos discursos estão descritas na
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próxima seção. Com a leitura do discurso interpretada através delas, conseguimos, sistematicamente
demonstrar como essas ideologias se dão na constituição do discurso.
3. Ferramenta para interpretação dos dados
Essa seção será para a explicação das lentes pelas quais nós vamos enxergar o nosso corpus e, então,
interpretar nossos dados. Vamos começar da LSF, seguir com a ADC e, então, apresentar a TRAS. As três,
juntas, no arcabouço montado, nos possibilitará enxergar o posicionamento da revista no corpus que
decidimos analisar.
3.1. Linguística Sistêmico-Funcional (LSF)
A teoria linguística na qual está localizada esse nosso trabalho e os demais que trabalham com a ADC
de fundo faircloughiano (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999; FAIRCLOUGH, 2001; FAIRCLOUGH, 2003) é a
LSF. Na teoria gramatical da LSF temos a Gramática Sistêmico-Funcional (GSF), que é o instrumento que
vamos usar para descrever a linguagem. Nela, a gramática é chamada de sistêmica e funcional. Sistêmica,
porquê vê a língua como rede de sistemas de linguagem que se interligam e dos quais nos servimos para
construir significados e fazer coisas no mundo em que vivemos. É também funcional, já que o
funcionamento da língua é que lhe molda as regras e não o contrário (FUZER & CABRAL, 2010). Vamos
apresentar ela aqui já que, na análise, vamos usar as notações específicas da GSF.
O principal objetivo de Halliday ao escrever a sua obra é não para orientá-la a uma determinada
aplicação, mas para fazer uma gramática geral para fins de análise e interpretação de textos, como se ela
fosse uma espécie de “língua franca” que pudesse ser adaptada a qualquer sistema linguístico (MARTIN et
al. 2010).
A GSF lança luz no que Saussure chamara de Eixo Paradigmático, em oposição ao que seria o Eixo
Sintagmático. Ela “busca identificar as estruturas de linguagem específica que contribuem para o
significado de um texto. As análises que se realizam nessa perspectiva teórica se propõem a mostrar ‘como
e por que um texto significa o que significa’” (FUZER & CABRAL, 2010, p. 9). Por isso é que há vários outros
termos além dos inerentes à gramática tradicional, já que a GSF é essencialmente semântica. Também é
empírica, não prescritiva ou para fins de etiqueta linguística.
Uma gramática funcional é uma gramática que respeita o direito dos falantes de usar sua
própria consciência sobre o que eles devem escolher para falar; ao mesmo tempo, ela
alerta explicitamente as escolhas que eles têm, então eles podem fazer uma decisão
2
informada sobre a opção que eles tiveram (MARTIN et al., 2010, p. 3).
A GSF é uma teoria que pode ser usada para diversos fins, como o ensino de crianças e/ou adultos, o
estudo sobre doenças e práticas ligadas à saúde, a investigações sociais etc. e tem originado trabalhos em
2
As traduções de obras em língua estrangeira são traduções livres feitas por nós.
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diversas outras línguas, além do inglês e chinês, as primeiras a serem estudadas. “Gramáticos funcionais
raramente param na simples descrição da gramática de uma língua particular. Eles normalmente vão além
e fazem algo com o que eles conseguiram descobrir” (MARTIN et al., 2010, p. 1). É por isso que a LSF/GSF é
um aporte linguístico extremamente produtivo e pertinente para se fazer uma ADC.
A LSF divide a linguagem em três metafunções, que se realizam simultaneamente no evento
linguístico: A metafunção ideacional que vê a oração como representação do mundo; A metafunção
interpessoal que vê a oração como troca; A metafunção textual que vê a oração como mensagem
(HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2014). Da metafunção interpessoal, nós vamos focar no sistema de Modo,
uma categoria da LSF, que é “um dos elementos da estrutura interpessoal da oração” (FUZER &
CABRAL, 2010, p. 113). Ele combina a forma com a qual o verbo está se apresentando temporal e
modalmente, chamado de Finito, e o Sujeito, que é a parte que negocia o significado interpessoal, ou
seja, que é responsável pela construção dele. Quanto à metafunção ideacional, vamos nos focar nos
Processos, que é a forma com que a GSF categoriza os grupos verbais. O Processo “é o elemento
central da configuração, indicando a experiência se desdobrando através do tempo” (FUZER & CABRAL,
2010, p. 27).
3.2. Análise de Discurso Crítica (ADC)
A vida social na modernidade tardia é cada vez mais marcada, em suas práticas sociais, por
momentos discursivos. Estudar os momentos discursivos das práticas sociais é estudar como essas práticas
sociais “funcionam”. O estudo das relações sociais a partir da análise semiótica é uma frutuosa forma de
ingressar dentro dessas estruturas e, dessa maneira, compreender a tessitura da sociedade como um todo.
Nós entendemos o discurso como um momento das práticas sociais, numa relação na qual “os momentos
de uma prática são articulados dentro de uma dialética – cada um internaliza os outros sem ser reduzível a
eles” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p. 37). As práticas sociais que são motivadas pelas ideologias,
portanto, são passíveis de serem lidas através da análise discursiva e o caráter mediado pelo discurso da
vida na atualidade corrobora com o que dissemos antes, que a análise discursiva é um bom mecanismo de
enxergar a sociedade e as relações que estão nela, incluindo aí as relações de poder.
Abaixo, a proposta do arcabouço metodológico de Chouliaraki & Fairclough (1999, p. 60):
Quadro 1. Arcabouço teórico apresentado por Chouliaraki & Fairclough (1999) – Adaptação nossa
1 – Um problema;
2 – Obstáculos para serem superados;
a) Análise da conjuntura;
b) Análise da prática particular;
i) Práticas relevantes
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ii) Relação do discurso com outros momentos da prática
c) Análise de discurso;
i) Análise estrutural
ii) Análise interacional
3 – Função do problema na prática;
4 – Possíveis maneiras de superar os obstáculos;
5 – Reflexão sobre a análise.
Ele se baseia em cinco pontos distintos. O primeiro é a percepção de um problema, que pode ser
uma assimetria de relações de poder ou questões correlatas, numa perspectiva sempre crítica. O segundo é
a identificação de obstáculos para que esse problema seja superado, que envolve a análise da conjuntura,
da prática particular e a análise de discurso. O terceiro é a função do problema na prática, onde são feitas
as descrições dos conflitos de poder, dentro das práticas discursivas e sociais. O quarto ponto são os
possíveis modos de ultrapassar os limites e superar os obstáculos, explorando possibilidades de mudança
que a análise pode trazer. Por fim, o quinto ponto fala sobre a reflexão sobre a análise, onde ela, também
fazendo, de certa forma, parte da prática social que analisa, interfere nessa mesma prática. As análises a
partir dele não exigem que necessariamente se utilizem todos os pontos apresentados, mas, dependendo
do que se deseja analisar, podem ser elencadas as partes mais valiosas para a análise que se quer fazer.
Vamos trabalhar, do arcabouço teórico, com a definição do problema, a análise da conjuntura e a análise
de discurso.
Um problema (atividade, reflexividade):
“A ADC acontece por se perceber um problema de origem discursiva em alguma parte/momento da
prática social *...+ ou na construção reflexiva da prática social” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p. 60).
O primeiro pode envolver as funções do discurso, ideacional, interpessoal, textual, o segundo são
problemas ideacionais, problemas de representação e de não entendimento. Problematizamos quando
apresentamos a atividade da mídia sobre a Ditadura e, particularmente, a partir da análise do texto da
apresentação da coleção, que são instâncias discursivas, observando como elas representam/refletem um
problema, que é o apoio da mídia ao Regime.
Análise de conjuntura:
O primeiro obstáculo é a análise de conjuntura, “uma especificação da configuração das práticas nas
quais o discurso em foco está localizado” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p. 61). É a situação, as
práticas sociais, nas quais são desenvolvidos os atos. A segunda seção de nosso trabalho, quando
apresentamos a Ditadura Militar e os Anos de Chumbo, é a apresentação da conjuntura na qual as práticas
discursivas se localizam.
Análise do discurso:
A análise de discurso é simultaneamente orientada à estrutura e à interação – para os recursos
sociais que executa e toma a interação e para a visão que os recursos são interativamente trabalhados, isto
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é, para o interdiscurso, e suas realizações na linguagem e outras semioses. A realização da análise do
discurso envolve uma dupla orientação, para os sistemas semióticos, e para como seleções do potencial
semiótico estão trabalhando nos processos textuais. Essa parte do arcabouço se faz com a GDV que
propomos.
Além do que foi apresentado, para o processo de análise também vamos utilizar uma outra teoria
para leitura do objeto.
3.3. Teoria da Representação dos Atores Sociais (TRAS)
Um amplo quadro teórico-metodológico de descrição, interpretação e explicação dos
meios pelos quais as categorias linguístico-discursivas constroem a representação das
identidades contemporâneas dos atores sociais consiste no modelo crítico de análise do
discurso desenvolvido pelo linguística Theo Van Leeuwen (2008), a chamada Teoria da
Representação dos Atores Sociais (MELO, 2013, p. 56).
Essa teoria é ampla e complexa. É apresentada em Van Leeuwen (2008). Abaixo, um quadro de
resumo das categorias em análise:
Quadro 2. Teoria da Representação dos Atores Sociais (VAN LEEUWEN, 2008, p. 52)
Desse arcabouço, vamos utilizar o processo de inclusão e exclusão dos sujeitos da semiose em
análise, além de, quando os sujeitos são incluídos, se estão ativos ou passivos nas atividades que
desenvolvem, uma vez que “representações incluem ou excluem atores sociais para adequá-los a seus
interesses e propósitos em relação aos leitores aos quais estão direcionados” (VAN LEEUWEN, 2008, p. 28).
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Sobre a exclusão, temos que a “exclusão tem um aspecto importante na análise de discurso crítica” (VAN
LEEUWEN, 2008, p. 28). Quando são incluídos, podem estar, entre outras categorias, em processos de
ativação ou passivação: “Ativação ocorre quando os atores sociais são representados como ativos, forças
dinâmicas numa atividade, passivação quando eles são representados como ‘passando’ pela atividade, ou
como estando ‘no receber do fim disso’” (VAN LEEUWEN, 2008, p. 33). Essas categorias apresentadas serão
interessantes para a análise dos dados na seção seguinte, elas nos ajudarão a fazer nosso processo de
análise de discurso crítica, em suas etapas de descrição e interpretação.
4. Análise de dados
Os textos em análise estão disponíveis no site de coleções da Revista Veja (ARQUIVO VEJA, 2014). A
metodologia para análise dos dados se dará com as seguintes marcações: o destacado de verde se refere
aos militares; o destacado de amarelo se refere à revista veja; o destacado de celeste se refere à resistência
ao regime; os termos em posição de sujeito estão em negrito – essa marcação nos ajuda a ver a marcação
dos atores aos quais nos referimos e que originam a interpretação que se segue; os processos estão em
itálico e nos ajudam a perceber as ações aos quais os sujeitos se ligam. Essa metodologia foi usada por
julgarmos ser de bom proveito para demonstrar como a Revista representa os militares, a resistência e,
então, como se insere nesse processo, destacando seu papel dentro do momento histórico que relata nesse
texto. A partir do que for descrito com essa marcação, vamos fazer uma interpretação com as categorias da
TRAS, dentro do contexto de situação do texto, sobre o que ele problematiza, sendo essas categorias da
ADC (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999) que estamos utilizando.
4.1. Os dados
Entre 1964 e 1985, o Brasilfoi governado pelos militares. Durante esse período, as instituições
democráticassofreram restrições, as liberdades individuaisforam limitadas e a imprensafoi censurada. Em
contrapartida, a economia do paísteve um crescimento inédito. Lançada em 1968, VEJAviveu e registrou
durante 17 anos o cotidiano brasileiro sob o comando dos generais. Poucos meses após a estréia da revista,
o Ato Institucional nº 5 fechou o Congresso, cassou o mandato de mais de meia centena de políticos e
suspendeu as garantias constitucionais. VEJAfoi uma das primeiras vítimas do AI-5: a edição sobre o ato
que endurecia o regimefoi recolhida das bancas em dezembro de 1968. Por uma década, a siglamarcaria a
fase mais feroz dos 21 anos de ditadura.
Se de um lado o estadomassacrou liberdades básicas dos cidadãos, de outro, um punhado de jovens
radicais e organizações de esquerdaentraram no delírio de derrubar o regime na base da luta armada. As
diferentes formas de resistência ao governo fardadorenderam uma série de capas históricas, como a do
congresso clandestino da UNE em Ibiúna, em 1968, ainda antes do AI-5. Ali, só podiam entrar os
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estudantes que tivessem em mãos um exemplar de VEJA daquela semana - a revistaera a "senha". De
leitores, os estudantespassariam a protagonistas da revista. Ao serem descobertos e presos, estamparam a
capa da semana seguinte.
Também marcaram época o seqüestro do embaixador americano por um grupo guerrilheiro em
1969 e a perseguição a Carlos Marighella, o mais destacado líder da luta armada. A morte do ex-capitão de
infantaria Carlos Lamarca, que trocou a farda pela subversão, também seria destaque em 1971.
Ainda no fim de 1969, com duas reportagens de capa sobre o tema, VEJAse tornou o primeiro órgão
de imprensa do país a investigar de maneira abrangente e detalhada a prática de torturas nos porões do
regime militar. Duas décadas depois, já findaa ditadura, a revistapublicaria outra capa sobre o assunto,
desta vez com a inédita confissão de um torturador.
Na primeira metade dos anos 1970, o milagre econômico do governo militarexibia resultados,
traduzidos em grandes obras de infra-estrutura, como estradas, hidrelétricas e redes de comunicação.
Essaera a face benigna do regime. A malignacomeçaria a de desintegrar em 1978, com o fim mais do que
tardio do AI-5. No mesmo ano, uma sentença que declarou a responsabilidade da União no caso do
jornalista Vladimir Herzog - preso, torturado e morto nas dependências do DOI-CODI paulista -, colocou o
Brasil no degrau das nações civilizadas, onde a administração públicaresponde pelos atos de seus agentes.
A partir de 1979, a anistia foi o tema que dominou os debates. VEJAacompanhou a decisão do
presidente Figueiredo desde o nascedouro até a conclusão do projeto de lei. Naquele ano, o
generalconcedeuà revista a primeira entrevista exclusiva formal a um órgão de imprensa desde o golpe
militar de 1964. O presidenteque assinou a anistia e permitiu a transição para o poder civil foi o militar que
mais vezes apareceu na capa de VEJA.
Quando a campanha pelas eleições diretas evidenciava o ocaso do regime, a revista conseguiu
também entrevistas históricas com dois personagens fundamentais da história do Brasil: Golbery do Couto
e Silva e Emílio Médici, que quebraram o silêncio para uma edição de maio de 1984.
4.2. A interpretação
A partir das marcações que fizemos, podemos perceber que sobre os militares temos doze
referências à Ditadura Militar. Temos as seguintes construções sobre os militares e/ou governo militar:
Militares, generais, ditadura, governo fardado, governo militar, Presidente Figueiredo, general, presidente
e quatro vezes como regime. A maneira como esses atores agem, ou recebem as ações, é
predominantemente de ordem positiva ou sob uma avaliação não negativa. Quando falado sobre os
desmandes do governo militar, sobre as torturas que aconteceram durante o regime, é ressaltado que é
responsabilidade da união, não dos militares diretamente. Outro ponto é que o momento em que os
militares são acusados pelas torturas, com a recuperação da informação de que a Veja fez amplas buscas
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sobre, inclusive com duas capas sobre o tema, uma das capas dizia “O presidente não admite torturas”
(ARQUIVOS VEJA, 2014), ou seja, sempre deixando os militares isentos, ao menos minimamente, dos atos
da época. A única grande problemática que os militares trouxeram, segundo o texto, foi o AI-5, que
inclusive a Revista se coloca como vítima dele e o indica sendo uma ingerência nas liberdades da
população. No penúltimo parágrafo se faz presente a ação do Presidente Figueiredo sobre a Lei da Anistia.
Nela não há a agentividade nenhuma das instâncias contrárias ao regime. Com a agentividade apenas do
presidente e do regime, o que parece é que não houve nenhuma participação da população nesse
momento da ditadura, como se o processo de redemocratização do país tivesse sido apenas uma concessão
do próprio Regime Militar, a partir de uma ação do Presidente Figueiredo. Ainda, com a maneira como os
contrários ao regime são representados, aparenta-se que eles apenas atrapalharam o curso que o governo
queria dar ao Brasil, que sempre teria sido o do rumo da democratização. Isso pode ser visto pela forma
com que os atores sociais são representados, como já fora dito acima: sem agentividade quando referida à
prática democrática e com agentividade quando em momentos de conflito infrutífero para a democracia. O
mal que é apontado que foi de realização do Regime Militar foi unicamente o AI-5. Sequer a tortura é
colocada como grande problema do Regime Militar, mas é apagada, colocada como culpa da união e não da
administração do Estado. A revista aponta que o governo não teria sido favorável à tortura, como a capa da
edição referida demonstra e como o texto apresentado também aponta.
Sobre a maneira como os contrários ao regime são representados, temos oito vezes a aparição
desses atores, com as seguintes construções: Um punhado de jovens radicais, diferentes formas de
resistência, congresso clandestino da UNE, os estudantes, um grupo guerrilheiro em 1969 e a perseguição a
Carlos Marighella, a morte do ex-capitão de infantaria Carlos Lamarca e Jornalista Vladimir Herzog - Preso,
torturado e morto. Os termos usados, como punhado, radicais, clandestino, dão conta de demonstrar a
maneira negativa sob a qual os adversários são representados. Ao dizer ainda que o fato deles estarem em
delírio ao tentar derrubar o regime entra na mesma interpretação. Além de serem representados em
quantidade menor que os atores da ditatura, são feitos de maneira depreciativa, derrotada, por assim
dizer. A ação deles não teria representado nenhum momento de conquista democrática. A TRAS nos ajuda
a ler que nas ações da reconquista da democracia, no texto representado pela Lei da Anistia, esses atores
são invisibilizados e apenas os próprios governantes, no caso o Presidente Figueiredo, é que tem
prerrogativa de dar à população, ao seu bel prazer, a anistia. Ainda, quando esses sujeitos não são
invisibilizados, eles são colocados estrategicamente com agentividade nas ações que seriam contrárias à
ordem, subversivas, expressas também de maneira negativa em adjetivação.
A participação da Revista Veja é de uma colocação como vítima da Ditadura, quando fala sobre o AI-5
e o que sofreu diante disso, assim como se coloca como revista de ampla circulação desde o começo de sua
história, quando fala do congresso de Ibiúna. Em nenhum momento há expressões como “apoiamos o
regime” ou coisas do tipo, muito embora, como nas análises nos parágrafos anteriores, isso seja perceptível
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da revista, dada a maneira que ela retrata os atores do tempo do Regime, sejam os atores que
perpetuavam o sistema ou os que lutavam contra a Ditadura. O ato de se colocar como vítima é uma ação
de preservação da face3, isto é, de preservar a imagem que tem, dado que, opinião corrente, ser contrário à
ditadura é algo democrático, de bom tom, então ela se coloca como vítima para que, depois tenha
possibilidade de questionar os que lutaram contra a ditadura. Em outras palavras, se colocar como alguém
que lutou de uma maneira e nem por isso sofreu torturas e outras coisas da chamada face maligna da
ditadura.
5. Conclusão
A leitura desses dados sob o arcabouço teórico apresentado demonstra que setores da mídia
apoiaram e deram estrutura para que o Regime pudesse se manter. Aqui escolhemos usar a Veja, mas
poderíamos ter escolhido outros veículos que também apresentam tais indícios. Apenas com esses apoios é
que foi possível, para o governo militar, poder ficar os 21 anos no poder no Brasil.
É interessante e relevante discutir essas questões, uma vez que o processo de redemocratização não
é algo já concluído em nosso país, mas uma contínua construção. Esse construir democrático enfrenta,
inclusive, diversos entraves tão graves quanto no Regime Militar ou, ainda, maiores, uma vez que não são
tão explícitos e os instrumentos de dominação. Essas estratégias de poder, quanto mais são menos
aparentes, mais são frutuosas em nos seus fins de manutenção do poder (FAIRCLOUGH, 2001). Há, mesmo
depois de quase três décadas do fim do Regime Militar, diversas faces da Ditadura que persistem em nosso
país. Apresentar como o Regime foi construído pela mídia é ver como alguns pontos são explicitados e as
estratégias usadas para esconder determinados pontos incômodos para as ideologias que querem ser
explicitadas. Trabalhar com o discurso da mídia, em suas estratégias de apresentação dos atores, também
faz parte da relevância de nosso trabalho.
Diante do exposto, corrobora-se a tese de que o Golpe para a instauração da Ditadura Militar, mais
que Militar apenas, foi Civil-Militar, já que contou com ampla participação dos civis na consolidação do
regime que durou 21 anos. A participação da imprensa na manutenção da ditadura foi essencial para
exaltar quem o governo militar queria e omitir os fatos negativos desse mesmo governo. Outrossim,
resgatar tais informações e falar sobre esses dados faz parte do processo democrático e das discussões
sobre democracia que estão presentes por ocasião da memória dos 50 anos do Golpe Civil-Militar de 1964.
Referências bibliográficas
ARQUIVO VEJA: Coleções | Regime militar: ditadura, AI-5, Médici, Geisel, Figueiredo, Lamarca, Marighella,
3
Face aqui compreendida dentro do exposto em Maingueneau (2004), isto é, como fenômeno linguístico relativo à polidez e a
formação uma imagem de si. “Todo ato de enunciação pode construir uma ameaça para uma ou várias dessas faces”
(MAINGUENEAU, 2004, p. 38). Assim, preservar a face é preservar imagem construída de si mesmo, com essa preservação
construída na negociação discursiva, dentro da relação social em que se insere.
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Abstract: A coup d’état civilian and military started in Brazil, by April 1st of 1964, a dictatorship that lasted until 1985.
The objective of this research is to demonstrate the support from media sectors to the coup and the strategies they
constructed discursively to make this position. We chose the presentation of the collection of editions about the
Military Regime of Veja magazine as analysis object. The theory we use as framework is Critical Discourse Analysis
(CHOULIARAKY & FAIRCLOUGH, 1999), where the discourse is presented as a moment of the social practices. In
addition, in Cristical Discourse Analysis, the methodology we used can be found the discursive methodology we take.
We used, as well, interpretations founded in the Theory of Representation of the Social Actors (VAN LEEUWEN, 2008)
and some contributions of Systemic Functional Linguistics (HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2014). In this research, the
explanation stage was made by the presentation of the historic conjunction; the Critical Discourse and the Theory of
the Representation of the Social Actors made the interpretative one; Systemic Functional Linguistics made the
descriptive stage. We can see, in the discursive analysis, a position more favorable to military governments within the
magazine.
Keywords: Dictatorship Civilian-Military, Media Discourse, Critical Discourse Analysis, Systemic Functional Linguistics,
Representation of the Social Actors.
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A representação de negros anônimos em Raça Brasil:
a construção da autoestima minoritária em uma
revista de nicho
Filipe Mantovani FERREIRA (USP)
[email protected]
Resumo: A vinculação de indivíduos, grupos e instituições ao discurso (deles ou de outrem) tem influência na
concepção que se tem deles e que eles têm de si. Os discursos têm papel preponderante, portanto, nos
processos de construção e reconstrução de identidades. Analisamos, nesse trabalho, quatro narrativas
biográficas curtas publicadas pela revista Raça Brasil (voltada a negros) protagonizadas por negros, com o
objetivo de identificar quais são os contornos que a revista atribui, por meio de seu discurso, à identidade
negra, além de descrever procedimentos linguístico-discursivos de que ela se vale para isso. Para tanto,
adotamos, como base teórica, os trabalhos de Charaudeau (2009), van Dijk (1984, 2006), Tajfel (1981), de
Bruner (2002), entre outros.
As análises permitiram observar que a revista Raça Brasil procura fomentar uma autoestima negra por meio de
recursos linguístico-discursivos de naturezas bastante variadas, os quais permitem a vinculação dos
protagonistas negros a qualidades como o talento, a capacidade intelectual, a disposição para o trabalho e a
beleza. Conclui-se, ademais, que a revista estabelece uma relação polêmica com os discursos discriminatórios
responsáveis pela criação e/ou perpetuação de identidades negativamente avaliadas de negros em nossa
sociedade.
Palavras-chaves: Revistas; minorias; discurso; narrativas; identidade.
1. Introdução
Minorias são definidas como segmentos subordinados de sociedades complexas que possuem
uma ou mais características desprestigiadas por segmentos dominantes (Wagley e Harris, 1958).
Trata-se de grupos negativamente avaliados, que sofrem a rejeição de outros grupos. São
características negativamente avaliadas em nossa sociedade, por exemplo, a cor de pele negra, a
prática de religiões de matriz africana, comportamentos não heterossexuais, as deficiências física e
mental, entre diversas outras.
De acordo com Shotter e Gergen (1989), a identidade de um indivíduo é construída em função
do modo como ele se vincula a um discurso108, seja ele o seu próprio ou o dos outros. Afirma-se,
desta forma, a importância dos discursos que circulam em uma determinada sociedade ou grupo
social para que se conceba a identidade, tanto sua própria quanto a de outras pessoas.
Nesse sentido, é inegável a importância dos discursos sobre uma determinada minoria para
sua constituição identitária, uma vez que eles têm papel preponderante para a perpetuação da
discriminação ou para o questionamento e eventual eliminação dela.
Tendo isso em vista, propomos, neste trabalho, investigar o modo como as identidades de
indivíduos negros são criadas em pequenas narrativas biográficas publicadas na revista Raça Brasil,
108
A palavra discurso refere-se, neste trabalho, à linguagem situada social, política e historicamente.
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título voltado ao público negro. Nossa hipótese é que a revista Raça Brasil faz uso de uma variedade
de procedimentos linguístico-discursivos com o objetivo de construir uma identidade negra positiva,
que seja capaz de fomentar, no seio de seu público leitor, o orgulho da pertença à minoria negra,
além de questionar a associação de traços negativamente avaliados (tais como a falta de capacidade
intelectual, de beleza ou de disposição para o trabalho) à minoria negra.
Foram selecionadas para análise quatro narrativas, as quais foram digitalizadas, anexadas a
este trabalho e numeradas, conforme a tabela a seguir.
Tabela 1. Listagem das narrativas a serem analisadas
Número da narrativa
Título da narrativa
Edição da revista
Página de publicação na revista
1
Guerreira
127
25
2
Multifacetado
130
42
3
Além da vocação
131
9
4
Futuro nos palcos
136
49
Nas seções seguintes, procedemos a uma breve discussão teórica acerca da questão das
minorias, levando em conta a relação delas com o discurso, a cognição e a sociedade; em seguida,
propomos uma breve discussão a respeito da natureza e das funções das narrativas. Posteriormente,
passamos à descrição do contexto de formação e circulação da revista Raça Brasil, à análise do
corpus e ao registro das conclusões dela decorrentes.
2. Minorias, cognição, sociedade e discurso
Segundo Tajfel (1981), a habilidade cognitiva inata de categorização é utilizada de forma
bastante produtiva e recorrente no âmbito da interação humana. Tal habilidade consiste,
basicamente, na identificação de características que possam ser utilizadas como critérios para a
alocação de elementos em grupos. Segundo esse autor, a vida humana é significativamente marcada
por esforços de segmentação da realidade sensível, os quais são possibilitados pela categorização e
outras habilidades cognitivas. Especificamente no que diz respeito à segmentação da sociedade em
grupos menores, aos quais são atribuídas características específicas, a habilidade de categorização
tem papel preponderante, sendo condição para o processo de consolidação de grupos hegemônicos
e dominados, tanto valorizados quanto desvalorizados.
É significativo que se observe que a categorização em si mesma não implica a atribuição de
valor positivo ou negativo a algo; a atribuição de valor a indivíduos, grupos, eventos ou objetos é, na
verdade, culturalmente regulada por meio da construção de uma atitude, conceito-chave para
compreender a base psicocognitiva da discriminação.
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De acordo com van Dijk (1984), a atitude pode ser entendida como um esquema de grupo, ou
seja, um conjunto de crenças e opiniões que funciona como base cognitiva para o processamento das
informações sobre os membros desses grupos. Esse estudioso esclarece que as atitudes não
correspondem a quaisquer avaliações que as pessoas façam sobre alguma coisa, alguém ou algum
evento, mas a sistemas de memória organizados, isto é, a aglutinações de crenças sobre objetos
sociais, tais como outras pessoas, grupos, estruturas ou fenômenos sociais (VAN DIJK, 1984).
Rodrigues (1975), por sua vez, acentua o papel que os afetos têm no processo de consolidação
de uma atitude referente a um determinado objeto social. Para ele, atitudes podem ser entendidas
como “uma organização duradoura de crenças e cognições em geral, dotada de carga afetiva pró ou
contra um objeto social definido, que predispõe a uma ação coerente com as cognições e afetos
relativos a este objeto” (p. 397).
Sabe-se que alguns grupos de uma sociedade são comumente associados a afetos negativos,
tais como ansiedade, irritação, nojo, entre outros, os quais podem interferir de maneira bastante
significativa tanto no modo como vemos os indivíduos de um determinado grupo, quanto no
julgamento que se fazem deles e no modo como a interação com eles é encaminhada. São esses os
afetos que estão na base dos comportamentos preconceituosos direcionados a minorias com os
quais temos contato em nosso dia a dia (BODENHAUSEN, 1993, p. 14). A atribuição desses afetos a
minorias constitui a base para a misoginia, a homofobia, o racismo, além de outras formas de
discriminação que caracterizam a sociedade brasileira.
Nesse sentido, van Dijk (2006) salienta que as atitudes socialmente compartilhadas não são
modificadas ou adquiridas da noite para o dia, mas são, ao contrário, desenvolvidas a partir de
generalizações e abstrações feitas com base em modelos mentais formados a partir de discursos
específicos, tais como notícias, declarações oficiais, filmes, etc109. Desta forma, a discriminação de
grupos minoritários não pode ser entendida estritamente como um fenômeno cognitivo, social ou
discursivo, mas como na articulação entre essas três dimensões.
Tajfel (1981) argumenta que a categorização está na base de um processo de construção de
estereótipos, o qual cumpre uma função de economia de processamento cognitivo, uma vez que
facilita as interações de indivíduos em um entorno social complexo por meio da construção de
“atalhos” mentais que dão a impressão de conhecer alguém ou algo com base na pertença a um
109
Observe-se que a noção de construção das atitudes a partir dos discursos que circulam em sociedade, defendida por van
Dijk, não é aceita univocamente por todos os estudiosos. Durante algum tempo, os pesquisadores da área de Psicologia
Social conceberam a atitude como algo construído mediante a experiência de contato entre um indivíduo e um objeto, o
qual era mediado pelos cinco sentidos (percepção) e levava ao processamento cognitivo das informações obtidas. Trata-se,
em outras palavras, de uma perspectiva que valoriza a individualidade e o processamento mental. Atualmente, nos estudos
da atitude, predomina uma perspectiva mista, que articula as perspectivas discursiva e cognitiva, possibilitando que se
reconheçam tanto no discurso quanto na experiência individual elementos que colaboram para a construção de atitudes
(cf. Farr, 1996). Neste trabalho, por propormos uma análise discursiva, privilegiamos o papel do discurso na construção de
atitudes e identidades, sem, entretanto, subestimar o papel da experiência individual na construção delas.
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determinado grupo. Dessa forma, a vinculação de um determinado indivíduo a categorias como
negro ou feminista permite que sejam feitas inferências significativas para que ocorra a vinculação
dele a afetos positivos ou negativos, processo que desempenha papel fundamental no
encaminhamento das interações.
Tendo em vista o fato de o corpus deste trabalho ser composto por narrativas biográficas,
procedemos, na seção a seguir, à discussão teórica sobre as narrativas, sobretudo no que diz respeito
às características essenciais a elas e às relações que elas estabelecem com as questões de
identidade.
3. Narrativas
Bruner (2002) reconhece nas narrativas uma forma de criação de modelos de realidade, por
meio dos quais se atribuem sentidos a ela. Em outras palavras, a construção de narrativas é
responsável pela segmentação da realidade que a torna inteligível. A esse respeito, o autor observa
que
[...] nós raramente questionamos a forma que se dá à realidade conforme a
recriamos como história. O senso comum defende com veemência que a narrativa
é uma janela transparente com vista para a realidade, não um cortador de biscoitos
110
que impõe forma a ela (BRUNER, 2002, p. 06) .
A criação de narrativas, conforme concebida por Bruner, corresponde àquilo a que
Charaudeau (2009) se refere quando trata da transformação de um “mundo a comentar” em um
“mundo comentado”. Conforme o estudioso francês, “o acontecimento se encontra nesse ‘mundo a
comentar’ como efeito de uma fenomenalidade que se impõe ao sujeito, em estado bruto, antes de
sua captura perceptiva e interpretativa”, enquanto o “mundo comentado” é produto do olhar de um
sujeito que se estende sobre o “mundo a comentar” e o integra em um sistema de pensamento que
o torna inteligível (CHARAUDEAU, 2009, p. 95).
Tendo isso em vista, pode-se dizer que a objetivação da realidade propiciada pela linguagem é,
por conseguinte, redutora da realidade que substitui e implica a adoção de um ponto de vista, fato
que faz com que toda a informação que chega a alguém por meio do discurso de outrem seja
necessariamente relativizada. As narrativas constituem-se, assim, como uma manifestação
discursiva, por meio da qual se criam representações do “mundo a comentar”.
De acordo com Charaudeau (2009, p. 99), “o acontecimento nasce e vive numa dialética
permanente da ordem e da desordem, dialética que pode estar na natureza, mas cuja percepção e
significância dependem de um sujeito que interpreta o mundo”. Este autor fornece, como exemplo
110
Tradução livre de “*...+ we rarely make inquire as to the shape reality is given when we dress it up as story. Common
sense stoutly holds that the story form is a transparent window on reality, not a cookie-cutter imposing a shape on it.”
FERREIRA, Filipe Mantovani| I CIED (2015) 283-304
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da dimensão interpretativa do narrar, os diversos modos de designação de uma morte. A esse
respeito, esclarece Charaudeau:
Mortos são mortos [...], mas sua significação evenemencial, o fato de que esses
mortos sejam designados como parte de um “genocídio”, de uma “purificação
étnica”, de uma “solução final”, de que sejam declarados “vítimas do destino”
(catástrofe natural) ou da “maldade humana” (crime), depende do olhar que o
sujeito humano lança sobre esse fato, ou seja, as redes que ele estabelece, através
de sua própria experiência, entre os diversos sistemas de pensamentos e crenças
(CHARAUDEAU, 2009, p. 99).
Tendo isso em vista, pode-se dizer que os grupos minoritários são discriminados como
consequência de representações negativas discursivamente criadas acerca deles, as quais têm
influência na atitude que se tem com relação a esses grupos. Dessa forma, um desejo de modificação
dessas representações e da atitude delas decorrente deve estar atrelado, portanto, a um esforço de
modificação ou silenciamento dos discursos que as engendram.
A respeito do processo de criação de narrativas, Bruner (2002) explica que elas são construídas
conforme acontecimentos são ligados por uma relação de causa e efeito e dispostos num eixo
temporal. Para este autor, as narrativas, em todas as suas formas, constituem-se como a dialética
entre aquilo que se espera e aquilo que aconteceu, o que significa que, para que haja uma história, é
indispensável que algo inesperado aconteça. O autor defende, ademais, que a cultura é responsável
por estabelecer aquilo que é esperado ou não. Isso significa dizer que toda cultura traz embutido em
si um repertório de transgressões possíveis.
Pode-se dizer, dessa forma, que a estrutura da narrativa fundamenta-se em um conjunto de
expectativas reconhecíveis a respeito do estado de coisas do mundo e na quebra dessas
expectativas, decorrente da peripécia, em sua acepção aristotélica.
Com relação a essa questão, Bruner escreve:
Algo inesperado deve acontecer; caso contrário, não há nada a contar. A narrativa
relaciona-se a esforços para lidar com a quebra de expectativa e suas
consequências e aceitá-las. E finalmente há um resultado, um tipo de resolução
111
(BRUNER, 2002, p. 17).
Ao reconhecerem nas narrativas uma forma de representação da realidade possibilitada pelo
olhar de um indivíduo que assume o papel de narrador, tanto Bruner quanto Charaudeau identificam
nelas uma impossibilidade de neutralidade essencial a todo esforço de semiotização da realidade.
Para Charaudeau (2009), à semiotização da realidade corresponde um processo de atribuição
de significação psicossocial. Para além da discretização da realidade em si, o processo de produção
discursiva submete-se a uma série de parâmetros, tais como as hipóteses sobre a identidade do
outro (seus saberes, posição social, seu estado psicológico, suas aptidões, seus interesses etc.), o
111
Tradução livre de “Something goes awry, otherwise there’s nothing to tell about. The story concerns efforts to cope or
come to terms with the breach and its consequences. And finally there is an outcome, some sort of resolution”.
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efeito que se pretende produzir no outro, o tipo de relação que se pretende instaurar com esse outro
e o tipo de regulação que se prevê com relação aos parâmetros precedentes, a fim de que um
determinado discurso atinja seus objetivos.
Os parâmetros definidos por Charaudeau articulam-se com o conceito de coda formulado por
Bruner (2002), que consiste na avaliação do significado de uma narrativa112, sendo certo que este
significado só pode realmente ser criado se os parâmetros definidos por Charaudeau forem levados
em consideração.
É significativo observar o importante papel que as narrativas desempenham na constituição de
identidades, as nossas próprias e as dos outros. Bruner (2002, p. 65) defende que o processo de
construção de si (self-making) ocorre tanto de dentro para fora quanto de fora para dentro, isto é,
somos influenciados pelas narrativas que nós construímos a respeito de nós mesmos e por aquelas
que são construídas a nosso respeito, o que resulta numa rede de narrativas continuamente
construída e reconstruída. Além disso, as narrativas podem também ser responsáveis pela criação de
identidades de grupos (e não apenas de indivíduos), as quais são construídas por meio das narrativas
formuladas tanto por membros deles quanto por pessoas que não pertencem a eles. A respeito
disso, escreve Bruner:
Quero começar propondo, de modo ousado, que, na verdade, não existe uma
identidade intuitivamente óbvia e essencial a ser conhecida, uma identidade que
apenas aguarde para ser retratada por meio de palavras. Na verdade, nós
constantemente construímos e reconstruímos nossas identidades para nos
adaptarmos às necessidades impostas pelas situações que encontramos e fazemolo utilizando como baliza nossa memória do passado e nossas esperanças e medos
relativos ao futuro. Contar algo sobre si a outra pessoa é como criar uma história
sobre quem ou o que somos, o que aconteceu e por que fazemos o que fazemos.
Isso não significa que tenhamos que começar as histórias do zero toda vez. As
histórias que propiciam a construção de si acumulam-se ao longo do tempo [...].
Elas tornam-se obsoletas não apenas porque nos tornamos mais velhos ou mais
sábios, mas porque elas precisam adaptar-se a novas circunstâncias, novos amigos,
113
novas empreitadas (BRUNER, 2002, p. 65).
Ao refutar a existência de uma identidade dada aprioristicamente, Bruner ressalta a
importância das narrativas para a construção e reconstrução ― ambas constantes — das identidades
de indivíduos e grupos. Ratifica-se, assim, a impossibilidade de apreensão da realidade, salvo por sua
(re)criação discursiva, a qual sempre implica uma série de distorções decorrentes da adoção de um
ponto de vista. Dessa forma, as narrativas biográficas publicadas em Raça Brasil podem ser
112
Bruner (2002:20) define coda como “a retrospective evaluation of what it all might mean”.
Tradução livre de “I want to begin by proposing boldly that, in effect, there is no such thing as an intuitively obvious and
essential self to know, one that just sits there ready to be portrayed in words. Rather, we constantly construct and
reconstruct out selves to meet the needs of the situations we encounter, and we do so with the guidance of our memories
of the past and our hopes and fears for the future. Telling oneself about oneself is like making up a story about who and
what we are, what’s happened, and why we’re doing what we’re doing. It is not that we have to make up stories from
scratch each time. Our self-making stories accumulate over time *…+. They get out-of-date, and not just because we grow
older or wiser but because our self-making stories need to fit new circumstances, new friends, new enterprises”.
113
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entendidas como discursos que contribuem para a (re)construção das identidades tanto dos negros
que as protagonizam quanto do grupo minoritário ao qual pertencem.
Antes de passarmos à análise dos textos biográficos, procedemos, na seção seguinte, a uma
breve descrição do projeto editorial da revista Raça Brasil e da tradição de publicações a que ela se
vincula.
4. A revista Raça Brasil no contexto das publicações negras
O Homem de Côr, primeiro periódico brasileiro dedicado exclusivamente às questões da
população negra, foi lançado no Rio de Janeiro em 1833. De acordo com Pinto (2006), seu
lançamento coincide com um período de prematura afirmação da democracia brasileira, ocorrido
nos anos após a proclamação da independência com relação a Portugal. Trata-se de um período em
que a imprensa de tendência liberal, tanto moderada quanto exaltada, cresceu significativamente em
diversas cidades brasileiras. Boa parte da imprensa negra estava vinculada, nessa época, ao
movimento abolicionista, que ganhou força durante o Primeiro Reinado e o Período Regencial.
A autora esclarece ainda que o surgimento de publicações voltadas especificamente a negros
decorre da conjunção de uma série de fatores, entre os quais podem ser destacados o crescimento
da população urbana de negros libertos e livres, a obtenção de renda por parte da população afrobrasileira por meio da realização de atividades urbanas remuneradas, além do aprendizado da escrita
e da leitura por meio do contato com habitantes letrados das cidades.
Com a assinatura da Lei Áurea, em 1888, não se observou mudança significativa na situação
desprivilegiada da população negra, que continuava à margem da sociedade. Isso significa que a
demanda social por publicações negras que tivessem caráter reivindicatório não cessou, e a imprensa
negra encontrou condições e razões para permanecer viva também durante o século subsequente.
Ramos (2010) esclarece que a situação socioeconômica dos negros determinava, de modo
geral, a indisponibilidade de capital para a compra de publicações que se voltassem a essa etnia, o
que tornava a subsistência desses veículos um desafio. Estes se mantinham em atividade, na maior
parte das vezes, tendo por motivação apenas o idealismo de seus criadores, que produziam textos de
circulação gratuita, de modo a obter alcance mais significativo no interior de seu público-alvo.
Tal estrutura de produção e circulação de periódicos corresponde ao que Kucinski (1991)
denomina imprensa alternativa, que se caracteriza por um desejo de transformação social, pela
inexistência de uma estrutura empresarial e pelo desinteresse com relação ao lucro.
Ao longo das últimas duas décadas do século XX, observou-se uma transição da imprensa
negra, que passou a integrar o circuito comercial das revistas. Dessa forma, publicações voltadas a
negros passaram a ser produzidas por empresas de comunicação com o objetivo de conquistar novos
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mercados e obter lucros. Foram lançadas, nessa época, revistas como Ébano, Swingando e Agito
Geral, as quais tiveram existência relativamente curta, ao contrário da revista Raça Brasil, que
alcançou sucesso sem precedentes desde suas primeiras edições, apesar de, diferentemente dos
periódicos alternativos que a precederam, não ser distribuída gratuitamente114.
O êxito estrondoso obtido por Raça Brasil quando de seu lançamento, em 1996, chamou a
atenção de diversos órgãos da imprensa nacional e internacional (Oliveira, 2007). Em seu primeiro
editorial, Raça Brasil prometeu que a revista estaria comprometida em dar visibilidade à parcela
negra da população brasileira, de modo a neutralizar a invisibilidade a que está relegada, e, além
disso, propiciar uma melhoria da autoestima negra, conforme observamos nos excertos transcritos a
seguir:
Todos os dias nascem negros neste país – mas o país não sabe disso, ou finge não
saber. Estamos por toda parte. Nas ruas, nos escritórios, nos shoppings,
restaurantes... No entanto somos invisíveis! Como pode um país não enxergar mais
de metade de seu próprio povo?
Felizmente os tempos estão mudando. [...]
RAÇA BRASIL nasceu para dar a você, leitor, o orgulho de ser negro. Todo cidadão
precisa dessa dose diária de auto-estima: ver-se bonito, a quatro cores, fazendo
115
sucesso, dançando, cantando, consumindo. Vivendo a vida feliz.
A respeito do projeto editorial da revista, Brasileiro (2003) chama a atenção para o fato de que
a revista apresenta uma divisão em seções temáticas, nas quais há textos sobre temas como beleza,
cultura, religião e arte que poderiam facilmente ser encontrados em outras publicações. O eixo
comum a todo o conteúdo da revista é a negritude. Chama a atenção, no conjunto dos textos que
compõem as revistas, a profusão de narrativas biográficas de negros famosos e desconhecidos.
É significativo observar que, conforme se pode depreender do editorial, Raça Brasil não
reivindica para si a imagem de publicação que visa à divulgação de notícias, mas de órgão que
objetiva a construção de uma autoestima minoritária e de uma estrutura que dê visibilidade à
minoria negra.
Raça Brasil parece, assim, propor a continuidade da tradição da imprensa negra alternativa do
século XX, que, segundo Bastide (1973), constitui-se muito mais como uma imprensa de educação e
protesto que como uma imprensa de informação, na medida em que tem como objetivo precípuo
“dar-lhes [aos negros] o senso da solidariedade, encaminhá-los, educá-los a lutar contra o complexo
de inferioridade *...+” (p.130).
As análises apresentadas a seguir sugerem que as observações de Bastide sobre a imprensa
negra alternativa descrevem de maneira acurada o projeto de Raça Brasil, que, para além da
114
À época em que foram publicados os textos analisados neste trabalho, cada revista era vendida por R$7,90.
Trecho da seção Linha de Frente, publicada na primeira edição de Raça Brasil,em setembro de 1996. Trecho transcrito de
Brasileiro (2003:49). Grafia e uso de negrito e caixa alta mantidos com relação à fonte.
115
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obtenção de lucro, busca criar e/ou fortalecer a noção de que negros são indivíduos capazes de
conquistas significativas, dotados de beleza e potencial de realização de objetivos.
5. Análise
Em suas teorias, tanto Bruner (2002) quanto Charaudeau (2009) procuram dar conta da
impossibilidade de apreensão integral da realidade; segundo ambos os teóricos, os sujeitos, ao
procurarem apreender a realidade por meio de seus discursos, criam representações dela, as quais
são sempre interpretativas e redutoras de sua complexidade. Desta forma, versões do que vem a ser
a realidade são criadas conforme um sujeito lance ao mundo sensível um olhar interpretativo, fato
que tem como corolário impossibilidade de existência de discursos neutros. Na análise a seguir,
procuramos identificar, no corpus, os procedimentos linguístico-discursivos que colaboram para que
representações positivas dos protagonistas sejam construídas. Conforme se poderá observar, os
procedimentos analisados são de naturezas bastante diversas, mas articulam-se na medida em que
permitem a criação de uma representação positiva dos protagonistas das narrativas e, por extensão,
da minoria a que eles pertencem. Por esse motivo, procedemos à análise de elementos tão diversos
quanto a constituição das narrativas, a seleção dos protagonistas, a seleção de fatos da vida dos
protagonistas, estrutura narrativa, escolhas lexicais, operadores discursivos, marcadores de
pontuação, entre outros.
Retomamos, para fins de análise, o raciocínio de Bruner (2002), para quem a narrativa deve
contar algo inesperado, isto é, deve promover a quebra das expectativas daqueles que com ela têm
contato, característica que justificaria sua existência.
Essa noção de narrativa parece particularmente produtiva se analisarmos as quatro biografias
selecionadas para constituir o corpus deste trabalho, as quais se dedicam, basicamente, ao relato das
rotinas e percursos profissionais de seus protagonistas. Inicialmente, não parece haver nelas espaço
para a ruptura com relação ao prosaísmo, para a narração de algo que fosse capaz de quebrar as
expectativas de um leitor. Ao ler as narrativas, informamo-nos sobre a vida de pessoas
desconhecidas do grande público, cujas vidas parecem não apresentar quaisquer singularidades com
relação às de grande parte da população: os protagonistas dedicam-se a trabalhar e/ou estudar e
têm ambições ligadas a suas carreiras.
O caráter aparentemente prosaico das narrativas parece implicar, à primeira vista, contradição
com relação à teoria de Bruner. “Afinal, qual é a subversão de expectativas promovida pelas
narrativas aparentemente tão estáveis de Raça Brasil?”, poderia perguntar um leitor ou um analista.
Essa contradição é, no entanto, apenas aparente, conforme argumentamos a seguir.
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Com efeito, o ponto de vista a partir do qual a revista Raça Brasil propõe a percepção da
história é o de uma publicação voltada para a minoria negra e consumida por ela. É a partir da
adoção desta perspectiva que se identificam as subversões de expectativas a que procede a revistas.
Uma primeira subversão reside no fato de que todas as narrativas selecionadas são
protagonizadas por negros, o que corresponde a uma afirmação tácita de que a revista considera as
narrativas, prosaicas e aparentemente pouco significativas, um conteúdo de interesse para seu
público, suficientemente relevante para merecer ser publicado e divulgado. Subjaz a esta seleção de
pauta a ideia de que negros podem e merecem ter espaço significativo na mídia de massa. Este
espaço lhes é atribuído por meio da narração de histórias em que desempenhem função de
protagonistas. Ao proceder dessa forma, a revista posiciona-se de modo contrário à tradição de não
concessão de papeis de protagonistas a negros, a qual, em contexto brasileiro, ainda é perpetuada,
por exemplo, pelas telenovelas.
Outra subversão a ser observada corresponde ao fato de que as pessoas selecionadas para
protagonizar as narrativas são desconhecidas do grande público. Diante desse fato, infere-se que a
revista assume a posição de defesa da possibilidade de negros, independentemente de terem
conquistado fama, dinheiro ou reconhecimento, serem elegíveis para o papel de protagonistas de
narrativas. Trata-se, em outras palavras, da valorização do negro comum. Além disso, ao eleger
protagonistas desconhecidos do público, a revista possibilita o surgimento de uma identificação
entre protagonistas de narrativas e leitores, o que pode ser interpretado como uma tentativa de
incremento da autoestima destes. Pode-se dizer, dessa forma, que a prerrogativa de seleção de
protagonistas para as narrativas é utilizada estrategicamente por Raça Brasil em função de seus
objetivos discursivos, quais sejam, o enaltecimento de indivíduos negros e a constituição de um
orgulho de pertença ao grupo minoritário negro.
Dito de outra maneira, os textos biográficos parecem constituir-se com o objetivo de propiciar
a consolidação de uma atitude positiva com relação à minoria negra no seio do próprio grupo negro,
com vistas à construção ou fortalecimento de uma autoestima negra. Conforme se poderá observar
ao longo da análise, essa tendência se manifesta de diversas outras maneiras no corpus.
Saliente-se, além disso, que o processo de semiotização (Charaudeau, 2009), pressuposto no
processo de construção de uma narrativa, implica a imposição de um olhar interpretativo a uma
realidade heteróclita, que só pode ser apreendida parcialmente. Esse olhar interpretativo é utilizado
de maneira estratégica pela revista, a fim de conseguir criar uma imagem favorável dos protagonistas
e, por extensão, do grupo minoritário a que pertencem.
Observe-se a tabela a seguir:
Tabela 2. Resumo das rotinas e objetivos dos protagonistas
Narrativa
Protagonista
Situação profissional
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Objetivos (“sonhos”)
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1
2
Fernanda
Estudante do terceiro ano de Radiologia Médica que
Terminar a faculdade e ter uma
Valentim
trabalha à tarde e à noite em profissão não especificada.
vida estável.
Ator com 25 espetáculos no currículo e sócio de uma
Participar como ator de um filme
empresa de treinamentos corporativos teatralizados.
de longa metragem.
Carlos Benne
3
Marcelo Violla
4
Marcos Miguel
Iluminador e ex-ator de peças infantis.
Aprender
inglês.
Estudar
tecnologia teatral fora do Brasil.
Metalúrgico que perdeu seu emprego devido a um corte de
Tornar-se
custos devido à crise. Segundo lugar em um concurso de
Angeles, Hollywood.
ator,
conhecer
Los
beleza.
A análise das narrativas permitiu observar que o narrador tende a destacar quase que
exclusivamente fatos relacionados aos percursos profissional e acadêmico dos protagonistas. Nas
quatro narrativas selecionadas, mencionam-se principalmente as atividades acadêmicas e
profissionais dos protagonistas, havendo relativamente poucas referências à vida social, familiar ou
afetiva ao longo do corpus. Além disso, todas as narrativas mencionam objetivos profissionais
(“sonhos”) ainda não alcançados, conforme se pode depreender da tabela. Trata-se de narrativas
cujos desfechosnão estão circunscritos ao passado, a um tempo anterior ao da narrativa, mas a um
momento indefinido posterior a ela, que pode ou não vir a acontecer. Tal construção da narrativa
sugere a grande importância do futuro como possibilidade de ascensão social no percurso
profissional dos protagonistas.
Decorre da opção por fazer referência ao futuro ― e da possibilidade de identificação do
público com os protagonistas a que nos referimos anteriormente — a ideia de que é possível, mesmo
a alguém que ocupa um lugar marcado pela discriminação em nossa estrutura social, conseguir
sucessos profissionais e obter êxito acadêmico. Dessa forma, a publicação sugere que existe a
possibilidade, também para o leitor, de ambicionar (e eventualmente obter) posições acadêmicoprofissionais avaliadas favoravelmente pela sociedade.
Nesse sentido, merece destaque o fato de que, em duas das narrativas, a revista Raça Brasil
manifesta-se abertamente no sentido de apoiar a ascensão acadêmica e/ou profissional dos
protagonistas, conforme se pode observar nos excertos (1) e (2) a seguir116:
(1) “Assim que terminar meu curso, vou começar a fazer inglês. Meu sonho é poder
estudar tecnologia teatral fora do Brasil ― e trabalhar com grandes nomes do
117
teatro”, planeja, sem deixar dúvidas de que o futuro será brilhante!
(Narrativa 3)
116
Ao longo das análises, sempre que necessário, serão transcritos trechos das narrativas. Nesses casos, serão mantidas a
grafia e a pontuação originais do texto. Serão indicados todos os grifos que tenham sido feitos com o objetivo de facilitar as
análises.
117
Grifo nosso.
FERREIRA, Filipe Mantovani| I CIED (2015) 283-304
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(2) Marcos sabe que o caminho é longo, mas segue sossegado e na paz, acreditando
118
que cedo ou tarde vai encontrar o sucesso. Nós também acreditamos!
(Narrativa 4)
Nesse caso, o uso dos pontos de exclamação, nos excertos (1) e (2), colabora para que a
tomada da palavra por parte da publicação, feita com o objetivo de enfatizar a crença na capacidade
de obtenção de sucesso dos dois protagonistas, ganhe um tom emotivo, em que se reconhece o
entusiasmo em face da possibilidade de conquista de posições sociais mais valorizadas.
Conforme dito anteriormente, os protagonistas anônimos desempenham função de modelo
junto ao público da revista. Essa tendência é particularmente observável nas narrativas 1 e 2. Ambas
foram extraídas de uma seção da revista intitulada Negrogato ou Negrogata, a depender do gênero a
que pertence o protagonista da narrativa nela apresentada.
Tal seção tem como uma de suas características principais, além do relato da biografia dos
protagonistas, a tentativa de caracterizá-los, por meio de recurso a figurinos e maquiagem, como
uma celebridade negra, cuja foto é posicionada abaixo do texto biográfico. Na narrativa 1, a
protagonista Fernanda Valentim é vestida e penteada de modo a assemelhar-se à cantora e atriz
estadunidense Lauryn Hill; na foto que ilustra a narrativa 2, Carlos Benne, por sua vez, é
caracterizado a fim de que se assemelhe ao cantor e ator brasileiro Toni Garrido.
Nesse contexto, Lauryn Hill e Toni Garrido, artistas amplamente conhecidos, são tomados
como modelos de beleza, cuja aparência é digna de ser imitada. Afirma-se tacitamente, dessa forma,
a possibilidade de que negros sejam considerados belos, mesmo negros que não sejam celebridades.
Novamente, observa-se um esforço de valorização do grupo negro, cujas características físicas (forma
do nariz e textura dos cabelos, por exemplo) foram historicamente desvalorizadas.
Outro fator que colabora para a criação e uma identidade positivamente avaliada nas
narrativas é a escolha lexical utilizada para se fazer referência aos protagonistas. Observe-se a tabela
a seguir:
Tabela 3. Levantamento das formas utilizadas para nomear os protagonistas
Narrativa
Protagonista
1
Fernanda
2
Carlos Benne
Referências aos protagonistas
Imagem projetada
Guerreira, bela, pinta de diva.
Mulher trabalhadora e persistente, dotada de
Gato, ator, produtor artístico, sócio (de uma
beleza e carisma.
Homem atraente e com diversos talentos.
empresa de eventos).
Empreendedor.
Valentim
3
Marcelo Violla
Guerreiro, iluminador, sonoplasta.
Homem trabalhador, persistente.
4
Marcos Miguel
Jovem, modelo, modelo fotográfico.
Homem jovem, atraente.
As referências podem ser divididas, grosso modo, em três tipos: (a) as que valorizam a
aparência dos protagonistas (“bela”, “pinta de diva”, “gato”); (b) as que sugerem uma tendência à
118
Grifo nosso.
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grande capacidade de trabalhar e persistir em seus esforços visando à obtenção de objetivos
(“guerreira”, “guerreiro”); e (c) as que se referem diretamente às profissões dos protagonistas
(“modelo”, “iluminador”, “produtor artístico”, “sócio”).
As referências de tipo (a), (b) e (c) contribuem para que a publicação leve a cabo seu plano de
enaltecimento de uma identidade negra. Em (a) e (b), o indivíduo negro é representado, ao mesmo
tempo como belo, resiliente e trabalhador. A nomeação dos indivíduos por meio das profissões que
exercem ― referências de tipo (c) — é sintoma da grande importância atribuída ao fato de os
indivíduos representados serem capazes de exercer profissões diversas, o que pressupõe um
conjunto diversificado de talentos e capacidades, e ganharem a vida honestamente.
É significativo observar, ademais, que a revista faz uso estratégico de operadores
argumentativos a fim de enaltecer os protagonistas. Observe-se, a título de exemplo, o uso do
operador já no excerto (3) a seguir:
(3) Em dez anos de profissão, Benne já fez 25 espetáculos, entre eles Ópera do
Malandro, com direção de Chico de Assis; Rastro Atrás, de Waterloo Gregório; e o
119
musical Godspell, de Moisés Miastkowsky.
(Narrativa 2)
O uso de já dá relevo, nesse contexto, à experiência do protagonista Carlos Benne, sugerindo
que o número de espetáculos realizados em dez anos de carreira é grande e colaborando, assim,
para a construção de uma imagem de ator trabalhador, talentoso e intensamente produtivo.
Outro operador utilizado com função de enaltecimento de membros da minoria negra é o só,
conforme se observa nos excertos (4) e (5) a seguir, ambos extraídos da narrativa 1:
(4) Estudante do terceiro ano de Radiologia Médica, a moça acorda todos os dias às 5
horas para chegar à faculdade e só vai deitar por volta da 1 hora, depois de um dia
120
inteiro de trabalho.
(5) Namorado? Por enquanto, Fernanda só tem tempo para pequenos flertes, embora
responda disfarçando um leve sorriso travesso [...].
No segmento (4), o uso de só dá ênfase à ideia de que a protagonista sofre em virtude da falta
de tempo, sugerindo que superar a barreira do cansaço decorrente do trabalho consiste em um
esforço. O uso do operador parece indicar, no contexto, que o narrador considera surpreendente o
fato de a protagonista deitar-se a tão tarde, apesar de se ter levantado muito cedo. Fenômeno
análogo ocorre no excerto (5), em que só é novamente utilizado para sugerir que o tempo de que a
protagonista da narrativa dispõe é curto.
119
Grifo nosso.
Grifos nossos.
120
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Constata-se, portanto, que a protagonista da narrativa 1 é retratada pela revista como uma
mulher trabalhadora, comprometida com suas metas de vida e bastante ocupada em virtude de seu
trabalho.
A tentativa de criação de identidades positivas para os membros do grupo negro marca-se
linguisticamente também na narrativa 3, por meio do uso reiterado de locuções verbais do tipo
“chegar a + verbo”, conforme se pode depreender dos segmentos da narrativa transcritos a seguir:
(6) De tanto assistir ao mesmo espetáculo, o musical infantil Os Saltimbancos, chegou
a decorar as falas dos personagens do coro sem desconfiar que um dia pudesse
fazê-lo.
(7) Nos finais de semana chega a trabalhar cerca de 16 horas por dia.
(8) “*...+ Viagens também são constantes neste meio, inclusive, cheguei a fazer um
cruzeiro. Quando é que eu faria um se não fosse a trabalho? *...+”.
Em todas as suas ocorrências, o uso da locução verbal indica que o protagonista da narrativa
obteve êxito, malgrado as dificuldades que se interpuseram em seu percurso. Dessa forma, decorar
as falas do coro de Os Saltimbancos, trabalhar 16 horas por dia e fazer um cruzeiro (apesar de ser
pobre) são retratados como feitos significativos, verdadeiras conquistas que atestam,
respectivamente, a capacidade intelectual, a capacidade de trabalhar por longas horas e o progresso
profissional do protagonista.
Por fim, detectou-se também um uso significativo de oposições no processo de representação
dos protagonistas das narrativas. Observem-se os seguintes excertos:
(9)
O jeito franzino esconde um guerreiro. Com um sorriso largo de quem não guarda
ressentimentos, ele conta que, aos três anos de idade foi morar no bairro do
Cangaíba, na Zona Leste, com a avó e a mãe adotiva. A infância não foi fácil, mas o
destino generoso.
(Narrativa 3)
(10) Trabalhava em uma metalúrgica, mas com a crise financeira a empresa realizou
vários cortes de custos e eu fui um deles”, diz, entre risos. Mas desistir está longe
dos planos do moreno.
(Narrativa 4)
Pela leitura do excerto, podem-se depreender as seguintes oposições:
guerreiro x franzino
sorriso largo x morar em Cangaíba com a avó e a mãe adotiva121
rir e perseverar x ser demitido
Todos os elementos alocados à direita nas oposições são retratados como potencialmente
impeditivos com relação aos elementos à esquerda. Tal leitura do texto evidencia uma tendência à
121
Essa oposição pode ser depreendida nesse contexto porque o narrador articulou as informações de modo que a
mudança para Cangaíba com a avó e a mãe pareça uma experiência passível de causar a tristeza do protagonista, o que não
ocorre apesar da mudança dele para o referido bairro. Poder-se-ia especular que tal tomada de posição por parte do
narrador deva-se ao fato de ele julgar que viver em Cangaíba seja uma experiência desagradável, por ser este um bairro
pobre da periferia da cidade de São Paulo.
FERREIRA, Filipe Mantovani| I CIED (2015) 283-304
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organização deste por meio de relações de concessão implícitas, fato que pode ser observado
conforme articulamos os elementos das oposições por meio de operadores concessivos, sem que
isso altere o conteúdo proposicional do texto, tal como feito a seguir:
(i) Embora seja franzino, ele é um guerreiro.
(ii) Apesar de se ter mudado para Cangaíba com a mãe adotiva e a avó, ele
mantém um sorriso largo.
(iii) Ainda que tenha sido demitido, ele ri e persevera.
As relações de concessão prototípicas pressupõem a existência de implícitos que são
contraditos. No período (i), subentende-se que não se espera que um indivíduo magro possa ser um
guerreiro, mas é declarado que o protagonista pode ser caracterizado assim, apesar de sua aparente
fragilidade física; em (ii), fica implícito que a mudança para Cangaíba com a avó e a mãe adotiva
poderia ser motivo de infelicidade, mas afirma-se que o protagonista da narrativa conseguiu mesmo
assim manter-se feliz; por fim, o período (iii) sugere que ser demitido é motivo de infelicidade e de
desânimo, mas é dito que o protagonista da narrativa não se deixa influenciar por essas emoções.
Observa-se, portanto, que a utilização de estruturas concessivas favorece a criação de
representações favoráveis dos protagonistas, as quais salientam a perseverança e a resiliência dos
indivíduos que protagonizam as narrativas.
6. Considerações finais
A ideia de Bruner (2002) de que não existe uma essência que preceda a representação de
alguém ou de algo por meio da narrativa abre espaço para o embate de vozes que caracteriza a vida
em sociedades humanas. A inexistência de uma essência dada aprioristicamente é condição para que
as identidades de indivíduos, grupos e instituições sejam criadas e recriadas continuamente por meio
de discursos circulantes, os quais ora se ratificam, ora se contradizem, levando à criação de atitudes
positiva ou negativas, que, embora sejam relativamente estáveis, podem ser modificadas conforme
as representações discursivas acerca de algo mude.
Nesse sentido, a análise das narrativas publicadas em Raça Brasil consiste em uma
oportunidade privilegiada para a observação de discursos conflitantes, na medida em que elas
consistem em discursos que visam, por meio de procedimentos linguístico-discursivos diversos, à
desconstrução de uma identidade negativamente avaliada dos negros, opondo-se, assim, aos
discursos de cunho discriminatório, que promovem a perpetuação do preconceito racial em nossa
sociedade.
A análise das narrativas biográficas selecionadas como corpus deste trabalho permitiu concluir
que a revista Raça Brasil se vale de procedimentos linguístico-discursivos variados com vistas à
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criação de uma identidade negra que tenha como características salientes a beleza, a resiliência, a
determinação, o talento, grande capacidade de realizar trabalhos de tipos diversificados e a
capacidade de galgar posições socialmente mais valorizadas do que aquelas a que tiveram acesso por
nascimento.
Dessa forma, pode-se dizer que a revista utiliza da noção estereotípica de negro ― indivíduo
pobre, sem vontade de trabalhar, indolente e pouco inteligente ― como uma espécie de guia para a
construção de seu discurso, o que resulta na insistência com que a publicação procura, por diversos
meios, criar uma identidade de negro que seja basicamente o oposto da identidade criada pelos
discursos discriminatórios.
Tendo isso em vista, pode-se afirmar que a revista Raça Brasil procura construir uma
identidade negra que seja favorável ao grupo, mas o faz seguindo parâmetros que são impostos de
fora para dentro, por grupos dominantes. Marca-se, dessa forma, uma submissão de Raça Brasil à
dominação de grupos não negros, a qual se conserva a despeito dos esforços da revista de promover
a autoestima e a emancipação negra.
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Anexos
Narrativa 1
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Narrativa 2
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Narrativa 3
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Narrativa 4
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Abstract: The way in which individuals, groups and institutions are portrayed in discourse (their own or someone
else’s) influences the way in which they conceive themselves and are conceived by others. Discourse plays thus a major
role in the processes of construction and reconstruction of identities. This paper proposes the analysis of four short
narratives published on Raça Brazil magazine, all of which have as protagonists black individuals. The objective of this
paper is to provide insight on how the identities of black individuals are (re)created and describe linguistic-discursive
procedures that are made use of in this (re)creation process. In order to achieve such a goal, works by Charaudeau
(2009), van Dijk (1984, 2006), Tajfel (1981), Bruner (2002), and others have been resorted to.
The analysis made it possible to observe that the magazine seeks to boost a black self-esteem by means of linguisticdiscursive resources of varied natures, which make it possible to portray the black protagonists as talented,
intellectually capable, hard-working, and beautiful. The analysis made it possible to conclude, besides that, that the
magazine does not comply with the discriminatory discourses that are responsible for the creation and perpetuation of
negatively-evaluated black identities in society.
Keywords: Magazines, minorities, discourse, narratives, identity.
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Entre o fato e o ideal feminista: a construção da notícia
em Fêmea
Gerlice Teixeira ROSA (UFMG)1
[email protected]
Resumo: A proposta de discutir a construção discursiva da notícia no jornalismo impresso é o que norteia o debate
estabelecido nestas linhas. A ideia é traçar os elementos argumentativos, estratégicos, factuais e ficcionais usados na
construção das notícias que tematizam as mulheres no jornal Fêmea, especialmente as que focalizam a luta feminina
em prol dos seus direitos. A grande questão a ser discutida é como o grupo feminista CFEMEA noticia assuntos
relacionados a interesses e demandas feministas. Partindo do pressuposto de que a notícia é a construção de um
acontecimento (CHARAUDEAU, 2007), interessa-nos verificar qual a estratégia usada pelo grupo feminista para
ordenar, relatar e noticiar os fatos relativos à prática na construção de notícias que tratam diretamente de temas
femininos (ou feministas). Balizam nossa pesquisa os trabalhos de Charaudeau (1995,1998, 2007), Leal (2008) e Mello
(2003), entre outros.O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) assume a luta pelos direitos das mulheres
e minorias frente ao congresso nacional. Para dar visibilidade a suas ações, o grupo publica trimensalmente o jornal
Fêmea, cuja linha editorial é promover a igualdade de gênero e raça.
Palavras-chave: Fêmea; notícia; critérios de noticiabilidade.
1. Introdução
As ações linguageiras, sejam elas mediadas ou não, envolvem sujeitos discursivos, intenções,
estratégias e o próprio funcionamento da cena discursiva, momento em que os sujeitos são colocados em
cena para desempenhar seus papéis sociais. No ambiente midiático, especificamente o jornalístico, não é
diferente. A escolha de um fato a ser noticiado em um jornal está relacionada a diversas escolhas editoriais,
estratégicas e técnicas.
Neste artigo, pretendemos discutir de que maneira as decisões de um determinado grupo editorial
podem influenciar na definição do que é ou não uma notícia em um periódico. Sendo assim, tomamos
como base um ramo de jornalismo especializado, o jornalismo de cunho feminista. Pretendemos verificar
como um grupo institucionalizado e assumidamente feminista seleciona, organiza e noticia assuntos
relacionados às mulheres e suas manifestações sociais e políticas. Trazemos para a discussão trechos de
uma notícia publicada no jornal Fêmea, publicação trimestral vinculada ao Centro Feminista de Estudos e
Assessoria (CFEMEA), sediado em Brasília. Trata-se de uma organização não governamental que tem como
objetivo promover as minorias sociais, raciais e de gênero. Utilizamos a edição referente aos meses de
julho a setembro, do ano de 2013 para verificar a maneira como as notícias são construídas no jornal
Fêmea.
1
Gerlice Rosa é doutoranda em Linguística do Texto e do discurso, pelo Programa de Pós Graduação em Estudos Linguísticos da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista CNPQ.
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Os postulados desenvolvidos pelo linguista Charaudeau, no que diz respeito à construção discursiva
da notícia e ao engendramento de elementos discursivos para tal, serão mesclados aos conceitos
desenvolvidos na área do Jornalismo sobre acontecimento, notícia e critérios de noticiabilidade2.
Definir os limites entre real e ficcional não é tarefa fácil. A discussão já é antiga na Literatura e vem
tomando outros rumos na Análise do Discurso a partir das temáticas levantadas por Charaudeau e, mais
recentemente pelos trabalhos desenvolvidos por Mendes (2004), entre outros. Interessa-nos aqui discutir
esse tópico direcionado ao jornalismo e suas estratégias de construção discursiva da notícia.
O universo jornalístico tem um caráter teoricamente factual e carrega certo valor de verdade. Desse
modo, tudo aquilo que é dito pela instância jornalística assume um status assertivo e, de alguma forma,
incontestável. A função do jornalista de dizer sempre a verdade e construir a notícia de modo que ela
pareça verdadeira, sem manchas de subjetividade parece-nos um mito. Dizemos isso porque a famosa
imparcialidade do jornalismo, que anda sempre de mãos dadas com a neutralidade, são, discursivamente,
impossíveis de se encontrar. Ao adentrarmos o universo de relacionamento entre os sujeitos discursivos,
vemos serem colocados em cena sujeitos que se criam, se transformam no discurso para emoldurar seu
papel social, para fazerem-se reconhecidos, ou mesmo para serem ouvidos. Na própria instância
jornalística, há uma necessidade latente de reconhecimento. O jornalista não é, pelo seu papel social, um
ser digno de autoridade para dizer o que é certo ou errado, o que deve ou não ser feito. Desse modo, ele
precisa adquirir seu direito de fala através da conquista da sua credibilidade. Seu discurso precisa ser
credível, precisa fazer-se ouvido, o que só será garantido se ele usar essa camuflagem da neutralidade, da
isenção nos fatos e da objetividade. Pelo viés da Análise do Discurso muito tem se discutido a respeito do
papel das mídias na construção do discurso. Na Comunicação Social, a perspectiva do acontecimento e do
rearranjo estrutural tem sido recentemente abordada no sentido de desmascarar essa aura de neutralidade
de tal discurso. Assumimos aqui a postura de que há uma construção discursiva que direciona o jornalismo
e todas as escolhas que envolvem tal produção midiática. Sendo assim, na rotina jornalística, a simples
escolha dos assuntos que são ou não notícia, ou seja, que podem (ou devem) ser publicados em um meio
de comunicação envolve elementos definidores da vinculação social, política e econômica daquele grupo.
Muitos teóricos do jornalismo, dentre eles Mello (2003), Medina (1988) e Traquina (2005), têm estudado a
composição das notícias em jornalismo e suas implicações.
Sabe-se, pois, que a escolha dos conteúdos a serem publicados é feita por meio da análise do que se
chama de critérios de noticiabilidade. Segundo Wolf e Traquina (2005), a proximidade, a generalidade, o
interesse humano, a novidade e o conflito são considerados critérios de noticiabilidade. A organização
desses elementos definirá se determinado conteúdo é capaz de tornar-se notícia de interesse para o
público alvo. Dessa maneira, temas que motivam mais o público têm destaque na mídia e outros temas que
2
Este conceito será discutido mais adiante.
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parecem menos interessantes e menos impactantes são menos evidenciados na mídia ou, até mesmo, nem
chegam a ser publicados como notícia. O grupo editorial é responsável por avaliar e julgar aquilo que mais
interessa ao público destinatário daquele discurso e, desse modo, definem o que é notícia.
normalmente, a selecção de assuntos a noticiar não depende unicamente de escolhas
subjectivas. Há mecanismos que se sobrepõem à subjectividade jornalística. Entre eles
estão os critérios de noticiabilidade (ou de valor-notícia), que são aplicados pelo jornalista,
conscientemente ou não, no momento de avaliar os assuntos que têm valor como notícia.
(SOUSA, 2001, p.39)
A presença dos critérios de noticiabilidade torna-se, na rotina jornalística, um elemento essencial e,
por vezes, inerente à prática profissional. Sendo assim, o jornalista não consegue por si só categorizar uma
notícia sem antes consultar (consciente ou inconscientemente) aquilo que definem os critérios de
noticiabilidade. A definição de notícia, publicada no Manual de Jornalismo da Folha de São Paulo
apresenta-se bastante rigorosa. Segundo eles, notícia
É a informação que se reveste de interesse jornalístico; puro registro de fatos, sem comentário nem
interpretação. A exatidão é seu elemento-chave. Mas vários fatos, descritos com exatidão, podem ser
justapostos de maneira tendenciosa. Suprimir uma informação ou inseri-la pode alterar o significado da
notícia. A definição do interesse jornalístico depende de critérios flexíveis que variam em função do tempo,
lugar, tipo de publicação, etc. (FOLHA DE SÃO PAULO, 1987, apud MARQUES, 2003, p.33).
A negação à interpretação e à subjetividade coloca o jornal em uma posição de reprodutor da
verdade. Esse posicionamento tem sido revisto e discutido, especialmente em pesquisas da Comunicação e
da Análise do Discurso. A seção seguinte apresentará elementos para discutirmos a notícia sob outro viés,
como construção e espaço para surgirem as representações sociais.
2. Notícia como construção e representação
O ambiente jornalístico é constituído por diversos gêneros. Mello (2003) divide-os em gêneros
opinativos, informativos, diversionais. Segundo a divisão, há nos jornais gêneros que cumprem o objetivo
de mostrar opinião da instância produtora (opinativos), outros que têm o papel de informar (informativos)
e ainda outros que servem para divertir o leitor/interlocutor (diversional). Nesse sentido, notícias, notas e
grandes reportagens são consideradas gêneros informativos; artigos de opinião, cartas do leitor e crônicas
são gêneros opinativos e histórias em quadrinho, charges e charadas fazem parte dos gêneros diversionais.
A classificação mais usual do jornalismo é a proposta por Mello e a que usaremos neste artigo. Há diversas
outras formas de classificar os gêneros no jornalismo, considerando elementos tais como temas envolvidos,
materialidades, etc. Porém, acreditamos que a mais coerente seja esta que utilizamos neste artigo. Não
desconsideramos a mescla de gêneros e o imbricamento discurso que pode haver entre um e outro gênero,
porém, por questões metodológicas, utilizaremos a divisão estanque propostas pelos teóricos da área.
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Interessa-nos aqui especialmente o gênero notícia. Compreendemos que ela se dá como uma
construção no discurso, de modo a revelar maneiras de perceber o mundo e relatá-lo. Sendo assim, o modo
com uma empresa jornalística compreende o mundo, pode ser diferente da maneira como o outro grupo o
compreende. Essa diferenciação está relacionada a valores, crenças, percepções, estratégias, posições
sociais, interesses econômicos, entre tantos outros fatores que definem, em instância micro, o próprio ser
humano. Ao referirmos a uma empresa, a lógica é semelhante ao que se observa em cada indivíduo: os
valores e as crenças condicionam e determinam as ações de cada um.
O linguista Patrick Charaudeau dedicou seus estudos do discurso à mídia e suas relações com os
sujeitos discursivos e as implicações decorrentes da situação de comunicação específica em que se dá a
mise em scène. Para Charaudeau,
(o discurso) resulta da combinação de circunstâncias em que se fala ou escreve (a
identidade daquele que fala e daquele a quem este se dirige, a relação de
intencionalidade que os liga e as condições físicas da troca) com a maneira pela qual se
fala. É pois, a imbricação das condições extradiscursivas e das realizações intradiscursivas
que produz sentido. Descrever sentido de discurso consiste, portanto, em proceder a uma
correlação entre dois polos. (CHARAUDEAU, 2007, p.40)
A relação entre aquilo que é exterior ao discurso e o que é produzido em seu interior confere uma
relação de tensão entre essas forças. Desse modo, o que se observa na construção da notícia é a mistura
das forças do interior do discurso, ou seja, próprias da situação de comunicação (no caso, a jornalística)
com as forças exteriores, referentes a condicionamentos políticos, representações sociais, etc. “A
informação é pura enunciação. Ela constrói saber e, como todo saber, depende ao mesmo tempo do campo
de conhecimentos que o circunscreve, da situação de enunciação na qual se insere e do dispositivo no qual
é posta em funcionamento”. (CHARAUDEAU, 2007, p.36). Sendo assim, a situação de comunicação exige a
construção de uma mise em scène que recupera elementos exteriores a ela. Para que a notícia seja
reconhecida socialmente ela precisa estar embasada em dados exteriores à enunciação.
Fica patente, assim, a construção de enquadramentos por parte dos jornalistas no que confere à
criação de uma cadeia simbólica com vistas a dar sentido aos acontecimentos tidos como relevantes. Longe
de uma reprodução objetiva, a notícia é reportada sob olhares de uma comunidade específica que se
desenvolvem durante o processo de produção lingüística (sic) dos acontecimentos. (MARROQUIM, 2010,
p.9)
Nesse sentido, o jornalista é o intermediador dos fatos. Cabe a ele o papel de repassar os fatos
acontecidos cotidianamente para o ambiente midiático, de forma que se tornem compreensíveis para os
destinatários do discurso. Trazemos para este artigo a discussão a respeito da perspectiva do
acontecimento no jornalismo.
O acontecimento, como usualmente compreendido no pensamento jornalístico, estaria fora do
texto, ficando, portanto, na relação entre os fatos e suas consequências diretas sobre a vida em
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determinada sociedade. O jornalismo coloca-se como o mediador que possui a tarefa de trazer esse
acontecimento exterior para a interioridade do texto, dando-lhe o destaque pertinente à importância que
esses fatos tomam para o público em geral. O jornalismo mostra-se como o próprio lugar em que o
acontecimento transforma-se em texto. (PONTES & SILVA, 2010, p.52)
Sob a perspectiva da Análise do Discurso, compreendemos formar-se um discurso, mais completo,
que está além da materialidade, envolvendo sujeitos discursivos, intenções, e o relacionamento (ainda que
indireto) com o público destinatário. Os estudos de Bruno Leal resumem nosso entendimento sobre a
forma como o jornalista se comporta perante o fato e como este se torna notícia, emoldurada por um
discurso.
Nessa perspectiva, as notícias podem ser vistas sob um duplo olhar: em relação aos
acontecimentos que lhes antecedem, elas, como narrativas, já são resultado de uma ação
hermenêutica que os transforma em fato. Imagem do acontecimento, portanto, a notícia
põe em circulação leituras, explicações, uma visão peculiar da economia de tensões nele
presentes. Por outro lado, como aponta Mouillaud, os acontecimentos podem se tornar,
“a sombra projetada de um conceito produzido pelo sistema de informação” (2002, p.51).
Ao produzir uma notícia, o jornalismo opera uma leitura, um enquadramento do mundo
que produz sua visibilidade, ou seja, faz emergir o acontecimento como informação. Essa
operação, lembra Mouillaud, constitui uma realidade discursiva, um campo dotado de
profundidade, pois encerra em seu interior um referente e um relevo, e um extra-campo,
um conjunto de referências que contextualizam e tornam possível a visibilidade almejada
(LEAL, 2008, p.13).
Para compreender melhor a construção da notícia no discurso midiático especializado (de cunho
feminista), passaremos para a análise dos elementos essenciais na construção da notícia em Fêmea.
3. A construção discursiva da notícia no jornal Fêmea
Neste artigo, nosso objetivo é verificar como se dá a construção discursiva da notícia no jornal
Fêmea. Tomamos como exemplo a edição 170 do jornal, do ano de 2013. Selecionamos um jornal feminista
para verificar exatamente como se dá a construção da notícia nesta mídia especializada, com público
destinatário tão orientado como o é o jornal Fêmea.
Metodologicamente, analisaremos a composição da situação discursiva, a seleção lexical da notícia,
as temáticas recorrentes e os imaginários convocados para o discurso.
Trata-se de uma situação monologal, em que a instância de produção (o grupo editorial) produz um
discurso que visa atingir um púbico específico (leitores e leitoras de Fêmea). O objetivo dessa troca
discursiva já estabelece qual tipo de visada discursiva será mais apropriada e quais estratégias serão
necessárias para que se cumpra o objetivo da instância de produção.
Por ser um jornal especializado, de cunho feminista, as especificações são ainda maiores. O grupo
CFEMEA deixa bem clara a intenção ao produzir seu discurso: lutar em benefício das minorias excluídas.
Sendo assim, a todo momento faremos referência a esse objetivo que pauta os direcionamentos do jornal.
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Apresentamos a materialidade da notícia analisada: texto publicado na seção “Matéria de capa”,
notícia de três páginas (seis a oito), boxes explicativos e tabelas com recursos imagéticos, uso de subtítulos
e intertítulos na separação do corpo do texto.
As temáticas desenvolvidas no decorrer da notícia corroboram para o cumprimento do objetivo do
jornal. O fichamento da notícia permitiu definir os seguintes temas (sejam eles diretos ou indiretos) nas
três páginas da notícia: divisão sexual do trabalho, superexploração feminina, plano plurianual do governo,
desigualdades de gênero, saúde, família, idosos, crianças, equidade, trabalho, economia do cuidado e
política. Todos os temas tangenciam a problemática dos direitos da mulher, seja na casa, seja na família,
seja no governo. A construção que se estabelece na notícia tem como objetivo principal discutir o papel
social da mulher na sociedade, sob o viés da divisão familiar do trabalho.
Além das temáticas, outro ponto que interessa a este estudo são as escolhas lexicais. As palavras
utilizadas na notícia relacionam-se ao universo de exclusão feminina, empregabilidade, governo e
equidade. Tomamos como exemplo o trecho seguinte: “As atividades produtivas que concentravam a força
de trabalho feminina, saúde, educação, por exemplo, não desfrutaram das mesmas medidas e as
trabalhadoras ficaram ainda mais desprotegidas” (FEMEA, 2013, p.6, grifo nosso). Ao analisar esse excerto,
destacamos o adjetivo desprotegidas, que tende a revelar o imaginário que se sustenta no discurso com
relação às mulheres perante a força de trabalho. Ao relatar que as mulheres não desfrutaram das mesmas
medidas, coloca-se em xeque a equidade sonhada e ainda não conquistada pelas mulheres.
Há no discurso uma gradação dos fatos que envolvem a figura feminina e sua presença no mercado
de trabalho. Elencam-se fatos positivos que culminam com um resultado negativo, o que revela a
incoerência (ou desigualdade) da sociedade. Se a mulher já evoluiu em suas conquistas, certo seria que ela
seguisse evoluindo em seus direitos e alcançando outras vitórias, fato que não ocorre, segundo a narrativa
jornalística.
O fato central é a dificuldade da mulher se inserir no mercado de trabalho. As justificativas levam-nos
ao universo da marginalização. As mulheres não se inserem no mercado. Diante desse fato, três
justificativas são apresentadas: elas são subjugadas pelos homens, a crise mundial afetou o ritmo de
trabalho, elas têm outros afazeres em casa que as impedem de exercer atividades remuneradas fora do
ambiente doméstico.
De maneira pontual conseguimos notar no discurso um dos responsáveis pela dificuldade de
consolidação do trabalho feminino no mercado. O título da notícia, O papel do estado na economia do
cuidado, já nos convida a averiguar a função do Estado na determinação das tarefas da mulher na
sociedade. Vemos surgir um discurso que evidencia a participação dos homens e do Estado na definição da
condição social e econômica vivida pelas mulheres no país. Os intertítulos seguem a mesma linha: “O
Estado e a infraestrutura social, O cuidado de idos@s, deficientes e o acesso da população à saúde; Falta de
creche: motivo da exclusão da mulher no mercado de trabalho” (FEMEA, 2013). Há uma relação lógico
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argumentativa construída na notícia que leva-nos a relembrar/reconhecer o papel do Estado e visualizar a
não realização das tarefas que lhe são cabíveis. Desse modo, a notícia estimula o leitor a refletir sobre as
demandas femininas que não são atendidas e, em certa medida, não o são pela falta de cumprimento do
papel do Estado.
É interessante observar que a nomeação masculino/feminino está presente de forma sutil no
discurso de Fêmea. Em todas as edições o uso do símbolo @ convida-nos a enxergar a proposta de
equidade. Homem e mulher podem ser lidos nesse discurso e serem, de fato, encontrados nas palavras do
grupo editorial. Essa marca discursiva muito se relaciona à proposta de igualdade sustentada pela ONG. O
trecho a seguir discute... “O governo respondeu às reivindicações de participação social nesse processo,
criando um Fórum específico para o debate com conselheir@s e representantes de organizações da
sociedade civil”.
São utilizados na notícia elementos factuais/históricos, resgatados para o discurso com o objetivo de
fornecerem uma comprovação mais real da situação da mulher no mercado de trabalho. Essa
contextualização localizada justifica o cenário de preferência pela mão de obra masculina.
Essa situação agravou-se com a crise financeira internacional. O enfrentamento da crise
favoreceu setores da indústria intensivos em mão-de-obra quase que exclusivamente
masculina. As atividades produtivas que concentravam a força de trabalho feminina,
saúde, educação, por exemplo, não desfrutaram das mesmas medidas e as trabalhadoras
ficaram ainda mais desprotegidas. Ademais, a atividade reprodutiva, que onera
sobremaneira as mulheres, face a escassez de recursos nas famílias (agravada pela crise) e
a falta de infraestrutura social para os cuidados, terminou por cobrar ainda mais horas das
mulheres no trabalho não remunerado. (FEMEA, 2013, p.6)
Toda a notícia é intercalada com avaliações do próprio grupo CFEMEA. Essas ponderações servem de
condução para o destinatário. Dito de outra forma, o grupo editorial determina uma linha de pensamento e
utiliza em sua construção noticiosa elementos discursivos, em sua maior parte factuais, para que à notícia
possa ser atribuído um valor de verdade. O trecho a seguir revela como as avaliações aparecem
intermediadas pelo fato jornalístico.
Ademais, a atividade reprodutiva, que onera sobremaneira as mulheres, face à escassez
de recursos nas famílias (agravada pela crise) e a falta de infraestrutura social para os
cuidados, terminou por cobrar ainda mais horas das mulheres no trabalho não
remunerado. (FEMEA, 2013, p.6, grifo nosso)
Os trechos grafados na citação acima mostram direta ou indiretamente o posicionamento do jornal
frente ao que é vivenciado pela mulher no mercado de trabalho. A partir do trecho, pode-se concluir que o
jornal considera a maternidade um ônus para a mulher, um trabalho não remunerado. Tal construção
discursiva corrobora o pensamento de Leal, quando afirma que:
(...) como produto de linguagem, o acontecimento noticioso exige que o seu receptor realize
operações que lhe atribuam sentido e o (re)insiram no cotidiano. Para tanto, busca antecipar, orientar,
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conduzir, apropriar-se do gesto de recepção à espera de que o receptor tome a notícia para si, dê-lhe
validade, autentique-a. (LEAL, 2008, p.4)
Essa busca pela construção de sentido, aliada à necessidade de reconhecimento e compreensão do
fato por parte do grupo editorial, é o que pauta as decisões estratégicas do jornalista ao elaborar seu
discurso. Analisamos abaixo como o recurso da retomada da voz de outro para o discurso confere
credibilidade ao que está sendo dito. Um trecho revelador de Fêmea auxilia-nos na análise:
A naturalização do trabalho reprodutivo como sendo necessariamente feminino em um
contexto no qual as mulheres já se encontram amplamente inseridas no mercado de
trabalho traz à tona a relevância de se pensar o papel do estado neste processo, é o que
afirma Moema Guedes em seu livro A economia do cuidado: as instituições no Brasil.
(FEMEA, 2013, p.7, n.170, grifo nosso)
O excerto acima também faz referência ao pensamento do grupo editorial. Nesse sentido, todo o
empenho da cega objetividade no jornalismo cai por terra ao surgir no discurso que compõe a notícia
elementos capazes de revelar o que pensa o grupo. Recorre-se, na notícia, a uma estratégia muito comum
no discurso jornalístico: o uso da voz de terceiros para consolidar um pensamento, uma opinião. A citação
do livro de Moema Guedes cumpre o papel de corroborar com a asserção anterior de que o estado tem
culpa no processo de exclusão da mulher do mercado de trabalho.
A notícia segue um caminho interessante na construção do discurso jornalístico. Há uma
hierarquização dos fatos de modo a construir uma sequência, uma gradação de elementos que nos levam a
determinada conclusão (aquela almejada pela instância de produção). Sendo assim, podemos inferir que:
(1) O objetivo principal da notícia é chegar à culpabilidade do Estado frente à pouca valorização da
mulher no mercado de trabalho.
(2) Há um processo de avaliação/julgamento na composição da notícia que evidencia o
posicionamento do jornal.
Hierarquicamente, o texto segue as seguintes etapas:
(1)
(2)
(3)
(4)
(5)
Apresentação dos avanços e das conquistas femininas
Apresentação do retrocesso da empregabilidade em função da crise
Avaliação da função feminina na casa e no mercado de trabalho
Questionamento sobre a divisão do trabalho familiar
Julgamento das obrigações do estado
De forma argumentativa, o jornal segue um caminho específico em direção ao alvo de
responsabilização do Estado. As análises do CFEMEA feitas durante a notícia contribuem para reafirmar tal
posicionamento editorial. Para consolidar a tese de que o estado é responsável pela má colocação da
mulher no mercado, a equipe de jornalismo apresenta, inicialmente, as contradições sociais no que se
refere à empregabilidade feminina. A partir desse ponto, vários questionamentos são feitos com o objetivo
de despertar no leitor o senso crítico perante a situação descrita. Ao final, o estado é julgado, pelo fato de a
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mulher não estar totalmente inserida no trabalho remunerado. Pode-se perceber tal julgamento através do
último intertítulo utilizado na notícia: “Falta de creche: motivo da exclusão da mulher no mercado de
trabalho”. Nesse momento discursivo, o grupo editorial empreende esforços para levantar argumentos que
comprovem a culpa do governo diante da exclusão feminina do mercado de trabalho. O uso de elementos
racionais marca a necessidade de se comprovar a tese defendida pelo grupo. Sendo assim, ao lermos o
trecho a seguir, notamos tal empenho argumentativo.
Apenas 18% das crianças com até três anos de idade são atendidas por creches no país.
Tendo que cuidar d@s filh@s, as mulheres, especialmente as que não têm condições de
pagar escolas ou babás, não conseguem buscar trabalhos remunerados ou têm que optar
por alternativas informais, sujeitando-se a condições de trabalhos precárias e a
remuneração mais baixa. Este é um dos motivos que faz com que apenas 60% das
brasileiras com mais de 16 anos estejam inseridas no mercado de trabalho remunerado,
enquanto o percentual de homens chega a mais de 80%. É por isso que reivindicamos que
sejam criadas políticas que tornem o cuidado das crianças um problema de todos e todas,
uma questão social. (FEMEA, 2013, p.8)
O trecho acima está recheado de dados, porcentagens, números que comprovam (ou tentam
comprovar) a dificuldade de a mulher trabalhar fora de casa tendo que cuidar dos filhos e da rotina
doméstica. Os dados levantam um questionamento e parecem esperar por uma solução. O trecho é
finalizado com o verbo reivindicar, usado na primeira pessoa do plural. Há aqui o surgimento de um
coletivo (de mulheres) que inclui as jornalistas do CFEMEA e busca, por conseguinte, encontrar soluções
para o problema. A reivindicação está mesclada à mise em scène discursiva e midiática, ou seja, é através
da possibilidade de fala que o discurso jornalístico oferece que tal voz é levantada, ouvida e tem a intenção
de ser colocada em prática.
Além dos dados, que conduzem a notícia para o universo do logos, da razão, sob outra perspectiva
podemos encontrar alguns efeitos de realidade (MENDES, 2004). Mobilizamos aqui os conceitos de real e
ficção para refletir sobre o uso que a imprensa faz de elementos ficcionais ou, melhor dizendo, de efeitos
para construir a realidade tal como se deseja, sob o viés de determinado grupo editorial. Dito de outro
modo, há um efeito na notícia (efeito de real) que nos faz crer que ela é apenas a reprodução da verdade a
respeito de determinado assunto, mas por trás dessa construção, está o rearranjo de elementos ficcionais,
opinativos e estratégicos que compõem a publicação periódica. Não se trata de dizer que a notícia em
Fêmea é uma inverdade, mas há nela elementos que a aproximam de um artigo de opinião (portanto, não
seria notícia), mas que são camuflados com determinados efeitos que fazem o discurso parecer
simplesmente um fato noticiado a respeito da inserção da mulher no mercado de trabalho e sua jornada de
trabalho em casa. De acordo com Mendes (2004), “as fronteiras entre as situações reais e as situações
factuais são representadas como sendo porosas, possuem permeabilidade e permitem uma série de
movimentações e deslocamentos (...)” (MENDES, 2004, p. 153). Sendo assim, compreender o que é factual
e o que é ficcional não é tarefa tão simples. Os estudos de Mendes contribuem para definir que uma
situação factual seria
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o espaço onde, a partir de conjunturas situacionais específicas, os fatos seriam tidos como
reais, como passíveis de serem submetidos a provas. No entanto, tal definição estaria
subordinada às identidades dos parceiros da situação de comunicação, à finalidade da
troca linguageira, à proposição formulada e às circunstâncias materiais que determinam
certos espaços, nos valendo aqui de conceitos de Charaudeau (1995) (MENDES, 2004,
p.156)
O jogo que se estabelece aqui é entre o jornalista e o grupo editorial (ao levantar questionamentos e
impor certos valores) e os sujeitos destinatários (aqueles que acolhem fielmente o pensamento do grupo e
suas restrições). Há imaginários recuperados na notícia no que se refere à imagem da mulher,
especialmente. O imaginário da mulher submissa, dona de casa (exclusivamente), que não se prende ao
dinheiro e que não se valoriza é duramente combatido por outro imaginário (oposto): mulher decidida,
trabalhadora, capaz de exigir seus direitos (perante o governo) e reivindicar espaço para si socialmente.
É preciso analisar a perspectiva da intencionalidade discursiva da notícia. Segundo Charaudeau
(2004), as visadas são formas de entender o funcionamento das situações discursivas e as especificidades
que cada discurso é capaz de produzir. Ao voltarmos o olhar para o discurso em questão, percebemos a
necessidade de divulgar a notícia camuflada ao desejo de avaliar, julgar e ponderar as ações do Estado.
Charaudeau chama de visada informativa aquela em que o sujeito “quer mandar fazer e está legitimado em
sua posição de saber; tu se encontra na posição de dever saber alguma coisa sobre existência dos fatos ou
sobre o porquê ou como de seu surgimento” (CHARAUDEAU, 2004, p.24). Desse modo, o destinatário
(leitor de Fêmea) assume a posição de dever saber algo a respeito dos fatos noticiados, enquanto a
instância de produção assume sua legitimidade para falar em nome do jornal, incumbida de dizer a
verdade, de levar conhecimento e informação à instância cidadã.
O léxico utilizado constrói o universo propício para a confirmação da visada informativa. Ao se referir
às fontes, usam-se os verbos discendi (explicar, mostrar, levantar questões) que buscam construir a mise
em scène do ensino, do repasse de informação. Além disso, as fontes utilizadas na notícia são: o professor
de mestrado do ENCE/IBGE, José Eustáquio; Moema Guedes, socióloga e professora na UFRRJ; o informe da
CEPAL, dados do suplemento da saúde, etc.
Outro ponto que revela a visada informativa é a sequência de fatos apresentados no início da notícia,
como se fossem manchetes, ou enunciados topicalizados. A intenção de recuperar dados e fatos ocorridos
no Brasil e, portanto, informar os acontecimentos aos leitores fica patente no discurso em questão.
A conclusão da notícia concretiza um locus social para Fêmea. Conforme trecho seguinte, a conclusão
apresenta-se marcadamente avaliativa e imperativa:
Para que a promessa da presidenta Dilma se concretize, é fundamental que se acelere o
ritmo da construção das creches, que se amplie o volume de recursos federais para esse
fim e que os municípios assumam a responsabilidade pela sua manutenção – inclusive e
especialmente pela contratação de professor@s e outr@s profissionais para creches e
pré-escolas (FEMEA, 2013, p.).
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Dessa maneira, vale ressaltar o que diz Traquina (2004) a respeito da posição social do jornalista,
intermediador entre fato e discurso: “Os jornalistas têm os seus óculos particulares através dos quais veem
certas coisas e não outras, e veem de uma certa maneira coisas que veem. Operam uma seleção e uma
construção daquilo que é selecionado” (BOURDIEU, 1997, p.12).
A breve análise feita da notícia “O papel do estado na economia do cuidado” revela-nos que as
marcas de posicionamento dos editores perante a construção discursiva da notícia podem alterar, ainda
que levemente, a configuração do fato em si.
De acordo com o que vimos anteriormente, podemos levantar alguns pontos que contribuem para a
construção da notícia, pautada nos interesses do grupo feminista (CFEMEA). Podemos afirmar que a fala
dos professores e pesquisadores valida a opinião do grupo editorial. A estrutura jornalística, a moldura de
notícia também pode caracterizar o gênero como tal. O léxico próprio do ambiente jurídico/político
também confirma a factualidade do discurso em questão. Assim, compreendemos que há na notícia em
Fêmea uma moldura de notícia em um conjunto marcadamente opinativo, que deveria pertencer a outro
gênero (segundo a classificação de Mello). O detalhamento dos pontos mais importantes abordados neste
artigo está nas considerações, feitas a seguir.
4. Considerações finais
A proposta deste artigo foi discutir, ainda que brevemente, o papel do jornalista inserido na situação
discursiva “imprensa” e a relação que existe entre suas escolhas editoriais e a composição da notícia. Com
esse intuito, trouxemos para a discussão a notícia “O estado e seu papel na economia do cuidado”, matéria
de capa da edição 170 do jornal Fêmea. A análise da notícia citada permitiu-nos perceber que os interesses
que direcionam a atividade jornalística podem ser vistos linguística e discursivamente na seleção e
hierarquização de fatos em cada periódico. Consequentemente, cada notícia assumirá um perfil específico,
um modo peculiar de tratar o fato que está relacionado aos interesses da instância de produção. A seleção
léxica, a avaliação tendenciosa do fato e a forma de marcar graficamente a identificação homem/mulher
são indícios de um discurso especializado, marcadamente feminista.
No geral, a notícia segue o padrão jornalístico no uso de fontes, título, recursos gráficos e imagens
para retratar a matéria. Porém, a noção de fato distancia-se do ideal jornalístico, uma vez que não há um
fato pontual na reportagem. O fato aparece intermediado por diversas avaliações e julgamento do CFEMEA
em relação ao Estado, aos homens e à família.
As discussões levantadas permitem-nos concluir que se um tema for de interesse do jornalista (e da
sua empresa e grupo editorial), o assunto pode adquirir proporções diferentes daqueles assuntos que não
afetam a linha editorial.
É possível concluir que o jornalista assume, na rotina de produção, a tarefa de elaborar
discursivamente a realidade e a partir de critérios jornalísticos, econômicos, sociais e culturais, definir o
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que é ou não notícia. Tal elaboração caracteriza e especifica os jornais e revistas diante do seu público-alvo.
Sendo assim, os jornais e revistas especializados são moldurados de acordo com os interesses
socioeconômicos que sustentam a empresa jornalística. Isso condiciona não só o conteúdo jornalístico a ser
publicado, mas também os interesses a nível publicitário e de prestação de serviços.
Os critérios de noticiabilidade estão relacionados não só ao público destinatário (ao leitor, no caso
dos impressos), mas também ao ambiente que rodeia o jornalista. Importa a realidade sócio-histórica na
qual se vive, para se compreender o que deve ser noticiado e a maneira como esta notícia deve ser
apresentada ao leitor.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2007.
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Discurso.
Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso, Programa de Pós Graduação em Estudos
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FEMEA. Brasília, edição 170, ano 2013, n.170, maio/agosto. 2013.
LEAL, B. Telejornalismo e autenticação do real: estratégias, espaços e acontecimentos. In: Revista da
Associação Nacional dos Programas de Pós - Graduação em Comunicação E-Compós, Brasíia, v.11, n.2,
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MARROQUIM, R. Jornalismo e construção social da realidade: o despertar do acontecimento e a
composição da notícia. In: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Caxias do Sul, RC – 2 a 6 de setembro de 2010.
MELO, J. M. Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. Campos do Jordão:
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PONTES, F. S; SILVA, G.Acontecimento jornalístico e história. In: ENETTI, Marcia; FONSECA, Virginia
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TRAQUINA, N. Teorias do jornalismo. Porque as notícias são como são. Vol. 1 Florianópolis: Insular, 2.ed,
2005.
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Anexos
Anexo I – Transcrição da notícia analisada: O papel do estado na economia do
cuidado (Jornal Fêmea, edição 170)
O papel do estado na economia do cuidado
A queda do desemprego feminino. A posição do Brasil em terceiro lugar no ranking latino-americano sobre
paridade econô mica e laboral entre homens e mulheres , elaborado pela Articulació n Feminista Marco- Sur.
A crescente presença das mulheres no mundo público e a desconstrução da figura masculina como única
provedora do consumo da unidade familiar. Esses avanços, no entanto, não vem sendo acompanhados de
uma divisão mais equânime das responsabilidades familiares com o cuidado de crianças, idosos, enfermos e
com as tarefas domésticas. A permanência da concentração deste trabalho nas mãos das mulheres faz com
que seu lugar na família, particularmente o fato de ter ou não filh@s pequen@s, influencie diretamente no
seu desempenho no mundo do trabalho. Essa situação agravou-se com a crise financeira internacional. O
enfrentamento da crise favoreceu setores da indústria intensivos em mão-de-obra quase que
exclusivamente masculina. As atividades produtivas que concentravam a força de trabalho feminina, saúde,
educação, por exemplo, não desfrutaram das mesmas medidas e as trabalhadoras ficaram ainda mais
desprotegidas. Ademais, a atividade reprodutiva, que onera sobremaneira as mulheres, face a escassez de
recursos nas famílias (agravada pela crise) e a falta de infraestrutura social para os cuidados, terminou por
cobrar ainda mais horas das mulheres no trabalho não remunerado.
O professor titular do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de
Ciências Estatísticas (ENCE/ IBGE), José Eustáquio Diniz Alves, explica que quanto maior o peso das
atividades domésticas, menor é a disponibilidade de tempo que as mulheres podem ofertar ao mercado de
trabalho remunerado. “Por exemplo, famílias com muitos filhos pequenos exigem maior presença feminina
no cuidado de seus membros, o que, em uma enviesada divisão sexual do trabalho, limita o potencial
produtivo das mulheres”.
José Eustáquio levanta questões que se colocam, em termos de políticas públicas e de redivisão sexual do
trabalho, e interroga: como liberar as mulheres para o exercício do seu direito ao emprego remunerado,
como comprometer os homens com a economia do cuidado e como o Estado pode fornecer os
instrumentos para a redução da distância entre a produção e a reprodução social.
A naturalização do trabalho reprodutivo como sendo necessariamente feminino em um contexto no qual as
mulheres já se encontram amplamente inseridas no mercado de trabalho traz à tona a relevância de se
pensar o papel do estado neste processo, é o que afirma Moema Guedes em seu livro A economia do
cuidado: as instituições no Brasil. “Nesse sentido, as análises sobre as políticas públicas nos campos de
saúde e educação básica e creches são de suma importância para a visualização do tipo de encargo sofrido
pelas famílias, particularmente as mulheres, quando são compostas por membros que requerem cuidados
especiais (crianças, idosos, indivíduos doentes etc.). Além disso, esse olhar amplia o escopo da discussão
acerca da dupla jornada de trabalho feminina para além da esfera familiar e a recoloca numa dimensão
pública, dando visibilidade a um tipo de trabalho que é tradicionalmente ocultado”.
O Estado e a infraestrutura social
O debate sobre o novo Plano Plurianual do governo federal está em curso. O governo respondeu às
reivindicações de participação social nesse processo, criando um Fórum específico para o debate com
conselheir@s e representantes de organizações da sociedade civil. A Articulação das Mulheres Brasileiras
(AMB) enfatiza a importância de instituir a prioridade estratégica da infraestrutura reprodutiva
enfrentando a divisão sexual do trabalho e a superexploração das mulheres.
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E ressalva a proposta de inserção no PPA da Infraestrutura para economia do cuidado: construção de
creches, restaurantes populares, casas de repouso, hospitais-dia, escolas em tempo integral etc).
Segundo o informe da CEPAL, “Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?” a conciliação entre a vida
profissional e familiar baseada na redistribuição das tarefas de cuidado entre o Estado, o mercado e as
famílias continua a ser o ponto cego das políticas públicas da América Latina e do Caribe. As obrigações
legais com o cuidado de descendentes e ascendentes não correspondem aos serviços, a infraestrutura e as
provisões disponíveis para sua realização. Nesta situação, as desigualdades de gênero são evidentes.
Segundo Alicia Bárcena, Secretária Executiva da CEPAL na apresentação do documento, não será possível
conseguir igualdade de trabalho para as mulheres enquanto não for resolvida a carga de trabalho não
remunerado e de cuidados que recai historicamente sobre nós.
Para José Eustáquio existem duas coisas importantes a serem tratadas: “primeiro responsabilizar os
homens pelo cuidado. As tarefas reprodutivas (cuidado com crianças, idosos, tarefas domésticas etc.) não
podem ser vistas como atividades exclusivas das mulheres - a maternagem e a paternagem.
Em segundo lugar, é preciso DESFAMILIZAR as políticas públicas. Isto é, tirar os encargos de cima da família
e o Estado responsabilizar por políticas relacionadas à economia do cuidado. Por exemplo: creche e
educação infantil é fundamental para liberar as mulheres para o mercado de trabalho”.
O cuidado de idos@s, deficientes e o acesso da população à saúde
O quadro de tarefas e atribuições socialmente construídas como femininas que se articulam à chamada
economia do cuidado é formado não apenas pela educação e cuidado com os filhos mas também pela
assistência à todos os integrantes familiares que necessitem de atenção especial como idos@s ou
enferm@s. Moema Guedes explica a importância do acesso da população a programas de saúde que
assegurem atendimentos integrais com serviços médicos de enfermagem, e outros cuidados, ao invés de
transferir para as famílias, particularmente às mulheres, os ônus de tempo e gastos que envolvem os
tratamentos necessários para a plena recuperação e estabilidade da saúde dos indivíduos.
Dados do Suplemento de Saúde, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgados em
março de 2010, referente a perspectiva da economia do cuidado, mostram que 59,5 milhões de pessoas
sofrem A economia do cuidado envolve a criação d@s filh@s, a guarda das crianças, a atenção com os
parentes idos@s ou com necessidades especiais, as atividades de educação, saúde e dos afazeres
domésticos, assim como a convivência das pessoas que cuidam umas das outras e do ambiente natural.
Falta de creche: motivo da exclusão da mulher do mercado de trabalho
Apenas 18% das crianças com até três anos de idade são atendidas por creches no país. Tendo que cuidar
d@s filh@s, as mulheres, especialmente as que não têm condições de pagar escolas ou babás, não
conseguem buscar trabalhos remunerados ou têm que optar por alternativas informais, sujeitando-se a
condições de trabalhos precárias e a remuneração mais baixa. Este é um dos motivos que faz com que
apenas 60% das brasileiras com mais de 16 anos estejam inseridas no mercado de trabalho remunerado,
enquanto o percentual de homens chega a mais de 80%. É por isso que reivindicamos que sejam criadas
políticas que tornem o cuidado das crianças um problema de todos e todas, uma questão social.
As creches no governo Dilma
A criação de creches foi um compromisso assumido pela presidenta Dilma desde a campanha eleitoral em
2010. Até 2014, afirma Dilma, seis mil creches serão instaladas em todo o país, que poderão atender até
140 mil crianças e terão custo de R$ 7,6 bilhões.
Contudo, para 2011, está prevista a construção de apenas 772 creches, o que corresponde a 13% das
unidades prometidas. Analisando a execução dos recursos da Lei Orçamentária Anual (LOA) 2011 até o mês
de agosto, constatamos a existência de cinco ações destinadas à implementação e ao funcionamento de
creches, que somam mais de dois bilhões de reais previstos para este ano: 0509 – Apoio ao
Desenvolvimento da Educação Básica; 09CW – Apoio a reestruturação da Rede Física Pública da Educação
Básica; 8746 – Apoio a Aquisição de Equipamentos para a Rede Pública da Educação Infantil; 09CW – Apoio
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a Reestruturação da Rede Física Pública da Educação Básica; 12KU – Implantação de Escolas para Educação
Infantil; 8682 – Apoio a Elaboração da Proposta Pedagógica, Práticas e Recursos Pedagógicos para
Educação Infantil. Juntas, essas ações executou até agora menos de 10% dos mais de 2 bilhões previstos
para o ano.
Não é a primeira vez que o governo federal fica longe da meta traçada. Em 2008, o compromisso era
construir 1.700 novas creches até 2011 e ampliar em 12% as vagas para as crianças de 0 a 6 anos. Não vai
dar para chegar nem à meio caminho das metas estabelecidas no I e II PNPM.
A principal ação nesse sentido, orientada à implantação de escolas para educação infantil (12KU), faz parte
do PAC 2 e, embora tenha comprometido (empenhado) 98,5% dos recursos, até o momento executou de
fato apenas 11,8% do montante autorizado. Outra importante ação, de apoio à reestruturação da rede
física pública da educação básica (09CW), comprometeu (empenhou) mais da metade de seus recursos,
mas executou apenas 13,6%.
As demais ações, que prevêem montantes menores, não estão sendo implementadas ou caminham a
passos muito lentos, o que compromete a qualidade das creches já existentes, a exemplo da Ação de
Aquisição de Equipamentos para a Educação Infantil (8746) que, dos R$ 65,2 milhões de reais previstos
para o ano todo, executou apenas R$ 90 mil (0,1%).
Além disso, as creches também recebem parte dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB). No total o FUNDEB, dispõe
das seguintes ações orçamentárias: 0903 – Operações Especiais: Transferências Constitucionais e as
Decorrentes de Legislação Específica; 1061 – Brasil Escolarizado.
No caso do FUNDEB, observa-se um ritmo de execução adequado, com mais de 50% liquidados até o
momento. No entanto, não se tem a informação sobre quanto desses recursos vai diretamente para a
educação infantil, já que o FUNDEB financia também a Educação Fundamental. Segundo o Ministério da
Educação (MEC), a distribuição dos recursos do FUNDEB entre Ensino Fundamental e Educação Infantil (que
engloba creches e pré-escola) é proporcional ao número de matrículas efetuadas em cada grupo. Esta
forma de dividir os recursos perpetua o enorme déficit de vagas para a Educação Infantil.
Para que a promessa da presidenta Dilma se concretize, é fundamental que se acelere o ritmo da
construção das creches, que se amplie o volume de recursos federais para esse fim e que os municípios
assumam a responsabilidade pela sua manutenção – inclusive e especialmente pela contratação de
professor@s e outr@s profissionais para creches e pré-escola
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Abstract: The proposal to discuss the discursive construction of news in print journalism is what guides the debate
established in these lines. The idea is to trace the argumentative, strategic, factual and fictional elements used in the
construction of news that analyze women in the newspaper Fêmea, especially those regarding women's struggle for
their rights. The big question to be discussed is how the feminist group CFEMEA reports issues related to interests and
feminist demands. Assuming that the news is the construction of an event (Charaudeau, 2007), what interests us is the
strategy used by the feminist group to sort and report the facts relating to the practice in the construction of news
that directly address feminine (or feminist) issues. Guiding our research is the work of Traquina (ano); Charaudeau
(1995, 1998, 2007) and Mello (2003), among others. The Feminist Centre for Studies and Advisory Services (CFEMEA)
takes the struggle for rights of women and minorities facing the national congress. To give visibility to their actions,
the group publishes, every three months, the newspaper Fêmea, whose editorial policy is to promote equality of
gender and race.
Keywords: Fêmea; news; criteria of newsworthiness; efects, strategies.
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A MEMÓRIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO
SUJEITO NIPO-BRASILEIRO REPRESENTADO PELA
LITERATURA
Hugo Hajime KIMURA (UEM/Capes-DS)1
[email protected]
Roselene de Fátima COITO (UEM)2
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Resumo: Este trabalho por meio da análise do discurso francesa tem como objetivo discutir as memórias discursivas
que constituem o romance Nihonjin em relação com a construção de identidades representadas do sujeito imigrante
japonês e seus descendentes no Brasil, analisando a trajetória do imigrante japonês retratado nesse meio artístico
brasileiro. Fazendo-se um recorte na questão referente à memória discursiva e coletiva, da perspectiva de Pêcheux
(1999) e Davallon (1999) temos a questão de uma memória coletiva afetando o indivíduo e o que se perde e se
ressignifica na mudança de território. Para tanto, será feito uma leitura interpretativa de Nihonjin (2011), do escritor
Oscar Nakasato, que retrata o processo de imigrantes japoneses que saíram de sua pátria e deslocaram para o Brasil,
um país com traços distintos da memória que permeia esse sujeito. Nesse contato, procura-se descrever por meio da
materialidade, como se constitui o sujeito no trabalho com a memória.
Palavras-chave: Imigração; Nipo-brasileiro; Japão; Discurso; Identidade.
1. Introdução
Desde quando os primeiros japoneses imigraram para o Brasil, passaram-se mais de um século,
atravessando o oceano para uma terra totalmente desconhecida. Nesse tempo, esses imigrantes tiveram
momentos de dificuldades de adaptação: o contato, principalmente por causa da língua, e o choque
cultural, contribuíram para essas dificuldades. Hoje, pode-se dizer que, apesar das barreiras iniciais, o
processo de integração destes e seus descendentes, permitiu uma completa inserção de nipo-brasileiros na
sociedade brasileira.
Esse acontecimento que se iniciou em 1908, com a chegada do navio Kassato Maru, é retratado nos
meios artísticos brasileiros e japoneses, como cinemas, novelas, romances. Desta forma, por meio da
análise do discurso este trabalho tem como objetivo discutir as memórias discursivas que constituem o
romance Nihonjin, em relação com a construção de identidades representadas no romance, fazendo-se um
recorte na questão referente à memória coletiva e discursiva, analisando os embates de identidades
provocadas pela imigração e a relação de poder constituída neste discurso.
Por meio da perspectiva de Pechêux (1999), procuraremos relacionar a memória discursiva, que
reestabelecem os “implícitos”, com a memória coletiva desenvolvida por Davallon(1999), em que se
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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá.
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá.
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percebe a sua capacidade de conservar o passado, na constituição da identidade do sujeito imigrante
japonês e seus descendentes no Brasil.
Desde a chegada dos imigrantes japoneses temos as memórias coletivas que se perderam ou foram
ressignificadas ao longo das gerações, em relação ao ambiente, a culinária, ao isolamento, à língua,
casamento, tradição, costumes entre outros. Com isso, temos a questão de uma memória coletiva afetando
o indivíduo e o que se perde e se ressignifica na mudança de território.
Para tanto, será feito uma leitura interpretativa de Nihonjin (2011), do escritor maringaense Oscar
Nakasato, obra vencedora do prêmio Jabuti, no ano de 2012, na categoria romance, que retrata o processo
de imigrantes japoneses que saíram de sua pátria e deslocaram-se para o Brasil, um país com traços
distintos da memória que permeia esse sujeito. Neste contato, procura-se descrever por meio da
materialidade, como se constituiu o sujeito no trabalho com a memória.
Observando os anos de publicação de obras de artes que retratam o nipo-brasileiro, elas começam a
aparecer significadamente somente na década de 80, como por exemplo, o filme “Gaijin – caminhos da
liberdade” (1980) de Yamazaki, que na época fez um grande sucesso por ser um tema inédito. Relacionado
ao romance, diversos autores brasileiros e nipo-brasileiros também já escreveram sobre o tema, mas o
“Nihonjin” de Nakasato, com certeza, é um destaque no meio dessas produções por percorrer todo o
percurso de tempo do personagem Nikkei no Brasil, com uma narrativa envolvente e repleta de
questionamentos do imigrante e seus descendentes.
Tendo em vista que as produções artísticas sobre o nipo-brasileiro começaram mais efetivamente na
década de 80, nos perguntamos: se a imigração japonesa iniciou-se no ano de 1908, por que ela é
representada somente depois de um grande espaço de tempo na literatura, novela ou cinema?
Para responder a essa questão nos apropriamos do conceito de letramento. “Podemos definir hoje o
letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e
enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos.” (KLEIMAN, 2004, p.19).Ou seja,
na sociedade encontramos diversas práticas sociais que usam a escrita direta ou indiretamente para seus
objetivos de acordo com os mecanismos de poder.
Para que houvesse a inserção de autores nipo-brasileiros nessas práticas letradas, diversos fatores
foram essenciais. Com certeza a apropriação da língua portuguesa foi fundamental, mas levou tempo. Nos
primórdios alguns imigrantes costumavam escrever haikais e contos em língua japonesa, ficando essa
produção restrita à determinada comunidade. Nacionalmente o tema com nipo-brasileiro dentro de ficção
só começará a ter destaque com a geração dos filhos e netos dos imigrantes japoneses que adquirem o
domínio da língua portuguesa, acompanhada da inserção da comunidade e de seus descendentes nos mais
variados setores da sociedade brasileira, um processo demorado.
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À medida que acontece a inserção há também o reconhecimento da cultura e da identidade
japonesas. Bhabha (2007) discute o encontro cultural relacionado à identidade no mundo moderno
definindo a noção de “entre-lugar”. Ele se preocupa em analisar o que se passa nesse encontro cultural.
O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das
narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou
processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses “entre-lugares”
fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva
– que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e
contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade. (BHABHA, 2007, p. 20)
Assim, o aparecimento da imigração em uma obra de arte, dentro de práticas sociais letradas, é um
processo lento e demorado, já que pela sobreposição e deslocamentos, o interesse cultural é negociado.
Nessa fronteira da diferença cultural, a negociação pode ser feita por consenso ou por conflitos. Através de
Bhaba (2007), consegue-se refletir sobre a identidade que se forma nas fronteiras, ou no entre-lugar, com
novas estratégias de subjetivação, por meio do imigrante que carrega a sua memória em contraposição ao
lugar onde se propõe fixar.
Esse trabalho se divide em três partes. Primeiramente, será feito um levantamento teórico sobre a
memória. Em um segundo momento será analisado como esse conceito permeia o sujeito nipo-brasileiro
na sua constituição identitária no romance. Por fim, apresentamos os resultados obtidos com essa análise.
2. A memória discursiva: entre a repetição e a regularização
Na perspectiva da análise do discurso francesa, diversos teóricos discutem questões envolvendo a
memória discursiva, associada com o acontecimento. Para Pêcheux (1999), “a memória discursiva seria
aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ser lido, vem restabelecer os ‘implícitos' (...)
de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível.” (PÊCHEUX, 1999, p. 52)
Ou seja, pela memória discursiva, conseguimos recuperar os elementos pré-construídos, citados, relatados,
os dizeres já ditos e esquecidos que determinam o que dizemos e dão sentidos .
Nunes (1999) descreve na introdução do livro “Papel da memória” os vários sentidos a respeito da
memória, que por vezes é interpretada por lembranças, memória social ou coletiva, memória institucional,
memória mitológica, memória registrada, memória do historiador. O crítico questiona como a memória
pode ser produzida, como ocorre o deslocamento, a ruptura e a conservação. Pêcheux (1999) diz que
devemos entender memória não no sentido individual e psicologista, mas no entrecruzamento da memória
mítica e da memória social inscrita em práticas com a memória construída pelo historiador.
Segundo Jean Davallon (1999, p. 25), “para que haja a memória é necessário que o acontecimento
saia da indiferença, que ele deixe o seu domínio da insignificância.” Observamos a memória a partir do
momento em que o acontecimento é apreendido na consciência dos enunciados entrecruzados em um
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determinado momento. Para Davallon (1999), o que ainda é vivo na consciência de um indivíduo ou
comunidade é visto como memória social.
Lembrar um acontecimento ou um saber não é forçosamente mobilizar e fazer jogar uma
memória social. Há necessidade de que o acontecimento lembrado reencontre sua
vivacidade; e sobretudo, é preciso que ele seja reconstruído a partir de dados e de noções
comuns aos diferentes membros da comunidade social. Esse fundo comum, essa
dimensão intersubjetiva e sobretudo grupal entre eu e os outros especifica, diz-nos
Halbwachs, a memória coletiva. (DAVALLON, 1999, p. 25)
A memória social ou coletiva nos faz pensar a capacidade de conservar o passado e a fragilidade
devido ao fato de que poderá desaparecer com os membros dentro de um grupo social. Davallon (1999)
baseando-se em Halbwachs faz a oposição da memória coletiva com a história, dizendo que esta resiste ao
tempo e que aquela não. Por meio de Davallon (1999), podemos pensar a respeito do acontecimento que
foi a imigração japonesa para o Brasil. A partir do momento em que são retratadas em filmes, romances,
novelas, poesias entre outras materialidades, além de meios artísticos, esse acontecimento sai da sua
insignificância e passa a ser absorvido por uma memória.
Observa-se a questão da memória social e coletiva que afeta o indivíduo nesse desenraizamento da
sua terra de origem, ocupando o entre-lugar no choque cultural. Com isso, temos na memória aquilo que
Pêcheux descreve como materialidades discursivas complexas, em que há a repetição e a regularização. Ao
longo das gerações temos as memórias sociais ou coletivas que se perderam ou se ressignificaram. Nessa
negociação de sobreposição e deslocamentos resolvidos por consenso ou conflitos existe a visão do
imigrante que vê a cultura brasileira e a visão do brasileiro que vê o imigrante japonês, e sua cultura.
Procura-se a seguir, pela leitura e interpretação do romance Nihonjin analisar as memórias que
abarcam o sujeito nipo-brasileiro em sua constituição identitária. Como todos esses meios de produção
artística percorrem historicamente desde o processo imigratório, do processo de integração até a inserção
na sociedade brasileira, há uma produção que representa o contexto em relação com a realidade que
também tem a força de conservar o memorável estando entre a repetição e a regularização do dizer.
3. Nihonjin: a memória na constituição da identidade
O romance Nihonjin (2011), do escritor maringaense Oscar Nakasato, foi obra vencedora da primeira
edição do prêmio Benvirá de literatura, do qual participaram 1932 concorrentes de todo o Brasil e também
venceu o prêmio Jabuti, no ano de 2012, na categoria romance.
Na obra, observamos toda uma trajetória de um imigrante japonês, Hideo, que deixando seu país
veio se aventurar em um lugar totalmente desconhecido: o Brasil. O narrador do romance é o neto desse
imigrante, e através dele sabemos o percurso da instalação de Hideo Inabata e sua família japonesa no
Brasil.
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O confronto com sistemas de valores interculturais é o principal foco descrito na obra de Nakasato.
Hideo com o objetivo de enriquecer chega ao Brasil e começa a trabalhar nas fazendas de café, porém
apresenta certo sentimento nacionalista de veneração a sua pátria. Quer ganhar dinheiro logo e depois ir
embora ao Japão.
Já de início, com a mudança de localidade, têm-se inúmeras barreiras inimagináveis para o imigrante.
Tendo-se em vista que a memória coletiva se instaura naquilo que afeta o indivíduo, existem alguns
elementos no romance que revelam as barreiras do cotidiano do imigrante, tais como a língua dificultando
a comunicação; o ambiente de moradia com suas particularidades como o ofurô para tomar banho e o
costume de andar descalço dentro de casa que não existia no Brasil; a culinária totalmente diferente e o
modo de comer com a tigela e hashi dos japoneses, ao contrário de prato, garfo e faca neste solo; o clima e
o trabalho diferente do local de origem; o modo que o colono japonês via o trabalho no campo.
O narrador começa descrevendo Kimie, primeira esposa de Hideo, uma mulher calada e focaliza a
sua indumentária. “Usava um quimono pobre, de tecido claro com bolinhas rosadas, que ia até os
tornozelos. Nos pés, meias brancas e chinelos com base de palha e tiras de pano”(NAKASATO, 2011, p.11).
Notam-se, assim, as vestimentas adaptadas ao ambiente de trabalho nas lavouras de café brasileiras. Com
a chegada ao Brasil, o conceito de vestimenta é readaptado ao ambiente, e talvez não fosse mais possível
usar quimono todos os dias, pelo clima e trabalho. Atualmente, no Japão poucos são as pessoas que usam
quimonos no dia a dia, porém este traje tradicional começou a desaparecer do cotidiano diário das pessoas
somente após a Segunda Guerra Mundial no país, ao contrário dos imigrantes que tiveram que fazer a sua
adaptação para o trabalho com a imigração.
Para pensar sobre o processo de (re)construção da identidade de imigrantes japoneses é necessário
atentar para a instalação de estratégias de manutenção da cultura desse povo. Em Nihonjin, com o passar
do tempo são feitos outros utensílios como mesas e cadeiras. Para manterem o conforto, construíram até
um ofurô, arte de Jintaro, desse modo, as famílias de imigrantes japoneses da fazenda podiam relaxar e
tirar o cansaço pelo seu dia de trabalho. Então havia a adaptação aos novos costumes e, ao mesmo tempo,
tinha-se a preservação da cultura de origem. No Brasil não se tinha esse costume, porém banhava-se a
família de Hideo, a família Kawahara e às vezes vinham até outros vizinhos.
Quanto à imigração, os imigrantes japoneses se iludiam, devido à política imigratória japonesa, como
expressa o romance “- Ojichan lembra o nome da fazenda? – Ouro Verde. O nome da fazenda era a
promessa que lhes haviam feito no Japão, metonímia de uma terra sem fim, onde faltavam braços para
arrancar de suas entranhas a riqueza que oferecia” (NAKASATO, 2011, p. 19). O próprio nome da fazenda
“Ouro Verde” trazia uma ilusão de que se podia ganhar muito nessas terras. Embora a realidade fosse
outra. Yamochi (1991) mostra que,
Os primeiros imigrantes desembarcados no Porto de Santos , passaram a residir,
inicialmente, nas fazendas de café do interior Paulista, introduzidos como uma forma de
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substituição da mão-de-obra escrava, porém, com diferentes características: trabalhos por
empreita nas formações dos cafezais e assalariamento (1991, p.78).
Depois de receberem os salários anuais com o pagamento das dívidas, era pouco o que sobrava.
Porém, acreditavam realmente que ganhariam dinheiro trabalhando na agricultura e que em poucos anos
voltariam à sua terra natal. Para isso, a família de Hideo trabalhava até de domingo com as suas hortas,
plantações particulares e costuras de roupas para economizar gastos nas mercearias da fazenda, embora
nesse dia também os orientais lembrassem-se do país e confessassem suas frustrações. A política
trabalhista dos imigrantes japoneses, diferentemente dos brasileiros e outros colonizadores contrariava o
conceito católico de ter o domingo como dia de descanso. Assim, construía-se a imagem dos japoneses
como um povo trabalhador em comparação com os trabalhadores vindos de outros países:
Houve muitas dificuldades iniciais de adaptação pela falta de conhecimento e de
relacionamento entre japoneses e brasileiros, aliadas as dificuldades de comunicação. Até
praticamente depois da Segunda Guerra Mundial, os japoneses eram considerados muito
trabalhadores, porém, de difícil adaptação ao Brasil (YAMOCHI, 1991, p. 78).
Havia uma grande dificuldade para se comunicarem com as outras pessoas da fazenda (os italianos,
os negros), devido a suas diferentes línguas de origem. Os japoneses eram muito fechados e geralmente
não falavam português, nem se interessavam em falar. Por isso, poucos aprendiam a língua portuguesa.
Organizavam-se em comunidades fechadas e evitavam contatos com os brasileiros e outros grupos de
imigrantes. Isso é expresso no romance a partir da personagem Hideo que quase não se misturava com
povos de etnias diferentes. Nakasato (2002, p.16) argumenta que no início da imigração nipônica
a língua usada era a japonesa. Para eles era difícil se integrar à língua portuguesa e à
cultura brasileira, o que é compreensível se considerarmos que permaneceram mais de
dois mil anos insulados, formando a sua identidade e matutando a sua cultura, sem
experiência de emigração para além-mar.
Nakasato (2002, p.16) nos estudos sobre a imigração, escreve que os japoneses nas primeiras
décadas cultivavam a escrita poesias, principalmente o Haikai, como manutenção da cultura natal. Em
nihonjin vemos Jintaro (membro “adotado” pela família de Hideo, já que para imigrarem, antes da Segunda
Guerra Mundial, para o Brasil, os japoneses precisavam formar famílias de pelo menos três pessoas,
formando-se as famílias artificiais) que escreve haikai como lazer durante as noites. Haikai é uma forma
poética que em três linhas; valoriza-se a objetividade. Um desses poemas é mostrado a Kimie, em que
depois acaba se “relacionando” com ela: “Vejo no momiji / O vermelho triste do céu / Cor de outono” (p.36).
Acendia a lamparina, deixava a chama alta para ver melhor, para não ver fantasmas, e
escrevia sobre as quatro estações do ano: a triste vermelhidão do céu que as folhas de
momiji copiavam o outono, o manto branco sobre as cerejeiras durante o inverno, o canto
do rouxinol saudando a primavera, a sinfonia das cigarras nas noites de verão. Era um
modo de se sentir no Japão (NAKASATO, 2011, p.35).
No segundo capítulo de Nihonjin, desvelam-se o importante papel das cartas, que davam forças para
aturar o duro trabalho e a saudade. Além de trazer informação da família e do país, era um diálogo
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existente com as suas raízes, mais uma forma de mantenimento da cultura oriental. Na época não existia
telefone, muito menos internet, sendo a carta o principal meio comunicador, esperadas ansiosamente
como descritas abaixo.
As cartas eram sempre aguardadas com ansiedade, e era angustiante não saber quando
viriam. Elas davam elementos para que ojichan seguisse elaborando a história da família,
que permanecera no Japão, garantiam o aperto dos laços que o prendiam àquele país.
Através delas sentia a presença dos pais, dos irmãos, sobretudo da mãe, que
frequentemente lhe aparecia nos sonhos, às vezes com o semblante triste da despedida,
outras vezes com o sorriso que sempre lhe iluminava o rosto quando ele e seus irmãos,
ainda crianças, retornavam da escola. (NAKASATO, 2011, p.45)
Após a morte da primeira esposa, Hideo ficou sozinho na casa, sem ninguém da família. Os anos
trabalhados nesta primeira fazenda fez com que aprendesse o básico sobre a agricultura; ainda ele percebe
que foi iludido sobre a oferta de ganhar muito dinheiro. Por não poder ocupar uma casa sozinho, pelas
regras da fazenda, o imigrante nihonjin vai morar com a família Mikimura, e casa novamente, agora com
Shizue, uma mulher diferente de Kimie, tanto com habilidades no cafezal como nos afazeres domésticos.
Então se casaram ojichan e obachan em uma cerimônia no terreiro da fazenda. Alguém
entoou o cântico nupcial Tasaka, um amigo da família fez um longo discurso de
apresentação dois noivos, tão longo que enervou os poucos convidados, inútil porque
todos conheciam Hideo e Shizue, mas necessário porque era sempre assim: alguém falava
do bom caráter do noivo, de seus pais, que o criaram para ser um homem honesto e fiel
ao imperador, de sua dedicação ao trabalho, e das habilidades da noiva na arte culinária,
de sua disposição de ser mãe, da educação primorosa que recebera em sua casa. Depois
falou o pai, que agradeceu os presentes e se desculpou pela festa, que era pobre, que não
tinham saquê como gostaria, só tinha limonada e pinga para tomar, que não tinha manju,
só mandioca frita, bolinhos de arroz e um bolo de milho para comer (NAKASATO, 2011,
p.49-50).
Nesta cena, nota-se a presença de todo um ritual de festa de casamento japonês, mais um
instrumento de manutenção dos costumes japoneses. Antes de iniciar a festa um casamento tradicional,
apresenta-se os noivos, todo percurso percorrido por ambos até aquele momento e o currículo dos noivos,
isso porque os membros da família não conhecem a vida do noivo ou da noiva. Depois disso vem a fala do
pai de agradecimento à presença de todos e por estar promovendo a união do casal. Presencia-se assim um
casamento japonês em terras brasileiras, com pinga e mandioca na comemoração, marcando, nessa
passagem, o entre-lugar que a comunidade japonesa instaurava-se, com a permanência de uma tradição e,
ao mesmo tempo, a fragilidade desta tradição ao vivenciarem o costume de uma terra estranha.
Depois do casamento, Toshio, o sogro, se torna pai de Hideo ou otochan (“otochan” quer dizer pai e
“okachan’ mãe). Há mais este traço da cultura japonesa, pois em famílias japonesas o sogro e a sogra são
considerados como pai e mãe, chamando-os de otochan e okachan. Com a esposa também acontece o
mesmo, embora não haja essa relação na fábula, já que Hideo viera casado e ficara viúvo. Shigueru, filho de
Toshio sente ciúmes de Hideo pelo pai dar mais atenção ao genro.Instala-se aí uma relaçãod e conflito
familiar, devido à hierarquia que a família japonesa estabelece.
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- Parece que otochan se esqueceu que tem um filho – queixou-se Shigueru. Toshio riu,
retrucou que era uma grande bobagem o que dizia o filho, que era um rapazote, lembrou
Hideo era mais velho e experiente, era natural que tivessem mais o que conversar, e que
não ficasse despeitado porque, quando uma filha se casava, o pai e a mãe ganhavam
outro filho, e assim seria quando ele, Shigueru, também se casasse: a sua esposa seria
uma filha. (NAKASATO, 2011, p. 50-51)
Se tratando da culinária, muitos são os hábitos que foram trocados pelos imigrantes com a chegada
ao Brasil. O chá foi trocado pelo café, o saquê pela pinga e alguns pratos eram mais gordurosos do que
estavam acostumados a comer.
Hideo se encarregou de tratar o animal e, dia após dia, via o seu desenvolvimento. Ele,
que nos primeiros tempos no Brasil se enjoava com a carne gordurosa do porco e passara
mal algumas vezes após ter se aventurado a comê-la, acostumou-se com o seu sabor.
Toshio, Shigueru e Shizue também haviam se acostumado. Além da carne, comiam ainda a
linguiça, que no início lhes parecia tão estranha. Somente mãe de Shizue se recusava.
(NAKASATO, 2011, p.53-54)
Esta passagem, em que os hábitos alimentares se mostram diferentes, remete a uma memória que
restabelece o “pré-construído” de uma cultura outra. Dito de outro modo, o romance vai ganhando
contornos dos sentidos que vão sendo estabelecidos no acontecimento da imigração e que vai
perpetuando, de uma certa forma, as imagens sobre este imigrante, tanto dele para com ele mesmo, como
dele para com o outro, ou ainda, do outro sobre ele. Neste sentido, ao mesmo tempo em que há uma
repetição e uma regularização do dizer sobre si e sobre o outro, há um deslocamento, tanto que com o
desenvolver da trama e o nascer dos filhos, destacam-se os conflitos culturais, a não aceitação da
identidade de gaijin (estrangeiro), embora conviva junto e na terra de gaijins.
Este conflito é percebido com mais veemência, quando ocorre a discussão de Hideo com o filho
Haruo, pondo em jogo se ele é um nihonjin (japonês) ou brasileiro, pois ao freqüentar a escola brasileira,
entra em contato com esta cultura e com uma educação diferente do Japão. O filho de Hideo, nascido no
Brasil, fica na escolha da contradição entre duas culturas. Por um lado a visão do pai, que quer que o filho
seja um nihonjin, sem influências brasileiras, de outro lado, a visão da professora brasileira que fala que ele
é brasileiro, pois nasceu no Brasil.
Hall (2000, p.108) avalia a necessidade de ao se pensar em identidades considerar os processos de
globalização e imigração (forçada ou livre) que, geralmente, modificam o “caráter relativamente
estabelecido da identidade”. Por meio de seus postulados vemos que a instabilidade faz com que o sujeito,
no caso Haruo, recorra a única identidade que reconhece – a japonesa, imposta pela família –, mas ao
mesmo tempo se sente brasileiro. O estrangeiro aqui está em transformação e não se reconhece mais nele,
já não tem certeza de quem é. Neste momento Haruo está se deparando com uma concepção de
identidade a qual
aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia,
cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas
multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar
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ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historização radical, estando
constantemente em processo de mudança e transformação (HALL, p.108).
Assim a posição de Hideo é ambígua. Pode-se dizer que ele tem seu pensamento focado na noção de
memória que ele tem de seu país – o Japão – com todos os costumes que assimilou lá. Segundo Silva (2009)
“a memória pode ser entendida como um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto
individual como coletiva, da mesma forma que ela é essencial para a coerência de uma pessoa ou de um
grupo” (p.30).
Esta memória que constitui o sentimento de identidade é abalada durante a Segunda Guerra
Mundial. No contexto da Segunda Guerra Mundial, o romance retrata a prisão de Hideo, por conversar em
japonês na frente de policiais brasileiros. Nesse momento, italianos, alemães e japoneses passaram a viver
dentro de um país de inimigos. Getúlio Vargas baixou leis contra esses imigrantes, “em São Paulo a
Superintendência de Segurança Política e Social publicara uma portaria que tornara um inferno a vida dos
japoneses, bem como dos italianos e alemães” (NAKASATO, 2011, p.88). O romance aponta as proibições
dessa portaria, dentre elas, se reunirem em grupos a título de comemoração, utilizarem hinos e saudações
características de seus países, discutirem ou trocarem ideias sobre a situação internacional, falarem e
escreverem em seu idioma natal. A proibição relacionada à língua materna foi uma das mais severas, como
se os imigrantes fossem obrigados a negar sua identidade, entendida como sua origem, e ‘vestir’ a
identidade brasileira que lhes era imposta.
O imperador até terminar a Segunda Guerra Mundial era a figura máxima para o Japão, como se
fosse um Deus, sendo venerado e muito respeitado. Embora o poder do país fosse administrado por
famílias distintas, sempre existiu o imperador. Ele mantém essa genealogia há mais de dois mil anos, na
qual por vezes o imperador governava outras vezes as famílias que detinham o poder. O imperador dessa
época possuía descendência direta com os primeiros, estando atualmente no 125º. Por essa grande
tradição mesmo nos dias de hoje, considera-se uma pessoa significativa.
Na fábula, o imperador sempre é venerado por Hideo. Para ele, cultivar a tradição japonesa
significava honrar o imperador. “Em casa, Hideo ainda podia seguir fiel ao imperador japonês e às tradições
que trouxera no navio que aportara em Santos.” (NAKASATO, 2011, p.92). O povo japonês sempre teve
uma sociedade formada de hierarquias. No topo estava o imperador, respeitado pela população. Já na
família o pai era o chefe, depois vinha a esposa e os filhos ocupando posições inferiores.
Quanto ao casamento, era uma questão conflituosa a união entre japoneses e não japoneses. A
princípio os imigrantes e os filhos escolhiam alguém da colônia, pois a mistura de etnias não era bem vista
pelos orientais. São diversos os fatores que envolvem esse pré-conceito. Primeiro tem características
culturais. Recupera-se a memória do longo período de isolamento, os japoneses não eram um povo
acostumado a se misturarem. O país oriental com a sua política conservadora, contrastava com o Brasil que
recebia uma gama de diversidades étnicas no país. Ainda, o casamento promovendo a mistura apagava a
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preservação da cultura de origem. A língua para se comunicarem com a família, a culinária e os costumes
também sofrem variação. Pode-se observar assim a dificuldade que os nipo-brasileiros tiveram para se
miscigenar no matrimônio do Brasil.
Em Nihonjin quem sofre esse conflito é a Sumie, filha de Hideo e mãe do narrador da obra. Sumie
trabalhava na loja de artesanato do pai, na Rua Conde de Sarzedas, no bairro da Liberdade, junto com sua
amiga Matiko, a quem confessa a relação para tentar resolver a questão. Lá conhece um brasileiro,
Fernando, se apaixona por ele e namora às escondidas. A partir daí, Sumie vive um conflito interno em que
deve escolher ou o namorado ou a sua família.
Para Hideo, uma das filhas casar com gaijin representava uma vergonha para a família. Entre família
e o namorado escolhe fugir com gaijin, objetivando morar juntos com o namorado no Rio de Janeiro.
Entretanto, na saída se comove com uma conversa com a mãe, depois é impedida pelo irmão Hanashiro de
partir. Abaixo podemos ver a visão que o irmão tinha sobre o casamento.
- Não fuja como se fosse uma ladra, seria uma vergonha. Pense bem, não daria certo,
nihonjin é nihonjin, gaijin é gaijin, e não tem essa história de que nihonjin é melhor que
gaijin, não é isso, é que ... Imagine, ele não vai gostar da comida que você fizer, vai
implicar com a nossa religião, e você não vai deixar de ir ao templo budista, não é? Ele
logo vai se cansar, você vai sentir falta do ofurô, do tsukemono de okachan, de todos nós,
e será pior que perder alguém que morre, porque com a morte a gente se conforma. E
mesmo que você se acostume com a vida de gaijin... Sumie, não seja egoísta, pense em
otochan, pense em okachan, em todo sofrimento que você vai causar. Fique, e um dia
você se casará com um nihonjin que seja trabalhador, será feliz com ele. (NAKASATO,
2011, p. 112).
Sumie escuta o irmão mais velho, desiste da possível fuga e explicando a seu amado os motivos,
mostra os deveres das mulheres japonesas e, de certo modo, a supremacia dos homens desse povo:
“Depois lhe explicou sobre o on. Era um dever, um compromisso de lealdade. Ela era filha, e uma filha tem
pais, sobretudo pai. Era irmã, e irmã de um irmão mais velho. Era assim.” (NAKASATO, 2011, p.114).
Resolve seguir as ordens do pai, depois de várias tentativas de escolha entre os homens da colônia casa-se
com Osamu, que a princípio gosta, esquecendo-se do gaijin. Tem filhos e um deles é o nosso narrador da
história, Noboru. Com o passar do tempo, a vida de dona de casa, dependente do marido, submissa, que
recebia tudo, que não podia trabalhar fora, não agrada mais Sumie. Descontente com toda esta situação,
foge com Fernando para sempre.
Observamos também a supremacia dos homens na cultura japonesa na passagem que fala sobre o
período de violências da Shindo Renmei, em que Haruo passou a ser perseguido, Shizue não entendia
direito o que acontecia, pois “era Hideo a sua principal fonte de informações, e ele não a informava de
tudo. Quando dizia algo, era eufemístico para protegê-la: ela era mulher, e há assuntos que são para os
homens” (NAKASATO, 2011, p.147). Logo, vemos a limitação da mulher japonesa, controlada pelo marido,
até mesmo, no que deveria saber ou não.
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Ainda, a herança da família de imigrantes japoneses era dividida somente entre os filhos homens, as
filhas não recebiam nada. Como aborda o romance no período em que Tomie (nora de Hideo, esposa do
primogênito) fala sobre a reação de Emi (filha de Hideo) diante da divisão do dinheiro, entre os irmãos, da
venda de alguns imóveis de Hideo: “Ela sabia que herança só se divide entre os homens, eu mesma não
recebi nada de meu pai...” (NAKASATO, 2011, p.166).
Outro trecho da obra que mostra a posição das mulheres nas famílias japonesas é este, a seguir, que
expõe o costume das refeições japonesas:
Hideo exigia que, aos domingos, todos estivessem juntos durante o almoço. Ele se sentava
à cabeceira da mesa; à direita ficava Hanashiro, que era o primeiro filho, e Hitoshi, que era
o segundo, e à esquerda, Haruo, depois, Hiroshi, que era o mais novo. Antes de
começarem a refeição, não se esqueciam, juntavam as mãos, diziam itadakimasu, Hitoshi,
Haruo e Hiroshi rapidamente, já que a fome e a gula sempre tinham pressa, Hideo e
Hanashiro pausadamente, pois eram o pai e o primogênito e haviam aprendido a controlar
a ansiedade. A esposa, que também era mãe, e as filhas, que também eram irmãs,
aguardavam de pé ao redor da mesa, enchiam o prato que ficava vazio, levavam ao fogão
a tigela e a traziam de volta com missoshiro fumegante. (NAKASATO, 2011, p.92-93)
Tem-se aqui todo um modo de sentar-se à mesa, do mais velho ao mais novo. O filho primogênito
era mais importante, pois era quem assumiria o posto de chefe da família depois do pai. As mulheres
tinham o papel de servir o marido, não se sentavam à mesa. A esposa e os filhos eram submissos ao marido
ou pai. Essa submissão e centralização nas decisões em torno do pai eram necessárias para os fatos
caminharem sem problemas, pois alguém tinha que ceder a voz. Assim, uma esposa não se achava mais
importante que o marido, mesmo discordando dele. Era uma posição herdada do Japão medieval.
Entretanto, Haruo que possuía influencia brasileira não tinha a mesma ideia e pensamento do pai,
sempre discordando dele, queria viver como os outros brasileiros.
Haruo reclamava, não se cansava de reclamar: que sentassem também as mulheres à
mesa, que era um absurdo aquele costume. [...] – otochan tem cabeça dura, não percebe
que os anos passam e as coisas mudam, que é burrice se comportar aqui como se ainda
estivesse no Nihon (NAKASATO, 2011, p.93-94)
Desta forma, observa-se a choque de identidade cultural de Hideo com o filho. O pai que tinha todo
o espírito japonês, o orgulho de ser nihonjin, e o filho criado no Brasil, com a cultura brasileira.
Terminando a Segunda Guerra Mundial, houve a ação violenta promovida pela organizaçãoShindo
Renmei no Brasil. Segundo a Sociedade Brasileira de Bugei, instituição fundada em 2002 com o objetivo de
preservar e difundir a cultura do Bugei (Arte Militar tradicional japonesa) no Brasil, a Shindo Renmei,
traduzida como “liga do caminho dos súditos”, foi uma organização nacionalista fundada em Marília,
interior de São Paulo, em 1942 (ainda antes da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial). Com o fim
da guerra, muitos integrantes da Shindo Renmei recusaram-se a acreditar nas notícias oficiais sobre a
derrota do Japão, crendo que elas eram propaganda dos aliados para quebrar a moral dos japoneses. Para
a instituição, a comunidade japonesa era dividida em dois grupos: os vitoristas (kachigumi) - que
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concordavam com a organização - e os derrotistas (makegumi) - que não acreditavam na vitória do Japão e,
por isso, deveriam ser punidos.
Assim, os membros da Shindo Renmei com o desejo de calar os que “denegriam” a imagem do país,
divulgar a “verdade” (que o Japão venceu a guerra) e defender a honra do imperador, passaram a punir
aqueles que se manifestassem publicamente confessando acreditar na derrota do Japão na guerra. Para
isso usaram diversos meios, caluniando, e, até mesmo, matando.
Em Nihonjin, Haruo é perseguido por esta instituição se mostrando como um homem de cabeça
aberta e opinião formada, inclusive, sua mulher Satoko “se encantara com o modo determinado de Haruo
defender as suas ideias” (NAKASATO, 2011, p. 133). Ele acreditava no que vivenciava e, desde a infância,
contestava a “identidade japonesa utópica” pregada pelo pai. Através de seu artigo, Haruo, que não podia
se deixar calar, buscava tirar os japoneses da ‘cegueira’, abrir seus olhos para o que realmente estava
acontecendo, “precisava gritar ao vento, e o vento diria a todos que era hora de ascender incensos e velas
e lamentar a morte de japoneses e americanos, de alemães e brasileiros” (NAKASATO, 2011, p. 133).
Depois da publicação de um artigo no jornal da comunidade sobre a derrota na guerra, o resultado
foi a perseguição do nipo-brasileiro, começada na pichação no muro de sua casa com a frase “lave a sua
garganta, traidor”, escrita em japonês com tinta vermelha. Pode-se notar que as cores, vermelho e branco,
descritas neste episódio do livro remetem às cores da bandeira japonesa. Haruo sabia que a frase era uma
ameaça de morte, devido ao seu significado na cultura japonesa de que um traidor condenado à morte
deveria lavar sua garganta antes da execução. Recupera-se toda uma ideologia nacionalista e uma memória
do período samurai, embora ressignificado, em que homens matavam homens.
Hideo deu um longo suspiro. Haruo percebeu que era inútil: os tokkotais haviam sido bem
instruídos, eram ignorantes e determinados. Ele olhou o pai, que estava impassível em um
canto da sala, caminhou lentamente em direção ao homem que segurava a bandeira e a
adaga, levantou as mãos para pegá-las, mas em vez de fazê-lo, empurrou-o com força e
correu para a porta. Não cometeria haraquiri, não tinha feito nada de que se
arrependesse ou de que se envergonhasse, não era nenhum criminoso. Morreu ainda na
varanda, atingido por dois tiros disparados por dois tokkotais que estavam à espreita.
(NAKASATO, 2011, p.158)
O romance se encerra com neto de imigrante japonês (narrador) integrado à sociedade brasileira. O
narrador se reúne com os amigos para estudar Marx; ele fez faculdade de história no Brasil e é também
professor de uma escola. Mesmo morando e trabalhando no Brasil decide ir trabalhar no Japão, fazendo o
caminho inverso do avô, com o igual objetivo que ele tinha quando veio ao Brasil. Observa-se que as
imigrações são promovidas pela situação econômica mundial, e o romance apresenta isso como um círculo
de saída e retorno ao Japão pela mesma família. O alto valor recebido no Japão em comparação com o
salário brasileiro, fez muitos nipo-brasileiros se aventurarem na terra de seus antepassados.
Antes de fazer a sua viagem, o narrador decide visitar o seu ojiichan (avô) para se despedir. A
conversa dele com tia Tomie mostra a mudança dos valores no papel da mulher. A mulher que era
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submissa ao marido, que tem todo um ritual de respeito, mesmo discordando com o marido, é apagada,
mas vemos o retrato de uma mulher fofoqueira, que fala de tudo em que os valores antigos de origem
foram alterados por influencias do país. “Eu esperava uma pequena brecha para dizer algo, qualquer coisa
que a fizesse parar de falar, mas tia Tomie parecia nem respirar”. (NAKASATO, 2011, p.165)
Já Hideo fala que perdeu o seu local de origem, ou furusato, na conversa com o neto.
- Ojiichan, quer que eu lhe envie alguma coisa do Nihon?
- O que eu posso querer do Nihon?
- É furusato de ojiichan.
Ele levantou os olhos.
- Furusato... o meu furusato não existe mais.
Ficou alguns instantes em silêncio, talvez buscando no passado o furusato que julgava
perdido para sempre. Depois disse que o Japão perdera a Segunda Guerra Mundial, o
imperador se humilhara diante dos estados Unidos, assumira a sua identidade de homem
comum e negara a sua origem divina... (NAKASATO, 2011, p.169).
Principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, o imperador japonês se rende diante do povo,
com o discurso de que não é um Deus, mas sim um ser humano comum. Isso fez com que muitas pessoas
perdessem a veneração e até a identidade de ser um japonês, principalmente os nacionalistas. Hideo que
era amparado na figura do imperador e era nacionalista fica desamparado na sua jornada. Depois da
Segunda Guerra que Hideo decide permanentemente viver no Brasil. As consequências e condições de vida
pós-guerra no Japão eram sofridas. O imigrante esperançoso em voltar desiste dessa ideia.
Desta forma, a atitude de Hideo em valorizar a identidade de ser um nihonjin foi sendo alterada, e a
partir disso passa a aceitar a cultura gainjin também. Na fábula, o que antes Hideo não aceitava de modo
algum, por exemplo, a posição do filho Haruo influenciado pela sociedade brasileira, que contrariava as
ideias de preservação nihonjin do pai, muda pelo arrependimento no último capítulo.
- Haruo era um bom menino – começou ele, e era uma conclusão.
[...] Disse que às vezes tinha raiva do filho por não ter prejudicado a vida, que se tivesse se
escondido em um lugar mais seguro ainda estaria vivo, e ele, que era pai, teria tido chance
de compreender o filho e lhe dizer que o compreendia, teria tido a chance de
compreender os próprios erros e reconhecê-los diante dele. (NAKASATO, 2011, p.171)
Isso não quer dizer que tenha abandonado a sua cultura de origem, Hideo ainda saboreia a comida
japonesa, ouve as músicas de Pinkara Kyodai e Misora Hibari e cultiva bonsai. Por um lado observamos a
sua cultura de origem, que veio com a imigração de Hideo ao Brasil, por outro vemos a assimilação de outra
cultura, resultando na reconstrução de uma nova identidade formada pelo imigrante japonês e seus
descendentes, que assimilaram a cultura local, sem esquecer a origem e hoje estão engajadas na sociedade
brasileira.
Ojiichan ergueu os olhos cansados, quase sem brilho, e disse em palavras nuas que o
Brasil era a minha terra. Eu não contestei, somente entendi que ojiichan gostava de mim,
que ele não queria para o neto a sua experiência do desterro. Por isso lhe disse que os
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tempos eram outros, que eu iria e voltaria sem as dificuldades de outrora. [...] O tempo só
existe porque se fazem coisas, uma após outras, e elas, quando são evocadas, surgem em
novas realidades, e então não são as mesmas. Ojiichan sabia. E eu. O passado agora
habitava outro espaço, surgiu para justificar o presente, era reconstruído, e não se
necessitava ter restauradores, que eles são rigorosos, preocupam-se com milímetros e
cores exatas. O tempo é atemporal (NAKASATO, 2011, p. 174).
4. Considerações Finais
Por meio do percurso da obra, passamos por todo o contexto da imigração japonesa desde o seu
início até os dias atuais. Podemos observar o choque de culturas e as memórias discursivas que são
recuperadas, representadas e ressignificadas por todo o romance, já que a memória no discurso está ligada
às condições sociais e históricas que reconstrói o passado na forma em que se organiza o presente e que
uma memória individual, segundo Halbwachs (apud Paveau, 2013, p. 94) “é um ponto de vista sobre a
memória coletiva, que muda conforme o lugar que ocupo e com as relações que estabeleço com outros
meios”.
Também, pode-se dizer que através daquilo que Davallon (1999) chama como memória social, a
capacidade de conservar o passado, ou o que ainda é vivo dentro de uma comunidade, apreendemos pela
leitura interpretativa as memórias coletivas que se perderam nas gerações posteriores. Primeiramente,
houve o embate cultural da identidade do imigrante com os valores culturais totalmente contrárias do país
que o recebeu, entrando em contraposição. Depois percebemos o que Bhabha (2007) coloca como entrelugar, que dão signos a novos signos de identidade. Ainda, percebe-se também que as memórias sociais de
um grupo ou comunidade está em constante mudança e transformação.
Relacionando a memória com a identidade, com relação ao imigrante, o mesmo sentia-se japonês
porque nasceu no Japão e veio ao Brasil para enriquecer e voltar. Pelo fato de ser japonês e de ter a certeza
da volta, criava seus filhos fazendo-os acreditar que eram japoneses, tanto que não aceitava nem a
amizade e nem o casamento com pessoas que não eram japonesas. Tinha uma identidade marcada pelo
nacionalismo. Havia certo receio de assimilar a cultura do outro, visto como negativo. A memória atua na
forma de conservar os traços constitutivos do ser japonês e dos valores que circulavam na época como
verdades, representados na obra. Como se pode ver, nesse primeiro momento, construíam-se escolas, os
filhos aprendiam a língua japonesa, viviam em comunidades fechadas, cultivavam o imperador como Deus,
acreditando ser superior.
Nos filhos de japoneses que nasciam no Brasil visto no romance, pode-se dizer que, muitas vezes,
encontram-se no entre-lugar, revelando uma identidade híbrida – tinha a identidade dos pais – pela criação
e pelo isolamento de outras etnias que viviam no Brasil - e tinha uma identidade brasileira, por aqui
nascerem e verem outros hábitos que não os japoneses. Eram vistos pelos outros como japoneses pelo fato
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de viverem isolados e pelo fato de falar e aprender japonês. Por causa de ser uma época de guerra, havia
não japoneses que acreditam que o Japão, ao enviar imigrantes, tinha interesse nas terras brasileiras.
Em Nihinjin o conflito se instala por causa do isolamento da comunidade japonesa – a dificuldade de
adaptação – e por causa do distanciamento das coisas do Japão. Embora Haruo tenha sido criado para se
sentir e ser um japonês, ele reluta e se inscreve no discurso como brasileiro, mesmo que seus colegas de
escola o chamem de japonês por causa dos traços específicos desta etnia. Não há um conflito de Haruo
consigo mesmo, mas com o pai. Nesta identidade híbrida – japonês e brasileiro – ele tem, desde criança,
uma identidade construída subjetivamente, nos seus discursos e nas suas práticas, bem marcada – a
brasileira.
De maneira geral, o romance Nihonjin nos conduz a um contato com a identidade cultural japonesa,
sob o enfoque histórico, político, sociológico e cultural presente no Brasil. É um romance inovador por ser
pioneiro em tratar sobre os imigrantes japoneses, como eles se sentiam ao chegar num país desconhecido,
e é um romance cativante que envolve os leitores em uma saga oriental em que as memórias social e
discursiva se mostram flutuantes, movediças, fragmentadas, assim como o próprio sentimento dos nipobrasileiros que aqui vivem e constituem a sua identidade.
Também há que se ressaltar que o letramento, como uma prática social escrita, foi um impecilho ao
imigrante na sua adaptação e inserção em solo brasileiro, que começa a se desfazer com seus
descendentes que hoje, tem em sua memória coletiva regularizações e ressignificações do ser japonês e
que mesmo inseridos na sociedade mostram-se, no século XX, com uma nova refratação identitária, ou
seja, ao traçarem o caminho contrário de seus avós, sentem-se brasileiros em terra japonesa e assim são
tratados pelos japoneses no Japão. Portanto, memória(s) e identidades se dão no entre-lugar assim como
este romance literário tão bem coloca, numa repetição da memória e na regulação do dizer.
Referências bibliográficas
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DAVALLON, Jean. A imagem, uma arte de memória? In:ACHARD, Pierre et al. Papel da memória.Campinas:
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perspectiva dos estudos culturais. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
KLEIMAN, Angela. B. Introdução: O que é letramento? Modelos de letramento e as práticas de
alfabetização na escola. In: KLEIMAN, A. B (Org.). Os significados do letramento. São Paulo: Mercado de
Letras, 2004.
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NAKASATO, Oscar Fussato. Imagens da integração e da dualidade: personagens nipo-brasileiros na ficção.
São Paulo: Blucher Acadêmico, 2002.
______, Oscar Fussato. Nihonjin. São Paulo: Benvirá, 2011.
NUNES, José Horte. Introdução. In:ACHARD, Pierre et al. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p.710.
PAVEAU, Marie-Anne. A memória no discurso. IN: Os pré-discursos: sentido, memória, cognição. Trad.
Graciely Costa e Débora Massmann. Revisão: José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes Editores, 2013.
PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et al. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999.
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ROCHA, Simone. O poder da linguagem na era Vargas: o abrasileiramento do imigrante. In: ENCONTRO DO
CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL, 6, 2004, Florianópolis, SC. MIOTO, Carlos et. al. (Orgs.).
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1936-1956). Maringá, 2009. Dissertação (Mestrado em História) – UEM, 2009.
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Nikkei de Uraí (PR – Brasil). São Paulo, 1991. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Filosofia,
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KIMURA, Hugo Hajime; COITO; Roselene de Fátima | I CIED (2015) 321-337
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Abstract: This research, based on french discourse analysis, aims to discuss the discoursive memories that constitute
the novel Nihonjin in connection with the identities construction of the japanese imigrant subject and his decendants in
Brazil, analyzing the trajectory of the Japanese immigrants portrayed in this Brazilian art scene. Proceeding the
selection of material related to the question of the discursive and collective memory from Pêcheux (1999) and Davallon
(1999) perspectives, there is a collective memory affecting the individual. Moreover there are losses ressignificances
when there is a territorial change. Thus, in this study an interpretive Reading of Nihonjin (2011) by Oscar Nakasato, will
be done. This novel portrays the imigration process of Japaneses who left their homeland and moved to Brazil, a
country with distinct traces of memory that permeate the subjects. In this contact, we aim to describe through the
materiality, as the subject is constituted in relation with memory.
Keywords: Immigration; Japanese-Brazilian; Japan; Discourse; Identity.
KIMURA, Hugo Hajime; COITO; Roselene de Fátima | I CIED (2015) 321-337
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REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DO HOMEM DO CAMPO
NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DE CHICO BENTO
MOÇO: O CAIPIRA NA CIDADE?
Illa Pires de AZEVEDO (UFBA)1
[email protected]
Resumo: Este artigo é parte da pesquisa de Mestrado desenvolvida no Programa de Pós Graduação em Língua e
Cultura (PPgLinC) da Universidade Federal da Bahia – UFBA, cujo objetivo consiste em analisar o modo como ocorre a
representação discursiva do homem do campo nas histórias em quadrinhos (HQS) de Chico Bento (Moço),
personagem de Maurício de Sousa. Para este trabalho, tomaremos como corpus alguns trechos da revista Chico Bento
Moço: confusões na cidade grande, a qual relata a chegada do protagonista adolescente à cidade de Nova Esperança,
onde fará o curso de Agronomia. Assim, tendo como base o aporte teórico-metodológico da Análise de Discurso
configurada por Michel Pêcheux, pretende-se analisar as formações discursivas e ideológicas acerca do homem do
campo veiculadas nas referidas histórias, observando-se como estas se relacionam com o interdiscurso. Para tanto,
serão considerados os elementos sociais, as ideologias, a História e as condições de produção do discurso, tendo como
base a ideia de que os discursos não são fixos, mas se transformam e acompanham as transformações sociais da
humanidade, conforme enfatiza Fernandes (2008), sendo constituídos na História e pela História.
Palavras-chave: discurso; história em quadrinhos; homem do campo; cidade; ideologia.
1. Introdução
Através da linguagem, representações discursivas são hierarquizadas em nosso meio, são
metaforizadas nas relações e são mediadas com o real. “Linguagem e ideologia são vinculadas, esta se
materializa naquela” (FERNANDES, 2008, p.21). As histórias em quadrinhos (doravante HQS) tornaram-se
bastante populares, sobretudo, nas últimas décadas e, por isso, um meio através do qual estereótipos são
facilmente difundidos. Como produção artística, configuram-se como manifestação cultural de um povo, de
uma geração. Desse modo, pode-se dizer que, nas práticas discursivas diárias, expõem-se visões de mundo
construídas e reconstruídas ao longo do tempo, de uma época.
De acordo com a Análise de Discurso (AD), teoria que embasa este trabalho, é no discurso que
observamos a relação entre a língua e a ideologia, ao passo que esta tem no discurso a sua materialidade
específica. O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer. A ideologia é,
então, a condição sine qua non para a constituição dos sujeitos e dos sentidos.
Com relação às HQS, é possível afirmar ainda que estas passaram por algumas transformações,
objetivando estar de acordo com o contexto atual da sociedade. Para Silva (1984, p. 59):
As revistas de histórias em quadrinhos, como meio de comunicação, acompanharam o
desenvolvimento tecnológico. Com o tempo, a história em quadrinhos foi sendo
aprimorada na sua forma gráfica de apresentação, impressa no papel com cores variadas,
traços sutis, balões, enredos variando desde o modo lúdico de viver até as situações de
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura (PPGLinC), da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
AZEVEDO, Illa Pires de | I CIED (2015) 338-355
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trabalho e de conflitos da sociedade. E, por vários motivos, as pessoas procuram as
revistas com histórias em quadrinhos, ou são induzidas a comprá-las.
Pode-se dizer, então, que as histórias em quadrinhos possuem umpoder de comunicação inegável.
Com o aparecimento da cultura de massa, a produção das revistas em quadrinhos cresce e, em
consequência da aceitação e do uso generalizados, as HQS são introduzidas nos livros didáticos como
recurso adicional à aprendizagem, tratando de diversos assuntos. Hodiernamente, elas visitam os bancos
escolares, servindo de material didático auxiliar para inúmeros exercícios e configurando uma alternativa
interessante às atividades pedagógicas mais tradicionais, conforme acrescem Iannone e Iannone (1994)e,
como produto largamente difundido na indústria cultural, os quadrinhos acabam influenciando a formação
e educação de crianças, de jovens e até de adultos. Logo, deve-se atentar para os efeitos de sentidos
processados por determinados personagens e histórias.
A revista Chico Bento Moço, por sua vez,foilançada em 2013 pela Editora Panini e objetiva contar as
aventuras do personagem Chico Bento e sua turma na versão adolescente. O protagonista deixa, aos 18
anos, a Vila Aboborinha, zona rural, para estudar em Nova Esperança, onde fará o curso de Agronomia e,
em consequência disso, passa a residir em uma república de estudantes. Os personagens ganharam novas
características e, no caso de Chico Bento, as mudanças no traço do corpo e no modo de falar são bastante
notórias. Na primeira edição, apresentam-se os rumos de cada personagem e a despedida de Chico Bento
da roça; na segunda, as histórias se passam já na cidade, assim como as edições posteriores.
Dito isso, consideramos relevante observar a forma como o homem do campo é representado
discursivamente nesses textos, uma vez que tal gênero faz parte da vida cotidiana das pessoas, inclusive de
estudantes, como já pontuamos e, por isso, auxiliariam na difusão de imagens estereotipadas de grupos
sociais diversos, dentre os quais se destaca o homem do campo.
2. Pressupostos teóricos: algumas considerações
Historicamente, a Análise do Discurso de Linha Francesa de base pecheutiana (doravante AD), teoria
sobre a qual se debruça este trabalho, constituiu-se como campo disciplinar em meados da década de 60
do século XX, na França, e tem como seu fundador o filósofo Michel Pêcheux, cujo objetivo era propor uma
transformação da prática nas ciências sociais, de maneira a torná-la uma prática verdadeiramente
científica; e, para isso, seria necessário fornecer a essas ciências um instrumento apropriado. Daí o seu
objetivo em desenvolver uma análise automática do discurso. (Henry, 2010). Michel Pêcheux instaura,
dessa forma, nos estudos da linguagem, a possibilidade de associar o linguístico ao sócio-histórico: língua e
ideologia. Segundo Orlandi:
[...] a importância de Pêcheux está justamente em perceber que para pensar a ideologia
era preciso colocar em jogo a linguagem. Daí suas aproximações dos linguistas, daí a
formulação de um novo objeto nas ciências da linguagem e, em consequência, pelo seu
modo de formulação, nas ciências humanas: o discurso, pensado junto à ideologia
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(ORLANDI, 2012b, p. 14).
Epistemologicamente, a análise do discurso proposta por Michel Pêcheux emerge da articulação de
três áreas do conhecimento científico: o materialismo histórico, a Linguística e a teoria do discurso.
Pêcheux e Fuchs (2010) justificam-nas da seguinte maneira:
I. O materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações,
compreendida aí a teoria das ideologias;
2. a linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao
mesmo tempo;
3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos.
(PÊCHEUX; FUCHS, 2010, p. 160).
Nessa perspectiva, para a Análise do Discurso interessa a forma como a língua é praticada,
produzindo sentidos, dentro da sociedade e da história, constituindo-se pela contradição das três áreas
supracitadas e não a soma de ambas, vale pontuar. Como afirma Orlandi (2012a, p. 20):
[...] trabalhando na confluência desses campos do conhecimento, irrompe em suas
fronteiras e produz um novo recorte de disciplinas, constituindo um novo objeto que vai
afetar essas formas de conhecimento em seu conjunto: este novo objeto é o discurso.
Como versa o próprio nome, o objeto de estudo da AD é o discurso. Não é a língua, nem o texto, nem
a fala, embora a AD necessite desses elementos linguísticos para existir materialmente. Na análise de
discurso fundada por Michel Pêcheux, a concepção de discurso acarreta toda uma declinação teórica do
que se entende por sujeito, sentido, memória, história, sociedade, língua, ideologia, dentre outras.
(ORLANDI, 2012b). A noção de discurso está, pois, ligada à noção de sentido e, para falar em discurso,
devem ser considerados, ainda, os elementos que existem no social, as ideologias e a História. Isto porque:
*...+ o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc., não existe “em
si mesmo” *...+ mas, ao contrário, é determinado pela posições ideológicas que estão em
jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são
produzidas (isto é, reproduzidas). (PÊCHEUX, 2009, p. 146).
Daí, então, dizer-se que os sentidos não são fixos, prontos e acabados, bem como não são
construídos de forma ingênua e aleatória, sendo, porém, ideologicamente construídos. É delicado precisar,
portanto, qual o sentido de determinado texto ou mesmo o que alguém quis dizer. A AD não corrobora
com o sentido exato, dicionarizado, denotativo, imutável, visto que não há um sentido central, apenas
margens. (Orlandi, 2012c), o que se concebe como literal é ideológico. Há, nos enunciados, os pontos de
deriva: o lugar em que sentido pode ser outro, o efeito metafórico. De acordo com Pêcheux:
[...] uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhes seria
próprio, preso a sua literalidade; nem, acrescentaremos, sentidos deriváveis a partir dessa
literalidade por meio de uma combinatória lógico-linguística que domaria sua
ambiguidade [...] o sentido é sempre uma palavra, uma expressão, ou uma proposição por
uma outra palavra, uma outra expressão ou proposição [...]. De fato, o sentido existe
exclusivamente nas relações de metáfora (realizadas em efeitos de substituição,
paráfrases, formações de sinônimos), das quais certa formação discursiva vem a ser
historicamente o lugar mais ou menos provisório: as palavras, expressões e proposições
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recebem seus sentidos da formação discursiva à qual pertencem (PÊCHEUX, 2009, p. 239240, grifos do autor).
Ser assujeitado – isto é, sempre constituído por formações discursivas e ideológicas – é a primeira
característica que se pode atribuir ao sujeito da análise do discurso e também o que diferencia este campo
teórico, dentre outros aspectos, de teorias e correntes de estudo, como a Pragmática e a Análise do
Discurso Crítica. Ao invés de considerar o sujeito como origem e dono do dizer, a AD o concebe como um
sujeito que é submetido tanto a regras sociais, como à língua e a ideologias, o qual não controla os
sentidos, embora tenha a ilusão de que o faça, e, sendo assim, não é intencional. É livre apenas para
escolher à qual formação discursiva se filiar quando enuncia, uma vez que sempre fala de um lugar. Tratase ainda de um sujeito clivado, dividido, ora interpelado pela ideologia, ora pelo inconsciente (vozes
sociais). Como bem descreve Grigoletto:
O sujeito da AD não é o indivíduo, sujeito empírico, mas o sujeito do discurso, que carrega
consigo marcas do social, do ideológico, do histórico e tem a ilusão de ser fonte do
sentido. A teoria do discurso trabalha a ilusão do sujeito como origem, através dos
processos discursivos, mostrando que linguagem e sentido não são transparentes
(GRIGOLETTO, 2005, p. 1).
A noção de formação discursiva pode ser considerada como um ponto fulcral nos estudos
pecheutianos. Nas palavras de Gregolin (2011, p.162):
O conceito de FD é central para o desenvolvimento do edifício teórico da AD. Ele sinaliza a
constante refacção a que a teoria do discurso foi submetida na obra de Pêcheux, já que,
por meio das reconfigurações desse conceito, ele trabalha a linha tênue entre a
regularidade e a instabilidade dos sentidos no discurso.
Em Pêcheux (2009, p. 147), lê-se que uma formação discursiva deve ser entendida como
aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa
conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e
deve ser dito (articulado sobre a forma de uma arenga, um sermão, um panfleto, uma
exposição, um programa etc.) a partir de uma posição dada numa conjuntura.
Dessa maneira, entende-se que o sujeito, ao enunciar, não é livre para dizer o que quer, visto que
sempre fala de um lugar, inscrito em uma FD e se apropria de discursos que estão disponíveis para ele. Os
indivíduos, segundo Pêcheux, são interpelados em sujeitos pelas formações discursivas, as quais
representam, na linguagem, as formações ideológicas que lhes são correspondentes, e o sentido de suas
palavras é oriundo da formação discursiva onde são produzidos. Daí, a possibilidade de uma mesma palavra
mudar de sentido ao passar de uma FD para outra, ou palavras distintas, no interior de um FD, ter o mesmo
sentido.
As formações discursivas são heterogêneas, conforme destacamos, apresentam aspectos de outras
formações discursivas e a relação entre ambas; dentro de um mesmo texto, por exemplo, pode ser de
confronto, de sustentação mútua, de exclusão etc. (Orlandi, 2012c). Em suma: “A formação discursiva é,
enfim, o lugar da constituição do sentido e da identificação do sujeito. É nela que todo sujeito se reconhece
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(em sua relação consigo mesmo e com os outros sujeitos) *...+”. (Orlandi, 2012c, p. 78).
Acerca das formações discursivas diz-se, ainda, que estas são componentes das formações
ideológicas, as quais podem comportar uma ou várias formações discursivas interligadas. A noção de
formação ideológica está, pois, ligada às posições sociais que o sujeito ocupa. Pêcheux pega a noção de FD
já abordada por Foucault e faz alterações, incluindo a questão da ideologia, abandonada por este. Vale
ressaltar, contudo, que, para a análise materialista do discurso, a ideologia não é vista como ocultação da
realidade, nem recebe um sentido negativo (ORLANDI, 2012b). Michel Pêcheux re-significa essa noção e
trabalha o discurso associado a ideologia.
De acordo com Orlandi (2012a, p. 46, 47), “a ideologia é a condição para a constituição dos sujeitos e
dos sentidos”; os sentidos, por sua vez, “é uma relação determinada do sujeito – a afetado pela língua –
com a história.”. É no discurso que observamos a relação entre a língua e a ideologia, ao passo que esta
tem no discurso a sua materialidade específica. Nas (poéticas) palavras da autora supracitada:
[...] a materialidade específica da ideologia é o discurso e a do discurso é a língua,
podemos dizer que, sem o discurso, não há materialidade específica. [...]. Assim, não se
pode pensar o real sem a relação discurso/ língua. E a ordem própria da língua, sua não
transparência liga-se à materialidade do discurso (e a fecundá-la decorre) (ORLANDI,
2012b, p. 76).
Na esteira dessas discussões, Pêcheux e Fuchs (1997, p.166), consideram que “*...+ cada formação
ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem individuais nem
universais, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as
outras”. De acordo com Pêcheux, faz-se necessário entrar na ordem do discurso para se constituir sujeito.
Os indivíduos são interpelados em sujeitos pela ideologia.
Ideologia e inconsciente vêm juntos, se
apresentam juntos, não há anterioridade de um em relação ao outro. (ORLANDI, 2012b).
De acordo com Lagazzi (1988), a formação ou as formações discursivas só podem ser atingidas
através da noção de condições de produção, que, segundo a autora, Pêcheux definiu como sendo “ao
mesmo tempo o efeito das relações de lugar no interior das quais se encontra inscrito o sujeito, e a
“situação” no sentido concreto e empírico do termo *...+”. Lagazzi salienta que, quando as condições de
produção do discurso não são consideradas, a análise se torna incapaz de explicar o funcionamento
discursivo. As condições de produção, assim como o contexto, são constitutivas do sentido, explica Orlandi
(2011).
Sumariamente, as condições de produção compreendem os sujeitos e a situação, assim como a
memória. (ORLANDI, 2012a). Repetindo Pêcheux: “Memória deve ser entendida aqui não no sentido
diretamente psicologista da “memória individual”, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da
memória social inscrita em práticas e da memória construída do historiador.” (PÊCHEUX, 2010a, p. 50). Um
discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas, explica Pêcheux:
[...] por exemplo: o deputado pertence a um partido político que participa do governo ou
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a um partido da oposição; é porta-voz de tal ou tal grupo que representa tal ou tal
interesse, ou então está “isolado” etc. Ele está, pois, bem ou mal, situado na relação de
forças existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado: o que diz, o
que anuncia, promete ou denuncia não tem o mesmo estatuto conforme o lugar que ele
ocupa; a mesma declaração pode ser uma arma temível ou uma comédia ridícula segundo
a posição do orador e do que ele representa, em relação ao que diz [...]. (PÊCHEUX, 2010b,
p. 75-76 - grifo e aspas do autor).
As condições de produção envolve o sujeito, o macro, a memória, a qual retrata uma realidade
através dos discursos. Segundo Pêcheux (2010b, p. 78), “é impossível analisar um discurso como um texto,
isto é, como uma sequência linguística fechada sobre si mesma, mas que é necessário referi-lo ao conjunto
de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção” (grifos do autor).
Outra concepção, sobremaneira importante para se compreender o funcionamento do discurso, bem
como sua relação com os sujeitos e a ideologia, segundo Orlandi, é o fato de que há um interdiscurso, um já
dito, que também faz parte das condições de produção, definido por ela, com base nos escritos de
Pêcheux, como “*...] todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos.
Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que ela já façam sentido” (ORLANDI, 2012a, p. 33).
Assim, tudo o que já se disse sobre o homem do campo, volta a significar nos quadrinhos de Maurício de
Sousa. Nas palavras de Pêcheux: “*...+ ‘algo fala’ (ça parle) sempre ‘antes, em outro lugar e
independentemente, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas” (PÊCHEUX, 2009, p.
149).
A noção de interdiscurso é, pois, basilar nos estudos pecheutianos, visto que parte-se do princípio de
os discursos surgem a partir de já-ditos e não de forma aleatória. Há, porém, neste campo do saber
controvérsias sobre a concepção da referida noção. Segundo Michel Pêcheux (2009, p. 148-149), “toda
formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela se constitui, sua dependência ao
“todo complexo com dominante” das formações discursivas, intrincado no complexo das formações
ideológicas *...+”.
Contudo, ressalta Orlandi (2012a), não se deve confundir interdiscurso com intertexto: apesar de os
dois mobilizarem relações de sentido, o interdiscurso, todavia, é da ordem do saber discursivo, memória
afetada pelo esquecimento, ao longo do dizer; ao passo em que o intertexto restringe-se à relação de um
texto com outros textos, e aqui o esquecimento não é estruturante, como o é para o interdiscurso.
Tratando-se de esquecimento no discurso, nos estudos pecheutianos podem-se observar duas
formas: o esquecimento número dois, da ordem da enunciação; e o esquecimento número um, conhecido
como esquecimento ideológico.
Concordamos em chamar esquecimento nº 2 ao “esquecimento” pelo qual todo sujeito
falante “seleciona” no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de
enunciados, formas e sequências que nela se encontram em relação de paráfrase – um
enunciado, forma ou sequência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo
que poderia reformulá-lo na formação discursiva considerada .Por outro lado, apelamos
para a noção de “sistema inconsciente” para caracterizar um outro “esquecimento”, o
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esquecimento nº I, que dá conta de o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar
no exterior da formação discursiva que o domina (PÊCHEUX, 2009, p. 16 - grifos e aspas do
autor).
O esquecimento número dois se refere ao momento que enunciamos: ao falarmos, fazemo-lo de
uma forma e não de outra e, enquanto isso, formam-se famílias parafrásticas, as quais mostram que o dizer
sempre podia ser outro. É esse esquecimento, pois, que produz nos sujeitos a impressão da realidade do
pensamento, ou seja, fá-lo acreditar que há uma relação direta entre linguagem, pensamento e mundo, de
maneira que o leva a pensar que o que fora dito só poderia ser com aquelas palavras e daquela maneira.
(Orlandi, 2012, a). Trata-se de um esquecimento parcial, pré-consciente, visto que, dentro de uma FD, o
sujeito pode selecionar uma palavra do léxico, por exemplo, “ocupação” ou “invasão”.
Já o esquecimento número um é da instância do ideológico e resulta da maneira como o sujeito é
afetado pela ideologia. Através desse esquecimento, tem-se a ilusão de ser a origem do dizer, quando, na
realidade, se retoma sentidos já existentes. Ilustra-se pelo sonho adâmico: ser o primeiro homem a proferir
as primeiras palavras, cujos significados fossem controlados.
De modo, correlato ao que já fora dito, duas outras noções também são fundamentais nesta teoria:
paráfrase e polissemia. Ambas se constituem, segundo Orlandi (2011, p. 116), como dois grandes processos
da linguagem: a matriz e a fonte do sentido, respectivamente. A paráfrase, salienta Orlandi, é definida na
Análise de Discurso de modo diferente do da Linguística, assim como a metáfora é concebida de maneira
diferente da dos Estudos Literários.
Michel Pêcheux em sua AAD69 definiu a paráfrase de maneira composicional: “duas frases estão em
relação de paráfrase se a soma de suas partes constitui um mesmo sentido por identidade ou equivalência
lexical”, contudo, o próprio Pêcheux conclui que deve haver uma relativização no lugar da paráfrase, pois
reconhece que, dentre outras questões, um discurso não se limita à produção de significações por
substituição lexical (Pêcheux et al, 2010b, p. 275).
Orlandi, num estudo acerca dessas noções, pontua: "A polissemia se define como multiplicidade de
sentidos e paráfrase como sendo formulações diferentes para o mesmo sentido. A articulação entre
polissemia e paráfrase é que atribuo o jogo entre o mesmo e o diferente na linguagem” *...+ (ORLANDI,
2011, p. 84, grifos da autora). Dito de outra maneira: é no processo parafrástico que se encontra a
produção do mesmo sentido a partir de formas variadas e, ainda que proferido por diferentes
enunciadores, reafirma o mesmo sentido. No processo polissêmico, por outro lado, tem-se o
deslocamento, a ruptura dos processos de significação, ou seja, diferentes movimentos de sentidos no
mesmo objeto simbólico.
Na perspectiva da análise de discurso, o texto, unidade de análise, é visto como a unidade complexa
de significação, consideradas as suas condições de produção, e constituído no processo de interação
(ORLANDI, 2012c). É, pois, constituído de vários discursos, não importando, assim, o que ele significa, mas
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como significa. Desse modo, discorda da ideia de que os sentidos estão prontos e únicos no texto e que
podem ser apreendidos por um leitor, que, por sua vez, assume um lugar passivo e em nada contribui no
momento da leitura para considerá-lo como uma atividade complexa de geração de sentidos.
3. Um pouco das histórias em quadrinhos
Os gêneros discursivos surgem e se integram na cultura de uma sociedade não só por suas
características linguísticas, mas também pela realização comunicativa que estabelecem. Os gêneros
discursivos, então, “podem ser definidos como tipos relativamente estáveis de enunciados produzidos e
reproduzidos nas diversas esferas de comunicação pelos integrantes dos diversos campos de atividade
humana” (MIOTELLO; TURATI, 2011, p.288).
As HQS, assim como outros textos, são construídas a partir de certa leitura de mundo num
determinado momento da sociedade. É sabido também que vários são os motivos que inspiram os autores
a criar as estórias, desde motivos particulares, a motivos mais gerais, e, como sujeitos, os seus discursos
são constituídos com base em uma formação discursiva, representando a ideia que se tem sobre algo, e
não outra, para ter um sentido e não outro; logo, os sentidos são determinados ideologicamente, conforme
explica Orlandi (2012a). Consoante Quella-Guyot (1994, p. 73) “o que as histórias em quadrinhos revelam
são visões de mundo particulares de uma época e que se tornam, enquanto tais, testemunhos
insubstituíveis”. Quella-Guyot, citando Michel Pierre, pontua ainda que “*...+ a história em quadrinhos não é
ideologicamente ‘neutra’. Ela é uma imagem das ideologias e, por vezes, achando-se investida de uma
função de propaganda, é uma ideologia em imagens” (QUELLA-GUYOT, 1994, p. 72).
A origem das histórias em quadrinhos, segundo alguns estudiosos mais radicais, remonta à época das
pinturas rupestres. Ianonne e Ianonne (1994), por sua vez, admitem que, embora se possam encontrar
rudimentos das HQS na arte pré-histórica, os precursores desse gênero, tal como o conhecemos
hodiernamente, surgiram apenas na Europa, em meados do século XIX, com as histórias de Busch e de
Topffer.
Estudiosos apontam as inscrições que nossos antepassados deixaram nas cavernas, no
período pré-histórico, como a origem mais remota das histórias em quadrinhos. Talvez a
afirmação seja um tanto exagerada, mas o desenho é, sem dúvida, uma das formas mais
primitivas de expressão utilizada pelo homem. Precursores ou não dos quadrinhos, os
desenhos pré-históricos foram a maneira pela qual os homens, desconhecendo ainda a
escrita registraram suas impressões sobre o dia-a-dia ou fatos que consideraram
importantes (IANNONE;IANNONE,1994, p 18).
Os referidos autores salientam que o primeiro herói dos quadrinhos nascia no fim do século XIX, com
o Menino Amarelo (Yellow Kid), desenhado por Richard Outcault e publicado semanalmente no jornal New
York World, personagem esse que trouxe uma importante inovação para época: o texto não vinha mais no
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rodapé do desenho, mas sim, junto aos personagens, o que lhes conferia mais vitalidade. Em seguida,
foram incorporados os balões, até hoje, o locus da linguagem verbal nas HQS. (MENDONÇA, 2010).
As histórias em quadrinhos, de acordo com Iannone (1994), nasceram nos Estados Unidos, onde
foram batizadas de comics – palavra inglesa que significa “cômico ou humorístico”, haja vista que, no início,
os conteúdos das HQS eram predominantemente humorísticos. A expressão tornou-se universal e ainda é
utilizada, inclusive para designar histórias que não são de caráter cômico.
No Brasil, durante algum tempo (até meados de 1960), as histórias em quadrinhos foram chamadas
de “historietas em quadrinhos” ou apenas “historietas”, numa suposta apropriação da palavra em
espanhol. As revistas em quadrinhos ou revistinhas receberam o diminutivo devido ao formato reduzido a
partir dos anos 50 e do público para o qual eram destinadas: crianças e adolescentes. O termo “gibi”, por
sua vez, nasceu de uma famosa revista semanal lançada em 1939 por Roberto Marinho. (GONÇALO
JÚNIOR, 2004).
Durante um grande período, as histórias em quadrinhos não foram bem vistas pela sociedade: sob
pena de transformarem negativamente o caráter das crianças e jovens, os quadrinhos foram
estigmatizados e, não menos, considerados subliteratura, subarte ou mesmo leituras superficiais,
carregadas de erros gramaticais. Para muitos, ler quadrinhos era perda de tempo. Eram, portanto, meios de
desnacionalização das crianças, além de incentivadoras do crime, da prostituição, do homossexualismo.
Nas palavras de Cirne (1971, p. 9):
Durante muito tempo as estórias em quadrinhos foram tidas e havidas como uma
subliteratura prejudicial ao desenvolvimento intelectual das crianças. Sociólogos
apontavam-nas como uma das principais causas da delinquência juvenil. Aos poucos,
porém, foi-se verificando a fragilidade dos argumentos daqueles que investiam contra os
quadrinhos: uma nova base metodológica de pesquisas culturais conseguiu estruturar a
sua evolução crítica, problematizando-os a partir do relacionamento entre a
reprodutibilidade técnica e o consumo em massa, que criariam novas posições
estético-informacionais para a obra de arte.
Como resultado desse histórico, resquícios de preconceitos respigaram sobre as histórias em
quadrinhos durante muitos anos, mas paulatinamente o cenário apresenta mudanças, visto que:
Houve um tempo no Brasil em que levar histórias em quadrinhos para a sala de aula era
algo inaceitável. Era um cenário bem diferente do visto no início deste século. Quadrinhos,
hoje, são bem-vindos nas escolas. Há até estímulo governamental para que sejam usados
no ensino. Vê-se uma outra relação entre quadrinhos e educação, bem mais harmoniosa.
A presença deles nas provas de vestibular, a sua inclusão no PCN (Parâmetro Curricular
Nacional) e a distribuição de obras ao ensino fundamental (por meio do programa
Nacional Biblioteca na Escola) levaram obrigatoriamente a linguagem dos quadrinhos para
dentro da escola e para a realidade pedagógica do professor (RAMOS, 2014, p. 13).
Contudo, apesar dos avanços, é comum que se veja, nas histórias em quadrinhos, uma forma de
literatura, pensamento reforçado com as adaptações em quadrinhos de clássicos literários, pontua Ramos
(2014):
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Chamar quadrinhos de literatura, a nosso ver, nada mais é do que uma forma de procurar
rótulos socialmente aceitos ou academicamente prestigiados (caso da literatura, inclusive
a infantil) como argumento para justificar os quadrinhos, historicamente, vistos de
maneira pejorativa, inclusive no meio universitário. Quadrinhos são quadrinhos. E, como
tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usa mecanismos próprios para representar
os elementos narrativos. (RAMOS, 2014, p. 21)
Ainda sobre os quadrinhos, é pertinente relatar que existe uma diversidade de gêneros os quais têm
em comum o uso da linguagem dos quadrinhos; são exemplos os cartuns, as charges, as tiras cômicas etc.
Desse modo, de acordo com Ramos (2014), os quadrinhos seriam um grande rótulo que agrega vários
gêneros e compartilham uma mesma linguagem em textos predominantemente narrativos. Linguagem essa
que possui uma série de recursos para representar a fala, sendo os balões sua principal identificação como
linguagem (RAMOS, 2014). Pode-se dizer que, visualmente, as histórias em quadrinhos são facilmente
identificáveis, dada a particularidade dos quadros, dos desenhos e dos balões. Contudo, as HQS revelam-se
um gênero tão complexo quanto os outros no que tange a seu funcionamento discursivo. (MENDONÇA,
2010).
4. Chico Bento Moço e as confusões na cidade grande: breve análise do corpus
Tendo como suporte teórico-metodológico a Análise de Discurso de linha pecheutiana , o objetivo
deste trabalho, como já fora dito, consiste em analisar como a representação do homem do campo é
construída nas histórias em quadrinhos de Chico Bento Moço, personagem do cartunista Maurício de
Sousa, bem como discutir como tais representações estão ligadas ao interdiscurso, ao já-dito sobre o
homem do campo e quais sentidos podem ser recuperados a partir das formações discursivas (FD) e de
quais formações ideológicas (FI) – ou de qual – estas FD são provenientes. Selecionaram-se para tanto dois
momentos da história “Vida na República”, edição nº 2 de Chico Bento Moço.
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Figura 1. Chico Bento despertando de um sonho. Fonte: SOUZA, Maurício de. Chico Bento Moço, nº 2, Ed.
Panini, p. 8.
O episódio Vida na república tem início com Chico Bento despertando de um sonho onde a roça era o
palco. Ao se deparar com seu modo de fala habitual, acorda desesperado, policiando sua fala e sentindo-se
aliviado pelo fato de não haver ninguém acordado para ouvi-lo no momento em que o “caipirês” veio à
tona: Onde...? Os pasto... Galinheiro... Sumiu! [...] Ara... Foi só mais um daqueles sonho, sô! Opa! Tenho que
tomar cuidado para não falar ansim! Digo... Assim! Bom, não tem ninguém acordado para ouvir meu
caipirês! (p. 8). Tal episódio interessa-nos pelo funcionamento da ideologia da língua como restrita a um
único padrão, em que se descaracterizam outros modos de falar, bem como torna natural o sentido de que
as pessoas da cidade falam da maneira correta (apenas!), enquanto o morador do campo fala “caipirês”,
considerado errado, e, portanto, estando em um ambiente urbano, o modo de falar deve ser adequado.
Em outros momentos da história, o personagem volta a se autocorrigir: “*...+ Peguei! Sorta! Sorta!
Digo, solta! Solta! “(p. 26). Discursivamente, isso se deve, segundo Pechêux, às formações imaginárias que
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aparecem no processo discursivo através da antecipação. Articulando de maneira mais explícita: o
enunciador – neste caso, Chico Bento – idealiza uma representação imaginária do enunciatário, a cidade e
seus habitantes, e, a partir dessa representação, procura suas estratégias no discurso: quem sou eu (Chico
Bento) para lhe falar assim, e quem é ele – ou quem são eles – para que eu lhe (s) fale assim. Pode-se dizer
que a norma padrão é a forma legitimada dentro de uma sociedade. A ideia do bem falar e escrever se
perpetuou e tem seu espaço. Contudo, pensar que a língua se resume apenas a determinadas regras é
subestimá-la.
Provavelmente, Chico Bento aprendeu na escola ou até ouviu falar de que na cidade, diferente da
roça, as pessoas falam de maneira “correta”. Como um sujeito marcado ideologicamente – ora interpelado
pela própria ideologia, ora pelas vozes, inclusive a da escola – estando em um ambiente citadino, deve agir
como tal. E outra vez torna a corrigir sua fala: “Vai ser uma beleza dividir o teto com oceis... Digo, vocês! (p.
29). E outra: Oia... Digo, olha como fala! [...].(p. 56). Em outras palavras: a ortografia do certo ou errado.
(Orlandi, 2012b).Ora, não podemos pensar o campo ou a cidade sem levar em consideração que ali existem
sujeitos e sentidos e que a ideologia está sempre em funcionamento nesta relação, bem como a ideia de
que a linguagem é um fato social e é por ela que o sujeito se constitui e planeja sua relação com o grupo.
(Orlandi, 2012b).
A ideologia de que o ambiente urbano representa o desenvolvimento e o ambienta rural, o atraso
(por não se adequar a determinadas normas), pode ser observada nesse trecho, pelo uso da linguagem
caipira. Ainda sobre esse aspecto, de acordo com Possenti (2012) não é aceitável aplicar grafias erradas
apenas à forma de falar de Chico Bento, pois, dessa maneira insiste-se na tese equivocada de que só os
grupos que ele representa falam assim, e é sabido que várias marcas da fala de Chico Bento são comuns a
todos, mesmo aos cultos e, não menos, aos citadinos.
Da mesma forma, visto que todo processo
discursivo, de acordo com Pêcheux, presume a existência dessas formações imaginárias, acontece com os
novos colegas de Chico Bento: como sujeitos discursivos, já projetavam uma imagem sobre as pessoas que
vivem no campo, oriundas, certamente, de processos discursivos anteriores.
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Figura 2. Momento em que Chico Bento chega a república de estudantes. Fonte: SOUZA, Maurício
de. Chico Bento Moço, nº 2, Ed. Panini, p. 14
Ao chegar à república, utilizando roupas e alguns objetos não muito comuns na cidade, Chico Bento
foi tido como objeto de gozação por parte de seus novos colegas: De onde ele fugiu? De um programa
humorístico? [...] Manda embora esse ator e traz seu primo de verdade! (p. 30). As palavras fugir,
programahumorístico e ator, no contexto ora utilizado, evoca-nos a situações e pessoas que se
caracterizam para fazer a diversão alheia, como palhaços e atores que se travestem para satirizar ou
caricaturar algum personagem e cujo objetivo é obter o riso de seu público, dentre outros. O fato de ter
“fugido” atesta efeitos de sentidos de que, segundo aquele sujeito, Chico Bento ainda se encontrava com
as roupas utilizadas na apresentação e não estaria, portanto, apresentável àquela situação. Dessa maneira,
Chico Bento fugia da representação natural de um homem da cidade, sendo visto sob o olhar do
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estranhamento. Podem-se recuperar os já ditos com a ideia de que “todo homem do campo é caipira, não
sabe se vestir, é cafona”. Logo, tem-se a vestimenta não apenas como algo por cima da pele, que cobre a
nudez, trata-se, também, de uma “pele social” (Orlandi, 2012b), que caracteriza a integração do sujeito a
um determinado grupo e uma diferença para os que estão fora deste. Sujeito e corpo, assim, se constituem
numa dimensão para a produção dos discursos (Milanez, 2011).
O termo caipira fora utilizado em vários momentos pelos colegas de Chico Bento, como vocativo ou
para caracterizá-lo. Entretanto, este não aceitava a ideia de ser chamado assim, posto que tinha um nome
e este deveria ser utilizado. A palavra caipira, originada do tupi – curupira, estritamente falando, designa a
população rural do interior de São Paulo e se refere ao universo da cultura rústica desse estado; contudo,
não se restringiu apenas à área de influência histórica dos paulistas, antes se refere à população rural e
tradicional do Brasil. Identifica um modo de vida e não um tipo racial. Adjetivou-se e é comumente utilizada
para caracterizar o estilo de vida “isolado e antiquado” dos habitantes de áreas rurais, em contraponto ao
modo de vida urbano. (Cândido, 1964 citado por Bortoni-Ricardo, 2011).
Dessa maneira, a sociedade, marcada pela história, constrói uma imagem acerca do morador do
campo e esse imaginário, por sua, vez exerce influência entre os sujeitos e suas posições. Observando-se a
construção da frase, verbos como zombar, achincalhar, debochar etc. poderiam ser usados na formulação
sem acarretar problema algum. Tal expressão nos permitiria a formulação de paráfrases, quais sejam:
Poxa/ Puxa! Outra vez zombando de mim! e Droga! Outra vez debochando de mim! Ambas coincidindo
com posições-sujeitos distintas da principal e evidenciando uma posição cuja fala é mais característica do
ambiente urbano. Nessas condições, pode-se observar como os modos de produção estão ligados a uma
forma social: Ara! e caçoar , então, funcionam claramente para marcar, outra vez, o discurso “caipira” de
Chico Bento.
Além de caipira, outras palavras e expressões foram utilizadas para caracterizar Chico Bento durante
sua chegada à cidade: gente da roça (p. 13); bicho do mato (p. 14), caipira (p. 35), o maior de todos [caipira]
(p. 35), muito caipira (p. 34), Caipirão, caipira da gema, matuto épico etc., conforme observaremos a
seguir. Nesses processos discursivos, formaram-se as famílias parafrásticas.
Expressões como “caipira da gema” e “um legítimo espécime de matutis caipirandus” corroboram
com a ideia de que há uma discrepância entre o morador do campo e o da cidade, tomando-os como seres
de espécies diferentes, conforme se verifica no enunciado em itálico, que, por sua vez, marca a presença de
um discurso transverso: “Venham ver! Venham ver uma curiosidade científica! *...+ Vejam! Um legítimo
espécime de matutis caipirandus!” (p. 32-33). Trata-se de um discurso científico derivado de
caracterizações científicas de espécies de animais, conforme pode ser observado pela formulação do nome.
De um modo geral, nas ciências biológicas, os estudiosos utilizam o nome científico das espécies estudadas,
pois, trata-se de um código universal para nomear plantas e animais. Chico Bento, dessa maneira, deixa de
ser discursivizado como um ser humano e caracterizado como um animal, de cujo nome cientifico deriva
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suas características: matuto e caipira. Palavras essas já utilizadas em outros momentos, conforme se
percebeu durante esta análise.
“Caipira da gema”, por sua vez, retoma já-ditos como “carioca da gema”, expressão comumente
utilizada para designar a pessoa que nasceu e cresceu no Rio de Janeiro. Diz-se, também, que "da gema" se
refere a quem nasce em um determinado lugar, assim como seus pais e outros ascendentes familiares.
Houve aí um deslizamento de sentido não apenas para afirmar que Chico Bento nasceu e cresceu na zona
rural, mas para reafirmar o discurso de alguém oriundo do interior, com pouca instrução.
“Matuto épico”, isto é, não apenas matuto, aquele que habita na roça, ignorante, dentre outros
possíveis significados; mas um matuto épico, vale salientar. Historicamente, o termo épico nos remonta a
Literatura: o gênero Épico, os grandes poemas épicos, a exemplo dos Lusíadas, de Camões, ou seja, algo
histórico e grandioso. Chico Bento, então, seria um caipira memorável, o maior de todos. Tem-se aqui, uma
tensão entre paráfrase e polissemia. A repetição do mesmo, que permite a possibilidade de um
deslizamento de sentido.
Todas as expressões supracitadas, assim como outras já cristalizadas, como o termo “jeca”, ratificam
a construção discursiva estereotipada sobre esse segmento social brasileiro. São discursos disponibilizados
pelo interdiscurso, que influenciam no modo como cada sujeito significa em uma dada situação discursiva
(Orlandi, 2012). Ora, tudo o que é dito em relação ao campesino na análise em questão, já fora dito, em
outro lugar, em algum momento, e, por sua vez, estabelece sentido em relação à atitude de Chico Bento
em se diferenciar dos citadinos utilizando um chapéu.
Há ainda a ação da ideologia que naturaliza a ideia de que existem povos superiores a outros. Nesse
caso, o superior é o homem da cidade, enquanto o homem do campo é inferiorizado. A partir do que fora
dito, temos sujeitos inscritos na formação discursiva que subestima o morador do campo, legitimando
assim ideologias de que todo aquele que não vive na cidade é matuto, ignorante, bobo.
5. Considerações finais
A análise desse corpus possibilitou a apreensão de alguns dos sentidos possíveis e nos permite
concluir que o homem do campo é comumente visto/representado como alguém que desconhece a cidade,
até nas coisas mais simples, com visão restrita apenas ao campo e suas particularidades e que, ao se
deparar com a área urbana, apresenta comportamento avesso ou até ridículo.
Dessa maneira, pudemos constatar que a ingenuidade do homem do campo é oposta à dinâmica e a
racionalidade apresentada pelos personagens da cidade. Entretanto, como tentamos mostrar em outros
momentos, há uma ingenuidade exacerbada, a qual chega a ridicularizar o morador rural, colocando-o, por
vezes, em situações vexatórias; consequentemente, este é visto de maneira estereotipada pelos “urbanos”.
Pode-se dizer que, neste percurso, alguns sentidos sobre o homem do campo foram silenciados: não
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se diz sobre o agricultor que trabalha no setor primário da economia e fornece subsídios para os demais
setores. Outrossim, silenciou-se o fato de que os moradores do campo têm acesso à escola, e prova disso é
o próprio Chico Bento que ingressou na Universidade através do vestibular, dentre outros. Temos, então, a
representação do homem do campo, um segmento social brasileiro, de maneira bem marcada,
estereotipada, construída, então, a partir de já-ditos, ou seja, de outros discursos já constituídos acerca
destes. Por fim, de acordo com Milanez (2011, p. 294) “As identidades não são dadas. Elas se constroem na
relação entre os sujeitos e sua história.”. Vale ressaltar que, para a análise de discurso, os sentidos não se
esgotam, sendo, portanto, pertinentes outras análises e, provavelmente, outras possibilidades de verificar
como esse texto significa.
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Abstract: This paper is a part of a Master Course’s research developed in the Post-Graduation Program in Language
and Culture (PPgLinC) of the Federal University of Bahia – UFBA, which aims at analysing the way in which the
discoursive representation of the country man occurs in the comic books of Chico Bento (Moço), a Mauricio de
Souza’s character. For this work, some pieces of the magazine Chico Bento Moço: confusões na cidade grande will be
taken as the corpus. The magazine narrates the arrival of this teen character to Nova Esperança city, where he’s going
to study Agronomy. Thus, having as basis the theoretical and methodological approach of Discourse Analysis
developed by Michel Pêcheux, this paper aims at analyzing the discoursive and ideological formations related to the
country man, conveyed in the cited stories above, observing how they relate themselves with the interdiscourse. To
do so, the social elements, ideologies, History, conditions of production will be considered, having as basis the idea of
that discourses are not fixed, but transform themselves and follow the social changes of humanity, as Fernandes
(2008) enphasizes, being constructed in History and by History.
Keywords: discourse; comic books; country man; city; ideology.
AZEVEDO, Illa Pires de | I CIED (2015) 338-355
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UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA DO CONTO:
“A CARTOMANTE”
Ione Vier DALINGHAUS (UFMS)1
[email protected]
Anailton de Souza GAMA (UEMS)
[email protected]
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a obra de Machado de Assis, “A Cartomante” (1999) à luz dos postulados
da semiótica greimasiana. Porém, antecipando a análise, far-se-á uma retomada teórica, no intuito de situar o leitor
quanto ao percurso a ser seguido. Greimas (1998) propõe três níveis de estudo analíticos: nível narrativo ou
intermediário, nível fundamental ou profundo e nível discursivo ou superficial, podendo-se depreender de cada nível
citado, um componente sintático e um semântico. Nesta análise, exploram-se, portanto, os diferentes níveis,
mostrando-se, por meio de teorias e de exemplos extraídos da narrativa, a construção do sentido no texto. Este
trabalho, ancorado em Barros (1986; 1999; 2003) e Fiorin (1990; 2006; 2010), além de outros autores que se dedicam
a estudos semióticos, objetiva somar-se a outros estudos que têm como foco as obras machadianas e, dessa maneira,
valorizar a literatura clássica brasileira.
Palavras chave: semiótica francesa; percurso gerativo de sentido; narrativa; conto machadiano; performance.
1. Introdução
Como o próprio título anuncia, o presente artigo propõe-se a analisar a construção do sentido no
conto “A Cartomante”, obra de Machado de Assis publicada, originalmente, na Gazeta de Notícias do Rio
de Janeiro, em 1984. O estudo ampara-se na semiótica greimasiana (semiótica do discurso ou semiótica
francesa), cuja teoria foi inaugurada na década de 60, ganhando espaço efetivamente no início da década
de 1970, época em que se notavam os maiores avanços no nível narrativo.
Tomando o texto como objeto de significação, a semiótica estuda os mecanismos que o constituem
como um todo significativo. Pode-se dizer que os semioticistas tentam descrever e explicar o que o texto
diz e como ele faz para dizer o que diz, isto é, descreve-se o percurso realizado para gerar o sentido
desejado. Trata-se de uma teoria em constante processo de constituição que promoveu uma ruptura com
estudos relativos à significação dos textos.
Na perspectiva dos estudos semióticos, significar é atribuir “sentido” a uma experiência,
examinando-se os valores, por meio das ações do sujeito (dessas ações). É essa busca do objeto que
constitui a performance do sujeito. Em outras palavras, o sentido se origina da quebra de uma situação de
harmonia e da necessidade de sua retomada.
No entanto, para que o sujeito inicie o percurso, ele precisa entrar em conjunção com o objeto, seja
por desejo ou por obrigação. É necessário, portanto, o querer-fazer ou o dever-fazer. Para ser considerado
1
Doutoranda em Letras - Linguística – DINTER - Universidade Presbiteriana Mackenzie SP e UFMS, MS.
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competente, este sujeito precisa não só querer-fazer, mas sim, poder-fazer e saber-fazer. É nesse momento
que entra o destinador-manipulador, cuja função é motivar ou estimular o sujeito da ação. A manipulação
ocorre por intimidação, provocação, tentação e sedução, termos que serão elucidados no decorrer deste
trabalho.
Enfatiza-se que a execução da performance depende do próprio destinador que pode ser uma
instituição, outro sujeito ou ele próprio. Terminando o percurso, há um destinador-julgador que julga o
sujeito e a ação realizada. Nesta etapa, verifica-se se o contrato inicial foi cumprido e, a partir dessa
informação, é aplicada ou não uma sanção, que pode ser um prêmio ou um castigo, dependendo, é claro,
do resultado apurado.
Convém lembrar que a semiótica, antes voltada especialmente ao aspecto narrativo do texto, tem
ampliado seu foco de análise para a enunciação. Além de examinar qualquer tipo de texto, dedica-se
também à comparação dos enunciados analisados. Analisa-se, por um lado, a enunciação como
organização sintática narrativa, o sujeito da enunciação e, por outro, trata-se da enunciação em um
conjunto de textos. Portanto, busca-se a identidade do sujeito-ator, que na verdade não é o autor de carne
e osso. Estudam-se suas ações na narrativa, as manipulações que ocorrem entre enunciador e enunciatário
e também as sanções que ocorrem em função de determinadas ações.
No percurso gerativo sugerido por Greimas, distinguem-se plano do conteúdo e plano da expressão,
uma vez que todo e qualquer texto tem um plano de expressão e um plano de conteúdo. O plano de
expressão pode ser entendido de várias formas, funcionando como uma espécie de suporte, como a
manifestação de algo que se apresenta para os nossos sentidos e exige uma “decodificação”. É pertinente
dizer que alguns textos, os chamados textos sincréticos, são constituídos por mais de uma categoria:
sonora, visual, verbal, etc., misturando o visual e o verbal, os sistemas simbólicos visual e verbal e os
sistemas semissimbólicos visual e verbal.
Assim, todo processo de significação é justamente esse momento de passagem do plano de
expressão para o plano de conteúdo. Essa noção (de passagem do plano de expressão para o plano de
conteúdo) não é fácil de ser apreendida, porque estamos imersos no senso comum, que erroneamente
acha que para cada coisa há apenas um significado. Cotidianamente, no entanto, o ser humano se
confronta com situações nas quais essa “divisão” aparece com mais clareza.
A semiótica está preocupada com o plano de conteúdo, mas é através do plano de expressão que
adquire o sentido. Em muitos processos de significação tem-se acesso ao plano de expressão, mas não ao
conteúdo. A busca pelo significado se dá, justamente, nessa passagem do plano da expressão para o plano
de conteúdo.
Convém dizer que esse processo não é natural, inocente, nem individual; cada um de nós está imerso
em uma visão de mundo que nos impede de dar sentido a certas experiências e possibilidades e, por outro
lado, dar foco e reforço a outras. Cada um de nós também introjeta discursos para explicar nossos
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problemas, sonhos, dificuldades, desejos. Dar significado a qualquer coisa é, portanto, deixar-se dominar
por todas essas coerções, não importa o grau de consciência que se tenha do processo.
A teoria semiótica caracteriza-se, segundo Barros (1986, p. 31) “por propor uma abordagem interna
do objeto, procurando chegar ao sujeito por meio do texto” por meio de uma explicação do plano de
conteúdo que se organiza por um percurso gerativo de sentido “cujas etapas são susceptíveis de
explicações autônomas” e que conta com três patamares: a) nível das estruturas fundamentais; b) nível das
estruturas de superfície e; c) nível das estruturas discursivas. Como o percurso gerativo do conteúdo é
independente da manifestação por uma expressão particular (verbal ou não-verbal), pode-se explicar o
plano de conteúdo de um texto visual no mesmo quadro teórico em que se analisam textos verbais.
Ainda, conforme Barros (1986), a relação entre expressão e conteúdo pode ser considerada de duas
formas distintas em qualquer sistema de significação. A expressão é a face do signo que pode tornar-se
sensível em qualquer ordem sensorial e que suporta ou expressa o significado, o conteúdo. Outra forma de
relacionar expressão e conteúdo são os sistemas semissimbólicos secundários que geralmente expressam
uma oposição semântica entre dois termos. Os sistemas semissimbólicos não se instauram entre termos
isolados, mas entre categorias, enquanto os sistemas simbólicos têm relação termo a termo, entre os dois
planos.
Mendes (2012) pontua que “Em vista disso, estruturalistas como A. J. Greimas e outros teóricos
interessados nos mecanismos internos do texto buscaram estabelecer modelos que, a partir de estruturas
mais profundas e abstratas, predissessem as configurações narrativas mais concretas.” Algirdes Julien
Greimas é, portanto, o fundador de um novo projeto científico, cuja preocupação fundamental incidiria
sobre a construção do sentido no âmbito textual. Esta teoria, inicialmente denominada Semântica
Estrutural (Greimas, 1973), deu origem ao que hoje se conhece como semiótica.
Lembra Tatit (2006, p. 189), que “o projeto de Greimas tinha, como meta, a descrição do que Louis
Hjelmlslev denominou ‘forma do conteúdo’, uma espécie de estrutura geral da significação que subjaz aos
textos, sejam eles verbais ou não-verbais.” Assim, também de acordo com Tatit, a semiótica concebe,
desde seus primórdios, uma teoria para a análise do conteúdo humano “que se manifesta em dimensão
transfrasal, independentemente da configuração textual escolhida para a sua organização e difusão.”
Assim, por meio da teoria semiótica de Greimas, a qual dá sustentação a este trabalho, podem ser
analisados diferentes textos, tanto visuais como verbais como músicas, filmes, pinturas, textos literários,
etc. Neste trabalho, optou-se pelo texto literário como objeto de análise, um conto repleto de suspense e
mistério, características marcantes dos contos machadianos. Utilizando-se do recurso da intertextualidade,
Machado induz o leitor a refletir sobre o comportamento humano, sempre num clima de muito suspense e
mistério. “Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia.”
Esclarece-se que Hamlet e Horácio são personagens de uma das mais famosas peças de Shakespeare em
que Horácio é conselheiro de Hamlet, príncipe da Dinamarca, único a saber que o herói finge loucura.
DALINGHAUS, Ione Vier; GAMA, Anailton de Souza | I CIED (2015) 356-369
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Hamlet se caracteriza pela indecisão, e a peça realiza o jogo entre o agir e o pensar. Este mesmo jogo pode
ser facilmente identificado na obra selecionada para o presente trabalho.
Pretende-se, pois, nesta análise semiótica, apresentar a construção do sentido a partir dos três níveis
de estudo propostos por Greimas (1998): nível narrativo ou intermediário, nível fundamental ou profundo
e nível discursivo ou superficial, podendo-se depreender, de cada nível citado, um componente sintático e
um semântico. Considerando-se esses três patamares, a enunciação é vista como instância da mediação.
Pontua Fiorin (2010, p. 36), que sendo “a enunciação a instância constitutiva do enunciado, ela é a instância
linguística logicamente pressuposta pela própria existência do enunciado.”
Para melhor compreensão da análise, apresentamos brevemente os personagens ou actantes do
conto e a relação existente entre eles: Vilela, Camilo, Rita e a Cartomante. Os dois primeiros são amigos de
infância. Vilela segue a carreira de magistrado e a convivência entre os três gera intimidade. Rita, casada
com Vilela, passa a ser amante de Camilo. A cartomante, que aparentemente tem papel secundário, detém
o fazer persuasivo e é considerada a principal responsável pelo trágico desfecho.
2. Percurso gerativo dos sentidos
Para Barros (2008, p. 188) a noção deste percurso gerativo vai do mais simples e abstrato ao mais
complexo e concreto; há assim, enriquecimento e concretização do sentido da etapa mais simples e
abstrata à mais complexa e concreta, ou seja, os elementos que se manifestam na superfície do texto estão
já ‘enriquecidos’ e ‘concretizados’ e provêm, metodologicamente, de relações semânticas mais simples e
abstratas; cada uma dessas relações é explicada por uma gramática autônoma, muito embora o sentido do
texto dependa da relação entre os níveis.
A primeira etapa do percurso, a mais simples e abstrata, é a do nível fundamental, em que a
significação se apresenta como uma oposição semântica; no segundo nível, o narrativo, organiza-se a
narrativa do ponto de vista de um sujeito e finalmente; na terceira etapa, a mais complexa e concreta, a
das estruturas discursivas.
O analista do percurso gerativo de sentido pode “entrar no texto” e entender como o objeto se
estrutura a partir de seu plano de conteúdo, na busca de um entendimento mais do caráter inteligível
(cognitivo) do que do sensível, desenvolvendo assim, uma única metodologia que, independente da
manifestação, pode ser utilizada para qualquer texto. Iniciemos, portanto, a nossa análise, pelo nível
narrativo.
2.1 Nível Narrativo
O percurso narrativo é conhecido também como percurso da ação ou do sujeito cujo esquema é a
Manipulação seguida da Ação e da Sanção. No percurso da Manipulação um sujeito leva o outro a fazer.
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Para Barros (1998, p.18): “*...+ é preciso reconhecer sujeitos humanos que realizam mudanças descritas
como operações lógicas, no nível fundamental”. A organização narrativa se torna discurso, graças aos
procedimentos de temporalização, espacialização, actorialização, tematização e figuritivização que
completam o enriquecimento e a concretização semântica, já mencionados.
Neste nível do percurso gerativo de sentido as perspectivas de análise dividem-se em sintaxe
narrativa e semântica narrativa. Naquela, destaca-se a trajetória em busca do objeto de valor. Ressalta-se
que a narrativa apresenta, na maioria das vezes, dois sujeitos ou mais – Sujeito A e Sujeito B – ambos
interessados no mesmo valor. Assim, a polêmica se dá quase sempre em torno do objeto.
Vale lembrar que neste nível, as categorias fundamentais são convertidas à ordem do fazer. Existem
dois tipos de enunciados elementares: os de estado, em que um sujeito está em relação de conjunção ou
de disjunção com um objeto, e os de fazer, em que se opera uma transformação na relação entre sujeito e
objeto. Essa transformação se dá, portanto, por disjunção para conjunção ou vice-versa. As operações de
aquisição e de perda de objetos correspondem, respectivamente, à afirmação e à negação de valores no
nível fundamental.
Em “A Cartomante”, Rita e Camilo são mutuamente Sujeito e Objeto do desejo, pois se procuram
reciprocamente. Inicialmente temos como destinador/manipulador Rita, cujo destinatário é Camilo. No
momento em que ele aceita a proposta dela, ambos passam a manipular Vilela e a própria sociedade, pois
o casamento é um contrato de fidelidade e este é violado em segredo.
A relação dos dois passa por conflitos a partir do momento em que surge a primeira carta anônima.
Quando a dúvida toma conta de Rita, esta visita uma cartomante. Camilo diz não acreditar em cartomantes
e confessa que “*...+ em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que
a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. [...] limitava-se a negar tudo. Portanto, como
acreditaria numa cartomante”?
No entanto, Camilo estremece ao receber, em seu trabalho, um bilhete de Vilela pedindo-lhe que
viesse até sua casa o mais rápido possível. “*...+ Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora”. Por
ironia do destino, coincidência, mas principalmente por insegurança, Camilo procura a mesma cartomante
antes visitada pela amada. Ela o tranquiliza: “Vá, vá, ragazzoinnamorato”. E assim volta a confiar que está
tudo bem e corre para seu destino: “A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas
felizes de outrora e nas que haviam de vir. [...] Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até
onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo,
interminável”.
Notam-se aí várias transformações em Camilo que, antes incrédulo, ria de Rita quando esta relatava
sobre a cartomante. E ela dizia: — Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Porém, antes de
ir à casa de Vilela, Camilo visita a cartomante que o convence. Mas deixa de acreditar novamente quando
chega à casa de Vilela e se depara com a cena cruel de homicídio, da qual passa a fazer parte: “Vilela não
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lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando,
Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e
ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão”.
A cartomante tem, portanto, papel decisivo nesse desfecho, pois detém o fazer persuasivo e pode
ser considerada a principal responsável pelo final trágico, por iludir os dois sobre a inexistência de perigo,
incentivando-os a continuarem o romance secreto.
Os elementos de manipulação, já mencionados neste trabalho, funcionam de diferentes formas,
dependendo de quem é o manipulado. Na tentação, o Sujeito oferece um valor positivo; na intimidação,
um valor negativo que representa uma ameaça ao destinador; na provocação, faz-se uma imagem negativa
da competência do outro e, finalmente, na sedução, faz-se uma imagem positiva do outro, ou seja, do
destinatário.
Sabe-se que toda a comunicação é uma manipulação (seja para o bem ou para o mal), mas é
pertinente lembrar que nem sempre o destinador manipula intencionalmente. Para Barros (1998, p.27) a
intencionalidade é a tensividade fundamental com um começo e um fim. Rita manipula intencionalmente
seu Objeto de valor, por meio da tentação. O excerto a seguir evidencia a referida manipulação: “Camilo
quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o
todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca”.
Portanto, o destinatário cede, deixando-se seduzir completamente por Rita, põe de lado os
escrúpulos, tornando-se um cego de juízo, que não vê mais nada, vive intensamente, sem enxergar a
realidade e o rumo que as coisas vão tomando. Assim, a ação de Rita resulta em dupla apropriação, pois
esta passa a ser também o Objeto de valor de Camilo. A partir do momento em que entram num acordo,
vivenciam um amor proibido, desapropriando Vilela, marido e amigo.
A narrativa aborda o adultério, a traição, a paixão proibida; o que se observa na narrativa é a ruptura
aos padrões romanescos, nos quais a mulher e o homem sofriam de amor e reprimiam essa paixão ou esse
amor por temer a si mesmos e à sociedade. A inadaptação à vida e à sociedade conduziam-nos ao
escapismo, às fantasias e ao sonho.
A destinadora/manipuladora, Rita, é construída ao longo da narrativa como uma mulher corajosa e
amante da paixão, pois, enfrenta não somente o medo de Camilo (amante), mas a sociedade vigente para
viver uma profunda e alucinante paixão. ”*...+ Rita estava certa de ser amada, Camilo, não só o estava, mas
via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia
deixar de sentir lisonjeado”.
A destinadora/manipuladora apresenta-se fielmente em seus desejos carnais mais íntimos, sutil, e
inquiridora e nunca ingênua, mas também com um comportamento um tanto duvidoso. Quando Rita e
Camilo se conhecem, observamos a iniciativa de Rita, evidenciando ser uma mulher além do seu tempo,
desinibida, comunicativa, talvez por ser a mais velha do triângulo: “*...+ É o senhor? Exclamou Rita,
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estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor” nos mostra
o perfil de uma mulher além do tempo; desinibida, comunicativa e a mais velha do triângulo amoroso que,
por isso mesmo, é uma mulher realista, que enfrenta seus medos, desfruta de paixões, luta pelo que quer.
sem medo de sofrer as consequências.
O triângulo se intensifica quando a mãe de Camilo vem a falecer. *...+ “Como daí chegaram ao amor,
não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela... Liam os mesmos livros,
iam juntos a teatros e passeios... Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam
muitas vezes os dele, que os consultavam antes de fazê-lo ao marido”. Camilo reconhece que aquela paixão
proibida feriria o seu melhor amigo, mas seu coração já estava tomado pelo amor de Rita e a ela pertencia
“*...+Rita como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num
espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca *...+”.
"Adeus, escrúpulos!" Daí em diante o triângulo está consumado.
Cartas anônimas começam a ser enviadas a Camilo alcunhado nelas de "imoral e pérfido" por violar
a convenção social da fidelidade no matrimônio e por desconsiderar a sinceridade do amigo. As cartas
anônimas perturbam o comportamento do casal: Camilo carrega em si o sentimento de medo e covardia;
Rita se desdobra em leviandade e inconsequência.
Rita procura a cartomante para reconquistar a confiança, mesmo sabendo que seu romance com
Camilo um dia traria muitos conflitos para os amantes e o esposo Vilela. As características de Rita elencadas
anteriormente ajudam-na a se convencer da verdade do que a cartomante "lê" nas cartas: Camilo continua
a amá-la e, diferentemente de Rita, oscilando entre a incredulidade e a ironia, ouve, "por outras palavras"
que há mais mistérios no céu e na terra do que supõe a nossa filosofia. E como ele ainda graceja, Rita
arremata (em discurso indireto): “Se ele não acreditava paciência; mas o certo é que a cartomante
adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita”.
Ao tomar conhecimento dos fatos, Vilela, o esposo traído, ganha espaço e vida na narrativa; até
então, Sujeito manipulado, passa a ser o Sujeito manipulador. Utiliza-se da intimidação enviando um
bilhete a Camilo para que este venha a sua casa (dever- fazer) “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem
demora.” O bilhete não deixa claro o objetivo e Camilo fica na dúvida. Porém, ao atender à solicitação do
“amigo” lhe concede a competência para o fazer. “Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu
que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; porque em casa? Tudo indicava matéria especial, e a
letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da
véspera.”
Barros (1999, p. 85) define a competência como “um tipo de programa narrativo em que o
destinatário sujeito recebe do destinador, a qualificação necessária à ação.” Entendendo-se, desta forma,
pode-se afirmar que a cartomante também concedeu competência a Vilela ao convencer Rita e depois, a
Camilo sobre a inexistência de perigo. Ao mesmo tempo, Camilo enfrenta em sua consciência o sentimento
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de covardia e a necessidade de agora ter de enfrentar seus erros e assumi-los.
Ocorre então a
performance, um programa narrativo em que a ação do sujeito do fazer leva à transformação do sujeito de
estado.
Quando Camilo chega à casa de Vilela, este se vinga, mostrando o corpo de Rita já sem vida e
estirado ao chão e matando o amante dela em seguida. Este é o denominado percurso da sanção, última
etapa do esquema da Manipulação, em que, de acordo com Postal, (2007, p. 83), distribuem-se prêmios ou
castigos. É importante enfatizar que o percurso da sanção é sempre de dois tipos: Sanção Cognitiva
(reconhecimento) ou Sanção Pragmática (punição ou recompensa). Nesta narrativa, a sanção foi
pragmática, resultando no assassinato de Rita e Camilo.
Ainda no nível narrativo, vale informar que, “A Cartomante” reflete a contradição entre as
modalidades veridictórias ser/parecer, em que o que parece e é, corresponde à verdade e o que parece e
não é, corresponde à mentira/falsidade. Observe-se que Camilo parecia ser amigo de Vilela; Rita parecia ser
fiel a Vilela; este parecia não saber da traição e a cartomante parecia dizer a verdade. No entanto, ao final,
caem todas as máscaras e confirmam-se a mentira e a falsidade.
De acordo com a teoria greimasiana, este jogo de máscaras pode ser ilustrado, definindo-se um eixo
principal, o dos termos de oposição ser/não ser que, por sua vez estabelecem uma relação de contradição
negando-se a si próprios: ser versus não-ser e parecer versus não-parecer. Assim, a mentira equivale ao
parecer e não ser, em que se enquadram perfeitamente a cartomante, Camilo e Rita.
Podem-se estabelecer também, neste texto, quatro sequências narrativas, cujas ações são realizadas
pelos actantes: Camilo, Rita, Vilela e a Cartomante. Na primeira, ocorre uma ação secreta movida por Rita
(actante 1), que por meio da tentação e sedução manipula o seu destinatário. Resulta, dessa ação, uma
alteração no nível do ser de Camilo (actante 2) que muda seu comportamento também em relação ao
amigo Vilela, marido de Rita (actante 3), distanciando-se dele. Tem-se assim, o percurso da sanção do
reconhecimento, isto é, uma sanção cognitiva.
Na segunda sequência, o actante 3, Vilela, toma conhecimento dos fatos e começa “*...]a mostrar-se
sombrio, falando pouco, como desconfiado”. Ocorre então uma mudança de apropriação para uma
privação reflexiva, isto é, o actante 2 reconhece o perigo: “Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por
algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se
com lágrimas”. Constata-se, aqui, uma ameaça de privação do Objeto desejado e novamente uma sanção
cognitiva.
Na terceira sequência, o actante 3 acaba com a farsa, matando primeiramente a mulher e, em
seguida, o amante. “Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para
uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé,
estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto
no chão”. Tem-se aí, a sanção pragmática, isto é, a punição.
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A última sequência relatada corresponde à desapropriação ou espoliação, pois Camilo e Rita perdem
o Objeto desejado e a própria vida. Com a morte dos dois, acabam o casamento, o adultério, a amizade, o
amor, o medo e a vida. O percurso de sanção identificado é, novamente, de ordem pragmática, uma vez
que as personagens recebem a punição pelos atos praticados.
2.2 Nível fundamental
Esta etapa da geração do sentido se subdivide em semântica fundamental e sintaxe fundamental. Na
primeira, estudam-se as relações de oposição e contraste entre os termos-objeto, de forma mais abstrata.
Na segunda, observam-se as mudanças de estado que ocorrem durante a trajetória das personagens.
Explica-se que na gramática semiótica, a sintaxe e a semântica estabelecem relação de dependência,
partindo-se do abstrato para o concreto.
De acordo com Fiorin (1999):
Uma categoria semântica é uma oposição tal que a vs b. Podem-se investir nessa relação
oposições como vida vs morte, natureza vs cultura, etc. Negando-se cada um dos termos
da oposição, teremos não a vs não b. Os termos a vs b mantêm entre si uma relação de
contrariedade. A mesma coisa ocorre com os termos não a vs não b. Entre a e não a e b e
não b há uma relação de contraditoriedade. Ademais, não a mantém com b, assim como
não b com a, uma relação de implicação. Os termos que mantêm entre si uma relação de
contrariedade podem manifestar-se unidos. (FIORIN, 1999, p. 4)
Pode-se dizer que, no início da trama, Camilo e Rita viviam em estado de felicidade e satisfação, uma
relação amorosa aparentemente tranquila. Na semiótica greimasiana, as transformações de estado em
relação ao Objeto de valor do Sujeito são enunciados de estado que podem ser assim representados: S ∩ O
(estado de conjunção) ou S U O (estado de disjunção), sendo o primeiro relacionado com a euforia e, o
segundo, com a disforia. Assim, no começo da narrativa, os sujeitos Camilo e Rita parecem felizes,
satisfeitos, portanto, em estado de conjunção com o Objeto de valor: S ∩ O. Porém, a tranquilidade e a
confiança são ameaçadas por cartas anônimas recebidas por Camilo, alterando-se o estado dos dois,
colocando-os em disjunção: S U O.
O adultério é, pois, causador da mudança de estado, pois ambos estão interessados no mesmo
objeto de valor, a felicidade. Enfatiza-se que no conto em análise, o Objeto de valor está nos próprios
actantes, Camilo e Rita, que vivem momentos especiais de felicidade até ser descoberta a traição.
Depreende-se assim, uma oposição semântica fundamental:
Vida/felicidade (euforia) X Morte/infelicidade (disforia )
Conforme dito acima, no nível da sintaxe fundamental observam-se as mudanças de estado que
ocorrem durante a trajetória dos actantes. Na obra tomada como objeto de análise, as atitudes de Camilo
mudam ao ceder à sedução/tentação de Rita, que age intencionalmente. “*...+ Camilo era um ingênuo na
vida moral e prática. Nem experiência, nem intuição”. O personagem passa por um processo de
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transformação, adquirindo experiência e perda da inocência. Ambos traem, sem escrúpulos, e tornam-se
dependentes um do outro.
Negam-se, assim, os valores presentes na ingenuidade e afirmam-se os da astúcia. A partir do
momento em que ficam juntos, rompe-se o contrato da fidelidade até então existente entre Rita e seu
esposo. Constata-se, na verdade, uma dupla infidelidade, pois Rita deixa de ser fiel ao marido e Camilo
deixa de ser fiel ao melhor amigo.
Como já explicitado, na Semiótica, as transformações das personagens são explicadas pelas
categorias semânticas eufórica e disfórica. De acordo com Barros (1998, p. 24): “Eufórica á a relação da
conformidade do ser vivo com o meio ambiente, e disfórica, sua não conformidade.”
Finalizando
esta
etapa
da
análise,
sintetizamos
as
transformações
ocorridas:
Vida/felicidade/confiança (eufóricas); tensão/ conflito/ incerteza e morte (disfóricas). Pode-se afirmar,
portanto, que o texto em análise é disforizante.
2.3 Nível discursivo
Passamos à terceira e última fase de análise do percurso gerativo de Greimas: a das estruturas
discursivas. Nesta etapa, o sujeito da enunciação “desdobra-se num enunciador e num enunciatário”
(FIORIN, 1990, p. 40). Aquele, realiza um fazer persuasivo, ou seja, tenta convencer o enunciatário,
enquanto este realiza um fazer interpretativo.
No nível da sintaxe discursiva e de acordo com o esquema dos focos narrativos apresentados por
Friedman (1967, Apud BARROS, 1998, p. 83) tem-se no conto “A Cartomante”, uma narrativa em terceira
pessoa, em que o narrador pode ser classificado como onisciente, pois domina o relato e demonstra saber
até mais que os próprios personagens. Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à
cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. De acordo com
D’Onofrio (1983, p.172), “o conto apresenta uma plurifocalização: ao discurso em terceira pessoa do
narrador, que dá um tom de objetividade à narrativa, se alterna o discurso em primeira pessoa das
personagens que assumem momentaneamente o papel de narradores”. Entende-se, no entanto, que o
discurso das personagens está subordinado ao do narrador. Os interlocutores falam somente por meio de
debreagens de segundo grau.
No conto em análise, o narrador não participa dos acontecimentos, mas para torná-los mais reais,
utiliza-se alternadamente dos discursos direto e indireto, recurso frequentemente utilizado nos textos
literários e denominado debreagem alternada. A debreagem enunciva (enunciado) provoca um efeito de
subjetividade, pois a terceira pessoa é projetada no discurso (aquele de quem se fala), não relacionando o
espaço e o tempo diretamente com o momento da enunciação. Na debreagem enunciativa – (enunciação)
provoca-se um efeito de maior aproximação e objetividade, pois o discurso é realizado em primeira pessoa,
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num tempo e espaço determinados (eu/ agora/ aqui). Exemplifica-se: “— Bem, disse ela; eu levo os
sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e
rasgo-a *..+”.
Denomina-se, portanto, debreagem ou desembreagem “A operação e os procedimentos pelos quais
a enunciação realiza a projeção mencionada. “*...+ Com a desembreagem criam-se, ao mesmo tempo, o
sujeito, o tempo e o espaço da enunciação e a representação actancial/actorial, espacial e temporal do
enunciado.” (BARROS, 1998, p. 74). Para Benveniste (1966, Apud BARROS, 1998, p.74), a categoria de
pessoa, explorada na debreagem actancial, articula-se em /pessoa (eu/tu) / vs. / não-pessoa (ele).
Na sintaxe do discurso, os efeitos de realidade decorrem, em geral, dessas debreagens internas,
criando-se a ilusão de situação real. (POSTAL, 2007, p. 86) O discurso direto é, portanto, um recurso
utilizado para dar mais veracidade à narrativa, uma das características da grande maioria das prosas
literárias, especialmente nas obras de Machado de Assis.
Em relação aos tempos enunciativos, a narrativa não segue uma linearidade e é através de um olhar
retrospectivo que o narrador apresenta as personagens, intercalando o modo indicativo (presente,
pretérito imperfeito e pretérito perfeito): “Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra
do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sextafeira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a
diferença é que o fazia por outras palavras. [...] Apenas começou a botar as cartas, disse-me: ‘A senhora
gosta de uma pessoa...’ Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim
declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade.”
Ora, a cartomante é um tipo de mulher que, conhecedora dos anseios e medos que afligem uma
sociedade, aproveita-se da situação para tirar proveito de pessoas inflexíveis. Assim, aproveitando-se do
momento e da pessoa, a cartomante joga com sentimentos e anseios do consultado e Rita é manipulada
pela mulher que sabe e pode fazer o jogo da manipulação.
O conto remete a princípios de 1869, quando “[...] voltou Vilela da província, onde casara com uma
dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado”. Apesar de não estarem
explícitas no texto outras descrições de tempo, constatam-se na narrativa, frequentes referências ao
passado: “Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices,
que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram”. Observam-se também, o tempo presente e a
progressão temporal na reflexão de Camilo, em relação ao bilhete que recebera de Vilela: “Vem, já, já, para
quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto.”
Em relação aos espaços enunciativos, tem-se neste conto a casa de Vilela e Rita, a casa de Camilo, a
cada da cartomante e o local dos encontros secretos: “A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos,
onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo,
onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante”. Em
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relação à casa da cartomante, o narrador fez questão de mostrar detalhes. É possível ver os
encadeamentos dos espaços neste fragmento, em que Camilo chega à casa da adivinha. “[...] enfiou pelo
corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso [...] Dali
subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha,
mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar
de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio”.
Todas estas características remetem a um espaço sombrio, melancólico e perigoso, como um
prenúncio do que aconteceria em seguida com Camilo e Rita. Coexistem, portanto, duas forças
contraditórias que moldam o sujeito no espaço da narrativa: o espaço aberto, da felicidade que vivem os
amantes e o espaço fechado e sombrio da casa da cartomante, que podem ser assim representados:
Vida (espaço aberto)
X
Morte (espaço fechado)
Barros (1998, p. 115) enfatiza que “Temas e figuras, relacionados, repetem, no nível discursivo, a
conciliação e a diferenciação das duas dimensões da linguagem, a abstrata e a figurativa.” Lembra que é
possível obter-se mais de um percurso temático a partir de um mesmo valor.
“A Cartomante” revela como Machado de Assis interpreta o comportamento humano: um ser que
por amor e paixão é capaz de trair, correr riscos de morte. Camilo e Rita, vivendo um romance secreto,
extrapolam o poder-fazer e o poder-ser, por dois motivos: por ela ser casada e, mais que isso, casada com o
amigo dele. Demonstra-se assim a hipocrisia, a falta de escrúpulos do ser humano. A cartomante, por sua
vez, representa a ilusão e a mentira, capazes de mudar completamente o destino de uma pessoa, como
aconteceu no desfecho deste conto.
No percurso das estruturas fundamentais, visto anteriormente, ocorre uma ruptura no modo de ser
de Camilo em relação a valores sociais, especialmente em relação ao casamento, à moral e à família.
Evidencia-se assim, a oposição entre ingenuidade e astúcia, que negam os valores relacionados à vida e
afirmam os valores relacionados à morte.
3. Considerações finais
O presente estudo propôs-se a analisar, à luz dos postulados da semiótica greimasiana, uma das mais
conhecidas obras de Machado de Assis, “A Cartomante”. A retomada teórica evidencia que existem
diferentes caminhos para explorar o sentido na obra literária, cabendo ao analista escolher o que considera
o mais pertinente para cada tipo de estudo. Neste trabalho, a análise seguiu os três níveis de estudo
analíticos propostos por Greimas (1998) – nível narrativo ou intermediário, nível fundamental ou profundo
e nível discursivo ou superficial – o que nos permite fazer as considerações que seguem:
“A Cartomante” é uma obra literária de suspense que leva a uma reflexão mais profunda sobre o ser
humano, a exemplo de muitos outros contos escritos por Machado de Assis. O sentido se constrói por meio
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de valores contraditórios, em que a cartomante tem função significativa, pois interfere no comportamento
das personagens, utilizando-se da mentira e falsidade.
A expectativa negativa projetada no leitor, no início da narrativa, é quebrada quando aparece a
cartomante que tranquiliza o casal. O efeito contraditório é causado no desfecho, com a morte de Rita e
Camilo. Por isso, tudo indica que, sem a personagem cartomante, os efeitos literários não teriam sido os
mesmos, pois tanto ela quanto o narrador tentam decifrar o comportamento humano.
“A Cartomante” é, portanto, um conto que reflete a contradição entre a máscara e o desejo, entre o
parecer e o ser, a mentira e a verdade, em que a punição é a pior possível, a morte.
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DALINGHAUS, Ione Vier; GAMA, Anailton de Souza | I CIED (2015) 356-369
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Abstract: The aim of this paper is to analyse Machado de Assis´ work, “A Cartomante” (1999) in the light of the
Greimasian semiotics. Before the analysis, a theoretical revision is done to situate the reader in relation to the
trajectory to be followed. Greimas (1998) proposes three levels of analytical study: narrative or intermediate level,
fundamental or profound level and discursive or superficial level. From each level a syntactic and semantic component
is grasped. Therefore, in this analysis different levels are exploited, through theories and examples extracted from the
narrative, meaning making within the text. This work, based on Barros (1986; 1999; 2003) and Fiorin (1990; 2006;
2010), among other authors who dedicate to semiotic studies, intends to add to other studies which focus on Machado
de Assis´ work and in this way valorize the Brazilian canonical literature.
Key words: French semiotics; meaning gerative process; narrative; Machado´s short story; performance.
DALINGHAUS, Ione Vier; GAMA, Anailton de Souza | I CIED (2015) 356-369
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Análise Crítica do Discurso para o estudo da
inclusão/exclusão de LGBT na imprensa brasileira
Iran Ferreira de MELO (UPE)
[email protected]
Resumo: Este trabalho consiste na análise de como homossexuais, bissexuais e transexuais (LGBT) são
representados/as na Folha de S. Paulo. O material que serviu de corpus ao trabalho foi composto por notícias sobre a
realização do evento denominado Parada do Orgulho LGBT na cidade de São Paulo. Propusemos investigar o discurso
produzido por notícias e, aqui, relataremos a análise da visibilidade includente ou excludente de LGBT, isto é, a
verificação de quão visível é, na Folha, o fato noticioso em tela e seus participantes – principalmente LGBT – a partir
de um exame de elementos contextuais da prática particular de publicação jornalística desse periódico, bem como do
olhar sobre as estruturas da notícia na imprensa descritas por van Dijk (1996). Para desenvolvermos o relato de como
procedemos e do que constatamos, apresentamos aqui o registro dos resultados por ocorrência de publicação
(identificando quantas notícias sobre a Parada o jornal veiculou), por ocorrência de Resumo na capa (presença de
elementos como Abertura, Chamada e Foto-legenda), por tipo de caderno e por ocorrência de Resumo no caderno
(indicando a ocorrência de Chapéu, Linha fina, Olho e Intertítulo).
Palavras-chave: LGBT; discurso; representação; visibilidade; imprensa.
1. Overview do trabalho
Neste estudo, analisamos notícias que nos serviram de dados sobre a representação de LGBT no
discurso da Folha de S. Paulo (publicadas de 1997 a 2012). Em tais textos, encontramos elementos que
surtem efeitos de sentido diversos e que nos auxiliam a entender como LGBT “chegam” Brasil afora por
meio desse jornal. Como exposição da quantidade e qualidade desses elemntos, relataremos, neste
trabalho, o conjunto de exames que fizemos do grau de visibilidade que LGBT receberam nas referidas
notícias sobre a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo que coletamos na Folha.
Dividimos o estudo em dois momentos: no primeiro, fizemos um relato descritivo dos dados, uma
análise descritiva; já, no segundo, procedemos a uma leitura dos constituintes descritos no primeiro
momento, buscando interpretá-los como prática particular de representação dialeticamente integrada à
rede de práticas maior que é a conjuntura histórica do ativismo LGBT, uma análise interpretativa. A análise
descritiva foi subdividida em duas seções: (1) Inicialmente, fizemos um panorama histórico-descritivo, ano
a ano, das edições das Paradas e das notícias, composto por resumos de importantes informações sobre o
evento e seus contextos sociopolíticos, bem como por transcrições das notícias que compõem nossos
dados; (2) em seguida, registramos o modo de