- Oi Futuro
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Gloria Ferreira Alteridades recíprocas∗ PP. 2-7/12/28/41/53 etc.: numeração das páginas de um catálogo de um artista indicando os créditos das fotos. Embora um procedimento generalizado, no caso específico, essa numeração refere-se, em uma dada publicação, a fotografias de Wilton Montenegro. Sua atual exposição, Notas do Observatório, nos propõe um processo invertido na percepção dessas imagens de reprodução dos trabalhos de arte: um olhar, de certa maneira, oblíquo, potencializando, por um momento, a plasticidade da própria imagem. Plasticidade e apuro que os artistas jamais deixaram de levar em conta ao privilegiar parcerias com fotógrafos que permitissem encontrar não apenas luzes e enquadramentos adequados, mas a construção de uma imagem passível de, ao veicular o seu trabalho de arte, inscrevê-lo de modo específico nessa imagem, como uma de suas situações de visibilidade. Até porque, se esse tipo de trabalho fotográfico exige uma especialização técnica, exige igualmente um olhar poético, um testemunho. Qualidade presente no trabalho de Wilton Montenegro, reconhecida e louvada pelos artistas. Troca, como declara Antônio Manuel que “permite um diálogo na realização do trabalho”. Ou ainda, segundo Enrica Bernadelli, referindo-se ao olhar de Wilton, “redimensiona o trabalho”. 1 Suas fotos de obras de arte representam uma contribuição para a história visual da arte brasileira a partir do lugar privilegiado de onde vem observando a produção contemporânea desde os anos 80. Para Wilton Montenegro, “essa exposição é uma maneira de devolver à arte contemporânea tudo aquilo que ela me propiciou, toda a poesia que pude acompanhar. Momentos particulares, intimidades”. Uma das singularidades de sua démarche é que esse é o seu trabalho fotógrafico, não compartilhado com outros, mais facilmente caracterizavéis como artísticos ou autorais. Ao focalizar suas atividades na reprodução de trabalhos de arte, o fotógrafo não ∗ Texto originalmente publicado in Glória Ferreira, org. Notas do Observatório, Wilton Montenegro: a arte contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Arco, 2006. 1 Conversas com os artistas nos Encontros com Wilton Montenegro in: Glória Ferreira, org., op. cit. 1 reivindica autoria em contradição com o trabalho, mas uma linguagem fotográfica como lugar de acolhimento da expressão da obra nessa imagem. É da prosa de Cortázar sobre a “pulsação de astros e enguias, anel de Moebius de uma figura do mundo onde a conciliação é possível, onde o anverso e reverso deixarão de se desgarrar” 2 que Wilton Montenegro retirou o título de sua exposição: Notas do Observatório. Exposição que adquire uma dimensão histórica por ser talvez a primeira e única a ter como centro o espaço discursivo desse gênero de fotografia, que não se pretende registro ou documentação, mas, como afirma o autor, “fotografia de uma obra de arte” e, assim, de sua inscrição no universo da imagem. Passagem, tradução, transcriação que, ainda segundo Wilton Montenegro, define seu processo de trabalho. Notas do Observatório refaz, de certo modo em um processo analógico, uma das características inerentes ao próprio dispositivo fotográfico e a sua inserção social: sua multiplicidade de pontos de vista e funções como instâncias que, apenas em sua articulação, permitem revelar seu universo. A mostra abrange o testemunho, na esfera privada do ateliê, o campo expositivo em que a obra se atualiza, como também a dimensão temporal da história da arte. E, de modo particular, a fotografia como veículo, suporte para a própria constituição da obra. Suporte não apenas enquanto materialidade do meio fotográfico, mas de um olhar a serviço de uma poética como em trabalhos de Daisy Xavier, Regina de Paula, Cláudio Paiva, entre outros. Fazendo parte de sua concepção, Notas do Observatório foi precedida por encontros com artistas e outros convidados em que, ainda em analogia com o dispositivo fotográfico, buscou-se trazer a multiplicidade de pontos de vista em que se explicitassem as vivências e reflexões sobre esse procedimento fotográfico e sobre o processo de trabalho de Wilton Montenegro. Conversas de grande riqueza e atualidade que, sem deixarem de tocar em processos específicos da fotografia de certas obras, alargam o campo de interrogações sobre a reprodução da obra de arte ou, parafraseando Walter Benjamin, da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Questões que remetem à longa história da reprodução de obras de arte e a suas mutações decorrentes dos meios de produção, objetivos e inserções no campo da arte. 2 Julio Cortázar. Prosa do Observatório. (1972) São Paulo: Perspectiva, 2005. Permeando o decurso de suas palavras, um belo ensaio fotográfico do autor apresenta os observatórios do sultão Jai Singh, em Jaipur, Delhi, construídos no século 18. 2 Da divulgação de cânones estilísticos dirigidos principalmente aos ateliês, a partir do final do século 15, com a disseminação da xilogravura e da nova tecnologia de produção de papel, à generalização da indústria e do comércio de imagens, com a água-forte, com a litografia e, posteriormente, com a fotografia, está em jogo a história da estruturação do sistema de arte e da demanda social de uma informação visual que será gerada pela Revolução Industrial. Essa generalização da reprodução das obras de arte não deixa de tecer relações com o desenvolvimento de uma atividade avaliativa, imaterial, de apreciação e julgamento, não mais restrita ao espaço privado da coleção, mas se exercendo no espaço público que o Salão inaugura. Migrações das imagens A emergência no século 19 de potentes redes internacionais de difusão, tanto de obras originais quanto de reproduções, nas quais os procedimentos fotomecânicos passam a deter a primazia, é plena de conseqüências sobre a própria produção artística. Conseqüências inseparáveis igualmente de intermediações, interações e atuais contaminações de toda ordem, que o dispositivo fotográfico introduz na práxis e nas linguagens artísticas. Os postulados e destinação das imagens guardam diferenças nas interpretações estéticas que permeiam o intenso debate sobre a reprodução de obras de arte. E sua atualidade, permanece. Não separadas da luta pela defesa de mercados, as querelas estéticas que marcam o final do século 19 contrapõem a reprodução das obras de arte por estampas e pela fotografia, sem que, contudo, diversas modalidades de interações entre esses meios de reprodução se façam presentes. Já no século 15 é corrente a prática de reprodução de imagens devotas ou de monumentos antigos feita pelos artistas como estudos e depois comercializada em forma de gravuras, como souvenir. Mantegna é tido como o primeiro artista a pensar em multiplicar sua obra pela gravura, embora seja com Rafael que se estabeleça, pela primeira vez, uma verdadeira empresa de gravura ligada a seu ateliê, com inúmeros gravadores e água-fortistas, voltada para a difusão de suas obras. 3 Diferente de Dürer ou, posteriomente, de Rembrandt, cujas gravuras têm o estatuto de obras de arte, as impressões realizadas por Marcantonio Raimondi eram consideradas trabalhos 3 Segundo Germain Bazin, com Rubens a organização para a difusão de suas obras ganha a potência de uma empresa, com 20 gravadores e água-fortistas trabalhando a partir de modelos feitos por ele ou por seus alunos, como Van Dyck, que acompanhavam todo o processo. Germain Bazin, “Révolution dans le monde des images”, in: Histoire de l’histoire de l’art. De Vasari à nos jours. Paris: Albin Michel, 1986. 3 autênticos de Rafael. Único gravador a ser honrado por Vasari em seu Vidas, 4 seus trabalhos foram, ao longo de mais de três séculos, avidamente colecionados e utilizados como modelos por artistas, entre eles Rembrandt, Delacroix ou Manet – que, por exemplo, baseia a iconografia do Déjeuner sur l’herbe em parte do Julgamento de Páris, 5 especialmente desenhado por Rubens para ser gravado. Raramente realizadas a partir de pinturas acabadas, mas sim a partir de desenhos preparados pelo pintor para esse fim, quer seja como esboços de suas pinturas ou composições mitológicas, essas gravuras veiculavam um repertório de figuras e gestos expressivos que poderiam ser constantemente variados e recombinados por outros artistas. A originalidade da gravura de Marcantonio Raimondi, cujo efeito era considerado o de uma pintura em branco e preto, garantindo-lhe certa independência e autoridade, advém de seu rigor e sistematização do emprego dos novos meios de reprodução para ilustrar exemplos de uso do estilo de Rafael e, posteirormente, de outros artistas. Prática que se inscreve nas raízes da tradição clássica, suas reproduções visavam aperfeiçoar e estabelecer, por intermédio da gravura, a idéia de um cânone artístico, o da Alta Renascença, chegando a ser aventado o fato de ele ter “inventado” um Rafael particular: o da academia. O interesse da história da arte pela ilustração desenvolve-se no século 18, embora desde Vasari (que era um grande colecionador), desenhos e estampas fossem utilizados como referências para a avaliação das obras dos artistas. Se os primeiros catálogos dos museus e dos salões não trazem ilustrações, disseminam-se as coleções justapondo representação e descrição detalhada, como no Catalogue Raisonné des tableaux de la Couronne de France, de 1752, ou ainda em Histoire de l’art par les monuments, 1823, de Séroux d’Agincourt, primeira obra de história da arte provida de abundante ilustração, obtida com gravura a traço. Na segunda metade do século 19, amplia-se a documentação artística em catálogos impressos, em que comentários explicativos são acompanhados de fotos, até de artes consideradas menores, como o mobiliário. Uma ampla prospecção fotográfica dos museus, com reproduções fotomecânicas dirigidas aos estudantes, é realizada em vários países da Europa, com a fundação de diferentes empresas, como a 4 Qualidades revisitadas na exposição, em 1966, na National Gallery of Art, em Washington. Em 1984, o Musée d’art et d’histoire, de Genebra, apresenta “Raphaël et la seconde main”. Para Vasari, “roundness and fullness derived from good judgment and design rather than the coarseness of living bodies”. Cf. Lives of the Artists. Harmonsworth: Peguin Books, 1965, p. 47. Cf. Catherine Wilkinson. “The engravings of Marcantonio Raimondi”. Art Journal, outono 1982. 5 Cf. Hubert Damisch. Le jugement de Pâris. Paris: Flammarion, 1992. 4 dos Fratelli Alinari, voltada para a reprodução dos quadros da Galleria degli Uffizi, ou ainda com o balcão de venda de reproduções fotográficas, aberto pelo Louvre em 1885. Entre outros exemplos, cabe assinalar a Bibliothèque photographique, instalada em Paris por Auguste Giraudin, em 1873, compreendendo as coleções dos grandes museus do mundo, como também fotos de exposições temporárias (sobrevivendo até 1953, foi posteriormente comprada pela Livraria Larousse). O Fundo da Maison Goupil, editor de arte entre 1827 e 1920, reunido no Musée Goupil, em Bordeaux, em 1991, indica, por exemplo, o fenomenal fluxo de imagens e o gigantesco mercado de reprodução de obra de arte, no qual se enfrentam litógrafos, gravadores e fotógrafos – fundo hoje disputado por diversas instituições internacionais. 6 Interpretação/naturalidade Os debates e as reflexões sobre os procedimentos e o status das reproduções das obras de arte ocupam artistas, críticos e historiadores, opondo a capacidade interpretativa da gravura, que pode tornar-se uma crítica em ato do que ela reproduz, e a reprodução automática, reflexo direto da obra do artista, desprovida de qualquer interpretação. Em La photographie et la gravure, de 1856, o historiador Henri Delaborde 7 declara a “impotência fatal” da fotografia – “efígie bruta da realidade” – para “discernir o que é necessário transcrever e o que é preciso interpretar”, condenada, assim, apenas a parodiar a aparência dos modelos que lhe são propostos – dois anos mais tarde, contudo, prefacia o álbum Œuvre de Paul Delaroche, photographiée par Bigham. Para o poeta e crítico Théophile Gautier, “nos enganaríamos estranhamente ao pensar que a fotografia reproduz como um espelho os objetos que lhe são apresentados. Quando se trata de pintura, a fotografia, apesar dos sentimentos burgueses que lhe são atribuídos, se faz artista e interpreta a sua maneira a tela exposta diante de sua objetiva”. 8 Apesar dos protestos e petições contra a fotografia, “praga destruidora da gravura”, o debate vai adquirindo novos contornos, como declara Marcel Raymond: “os progressos da fotografia e da fotogravura transformaram completamente as condições da crítica”. 9 6 Cf. Véronique Goudinoux; Michel Weemans (orgs.). Reproductibilité et irreproductibilité de l’œuvre d’art. Bruxelas: La lettre volée, 2001. 7 Henri Delaborde, «La photographie et la gravure», in: Revue des deux mondes, abril 1856, reed. in: André Rouillé. La photographie en France. Textes et controverses: une anthologie, 1815-1871. Paris: Macula, 1989. 8 Apud Pierre-Lin Renié. “Guerre commerciale, bataille esthétique: la reproduction des œuvres d’art par l’estampe et la photographie», in: Véronique Goudinoux; Michel Weemans (orgs.), op. cit. 9 Apud Germain Bazin, op. cit. 5 A importância das reproduções das obras como parte da narrativa da história e da crítica da arte impõe o desafio de serem pensadas suas condições de possibilidades. Para Max J. Friedländer, historiador da arte alemão, o “auxílio precioso, indispensável” da fotografia deve ser empregado “com discrição e comedimento”, 10 para que ela tome o lugar do original. Wölfflin, em Reflexões sobre a história da arte, discute a maneira de fotografar os quadros e acusa os fotográfos de falsear as esculturas do Renascimento italiano, ao evitarem a frontalidade a fim de “animar” a figura. Bernard Berenson faz o elogio da fotografia como auxiliar privilegiado do crítico de arte e recomenda, como instrumento de trabalho para o connaisseur, a acumulação de fotografias, realizadas por operadores diferentes, pois elas interpretam nem mais nem menos do que o desenhista. “Logo, a experiência e o hábito automaticamente nos trasformam em observadores atentos e analistas minuciosos que não mais se encontram sob o feitiço irresistível da própria obra original. Não tenho vergonha de professar que não raro me senti mais perdido ao ver a própria obra de arte isoladamente do que ao apreciar apenas as reproduções”. 11 Ainda no início do século 20, a estampa de interpretação é considerada uma arte em si, acolhida na seção de gravura e litografia do Salão, servindo, de certo modo, de modelo para a reprodução fotográfica não só em termos de padrão de qualidade, quanto como condição dessa reprodução, na medida em que era corrente o uso da legenda “segundo o quadro de X no museu tal”, como teria feito um gravador. O historiador Léon Rosenthal, por exemplo, afirma, em 1909, o caráter artístico da reprodução fotográfica e fotomecânica, considerando que as escolhas dos fotográfos são igualmente questões de discernimento, até porque “Ainda não vimos, até o presente, máquina que funcione sozinha”. Ao mesmo tempo, fotógrafos como Emmanuel Boudot-Lamotte começam a ser apreciados pelos “enquadramentos inteligentes, luminosidade perfeita e melhores pontos de vista”. 12 Reprodução da/na reprodução Ao longo das primeiras décadas do século passado, além da extensa utilização da fotografia por diferentes poéticas, são exemplares os investimentos, de naturezas diversas, no campo da reprodutibilidade técnica como modelo operacional, deslocando, 10 Idem. Apud Brassaï. Proust e a Fotografia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. 12 Cf. Germain Bazin, op.cit. 11 6 assim, a questão da interpretação ou a neutralidade no que tange à reprodução da obra de arte. A utilização da fotografia como questionamento das convenções figurativas, a começar pela manipulação das imagens, tiragens negativas, superposições, raiogramas, entre outros procedimentos, declina-se em um amplo universo de experiências poéticas: na construção de realidades artificiais, de fabricação, pelos surrealistas, ou na introdução de sentidos no interior de uma imagem da realidade, nas fotomontagens dadaístas, como realidade construída em signos; na evanescência da forma nas experiências futuristas da fotografia analítica do movimento, tradução plástica do movimento, ou, ainda, na busca do estranhamento com pontos de vista inusitados nas experiências da fotografia da vanguarda soviética, como Rodchenko, apresentando novas relações espaciais passíveis de descondicionar a percepção. Também como ferramenta de crítica ao sistema de arte, a utilização da fotografia sob diferentes modalidades visa inscrever-se, diretamente e sem intermediário, no circuito amplo dos meios de comunicação. Estratégia que se conjuga, no meu entender, a outros aspectos da ação dos artistas nesse período, em particular à difusão de manifestos em revistas e catálogos, inseridos em jornais de grande circulação, fixados nos muros da cidade ou em painéis publicitários, evidenciando a estratégia de se dirigir não apenas aos artistas ou amateurs esclarecidos, mas a um público amplo – a “todo mundo”. Na extensa rede de trocas entre arte e fotografia, o trabalho específico sobre a reprodução da obra como agenciamento interno à própria constituição da obra de arte ganha, em particular com Duchamp, Man Ray e Brancusi, patamares ainda hoje carentes de análises teóricas e cujas ressonâncias se fazem presentes na práxis contemporânea. Revelam sobretudo uma outra compreensão e abordagem da crise da representação, não a restringindo a sua negação como operação mimética, mas investigando a reapresentação em sua capacidade de trazer, por intermédio da fotografia, a presença de um objeto ausente, presentificando-o em uma nova situação como um dos vetores de produção de significação. Incorporam ainda, nessa operação, a essência narrativa de toda representação, marca da recepção e de sua dimensão reflexiva, “traço pelo qual se apresenta enquanto representa alguma coisa”, segundo Louis Marin. 13 Ao deslocarem o fazer artístico da produção de objetos para a constituição de uma rede de significações, que inclui o contexto em que se apresentam, incoporam a reprodução da obra como 13 Louis Marin. Des pouvoirs de l’image. Paris: Seuil, 1993. 7 imagem não referida à verdade ou exatidão, mas, de acordo com Marie-José Mondzain, como “puro acontecimento, estrito advento” que coloca em relação o presente da ausência. 14 A reprodução da reprodução já era fato corrente desde o século 19. Ruskin, por exemplo, ao mesmo tempo em que encomenda fotografias dos detalhes do afresco de Botticelli na Capela Sistina, compra desenhos de Rafael gravados em fac-símile a partir das fotografias dos irmãos Alinari. O estatuto das imagens torna-se incerto. Assim, a estampa de interpretação é capaz de fornecer um equivalente tanto a uma obra de arte quanto a um documento fotográfico, evidenciando a imbricação das noções de arte e de documento. Tornou-se prática corrente entre os editores, dependendo dos custos operacionais, multiplicar, pela fotografia, uma gravura sobre a qual detinham o direito ou realizar gravuras a partir de fotografias originais, de points de vue. Madone(s) de salles de bains A operação de Duchamp no caso da Fontaine, 1917, adquire caráter de manifesto (no sentido de explicitação e teorização dos objetivos e meios da arte), deslocando a questão da representação exata ou interpretação para a lógica operatória da obra. O célebre mictório, com a assinatura de R. Mutt, desapareceu da exposição dos Independentes, apesar do acordo anterior do não-julgamento das obras. O artista apela, então, a Alfred Stieglitz (cuja militância pela fotografia artística se articulava à defesa da arte contemporânea em sua galeria 291, em Nova York), para que o fotografe, invertido, em cima de uma base, utilizando todos os recursos do poder transfigurante da fotografia. Rebatizada como Madone de salles de bains, pelo enquadramento próximo, no nível do olho, e pela iluminação artificial de cima, jogando um véu de sombra em volta do objeto, essa fotografia passa, assim, a ser parte da ampla rede de mecanismos (pseudônimo, texto, título etc.) colocados em ação, e circulação, por Duchamp em sua utilização da polissemia presente na noção de reprodução e no privilégio que outorga ao caráter indicial do signo fotográfico como operador de transformações do próprio procedimento artístico. Produto da indústria que é, como o próprio mictório, introduzido na esfera da arte como certificado da existência de uma obra que ninguém havia visto, autentica-o, assim, no quadro de uma ficção. Inúmeras e diversificadas são as operações efetuadas por Duchamp em relação à Fontaine: fac-símiles, fotografias, gravuras editadas em série 14 Marie-José Mondzain. L’image peut-elle tuer? Paris: Bayard, 2002. 8 limitadas e assinadas, embaralhando a fronteira entre produção e reprodução, sentidos e funções da reprodução, encarnando e revelando os efeitos de transfiguração e de proliferação que a reprodutibilidade técnica de fato impôs à arte. Como assinala Catherine Perret, a construção programática do ready-made desdobra a cena da operação artística, contornando a “hipótese de um fundamento único e de um modo de objetivação único à obra”, e constituindo o espaço da representação como um espaço dual, não especular, onde a “reprodução significa simultaneamente diferenciação e por conseqüência irreprodutibilidade”.15 Desarticulando o eixo da representação e o eixo da referência, Duchamp indica que para além da produção do objeto, como instauração de um código autônomo, no qual a obra coincide com seu próprio código, sua enunciação comporta diferentes níveis, entre os quais as modalidades de sua circulação e inscrição no sistema de arte. Se a reprodução, ao aproximar a obra das massas, retira, segundo Benjamin, o objeto de seu invólucro, de sua unicidade, jogando-a na transitoriedade, esta pode também se constituir em uma esfera de atuação, da cópia como atestado do original ou como bigode e cavanhaque colocados em uma reprodução da Mona Lisa (L.H.O.O.Q, 1919, de Duchamp). Operações que se fazem presentes na diversidade de práticas de apropriações das imagens de reprodução técnica a partir da Pop. Brancusi, por sua vez, documenta suas obras ao longo de sua trajetória (desde 1900), com a ambição de dar uma visão pessoal de suas esculturas. O escultor que dizia não buscar jamais fazer “o que se chama formas puras ou abstratas”,16 rejeitava fotografias que não representassem uma interpretação subjetiva que correspondesse a sua própria visão, chegando a descartar mesmo fotos produzidas por Stieglitz, perfeitas, segundo Man Ray, tanto no plano da luz quanto da matéria, por não representarem a sua obra. 17 Próximo a Stieglitz, Edward Steichen e Man Ray, não são, contudo, esses contatos que o levam à fotografia, embora ele não apenas adquira maior domínio de sua técnica fotográfica, a de laboratório incluída, como assimile alguns elementos de linguagem, entre outros 15 Catherine Perret. “L’art-en-valise de Marcel Duchamp”, in: Véronique Goudinoux; Michel Weemans (orgs.), op. cit. Cf. Rosalind Krauss. Le photographique. Paris: Macula, 1990 e Thierry De Duve, Resonances du readymade. Nîmes: Jacqueline Chambon, 1989. 16 Apud Friedrich Teja Bach. «La photographie de Brancusi», in: Brancusi. Paris: Centro Georges Pompidou, 1995, p. 312. Cf. Sidney Geist. Delicatesse de Brancusi. Paris: Galerie de France/Editions du Regard, 1985. 17 Man Ray, Autoportrait. Paris: Seghers, 1964. Cf. Anne-Françoise Penders. Brancusi, la photographie ou l’atelier comme “groupe mobile” . Bruxelas, La Lettre volée, 1995. 9 aspectos pictorialistas, como suas experiências sobre a luz e a transmissão da atmosfera particular de seu ateliê. Recorre a efeitos de luz e sombra, ao uso de luz artificial, a efeitos atmosféricos utilizados por Steichen em suas célebres reproduções da obra de Rodin. Seu objetivo, no entanto, não é a equivalência da fotografia com a pintura nem a questão do status artístico da fotografia, mas as relações das esculturas entre si e em um ambiente, em particular o de seu ateliê, que se torna cenário para numerosos ensaios. Seus clichês fotográficos são o lugar por excelência em que a composição de uma obra global, feita, e refeita, por deslocamentos de obras independentes em que articulações de toda ordem, como os espaços entre elas, e diálogos entre suas possíveis significações se estruturam como revelação da percepção do tempo e do espaço. A mobilidade dos elementos em seu ateliê, fixados nesses surpreendentes clichês, afirma a relação entre obra e seu contexto de inscrição, questionando a oposição entre espaço e forma, característica de sua poética, na qual os limites formais de uma obra se tornam os reflexos de ambientes ou do próprio espectador. Sua fotografia torna-se um instrumento para afirmar a contigüidade da obra com seu ambiente, a fusão da escultura com o espaço, sendo este tomado como um elemento plástico maleável (por vezes alterado por meio de manipulações com jogos de espelho). No caso de Man Ray, sua iniciação à fotografia, em 1915, campo no qual será reconhecido pela excelência e inovação de suas experimentações, deve-se a sua insatisfação com as reproduções de suas pinturas: “As poucas reproduções de meus quadros feitas por fotógrafos profissionais não eram satisfatórias (...) Ninguém melhor, penso, para fazer esse trabalho do que o próprio pintor”. 18 Inicialmente, utiliza placas pancromáticas, em preto-e-branco, para manter o valor das cores de suas pinturas, passando, posteriormente, a se servir dos mais diversos procedimentos, como reenquadramentos, iluminações as mais variadas, transformação em monocromos, enfim, todo um processo de recriação. Trabalhando a equivalência dos meios, Man Ray afirmava: "Pinto o que não quero fotografar. Fotografo o que não quero pintar". Ao mesmo tempo instrumento para registro e campo de experimentação, técnica de reprodução e meio de expressão, documento e monumento, a função crítica da fotografia para Man Ray é a de um modelo teórico a partir do qual seja possível apreender as outras formas de expressão, de observar um meio por intermédio de um outro, de tomar 18 Apud Anne-Françoise Penders. Brancusi, la photographie ou l’atelier comme “groupe mobile”. op. cit. 10 literalmente uma imagem pelo viés de uma outra. 19 Aliás, em 1943, no célebre texto Photography is not Art ele registra: “vocês jamais tentaram observar um Veronese ou um Vermeer através de um filtro vermelho? Eles se tornam tão modernos quanto uma fotografia em preto-e-branco”. 20 Além de sua quase-parceria com Duchamp, Man Ray reproduz trabalhos de vários artistas. São muitos os fotógrafos, que, ao lado de uma produção nitidamente autoral, se dedicam, por amizade ou injunções profissionais, a essa atividade. Em particular, cabe lembrar Brassaï, reconhecido por suas fotos noturnas de Paris, que em Conversations avec Picasso, deixou um belo testemunho, em uma espécie de diário do convívio e amizade com o artista catalão, mas também do trabalho de reprodução de suas obras. Conta, por exemplo, que, chegando ao ateliê de Picasso, em abril de 1944, ainda em plena guerra, a curiosidade do pintor, como sempre, era enorme em relação às fotos: “Mostre-as, todas, todas... É curioso, não é mesmo, mas é por intermédio de suas fotografias que posso julgar minhas esculturas... Através delas, as vejo com novos olhos...”. 21 O entrelaçamento do trabalho de arte com a fotografia e, no caso que é aqui tratado, com sua reprodução fotográfica, é um dos aspectos centrais da dinâmica das transformações de linguagens que marcaram a arte contemporânea desde o pós-guerra, seja no registro das próprias práticas artísticas, seja na ordem do discurso. Transformações que guardam diferentes níveis de conexões com as estratégias de Duchamp, mas também de Brancusi e Man Ray, com conseqüências sobre as atuais relações entre o trabalho de arte e sua reprodução. Nas diversas linhas de ação artística a partir dos anos 60, é marcante a onipresença do dispositivo fotográfico como modelo de representação, embora não necessariamente materializado em suportes fotográficos, mas integrando a documentação, o registro, como um suplemento. Se o trabalho se perfaz pela incorporação de uma rede de significações, agenciamentos visuais e discursivos, não mais passível de se definir por meios ou categorias, mas por operações lógicas dentro de um conjunto de termos culturais, o elemento fotográfico, como registro ou objeto, torna-se um dos dados dessa 19 Man Ray. “L’interview de camera par Paul Hill et Tom Cooper”. Camera, n. 2, fev. 1975, reprod. in: Ce que je suis et d’autres textes. Paris: Carré, 1998. 20 Man Ray. “Photography is not Art», View, n. 1, abr. 1943; reprod. in: Ce que je suis et d’autres textes, op. cit. 21 Brassaï, Conversations avec Picasso. Paris: Gallimard, 1964. Trad. bras. São Paulo: Cosac&Naif, 2005. Brassaï realizou também fotografias para Salavador Dali, em particular a série “Esculturas involuntárias”, que participa da grande família dos objets trouvés, mas existindo apenas como reprodução. 11 rede, em particular em sua circulação. Ao absorver o contexto de sua apresentação, o trabalho, não dirigido apenas ao olhar, relaciona questões de ordem histórica, social, antropológica, ecológica, espiritual etc. Sua apresentação, assim, não se resume a um signo que a precede, derivando daí formalizações diversas ao ser composto e recomposto a partir dessas situações. A reprodução fotográfica torna-se um instrumento para interrogar o real e as convenções pelas quais é representado, tecendo diferentes níveis de articulações entre sua dimensão indicial e seu estatuto icônico. Gina Pane, por exemplo, declarou: “A fotógrafa [que registrava sua performance] é o meu pincel”. Os diferentes elementos que constituem e atravessam a fotografia em sua multiplicidade de funções nos mais diversos campos de atividade social são, de certo modo, declinados nas mais diversas experiências artísticas, forjando sempre deslocamentos dos cânones, das noções e práticas da arte. Como suplemento, é parte constitutiva da sua inscrição no mundo. Representação que segue a lógica do ato fotográfico, pois, ao recortar do mundo um pedaço do espaço, instaura, como assinala Philippe Dubois, “um novo mundo (espaço representado) cuja organização interna se elabora a partir da própria forma gerada pelo recorte”. 22 Sem dúvida, países periféricos, como o nosso, evidenciam, de maneira contundente, o fato de que a formação23 e informação, no que concerne à arte, de artistas, agentes do circuito e do público, se dá basicamente pela reprodução das obras, devido à precariedade das coleções públicas. Antônio Manuel, por exemplo, assinala a nova compreensão que teve ao ver pintura de Mondrian: “Nas reproduções fotográficas dos trabalhos do Mondrian, o corte é todo certinho. Para mim foi uma descoberta quando vi 22 Philipe Dubois. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1994. O ensino de arte, tradicionalmente, sempre se utilizou de reproduções como as cópias em gesso de esculturas clássicas. Se as reproduções por meio da gravura serviam, sobretudo, como propagação de estilos e cânones, a fotografia, por oferecer “reproduções imediatas de chefs-d’oeuvre da pintura e da escultura ou representações da natureza” já em 1854, é considerada um elemento didático, auxiliar ao lápis e ao buril, por decisão de uma comissão ministerial da França. Ver: Emmanuel Schwartz. “L’Ecole de beauxarts au XXIè siècle et l’enseignement ‘d’après le modèle’”. In: L’art du nu au XIX siècle. Le photographe et son modèle. Paris: Hazan/Bibliothèque nationale de France, 1997. Questão que, no entanto, não deixa de ser problemática, como assinala o artista José Damasceno, em conversa com a autora: “Tomando minha experiência particular, sem contudo generalizar, apenas um relato, cresci vendo somente as reproduções das obras, fossem européias, norte-americanas, ou mesmo brasileiras. Só fui ter algum contato direto com as obras recentemente. Aqui não se tem esse confronto direto com as obras. Isso merecia um estudo com atenção. O que é isso? O que surge dessa condição precária de você não poder ver, experimentar, se relacionar diretamente com a obra, isto aponta para um estado fantasioso, ficcional ...” 23 12 ao vivo no MOMA. Só conhecia Mondrian de reprodução com cortes da fotografia não deixando a margem do avesso aparecer”. 24 No entanto, se essa é uma condição específica de um país como o nosso no que diz respeito aos clássicos (o que tem, evidentemente, a sua importância), ela se apresenta como a própria condição do atual circuito de arte. Diante da disseminação de trabalhos efêmeros e da ampliação do circuito, tornou-se impráticavel para qualquer espectador, o mais rico, disponível ou engajado, estar em todas as ocasiões ao mesmo tempo, como nas dezenas de bienais no mundo todo, ou mesmo estar no Peru por ocasião de When Faith Moves Mountain, 2002, de Francis Alÿs, ou quando o homem bala é lançado por Javier Téllez, One Flew over the void (Bala perdida) nas praias de Tijuana, em novembro passado; visitar o recém-inaugurado Chichu Art Museum, na ilha de Naoshima, com trabalhos, específicos para o local, de Walter De Maria e James Turrell ou os milhares de trabalhos públicos em todo o mundo. A mediatização das imagens dos trabalhos de arte (hoje sobretudo, com a potência da web) tornou-se um meio de expressão levado em conta pelos artistas no agenciamento de suas ações. Não se trata, portanto, da realização do Museu Imaginário, conceituado por André Malraux, que garantiria, senão a eternidade a obras como as de Phidias e Miguel Angelo, pelo menos “uma enigmática liberação do tempo”. Tampouco se trata, creio, da perda da autencidade da obra, inelutavelmente subvertida pela reprodução técnica, segundo Walter Benjamin. Como assinalou o filósofo, “mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra”. 25 A natureza da obra de arte contemporânea não se define, no entanto, por sua “existência única” não apenas pela possível equivalência entre cópia e original, mas como um dos fatores decisivos para a introdução da temporalidade como “matéria”, o que torna sua “ex-posição” um meio em que se realiza. Se essa reprodução circula também como mercadoria, apesar da resistência ao mercado que moveu essas novas estratégias, ela, sobretudo, guarda uma relação de ordem estrutural com o dispositivo fotográfico. A reprodução tem-se revelado um medium privilegiado para apreender a dimensão temporal como elemento constitutivo do 24 Conversas com os artistas nos Encontros com Wilton Montenegro, op. cit. Walter Benjamin. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in: Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. 25 13 trabalho contemporâneo, apesar de o instante, fina ponta do movimento e possível salto fora do tempo, ser intrínseco ao recorte espaço-temporal da fotografia. Esse “encontro prolongado”, utilizando palavras de Proust sobre a fotografia, guarda com o trabalho uma alteridade recíproca, por trazer seus próprios mecanismos operatórios, suas condições a priori e sua linguagem, sem, contudo, deixar de ser um objeto entre os objetos com “uma atualidade além de um simples registro de uma coisa vista ou de uma noção de presença plástica”. 26 Apreender a reprodução da obra de arte, sua veiculação enquanto imagem, como uma pura manifestação da obra, algo natural e não determinado historicamente, não deixa de evocar as acusações iconoclastas da cópia como degradação do modelo, já que se parece com o arquétipo pelo aspecto, mas difere na substância. Na passagem de uma linguagem a outra, afirmam-se as modalidades de inscrição do trabalho, suas condições de visibilidade – Madone(s) de salles de bains. Como as imagens, a reprodução das obras de arte, em seus diversos meios e modalidades, impõe ser pensada em sua migração no tempo e no espaço com suas profundas mutações, como signos que precisam ser interpretados em seu contexto cultural. Esta é, a meu ver, a grande contribuição da exposição de Wilton Montenegro: suspender a suposta naturalidade da reprodução, para desvelar a recomposição do trabalho pela imagem. Mas, recomposição que lhe é inerente. Se no momento da pose, como sugere Barthes, nós nos transformamos em imagem, o trabalho desenvolvido em parceria – do artista com o fotógrafo – se dá nesse interstício espaço-temporal em que o trabalho se inscreve na imagem, se constitui enquanto imagem. Notas do Observatório desvela igualmente a particularidade do trabalho de Wilton Montenegro: surpreender a arte em seu processo de formação. Consciente, porém, de que “Jai Singh sabe que só sendo a água deixará de ter sede”. 27 Glória Ferreira, Maio 2006. 26 Jean-François Chevrier. «L’image, l’objet», in: Sculpter-Photographier Photographie-Sculpture. Paris: Marval/Musée du Louvre, 1983. 27 Julio Cortázar. Prosa do Observatório, op.cit. 14