A tensão entre lucro e ética

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A tensão entre lucro e ética
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A tensão entre lucro e ética
Publicado em 3 de julho de 2014 por Rachel Nigro
“Construiremos aqui bons navios, com lucro se pudermos, com prejuízo se
preciso, mas sempre bons navios”
(Collis P. Huntington)
Este breve post propõe realizar uma reflexão sobre a existência de um “lucro
ético” que nos possibilite escapar da maldição de Friedman que condena a
atividade empresarial ao egoísmo ético ao afirmar que a única responsabilidade
social dos negócios é aumentar o lucro da empresa. (‘The Social Responsibility
of Business is to Increase Profits’ 1970).
O lucro é frequentemente associado à ganância, avareza, usura e outros vícios.
Mas não todo e qualquer lucro. Afinal, o fato da atividade empresarial ser
rentável não é imoral. A obtenção de lucro pode não ser um ato virtuoso, mas
também não é necessariamente um vício. Além disso, o critério para definir o
“lucro ético” varia culturalmente. No caso brasileiro, nos parece que a
imoralidade reside no lucro exorbitante que, apesar da dificuldade de
determinação, pode ser minimamente compreendido.
Na modernidade, a atividade econômica deixou de ter como referencial as
comunidades tradicionais (família, lugar, país). Hoje, as empresas substituem as
antigas comunidades, sendo que no seu seio as relações tendem a ser
conflituosas. Esta transição trouxe consigo uma carga moral negativa associada
ao lucro.
Na literatura empresarial, não é difícil encontrar discursos que tendem a
minimizar e mesmo negar essa tensão, como afirmações do tipo: “embora
pareçam incompatíveis, lucro e ética são complementares e as empresas
buscam hoje um comprometimento recíproco de ambos os conceitos”, ou
ainda, “em um sistema de mercado, todo empreendimento vem exigindo como
objetivos não apenas alcançar o sucesso nos negócios, mas também promover
a realização do homem nos empreendimentos“.
Além
disso,
não
é
mais
possível
desconsiderar
a
existência
do
empreendedorismo ético, ou seja, aquelas organizações cujo objetivo central
não é a busca de lucratividade. Nesse sentido, como já apontado no post de
Mariana Brunelli:
“Por muito tempo, a persecução do fim “lucro” e o senso particular de
moralidade dos indivíduos foram tratados como domínios completamente
incompatíveis no âmbito negocial. A atividade empresarial, até meados do ano
2000, era regida sob a lógica de que é moralmente aceitável mentir nos
negócios, desde que essa mentira representasse uma maximização dos lucros e
aumento de competitividade daquela empresa no mercado – uma visão
distorcida do que seria “ser ético”. A forma de avaliação das organizações era
basicamente pautada em demonstrações contábeis, valorizando-se apenas os
resultados financeiros que, por sua vez, nem sempre traduziam com fidelidade
a realidade daquela empresa.
Atualmente o setor empresarial vem entendendo que não é mais possível avaliar
as empresas tendo em vista exclusivamente os padrões tangíveis de ontem.
Erige-se um novo paradigma na área negocial que demonstra que valores
extrapatrimoniais, tais quais a marca, imagem, prestígio, confiabilidade decidem
a preferência dos clientes e garantem a continuidade da organização.
Dirigentes de empresas de grande porte, hoje, já perceberam que, ter uma
equipe com altos padrões pessoais de conduta, representa um ativo
economicamente tão importante quanto os números absolutos de seu balanço
contábil”.
Apesar da aparente mudança de paradigma, a desconfiança generalizada
frente à associação entre ética e lucro continua. Enquanto tema crucial da
responsabilidade social empresarial, o “lucro ético” revela uma tensão mal
resolvida da ética empresarial: como conciliar a busca crescente pelo lucro nos
ambientes extremamente competitivos do mercado atual com os valores éticos
‘tradicionais’, como honestidade, sinceridade e solidariedade?
Como defende Laura Nash, a base do comércio e da economia é a confiança,
enquanto uma virtude humana. Se assim o é, por que essa demanda atual pela
ética empresarial? Como conciliar a inflação de discursos sobre a ética nos
negócios e o aumento do número de escândalos envolvendo corrupção e
demais condutas anti-ética? Com efeito, talvez o falatório sobre ética
empresarial seja na verdade um sintoma da falta de confiança que se instaurou
na (des)ordem econômica mundial e da necessidade de continuar atuando
como se nada estivesse acontecendo. Como se os códigos e discursos sobre
ética pudessem expiar os pecados financeiros de todos os dias.
Retomando ao ponto central deste texto, ou seja, se a Ética pode se
compatibilizar com o êxito empresarial, parece que isso é possível se
compreendermos o lucro como um processo complexo e tivermos critérios para
distinguir o que é “lucro abusivo” ou “exorbitante”.
Primeiramente, é preciso lembrar que, de acordo com a Constituição Federal de
1988, a ordem econômica nacional assenta-se no sistema econômico capitalista.
Isto porque a liberdade de iniciativa e a propriedade privada são direitos
consagrados constitucionalmente. Uma vez que entendemos o capitalismo como
o sistema econômico no qual as relações de produção estão assentadas na
propriedade privada dos bens em geral, especialmente dos de produção, na
liberdade ampla, principalmente de iniciativa e de concorrência, então somos
forçados a reconhecer que o constituinte originário adotou o regime de
liberdade de produção, em contraposição à participação do Estado como
agente econômico.
Aliás, não apenas a nossa legislação permite a prática capitalista, como
restringe a atuação do Estado como “explorador direto de atividade
econômica”. Nesse sentido, o legislador constituinte deixou claro que a
produção estatal é excepcional e sujeita à reserva legal, ao disciplinar no artigo
173 que:
“(…) ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta
de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos
imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme
definidos em lei”.
Mas a participação direta não é o único modo de influenciar a economia de
mercado. O Estado também age enquanto regulador da economia e, nesse
sentido, deve observar o fenômeno social e econômico, para melhor atender o
interesse social. Desse modo, a responsabilidade pelo desenvolvimento
econômico de um país é, em parte, atribuída ao Estado e às suas políticas
públicas. E, sendo o Estado configurado pela Constituição, tanto em sua
estrutura como em suas finalidades, e tornando-se a economia tema constante
nas constituições, passou-se a falar em “Direito constitucional econômico”.
O papel do estado na economia hoje ocorre via Direito, isto é, via ordenação
normativa do Direito Econômico, que varia de acordo com cada tradição
jurídico-político-econômica. Enquanto linguagem do poder contemporâneo, o
Direito traduz na forma da lei os instrumentos para o Estado exercer influência
na economia, ou seja, fazer política econômica. Segundo a Constituição Federal,
documento que normatiza grande parte da estrutura e atuação do Estado, este
deve assumir, no setor privado, a posição da intervenção mínima, consentida
com fundamento em finalidades específicas: repressão do aumento abusivo dos
lucros e tentativa de eliminação das concorrências e dominação de mercado.
Percebe-se que o legislador brasileiro condenou explicitamente a ganância,
gesto de interferência do Estado no domínio econômico que pareceria no
mínimo abusivo em uma sociedade de livre mercado como a norte-americana.
Em consonância com a tradição liberal e em nome do pluralismo e da liberdade
de pensamento e expressão, a legislação americana não pune vícios. Mas no
Brasil, a relação com o liberalismo é bem mais complexa.
Sob a perspectiva jurídica, podemos dizer que o modelo capitalista baseado na
lucratividade da iniciativa privada é o modelo econômico adotado no Brasil.
Entretanto, como já destacado, o “aumento abusivo dos lucros” pode/deve ser
motivo de intervenção estatal na economia e, conforme a doutrina tradicional, a
atuação do Estado é “uma necessidade no sistema capitalista”. Considerando os
diversos valores abrigados no texto constitucional, a livre iniciativa e a
propriedade privada não são valores absolutos. Assim como também não o são
princípios de ordem pública, como a supremacia do interesse público, antes
considerados supremos.
A Constituição de 1988, assim como outras cartas democráticas e pluralistas
contemporâneas, abraça uma enorme quantidade de valores traduzidos na
forma de princípios. Lá estão expressos os valores da solidariedade e igualdade
na forma dos princípios da redução das desigualdades sociais e da dignidade.
Mas também estão assegurados os valores de liberdade e livre iniciativa através
do princípio da propriedade privada e da liberdade de imprensa.
Frequentemente, a disputa entre o setor privado e seus interesses econômicos
e os chamados “interesses públicos” entram em rota de colisão ocasionando
disputas políticas e convocando a sociedade a se pronunciar. O recente caso
dos Royalties ilustra a complexidade da política econômica atual: interesses
diversos e difusos que não permitem uma definição clara entre público e
privado e colocam em cena o conflito de bens e valores abrigados em nossa
constituição. Por um lado, o dever de solidariedade e de redução de
desigualdades regionais; por outro lado, os interesses econômicos das empresas
que confundem-se com os interesses dos estados e municípios que se
beneficiam com os impostos gerados pelos lucros privados.
O lucro parece não ter inimigos desde que todos estejam lucrando de modo
proporcional. Mas o mercado sozinho não produz esse resultado. E aqui
encontra-se o ponto da discórdia: qual o limite da intervenção estatal na
economia? Tradicionalmente essa é a linha divisória entre “direita” e
“esquerda”.
Os liberais defendem o livre mercado como um sistema no qual os indivíduos
são livres para tentar satisfazer seus objetivos à luz de seus próprios recursos e
conhecimentos, sem nenhum plano imposto pela autoridade estatal. Para
pensadores como Stuart Mill e Hayek, esse sistema possui uma lógica própria
que gera uma ordem espontânea e constituída de dentro pelo próprio
entrechoque anárquico das partes. Assim, a interação das atividades de um
grande número de indivíduos e empresas, cada qual buscando apenas
defender seu próprio interesse, garante a alocação eficiente de recursos para o
benefício, ao final, de toda a comunidade.
Conforme a famosa “Fábula das Abelhas” de Bernard de Mandeville (1714), a
base da moralidade de uma sociedade de mercado deve ser o “egoísmo ético”,
ou seja, basta que cada indivíduo aja de forma egoísta para que o bem de
todos seja atingido. Uma colméia de abelhas virtuosas, sem ganância nem
outros vícios, onde reina a solidariedade e a cooperação, está fadada à ruína e
extinção. São os vícios privados que acabam por gerar os benefícios públicos.
Por esta lógica, quanto maior o lucro que uma empresa gera para seus sócios,
maior benefício público ela está gerando.
Entretanto, para além de qualquer explicação teórica, seja de direita ou
esquerda, o que parece encontrar forte resistência na moralidade do homem
médio é o fato da disparidade econômica entre classes e o valor do lucro de
alguns setores. A existência dessas distorções, celebrada e incentivada pela
lógica da maximização do valor da ação, com seus bônus bilionários aos
executivos de melhor desempenho, redundou na crise de 2008 e na ameaça de
recessão mundial após a sucessão de escândalos financeiros. Tais práticas
associadas à economia de mercado e ao mercado financeiro revelaram a dura
face do empreendedorismo e da ambição: a ganância humana que acaba por
corroer a confiança recíproca que sustenta a integração social.
Conforme nos lembra Cortina, a confiança sempre foi a moeda mais valiosa na
manutenção da ética empresarial. Valores como honestidade e sinceridade são
relativos apenas em discursos que buscam justificar imoralidades. Não existe
uma “ética especial” para os negócios. Existem situações peculiares nos
negócios que desafiam as exigências morais, que dificultam a decisão e a ação
dos agentes morais, situações que exigem ponderação, escolha e decisão. Mas
as regras são as mesmas: não vale roubar, enganar, mentir.
Como destacado no post “O Novo Paradigma do Setor Empresarial” de Savigny
Gonçalves, até bem pouco tempo, a atividade empresarial era regida pela lógica
de que é moralmente aceitável mentir nos negócios, desde que essa mentira
representasse uma maximização dos lucros e aumento de competitividade
daquela empresa no mercado. Conforme a “maldição” de Friedman, “a
responsabilidade social dos negócios é aumentar os lucros” e ponto final. Mas a
percepção de que uma empresa é muito mais que números e que a imagem e
reputação construídas ao longo do tempo é o maior trunfo que uma
organização pode possuir, tem levado a uma mudança de paradigma no setor
empresarial. Além das exigências impostas pela legislação estatal e dos
mecanismos de auto-regulação a que as próprias corporações se submetem, as
empresas de grande porte já perceberam que uma equipe com altos padrões
pessoais de conduta representa um ativo economicamente tão importante
quanto os números absolutos de seu balanço contábil.
Dessa forma, empresas que assumem a ética como estratégia de atuação têm
conseguido fortalecer seu nome no mercado e captar uma clientela cada vez
mais fiel e satisfeita, otimizando seus lucros a médio e longo prazo. Já em
relação aos efeitos sociais, a ausência de valores morais, se estendida para uma
dimensão macro pode reduzir o nível de confiabilidade entre as pessoas,
tornando insustentável todo o convívio social, o que seria demasiadamente
nocivo. Isso reforça a idéia de que a ética não só é compatível com êxito
empresarial, como é fundamental para a própria dinâmica das relações
intersubjetivas desenvolvidas em sociedade.
REFERÊNCIAS:
CORTINA, Adela (org.) Construir Confiança – Ética da empresa na sociedade da
informação e das comunicações. Edições Loyola, São Paulo, 2007.
_________________Ética
Empresarial,
Claves
para
una
nueva
cultura
empresarial.
NASH, Laura. Just Enough. Harvard Business School, 2004.
Sobre Rachel Nigro
Doutora em Filosofia e Mestre em Direito pela Puc-Rio; professora dos departamentos de
Direito e Filosofia, do Centro de Empreendedorismo e do Centro de pós-graduação em
Filosofia Contemporânea.
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