Revista Jurídica Unic - Vol. 13 Nº 1

Transcrição

Revista Jurídica Unic - Vol. 13 Nº 1
COMITÊ CIENTÍFICO
ADRIANA KOSZUOSKI
DANIELA M. ECHEVERRIA
DANIELA M. SAMANIEGO
DARLÃ MARTINS VARGAS
DINARA DE ARRUDA
DYNAIR DALDEGAN
FRANCISCO A. FAIAD
JENZ PROCHNOW JR.
JOSÉ PATROCÍNIO BRITO JR.
MARCOS HENRIQUE MACHADO
SAUL DUARTE TIBALDI
Universidade de Cuiabá – UNIC
Pró-reitoria Acadêmica
Centro de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão
Faculdade de Direito
UNIVERSIDADE DE CUIABÁ
ISSN: 1519-1753
Rev. Juríd. UNIC
v.13 – n.1
Jan./Jun. 2011
© Universidade de Cuiabá – UNIC, 2011
Os conceitos emitidos nesta publicação são de inteira responsabilidade dos autores.
É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta publicação, desde que citada a fonte.
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UNIVERSIDADE DE CUIABÁ
Revista Jurídica da UNIC
Direção Editorial
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Coordenação Editorial
Marcos Juvenal da Silva
Revisão
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Produção Gráfica, Capa e Editoração Eletrônica
Estúdio 11
Desenvolvimento Gráfico e Editorial
Dados CIP – Biblioteca Central UNIC
REVISTA JURÍDICA DA UNIVERSIDADE DE CUIABÁ. Universidade de Cuiabá - UNIC. Faculdade de Direito. Cuiabá:
Edunic, v. 1, n. 1, jul./dez., 1999.
periodicidade semestral.
202 p.
Direito – Periódico
1. Direito - Periódico I. UNIC. Faculdade de Direito
II. Título.
CDU: 340 (05)
SUMÁRIO
Apresentação
7
Estágio mascarado. Estagiário marginalizado
Abraham Lincoln de Barros Ferreira
9
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
Adriana Koszuoski Ziezkowski
Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros
13
A indústria dos danos morais
Clarissa Bottega
Mariana Gomes de Oliveira
43
As medidas socioeducativas
Cleidimil Leite da Cunha
65
A ilegitimidade passiva das pessoas jurídicas
nas ações civis públicas
por ato de improbidade administrativa
Darlã Martins Vargas
87
Do malfadado artigo 1.830 do Código Civil de 2002:
Crítica acerca da possibilidade de discussão da culpa
pela separação dos cônjuges
José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa
99
O significado do primado da dignidade da pessoa humana
na sociedade de riscos globais. Os deveres para com a humanidade
Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo
107
A gestão florestal plena em Mato Grosso
Marcos Henrique Machado
123
A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento
ao turista estrangeiro na relação consumerista em Cuiabá
Orivaldo Peres Bergas
Jéssika Matos Paes de Barros
Elza de Souza Dias
143
Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas
Sonia Cristina de Oliveira
Edison Pereira Prado
163
Breves comentários à Lei Maria da Penha
Valdenir Rodrigues Barbosa Filho
181
Erro de Tipo e Erro de Proibição:
uma abordagem didática dos institutos
Wanderlei José dos Reis
193
Normas e Instruções aos Colaboradores da Revista Jurídica
da Universidade de Cuiabá – UNIC
201
APRESENTAÇÃO
Chega mais um volume da REVISTA JURÍDICA DA UNIC, permeado
de pesquisas, estudos e concepções de acadêmicos e professores da graduação e pós-graduação.
Caminhar à frente de seu tempo, buscando incessantemente o futuro e novas formas de entender o conhecimento Jurídico, é tarefa de todos
aqueles que, comprometidos com a ciência, têm coragem de colocar à
crítica do mundo científico suas conclusões e opiniões, contribuindo decisivamente para a transformação da sociedade.
É na trilogia ensino, pesquisa e extensão que professores e acadêmicos buscam alicerçar novos conhecimentos, que através da reflexão, intercâmbio e suas interfaces sedimentam a construção da cidadania e com ela
a reconstrução das entidades políticas, interferindo diretamente na ordem
social e econômica de modo que seja feito do direito um real instrumento
de pacificação e justiça social.
A presente revista abre novo espaço para o embate de ideias, de
conteúdos à luz da interdisciplinaridade e da diversidade teórica dos vários
docentes, aos quais mais uma vez fazemos aqui nosso agradecimento, pela
ousadia e coragem de exporem seu pensar, seu refletir e, mais que isso,
suas inquietações e respostas ante um mundo cada vez mais confuso, sem
paradigmas e sem diretrizes jurídicas.
Dessa forma a Revista Jurídica da UNIC, ao trazer à luz esses debates
jurídicos, realiza seu objetivo institucional, contribuindo para o avanço do
conhecimento jurídico e da cidadania.
Antonio Alberto Schommer
Diretor Editorial
Cuiabá, julho de 2011
ESTÁGIO MASCARADO
ESTAGIÁRIO MARGINALIZADO
Abraham Lincoln de Barros Ferreira1
Tem-se abordado constantemente nas doutrinas de Direito do Trabalho, bem como na jurisprudência aplicável à esfera laboral, as manobras
utilizadas por alguns empregadores, que vêm reiteradas vezes marginalizando o trabalho do estagiário, lhe atribuindo funções diferentes da caracterizada no estágio.
É notório que a carga tributária, bem como as verbas previdenciárias, mexe com o bolso do empregador, razão pela qual muitos fazem a
opção de não assinar a CTPS do empregado, ou assinar com salário inferior ao aquele que foi acordado com o obreiro, ou então o tão famoso
Salário Marginal (salário pago por fora). Esses são alguns dos exemplos de
trabalhos mascarados pelos empregadores.
Não obstante, trata-se de uma atividade bastante explorada por
oportunistas que veem no estagiário a possibilidade de obter mão de obra
barata, sem a menor preocupação de contraprestação do necessário ensino
da prática profissional àquele que estagia.
Essa gama de trabalhos mascarados, num contexto generalizado,
vem se tornando habitual, principalmente no que diz respeito ao estagiário, que, contratado como tal, exerce função diferente à que lhe foi
atribuída.
Algumas empresas ou escritórios contratam o trabalhador para
exercer a função de estagiário, mas sem observação clássica à Lei
11.788/08, ou seja, acabam por subordinar o trabalho dele como um
empregado comum, de acordo com os requisitos imprescindíveis para a
caracterização do contrato Individual de Trabalho, quais sejam: pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação. Assim, passam
a remunerá-lo como estagiário, porém, com labor de um empregado
regido pela CLT.
Sabemos também que as artimanhas apresentadas para a descaracterização dele como empregado comum já é uma rotina da Justiça Traba1 Professor do Curso de Direito na Universidade de Cuiabá – Unic
10
Estágio mascarado – Estagiário marginalizado
lhista, que age rigorosamente punindo a empresa que adota esse tipo de
procedimento.
Há que se advertir que a Justiça do Trabalho está totalmente preparada para lidar com esse tipo de ocorrência, aplicando não só a CLT, como
também julgados já pacificados pelo Tribunal Superior do Trabalho.
Mas o que vem a ser Estágio?
A Lei 11.788/08, em seu Artigo 1º, incumbiu-se de esclarecer que
“Estágio é ato educativo, supervisionado, desenvolvido no ambiente de
trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos
que estejam frequentando o ensino regular em instituições de educação
superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial
e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da
educação de jovens e adultos”.
De posse dessa informação, verifica-se que o estágio nada mais é
do que o aprendizado com objetivos de caráter educacional, devendo ser
de forma e com finalidades de estudo e prática, conforme o labor exercido. Estagiário não é empregado regido pela CLT, assim sendo, observados
os parâmetros da Lei 11.788/08. Entre o labor do estagiário e ele, deverá
haver uma intermediação de uma instituição de ensino. Se não houver,
perde-se o caráter de estagiário, e aplicam-se as normas da CLT como de
um empregado comum.
O estágio realizado com qualquer empresa não cria vínculo empregatício de qualquer natureza, mas dá chance ao aluno, a chance única de
que, ao final do estágio, seja contratado como funcionário.
No cotidiano, encontramos, não incomum, alunos totalmente prejudicados em seus estágios, tendo em vista as fraudes praticadas por seus
contratantes.
Cita-se como exemplo a empregada que trabalha em um hospital, como
secretária, mas no contrato de compromisso, registrada como estagiária, intermediado por uma escola de Inglês. Pergunta-se: Existe contrato de estágio?
A resposta é negativa. Nesse caso, a atividade exercida pela empregada não é de estágio, pois a atividade deve possuir compatibilidade com
o sistema de educação do obreiro, e, pelo que notamos, a atividade em
área médica não possui nenhuma compatibilidade, como regra geral, com
a atividade de ensino de línguas estrangeiras.
Desse modo fica clara a intenção do empregador em marginalizar o
trabalho desse estudante.
Abraham Lincoln de Barros Ferreira
11
Ao estagiário, deve ser oferecida atividade para aprendizado, o cotidiano da profissão, que só será adquirido com a prática.
Não se pode, dessa feita, marginalizar o labor do estagiário, atribuindo-lhe funções desregradas, repassando o empregador finalidades inespecíficas ao aluno, de maneira que venha a colocá-lo como mero oficce
boy de luxo, ou então, a expressão vulgarmente elencada de “escraviário”,
coagindo-o a efetuar serviços bancários, xerox, serviços particulares do sócio da empresa e até mesmo faxinas dentro do estabelecimento comercial,
prejudicando em muito sua atividade de aprendizado profissional.
Três são os requisitos para a caracterização do trabalho do estagiário:
a) matrícula e frequência regular do educando em curso de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da
educação especial e nos anos finais do ensino fundamental, na
modalidade profissional da educação de jovens e adultos e atestados pela instituição de ensino;
b)celebração de termo de compromisso entre o educando, a parte
concedente do estágio e a instituição de ensino;
c) compatibilidade entre as atividades desenvolvidas no estágio e
aquelas previstas no termo de compromisso.
Assim, se não houver esses requisitos, não se caracteriza atividade
de estágio, mas sim, de emprego comum regido pela CLT.
Devido à atividade do estagiário ser ligada à de sua formação escolar, é necessário que se observe o parâmetro de sua jornada laborativa, o
que não poderá ultrapassar de 4 (quatro) horas diárias e 20 (vinte) horas
semanais, no caso de estudantes de educação especial e dos anos finais do
ensino fundamental, na modalidade profissional de educação de jovens e
adultos e, de 6 (seis) horas diárias e 30 (trinta) horas semanais, no caso de
estudantes do ensino superior, da educação profissional de nível médio e
do ensino superior regular.
Se houver jornada superior aos horários estipulados pela Lei
11.788/08, é descaracterizada a atividade laboral de estágio e passa a ser
considerada de empregado regido pela CLT, razão pela qual, se dessa forma for, serão computadas como horas extraordinárias as que passarem das
8 diárias ou 44 semanais.
Por derradeiro, a atividade em estágio remunerado, para não atrair
pastas trabalhistas e descontentamento das empresas, deve ser rigorosa-
12
Estágio mascarado – Estagiário marginalizado
mente observada, nos parâmetros da Lei 11.788/08, sendo certo que, ao
estagiário, deve ter preservado sua habilidade para o aprendizado da prática, o que, muitas vezes, não se consegue em sala de aula.
UMA ANÁLISE DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA
JULGADA INCONSTITUCIONAL1
Adriana Koszuoski Ziezkowski2
Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros3
INTRODUÇÃO
A presente monografia analisa o instituto da relativização ou desconsideração da coisa julgada, com enfoque na inconstitucionalidade,
tema extremamente polêmico e que tem gerado calorosas discussões entre
doutrinadores e juristas em geral.
Quanto ao desenvolvimento deste, no primeiro capítulo têm-se
um breve delineamento histórico sobre a evolução do processo civil no
mundo, bem como sobre seu desenvolvimento no Brasil. Aborda ainda a
evolução da coisa julgada nos direitos romano e medieval, até alcançar a
análise desse instituto no direito moderno.
Segue com uma abordagem geral sobre a sentença e a coisa julgada,
trazendo conceitos e noções sobre seus requisitos, efeitos, tipos, classificação, limites e importância no mundo jurídico.
Analisar-se-á a tendência à relativização da coisa julgada, enfocando
seu conceito e seus fundamentos. Além dos argumentos favoráveis à sua
aplicação, serão explanados os argumentos contrários à sua desconstituição, objetivando demonstrar que existe conflito entre a res iudicata (coisa julgada) e outros princípios igualmente merecedores de agasalho, por
estarem, também, acobertados pelo manto constitucional. Serão também
expostos os meios processuais hábeis a desconstituir a coisa julgada.
Ao aclarar a possibilidade de reforma das decisões transitadas em
julgado e analisar esta tese sob a ótica da base do nosso ordenamento jurídico, sopesando seus benefícios, que vão de encontro a alguns princípios
constitucionais, teremos uma noção mais crítica e fundamentada acerca
1 Artigo resultante da monografia apresentada à Faculdade de Direito – Unic, sob a orientação da
professora MS.c Adriana Koszuoski Ziezkowski.
2 Professora da Universidade de Cuiabá, mestre em Relações Internacionais para o Mercosul pela
Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul, Florianópolis, SC.
3 Acadêmica do Curso de Direito da Universidade de Cuiabá – Unic
14
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
das vantagens e desvantagens de desconsiderar a imutabilidade da coisa
julgada em face de decisões mais justas e principalmente em conformidade
com a Carta Maior.
Objetiva demonstrar as hipóteses de sentenças e, conseqüentemente, coisas julgadas “inconstitucionais” e abordar meio possível de desconstituir essas decisões transitadas em julgado em desconformidade com a
Carta Maior, quando já não cabem mais os instrumentos processuais previstos em lei.
DA SENTENÇA
CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA
As partes possuem o direito subjetivo de invocar a prestação jurisdicional, que corresponde ao dever do Estado em declarar a vontade da lei
para pôr fim à lide. E assim, o juiz, representando o Estado, cumpre o seu
dever por meio da sentença.
Conforme a interpretação dos artigos 162, § 1º, e 269, caput, do
Código de Processo Civil, conclui-se que sentença é o ato do juiz que extingue o processo ou põe fim à fase de conhecimento resolvendo ou não
o mérito da demanda.4
O mestre Arruda Alvim discorre sobre a natureza jurídica da sentença e diz que:
[...] é ato intelectual de índole, ou com estrutura, predominantemente lógica (formal e material), que pressupõe apuração dos fatos e
identificação da norma, através da qual o Estado-juiz se manifesta,
concretizando imperativamente a vontade do legislador, traduzida ou
expressada pela lei.5
Assim, acerca natureza jurídica da sentença pode-se dizer que ela é a
conclusão de um trabalho de análise e crítica dos fatos e do direito pelo juiz,
o qual, representando o Estado, concretiza os preceitos, as vontades da lei.
4 BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/
L5869.htm>. Acesso em: 10 mar. 2010.
5 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 8.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. v.
2, p. 649, 650.
Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski
15
REQUISITOS DA SENTENÇA
Para que uma sentença seja eficaz, é necessário que reúna condições intrínsecas e formais, prescritas ou não pela lei, de modo que a
inobservância pode levar à nulidade da decisão. Os requisitos formais, por
serem lógicos, não mais estão expressos em lei, contrariamente aos essenciais, como a seguir veremos.
REQUISITOS FORMAIS
Os requisitos formais da sentença, apesar de não mais serem mencionados expressamente na lei, a doutrina se encarrega de enumerá-los. A
esse respeito, Humberto Theodoro Junior justifica que “tão lógica é essa
exigência que o novo Código nem sequer a mencionou diretamente”6. São
dois os mais importantes: a clareza e a precisão.
Quanto à clareza, se faz necessária a sua presença para evitar obscuridades, incertezas e contradições. Deve ser empregada uma linguagem
simples, porém utilizando-se de vocabulário técnico-jurídico sempre que
necessário for.7
Em relação à precisão, a sentença deve ser exata, munida do rigor
necessário, a fim de impedir o surgimento de dúvidas. Deve se limitar aos
requerimentos do autor, não dando além do que foi pedido, nem a mais,
tampouco deixando de apreciar parte do que lhe foi posto sob seu crivo.
Da mesma forma, não deve ser proferida sentença ilíquida se o pedido
formulado foi certo.
REQUISITOS ESSENCIAIS
Os requisitos essenciais estão definidos no artigo 458 do CPC, que
são o relatório, os fundamentos de fato e de direito (motivação) e o dispositivo, que corresponde à conclusão da sentença.
Importante enfatizar que essas formalidades previstas na lei são indispensáveis, visto que a sua inobservância acarreta a nulidade da sentença.
6 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit. p. 501.
7 Idem, p. 501.
16
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
RELATÓRIO
É no relatório da sentença que o juiz delimita o campo do pedido do
autor, bem como as razões do réu e ainda as controvérsias que devem ser
resolvidas, sempre observando a clareza, a precisão e a síntese, sem, contudo, ser omisso. Deve nele conter os elementos identificadores da lide, que
são o nome das partes, a síntese do pedido do autor e a resposta do réu.
Essa peça da sentença possibilita à sociedade verificar se o magistrado conhece dos autos, já que nela deve conter a demonstração de tudo
o que aconteceu no processo, obrigando-o a estudá-lo em sua totalidade.
Parafraseando Pontes de Miranda, citado pelo eminente professor
Moacyr Amaral Santos, o relatório “é a exposição, que o juiz faz, de todos
os fatos e razões de direito que as partes alegaram, e da história relevante
do processo”.8
FUNDAMENTAÇÃO
Depois de preparar o processo para o julgamento, porém antes de
decidi-lo, cumpre ao magistrado motivar sua decisão, e assim expõe os
fundamentos de fato e de direito que formaram a sua convicção, na etapa
da sentença denominada de motivação ou fundamentação.
Nesse requisito da sentença, o vencido no processo pode entender
os motivos que o levaram ao insucesso na demanda, e assim interpor
recurso, rebatendo cada uma das razões apontadas pelo magistrado de
primeiro grau. Além disso, não só as partes, mas também a sociedade, a
opinião pública, precisam conhecer dos motivos da decisão, para assim
se convencerem. Por essas razões, “diz-se que a motivação da sentença
redunda de exigência de ordem pública”.9
Ademais, a motivação/fundamentação permite ao órgão de segundo grau compreender as razões que sustentaram a convicção do juiz de
primeira instância.
Por outro lado, a obrigatoriedade desse requisito, assim como o
relatório, exige que o magistrado faça um exame criterioso e apurado dos
fatos, o que consequentemente faz com que seja atento e cuidadoso ao
8 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de processo civil. 1974, v.5. Apud SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 3, p. 16.
9 SANTOS, Moacyr Amaral. Op. cit., p. 19.
Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski
17
apreciar a demanda e emitir a sentença.
A propósito, sobre a importância da motivação, entende José Frederico Marques, citado pelo ilustre professor Humberto Theodoro Júnior,
que:
[...] o magistrado, examinando as questões de fato e de direito, constrói
as bases lógicas da parte decisória da sentença. Trata-se de operação
delicada e complexa em que o juiz fixa as premissas da decisão após
laborioso exame das alegações relevantes que as partes formularam,
bem como do enquadramento do litígio nas normas aplicáveis.10
Não bastasse, a legislação infraconstitucional, através do artigo 458,
inciso II do Código de Processo Civil Brasileiro, que prevê a motivação
como requisito essencial da sentença, sua importância é consagrada pelo
artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, que exige a fundamentação
em todas as decisões judiciais, sob pena de nulidade.
DISPOSITIVO
Também chamada de conclusão da sentença, esta é a parte em que,
aplicando a lei ao caso concreto, o juiz acolhe ou não, no todo ou em parte, os
pedidos deduzidos pelo autor, e em caso de procedência, determina o que
deve ser feito para que o direito material seja efetivamente realizado. Assim,
é no dispositivo que reside a ordem, o comando, característicos da sentença.
A ausência do dispositivo em uma sentença revela haver um ato
inexistente. Em verdade não há, nem nunca existiu sentença, já que este
requisito é elemento substancial do julgado.
O dispositivo pode ser direto ou indireto. Será direto quando especificar a prestação imposta às partes, quando o juiz decidir exprimindo
com suas palavras, e indireto quando o magistrado apenas se reportar ao
pedido do autor para julgá-lo procedente ou improcedente.11
Importante frisar que o dispositivo encerra muita importância, já que
apenas essa parte da sentença é revestida pela autoridade da coisa julgada
material, após o trânsito em julgado.
10 MARQUES, José Frederico. Instituição de direito processual civil. Rio de Janeiro, 1959, v.3. Apud
THEODORO JUNIOR, Humberto. Op. cit., p. 500-501.
11 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 501.
18
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
COISA JULGADA
NATUREZA E DEFINIÇÃO
Proferida a sentença, seja terminativa ou definitiva, é possível a interposição de recurso com a finalidade de reformá-la. Decorrido o período
recursal, a decisão torna-se irrecorrível, e a partir desse momento ocorre o
trânsito em julgado da sentença, surgindo, assim, a coisa julgada.
Parafraseando Vicente Greco Filho, “a coisa julgada, portanto, é a
imutabilidade dos efeitos da sentença ou da própria sentença, que decorre
de estarem esgotados os recursos eventualmente cabíveis”.12
Ao estabelecer a imutabilidade da sentença a partir do momento em
que a decisão se torna irrecorrível, o Estado busca segurança jurídica, que
seria impossível de se alcançar se as questões decididas pelo Poder Judiciário pudessem ser discutidas ad infinitum (até o infinito).
Sobre a coisa julgada, o mestre Alexandre Freitas Câmara entende que:
A nosso juízo a coisa julgada se revela como uma situação jurídica. Isto
porque, com o trânsito em julgado da sentença, surge uma nova situação, antes inexistente, que consiste na imutabilidade e indiscutibilidade
do conteúdo da sentença, e a imutabilidade e indiscutibilidade é que
são, em verdade, a autoridade de coisa julgada. Parece-nos, pois, que a
coisa julgada é esta nova situação jurídica, antes inexistente, que surge
quando a decisão judicial se torna irrecorrível.13
Ao entendermos o que é a coisa julgada e suas premissas, concluímos que ela se apresenta como um dogma jurídico, um instituto intransponível, capaz de assegurar a imutabilidade das decisões judiciais, evitando
que modificações sejam possíveis após o trânsito em julgado de uma decisão judicial.
Ocorre, porém, que este entendimento tem sido flexibilizado diante
de claras situações de injustiça, em que se sobrepõe a forma sobre o conteúdo, o que jamais deveria ocorrer. E, com a costumeira sabedoria, reflete
12 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 2,
p. 274.
13 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 16.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2007. v.1, p. 487.
Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski
19
Cândido Rangel Dinamarco, citado pelo ilustre Montenegro Filho que “os
princípios existem para servir à justiça e ao homem, não para serem servidos como fetiches da ordem processual”14. Os motivos ensejadores dessa
flexibilidade serão abordados mais adiante.
COISA JULGADA FORMAL E COISA JULGADA MATERIAL
Necessário tratar destes dois momentos da coisa julgada. Como já
dito, a definitividade de uma sentença nasce a partir do momento em que
determinada decisão já não admite recurso, ou seja, quando se verifica a
ocorrência do trânsito em julgado.
Tendo a decisão resolvido ou não o mérito da demanda, se tornará
imutável, e a este fenômeno chamamos de coisa julgada formal, que é a
imutabilidade da decisão dentro do mesmo processo. Assim, em certo momento, todas as decisões fazem coisa julgada formal.15
Ocorre, porém, que a coisa julgada formal opera-se dentro do processo findo, em nada impedindo que se reabra a discussão em outro feito.
Já a coisa julgada material, por resolver o mérito da causa e incidir
sobre sentenças definitivas, tem a autoridade de tornar imutável e indiscutível o objeto da demanda dentro e fora do processo. Significa dizer que,
formada a coisa julgada material, não poderá a mesma matéria ser rediscutida em nenhum outro processo.
O douto jurista Eduardo Talamini assim define a coisa julgada material:
[...] pode ser configurada como uma qualidade de que se reveste a
sentença de cognição exauriente de mérito transitada em julgado, qualidade essa consistente na imutabilidade do conteúdo do comando sentencial.16
Assim, seguindo esse entendimento, conclui-se que a coisa julgada
formal traduz a imutabilidade da sentença, enquanto que a coisa julgada
material, a imutabilidade do conteúdo da sentença.
14 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v.1, p. 249. Apud MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de direito processual civil. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2007. v. 1, p. 565.
15 GRECO FILHO, Vicente. Op. cit., p. 274.
16 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 30.
20
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
LIMITES
Importante se faz delimitar os efeitos da coisa julgada, que estabelece a “lei ao caso em concreto”, capaz de reger a situação deduzida em juízo. Deve-se saber a quem ela se estende e também que parte da sentença
está sujeita ao trânsito em julgado.
LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA
O artigo 468 do CPC regulamenta que a sentença faz coisa julgada
nos limites do objeto da demanda, ou seja, apenas aquilo que foi deduzido
no processo e, consequentemente, o que foi objeto de cognição judicial.
Significa dizer que o que não tiver sido objeto do pedido não estará
acobertado pela autoridade da coisa julgada.
Os artigos 469 e 470 do codex (código) processual complementam
esse sistema concluindo que apenas a parte dispositiva da sentença transita
em julgado, como já dito.
A apreciação de questões prejudiciais também não é acobertada
pela coisa julgada, senão quando tiver havido ação declaratória incidental,
uma vez que terá passado a integrar o objeto principal do processo, conforme entendimento do artigo 470 do Código de Processo Civil.
Também integra o sistema dos limites objetivos da coisa julgada o
artigo 474 do CPC, que trata da eficácia preclusiva da res iudicata (coisa
julgada), segundo o qual:
Art. 474. Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor
assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.17
Com esse dispositivo conclui-se que, uma vez alcançada a autoridade da coisa julgada, todas as alegações que poderiam ter sido feitas em juízo e não o foram tornam-se irrelevantes, já que os motivos de uma sentença não transitam em julgado, mas tão-somente o dispositivo da sentença.
Isso porque não se poderia admitir que, sempre que a parte vencida se lembrasse de algo que esqueceu ou por outro motivo não levou ao
conhecimento do magistrado, pudesse reabrir a discussão.
17 BRASIL. Código de Processo Civil. Op. cit.
Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski
21
Portanto, por esse dispositivo torna-se impossível voltar a discutir,
em qualquer processo, o que já está coberto pelo manto da coisa julgada.
LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA
A coisa julgada tem também limites subjetivos, que estão tratados
no artigo 472 do CPC, em que estabelece que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando
terceiros”.18 Essa norma é corolário das garantias constitucionais do devido
processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da inafastabilidade da
jurisdição. É com brilhantismo que nos explica o mestre Eduardo Talamini
acerca do assunto:
Estaria sendo vedado o acesso à justiça ao terceiro, caso se lhe estendesse a coisa julgada formada em processo alheio. Depois, isso implicaria privação de bens sem o devido processo legal. Haveria ainda a
frustração da garantia do contraditório: de nada adiantaria assegurar o
contraditório e a ampla defesa a todos os que participam de processos
e, ao mesmo tempo, impor como definitivo o resultado do processo
àqueles que dele não puderam participar.19
Dessa forma, como regra, a coisa julgada faz a sentença imutável e indiscutível apenas entre as partes, não podendo tal autoridade atingir terceiros,
estranhos ao processo em que imutabilidade e indiscutibilidade se formaram.
É certo que, por vezes, o terceiro não consegue se subtrair dos efeitos definitivos da sentença, mas não porque a coisa julgada se estende a
ele, e sim porque a relação jurídica de que é titular se subordina com referência àquilo que já foi decidido em outro feito. Assim, Ernane Fidélis dos
Santos exemplifica: “se o terceiro aluga imóvel do réu e este vem a perdêlo, em pedido reivindicatório, a relação locatícia fica prejudicada, sem que
o terceiro nada possa reclamar”.20 Exceto casos dependentes como esse, a
coisa julgada não atinge aqueles que não tiveram a oportunidade de participar do processo.
18 Idem.
19 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 96.
20 SANTOS, Ernane Fidélis dos. Op. cit., p. 633.
22
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
Aqui se percebe nitidamente a relevância da teoria de Liebman acerca
dos efeitos da coisa julgada, em que esta recai sobre os efeitos da sentença,
ou mais especificamente sobre o conteúdo do decisum (resultado), e atingirá, inicialmente, apenas aqueles que participaram como partes no processo.
Em outras palavras, o terceiro, ao ser atingido pela repercussão causada pelos efeitos da sentença em determinado processo, não fica impedido de buscar pronunciamento jurisdicional diverso do decidido no feito
que não participou, não lhe podendo opor a coisa julgada.
A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL
Não obstante ser a coisa julgada a imutabilidade e indiscutibilidade
do conteúdo da sentença de mérito, casos há em que se faz necessário
desconsiderá-la, reabrindo-se a discussão acobertada pelo trânsito em julgado. A isso chamamos de relativização da coisa julgada material, um tema
que tem gerado fervorosas discussões no mundo jurídico.
FUNDAMENTOS DA AUTORIDADE DA COISA JULGADA
Os juristas que sustentam ser absolutamente impossível tornar a discutir o que já está decidido pela sentença transitada em julgado argumentam o seguinte.
Acima de todas as razões, a coisa julgada é uma garantia constitucional, revelando-se uma norma imperativa de segurança jurídica e pacificação dos conflitos sociais.
Além desse grande e maior obstáculo, temos que o nosso Código Processual Civil, nos artigos 471 e 474, impede que o juiz volte a discutir o que já
está acobertado pelo trânsito em julgado. Vejamos o que dispõe o artigo 471:
Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas,
relativas à mesma lide, salvo:
I - se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir
a revisão do que foi estatuído na sentença;
II - nos demais casos prescritos em lei.21
21 BRASIL. Código de Processo Civil. Op. cit.
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23
Essa autoridade da coisa julgada possui interesses de natureza jurídica e
ordem política, e assim Moacyr Amaral Santos fundamenta o interesse político:
A verdadeira finalidade do processo, como instrumento destinado à
composição da lide, é fazer justiça, pela atuação da vontade da lei ao
caso concreto. Para obviar a possibilidade de injustiças, as sentenças
são impugnáveis por via de recursos, que permitem o reexame do litígio e a reforma da decisão. A procura da justiça, entretanto, não pode
ser indefinida, mas deve ter um limite, por exigência de ordem pública,
qual seja a estabilidade dos direitos, que inexistiria se não houvesse um
termo além do qual a sentença se tornasse imutável.22
Portanto, esse é o fundamento político da autoridade da coisa julgada, em que motivos de ordem prática, de certeza do direito, de segurança
no gozo dos bens da vida implicam a necessidade de que haja um limite
nas discussões e prazos recursais.
Com relação à ordem jurídica, o mesmo autor aponta várias teorias
existentes a respeito, vez que não há unidade de pensamento entre os
juristas, no que concerne a esse tema. Vejamos rapidamente cada uma das
mencionadas teorias:
TEORIA DA PRESUNÇÃO DA VERDADE CONTIDA NA SENTENÇA
Essa teoria foi fundada por Ulpiano e guiada pela filosofia escolástica e seus seguidores fundamentavam que a autoridade da coisa julgada
estava baseada na presunção de verdade, contida na sentença.
Segundo a escolástica, o processo tem como finalidade a busca pela
verdade e, em que pese por vezes seja proferida sentença injusta, sem
observância da verdade real, ainda assim produzirá coisa julgada. Assim,
não se pode dizer que uma sentença retrate a verdade, mas tão-somente a
presunção da verdade.23
Essa teoria consagrou-se no código napoleônico, perpetuando-se
em outros códigos, inclusive era a teoria esposada pelo Regulamento 737,
de 1850.
22 SANTOS, Moacyr Amaral. Op. cit., p. 49.
23 Idem, p. 50.
24
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
TEORIA DA FICÇÃO DA VERDADE
Savigny é o criador dessa teoria, que também considera as sentenças
injustas, sejam por erro de fato ou de direito, passíveis de fazerem coisa julgada. Como tal sentença, ao transitar em julgado, não pode deixar de ser considerada como verdadeira, tanto pelas partes, quanto pelo juiz, no mesmo ou
em outro processo, entende-se que a sentença traduz uma ficção da verdade.24
Assim, a autoridade da coisa julgada está na verdade aparente, artificial, na ficção da verdade, mesmo que não seja verdadeira.
TEORIA DA FORÇA LEGAL, SUBSTANCIAL, DA SENTENÇA
Essa teoria, idealizada por Pargenstecher, entende que toda sentença é constitutiva de direito, uma vez que, ao atribuir ao dispositivo a
imutabilidade, indiscutibilidade, inconstestabilidade, a sentença se torna
constitutiva de um direito novo, com força de lei.25
TEORIA DA EFICÁCIA DA DECLARAÇÃO CONTIDA NA SENTENÇA
Seus elaboradores e defensores, dentre eles Hellwig, Binder e Stein,
fundamentam que a eficácia da declaração de certeza trazida pela sentença
impõe às partes o dever de cumpri-la.26
É essa eficácia da declaração que forma a autoridade da coisa julgada, porque corresponde ao fenômeno pelo qual a sentença torna-se
indiscutível, imutável, inconteste, tanto pelas partes, quanto pelos juízes.
TEORIA DA EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO JURISDICIONAL
Teoria construída por Ugo Rocco, cujos conceitos de sentença e
coisa julgada se prendem aos conceitos de ação e jurisdição.27
Assim, ação é o direito subjetivo do indivíduo pedir que o Estado
solucione um conflito, enquanto que jurisdição se traduz na obrigação
estatal de declarar o direito.
24 SANTOS, Moacyr Amaral. Op. cit., p. 50.
25 Idem, p. 51
26 Idem, p. 51, 52.
27 SANTOS, Moacyr Amaral. Op. cit., p. 52.
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25
Nesse raciocínio, sentença é o ato culminante, o meio pelo qual o
Estado declara o direito aplicável, prestando sua obrigação jurisdicional.
Portanto, a sentença pressupõe a extinção da jurisdição e, por conseguinte,
o direito de ação, resultando em uma sentença estável, imutável, produtora
de coisa julgada.
TEORIA DA VONTADE DO ESTADO
Essa teoria, de grande aceitação na Alemanha, teve Chiovenda como
um dos mais ilustres defensores.
Segundo ela, a sentença é um comando, um ato de inteligência e
vontade, proferido por um juiz, cuja autoridade provém da vontade estatal.
É o Estado que lhe confere força obrigatória, imutabilidade e indiscutibilidade, justamente porque seu dispositivo está pautado na lei.28
TEORIA DE CARNELUTTI
Carnelutti, assim como Chiovenda, defende que a autoridade da
coisa julgada provém do Estado. Para melhor compreensão desta, é interessante que se compare com a teoria anterior.
Chiovenda entende que a sentença traduz a lei ao caso concreto, e,
portanto, a substitui. Assim, o comando da sentença é autônomo, paralelo
ao comando da lei. Já Carnelutti entende que o comando da sentença pressupõe o da lei, sendo suplementar, e não autônomo. Este comando contém
imperatividade, por emanar de um juiz e assim consistir um ato estatal.29
Dessa forma, a coisa julgada está na imperatividade do comando.
Nota-se que há inversão do fenômeno processual da coisa julgada.
Enquanto que para as demais teorias a coisa julgada material pressupõe
a formal, para ele, esta é que pressupõe aquela. Assim, a imperatividade
da decisão constitui a res iudicata (coisa julgada) material, sendo, com a
preclusão dos recursos, transformada em coisa julgada formal.30
28 Idem, p. 53.
29 SANTOS, Moacyr Amaral. Op. cit., p 54.
30 Idem, p. 54.
26
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
TEORIA DE LIEBMAN
Para Liebman, a eficácia natural da sentença é condicionada à verificação da justiça e legalidade da decisão, através dos recursos. Portanto,
produzirá os efeitos normais a partir da preclusão dos recursos de efeito
suspensivo.31
Enquanto a sentença estiver produzindo seus efeitos normais, está
passível de reforma. Porém, após a preclusão de todos os recursos, a eficácia da sentença se reforça, formando a coisa julgada formal, que consiste
na imutabilidade da sentença. Depois, como consequência, tem-se a coisa
julgada material, consistente na imutabilidade dos efeitos da sentença.32
Enfim, são muitos os renomados doutrinadores que defendem a tese
da imutabilidade da coisa julgada e a predominância de sua autoridade.
Eles argumentam ainda que a possibilidade de o juiz desconsiderar a
coisa julgada diante de determinados casos importa em estimular a eternização dos conflitos e o agravamento na demora pela pacificação das lides.
Entretanto, mesmo com toda essa gama de valores e garantias que
acobertam a res iudicata (coisa julgada), não se pode concluir que o nosso
sistema jurídico tenha previsto todos os mecanismos para torná-la imutável.
ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À DESCONSIDERAÇÃO DA COISA JULGADA
Em alguns casos é preciso reconhecer que a res iudicata (coisa
julgada) deve ser afastada, que a realidade não deve se submeter à indiscutibilidade da coisa julgada, portanto, não há que se falar em prazo para
ação rescisória.
Nesse sentido, muitos doutrinadores defendem que a coisa julgada
não deve subsistir diante de graves injustiças, porém, não parece sábio que se
desconstitua uma sentença sempre e apenas por mostrar-se injusta, e sobre
esse ponto se manifesta o grande processualista alemão Othamar Jauerning:
[...] a intangibilidade da declaração transitada em julgado não pode ser
aplicada sem exceções. Questiona-se sobre que pressupostos pode ser
admitida a ofensa do caso julgado. Não é permitida a revogação ou
alteração da sentença por simples incorreção. Senão, bastaria a simples
31 Idem, p. 54.
32 Idem, p. 55, 56.
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27
afirmação da incorreção para impugnar qualquer sentença com trânsito
em julgado e, assim, poderia repetir-se, novamente, qualquer processo
findo. A parte vencedora no processo (anterior) seria forçada a discutir
sempre de novo com a parte contrária e apenas seriam decisivos a obstinação e o poder financeiro, quando a calma chegasse. Desse modo,
o caso julgado perderia o seu significado. É mais suportável que uma
sentença incorreta exista e deva aceitar-se, que qualquer sentença possa
ser impugnada a todo momento. Assim, o caso julgado garante que,
mesmo no caso concreto, domine a segurança jurídica e desse modo
um elemento essencial do Estado de direito e isso significa que um
princípio constitucional do GG é realizado.33
Defendem que é possível desconsiderá-la, não apenas quando se
caracterizar injusta, mas quando, consequentemente, incidir sobre uma
sentença que contraria a Constituição Federal, o que pode ser chamado de
sentença inconstitucional transitada em julgado, que brilhantemente explica o professor Alexandre Freitas Câmara:
A rigor, o que contraria a Constituição não é a coisa julgada, mas o conteúdo da sentença. Essa sentença inconstitucional, aliás, já contrariava a
Lei Maior antes de transitar em julgado. É a sentença, pois, e não a coisa
julgada, que pode ser inconstitucional.34
Como sabemos, a inconstitucionalidade é vício insanável e, admitindo-se que uma sentença inconstitucional seja acobertada pelo manto
da coisa julgada, seria admitir que tal imutabilidade estivesse acima do
controle de constitucionalidade, e mais: implicaria admitir que o juiz tem
o poder de afastar norma constitucional em um dado caso em concreto.
Em vista disso é que se sustenta a possibilidade de desconsiderar
a coisa julgada em casos em que a autoridade incida sobre sentença que
ofende a Carta Maior, e assim, julgar novamente a causa, como se aquela
decisão não existisse.
Ademais, a tese da desconsideração da coisa julgada encontra guarida em três princípios básicos, além do ponto de vista constitucional: o da
proporcionalidade, o da instrumentalidade e o da legalidade.
33 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit., p. 493.
34 Idem, p. 494.
28
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
No tocante a este último princípio, tem-se que o processo, enquanto instrumento do direito, somente tem sentido se baseado nos ideais de
Justiça e adequação à realidade.
O princípio da legalidade significa dizer que o Estado, que detém o
poder-dever de julgar, deve-se ater aos limites da lei, portanto, conclui-se
que o Estado não deve conferir proteção à coisa julgada, quando esta é
alheia ao direito positivo.
Sustenta o princípio da proporcionalidade que a coisa julgada é apenas mais um princípio acobertado pela Constituição Federal, assim como
muitos outros igualmente dignos de proteção, e assim, pode ceder diante
de outro valor merecedor de agasalho.35
Sabemos que a proporcionalidade é uma regra hermenêutica, e assim, pode solucionar situações de choque entre a manutenção da coisa
julgada e a proteção de bem que faz indispensável à revisão do julgado.
É de se concluir, portanto, que nem toda situação de injustiça ou
desarmonia com o ordenamento constitucional implica ineficácia ou nulidade do julgado.
Segundo Cândido Rangel Dinamarco, citado pelo mestre Eduardo
Talamini, o papel principal é desempenhado pela ponderação de valores.
O ilustre professor defende que deve ser feito um juízo comparativo entre
a relevância ético-política da coisa julgada material como fator de segurança jurídica e a grandeza de outros valores humanos, éticos e políticos,
alçados à dignidade de garantia constitucional tanto quanto ela.36
Assim, através desse juízo de comparação é que casos graves e excepcionais devem ser identificados para que se afastem os efeitos da coisa julgada.
ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À TESE DA RELATIVIZAÇÃO
DA COISA JULGADA
Há ainda grandes doutrinadores que discordam da tese da “relativização” da coisa julgada quando não mais couberem os instrumentos
previstos em lei, como a ação rescisória. Assim entendem Araken de Assis,
Nelson Nery Júnior, Luiz Guilherme Marinoni, dentre outros.
35 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Op. cit., p. 663.
36 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 393.
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29
Esses doutrinadores exaltam o valor constitucional da garantia e autoridade da res iudicata (coisa julgada) e argumentam que, ao estabelecer
esse instituto como garantia constitucional, a Carta Maior já fez a ponderação entre a segurança jurídica e a possibilidade de eventuais sentenças
injustas e conflitantes com demais princípios previstos na Magna Carta.
Essa vertente da doutrina assume a coexistência de valores constitucionais que por vezes entram em conflito, porém defende que esses
valores devem ser ponderados. Ocorre que essa ponderação deve ser feita
pela própria lei.
Seguindo esse raciocínio, entende que o princípio da proporcionalidade já estaria retratado na admissão de ação rescisória e outros meios
previstos nas normas positivadas. Para eles, jamais seria possível invocar o
princípio da proporcionalidade para desconstituir a coisa julgada em um
caso em que falte expressa previsão.37
MEIOS PROCESSUAIS PREVISTOS PARA A DESCONSTITUIÇÃO
DA COISA JULGADA
Importante discorrer sobre os meios processuais aptos a desconstituir decisão acobertada pela coisa julgada, para que se saiba identificar
quando é possível utilizar-se de via processual típica e quando já não mais
é cabível, devendo lançar mão da “quebra atípica da coisa julgada”.38
AÇÃO RESCISÓRIA
Essa ação, prevista no art. 485 do codex (código) processual brasileiro é uma das formas de se impugnar, desconstituir ou rescindir – como
diz o nome – uma sentença definitiva transitada em julgado. Em outras
palavras, é um meio para se desconstituir a coisa julgada material.39
Embora a coisa julgada sane os vícios que se verificaram no processo, o fato de tornar determinada decisão indiscutível é injustiça tão grave e
tão ofensiva aos princípios que norteiam nosso ordenamento jurídico, que
se fez necessário prever alguns mecanismos para revisar a decisão transi37 Idem, p. 400.
38 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 615.
39 BRASIL. Código de Processo Civil. Op. cit.
30
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
tada em julgado, e um deles é a ação rescisória.40
É ação de competência originária dos Tribunais, cujos fundamentos
estão expressamente previstos no mencionado art. 485, não admitindo interpretação extensiva. São eles:
I- prevaricação, concussão ou corrupção do juiz da causa;
II- juiz impedido ou absolutamente incompetente;
III- dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou conluio com objetivo de fraudar a lei;
IV- ofensa à coisa julgada;
V- violação de literal dispositivo de lei;
VI- baseada em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo
criminal ou na própria ação rescisória;
VII- depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe
assegurar pronunciamento favorável;
VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;
IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa.41
Em verificando qualquer dessas hipóteses, a parte prejudicada pode
propor ação rescisória destinada a obter a anulação da coisa julgada, permitindo a revisão do julgamento.42
Além de estar presente uma dessas hipóteses, é necessário que haja
uma sentença que aprecie o mérito da demanda, acolhendo ou rejeitando,
no todo ou em parte, o pedido formulado. Necessário ainda a ocorrência
da coisa julgada material sobre essa decisão, em função da preclusão da
faculdade recursal sobre ela, e o não exaurimento do prazo previsto para
a propositura da ação rescisória, que é de dois anos a partir do trânsito em
julgado da decisão rescindenda.
Para desconstituir uma sentença meramente homologatória ou atos
judiciais que independem de sentença, utiliza-se a ação anulatória, como
veremos a seguir, portanto, descabida está a ação rescisória para esses
tipos de decisões.
40 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 3.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. v. 1, p 649.
41 BRASIL. Código de Processo Civil. Op. cit.
42 Idem.
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31
AÇÃO ANULATÓRIA
A denominada “Ação Anulatória de Ato Judicial” apenas rescinde sentenças homologatórias ou atos judiciais que não dependem de sentença, e
não as lides apreciadas e decididas conforme o entendimento do magistrado
Sua base formal encontra-se no art. 486 do CPC, conforme descrição
abaixo:
Art. 486. Os atos judiciais, que não dependem de sentença, ou em que
esta for meramente homologatória, podem ser rescindidos, como os
atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil.43
O termo “rescindidos” é utilizado inadequadamente no referido artigo, uma vez que não se trata de “rescindir”, mas sim de “anular” determinados atos. Assim, a ação anulatória é cabível sempre que houver fundamento para impugnar sentença homologatória que não é apta a alcançar
a autoridade de coisa julgada material, a exemplo das homologatórias de
divórcio consensual.
Já para se definir a base material para este tipo de ação, deve-se realizar um exame do “ato judicial” com a finalidade de se concluir se encontra
ou não guarida no direito material, ou seja, sempre que houver algum vício
causador de anulabilidade de ato jurídico, será cabível ação anulatória.
Ocorre que esse vício, esse fundamento, deve estar previsto em
norma de direito material, não necessariamente em normas de direito civil,
mas sim na lei civil, como, por exemplo, os vícios do consentimento como
dolo, erro, coação, fraude, simulação, dentre outros.
A expressão “nos termos da lei civil” deve ser interpretada de forma
extensiva, e, acerca disso, explica-nos José Arnaldo Vitagliano, citando
Humberto Theodoro Júnior:
Os fundamentos da ação anulatória deverão ser procurados no direito
material. A expressão “lei civil” do art. 486 deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo todos os ramos do direito material.44
43 BRASIL. Código de Processo Civil. Op. cit.
44 THEODORO JÚNIOR, Humberto. A Ação Rescisória e o Problema da Superveniência do Julgamento da Questão Constitucional. In: Revista de Processo, 79. p. 167. Apud VITAGLIANO,
José Arnaldo. Coisa julgada e ação anulatória. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/
texto.asp?id=4206&p=1 > Acesso em: 26 fev. 2010.
32
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
Portanto, não devemos interpretar restritivamente a expressão “lei
civil”, pois os motivos de anulabilidade são os previstos em quaisquer
normas de direito material de todos os ramos, não apenas especificamente
relativas ao direito civil.
Importante fixar que não se aplica à ação anulatória o disposto no artigo 495 de nosso código processual, sendo certo que o prazo decadencial
é o fixado pela norma de direito substancial aplicável ao caso concreto.45
No tocante à competência, é do juízo de primeira instância e, por
força do artigo 108 do Código de Processo Civil, será atribuída ao mesmo
juízo onde tramitou originariamente o processo que contém o ato que se
pretende invalidar, anular. Seguirá o procedimento comum, ordinário ou
sumário, conforme o valor da causa.46
Considerando que o julgamento de procedência do pedido deduzido
na ação anulatória pode produzir importantes consequências no processo
em que o ato anulado foi praticado, é necessário que este seja suspenso até o
julgamento final da ação anulatória, no caso de ainda estar em andamento.
Porém, se o processo principal findou-se antes de proposta a ação anulatória, deve ser retomado a partir do ponto em que o ato cassado foi praticado.
QUERELA NULLITATIS
Esse instituto contribuiu, juntamente com outros, para o surgimento
da ação rescisória e até hoje é utilizado.
Quando se verifica alguma nulidade na sentença e o processo está
dentro do biênio a que se refere o artigo 495 do Código de Processo Civil,
é possível que o interessado escolha entre o ajuizamento de ação rescisória
e a querela nullitatis. Porém, se tiver fora do referido prazo, o interessado
poderá propor a ineficácia da sentença apenas através da querela nullitatis, conforme os ensinamentos de Câmara em sua obra “Ação Rescisória”.47
Frequentemente se vê a afirmação de que esse instituto tem por
finalidade declarar a nulidade de uma sentença. Ocorre, porém, que a
querela nullitatis deve ser compreendida como um instrumento apto a
declarar a ineficácia de uma sentença, e não sua nulidade.
45 CÂMARA, Alexandre Freitas. Ação rescisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 273.
46 BRASIL. Código de Processo Civil. Op. cit.
47 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit., p. 277.
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33
Isso porque, como se sabe, a coisa julgada possui eficácia sanatória
geral, fazendo desaparecer os vícios da sentença com o trânsito em julgado.
Dessa forma, as sentenças impugnáveis através da querela nullitatis existem,
até porque, se fossem elas nulas ou inexistentes, não se pensaria em remédios processuais para atacá-las, já que a inexistência não convalesce jamais.
COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
A coisa julgada, como já explanado, é apenas a imutabilidade que
recai sobre a sentença. Portanto, quando se faz alusão à coisa julgada
inconstitucional, na verdade, trata-se de uma sentença inconstitucional revestida de res iudicata (coisa julgada). Porém, é correto dizer “sentença
inconstitucional”?
Por um lado, a inconstitucionalidade é característica normalmente
reservada às normas. Os atos de aplicação da norma, como a sentença,
geralmente não recebem essa qualificação, e dessa maneira, também não
estão submetidos aos mecanismos de controle de constitucionalidade. O
que pode ocorrer é que tais atos podem ser aludidos como nulos, ineficazes ou inexistentes quando contrários à Carta Magna.
De outro canto, embora não crie normas gerais e abstratas, a sentença declara a vontade da norma in concreto (em concreto). Assim, a
sentença não pode ser considerada apenas como mero efeito das normas,
justificando-se convencionar a atribuição do qualificativo “inconstitucional” às sentenças.48
Nesse mesmo sentido compreende-se a alusão à coisa julgada inconstitucional, até porque nesses casos verifica-se a gravidade inerente ao
impedimento em revisar a sentença.
De maneira sábia, Eduardo Talamini indaga:
Daí que a primeira utilidade da expressão ‘coisa julgada inconstitucional’ está a enfatizar o cerne da questão: em que medida a garantia
constitucional da coisa julgada deve prevalecer quando está conferindo
estabilidade, ‘imunidade’, a um pronunciamento incompatível com outros valores e normas constitucionais?49
48 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 404.
49 Idem, p. 405.
34
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
Segundo ele, a expressão “coisa julgada inconstitucional” deixa claro que toda e qualquer discussão sobre quebra da coisa julgada só é legítima se norteada por parâmetros constitucionais.50
HIPÓTESES DE SENTENÇA (E COISA JULGADA) INCONSTITUCIONAL
Como dito acima, a inconstitucionalidade aqui assume o sentido
amplo de situação incompatível entre um ato e uma norma.
Para melhor compreensão, analisemos cada uma das hipóteses.
A SENTENÇA AMPARADA NA APLICAÇÃO DE NORMA INCONSTITUCIONAL
Pode acontecer de a sentença se basear em:
I - uma norma que já foi declarada inconstitucional em sede de controle
concentrado ou que foi suspensa pelo Senado, depois de reconhecida
incidentalmente sua inconstitucionalidade pelo Supremo;
II - uma norma que, posteriormente, vem a ser declarada inconstitucional pelo controle concentrado;
III - uma norma cuja inconstitucionalidade, embora existente, não é verificada em controle direto, ou porque ele não cabe ou porque nenhum
dos legitimados pleiteou-o e, portanto, não é declarada, tampouco retirada do ordenamento jurídico pelo Senado.51
Ademais, frise-se que a norma inconstitucional não precisa estar na
própria sentença. Pode ter sido aplicada no curso do processo e repercutida na sentença. Portanto, a norma pode ser de direito material como
também de direito processual. Esta é a mais frequente hipótese de coisa
julgada inconstitucional.
50 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 405.
51 Idem, p. 406.
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35
SENTENÇA AMPARADA EM INTERPRETAÇÃO INCOMPATÍVEL
COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Todo problema de interpretação é um problema de ofensa à norma.
E esta é extraída do texto legal mediante a interpretação de seu sentido, e
a interpretação deve estar sempre afinada conforme a Constituição.
Ao aplicar uma norma infraconstitucional, o juiz deve ter o cuidado
de utilizá-la, interpretá-la em conformidade com a Carta Magna.
Tal como na hipótese “a” acima mencionada, a interpretação desconforme a Constituição Federal pode residir na sentença ou em momento
anterior no processo. Pode também recair tanto em dispositivo de direito
material como também em de direito processual. Ademais, ocorre da mesma forma já mencionada:
I- antes do proferimento da sentença, já havia pronunciamento do STF
dizendo que outra era a interpretação conforme;
II- o pronunciamento do STF é posterior à sentença;
III- o juiz interpreta a norma de modo contrário à Constituição, mas
sem que haja qualquer pronunciamento sobre a inconstitucionalidade
daquela interpretação, nem antes, nem após a sentença.52
SENTENÇA AMPARADA NA INDEVIDA AFIRMAÇÃO
DE INCONSTITUCIONALIDADE DE UMA NORMA
A não-aplicação da norma erroneamente considerada como inconstitucional pode representar uma afronta a valores e normas constitucionais, além de ofensa à legalidade. A exemplo, quando uma norma que
dava eficácia a algum direito ou garantia constitucional e, ao deixar de ser
aplicada, verifica-se uma espécie de “inconstitucionalidade por omissão”.53
Quando o juiz interpreta um dispositivo como sendo inconstitucional, está adotando uma interpretação incompatível com a Constituição.
Seria compatível a interpretação do dispositivo que permitisse seu aproveitamento.
52 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 408.
53 Idem, p. 409.
36
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
SENTENÇA AMPARADA NA VIOLAÇÃO DIRETA DE NORMAS
CONSTITUCIONAIS OU CUJO DISPOSITIVO VIOLA DIRETAMENTE
NORMAS CONSTITUCIONAIS
Como exemplo, temos a sentença que nega (ou está baseada em
negativa de) direito assegurado pela Constituição em norma autoaplicável,
de caráter processual ou material, conforme explica-nos Talamini.54
Quando determinada questão está disciplinada apenas na Constituição, essa hipótese fica mais fácil de ser caracterizada, assim, a violação
contida na sentença será sempre uma afronta às normas constitucionais.
Ocorre, porém, que se torna mais problemática essa visualização quando, além da Constituição, uma norma infraconstitucional disciplina o mesmo
tema, ora repetindo comandos constitucionais, ora especificando-os ou estabelecendo outras imposições que são razoáveis decorrências daqueles.55
Na hipótese acima surge a discussão a respeito da “ofensa reflexa”,
que se trata de identificar quando e em que medida está sendo violada a
Constituição e quando essa violação se refere a normas infraconstitucionais, refletindo apenas de forma indireta sobre a disciplina constitucional.56
Para que se configure a sentença inconstitucional, a ofensa à Constituição deve ser verificada autonomamente. Assim, quando a Constituição
remete a disciplina de determinado tema à norma infraconstitucional, a
ofensa à essa norma não constitui “inconstitucionalidade”. Há, porém, que
se fazer a ressalva de que as normas infraconstitucionais devem sempre ser
interpretadas à luz dos princípios previstos na Constituição.
Como nas demais hipóteses, a violação pode incidir sobre norma
processual ou material e situar-se na sentença ou em momento anterior ao
processo, mas desde que tenha repercussão direta sobre a sentença.
Consigne-se que a ofensa direta a princípio constitucional também
se enquadra nesta hipótese de “sentença inconstitucional”, visto que os
princípios possuem força normativa e nada menos que constituem as bases
do sistema constitucional.
54 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 411.
55 Idem, p. 411.
56 Idem, p. 411.
Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski
37
SENTENÇA QUE ESTABELECE OU DECLARA UMA SITUAÇÃO
DIRETAMENTE INCOMPATÍVEL COM OS VALORES FUNDAMENTAIS
DA ORDEM CONSTITUCIONAL
Aqui se encaixa a conhecida hipótese de sentença que incorretamente afirma ou nega uma relação de filiação quando ainda não existiam
as técnicas científicas que hoje existem, e que posteriormente a decisão é
“desmentida” pelo exame de DNA.
Este é, indubitavelmente, o exemplo mais importante de desconsideração da coisa julgada material. Em casos como esse, à época em
que a sentença foi proferida, não houve qualquer violação às garantias
processuais das partes, portanto, não se desconsiderou, nem se aplicou
erroneamente alguma norma. Assim, não há uma violação constitucional
na sentença, nem nos atos que a precederam.
Nesse caso, a incorreção em manter essa sentença é o que constitui
uma grave afronta a um valor fundamental. Ao declarar que uma pessoa é
filha de outra, quando não corresponde à verdade e impedir que a decisão
seja reanalisada é uma afronta ao mais relevante princípio constitucional:
o da dignidade da pessoa humana.
A violação aqui é uma repercussão, um reflexo da sentença. Nesse
sentido, já temos vários julgados favoráveis à desconsideração da coisa
julgada nas ações de investigação de paternidade, veja-se:
PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. Coisa julgada
decorrente de ação anterior, ajuizada mais de trinta anos antes da nova
ação, está reclamando a utilização de meios modernos de prova (exame de DNA) para apurar a paternidade alegada; preservação da coisa
julgada. Recurso especial conhecido e provido.57
O caso acima foi julgado com base na precedente ação de investigação de paternidade:
57 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=Resp+226436&&b=ACOR&p=true&t=
&l=10&i=2 >. Acesso em: 10 fev. 2010.
38
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. REPETIÇÃO DE
AÇÃO ANTERIORMENTE AJUIZADA, QUE TEVE SEU PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE POR FALTA DE PROVAS. COISA JULGADA. MITIGAÇÃO. DOUTRINA. PRECEDENTES. DIREITO DE FAMÍLIA. EVOLUÇÃO. RECURSO ACOLHIDO.
I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da
prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento
da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem
havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença
julgando improcedente o pedido.
II – Nos termos da orientação da Turma, “sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque
permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de
certeza” na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência
jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela
verdade real.
III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso
de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus.
Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos
hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da
realização do processo justo, “a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que
se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se
pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça
tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade”.
IV – Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições
que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum.58
Note-se que é possível que uma sentença seja desconsiderada, a fim
de respeitar certos princípios e valores constitucionais fundamentais, sendo mister que se identifiquem os critérios e mecanismos de um equilibrado
58 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=Resp+226436&&b=ACOR&p=true&t=
&l=10&i=5>. Acesso em: 10 fev. 2010.
Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski
39
juízo comparativo entre o valor desrespeitado e a coisa julgada, protetora
da segurança jurídica.
A QUEBRA ATÍPICA DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
Consiste em remédio processual equiparado à ação rescisória quando
esta não couber, seja em razão do prazo de propositura ou dos pressupostos de cabimento. Nesse sentido, a quebra atípica possui caráter subsidiário.
Na peça inicial, mister se faz demonstrar a pretensão em afastar a
coisa julgada anterior por motivo de inconstitucionalidade, a ser devidamente demonstrada. É preciso demonstrar o juízo de ponderação, o balanceamento dos valores jurídicos envolvidos e também deixar claro que a
sentença deve ser revisada e, consequentemente, proferida nova solução
para o litígio, tendo em vista o grave defeito nela contida.
O magistrado então aplicará a chamada flexibilidade no exame de
aptidão da petição inicial.
No que concerne à fixação da competência, duas soluções poderiam ser pensadas. A primeira, seria considerar que, por tratar-se de ação
de conhecimento, devem ser aplicadas as regras gerais de competência
tendo em vista o objeto do feito em que se formou a coisa julgada. A segunda seria a aplicação das regras de competência da ação rescisória.
Ao adotar a primeira hipótese, a competência seria do juiz de primeiro grau, ainda naqueles casos em que o último pronunciamento foi de
um tribunal superior.
Todavia, essa fixação seria contraditória, porque a própria ação rescisória, em relação à qual a quebra atípica possui caráter subsidiário, é
sempre de competência originária de um tribunal ou, ainda, daquele que
por último se pronunciou. Isso evita que a sentença seja rescindida por
um juiz de instância inferior ao que a proferiu. Seria teratologia um juiz de
primeiro grau considerar “inconstitucional” e rescindir uma sentença acobertada pela coisa julgada proveniente de pronunciamento do Supremo
Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário, por exemplo.
Mais acertada e coerente é a segunda hipótese, em que se aplicam as
regras de competência da ação rescisória. Contra essa solução, poder-se-ia
dizer que não se admite interpretação extensiva às hipóteses de competência dos tribunais, previstas em rol taxativo na Constituição Federal, as quais
não podem sequer ser adicionadas por lei, tampouco por mera interpretação.
40
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
Ocorre, porém, que tais argumentos não procedem. Ao reconhecer
o caráter rescisório da ação de quebra atípica da coisa julgada, preservase a competência dos tribunais. A Constituição Federal, ao aludir à “ação
rescisória de seus julgados” abrange todas as ações destinadas à revisão
de pronunciamento revestido de coisa julgada, emitido por esses tribunais.
O eminente jurista Eduardo Talamini conclui que:
[...] competente é o órgão que teria competência para a ação rescisória
(típica) – sob pena de se criar contradição sistemática injustificável. Uma
vez que o pronunciamento jurisdicional juridicamente existe, está acobertado pela coisa julgada e é eficaz, a competência para a ação de quebra deve submeter-se às mesmas regras que a ação rescisória (típica).59
Assim, seguindo a lógica da sistemática de nosso ordenamento jurídico, é competente para julgar a quebra atípica da coisa julgada o órgão
que possui competência para julgar ação rescisória, uma vez que aquela
nada mais é do que uma rescisão atípica, não-positivada.
Enfim, depois dessa análise acerca da coisa julgada e seus diversos aspectos, ou seja, a evolução histórica, conceito, fundamentos, limites,
análise constitucional, e sua revisão, constatamos que esse instituto não
deve ser aplicado em sua integral dimensão, justamente por deverem ser
respeitados outros institutos jurídicos que, por vezes, esbarram na imutabilidade da coisa julgada.
Assim, deve-se considerar o conflito existente entre a coisa julgada
e outros valores existentes em nosso ordenamento e procurar meios de
rescindir decisões desse cunho.
CONCLUSÃO
Por não ser a tese da relativização da coisa julgada positivada em
nosso ordenamento jurídico, o tema assiste tanta discussão. A principal
delas reside no fato de que algumas decisões acobertadas pela autoridade
da coisa julgada, ao não permitirem a mutabilidade, acabam por ferir princípios constitucionais.
Tem-se observado que o tema da inconstitucionalidade tem as aten59 TALAMINI, Eduardo. Op. cit., p. 639.
Ana Caroline Brockmann Patzlaff Barros Barros / Adriana Koszuoski Ziezkowski
41
ções e as preocupações jurídicas voltadas aos atos legislativos, não havendo maior preocupação com os atos do Poder Judiciário, especialmente
com as decisões em desconformidade com a Constituição Federal. Desse
modo, torna-se indispensável repensar no controle dos atos jurisdicionais
e, antes disso, na possibilidade de rescindir aqueles atos que contrariam a
Magna Carta e detêm a proteção da coisa julgada.
Assim, demonstrou este trabalho que a coisa julgada, ainda que
acobertada pelo manto constitucional, não deve ser erigida ao patamar da
indiscutibilidade, por ferir, em determinados casos, o próprio texto constitucional, e ferindo a Lei Maior, deixa de representar a segurança jurídica
almejada pela sociedade.
Ademais, existem em nosso ordenamento pátrio outras garantias tão
relevantes e até mesmo mais relevantes, que devem se sobrepor à ideia
da imutabilidade e indiscutibilidade das decisões transitadas em julgado, a
exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Restou demonstrado que o rigorismo formal, justificado pelo desejo
de segurança jurídica, não deve prevalecer sobre a verdade e a Justiça na
pacificação dos conflitos, que é a finalidade maior da busca pela prestação
jurisdicional.
Tornar imutável uma decisão abusiva, sem embasamento probatório, mas unicamente para se respeitar prazo para a propositura de ação
rescisória seria medida desrespeitosa para com outros ideais constitucionais, por isso faz-se necessário estudar e sistematizar meios para rescindir,
independentemente dos meios típicos de rescisão, as sentenças acobertadas pela coisa julgada.
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42
Uma análise da relativização da coisa julgada inconstitucional
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SOUZA, Leonardo Fernandes de. Breve histórico da coisa julgada. Disponível em:
<http://www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3178>.
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 50. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2009. v. 1.
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de processo civil. 9. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2006/2007. v. 1.
A INDÚSTRIA DOS DANOS MORAIS
Clarissa Bottega1
Mariana Gomes de Oliveira2
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem sua problemática voltada à valoração da indenização pelos danos morais sofridos nas relações de consumo, através de
breve análise da conceituação dos danos morais na história e a sua evolução
trazida com a redação expressa pela nossa Constituição Federal de 1988.
Atualmente, podemos verificar que os danos morais estão reconhecidos e são passíveis de indenização pecuniária na esfera jurídica, tendo
em vista a previsão constante da Carta Magna. Porém, a grande celeuma
que se instala se refere ao valor pecuniário reparador do dano sofrido na
moral do suposto lesado.
Sabemos que no mundo jurídico há grandes discussões acerca do
exato valor da dor e da moral de alguém. Apesar de tais discussões, nossos
julgadores ainda continuam inertes, e ainda esquecem a grande evolução
cultural e tecnológica da nossa sociedade no momento de valorar a dor
supostamente sofrida e a lesão à honra relatada nos autos.
A atividade jurisdicional não deve se esquecer de atentar para tais
discussões de extrema relevância para a sociedade. Sendo assim, será analisada a realidade da indenização dos danos morais através de julgados
proferidos após a positivação dos danos morais na Constituição Federal
de 1988, e em especial, traremos à baila jurisprudências, comparando a
disparidade entre julgados proferidos pelos Juizados Especiais Cíveis do
Estado de Mato Grosso.
Através deste artigo vamos analisar que a sociedade, cada vez mais,
não tem entendido o que realmente vem a ser dano moral e quais são suas
reais consequências. No decorrer do texto, percebe-se que a problemática
da quantificação perdura e que a jurisprudência vem para colaborar com
1 Mestra em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra, Portugal. Advogada e
professora universitária da cadeira de Direito de Família e Bioética da Universidade de Cuiabá
– Unic. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Cuiabá, MBA em Gestão
Empresarial pela Fundação Getulio Vargas, RJ, membro do IBDFAM.
2 Acadêmica do 9º semestre do curso de Direito da Universidade de Cuiabá – Unic.
44
A indústria dos danos morais
a divergência, em muitos casos não trazendo um consenso válido e justo,
fazendo com que muitos sejam injustiçados e até mesmo desmoralizados
com o quantum indenizatório, enquanto outros, que não necessitam de
ressarcimento, são compensados de maneira exorbitante e enriquecedora. Com esse quadro, a notoriedade da industrialização dos danos morais
torna as relações humanas instáveis e frágeis, subordinadas a um eventual
produto moral industrializado.
A honra, a moral e a dignidade, produtos da indústria dos danos morais, vendidos por preços de mercado, estão sendo valorados erroneamente
pela jurisprudência pátria gerando uma enorme insegurança jurídica. A disparidade dos julgados tem promovido oscilações nas indenizações e expandido cada vez mais a “prostituição” dos danos morais, trazendo a sensação
de ganhar na loteria ou em alguma espécie de prêmio fácil e lucrativo. Os
magistrados, em análises medíocres, têm quantificado de forma aquém ou
além do que realmente o indivíduo lesado merece, posicionando-se positivamente quanto à prenda indenizatória, ultrapassando limites pecuniários,
inserindo em nossa sociedade a ideia do enriquecimento fácil e continuo.
BREVES NOÇÕES CONCEITUAIS E PRINCÍPIOS BASILARES
A problemática dos danos morais tem repercutido nas relações sociais, sobretudo, nas relações de consumo, que, em regra, devem ser abarcadas pelo respeito, e, principalmente, devem atentar-se ao estatuído no
artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal de 1988: a preservação e respeito à dignidade da pessoa humana3, que abrange a honra e a moral da
pessoa, independentemente de raça, gênero ou nacionalidade.
Os danos morais dificilmente eram admitidos pela doutrina dominante, graças ao fato da relutância natural em admitir um preço para a
dor, na incerteza da ocorrência do dano moral, de não haver preceituação
normativa prevendo a possibilidade da ocorrência de lesão à honra e na
impossibilidade de sua avaliação e indenização. Com a promulgação da
Carta Magna de 1988,4 hoje os danos morais, são previstos expressamente,
facilitando, assim, a sua admissibilidade e eventual indenização.
3 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). São Paulo: Saraiva, 2010. (Vade
Mecum Compacto)
4 Idem.
Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira
45
A Constituição da República é inconteste ao preceituar a possibilidade de reparação aos danos morais sofridos pelo lesado. De forma emblemática dispõe no artigo 5°, incisos V e X que:
V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de
indenização por dano material, moral, ou à imagem;
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação.5
Os dispositivos constitucionais supracitados sedimentaram definitivamente a problemática da ausência de disposição expressa dos danos
morais prevendo, ainda, eventual indenização nos casos em que a honra e
moral sejam agredidas, seja com ou sem intenção de causar a lesão, independentemente de danos à esfera patrimonial.
Atualmente a dignidade da pessoa humana é cânone constitucional.
Qualquer ato que fere, macula ou agride este princípio, é passível de reparação por parte daquele que a lesou. A honra e a moral são elementos
subjetivos, que compete a cada pessoa valorar, conforme a sua cultura e
berço familiar.
Averigua-se, então, que a Constituição Federal de 1988 trouxe grandes benefícios no campo da responsabilidade civil, no que tange aos danos
morais causados a outrem, independentemente da relação que os causou,
não assumindo, assim, um caráter taxativo, e sim, emblemático, dotado de
grande valoração moral e jurídica tendo como norte a consciência moral
da nossa sociedade.
Graças a essa evolução, hoje se admite o dano moral pura e simplesmente, tornando-se, assim, desnecessária a ocorrência de danos na esfera
patrimonial do ofendido.
Cada um possui um entendimento do que é honra, e cada qual sabe
o que fere ou não o seu decoro íntimo, e o que deve ser levado a juízo
para possível reparação. Diante de tal conclusão averigua-se o quanto é
difícil e complexa a conceituação dos danos morais, até mesmo porque, é
um elemento que faz parte da honra subjetiva, e, além do mais, sua constatação e prova são extremamente difíceis e factíveis de mutação.
5 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Op. cit.
46
A indústria dos danos morais
Analisando a doutrina, extraem-se inúmeros conceitos do que realmente vem a ser dano moral. Porém, oportuno destacarmos o brilhante
conceito prelecionado pela doutrinadora Maria Helena Diniz, afirmando
que “O dano moral vem a ser a lesão de interesses não patrimoniais de
pessoa física ou jurídica [...], provocada pelo fato lesivo”.6
Conclui-se então que, apesar do dano moral ser permeado de subjetividade, sendo variável o seu reflexo de pessoa para pessoa e difícil a sua
constatação na prática jurídica, tais fatores não elidem o seu reconhecimento e
possível reparação pecuniária, sendo totalmente admissível a sua ocorrência
nas relações consumeristas, devendo também limitar o campo de sua incidência, para que assim não torne o instituto em algo banalizado e incoerente.
Entretanto, apesar da previsão legal da possibilidade de ressarcir
os danos morais, infelizmente, a nossa legislação não preceituou critérios
claros para a valoração da indenização, deixando, assim, uma tipificação
aberta, sem limites específicos reguladores.
Sendo assim, atualmente, as indenizações devem se pautar na prudência e nos princípios norteadores da decisão do juiz, para que, assim,
diante do caso concreto, o magistrado determine uma indenização que irá
reparar o dano moral sofrido.
Oportuno frisar alguns princípios que atualmente assumem extrema
importância e que devem, em regra, abarcar as indenizações em relação
aos danos ocasionados à moral e à honra de alguém, quais sejam: o livre
convencimento do juiz, a razoabilidade e a proporcionalidade.
O livre convencimento do juiz, consagrado no sistema processual brasileiro, apresenta extrema relevância no que tange à reparação dos danos morais,
pois, como já citado, tais danos são permeados de subjetividade, sendo em cada
circunstância analisado e constatado de forma diversa, o que contribui para que
o magistrado tenha ainda mais prudência ao arbitrar a prenda indenizatória.
Graças ao princípio do livre convencimento do juiz, que está previsto no Código de Processo Civil, em seu artigo 131,7 observa-se que o
magistrado, ao proferir sua decisão, deve analisar cada caso concreto e, de
acordo com a sua consciência, determinar a melhor solução para a lide que
6 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil. 21. ed. São Paulo:
Saraiva, 2007. p. 88.
7 BRASIL. Código de Processo Civil Brasileiro (1973). São Paulo: Saraiva, 2010. (Vade Mecum
Compacto).
Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira
47
lhe foi apresentada, apreciando livremente as provas carreadas aos autos,
sem deixar de expor as circunstâncias que lhe motivaram o decisium.
Outro princípio que deve nortear as indenizações é o da razoabilidade, que funciona como uma espécie de sistema de freios e contrapesos
no âmbito da responsabilidade civil.
O princípio da razoabilidade funciona como um mediador, um aguilhão da consciência do julgador no momento em que este atribui a prenda indenizatória, objetivando, sobretudo, aplicar ao caso concreto uma
decisão que seja razoável ao dano sofrido pelo lesado, sem que esse seja
injustiçado ou obtenha um lucro fácil.
Demonstrando sua experiência acerca do tema, Sérgio Cavalieri Filho assim comenta, em sua obra “Programa de Responsabilidade Civil”,
sobre a necessidade da razoabilidade nas indenizações:
[...] A razoabilidade é o critério que permite cotejar meios e fins, causas e consequências, de modo a aferir a lógica da decisão. Para que
a decisão seja razoável é necessário que a conclusão nela estabelecida seja adequada aos motivos que a determinaram; que os meios
escolhidos sejam compatíveis com os fins visados; que a sanção seja
proporcional ao dano.8
Sendo assim, conclui-se que o princípio da razoabilidade visa evitar
que a indenização se submeta a total discricionariedade do juiz, devendo,
assim, ser abarcada por um valor considerado razoável, sendo tal decisão
permeada pela prudência e princípios norteadores de uma indenização
justa e em consonância com a lesão sofrida.
Por fim, outro princípio basilar para alcançar uma indenização justa
é o da proporcionalidade, conforme exposto em linhas anteriores. O magistrado deve levar em consideração as regras de convivência em sociedade, a teoria do homem médio no momento do reconhecimento e valoração
dos danos morais, porém, por mais que a situação em apreço seja passível
de um valor pecuniário determinado, o magistrado deverá também analisar a proporcionalidade, que nada mais é que analisar se a indenização é
proporcional ao agravo sofrido pelo lesado, conforme previsão legal do
Código Civil de 2002, que assim dispõe:
8 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros,
2004. p. 109.
48
A indústria dos danos morais
Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da
culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.9
Conclui-se então que uma indenização considerada justa é aquela
que é permeada pela prudência, pelos parâmetros considerados razoáveis
e proporcionais pela doutrina dominante e, sobretudo, de acordo com o
dano vivenciado pelo consumidor, ora reclamante de reparação pecuniária.
FATORES GERADORES DE DANOS MORAIS
NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
Sucintamente, adentraremos nos motivos que ensejam eventuais indenizações oriundas das relações de consumo, dentre eles, de bom alvitre
começar com um dos motivos mais discutidos atualmente no âmbito do
Poder Judiciário: a negativação cadastral indevida do nome do consumidor. Tal motivo tem gerado inúmeras discussões e tem sido um dos principais fatores que levam o consumidor a propor ações requerendo vultosas
indenizações contra o fornecedor, objetivando assim que este lhe conceda
uma reparação aos danos morais sofridos com a inscrição indevida.
Os bancos de dados de proteção ao crédito, atualmente, assumem
papel extremamente importante nas relações de consumo baseadas no
tempo e na confiança, sendo ferramenta essencial para o sucesso de tal
relação jurídica.
Entretanto, apesar da confiabilidade depositada nas informações
prestadas por esses bancos de dados, muitos consumidores vêm sendo
lesados diariamente com informações cadastrais inverídicas ou até mesmo
infundadas, inseridas por fornecedores que por erro ou fraude são induzidos a negativar o nome de seus clientes, impedindo estes de adquirirem
bens, produtos ou serviços.
Devemos lembrar que “toda vez que um incidente altere o equilíbrio emocional, crie constrangimento ou atrapalhe a rotina do consumidor
a lei autoriza a se pleitear a indenização por dano moral ao consumidor”.10
9 BRASIL. Código Civil Brasileiro (2002). São Paulo: Saraiva, 2010. (Vade Mecum Compacto).
10 SILVA, Américo Luiz de Toledo. O Dano moral e a sua reparação civil. 3. ed. rev. atual. e ampl.
São Paulo: Saraiva, 2005. p. 272.
Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira
49
Segundo o desembargador Araken de Assis, um dos mais lúcidos
juristas do Brasil, são deveras “bem conhecidos os reflexos terríveis que a
inscrição no Serviço de Proteção ao Crédito e em outros bancos de dados
causam às pessoas, ao lhes restringir ou vetar acesso ao crédito [...]”.11
Entretanto, não encontramos na nossa jurisprudência um consenso
válido acerca da indenização devida quando ocorrer este fato gerador de
danos, qual seja, a negativação indevida do nome do consumidor.
A título de exemplo e por amor ao debate, destacam-se dois julgados
conflitantes no que tange às indenizações por este fato gerador que nada
mais é que um ato ilícito cometido injustamente pelo fornecedor. Veja-se:
Posto isto e na consideração do que mais dos autos consta, JULGO
PROCEDENTES os pedidos para CONFIRMAR a antecipação de tutela
concedida às fls. 27, tornando-a definitiva, e, para DECLARAR inexistentes os débitos cobrados ao autor indevidamente, ainda, com fundamento nos artigos 186, 927, do C.C. e art. 5º, inciso X, da Constituição
Federal, atento a toda a situação, particularmente diante a necessidade
de se inibir a prática futura de condutas desta natureza CONDENO a ré
a pagar ao autor a título de danos morais, a importância de R$ 10.200,00
(dez mil e duzentos reais) ou o equivalente a 20 (vinte) salários mínimos, corrigidos monetariamente e acrescidos de juros de 12% (doze por
cento) ao ano, contados a partir da data da sentença. (1º Vara Cível da
Comarca de Sinop/MT – Proc. nº. 425/2008 – Dr. Paulo Martini- publicado em 22/10/2010 – grifo nosso).12
Em contrapartida:
Diante do exposto e, por tudo mais que dos autos constam, hei por
bem em JULGAR PARCIALMENTE PROCEDENTE a presente reclamação, com fundamento no artigo 269, inciso I, CPC, para condenar (...)
a pagar em favor da reclamante, a título de dano moral, a quantia de
R$ 1.000,00 (mil reais), devidamente corrigido e atualizado na seguinte forma: juros de mora de 1% (um por cento), e correção monetária
11 GRINOVER, Ada Pelegrini et. al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos
autores do anteprojeto. 9. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 480.
12 JURISPRUDÊNCIA. Dano moral. Disponível em: <http://servicos.tjmt.jus.br/processos/comarcas/dado sProcessoPri nt.aspx>. Acesso em: 30 nov. 2010.
50
A indústria dos danos morais
(INPC/IBGE) a partir desta data. Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Havendo trânsito em julgado, o que certamente o Cartório certificará,
sem a manifestação das partes, ao arquivo com baixas de estilo. Nada
mais. Cumpra-se. (1º Juizado Especial Cível da Comarca de Cuiabá/
MT – Proc. nº. 1871/2008 – Dra. Serly Marcondes Alves – publicado em
28/08.2009 – grifo nosso).13
Note a disparidade das prendas indenizatórias: casos semelhantes
(negativação indevida do nome do consumidor) com reconhecimento expresso pelo Juízo da ilicitude do ato praticado pelo fornecedor nos casos
concretos, porém, com indenizações totalmente divergentes.
Ainda, em caso semelhante, veja-se decisão reconhecendo pela total
improcedência do pedido indenizatório, repita-se, pelo mesmo fato gerador, dano moral pela inscrição indevida nos órgãos de proteção ao crédito:
[...] Isto é assim porque tal fato, in casu, resta irrelevante ante as inúmeras anotações no referido órgão, o que, sem sombra de dúvida, há
muito tempo é de conhecimento do reclamante e, por ser costumeiro
e contumaz, sabia que o seu nome estava cadastrado por outros motivos que não só o do caso ora relatado. Pelas razões acima expostas e
mais que dos autos constam, julgo parcialmente procedente a pretensão formulada na inicial. Determino que o reclamado proceda a baixa
do nome da reclamante no banco de dados do serviço de proteção ao
crédito em razão dos débitos sub judice. Deixo de condenar a reclamada nas custas pleiteadas. Deixo de condenar em custas e honorários
por não serem cabíveis nesta fase. Preclusa a via recursal, nada sendo
requerido, arquive-se com as baixas necessárias. (7º Juizado Especial
Cível – Proc. nº. 001.2008.009.893-8 – Dr. Dirceu dos Santos - Decisão
proferida em 31/08/2009 – grifo nosso).14
Sendo assim, diante de tais julgados conflitantes, observa-se que
nem sempre a jurisprudência guarda entendimento pacífico no que tange
ao valor da prenda indenizatória, gerando, assim, insegurança jurídica para
ambas as partes, pois, sempre irá depender da sorte, e não de requisitos
13 Idem.
14 JURISPRUDÊNCIA. Dano Moral. Disponível em: <http://projudi.tjmt.jus.br/projudi/listagens/
Download Arquivo?arquivo=403187>. Acesso em: 30 nov. 2010.
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51
estabelecidos na doutrina e legislação pertinente à matéria em relação a
um valor considerado proporcional e razoável ao caso apreciado pelo
ilustre julgador.
Importante destacar outro fato que está em evidência nos últimos
tempos, qual seja, a ocorrência de atrasos nos transportes aéreos. As empresas de aviação aérea, se compararmos com alguns anos atrás, têm recebido
uma enorme demanda e, por isso, e outros motivos diversos e alheios à vontade do consumidor, o transporte aéreo também tem sido deficiente no que
tange à pontualidade, vindo dia após dia desrespeitando os consumidores,
gerando transtornos diários e prejuízos que muitas vezes são incalculáveis.
Tal fato também tem gerado repercussão no que tange às indenizações concedidas, e mediante a pesquisa realizada, oportuno trazer à baila
dois julgados de casos semelhantes, porém com entendimentos divergentes.
No primeiro caso, o voo atrasou aproximadamente 4 horas, e o
magistrado entendeu por devido um quantum indenizatório no valor de
R$ 10.400,00. Veja:
ISTO POSTO, e de tudo mais que dos autos consta, diante da doutrina
e da jurisprudência, e com fulcro no artigo 269, inciso I, do Código de
Processo Civil c/c artigo 6º da Lei nº 9.099/95, JULGO PARCIALMENTE
PROCEDENTE o pedido inicial, e condeno a Reclamada, (...), pagar a
parte Reclamante o valor de R$ 10.400,00 (dez mil e quatrocentos reais)
por danos morais, acrescido de juros de 1% (um por cento) ao mês e
correção monetária a partir do Presente decisum. (5º Juizado Especial
Cível – Proc. nº. 001.2010.019.996-5 – Dr. Yale Sabo Mendes – Decisão
proferida em 27/08/2010 – grifo nosso)
Agora, veja o segundo caso, semelhante ao primeiro, porém, o Reclamante sofreu um atraso de voo correspondente a duas horas, e o nobre
julgador entendeu que não seria cabível nenhuma indenização, tendo em
vista que o alegado dano moral não ocorreu:
Diante do exposto, com arrimo no artigo 269, inciso I, do Código de
Processo Civil, JULGO TOTALMENTE IMPROCEDENTE o pedido inicial formulado pelo Reclamante em desfavor da Reclamada. (4º Juizado
Especial Cível – Proc. nº. 001.2010.022.279-1 – Dr. Sebastião Barbosa
Farias – Decisão proferida em 09/03/2011 – grifo nosso)
52
A indústria dos danos morais
Sendo assim, não basta apenas o atraso do voo para configuração
dos danos morais, mas sim, deve observar se verdadeiramente houve atraso passível de gerar efetivos danos ao consumidor, a ponto de ser indenizado pelo atraso abusivo, ou até mesmo, atrasos que sejam passíveis de
responsabilidade objetiva da empresa de transporte aéreo.
Por fim, um dos fatores que têm gerado grande discussão no âmbito
dos Juizados Especiais Cíveis de Mato Grosso é o caso das filas de banco,
amplamente pleiteada e fundamentada na Lei Municipal nº. 4069/2001.15
Inúmeros casos foram levados à apreciação dos magistrados, gerando condenações divergentes entre si, sendo levadas em grau de recurso
para apreciação das Turmas Recursais Cíveis, que ultimamente vêm reduzindo drasticamente as indenizações concedidas pelo juiz monocrático.
A título de exemplo, veja decisão recente da 6ª Turma Recursal Cível
de Mato Grosso:
RECLAMAÇÃO – INDENIZAÇÃO – FILA DE BANCO – PERMANÊNCIA
POR MAIS DE UMA HORA – LEI MUNICIPAL Nº 4.069/2001 – DANO
MORAL – NÃO OCORRÊNCIA. (6ª Turma Recursal - Recurso Inominado
n°. 1122/2010 – Relator: Dr. Lídio Modesto da Silva Filho - publicado
em 09/09/2010)
Apesar do entendimento da brilhante Turma Recursal, recentemente
o Juízo do 5º Juizado Especial Cível concedeu indenização no valor de R$
5.000,00 ao cliente de agência bancária que ficou aproximadamente 36
minutos na fila. Veja a parte dispositiva do julgado, proferido em 21 de
fevereiro de 2011:
Julgo Parcialmente Procedente o Pedido Inicial, e CONDENO o reclamado, (...), ao pagamento de indenização por danos morais, no valor
de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), ao reclamante [...] (5º Juizado Especial
Cível - Proc. n° 001.2010.041.459-6 – decisão proferida em 21/02/2011)
Através dos julgados apresentados, vê-se que a posição dos Juizados
Especiais Cíveis, em muitos casos, não tem buscado analisar a existência
e a real extensão dos danos morais indenizáveis, concedendo decisões to15 Para consultar a citada
php?pag=legislação.
Lei
acessar
o
link:
http://www.camaracba.mt.gov.br/index.
Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira
53
talmente descabidas e arbitrárias, contribuindo assim para uma verdadeira
industrialização dos danos morais.
Dentre os julgados colacionados, concedendo vultosas indenizações
por danos morais que, com uma simples análise dos autos, não passariam
de meros aborrecimentos, analisa-se que o magistrado, por diversas vezes,
atribuiu quantum debeatur com total arbitrariedade e discricionariedade,
sem analisar no caso concreto os princípios norteadores de uma indenização justa e equânime.
NATUREZA JURÍDICA DA INDENIZAÇÃO
A doutrina não é uníssona em relação à natureza jurídica da indenização por danos morais. Aponta-se a existência de três correntes sobre o
tema que serão sucintamente analisadas, para que assim haja maior compreensão da realidade jurídica da natureza dos danos morais na atualidade.
A primeira delas prega que a indenização por danos morais tem
intuito meramente reparatório ou compensatório, destituída de qualquer
caráter punitivo ou disciplinador.16
Significa dizer que o julgador, no momento de arbitrar o quantum
debeatur, analisaria, tão-somente, a função precípua de compensar o ofendido pelo dano causado pelo ofensor. Vale ressaltar que essa função é
primordial no campo das indenizações em relação aos danos causados à
esfera extrapatrimonial do ser humano, e tal função deve, em regra, estar
inerente em todas as indenizações de cunho moral e pessoal.
Pela segunda corrente, essa indenização teria caráter flagrantemente
punitivo ou disciplinador. É a corrente que fundamenta os punitive damages do Direito norte-americano, baseada na teoria do desestímulo.17
Tal corrente justifica as indenizações que apenas visam ao caráter
punitivo em relação ao ofensor, aplicando assim a teoria da punição da
ação causadora do dano em relação ao ofendido e à sociedade. As indenizações baseadas na teoria do desestímulo analisam somente o ofensor,
visando atribuir sanção pecuniária valorada de tal forma que este não
venha mais a cometer o dano.
16 MENEZES, Luciana Duarte Sobral. Revista Jurídica Consulex, n°. 330. Brasília: Consulex, 2010. p. 63.
17 Idem.
54
A indústria dos danos morais
Mas há ainda uma corrente intermediária, que sustenta que a indenização por danos morais estaria revestida de um caráter principal reparatório e de outro pedagógico ou disciplinador acessório, visando coibir
novas condutas. Esse caráter acessório somente existiria se acompanhado
do caráter principal reparador da indenização.18
Existe corrente doutrinária que defende a tríplice função da indenização por danos morais: compensatória; sancionatória ou punitiva; e
preventiva, pedagógica ou dissuasória.19
Colaborando com o entendimento da função tríplice da indenização, veja a brilhante decisão:
[...] COBRANÇA POSTERIOR AO CANCELAMENTO DA LINHA, CONTENDO LIGAÇÕES EFETUADAS DURANTE A CLONAGEM. COMPLETO DESRESPEITO POR PARTE DA EMPRESA DE TELEFONIA. APLICAÇÃO DAS FUNÇÕES COMPENSATÓRIA, PUNITIVA E DISSUASÓRIA
DA RESPONSABILIDADE CIVIL. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO. (2ª Turma Recursal Cível do Rio Grande do Sul - Recurso
Cível nº. 71001558345 - Relatora: Vivian Cristina Angonese Spengler,
Julgado em 06/08/2008 – grifo nosso).20
Contudo, prevalece na jurisprudência brasileira, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de que a indenização por danos
morais tem apenas dupla função: compensatória e punitiva, menosprezando-se o caráter preventivo e pedagógico dessa indenização.21
Nesse sentido tem-se decisão do Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. DNER. UNIÃO. SUCESSORA. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE CAUSADO EM RODOVIA FEDERAL. OMISSÃO DO ESTADO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. MÁ CONSERVAÇÃO DA RODOVIA FEDERAL. CULPA DA AUTARQUIA. INDENIZAÇÃO
POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ADEQUAÇÃO AOS PRINCÍPIOS
DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. (Superior Tribunal de
18 MENEZES, Luciana Duarte Sobral. Op. cit.
19 Idem.
20 JURISPRUDÊNCIA. Dano moral. Disponível em: <http://www3.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download /exibe_documento.php?codigo=1043317&ano=2008>. Acesso em: 31 nov. 2010.
21 MENEZES, Luciana Duarte Sobral. Op. cit.
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Justiça - REsp nº. 763.531-RJ - 2005/0099984-1 – Relator: Ministro Carlos
Fernandes Matias – publicado em 15/04/2008 – grifo nosso).22
Verifica-se assim que a função das indenizações por danos morais
não deve limitar-se somente ao que tange à compensação sofrida pela vítima do ato ilícito mas também o julgador deve no momento de mensurar e
quantificar o valor da indenização analisar, também, a condição econômica
do ofensor, arbitrando um valor que expresse punição e ao mesmo tempo
aprendizagem para que o causador do dano não venha a incorrer em tal
prática novamente.
Tais funções não devem ser desconsideradas pelo julgador, sob
pena de tornar a indenização uma fonte de enriquecimento sem causa
para a vítima, gerando até mesmo uma fonte de lucro ou prêmio de loteria,
e em contrapartida, a indenização não deve ser tão insignificante ao ponto
de não causar desestímulo e punição para o causador do dano.
Contudo, oportuno lembrar que os julgadores têm se mostrado cada
vez mais sensíveis à causa e depreendido inúmeros esforços, objetivando,
assim pacificar entendimentos em relação a causas similares, para que assim, não gerem disparidades e injustiças.
TEORIA DOS MEROS ABORRECIMENTOS
Oportuno destacar a diferença entre danos morais e meros aborrecimentos cotidianos. Tal diferenciação não deve ser menosprezada pelo
julgador no momento de analisar o caso concreto, pois, conforme exposto
o que vemos hoje é o abarrotamento do Poder Judiciário com causas fundadas em meros desconfortos, exigindo indenizações descabidas, a ponto
de até mesmo gerar insegurança nas relações e menosprezar a natureza do
instituto da indenização em danos morais.
O julgador deve, a todo tempo, estar atentado às situações trazidas
a sua apreciação, pois sabemos que muitos transtornos diários podem ser
resolvidos com um simples contato do consumidor com o fornecedor, não
sendo necessário provocar a atividade judicante para causas simples e fáceis de serem resolvidas na esfera administrativa dos fornecedores.
22 JURISPRUDÊNCIA. Danos Morais. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/
Abre_Do cumento.asp?sLink=ATC&sSeq=3817323&sReg=200500999841&sData=20080415&sTip
o=5&Fo rmato=PDF>. Acesso em: 30 nov. 2010.
56
A indústria dos danos morais
Havendo entendimento de que situações corriqueiras podem ser
resolvidas entre as partes da relação de consumo, haverá de pronto uma
drástica diminuição de processos reclamando compensações sem nexo de
causalidade, e em contrapartida, estaremos atribuindo aos fornecedores à
capacidade de resolverem pequenos transtornos junto aos seus clientes,
sem a precisão de amargar um litígio judicial.
Com intuito de contribuir com o debate, oportuno citar lição do
doutrinador Pablo Stolze, que assim dissertou:
Superadas, portanto, todas as objeções quanto à reparabilidade do dano
moral, é sempre importante lembrar, porém, a advertência brilhante de
Antônio Chaves, para quem ‘propugnar pela mais ampla ressarcibilidade do dano moral não implica no reconhecimento de todo e qualquer
melindre, toda suscetibilidade exacerbada, toda exaltação do amor próprio, pretensamente ferido, à mais suave sombra, ao mais ligeiro roçar
de asas de uma borboleta, mimos escrúpulos, delicadezas excessivas,
ilusões insignificantes desfeitas, possibilitem sejam extraídas da caixa
de pandora do Direito centenas de milhares de cruzeiros (grifo nosso)23
Vislumbra-se então que a reparabilidade dos danos morais não deve
se confundir com a ocorrência de simples atos que representem pequenos
incômodos ou desgastes diários, mas sim, para se pleitear por uma compensação, deve averiguar se realmente houve danos à esfera extrapatrimonial do consumidor, com a ocorrência de fatores já citados no presente
estudo ou de outros que comumente entenderem aplicáveis e pertinentes
de reparação em pecúnia.
Não se inclui no rol dos danos morais indenizáveis os transtornos
passageiros que sequer geraram danos efetivos, caso contrário, estar-se-ia
admitindo que quaisquer inoportunos seriam passíveis de compensação,
reconhecidos como atos ilícitos, provocando, assim, transtornos e indenizações injustas.
Deve-se evitar que a sociedade confunda meros aborrecimentos com
efetivos danos à moral e à honra, caso contrário, enfrentar-se-ia um grande problema para o futuro: pessoas cada vez menos intolerantes e mais
oportunistas, buscando assim, indenizações indevidas ao caso concreto.
23 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 85.
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Colaborando com tal entendimento, oportuno citar decisão proferida pelo E.TJMT, reconhecendo que meros aborrecimentos não refletem
prejuízos a ponto de causar danos morais ou extrapatrimoniais:
APELAÇÃO CÍVEL - DANO MORAL NÃO CARACTERIZADO - MERO
ABORRECIMENTO - RECURSO IMPROVIDO. O aborrecimento do consumidor não induz automaticamente à indenização e, não havendo elementos nos autos aptos a demonstrarem que o apelante sofreu efetivo
prejuízo íntimo, humilhação, vergonha ou constrangimento públicos,
não se pode falar em indenização por dano moral. (TJMT – Apelação
42213/2009 – julgado em 18/05/2010 – grifo nosso).24
O colendo Superior Tribunal de Justiça também se manifestou acerca dos meros aborrecimentos:
CIVIL. DANO MORAL. NÃO OCORRÊNCIA. O recurso especial não se
presta ao reexame da prova. O mero dissabor não pode ser alçado ao
patamar do dano moral, mas somente aquela agressão que exacerba a
naturalidade dos fatos da vida, causando fundadas aflições ou angústias no espírito de quem ela se dirige (Recurso especial não conhecido.” (REsp. 403.919/MG, 4ª Turma/STJ, rel. Min. César Asfor Rocha, j.
15.05.2003, DJ. 04.08.2003 – grifo nosso).25
Conclui-se então que os meros incômodos vivenciados no dia a dia
não possuem o condão de desencadear a possibilidade de indenização,
pois a jurisprudência e a doutrina dominante não admitem tal possibilidade quando há ocorrência de pequenos transtornos comuns na sociedade
moderna, limitando, assim, a indenização somente aos casos em que são
nítidos os gravames ocasionados à esfera extrapatrimonial do consumidor
diante da relação de consumo.
24 JURISPRUDÊNCIA. Meros Aborrecimentos. Disponível em: <http://servicos.tjmt.jus.br/process
os/tribunal/ViewAcordao.aspx?key=3793da7e-60b1-4d4e-88be-b24d83622fc4>. Acesso em: 31
nov. 2010.
25 JURISPRUDÊNCIA. Meros Aborrecimentos. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronic a/Abre_Documento.asp?sSeq=407627&sReg=200200020320&sData=20030804&formato=P
DF>. Acesso em: 30 nov. 2010.
58
A indústria dos danos morais
ALGUNS PARÂMETROS PARA A INDENIZAÇÃO
As atividades judicante e legiferante não poderiam ficar adstritas à
problemática da quantificação da indenização nos casos de ocorrência de
danos à honra e à moral, e por isso, na tentativa de solucionar tal celeuma
jurídica, a atividade legislativa elaborou alguns projetos de lei, apenas a
título de sugestão de tabela de quantificação dos danos morais.
Oportuno citar o Projeto de Lei n°. 150/99,26 que foi elaborado pelo
senador Antônio Carlos Valadares, sendo apresentado sob a justificativa de
ausência de critérios objetivos para estipular o valor das indenizações em
relação aos danos morais, concedidas pelos juízes brasileiros.
Apesar de o projeto de lei ter sido elaborado sob a justificativa de
mitigar a dificuldade enfrentada pelos magistrados no momento de mensurar e valorar a indenização, os dispositivos do projeto de lei infelizmente
ferem um dos princípios basilares do instituto da indenização: o livre convencimento do juiz.
O artigo 11 do Projeto de Lei nº. 150/99 assim preleciona:
Art. 11. [...]
§ 1º Se julgar procedente o pedido, o juiz fixará a indenização a ser
paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes níveis:
I - ofensa de natureza leve: até cinco mil e duzentos reais;
II - ofensa de natureza média: de cinco mil duzentos e um reais a quarenta mil reais;
III- ofensa de natureza grave: de quarenta mil e um reais a cem mil
reais;
IV - ofensa de natureza gravíssima: acima de cem mil reais.27
Em que pese à importância de se elaborar critérios legais objetivos
para a estipulação do quantum indenizatório, entende-se que o projeto
de lei falhou ao preceituar a natureza dos danos e seus respectivos limites
indenizatórios, o que, em tese, estaria maculando a conceituação de danos
morais, e os princípios constitucionais vigentes, pois, conforme dispõe o
artigo 5°, inciso X, da Constituição Federal de 1988, aquele que se sentir
26 BRASIL. Projeto de Lei do Senado Federal nº. 150 de 1999. Disponível em: <http://www.senado.gov.
br /senadores/senador/antval/ATUAPAR/PROP/PROJ/pls150_99.htm>. Acesso em: 2 dez. 2010.
27 Idem.
Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira
59
lesado tem “assegurado o direito de indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação”.28
Entende-se que o instituto da indenização não deve possuir uma
espécie de legislação rígida no que tange à quantificação, pois, caso
contrário, o lesado, ao levar a juízo a sua causa, já saberia a qual valor
teria direito, o que poderia ocasionar grave violação aos dispositivos
constitucionais vigentes.
Oportuno ressaltar que o projeto de lei em apreço atualmente encontra-se arquivado, desde 2007 na secretaria de arquivos da Câmara dos
Deputados.
Outra tentativa legislativa em solucionar a problemática foi o Projeto
de Lei nº. 334/2008,29 elaborado pelo Senado Federal com base na análise
jurisprudencial.
Os senadores do Congresso Nacional, através desse projeto de lei,
estipularam alguns parâmetros para a fixação de uma indenização mais
justa e equânime.
A iniciativa de regulamentar os valores do quantum indenizatório
em sido reivindicada por muitos operadores do direito, principalmente
julgadores, tendo em vista que tal limitação facilitaria, e muito, o momento
de atribuir o valor da compensação na sentença, e também viabilizaria
mais acordos entre as partes, pois o reclamante, no momento de interpor
a ação, já teria uma noção do quanto iria receber a título de compensação.
Oportuno citar uma breve síntese da justificativa do projeto:
Por essa razão, entende-se adequado o momento para regular o tema,
suprindo lacuna existente no nosso ordenamento jurídico por meio do
estabelecimento de parâmetros e critérios claros para a fixação das indenizações, buscando, assim, conferir segurança jurídica às relações
jurídicas (grifo nosso).30
Apesar da iniciativa do projeto de lei em estipular um valor mínimo e máximo de valores indenizatórios, acredita-se que, infelizmente, tal
limitação fere alguns princípios norteadores do instituto da indenização,
28 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Op. cit.
29 BRASIL. Projeto de Lei n°. 334/2008, do Senado Federal. Disponível em: <http://legis.senado.
gov.br /mate-pdf/13971.pdf>. Acesso em: 2 dez. 2010.
30 Idem.
60
A indústria dos danos morais
dentre eles, o princípio da proporcionalidade, pois, os valores mínimos,
como exemplo, no caso de abalo ao crédito, que estipulou o mínimo indenizatório em R$ 8.300,00 (oito mil e trezentos reais),31 não apresentam
muitos benefícios em relação ao ofensor, pois nem sempre um abalo ao
crédito gerado por uma suposta negativação indevida possui o condão de
estipular um quantum indenizatório consideravelmente elevado.
Acredita-se que a iniciativa em estipular uma tabela de valores facilita a atividade judicante, porém, tal tabela não pode, de modo algum,
representar um rol taxativo, e sim, apenas exemplificativo, preservando,
assim, os princípios inerentes ao instituto: razoabilidade, proporcionalidade e livre convencimento do juiz.
Por fim, importante destacar que o C.STJ recentemente preceituou
alguns parâmetros para estabelecer o valor das indenizações pelos danos
morais sofridos.
Conforme destacado, o C.STJ tem se posicionado em relação à corrente da dupla função da indenização: a função reparadora, isto é, que visa
reparar o dano sofrido injustamente pela vítima, e a função punitiva, que,
sobretudo, visa punir o causador do dano com a contraprestação de uma
indenização de caráter pecuniário.
No momento da quantificação do dano moral, segundo posição do
C.STJ, o julgador deverá analisar as condições econômicas do ofensor, que na
maioria das vezes são empresas bem-sucedidas financeiramente, e também
as condições econômicas do ofendido, para que este não venha a receber
uma indenização com valor tão alto, que lhe gere enriquecimento sem causa.
O C.STJ também tem estipulado tetos máximos de valores razoáveis
e proporcionais a danos morais ocasionados por situações e fatores semelhantes, como no exemplo abaixo, os danos morais pelo abalo de crédito,
que atualmente tem por base o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a
título de indenização:
[...] Com efeito, nas hipóteses de protesto de títulos, indevida inscrição
em cadastros negativos de crédito, como SPC, SERASA e afins, ou devolução de cheques, esta Turma tem fixado o ressarcimento no valor
de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Nesse sentido, dentre outros: REsp n.
31 O art. 6º do Projeto de Lei nº. 334/2008 assim prevê: O valor da indenização por dano moral será
fixado de acordo com os seguintes parâmetros, nos casos de: (...) IV – ofensa à honra: a) por abalo de crédito: de R$ 8.300,00 (oito mil e trezentos reais) a R$ 83.000,00 (oitenta e três mil reais).
Clarissa Bottega / Mariana Gomes de Oliveira
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850.159/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, unânime, DJ de
16.04.2007; REsp n. 815.339/SC, 4ª Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha,
unânime, DJ de 19.03.2007 [...] (STJ. 4ª Turma – RESP 1.140.213/SP –
Voto Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – 24/08/2010 – grifo nosso).32
Graças à edição da emenda acima, acredita-se que não haverá mais
tantos julgados com valores absurdos e diversos, resgatando, assim, o principal objetivo do instituto dos danos morais: compensar o abalo à honra e
à dor sofrida, com uma indenização de caráter pecuniário que irá proporcionar um breve gozo e sentimento de justiça.
CONCLUSÃO
Conclui-se que o dano moral é permeado de subjetividade, não
possuindo assim uma conceituação expressa do que realmente venha a ser
o dano à moral e à honra de alguém.
Em contrapartida, tem-se o trabalho incansável da doutrina e da
jurisprudência dos tribunais pátrios, em contribuir para a conceituação dos
danos morais, que, conforme exposto, nada mais é que a ofensa ao bem
de natureza extrapatrimonial do ofendido.
A jurisprudência dos tribunais pátrios, em concordância com a doutrina, além de averiguar a ocorrência dos danos morais no caso concreto,
também tem estipulado critérios norteadores da indenização devida, visando, assim, à inocorrência de enriquecimento sem causa ou de indenizações
tão ínfimas que nem sequer chegam a compensar a dor sofrida pelo lesado.
Apesar dos inúmeros esforços dos operadores do direito, e até mesmo da atividade legiferante em elaborar projetos de lei estipulando limites
indenizatórios, ainda assim, encontram-se julgados com valores exorbitantes, concedendo indenizações que garantem ao ofendido a oportunidade
de constituir uma poupança robusta e até mesmo uma espécie de prêmio
de loteria, e em contrapartida, o empobrecimento daquele que teve que
suportar o ônus da indenização, e por consequência a vulgarização do
instituto dos danos morais.
32 JURISPRUDÊNCIA. Fixação de valores de indenização. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/
revis taeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=10851815&sReg=200900922470&sDat
a=20100910&sTipo=51&formato=PDF>. Acesso em: 2 dez. 2010.
62
A indústria dos danos morais
Pois bem, infelizmente, apesar do avanço jurisprudencial em conceder
indenizações em patamares razoáveis e proporcionais, ainda há muito que
se fazer para que a indenização pelos danos morais sofridos nas relações de
consumo não incida em apenas mais uma discussão doutrinária infrutífera.
Espera-se que, apesar da evolução dos julgados e da nova temática
do C.STJ em agrupar fatores e casos semelhantes a limites pecuniários específicos, o dano moral não seja mais um meio de descrédito da Justiça, e
nem muito menos, continue sendo um produto industrializado, vendido a
preço de mercado, acessível àqueles que apenas buscam uma aposentadoria milionária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). São Paulo: Saraiva,
2010. (Vade Mecum Compacto).
BRASIL. Código Civil Brasileiro (2002). São Paulo: Saraiva, 2010. (Vade Mecum
Compacto).
BRASIL. Código de Processo Civil Brasileiro (1973). São Paulo: Saraiva, 2010. (Vade
Mecum Compacto).
BRASIL. Lei Municipal n°. 4069/2001. Disponível em: http://www.camaracba.
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dez. 2010.
MENEZES, Luciana Duarte Sobral. Revista Jurídica Consulex, n. 330. Brasília: Consulex, 2010.
AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
Cleidimil Leite da Cunha1
INTRODUÇÃO
Ao se completar vinte anos da vigência da Lei 8.069/90 é oportuno
esboçar algumas reflexões sobre a aceitação desta norma tida por muitos,
sobretudo os intelectuais, como uma das leis mais avançadas da atualidade. Alguns, talvez os mais críticos, chegam a afirmar que se trata de uma lei
avançada no tempo para uma população ainda no atraso cultural e social.
Independentemente das opiniões, o Estatuto da Criança e do Adolescente está aí e vem sendo aplicado pela maioria dos juízes nos Juizados
da Infância e Juventude. Evidentemente que no decorrer dos vinte anos
houve muitas falhas não da lei enquanto lei abstrata, mas na sua interpretação e aplicação na realidade social deste nosso amado país. Não se pode
esquecer das limitações e interesses que muitas vezes podem prevalecer
acima das leis que regulam o tratamento que deveria ser dispensado às
crianças, adolescentes e jovens.
Vinte anos. Para os otimistas o tratamento dispensado às crianças e
adolescentes neste país mudou e muito para melhor. Para outros nem tanto. Para os pessimistas a violência contra crianças e adolescentes aumentou
e, pior, está sendo praticada por adolescentes e jovens. Observam, ainda,
apontando para os noticiários policiais diários que estão repletos de fatos
que envolvem adolescentes e jovens, quando não autores, partícipes em
crimes ou em delitos de menor gravame social.
Como dito no prelúdio deste artigo é nosso intuito abordar algumas
reflexões sobre este tema, em especial a questão das medidas socioeducativas como remédios públicos de retorno ao convívio social e, sobretudo,
de repensar pedagogicamente um projeto de vida voltado para a inclusão
familiar e social.
1 Bacharel em Direito pela Universidade de Cuiabá-MT. Liderança comunitária.
66
As medidas socioeducativas
O ESPÍRITO DA LEI: A PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Os vinte anos seguintes à aprovação da Lei nº 8.069 de 13 de julho
de 1990, vêm assistindo a uma mudança considerável quanto ao tratamento legal dispensado à criança e ao adolescente em conflito com a lei.
A lei vigente até 1990 (Lei nº 6.697/79) considerava como causas da
delinquência juvenil aquelas provenientes da situação irregular, sem, no
entanto, analisar os motivos geradores da “irregularidade”.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), pelo contrário, aborda a questão a partir da consideração básica da situação de
risco pessoal e social da criança e do adolescente tendo como sua maior
causa a marginalização determinada pela pobreza e pelo abandono.
Isso posto, vê-se que o ECA é uma doutrina baseada na total proteção
dos direitos infanto-juvenis com seu alicerce jurídico e social na Convenção
Internacional sobre os direitos da criança, adotada pela Assembleia Geral
da Nações. Por sua vez, o Brasil adotou o texto, em sua totalidade, através
do Decreto 99.710, de 2 de novembro de 1990, após ser retificado pelo
Congresso Nacional (Decreto Legislativo, nº 28, de 14 de setembro de 1990.2
Por essa razão, Edson Sêda considera as medidas de proteção como
sendo o “coração do estatuto”, a “pedra angular” do novo direito, as providências adotadas por autoridades com poderes especiais sempre que
crianças e adolescentes forem ameaçadas ou violadas em seus direitos.3
De fato, seguindo a orientação trazida pelo artigo 227 da CF/88, as
crianças e adolescentes têm tratamento especial, abrangendo todos os direitos básicos, tais como à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à recreação,
à convivência familiar e comunitária.
Essas medidas garantem às crianças e adolescentes a proteção integral de seus direitos sempre que forem ameaçados ou violados.
O Estatuto considera ato infracional a conduta descrita como crime
ou contravenção penal (art. 103). Na verdade, não existe diferença entre os
conceitos de ato infracional e crime, pois de qualquer forma são condutas
contrárias ao direito, situando-se na categoria de ato ilícito.
O importante a ser considerado está na lei definir a aplicação
de medidas socioeducativas, marcadas por seu cunho pedagógico (art.
2 LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao estatuto da criança e do adolescente. 5. ed. São
Paulo: Malheiros, 2000. p. 14
3 SÊDA, Edson. Art. 98. In: CURY, Munir. Op. cit., p. 303.
Cleidimil Leite da Cunha
67
112, ECA) e com sua finalidade essencialmente educativa. Essa proposta
legal direciona-se, exclusivamente, aos adolescentes entre 12 e 18 anos
de idade.
Para os menores de 12 anos, que estejam em conflito com a lei,
aplicam-se as medidas protetivas do art. 101, ECA, por iniciativa do Conselho Tutelar ou pelo juiz de Infância e da Juventude, caso no local não
exista o referido órgão colegiado.
As medidas socioeducativas são atividades impostas aos adolescentes comprovadamente autores de ato infracional. Destinam-se à proteção,
recuperação e reinserção do adolescente à vida familiar e social.
Os métodos para o tratamento e orientação tutelares são pedagógicos, sociais, psicológicos e psiquiátricos, visando, sobretudo, à integração
do adolescente em sua própria família e na comunidade local.
As medidas socioeducativas dividem-se em dois grupos diferenciados. As medidas não privativas de liberdade e as privativas de liberdade.
O primeiro grupo de medidas é formado pela advertência, obrigação
de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida.
O segundo é formado pelas medidas socioeducativas da semiliberdade e internação.
AS MEDIDAS NÃO PRIVATIVAS DE LIBERDADE
Como a própria terminologia já diz, as medidas não privativas de liberdade não possuem o caráter da privação da liberdade. O adolescente permanece junto de sua família, no entanto é acompanhado pelo Poder Público
no cumprimento de medidas educativas de integração social. Entre as privativas de liberdade, a primeira é a advertência feita pela autoridade judicial.
A ADVERTÊNCIA
O termo “advertência” deriva do latim advertentia e significa a admoestação, chamar a atenção, censurar, repreender.4
De todos os significados, o Estatuto da Criança e do Adolescente
assumiu o de “admoestação”, “repreensão”, “censura”, destacando, porém,
a finalidade pedagógica muito mais do que a punitiva.
4 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1989. p. 30.
68
As medidas socioeducativas
Junto com a admoestação, o adolescente infrator recebe da autoridade competente conselhos e orientações, perante seus pais ou responsáveis. Na verdade, a autoridade competente, no caso, o juiz da Infância e
da Juventude (art. 146, ECA), somente ele tem a competência para aplicar
medidas socioeducativas. “O Ministério Público não tem competência para
aplicar as medidas socioeducativas. Qualquer sanção ao infrator só poderá
ser imposta pelo juiz, observado o procedimento legal”.5 Ao representante
do Ministério Público compete somente a formulação da representação e
conceder a remissão (ECA, arts. 126 e 180, II), pois ao Poder Judiciário é
reservada a aplicação de qualquer medida restritiva de direitos.
O art. 115 prevê o termo de advertência que, segundo a correta lição
de Jason Albergaria:
Não será um instrumento rotineiro ou burocrático, pois há de prever o
aspecto pedagógico da medida, prescrevendo os deveres do menor e
as obrigações do pai ou responsável com vista à recuperação do menor
que permanecerá em seu seio natural, à família, à escola e o emprego.6
Isso posto, com base na observação e nos comentários de colegas
que exercem atividade profissional com adolescentes em conflito com a
lei, tem-se a argumentar que a aplicação da medida socioeducativa da
advertência surte os efeitos práticos desejados na medida em que o adolescente conta com o apoio e acompanhamento de sua família na recuperação. Observa-se, no entanto, que muitos pais somente se dão conta
de que seu filho se envolveu na prática de algum ato infracional quando
é chamado em juízo. A partir do tribunal, alguns pais, despertados pelas
suas obrigações, passam a dedicar mais atenção ao filho, que se sente mais
amado e valorizado. Acredita-se que é nessas condições que, via de regra,
pode ocorrer a sua recuperação.
Entretanto, quanto inexiste família, ou esta não se interessa pela
recuperação do adolescente, ser em formação, onde prevalece o descaso
e o desamor, quase sempre se nota que as práticas infracionais continuam,
ensejando a aplicação de medidas socioeducativas mais rigorosas.
5 CHAVES, Antônio. Op. cit., p. 510.
6 ALBERGARIA, Jason. Direito do Menor. Belo Horizonte: UMA, 1979. p. 116.
Cleidimil Leite da Cunha
69
A Lei nº 8.069/90 prevê a aplicação de “advertência” nas seguintes
situações:
a) ao adolescente, no caso de prática de ato infracional (art. 112, I, c/c
o art. 103);
b) aos pais ou responsáveis, guardiães de fato ou de direito, tutores,
curadores, etc. (art. 129, VII);
c) às entidades governamentais ou não governamentais que atuam no
planejamento e na execução de programas de proteção socio educativos destinados a crianças e adolescentes (art. 97, I, “a”, e II, “a”).
Na primeira hipótese incide a aplicação de medida socioeducativa,
nas demais, medida de proteção.
Visto de forma geral, o “ato de advertir”, no sentido de admoestar,
já possui em sua estrutura semântica o caráter sancionatório e, ainda mais,
quando externado oficialmente pela autoridade judiciária.
Tem-se como importante a reflexão sobre o perigo da simplificação
ou banalização dessa medida socioeducativa que pode surgir da visão
dogmática do direito, visto como um mundo de puras normas racionais,
lógico-abstratas, desvinculadas da realidade social vivida pelo adolescente.
Isso posto, faz-se mister a prevenção contra a tentação de transformar a advertência prevista no art. 115 do ECA em mera rotina ou num ato
de mera burocracia.
Nesse sentido, é preciso levar-se em consideração que o adolescente “sob a admoestação é titular do direito subjetivo à liberdade, ao
respeito e à dignidade” (artigos 15 a 18 do ECA), “é alguém que se apresenta na condição peculiar de pessoa em desenvolvimento” (art. 6º, ECA)
e que não pode ser exposto ou submetido, por quem quer que seja, a
qualquer tipo de crueldade, violência e opressão física ou moral, nos
termos do art. 5º do ECA.
Por outro lado, coerentemente com a doutrina de proteção integral,
que preside o Estatuto, e para que se atendam às exigências ético-jurídicas
desse paradigma, o tratamento, tanto teórico quanto prático, das medidas
socioeducativas, entre as quais se insere a advertência, pressupõe que
sejam levadas em conta as contribuições da Psicologia Evolutiva e da Psicologia Educacional no que se refere ao entendimento que se deve ter do
adolescente e de suas peculiaridades como pessoa em desenvolvimento.
70
As medidas socioeducativas
No entendimento da Psicologia Evolutiva, a adolescência é:
um período crítico de definição da identidade do eu cujas repercussões pode ser de graves consequências para o indivíduo e a sociedade... Representa uma fase crítica do processo evolutivo em que
o indivíduo é chamado a fazer importantes ajustamentos de ordem
pessoal e de ordem social. Entre esses ajustamentos temos a luta pela
independência financeira e emocional, a escolha de uma vocação e da
própria identidade sexual.7
A advertência como medida socioeducativa aplica-se principalmente
aos adolescentes primários. Nesse caso ela prescinde de maiores formalidades, embora constitua um grande meio eficaz e educativo, capaz de
surtir os desejados efeitos, quando o ato infracional resultou de conduta
impensada e precipitada.
A presença dos pais ou responsável torna-se indispensável à audiência, pois, se concorreram para o ato infracional, impõe-se-lhes, também,
a medida prevista para eles (art. 129, VII, ECA).
A advertência deve ser reservada aos atos infracionais leves, pois,
dependendo de sua gravidade, existem outras medidas mais apropriadas
que exigirão um procedimento formal, com garantia do contraditório.
Toda medida aplicável ao adolescente deve visar à sua integração
sociofamiliar, por isso a advertência deve ser a mais usada, como forma
de tomada de consciência e de alerta, tanto para o adolescente como para
os pais ou responsáveis que estejam concorrendo para o ato infracional.
A OBRIGAÇÃO DE REPARAR O DANO
A obrigação de reparar o dano é a medida socioeducativa que melhor conjuga a função pedagógica e a preocupação com a lesão sofrida
pela vítima. Entende-se, portanto, que o adolescente poderá obrigar-se
a compor os prejuízos causados pela prática de seu ato infracional. Tal
medida, antes de ser punitiva, pretende, de forma pedagógica, orientar o
adolescente a respeitar os bens e patrimônio de terceiros.
7
MERVAL, Rosa. Psicologia da Adolescência. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1982. p. 43-44.
Cleidimil Leite da Cunha
71
Segundo o art. 159 do CC, a prática de um ato ilícito impõe ao seu
autor a obrigação de reparar o dano, salvo nos casos de legítima defesa ou
no exercício regular de um direito (art. 160, I e II, CC).
Quando o dano for causado por ato ilícito atribuído a menor de 16
anos, responderão pela reparação exclusivamente os pais ou responsável.
Se o menor tiver entre 16 e 21 anos, a lei o equipara ao maior no que concerne às obrigações resultantes de atos ilícitos em que for culpado. Nesse
caso, o adolescente responderá solidariamente com seus pais, tutor ou
curador pela reparação devida (artigos 156 e 1521, CC).
O Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que “considera-se
criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até 12 (doze) anos incompletos
de idade e adolescente, aquela entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de
idade” (art. 2º, ECA).
Por sua vez, a medida socioeducativa de obrigação de reparar o
dano (art. 112, III) se aplica ao adolescente, assim entendido o menor que
tenha entre 12 (doze) anos completos e 18 (dezoito) incompletos.
Em breve regressão histórica observa-se que o Código de Menores
de 1927 (Mello Matos), repetindo preceito do Dec. 16.272, de 20.12.1923,
dispunha, no seu art. 68, § 4º que:
São responsáveis pela reparação civil do dano causado pelo menor, os
pais ou a pessoa a quem incumbia legalmente a sua vigilância, salvo se
provar que não houve de sua parte culpa ou negligência.
Por sua vez, o art. 103 do Código de Menores de 1979 (Lei nº
6.697/79) previa uma forma de simplificação do procedimento de composição do dano causado por menores autores de infração penal. Previa
que a autoridade judiciária, “sempre que possível e se for o caso, tentará,
em audiência com a presença do menor, a composição do dano por ele
causado”. A composição do dano dava-se por acordo entre a vítima e o
responsável legal pelo menor, homologado pelo juiz do processo instaurado para a apuração da infração penal, considerando-se o respectivo
termo documento hábil para a execução, nos termos da lei processual
civil. Com isso, evitava-se que a vítima tivesse de recorrer à ação de reparação de dano, resguardando-se o menor contra a maior repercussão
social do seu ato e abreviando-se o tempo e os gastos da vítima na obtenção da reparação.
72
As medidas socioeducativas
Segundo Anísio Garcia Martins, esse procedimento era salutar e vantajoso:
Pois a reparação consentida, no fragor dos acontecimentos, torna-se
efetiva e compensadora, além de ter o efeito psicológico de viva impressão na consciência do menor, que sente de imediato as consequências negativas dos seus atos.8
O Estatuto da Criança e do Adolescente avança no tratamento dado
à matéria pelas leis anteriores. Prevê que a autoridade poderá ir além de
uma tentativa de composição patrimonial, estabelecendo em seu favor a
faculdade de determinar, isto é, de decidir, que o adolescente repare o
dano decorrente de sua ação ilícita.
Na aplicação do art. 116 do ECA, o Ministério Público e a autoridade
judiciária devem dar preferência à solução mediada, evitando, dentro do
possível, impor aos adolescentes infratores o seu ponto de vista, em termos
de decisão. A autoridade competente, no dizer de Miguel Moacyr Alves Lima:
Atuando dessa forma estará dando destaque à pedagogia da participação, tanto da vítima quanto do adolescente, e seu responsável, favorecendo uma compreensão dos fatos que transcenda o ‘meramente
jurídico’ e o ‘meramente econômico’. Enfim, estará propiciando a todos
e especialmente ao adolescente infrator, a oportunidade de experimentar uma vivência compartilhada, fortalecendo elementos e aspectos que
podem conduzir a uma socialização ou ressocialização positiva, porque
baseada na valorização de sua pessoa, de sua imagem, de sua opinião,
de sua condição de ‘ser de relações’ e ‘sujeito de direitos’.9
Quando a solução mediada se apresentar inviável, a autoridade
competente deverá sempre ter em mente o caráter socioeducativo da
medida, estabelecendo formas de reparação, seja quanto à natureza, seja
quanto à extensão, em que o potencial pedagógico seja visível aos interessados. Com isso, de um lado estará atendendo aos interesses da vítima em
ver o seu prejuízo reparado com presteza, e, de outro lado, estará sendo
fiel ao novo paradigma proposto pela Lei 8.069/90 em vigor no Brasil, que
8 MARTINS, Anísio Garcia. O Direito do Menor. Op. cit., p. 136.
9 LIMA, Miguel Moacyr Alves. Art. 116. In: CURY, Munir. Op. cit., p. 382.
Cleidimil Leite da Cunha
73
exige para o adolescente infrator uma recepção, um processamento e um
julgamento adequados à sua condição de pessoa humana e não de mero
objeto, passivo e amorfo da ação judicante.
A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE
A prestação de serviços à comunidade (artigos 112, III e 117, ECA)
apresenta-se como a medida mais apropriada para conscientizar o adolescente da importância do trabalho, proporcionando-lhe e a oportunidade
de participar de atividades construtivas, e, assim, despertar para o senso de
solidariedade e a consciência social.
Consiste, portanto, a presente medida, na realização de tarefas gratuitas de interesse coletivo por parte do adolescente, realizadas junto a
entidades assistenciais ou governamentais.
Mencionadas tarefas, entretanto, não podem exceder a oito horas
semanais, e o período estabelecido para a realização dos serviços nunca
deverá ser superior a seis meses.
O objetivo da presente medida não é punir o adolescente com a
prestação de serviço para a vítima. As tarefas gratuitas e de interesse geral
devem responder às exigências constitucionais e estatutárias relativas ao
trabalho do adolescente. Assim, deverão atender às restrições do art. 67,
ECA, relativas às condições de trabalho do adolescente. A jornada de trabalho nunca poderá ultrapassar oito horas semanais, distribuídas aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis de modo a não prejudicar a frequência à escola ou à jornada normal de trabalho (art. 117, § único, ECA).
No direito penal, a prestação de serviços à comunidade constitui
pena restritiva de direitos, que consiste na atribuição ao condenado de tarefas gratuitas junto a entidades assistenciais, tais como: hospitais, escolas,
orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais (art. 46, CP).
É inegável o caráter jurídico moderno e a abrangência educativa e
social desta medida, apesar do contrário daqueles que defendem a maior
eficiência das penas privativas de liberdade. Nesse ponto vale ressaltar
Evandro Lins da Silva:
Já estamos assistindo a implantação das chamadas penas alternativas,
outras formas de manifestar a reprovação social contra o crime que não
seja o encarceramento do acusado: as interdições de direitos; o ressar-
74
As medidas socioeducativas
cimento do dano ocasionado pelo crime; a multa; a prisão de fim de
semana; a prestação de serviço gratuito à comunidade.10
A prestação de serviços à comunidade, como medida socioeducativa inserida num contexto comunitário abrangente (entidades assistenciais,
etc), possibilita o alargamento da visão do bem público e do valor da
relação comunitária, cujo contexto deve estar inserido numa verdadeira
práxis, onde os valores de dignidade, cidadania, trabalho, escola, relação
comunitária e justiça social sejam cultivados durante sua aplicação.
A relevância de aplicação dessa medida reside não só na cultivação
dos valores que dignificam o ser humano, mas também na inserção e exercício prático da cidadania, aqui entendida como efetivação de todos os
direitos e garantias inerentes à pessoa elencados na lei e na Constituição.
Inegáveis se fazem, pois, tais aspectos num país cuja perspectiva de
vida digna, de planos pessoais em nível profissionalizante, conhecimento
desalienante, realização pessoal, entre outros, sofrem profunda deterioração entre a população juvenil.
A LIBERDADE ASSISTIDA
A liberdade assistida (artigos 112, IV, 118 e 119, ECA) é considerada
a medida mais adequada para a recuperação do adolescente que pratica
ato infracional, sobretudo se ele puder permanecer junto da família.
A medida tem como finalidade acompanhar, auxiliar e orientar o
adolescente promovendo sua recuperação e reinserção na sociedade.
Os códigos de Menores de 1927 (Código Mello Mattos) e o de 1979
(Lei 6.697/79) já contemplavam esta medida para o menor infrator e para
o menor com desvio de conduta (art. 2º, V e VI, c/c art. 38), sob o nome
de liberdade vigiada.
O legislador acolheu as Regras de Beijing (China), assumidas pela
Organização das Nações Unidas, em 1985, onde a liberdade assistida foi
abrigada como uma das várias opções ao alcance das autoridades competentes (regra 18), desde que obedecidos os princípios constantes da regra
17, que trata dos princípios que embasarão a decisão judicial e das medidas correspondentes.
10 SILVA, Evandro Lima. Sistema Penal para o Terceiro Milênio. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 78.
Cleidimil Leite da Cunha
75
17.1 - A decisão da autoridade competente pautar-se-á pelos seguintes
princípios:
a) a resposta à infração será sempre proporcional não só às circunstâncias e gravidade da infração, mas também às circunstâncias e necessidades do menor, assim como às necessidades do menor, assim como às
necessidades da sociedade;
b) as restrições à liberdade pessoal do menor serão impostas somente
após estudo cuidadoso e se reduzirão ao mínimo possível
c) [...]
d) o bem-estar do menor será o fator preponderante no exame dos
casos.
18.1 - Uma variedade de medidas deve estar à disposição da autoridade
competente, permitindo a flexibilidade e evitando ao máximo a institucionalização. Tais medidas que podem algumas vezes ser aplicadas
simultaneamente incluem:
a) determinação de assistência, orientação e supervisão;
b) liberdade assistida;
c) [...]”11
Essas regras fizeram parte da Convenção Internacional dos Direitos
da Criança (Assembleia Geral da ONU, novembro de 1989), onde ficou evidenciada a variedade de dispositivos para utilização, sempre levando em
conta a necessidade da aplicação da medida mais adequada à reintegração
e o compromisso do adolescente no engajamento de seu papel como sujeito de direitos e construtor da sociedade.12
O art. 119, caput, estabelece que a liberdade assistida deve ser exercida por pessoa capacitada, com formação especializada, designada pelo
juiz da Infância e Juventude, o qual deve orientar sua atuação junto ao adolescente, segundo as regras de conduta que lhe forem ditadas. Para realizar
essa função, a pessoa poderá ser indicada por entidade ou programa de
atendimento, que poderá ser o Conselho Tutelar (arts. 131 e 5º, ECA), já que,
entre suas atribuições de aplicar as medidas de proteção (art. 101, I a VIII) ,
11 Regras Mínimas das Nações Unidas para a administração da Justiça da Infância e da Juventude.
Regras de Beijing-UNICEF. In: CURY, Garrido & Marçura. Op. cit. p. 257-263.
12 Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança – UNICEF. In: CURY, Garrido &
Marçura. Op. cit., p. 250-251.
76
As medidas socioeducativas
poderá também acompanhar a aplicação das medidas socioeducativas (art.
112, I a II), pois só assim haverá o cumprimento das disposições estatutárias.13
A liberdade assistida deve ser aplicada somente para os reintegrantes na prática de atos infracionais e que demonstrem tendência para reincidir, já que os primários devem ser apenas advertidos, com a entrega aos
pais ou responsáveis.
Deverá a autoridade judiciária, após a ocorrência do contraditório,
com a oportunidade do adolescente de ampla defesa, fixar o prazo mínimo
de 6 (seis) meses, podendo ser a qualquer tempo prorrogada, revogada ou
substituída por outra medida, ouvido o orientador, o Ministério Público e
o defensor (art. 118, § 2º).
Compete ao orientador apresentar relatório do caso, mensalmente,
ou conforme determinação judiciária, já que essa exigência, quanto menos
espaçada, mais demonstrará a certeza do acompanhamento, que deve ser
assíduo e frequente.
No relatório deve constar a frequência e o aproveitamento escolar,
bem como sua inserção em programa profissionalizante. Daí, para o bom
êxito da medida, ser importante que o adolescente resida na comarca onde
a medida lhe foi imposta pela autoridade competente.
No ensinamento de Níveo Geraldo Gonçalves, sob o enfoque das
ciências humanas:
A liberdade assistida se define como modalidade de tratamento em
meio livre, com prévio estudo médico-psicopedagógico e social da personalidade do adolescente, elaboração do programa de reeducação e
sua execução por pessoal especializado. O tratamento seria o traço característico de liberdade assistida, mesmo diante do art. 118 do Estatuto
que, de forma clara, teima em não usar a palavra tratamento. Fala em
acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente.14
Resta claro, portanto, que o conceito de liberdade assistida não é totalmente novo, uma vez que os artigos 118 e 119 do ECA enfatizam a palavra “assistida”. Com certeza, o Estatuto passou a entender os adolescentes
13 Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança – UNICEF. In: CURY, Garrido &
Marçura. Op. cit., p. 250-251.
14 GONÇALVES, Níveo Geraldo. Conselho Tutelar – Justiça da Infância e da Juventude e Liberdade
Assistida. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 56.
Cleidimil Leite da Cunha
77
não como objetos de vigilância e controle (caso de liberdade vigiada dos
códigos menoristas), mas como sujeitos livres e em desenvolvimento que
requerem apoio e assistência no exercício de sua liberdade e nos primeiros
passos da construção de um projeto de cidadania plena.
Trata-se de uma medida judicial de cumprimento obrigatório para
o adolescente que dela é sujeito. No entanto, pela natureza da medida,
considere-se importante que esta se realize com o maior grau possível de
boa vontade e comprometimento do adolescente, tendo como objetivo
não só a satisfação da medida, entendida no cumprimento da pena, mas
especialmente na sua conscientização e compromisso pela construção de
um novo projeto de vida.
Nesse sentido, entende-se ser o papel do orientador de suma importância e suas ações de apoio e assistência devem necessariamente ser antes
discutidas e acordadas com o adolescente, respeitando seu direito de escolher seu próprio projeto. Assim, procurar-se-á fazer da liberdade um valor em
si e que atue como principal elemento de reeducação e reintegração social.
No dizer de Elias Carranza:
A experiência de outros países que utilizam a liberdade assistida, aconselha
iniciar cada passo com um documento de “compromisso”, subscrito pelo
juiz ou quem ele designe, o orientador, o adolescente e um membro de sua
família. Este ato de compromisso enfatiza o exercício de um código de lealdade e honra que se vincula com práticas sociais que envolvem e valorizam
os próprios adolescentes que se sentem responsáveis pela sua recuperação.15
A aplicação dessa medida só será pertinente quando o adolescente
pertencer a um grupo familiar que lhe sirva de referência. Todavia, não
desconhecemos ser a reeducação de adolescentes infratores uma tarefa
nem sempre fácil. É que durante o período de acompanhamento, o adolescente permanece no seio de sua família, e, sendo ela desestruturada, a
reeducação e inclusão social se tornam mais complexas e difíceis.
A liberdade assistida, como medida socioeducativa, reconstrói no
adolescente os seus valores, a convivência familiar, social e profissional.
Ela facilita ao adolescente a construção de um novo projeto de vida, fundado em novos valores e, consequentemente, em novas atitudes.
15 CARRANZA, Elias. Artigo 118. In: CURY, Munir. Op. cit., p. 380-390.
78
As medidas socioeducativas
AS MEDIDAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE
A expressão privativa já coloca de forma clara que se trata de perda
da liberdade. O adolescente infrator passa cumpre a determinação judicial
de reclusão ou de semirreclusão com o objetivo de repensar seu projeto
de vida.
A SEMILIBERDADE
A semiliberdade, como regime e política de atendimento, é a medida socioeducativa destinada a adolescentes em conflito com a lei que
trabalham e estudam durante o dia e, à noite, recolhem-se a uma entidade
especializada que na esfera penal corresponde à casa do albergado.
No estudo dessa medida, verifica-se, na prática, a existência de dois
tipos de semiliberdade: o primeiro é proveniente do tratamento tutelar determinado desde o início pela autoridade judiciária, através do devido processo legal; o segundo caracteriza-se pela progressão de regime: o adolescente em regime de internação passa para a semiliberdade (art. 120, ECA).
Como o próprio nome indica, a semiliberdade é um dos tratamentos tutelares que é realizado, em grande parte, em meio aberto, implicando, necessariamente, a possibilidade de realização de atividades externas,
como a frequência à escola, as relações de emprego, etc. Caso não haja
esse tipo de atividade, a medida socioeducativa perde sua finalidade.
No período noturno, quando o adolescente deverá retornar à entidade especializada, os técnicos sociais deverão complementar o trabalho
de acompanhamento, auxílio e orientação, sempre avaliando a progressão
e o término do tratamento.
Antônio Luiz Ribeiro Machado destaca a importância dessa medida
e a atuação técnica como:
Uma providência de alto valor terapêutico e eficaz para a integração
social do adolescente, dando-lhe garantia e oportunidade de uma atividade útil e laborativa na comunidade, com o acompanhamento de uma
equipe técnica especializada.16
16 MACHADO, Antônio Luiz Ribeiro. Código de menores comentado. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 54.
Cleidimil Leite da Cunha
79
Os resultados a serem obtidos em programas de atendimento dependem muito do interesse e dedicação de uma equipe técnica devidamente preparada e de uma coordenação consciente e atuante na busca de
resultados concretos.
Em todas as formas de aplicação de medida socioeducativa, principalmente naquelas de regime de semiliberdade e internação, são obrigatórias a escolarização e a profissionalização, cuja operacionalização e
recursos poderão ser captados na comunidade (art. 120, § 1º, ECA).
Campos Costa e Seabra Lopes observam que:
O regime de semiliberdade destina-se, sobretudo, aos menores, cuja
agressividade, oposição ou instabilidade se explicam por frustrações
afetivas, traumatismos da afetividade ou sentimentos de inferioridade; e,
ainda, a adolescentes cuja inadaptação resulta da falta de direção familiar
ou da extrema fraqueza dos pais. Daí a necessidade do exame médicopsicológico e social do menor candidato ao regime de semi-internato,
que não será permitido sem essa prévia observação científica do menor.17
O Estatuto não fixa tempo de duração para o cumprimento da medida, sugere, no entanto, sua aplicação, no que couber, às disposições
relativas à internação (art. 120, § 2º), inclusive quanto aos direitos do adolescente privado de sua liberdade (art. 124, ECA).
Para Wilson Donizeti Liberati não existem limites e regras claras para
a execução dessa medida socioeducativa e, por isso, autoridades judiciárias têm tido muita cautela em sua aplicação.
Por se tratar de uma medida socioeducativa, os técnicos sociais
deverão apresentar sistematicamente à autoridade judiciária relatórios circunstanciados do acompanhamento dispensado a cada um dos adolescentes enquadrados no cumprimento dessa medida socioeducativa.
A INTERNAÇÃO
A internação é a medida socioeducativa que priva o adolescente de
sua liberdade e somente pode ser aplicada pela autoridade judiciária em
decisão fundamentada (art. 106, ECA).
17 COSTA, A. Campos; LOPES, J. Seabra. Organização tutelar de menores. In PEREIRA, Tânia da Silva.
O melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 74.
80
As medidas socioeducativas
Trata-se de medida excepcional, que só será determinada se for
inviável a aplicação de outra medida socioeducativa sem jamais perder de
vista a finalidade pedagógica da recuperação e reinserção do adolescente
ao meio familiar e social.
O art. 121 do Estatuto define a internação como medida privativa de
liberdade, sujeita aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito
à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da
infração (art. 123, ECA).
Os documentos internacionais que se referem explicitamente ao
tema da privação de liberdade dos adolescentes são: a) Regras Mínimas
das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude. Regras de Beijing – Unicef; b) Regras Mínimas das Nações Unidas
para a proteção dos jovens privados de liberdade – Unicef; c) Diretrizes
das Nações Unidas para a prevenção da delinquência juvenil – Diretrizes
de Riad – Unicef.
Todos esses documentos internacionais caracterizam a medida de
privação de liberdade como sendo de: a) última instância; b) caráter excepcional; c) mínima duração possível.
A Lei nº 8.069/90 distingue dois procedimentos jurídicos para a internação: o primeiro refere-se à internação provisória prevista no art. 183, a
qual não pode ultrapassar o prazo máximo e improrrogável para a conclusão do procedimento iniciado com a representação que é de 45 (quarenta
e cinco) dias. O segundo refere-se à internação por sentença judicial, fundamentada nos princípios da brevidade e da excepcionalidade.
No dizer de Rosângela Martins Alcântara Zagaglia:
A internação aplicada na sentença como medida socioeducativa tem
características próprias, e, dentre outras, as principais são a brevidade, a excepcionalidade e o respeito à pessoa do adolescente, breve, porque deverá ser reavaliada periodicamente para possibilitar sua
substituição (art. 133 c/c art. 99 da Lei nº 8.069/90) ou sua extinção a
qualquer tempo: O mínimo de seis meses (art. 121, § 2º e o máximo de
três anos § 3º) excepcional porque as demais medidas não se afiguram
adequadas ao adolescente. Isto deve ser verificado após o término do
Cleidimil Leite da Cunha
81
procedimento da apuração do ato infracional com todas as garantias
constitucionais.18
A reavaliação não é da justiça da medida aplicada, mas do adolescente em face do ato cometido e sua repercussão no processo pedagógico
de cumprimento da medida aplicada.
Vale destacar que a medida de internação torna-se indispensável naqueles casos em que a natureza da infração e o tipo de condições psicossociais do adolescente fazem supor que, sem um afastamento temporário do
convívio social, ele não será atingido por nenhuma medida terapêutica ou
pedagógica e poderá, o que é mais grave, representar um risco para outras
pessoas da comunidade, como, também, a internação na maioria dos casos
representa uma garantia e segurança para sua própria vida.
Pelo princípio do respeito ao adolescente em condição peculiar de
desenvolvimento, o Estatuto reafirma que é obrigação do Estado zelar pela
integridade física e mental dos internos, cabendo-lhes adotar as medidas
adequadas de contenção e segurança (art. 125).
Ao efetuar a manutenção e a segurança dos infratores internos, as
autoridades encarregadas não poderão, de forma alguma, praticar abusos
ou submetê-los a vexame ou a constrangimento não autorizado por lei,
Vale dizer que devem observar os direitos do adolescente privado de liberdade, alinhados no art. 124, ECA.
Paulo Afonso Garrido de Paula, ainda na vigência do antigo Código de Menores, destacava: “que a finalidade da internação é educativa
e curativa”.19 Educativa enquanto o estabelecimento reúne condições de
proporcionar ao infrator escolaridade, profissionalização e cultura, instrumentalizando-o para enfrentar os desafios do convívio social.
Curativa enquanto a internação se processa em estabelecimento
ocupacional, psicopedagógico, hospitalar ou psiquiátrico e visa “curar”
desvios de conduta do adolescente infrator.
Concordando com a posição de Garrido, frisa-se que há um equívoco muito grande quando nos deparamos com a mentalidade popular de
que a solução do problema do infrator é a internação. Na verdade, por
18 ZAGAGLIA, Rosângela Martins Alcântara. Algumas considerações interdisciplinares na aplicação das medidas socioeducativas, visando o melhor interesse do adolescente. In: PEREIRA, Tânia
da Silva. Op. cit., p. 733.
19 GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso. Menores, Direito e Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 94.
82
As medidas socioeducativas
melhor que seja a entidade de atendimento, a internação deve ser vista e
aplicada de forma excepcional, porque provoca no adolescente os sentimentos de insegurança, agressividade e frustração, acarreta um pesado
ônus para o Poder Público e não responde às dimensões do problema.
A internação terá eficácia, para Wilson Donizeti Liberati, se for considerada:
Um meio para tratar o adolescente, e não um fim em si mesmo. Para
tanto faz-se necessário a adoção de critérios rígidos na triagem para permitir o tratamento tutelar somente àqueles que dele necessitam. Disso
decorre que a internação deve ser cumprida em estabelecimento especializado, de preferência de pequeno porte, no máximo 40 (quarenta)
internos, e contar com profissionais altamente especializados nas áreas
terapêutica, pedagógica e com conhecimentos de criminologia.20
Nesse sentido, Antônio Luiz Ribeiro Machado alerta que:
A moderna pedagogia que orienta o tratamento do menor autor de infração penal, a tradicional disciplina imposta pela força e pela coação, deve
ser substituída por um amplo processo que leve o menor a descobrir o seu
próprio valor e, conscientemente passe a orientar a sua conduta segundo
as normas de autodisciplina e autocontrole, tendentes à ressocialização.21
Em suma, a verdadeira terapia deve visar:
a) à formação de uma personalidade sadia, despertando no adolescente
a autoconfiança e a autoestima;
b) ao domínio da agressividade;
c) à sua readaptação social.
A Lei nº 8.069/90 prevê para o cumprimento de medida de intervenção uma instituição fechada. O que não significa isolada do mundo,
da sociedade.
20 LIBERATTI, Wilson Donizeti. Op. cit., p. 93.
21 MACHADO, Antônio Luiz Ribeiro. Código de menores comentado. Op. cit., p. 56.
Cleidimil Leite da Cunha
83
Limitar a liberdade do adolescente em cumprimento de medida de
internação em instituição fechada não significa segregar, esconder, ignorar
ou excluir o adolescente do contexto social, ao contrário, é proporcionar
educação, desenvolvimento, condições físico-mentais e sociais para habilitá-lo à vida comunitária.
Somente instituições comprometidas com a pessoa humana com
métodos psicopedagógicos que priorizam a dignidade, a autoestima e valores da solidariedade serão efetivamente capazes de realizar um trabalho
de transformação dos adolescentes em conflito com a lei em cidadãos
construtores de uma sociedade mais justa e igualitária.
Dessa forma, mesmo que estas instituições cuidem de adolescentes
privados de liberdade, têm a obrigação de saber que estes adolescentes
não estão privados de seus sentidos, são seres humanos em situação peculiar de desenvolvimento, possuem sonhos e projetos a serem um dia concretizados. Com isso, essas instituições não podem perder a essência legal
de escolas, porque na verdade são instituições pedagógicas com a responsabilidade civil de fazer com que estes adolescentes infratores redimensionem seu projeto de vida mediante a busca de uma autoestima positiva de
si mesmo, ou seja, na busca de um sentido de vida e de uma capacitação
profissional para enfrentarem as complexas exigências do atual mercado
de trabalho. Com certeza, se trabalhando o essencial, no respeito à condição ontológica de seres em desenvolvimento, a recuperação e a reinserção
social são possíveis. O importante será devolver à família e à sociedade um
cidadão, consciente de sua capacidade, com autoestima e com um projeto
de vida a ser construído.
Compreende-se nessa abordagem reflexiva que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente só admitem privação de
liberdade enquanto significa processo pedagógico de desenvolvimento do
indivíduo adolescente em conflito com a lei.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas últimas décadas, verificou-se é bem verdade, o agravamento da
situação, através da constatação do alto índice de reincidência e da mudança de perfil do adolescente autor de atos infracionais, antes, caracterizados
por pequenos furtos, porte de armas, e, atualmente, acrescidos por modificações significativas, ou seja, a essas infrações somam-se outras de maior
84
As medidas socioeducativas
gravidade e complexidade jurídica, tais como: assaltos, homicídios, tráfico
de drogas, estupros e latrocínios. A prática de atos infracionais cometidos
por adolescentes e, até mesmo crianças, vem adquirindo no Estado de Mato
Grosso, nos últimos anos, proporções mais significativas e preocupantes.
Na atualidade, a demanda de adolescentes enquadrados em outras
medidas que não a internação requer um acompanhamento sistemático e
diferenciado pela própria complexidade de cada medida socioeducativa. A
abrangência e o aumento do número de adolescentes em cumprimento a
essas outras medidas têm proporcionado certo desequilíbrio no funcionamento, bem como, no andamento das atividades no Centro Acautelatório
em Cuiabá, levando-se em consideração, especialmente, que os recursos
humanos são insuficientes para atender às necessidades daqueles que não
estão sob a medida de internação.
Dessa forma, a sociedade exige que o Estado cumpra o seu papel
na efetivação de medidas que venham minimizar essa problemática. Na
solução desse problema e na necessidade urgente de implementação de
programas de atendimento, a Constituição Federal (art. 227) e o artigo 125
do Estatuto da Criança e do Adolescente designam exclusiva e inequivocadamente o Estado como responsável absoluto para zelar pela integridade
física e mental dos internos.
Os programas socioeducativos de privação de liberdade deverão
prever os aspectos da educação integrada, na perspectiva de proteção à
vida dos adolescentes, inclusão social e, sobretudo, onde a cidadania seja
o bem maior a ser preservado por todos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1979.
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Cleidimil Leite da Cunha
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SARAIVA, João Batista da Costa. Adolescente e Ato Infracional. Garantias Processuais e Medidas Socioeducativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
A ILEGITIMIDADE PASSIVA DAS PESSOAS
JURÍDICAS NAS AÇÕES CIVIS PÚBLICAS
POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Darlã Martins Vargas1
Inegável nesses quase 19 (dezenove) anos as benesses trazidas pela
Lei de Improbidade Administrativa – Lei nº. 8.429, de 2 de junho de 1992.
Evidentes, também, as inúmeras controvérsias e discussões jurídicas
a respeito da aplicabilidade desta norma legal em razão de vários aspectos
como, por exemplo, a necessidade da existência do elemento subjetivo doloso na conduta do agente em todos os tipos descritos pela lei, o excesso
de tipos descritivos abertos, a aplicabilidade da lei aos agentes políticos,
dentre tantas outras salutares controvérsias.
Pois bem, com o passar dos anos, os Tribunais de nosso país foram
delimitando a aplicabilidade da lei e, também, os excessos cometidos na
interpretação de alguns a respeito da existência ou não dos atos ímprobos.
Ocorre que, definitivamente, a doutrina e a jurisprudência pátrias
concordaram que, para a prática do ato de improbidade, faz-se necessária
a existência do elemento subjetivo na conduta do agente, não só com relação aos artigos 9º e 10, como, também, com relação ao artigo 11 da Lei
nº. 8.429/92.
Nesse sentido, a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça,
nos seguintes julgados:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (ART. 11 DA
LEI 8.429/92). ELEMENTO SUBJETIVO. REQUISITO INDISPENSÁVEL
PARA CONFIGURAÇÃO DO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PACIFICAÇÃO DO TEMA NAS TURMAS DE DIREITO PÚBLICO
DESTA CORTE SUPERIOR. SÚMULA 168/STJ. PRECEDENTES DO STJ.
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NÃO CONHECIDOS.
1 Advogado, mestre em Direito Público pela Universidade de Franca-SP, professor da graduação
e da pós-graduação da Universidade de Cuiabá-MT.
88
A ilegitimidade passiva das pessoas jurídicas nas ações civis públicas...
1. Os embargos de divergência constituem recurso que tem por finalidade exclusiva a uniformização da jurisprudência interna desta Corte
Superior, cabível nos casos em que, embora a situação fática dos julgados seja a mesma, há dissídio jurídico na interpretação da legislação
aplicável à espécie entre as Turmas que compõem a Seção. É um recurso estritamente limitado à análise dessa divergência jurisprudencial, não
se prestando a revisar o julgado embargado, a fim de aferir a justiça ou
injustiça do entendimento manifestado, tampouco a examinar correção
de regra técnica de conhecimento.
2. O tema central do presente recurso está limitado à análise
da necessidade da presença de elemento subjetivo para a configuração de ato de improbidade administrativa por violação de
princípios da Administração Pública, previsto no art. 11 da Lei
8.429/92. Efetivamente, as Turmas de Direito Público desta Corte
Superior divergiam sobre o tema, pois a Primeira Turma entendia ser indispensável a demonstração de conduta dolosa para a tipificação do referido ato de improbidade administrativa, enquanto a Segunda Turma exigia para a configuração a mera violação
dos princípios da Administração Pública, independentemente da
existência do elemento subjetivo.
3. Entretanto, no julgamento do REsp 765.212/AC (Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 23.6.2010), a Segunda Turma modificou o
seu entendimento, no mesmo sentido da orientação da Primeira
Turma, a fim de afastar a possibilidade de responsabilidade objetiva para a configuração de ato de improbidade administrativa.
4. Assim, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento no
sentido de que, para a configuração do ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei 8.429/92, é necessária a presença de
conduta dolosa, não sendo admitida a atribuição de responsabilidade
objetiva em sede de improbidade administrativa.
5. Ademais, também restou consolidada a orientação de que somente
a modalidade dolosa é comum a todos os tipos de improbidade administrativa, especificamente os atos que importem enriquecimento ilícito
(art. 9º), causem prejuízo ao erário (art. 10) e atentem contra os princípios da administração pública (art. 11), e que a modalidade culposa
somente incide por ato que cause lesão ao erário (art. 10 da LIA).
6. Sobre o tema, os seguintes precedentes desta Corte Superior: REsp
Darlã Martins Vargas
89
909.446/RN, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 22.4.2010; REsp
1.107.840/PR, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe de
13.4.2010; REsp 997.564/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves,
DJe de 25.3.2010; REsp 816.193/MG, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira,
DJe de 21.10.2009; REsp 891.408/MG, 1ª Turma, Rel. Min. Denise Arruda, DJe de 11.02.2009; REsp 658.415/MG, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana
Calmon, DJ de 3.8.2006. No mesmo sentido, as decisões monocráticas
dos demais integrantes da Primeira Seção: Ag 1.272.677/RS, Rel. Herman Benjamin, DJe de 7.5.2010; REsp 1.176.642/PR, Rel. Min. Hamilton
Carvalhido, Dje de 29.3.2010; Resp 1.183921/MS, Rel. Min. Humberto
Martins, Dje de 19.3.2010.
7. Portanto, atualmente, não existe divergência entre as Turmas de Direito Público desta Corte Superior sobre o tema, o que atrai a incidência
da Súmula 168/STJ: “Não cabem embargos de divergência, quando a
jurisprudência do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão
embargado”.
8. Embargos de divergência não conhecidos”2 (negrito nosso).
No mesmo sentido, ainda:
ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE. LEI 8.429/92. ELEMENTO SUBJETIVO DA CONDUTA. IMPRESCINDIBILIDADE.
1. A ação de improbidade administrativa, de matriz constitucional
(art.37, § 4º e disciplinada na Lei 8.429/92), tem natureza especialíssima,
qualificada pela singularidade do seu objeto, que é o de aplicar penalidades a administradores ímprobos e a outras pessoas - físicas ou jurídicas - que com eles se acumpliciam para atuar contra a Administração
ou que se beneficiam com o ato de improbidade.
Portanto, se trata de uma ação de caráter repressivo, semelhante à ação
penal, diferente das outras ações com matriz constitucional, como a
Ação Popular (CF, art. 5º, LXXIII, disciplinada na Lei 4.717/65), cujo
objeto típico é de natureza essencialmente desconstitutiva (anulação de
atos administrativos ilegítimos) e a Ação Civil Pública para a tutela do
patrimônio público (CF, art. 129, III e Lei 7.347/85), cujo objeto típico é
de natureza preventiva, desconstitutiva ou reparatória.
2 STJ – EResp nº. 875.163 – RS - Rel. Min. Mauro Campbell Marques – 1ª. Seção – Dje de
23/06/2010.
90
A ilegitimidade passiva das pessoas jurídicas nas ações civis públicas...
2. Não se pode confundir ilegalidade com improbidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência
dominante no STJ considera indispensável, para a caracterização
de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92,
ou pelo menos culposa, nas do artigo 10 (v.g.: REsp 734.984/SP, 1 T.,
Min. Luiz Fux, DJe de 16.06.2008; AgRg no REsp 479.812/SP, 2ª T., Min.
Humberto Martins, DJ de 14.08.2007; REsp 842.428/ES, 2ª T., Min. Eliana
Calmon, DJ de 21.05.2007; REsp 841.421/MA, 1ª T., Min. Luiz Fux, DJ de
04.10.2007; REsp 658.415/RS, 2ª T., Min. Eliana Calmon, DJ de 03.08.2006;
REsp 626.034/RS, 2ª T., Min. João Otávio de Noronha, DJ de 05.06.2006;
REsp 604.151/RS, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 08.06.2006).
3. É razoável presumir vício de conduta do agente público que pratica
um ato contrário ao que foi recomendado pelos órgãos técnicos, por
pareceres jurídicos ou pelo Tribunal de Contas. Mas não é razoável que
se reconheça ou presuma esse vício justamente na conduta oposta: de
ter agido segundo aquelas manifestações, ou de não ter promovido a
revisão de atos praticados como nelas recomendado, ainda mais se não
há dúvida quanto à lisura dos pareceres ou à idoneidade de quem os
prolatou. Nesses casos, não tendo havido conduta movida por imprudência, imperícia ou negligência, não há culpa e muito menos improbidade. A ilegitimidade do ato, se houver, estará sujeita a sanção de outra
natureza, estranha ao âmbito da ação de improbidade.
4. Recurso especial do Ministério Público parcialmente provido.
Demais recursos providos3 (negritamos).
Com efeito, entretanto, não raras vezes, encontram-se inúmeras
ações civis públicas por ato de improbidade administrativa ajuizadas contra
pessoas jurídicas (empresas) e, também, contra seus dirigentes (diretores,
sócios, proprietários, etc), além, evidentemente, dos agentes públicos.
Acontece que a responsabilidade inerente ao ato de improbidade
administrativa é, e sempre será, subjetiva, como, aliás, percebe-se das decisões do egrégio Superior Tribunal de Justiça, antes colacionadas.
Pois bem, nesse sentido, define-se o elemento subjetivo como sendo o
3 STJ – Resp. nº. 827.445 – Re. Min. Luiz Fux – 1ª Turma – Dje – 08/03/2010.
Darlã Martins Vargas
91
coeficiente moral da ação humana. Liame psicológico entre o agente e o
resultado da infração penal. Atualmente, com a tendência subjetivadora
do Direito Penal, a responsabilidade objetiva está sendo excluída, constituindo dado essencial do ilítico. Na legislação brasileira compreende o
dolo e a culpa, no tocante aos crimes, e a voluntariedade, relativamente
‘as contravenções penais4.
Indiscutível, portanto, que se trata de uma conduta humana, incapaz de
ser praticada por pessoa que detém existência ficta, irreal ou de pura abstração,
nos dizeres de Savigny, societas delinquere non potest, base da teoria da ficção.
Ressalve-se o não-desconhecimento da teoria da realidade defendida por Otto Gierke, todavia, analisaremos sua aplicabilidade ou não nos
fatos discutidos mais adiante.
De imediato, cabe registrar que, à unanimidade doutrina e jurisprudência estabeleceram que a responsabilidade por ato de improbidade
administrativa é subjetiva, excluindo-se de forma plena e total a responsabilidade objetiva, considerando, inclusive, que a ação civil por ato de
improbidade administrativa “se trata de uma ação de caráter repressivo,
semelhante à ação penal” (julgado anterior).
Ninguém discorda que a Lei de Improbidade Administrativa tem
forte conteúdo penal quando, na fixação de suas sanções, prevê a indisponibilidade de bens e o ressarcimento do erário, além da perda da função
pública e a suspensão dos direitos políticos do réu (art. 12).
Nesse sentido, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson
Jobim, em análise da Reclamação 2138/DF – Distrito Federal –, citando
Cláudio Ari Mello, referia que “o condenado por improbidade administrativa ver-se-á na indigna posição de não-cidadão, em face da perda dos
direitos políticos (Improbidade Administrativa – Considerações sobre a Lei
n°. 8.429/92. In: RT – Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política,
3ª, n°. 11, p. 58, abr/jun 95).
O ex-ministro, antes citado, complementou sua posição, afirmando:
É evidente, pois, que, tal como anotado pela doutrina, a sentença condenatória proferida nessa peculiar “ação civil” é dotada de efeitos que,
em alguns aspectos, superam aqueles atribuídos à sentença penal condenatória, é certo, pois, que a condenação proferida na ação civil de
4 Disponível em: <HTTP://www.jusbrasil.com.br/topicos/290985/elemento subjetivo>.
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A ilegitimidade passiva das pessoas jurídicas nas ações civis públicas...
que trata o art. 37, § 4°, da Constituição, poderá conter, também, efeitos
mais gravosos para o equilíbrio jurídico-institucional do que eventual
sentença condenatória de caráter penal. Não é preciso dizer, também,
que muitos dos ilícitos descritos na Lei de Improbidade configuram,
igualmente, ilícitos penais, que podem dar ensejo à perda do cargo ou
da função pública, com efeito da condenação, como fica evidenciado pelo simples confronto entre o elenco de “atos de improbidade”,
constante do art. 9° da Lei n°. 8.429/92, com os delitos contra a Administração praticados por funcionário público (Código Penal, art. 312 e
seguintes, especialmente os crimes de peculato, art. 312, concussão,
art. 316, corrupção passiva, art. 317, prevaricação, art. 319, e advocacia
administrativa, art. 321). Tal coincidência ressalta a possibilidade de incongruências entre as decisões na esfera criminal e na ‘ação civil’, com
sérias consequências para todo o sistema jurídico”. (Competência para
julgar a improbidade administrativa. In: Revista de Informação Legislativa, n. 138, abril/junho 1998, p. 213/214).
Nesse sentido também manifestou-se o ministro Humberto Gomes
de Barros, do Superior Tribunal de Justiça, na Reclamação 591, ao afirmar:
Parece-me, contudo, Sr. Presidente, que a ação tem como origem atos
de improbidade que geram responsabilidade de natureza civil, qual
seja, aquela de ressarcir o erário, relativo à indisponibilidade de bens.
No entanto, a sanção traduzida na suspensão dos direitos políticos tem
natureza evidentemente, punitiva. ...Por isso, Sr. Presidente, enxergando nessas sanções natureza eminentemente punitiva, acompanho o Sr.
Ministro Eduardo Ribeiro e aqueles que o seguiram.
Evidencia-se, smj., que não há dúvidas com relação ao conteúdo
penal, inserto nas punições previstas pela Lei de Improbidade Administrativa – Lei n°. 8.429/92.
Com acerto, portanto, a exclusão da possibilidade de haver a responsabilidade objetiva quando da prática de atos de improbidade administrativa.
Nada obstante, depreende-se da doutrina e da jurisprudência de
nosso país a possibilidade de a pessoa jurídica figurar no polo passivo deste tipo de demanda, considerando-se para tanto a amplitude trazida pelo
artigo 3º da Lei de Improbidade Administrativa que estabelece:
Darlã Martins Vargas
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Art. 3º. As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que,
mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato
de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.
Nesse sentido, Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves5 defendem que:
Pensamos que ante a amplitude conferida pelos arts. 3º (As disposições
desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo
agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta) e
6º (No caso de enriquecimento ilícito, perderá o agente público ou
terceiro beneficiário os bens ou valores acrescidos ao seu patrimônio)
da Lei de Improbidade, nada impede a sua inclusão como ré da ação
civil pública, devendo figurar, nesta condição, ao lado de seus sócios e
administradores (aqueles que tenham praticado atos de gestão dando
ensejo à improbidade).
De se notar que, a partir da teoria da realidade técnica, confere-se às pessoas jurídicas a capacidade para aquisição e exercício de direitos, capacidade para a prática de atos e negócios jurídicos, enfim. Pode-se afirmar,
deste modo, que possuem elas uma vontade distinta da vontade de seus
integrantes, sendo “dotadas do mesmo subjetivismo outorgado às pessoas
físicas” (Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, p. 105).
Não só vontade, como também existência distinta da de seus membros
(art. 20 CC). Assim, ao praticarem atos ilícitos, responderão com seu patrimônio, sujeitando-se ao sancionamento adequado à sua realidade jurídica.
Registre-se, ademais, que o fundamento geral para o aceite da pessoa jurídica como parte passiva na ação civil de improbidade administrativa tem por base a tese dos ilustres autores suso nominados.
Com a devida vênia dos mestres, ousamos discordar de tal posicionamento em razão dos seguintes aspectos e fundamentos:
Primo, não há dentre os estudiosos de Direito Administrativo qualquer discussão a respeito da origem da improbidade administrativa, ou
seja, é latente que o nascimento deste ilícito dá-se pela prática de um ato
administrativo.
5 GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco Alves. Improbidade administrativa. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2002. p. 562-563.
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A ilegitimidade passiva das pessoas jurídicas nas ações civis públicas...
O mestre em Direito Administrativo Waldo Fazzio Júnior6, citando
outros ilustres autores, de forma escorreita a respeito do tema, assim se
manifesta:
Os atos administrativos são manifestações de vontade, emissões determinativas intencionais. Michel Stassionpoulos (1954, p. 37) desenha,
com linhas precisas a natureza do ato administrativo, ao apresentá-lo
como ‘la déclaration de volonté émise par um organe administratif ET
déterminant d’une façon unilatérale CE que este Du droit dans um cãs
individuel’.7
Ato administrativo é o ato de agente público, daquele que encarna o
Poder Público. Resulta de intenção: é uma atuação deliberadamente dirigida a um fim. Se esse objetivo é o atendimento do interesse público
primário ou interesse social, o ato administrativo se insere na linha de
regularidade administrativa, da boa administração.
Dessa forma, indiscutível, igualmente, que o ato administrativo depende da conduta humana, manifestada através da vontade do agente.
Secundo, é sabido por aqueles que lidam e estudam o direito administrativo que os tribunais superiores (STF e STJ), em inúmeras decisões (p.
ex. aquelas antes citadas) já reconheceram o caráter penal de algumas das
sanções normatizadas pelo artigo 12 da Lei nº. 8.429/92.
Ora, se reconhecido pelos doutos que a natureza de algumas sanções insertas na Lei de Improbidade Administrativa é, também, penal e por
vezes, mais grave que aquelas, como, por exemplo, na perda da cidadania
(perda dos direitos políticos), evidencia-se, sobremaneira, que a interpretação aplicada aos tipos que descrevem a improbidade administrativa deverá
ser de forma restritiva e não ampliativa, como defendido pelos ilustres
Émerson Garcia e Rogério Pacheco Alves.
De se registrar que, não se pode olvidar o excessivo caráter aberto dos tipos descritivos da Lei de Improbidade Administrativa que, aliás,
6 JÚNIOR, Waldo Fazzio. Atos de improbidade administrativa: doutrina, legislação e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2007. p.161-162.
7 Nesse rumo, Miguel Reale (1980, p. 22) declara que o ato administrativo é “toda forma de realização, em casos concretos, de interesses configurados tipicamente em lei, em virtude de decisão
unilateral, espontânea ou requerida, de agente do Poder Público, em virtude e nos limites de
sua competência, com relevância jurídica fora da órbita da Administração”.
Darlã Martins Vargas
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já tivemos a oportunidade de abordar esse assunto em artigo próprio8,
concluindo ser obrigação dos intérpretes e aplicadores da lei a necessária
restrição em sua exegese.
Com efeito, é sabido que ao se tratar da aplicação de normas sancionadoras o intérprete deverá, sempre, utilizar sua hermenêutica de forma
restritiva, evitando-se, dessa forma, desvarios judiciais, ou no dizer de R. E.
Zaffaroni, “valorações subjetivas duvidosas”.9
Note-se, portanto, que, sempre que se estiver interpretando uma lei
incriminadora/sancionadora, o princípio da legalidade nos levará, inexoravelmente, a uma interpretação restritiva, impedindo, por certo, a aplicação
da analogia contra o acusado.
Dessa forma, quando o legislador, no artigo 3º da Lei de Improbidade
Administrativa, escreve que: “as disposições desta lei são aplicáveis, no que
couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra
para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer
forma direta ou indireta”, está se referindo ao terceiro que pratique uma
conduta (elemento volitivo) que induza ou concorra para o ato ímprobo.
Nesse sentido, o inesquecível Anibal Bruno10 já ensinava: (in verbis)
Mesmo porque tôda lei, como tôda expressão verbal do pensamento,
precisa ser interpretada. O que pretende dizer o velho adágio de ‘in
claris non fit interpretatio’ é que, sendo a lei clara, não cabe procurarlhe um sentido diferente daquele que resulta evidentemente do texto.
Apenas, se a lei é clara, a interpretação é instantânea. Conhecido o
texto, apreende-se imediatamente o seu conteúdo.
Mas, se é obscura ou incerta, precisa, então, submeter-se a lei ao
processo interpretativo sistemático, processo lógico, que obede8 Denota-se, portanto, que muito embora não se reconhecesse existência do “bis in idem” com
a matéria penal, o que se diz “ad argumentandum” ainda assim, em razão do caráter penal
inserido na Lei n°. 8.429/92, não poderia ela trazer na descrição das condutas ilícitas, tipos
“abertos”. Incluindo-se, aqui, condutas culposas, que não se coadunam com os elementos intrínsecos que compõem a conduta ímproba levando, com isso, o cidadão – agente político – a
ficar predisposto, conforme o caso, à temperança, ao bom humor, do aplicador da lei quando
não ficar evidenciado ter ele agido com má-fé característica do dolo. VARGAS, Darlã Martins. In:
Improbidade administrativa o bis in idem com a matéria penal e seus tipos abertos. Revista de
Administração Pública e Política. L&C n°. 109, julho 2007, p. 30-34. Brasília: Consulex.
9 ZAFFARONI, R. E. Panorama atual da Problemática da Omissão. In: Revista de Direito Penal e
Crim, v. 33, p. 37.
10 BRUNO, Anibal. Direito Penal: parte geral. Tomo 1. Rio de Janeiro: Forense, 1967. p. 198.
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A ilegitimidade passiva das pessoas jurídicas nas ações civis públicas...
ce a regras e preceitos, cujo conjunto constitui a Hermenêutica,
ou ciência da interpretação. A Hermenêutica, envolvendo através
das várias correntes do pensamento jurídico, foi-se enriquecendo
progressivamente de novos métodos, à proporção também que o
sentido da função interpretativa se ia alargando, desde um estrito
entendimento da letra da lei até um ajustamento da vontade nela
contida, segundo os seus fins, às condições do momento de sua
aplicação” (negritamos e sublinhamos).
Ademais, com a vênia devida, a descrição do tipo não dá margem a
uma interpretação extensiva como defendido por alguns. Primeiro, porque
se fosse da vontade do legislador que a pessoa jurídica também pudesse
responder por improbidade administrativa teria ele expressamente estabelecido esta possibilidade como, aliás, fez na Constituição Federal de 1988
quando tratou dos crimes ambientais. Segundo, não teria se expressado
através de um pronome demonstrativo masculino – àquele que – (no caso
com a contração da preposição “a”), numa clara intenção de tratar do outro agente [co-autor (induz) ou partícipe (concorre)] indicando, inclusive,
as condutas de prática necessária a caracterização do ato ímprobo.
Por certo o pronome demonstrativo (àquele) descrito na norma refere-se à expressão “mesmo não sendo agente público”, indicando, neste
caso, a pessoa que poderá participar do ato administrativo inquinado de
ímprobo, em conjunto com o agente público.
Por outro lado, considerando a possibilidade de aplicação da “teoria
da realidade” ou “da personalidade real” descrita pelos doutos Émerson
Garcia e Rogério Pacheco Alves, na obra antes citada, em defesa da prática
de atos jurídicos pela pessoa jurídica, não se poderia olvidar a imprescindibilidade da presença de alguns requisitos, a saber: a) necessidade da infração/ilícito ser praticado no interesse da pessoa jurídica, ou seja, deverá ser
útil à finalidade do ente coletivo; b) a infração não poderá situar-se fora da
esfera de atividade da empresa. Isso significa dizer que estarão excluídas
aquelas infrações que se situem além do domínio normal da atividade da
pessoa coletiva, como aquelas que somente a pessoa física pode praticar
na sua esfera individual. Haveria, portanto, uma restrição no leque de infrações que podem ser praticadas pela pessoa coletiva, pois a exigência
precípua passa a ser a de que esteja dentro do domínio normal de atividade da empresa; c) a infração cometida deve ser praticada por alguém
Darlã Martins Vargas
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que se encontre estreitamente ligado à pessoa jurídica; e d) a prática do
ato deve ter o auxílio do poderio da pessoa coletiva, ou seja, é a utilização
da infraestrutura fornecida pela empresa que propicia o cometimento do
crime. Sem a reunião de várias pessoas, agrupadas sob o manto da pessoa
jurídica, o cometimento do crime, no mais das vezes, não seria possível.11
Ou como escreveu Sérgio Salomão Shecaira12: “é o poder, que se oculta
por detrás da pessoa jurídica, e a concentração de forças econômicas do
agrupamento que nos permitem dizer que tais infrações tenham uma robustez e força orgânica impensáveis em uma pessoa física”.
Sendo assim, analisando os requisitos da teoria da realidade para a
detecção de ato ilícito pela pessoa jurídica e considerando-se os elementos
objetivos e subjetivos inerentes à prática de ato ímprobo, evidencia-se a
impossibilidade de a pessoa jurídica ser, também, agente destes atos.
Conclui-se, portanto, que a interpretação extensiva utilizada para
admitir como parte passiva a pessoa jurídica na ação civil pública por ato
de improbidade administrativa, s.m.j., vai de encontro à melhor técnica de
interpretação e aplicação das normas jurídicas, mormente quando se trata
de normas sancionadoras que, como expressado pelo Supremo Tribunal
Federal, por vezes, são mais graves que as próprias normas penais.
Registre-se, por oportuno, que o presente artigo busca, apenas e
tão-somente, acrescentar uma nova visão à discussão do presente tema,
sem qualquer pretensão de ser o mais ou o menos correto.
11 DE ARAUJO, Antonio Carlos Oliveira. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Disponível
em: <www.advogado.adv.br/artigos/2001/araujo/respenalpessoajurídica.htm>.
12 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1998. p. 100.
DO MALFADADO ARTIGO 1.830 DO
CÓDIGO CIVIL DE 2002: CRÍTICA ACERCA DA
POSSIBILIDADE DE DISCUSSÃO DA CULPA
PELA SEPARAÇÃO DOS CÔNJUGES
José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa1
INTRODUÇÃO
O cunho deste artigo visa investigar a (ir)relevância da discussão da
culpa de um dos cônjuges pela separação do casal quando este já se encontra separado de fato e um dos consortes vem a falecer. Ocorre que a matéria debatida merece destaque em face do disposto no artigo 1.830 do Código Civil, o qual gera grandes discussões doutrinárias no âmbito civilista.
A atecnia na elaboração do artigo 1.830 do Código Civil é notória,
com intricada interpretação, além de possibilitar que aspectos superados
no âmbito do direito de família sejam ressurgidos num limbo jurídico.
Dessa feita, esta breve exposição demonstrará os critérios mais
equânimes em que o operador do direito deve basear a aplicação do artigo
ora elencado, visando evitar que injustiças sejam perpetradas no ordenamento jurídico brasileiro.
Para melhor compreensão do tema, uma breve análise da (im)possibilidade do debate da culpa pela separação do casal será abordada para
que, assim, seus reflexos sejam utilizados na correta interpretação do artigo
1.830 do Código Civil.
Com estas ponderações, inicia-se a análise do objeto específico desta exposição, qual seja, o estudo crítico de uma das problemáticas geradas
pela atecnia jurídica do artigo 1.830 do Código Civil de 2002, focando o
debate na parte in fine do referido artigo.
1 Professor de Direito Civil na Universidade de Cuiabá (UNIC) e advogado militante na área cível
e consumerista. Email: [email protected]
100 Do malfadado artigo 1.830 do Código Civil de 2002: Crítica acerca da possibilidade de discussão...
DO DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE NA ATUALIDADE.
BREVES LINHAS JURÍDICAS
O Código Civil de 2002 representou relevante avanço para o direito
sucessório do cônjuge porquanto o incluiu no rol dos herdeiros necessários2, bem como o elevou as duas primeiras classes preferenciais sucessórias, em concorrência com os descendentes e ascendentes.3
Dessa feita, o cônjuge passou a ter direito à legítima assim como
os descendentes e ascendentes do de cujus, além de herdar concorrentemente com estes ou, exclusivamente, caso não haja sucessor em linha reta.
Acerca da concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do falecido, merece destaque a ressalva de que o cônjuge vivo não será
herdeiro caso tenha se casado com o autor da herança sob os regimes da
comunhão universal de bens, separação obrigatória de bens ou comunhão
parcial de bens sem que o falecido tenha deixado patrimônio particular.
Contudo, para se aferir os direitos sucessórios cabíveis ao cônjuge supérstite, em concorrência com os ascendentes do de cujus, a análise do regime de
casamento se torna dispensável posto que, independentemente do regime escolhido, o cônjuge vivo herdará conjuntamente com os ascendentes do falecido.
Agora, caso inexistam descendentes ou ascendentes, independentemente do grau de parentesco, o cônjuge sobrevivente herdará a totalidade da
herança. Ressalvas acerca do regime de bens também se tornam desnecessárias
neste ponto porquanto não interferem na qualidade de herdeiro do cônjuge.
DA LIMITAÇÃO SUCESSÓRIA DO CÔNJUGE CONSOANTE
O ARTIGO 1.830 DO CÓDIGO CIVIL
Infelizmente, ao invés de simplificar e tornar mais claros os desejos
legislativos, o Código Civil estabeleceu em seu artigo 1.830 intricado texto
que reza que o direito sucessório do cônjuge supérstite se encerra quando
2 Art. 1.845, CC: São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
3 Art. 1.829, CC: A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o
falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640,
parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.
José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa
101
este se encontra: a)separado judicialmente; b)separados de fato há mais
de dois anos desde que a convivência do casal se tornara impossível com
culpa do cônjuge sobrevivente.
No que concerne à exclusão do cônjuge que já se encontra separado judicialmente nenhuma crítica se levanta, pelo contrário, totalmente
coerente a disposição de não se atribuir direitos sucessórios a uma pessoa
que já não tenha vínculo matrimonial com o autor da herança à época de
seu falecimento. Ademais, a tendência desta disposição é tornar-se obsoleta tendo em vista a Emenda Constitucional nº 66 que extinguiu a separação
judicial no Brasil, estabelecendo que a partir de 14 de julho de 2010 apenas o divórcio é o instrumento adequado para a dissolução do casamento,
conforme lição exposta no artigo da professora mestra Clarissa Bottega,
também publicado nesta Revista Jurídica sob o título “O Novo Divórcio no
Direito Brasileiro. Breves Linhas”.4
Por outro lado, o fato de o Código Civil possibilitar o questionamento da culpa de um dos cônjuges pela extinção da convivência do casal é
matéria recriminada pela moderna doutrina, gerando eminentes críticas,
como veremos abaixo.
DA DISCUSSÃO DA CULPA PELA SEPARAÇÃO DO CASAL.
CONTENDA SUPERADA
A Constituição Federal de 1988, em conjunto com o Código Civil de
2002, abandonou a velha visão patriarcalista do antigo Código Civil, prevendo que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal devem ser
exercidos igualmente pelo marido e pela esposa.
No entanto, apesar de “novo”, o Código Civil de 2002 já nasceu
com algumas defasagens, dentre as quais podemos elencar a permanência do aspecto da culpa do cônjuge pela separação do casal, objeto
do presente estudo em relação ao artigo 1.830 do Código Civil, fato
chamado “no mínimo, de retrógrado”, segundo palavras da conspícua
Maria Berenice Dias.5
Quando a legislação pátria permitiu que o cônjuge inocente pela
separação pudesse propor ação de separação declinando ao outro alguma
4 BOTTEGA, Clarissa. Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá. Cuiabá, EdUnic, v. 12, n. 2,
jul./dez. 2010.
5 DIAS, Maria Berenice. Divórcio Já! São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
102 Do malfadado artigo 1.830 do Código Civil de 2002: Crítica acerca da possibilidade de discussão...
das “culpas” do artigo 1.573 do Código Civil, o rol deste artigo tornou-se
improfícuo e meramente exemplificativo quando o parágrafo único6 do
mesmo artigo possibilitou ao juízo da causa considerar outros fatos que
tornem evidente a impossibilidade da vida conjugal.
Destarte, inútil as condutas elencadas no artigo 1.573 do Código Civil,
posto que o único fato que realmente importa para a separação de um casal
é o fim do afeto. Se ainda houvesse amor de ambos, não haveria a separação.
Assim, o mero fato da existência de ação de separação litigiosa já
demonstra o fim do amor entre os cônjuges, sendo desnecessária a identificação do evento culposo perpetrado por um dos cônjuges. Vejamos relato
da eminente doutrinadora Maria Berenice Dias:
Felizmente, a jurisprudência passou a reconhecer como desnecessária a identificação de conduta culposa, bem como a dispensar comprovação dos motivos apresentados pelo autor para conceder a separação. O juiz, ao fixar os pontos controvertidos (CPC 331, §2º),
impedia a discussão a respeito dos motivos do fim do casamento.
[...] A perquirição da causa da separação acabou perdendo prestígio. O fim do casamento passou a ser concedido independentemente da indicação de um responsável pelo insucesso da relação, seja
porque é difícil atribuir a apenas um dos cônjuges a responsabilidade pelo fim do vínculo afetivo, seja porque é absolutamente indevida a intromissão da justiça na intimidade da vida das pessoas.7
No mesmo posicionamento, leciona Eduardo de Oliveira Leite:
Desde a mais tradicional postura de Pontes de Miranda até a posição
de doutrinadores da atualidade a atribuição da culpa pelo fracasso do
matrimônio a qualquer dos cônjuges não é mais admitida, substituindo6 Art. 1.573, CC: Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de
algum dos seguintes motivos:
I - adultério;
II - tentativa de morte;
III - sevícia ou injúria grave;
IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo;
V - condenação por crime infamante;
VI - conduta desonrosa.
Parágrafo único. O juiz poderá considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade
da vida em comum.
7 DIAS, Maria Berenice. Divórcio Já! São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa
103
se aquele pressuposto de cunho subjetivo e privado pelo princípio da
‘deterioração factual’. Com efeito, como já se tem posicionado a jurisprudência nacional, não mais tem sentido, nem justificativa, a atribuição
da culpa pelo rompimento da vida em comum, quando qualquer consequência pode advir desta declaração, bastando, para a decretação da
separação, o reconhecimento do fim do vínculo afetivo.8
O Superior Tribunal de Justiça também assim se manifestou:
SEPARAÇÃO. Ação e reconvenção. Improcedência de ambos os pedidos. Possibilidade da decretação da separação. Evidenciada a insuportabilidade da vida em comum, e manifestado por ambos os cônjuges, pela
ação e reconvenção, o propósito de se separarem, o mais conveniente é
reconhecer esse fato e decretar a separação, sem imputação da causa a
qualquer das partes. Recurso conhecido e provido em parte.9
Em memorável conclusão, Cristiano Chaves de Farias relata que:
“Impõe, por conseguinte, perceber que não há, seguramente, um único
responsável pelo fracasso do amor. Ninguém é culpado por não mais gostar. Não há responsabilidade pela frustração do sonho comum”.10
DO ARTIGO 1.830 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002
E SUA PROBLEMÁTICA
Dada uma visão geral concernente à irrelevância da discussão da
culpa como motivo ensejador da separação de um casal, visão diferente
não se poderia aplicar para o direito sucessório, porquanto o direito é uno
e sua interpretação sistemática, não podendo repudiar eventual debate da
culpa pela separação do casal em sede de direito de família e admiti-la em
face do direito sucessório.
8 LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito civil aplicado. v. 5. (Direito de Família). São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005.
9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 467.184-SP. Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Julgado em 05/12/2002. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/
Justica/detalhe.asp?numreg=200201068117&pv=010000000000&tp=51>. Acesso em: 20 out. 2010.
10 FARIAS, Cristiano Chaves de. Redesenhando os contornos da dissolução do casamento. In:
PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coordenador). Afeto, Ética, Família e o novo Código Civil. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004.
104 Do malfadado artigo 1.830 do Código Civil de 2002: Crítica acerca da possibilidade de discussão...
O falecimento de um ente já representa um grande desgaste para
a família, sendo desnecessário e até mesmo desumano possibilitar que se
ressurjam debates e dores passadas acerca de eventual culpa de um dos
cônjuges pela separação do casal.
Merece destaque o fato de que o cônjuge falecido não estará presente para sua defesa, gerando sérios problemas probatórios às partes, visto que a parte atacada como suposta culpada pela separação do casal já se
encontra falecida. Seria cômico se na realidade não fosse trágica a situação
imposta pela legislação pátria.
Em síntese, ao se analisar a tendência doutrinária e jurisprudencial
de nossos tribunais, verifica-se a impertinência na manutenção da aferição
da culpa em qualquer caso.
Frise-se que esse tema já foi objeto do Projeto de Lei nº 4.944/2005,
que pretendia reformar o artigo 1.830 do Código Civil nos moldes ora
discutidos. Este passaria a ter a seguinte redação: “Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte
do outro, não estavam separados de fato”. Tal preceito se coaduna perfeitamente ao debate retroexposto e solucionaria todas as problemáticas
causadas pelo artigo 1.830 do Código Civil. No entanto, tal projeto de lei
foi arquivado em 31 de janeiro de 2007, fazendo com que a esdrúxula
disposição do artigo 1.830 do Código Civil permaneça em nosso ordenamento pátrio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo exposto, percebe-se a necessidade de cautela para análise do
artigo 1.830 do Código Civil, em especial na disposição de que o direito
sucessório do cônjuge supérstite não se encerra quando este se encontra
separado de fato há mais de dois anos desde que a convivência do casal
se tornara impossível sem culpa do cônjuge sobrevivente.
A culpa não deve ser questão a ser debatida neste momento. O simples fato da ruptura da vida em comum, com falência da relação afetiva
geradora do amor entre ambos, já basta para a ruptura do direito sucessório, seja o cônjuge supérstite culpado ou inocente pela separação do casal.
Culpado ou não, esta é questão particular do casal, não devendo o
Judiciário escancarar a intimidade dos cônjuges.
José Diego Lendzion Rachid Jaudy Costa
105
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
LEIS/2002/L10406.htm>. Acessado em: 20 out. 2010.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 467.184-SP. Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Julgado em 05/12/2002. Disponível em: <http://www.
stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200201068117&pv=0100000
00000&tp=51>. Acesso em: 20 out. 2010.
DIAS, Maria Berenice. Divórcio Já! São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
_____. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
_____. Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. São
Paulo: Saraiva, 2010.
FARIAS, Cristiano Chaves de. Redesenhando os contornos da dissolução do casamento. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coordenador). Afeto, Ética, Família e o
novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito Civil Aplicado. Volume 5: direito de família. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
O SIGNIFICADO DO PRIMADO
DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
NA SOCIEDADE DE RISCOS GLOBAIS.
OS DEVERES PARA COM A HUMANIDADE
Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo1
INTRODUÇÃO
A humanidade vive um grande paradoxo nos últimos tempos, o que
tem suscitado reflexões não só de formadores de opinião, como a imprensa
e a comunidade científica mundiais, mas de variados setores e segmentos
da sociedade preocupados com o próprio futuro da vida em nosso planeta.
É que não obstante os avanços experimentados pelo homem nas
mais diversas áreas, nos últimos anos, crescentes e inúmeros também têm
sido os riscos criados pela utilização desmedida da capacidade de interferência na natureza, capazes de alterar o ciclo natural da vida, a ponto
de promover a extinção de espécies da fauna e da flora e comprometer a
existência humana, inclusive.
O domínio da técnica não tem sido acompanhado, infelizmente, pelo
amplo conhecimento das dimensões e consequências do progresso que
não pode prescindir de uma consciência ética que supere os estreitos limites da ética tradicional (Kant) de cunho eminentemente antropocêntrico.
A ideia de se preocupar em agir conforme atos de bondade e justiça
para com o semelhante no dia a dia já não basta, dada a necessidade de
fazer com que o comportamento do presente repercuta de forma positiva
também e, decisivamente, no futuro, com reflexos que extrapolam o campo imediato das relações sociais.
Vivemos na chamada sociedade pós-industrial, que, ao contrário da
sociedade industrial, expõe todos às consequências de escolhas e atitudes
1 Mestrando em Direito Agroambiental pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Mato Grosso. Defensor público de 2ª Instância do Estado de Mato Grosso.
108 O significado do primado da dignidade da pessoa humana...
descompromissadas, geradoras de riscos invisíveis e globais2, cujos reflexos há algum tempo vêm sendo sentidos em todas as partes do mundo,
como verificado na emissão descontrolada de gases de efeito estufa, fator
determinante para o aquecimento do planeta.
O paradigma do progresso a todo custo não mais se adéqua à realidade do mundo que a cada dia vivencia o esgotamento dos recursos naturais.
A crise ecológica é pauta global, merecendo de todos os países a
atuação que não pode ficar resumida apenas a seminários e encontros
internacionais, definidores de acordos que mais se aproximam de gestos
simbólicos e programáticos, sem efeitos práticos e imediatos para o bemestar da população.
Na “queda-de-braço” que se estabelece entre os interesses econômicos dos países desenvolvidos e os defensores do meio ambiente, aqueles
ainda ostentam larga vantagem sobre estes, bastando verificar as dificuldades
impostas sempre que se busca reduzir a emissão de gases de efeito estufa.
A conta que se está a pagar pelo progresso desmedido se apresenta
mais cara e onerosa aos países considerados pobres, cuja população é a
que mais sofre com a escassez (e o desaparecimento total em algumas
regiões) de recursos naturais imprescindíveis para a vida não só humana.
A água é um exemplo disso, posto constituir um bem precioso que
alguns povos, por não mais possuí-la, encontram-se em processo acelerado de desaparecimento aos olhos do mundo, sem despertar, entretanto, a
sensibilidade sincera dos líderes mundiais que se responsabilizam pelos
rumos da humanidade.
Acontece que a exploração desenfreada dos recursos naturais tem acarretado prejuízos também para a qualidade de vida de pessoas ricas que até então não possuíam qualquer preocupação com os níveis de comprometimento ambiental, motivadas pelo consumismo típico da economia de mercado.
Esse é o traço característico de um novo momento que está a demandar o dever de cuidado não somente com aquilo que nos cerca e
imediatamente nos interessa, mas com tudo que possa afetar, direta ou
indiretamente, a nossa relação com o planeta, considerando que ninguém
2 André Rafael Weyermüller afirma que “a face mais visível dos riscos de alcance global que hoje
vislumbramos nos remete principalmente às questões ambientais devido à natureza complexa e
difusa das mesmas, sendo o direito a um meio ambiente preservado para a presente e as futuras
gerações um direito fundamental e humano previsto em muitos ordenamentos jurídicos nacionais e em iniciativas supranacionais a exemplo da Organização das Nações Unidas, que, bem
ou mal, congrega as nações do mundo em torno de um objetivo comum” (In: WEYERMÜLLER,
André Rafael. Direito ambiental e aquecimento global. São Paulo: Atlas, 2010. p. 44.)
Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo
109
está imune aos efeitos da interferência irresponsável na natureza3.
O sentimento de cidadania ambiental4 a todos deve contagiar, para
o bem da humanidade.
O homem nada mais é senão parte da natureza, cuja defesa e proteção constitui bandeira de luta para sua própria sobrevivência. Isso mostra
que não faz mais sentido acreditar que o desenvolvimento implica na tarefa de domínio ou conquista da natureza, pela exploração causadora de seu
exaurimento. Pelo contrário, preservar a natureza faz dela a companheira
fiel para o progresso e a sobrevivência do homem, numa relação harmônica e sustentável.
O DEVER ESTATAL DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
É de fácil percepção que a preocupação do legislador está em sintonia com a consciência global de considerar o meio ambiente como direito
fundamental à vida, do qual decorrem obrigações estatais para exercício
de outros direitos.5
A Constituição Federal, no seu artigo 225, caput, dispõe que:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo3 É interessante a observação de Ulrich Beck sobre o chamado “efeito bumerangue”: “Inserido na
globalização e, não obstante, claramente diferente dela, é um modelo de compartilhamento dos
riscos, em que se inclui uma boa quantidade de dinamite política: os riscos afetam mais cedo ou
mais tarde aqueles que os geram ou se beneficiam deles. Os riscos mostram em sua propagação
um efeito social de bumerangue: nem os ricos tampouco os poderosos estão seguros diante deles. Os efeitos secundários anteriormente latentes ferem também os centros de sua produção. Os
próprios atores da modernização caem em uma forma enfática e muito concreta no redemoinho
dos perigos que desencadeiam e dos que se beneficiam deles”. “Contained
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within the globalization and yet clearly differentiated from it is distribution pattern of risks which contains a considerable amount of political explosive. Sooner or later the risks also catch up with those who
produce or profit from them. Risks display a social boomerang effect in their diffusion: even the
rich and powerful are not safe from them. The formerly ‘latent side effects’ strike back even at
the centers of their production. The agents of modernization themselves are emphatically caught
in the maelstrom of hazards that they unleash and profit from” (tradução livre). (In: BECK, Ulrich. Risk society: towards a new modernity. London: SAGE Publications Ltd., 1992. p. 37).
4 Segundo Solange Teles da Silva, “o exercício da cidadania ambiental conduz assim a uma análise do sistema de direitos e deveres, bem como dos espaços de participação da sociedade civil
na concretização do direito ao meio ambiente sadio”. (SILVA, Solange Teles da. A emergência
de uma cidadania planetária ambiental. p. 379. In: MARQUES, Claudia Lima; MEDAUAR, Odete; SILVA, Solange Teles da (Coord.). O novo direito administrativo, ambiental e urbanístico:
estudos em homenagem à Jacqueline Morand-Deviller. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
5 Cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos
sistemas de proteção internacional. Porto alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 81.
110 O significado do primado da dignidade da pessoa humana...
se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserválo para as presentes e futuras gerações.
Segundo ensinamento de Valerio de Oliveira Mazzuoli,
[...] o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um prius
lógico do direito à vida, sem o qual esta não se desenvolve sadiamente
em nenhum dos seus desdobramentos. É dizer, o bem jurídico vida
depende, para a sua integralidade, entre outros fatores, da proteção do
meio ambiente com todos os seus consectários, sendo dever do Poder
Público e da coletividade defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações.6
Sabe-se que a ideia de proteção ao meio ambiente decorre de uma
ética global, fundada no pensamento universal de que todos somos responsáveis pela preservação do nosso planeta.7 A sociedade está a despertar cada vez mais para uma realidade que não pode prescindir do devido
cuidado com a natureza, pois o homem nela inserido integra o todo necessário para a perpetuação da vida.
A ética nos moldes clássicos vem sendo redesenhada por uma
nova ética calcada na responsabilidade, impondo ao homem repensar
suas atitudes tendo como preocupação permanente a preservação da
vida sobre a terra.8
6 MAZZUOLI. Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 4. ed. rev., atual. e ampl.
São Paulo: RT, 2010. p. 893.
7 Cf. BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Rio de Janeiro:
Record, 2009. p. 23.
8 A propósito do assunto, Hans Jonas esclarece: “[...] Decerto que as prescrições éticas ‘do próximo’ – as prescrições da justiça, da misericórdia, da honestidade, da honradez, etc. – ainda
são válidas, em sua imediaticidade íntima, para a esfera mais próxima, quotidiana, da interação
humana. Mas essa esfera torna-se ensombrecida pelo crescente domínio do fazer coletivo, no
qual o ator, pela enormidade de suas forças, uma nova dimensão, nunca antes sonhada, de
responsabilidade. [...] Um imperativo adequado ao tipo de agir humano e voltado para o novo
tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: ‘Aja de modo a que os efeitos da tua
ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra’; ou,
expresso negativamente: ‘Aja de modo a que os efeitos de tua ação não sejam destrutivos para
a possibilidade futura de uma tal vida’; ou, simplesmente: ‘Não ponha em perigo as condições
necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra’; ou, em um uso novamente positivo: ‘Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos
objetos do teu querer’”. (In: JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética
para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro:
Contraponto. PUC-Rio, 2006. p. 39, 47-48).
Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo
111
Nesse contexto de novos tempos e de novas ideias, o dever de
defesa e proteção dos direitos humanos abrange a cultura da cooperação9
e da solidariedade universal10, espaço ideal para emergência daquilo que
tem sido divulgado como Estado Mundial Ambiental11 ou Estado de Direito
Ambiental, cujos postulados básicos seriam:
[...] o postulado globalista centra a questão ambiental em termos de “Planeta”, atentando para o fato de que a proteção ambiental não pode ser
restrita a Estados isolados, devendo ser realizada em termos supranacionais. O postulado publicista centra a questão ambiental no “Estado”, tanto
em termos de dimensão espacial da proteção ambiental quanto em termos
de institucionalização dos instrumentos jurídicos de proteção ambiental. O
postulado individualista, por seu turno, restringe a proteção ambiental à
invocação de posições individuais. Assim, sendo o ambiente saudável contemplando na perspectiva subjetiva, os instrumentos jurídicos de proteção
ambiental utilizados seriam praticamente os mesmos referidos na proteção
de direitos subjetivos, possuindo, a proteção ambiental, acentuado caráter privatístico. O postulado associativista procura formular uma democracia de vivência da virtude ambiental, substituindo a visão tecnocrática
com proeminência do Estado em assuntos ambientais (postulado publicista) por uma visão de fortes conotações de participação democrática.12
Independentemente da denominação que possa ser empregada a
esse modelo de Estado13 caracterizado, marcadamente, pela preocupação
9 A ideia do Estado Constitucional Cooperativo é muito bem exposta pelo professor Peter Häberle,
que o caracteriza como uma resposta jurídico-constitucional à mudança do Direito Internacional
de direito de coexistência para o direito de cooperação na comunidade de Estados. Destaca, ainda, o ilustre professor, o pensamento de solidariedade que também identifica o Estado Constitucional cooperativo, considerando aspectos mútuos de assistência ao desenvolvimento, proteção
ao meio ambiente, combate ao terrorismo, dentre outras formas de cooperação internacional.
(In: HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 71).
10 Cf. BOFF. Leonardo. Virtudes para um outro mundo possível. V. I: hospitalidade: direito & dever
de todos. Petrópolis - RJ: Vozes, 2005. p. 156.
11 WENDT, Alexander. Why a world state is inevitable. In: European Journal of International Relations, v. 9. SAGE Publications, 2003.
12 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado Constitucional ecológico e democracia sustentada.
RevCEDOUA, n. 2, p. 9 e s., 2001.
13 O professor Vasco Pereira da Silva leciona que: [...] “Fruto da evolução histórica do Estado de
Direito (sucessivamente: liberal, social e pós-social) assiste-se, hoje, a um retorno ao predomínio de uma certa visão garantística, no que respeita à protecção jurídica individual sem, no
entanto, pôr em causa a necessidade de intervenção estadual, ainda que sob forma modificada,
no quadro de uma Administração constitutiva ou infraestrutural”. (SILVA, Vasco Pereira da.
Verde direito: o direito fundamental ao ambiente. p. 24. In: DAIBERT, Arlindo (Org.). Direito
ambiental comparado. Belo Horizonte: Fórum, 2008).
112 O significado do primado da dignidade da pessoa humana...
de proteção do meio ambiente, fato é que o Brasil, no cenário internacional, se firma cada vez mais como Estado Ambiental, considerando a opção
normativa constitucional de comprometimento com as gerações presentes
e futuras, verdadeiro direito subjetivo constitucionalizado, conforme lição
do professor Juan José Solozábal Echavarría.14
O dever de proteção determina ao Estado, nesse cenário de responsabilidades compartilhadas para com o meio ambiente, adotar medidas de
política pública que busquem prevenir ao máximo riscos e danos capazes de
agravar ainda mais as mínimas condições de existência humana, que necessariamente pressupõem o respeito à natureza e a todas as suas formas de vida.15
Incumbe ao Estado assegurar dignidade em formas e conceitos alargados, posto que a falta de respeito com os seres vivos, indistintamente,
determina o descaso ou o desprezo com a própria dignidade humana, que
tem no ambiente sadio sua validade e sua essência.16
A propósito desse assunto, Ingo Sarlet sustenta ser a dignidade da
pessoa humana:
[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que
o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado
e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e
14 O professor denomina de elementos estabilizadores da Constituição, afirmando que: “[...] Lo
que querría poner de manifiesto es que estas cláusulas sobre el medio ambiente integran lo
que podríamos llamar “elementos estabilizadores” de la Constitución. Sin duda el compromiso
conservador que implica la protección del medio ambiente restringe la capacidad autodispositiva del poder constituyente que puede dispensar a los poderes públicos em su actuación del
limite del respeto al patrimonio ambiental que la comunidad actual ha recebido de las generaciones pasadas. No es cierto por tanto, como dijera Jefferson, que la tierra pertenezca a las
generaciones vivas. Las generaciones presentes aceptan como limite el de la protacción de lo
que han recebido, em cuanto reconocimiento de uma continuidad nacional, comprometiéndose
a conservalo para las generaciones futuras”. (ECHAVARRÍA, Juan José Solozábar. El derecho al
medio ambiente como derecho publico subjetivo, p. 32. In: COSTA, José de Faria (coord.). Boletim da Faculdade de Direito. STVDIA IVRIDICA 81. COLLOQUI – 13. A tutela jurídica do meio
ambiente: presente e futuro. Universidade de Coimbra. Coimbra: Editora Coimbra, 2005).
15 Sobre o tema, Patryck de Araújo Ayala defende que “[...] A tarefa estatal de assegurar o bemestar ganha, portanto, a partir da afirmação de um Estado ambiental, dimensões bastante mais
extensa em relação ao alcance de semelhante dever. Este lhe impõe severas exigências de escala
para a consecução da tarefa de assegurar o bem-estar social, pois os valores da sociedade que
se quer proteger estão vinculados agora aos interesses de titulares e beneficiários que ainda
não participam da comunidade política, a saber, os animais não-humanos e principalmente, as
futuras gerações, objeto de interesse desta exposição”. (AYALA, Patryck de Araújo. A proteção
dos espaços naturais, mudanças climáticas globais e retrocessos existenciais: por que o estado
não tem o direito de dispor sobre os rumos da existência da humanidade? p. 315. In: CUREAU,
Sandra; LEUZINGER, Márcia Dieguez; SILVA, Solange Teles da (Coord.). Código florestal: desafios e perspectivas. Coleção direito e desenvolvimento sustentável. v. 1. São Paulo: Fiúza, 2010.)
16 FLEINER. Thomas. O que são direitos humanos? São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 124.
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113
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir
as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da
própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos,
mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.17
É importante frisar que essa noção de dignidade humana reúne a dimensão ecológica18, que será, na sequência, analisada em conjunto com outras dimensões conferidas a esse princípio fundamental de caráter universal.
Resta nítido que o Estado não pode prescindir do seu papel de concretizar seus deveres de proteção19 mediante instrumentos que efetivem a
garantia do primado da dignidade humana20, afirmando a importância do
meio ambiente equilibrado como condição de existência do próprio homem.
AS DIMENSÕES DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Todo homem deve possuir a condição de ser livre, único e respeitado na sua individualidade. A essência da liberdade reside na sua capacidade de autodeterminação, pressuposto fundamental para o respeito
daquilo que se pode compreender como dignidade. Quando o homem é
privado da possibilidade de se desenvolver enquanto indivíduo inserido
numa sociedade, resta subtraído o núcleo essencial de sua humanidade e
personalidade.21
17 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 8. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 70.
18 MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang;
FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos
humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 180.
19 Essa tarefa de proteção é bem definida por Patryck de Araújo Ayala “[...] Uma vez que, no
contexto da ordem constitucional brasileira, os deveres de proteção estatal podem se manifestar
como imperativos de ponderação preventiva ou imperativos de ponderação precaucional, é
possível justificar, considerando a qualidade dos efeitos das fontes responsáveis pelas alterações
climáticas extremas, e o princípio da responsabilidade de longa duração, que todos os deveres
de proteção definidos pelo § 1º, do artigo 225, possuem a aptidão para veicular uma abordagem
precaucional e vinculam os particulares e o próprio Estado” (AYALA, op. cit., p. 324).
20 Cf. AYALA. Patryck de Araujo. O direito ambiental das mudanças climáticas: mínimo existencial
ecológico, e proibição de retrocesso na ordem constitucional brasileira. p. 270. In: BENJAMIN, Antonio Herman; IRIGARAY, Carlos Teodoro; LECEY, Eladio; CAPPELI, Silvia. Florestas, mudanças
climáticas e serviços ecológicos. v. 1. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.
21 cf. FLEINER. Thomas. O que são direitos humanos? São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 12.
114 O significado do primado da dignidade da pessoa humana...
A compreensão do conteúdo axiológico da expressão “dignidade da
pessoa humana” implica a análise das dimensões que ela assume diante
dos desafios que se apresentam no contexto da pós-modernidade.
De plano, deve ser ressaltado que, conforme lição de Ingo Sarlet,
a abordagem da dignidade da pessoa humana em dimensões se deve “à
complexidade da própria pessoa humana e do meio no qual desenvolve a
sua personalidade”.22
A dignidade constitui princípio irrenunciável da própria condição
humana, considerando possuir o homem os atributos de razão e consciência determinantes de sua autonomia e liberdade enquanto pessoa, daí
resultar evidenciada a dimensão chamada ontológica.
Identifica-se o caráter ou a dimensão comunitária da dignidade na
própria natureza do homem em conviver com os demais indivíduos em
sociedade, respeitando uns aos outros em igualdades e direitos. É a ideia
de complementaridade da dimensão ontológica, uma vez que a perspectiva intersubjetiva faz com que exista uma obrigação geral de respeito entre
as pessoas, principalmente em razão da tendência cada vez mais marcante
das sociedades contemporâneas, qual seja, a convivência harmônica e plural entre as pessoas não só do mesmo país, mas do planeta como um todo.
A evolução da sociedade em seu aspecto histórico-cultural identifica
a chamada dignidade como construção.23 Ainda na ideia de complementação das demais dimensões, tem-se que a dignidade é construída com
base no progresso que o homem experimenta na sucessão das gerações
da humanidade, aliada aos valores culturais. E por se tratar de categoria
axiológica aberta, a dignidade experimenta avanços que permitem adequála às aspirações e aos anseios da sociedade em permanente transformação.
É possível, também, visualizar a dignidade sob uma dupla dimensão: como limite e como tarefa para o Estado. Deve ser assegurada ao
indivíduo proteção contra abusos estatais, ao mesmo tempo em que se
impõem medidas de afirmação, promoção e exercício da dignidade.24
Infelizmente, não bastassem as omissões estatais, o indivíduo, não
raras vezes, se vê agredido por atos arbitrários praticados por agentes do
22 SARLET, Ingo Wolfgang. Dimensões da dignidade da pessoa humana: uma compreensão jurídico-constitucional compatível com os desafios e com o impacto da assim denominada biotecnologia. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro; JUNIOR, Jerson Carneiro; BETTINI, Lucia Helena Polleti
(Orgs.). Hermenêutica Constitucional. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 262.
23 Ibid., p. 273.
24 Ibid., p. 276.
Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo
115
poder público que, por força da ordem jurídica, possuem o dever precípuo
de salvaguardar qualquer pessoa de todo tipo de risco ou violação que
possa comprometer a essência de sua condição humana.
A propósito desse aspecto, o Brasil, que a exemplo de outros países
que elegeram em suas Constituições o primado da dignidade da pessoa
humana como fundamento do Estado de Direito, caminha a passos ainda
muito lentos para que seja concretizado o dever de propiciar o mínimo de
existência digna a todos, indistintamente.
Nota-se a necessidade de transformar o Estado – formalmente estruturado com os direitos e instrumentos criados para garantir o respeito
e o exercício da dignidade – para a realidade de um Estado que verdadeiramente assegure, na prática, não só a dignidade em suas variadas dimensões, mas outros princípios que dela decorrem, como da igualdade, da
liberdade, da integridade física e moral e da solidariedade25.
MEIO AMBIENTE: DIREITO HUMANO DE TERCEIRA DIMENSÃO
A abordagem do direito ao meio ambiente sadio como valor de dignidade remete à análise, ainda que breve, dos direitos humanos enquanto
aspirações e instrumentos para o exercício da cidadania.
Sabe-se que foi a partir da segunda Guerra Mundial que restou consagrada a ideia de se assegurar, no campo político, valores tidos como essenciais para a sobrevivência do gênero humano. Seriam direitos, e de fato
são, que não constituiriam matérias de domínio reservado de cada país,
por tratarem de interesses ligados a todos os povos.
A ideia de universalidade e indivisibilidade ficou bem demonstrada
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (de 10 de dezembro de
1948), considerada marco histórico da concepção moderna de direitos humanos26. Esses direitos configuram o substrato mínimo daquilo que deve
ser assegurado ao homem para uma existência efetivamente digna.
25 Ibid., p. 281.
26 Edihermes Marques Coelho esclarece que “a melhor doutrina costuma adotar a expressão ‘direitos humanos’ para designar os direitos do ser humano num plano global; a expressão ‘direitos
fundamentais’ para designar os direitos humanos garantidos nas constituições; a expressão
‘direitos básicos do ser humano’ para designar aqueles direitos que são essenciais à concretização da condição humana de existência. Assim, a expressão ‘direitos humanos fundamentais’
indica os direitos humanos consagrados na Constituição de um país” (In: COELHO, Edihermes
Marques. Direitos humanos, globalização de mercados e o garantismo como referência jurídica
necessária. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003. p. 66).
116 O significado do primado da dignidade da pessoa humana...
É interessante observar a classificação defendida por Edihermes
Marques Coelho27, Paulo Bonavides28 e Ingo Wolfgang Sarlet29, que
distribuem os direitos humanos em dimensões, posto que a expressão
‘gerações’ poderia não contemplar a contento a ideia de somatório de
qualificações jurídico-políticas e um desenvolvimento dialético dos
direitos.30
Assim, os direitos de primeira dimensão contemplam as liberdades
civis e políticas, frutos da ascensão do pensamento liberal-burguês dos séculos XVIII e XIX. Já os de segunda dimensão correspondem aos direitos
sociais (assistência social, saúde, educação, etc.), reivindicados por movimentos sociais dos trabalhadores no decorrer do século XIX.
Os direitos de terceira dimensão, por sua vez, emergiram no século
XX, como consequência da ampliação das relações em sociedade e entre países, complementando, pois, os demais direitos. São considerados
direitos de titularidade difusa ou coletiva, posto que são voltados para a
coletividade. Aqui está incluído o direito à preservação do meio ambiente,
a exemplo de outros conferidos aos povos indistintamente.
Vale dizer que em relação ao meio ambiente o grande marco está na
Declaração de Estocolmo, de 1972.31
Não há dúvidas em reconhecer que o meio ambiente constitui direito humano fundamental de terceira dimensão, cabendo a todos o dever de
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
A ESPECIAL DIMENSÃO ECOLÓGICA
DA DIGNIDADE HUMANA
É sabido que assim como os direitos liberais e os direitos sociais
ditaram o conteúdo da dignidade humana, a preocupação global com a temática ambiental ofereceu novos contornos a esse princípio, considerado
27 Ibid., p. 71.
28 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 474-482.
29 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998.
30 COELHO. Op. cit., p. 71.
31 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos Humanos e meio ambiente: um diálogo entre os sistemas internacionais de proteção. p. 71. In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; IRIGARAY, Carlos
José Teodoro Hugueney (Orgs.). Novas perspectivas do direito ambiental brasileiro: visões interdisciplinares. Cuiabá: Cathedral, 2009.
Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo
117
pedra basilar da edificação constitucional do Estado (social, democrático e
ambiental) de Direito.32
O acréscimo do componente ambiental oferece à dignidade humana
a dimensão chamada ecológica (ou socioambiental). Busca-se com isso
reconhecer a dignidade da vida no planeta, que não se resume a seres
humanos. Reconhece-se valor na proteção de todas as formas de vida, das
quais, por óbvio, o ser humano não pode abrir mão, sob pena de comprometer sua própria existência.
Ainda que não consigamos nos desvencilhar do pensamento kantiano, possível é o alargamento da visão antropocêntrica que influenciou a
construção do princípio da dignidade, porquanto o ambiente não merece
ser protegido apenas em razão da saúde e da qualidade de vida do ser
humano, mas também em virtude de caracterizar um valor em si mesmo.33
Nas precisas lições de Sarlet e Fensterseifer:
[...] é possível afirmar que a tendência contemporânea no sentido de
uma proteção constitucional e legal da fauna e flora, bem como dos
demais recursos naturais, inclusive contra atos de crueldade praticados
pelo ser humano, revela no mínimo que a própria comunidade humana
vislumbra em determinadas condutas (inclusive praticadas em relação
a outros seres vivos) um conteúdo de indignidade. Tendo em conta
que nem todas as medidas de proteção da natureza não humana têm
por objeto assegurar aos seres humanos sua vida com dignidade (por
conta de um ambiente saudável e equilibrado), mas dizem com a preservação, por si só, da vida em geral e do patrimônio ambiental, resulta
evidente que se está a reconhecer um valor em si, isto é, intrínseco.34
Assegurar dignidade às demais formas de vida pode parecer um tema
polêmico, mas não se pode perder de vista que a abertura é um traço distintivo
do Direito Ambiental que se afirma quebrando paradigmas, dialogando construtivamente com as demais ciências, posto estar comprometido com a defesa da vida.
32 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica
da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. p. 177. In: MOLINARO,
Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma
discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
33 Ibid., p. 195.
34 Ibid., p. 196.
118 O significado do primado da dignidade da pessoa humana...
O DIREITO AO MÍNIMO DE EXISTÊNCIA
O desafio permanente é assegurar níveis de proteção capazes de
fazer valer o compromisso de garantia a todos os povos do mínimo para
a existência.
É fato que nos ordenamentos contemporâneos a existência digna
contempla a necessidade de se oferecer direitos à alimentação, saúde e
educação, em condições mínimas que possam permitir a todos perspectivas de desenvolvimento e progresso na sociedade.
Felizmente, já se observa consolidada a visão de que, ao lado dos
direitos sociais, ao Estado é imposta a obrigação de garantir o meio ambiente como pressuposto para uma vida digna.
No Brasil, tal aspecto é claramente constatado pela configuração
de proteção ofertada pela própria Constituição Federal. A consagração da
dignidade da pessoa humana como fundamento da República evidencia o
grande valor atribuído ao direito à existência digna no mundo.35
Como Estado de Direito, o Brasil está comprometido com o bemestar de todos os indivíduos na consecução válida das políticas públicas
que materializem o exercício e o acesso pleno aos direitos inerentes à
afirmação da dignidade humana, notadamente no campo da proteção ao
meio ambiente.
Igualmente perceptível é a opção por um modelo de Estado Ambiental de Direito, haja vista a fixação de responsabilidades compartilhadas
que vinculam ações e atitudes na missão de respeitar um direito humano
fundamental, do qual nenhum de nós jamais poderá se eximir de abraçar
e defender, quer em nossos comportamentos do dia a dia como pessoas
inseridas em sociedade, quer como atores governamentais e não-governamentais nos cenários nacional e internacional.
Não se pode deixar de destacar que a defesa do meio ambiente
constitui uma responsabilidade de longa duração, isto é, ultrapassa a tutela
dos direitos das pessoas no tempo presente para salvaguardar, com idêntico valor de proteção, as gerações futuras.
Essa igualdade entre as gerações, chamada equidade intergeracional, possibilita que a proteção conferida pelo direito ambiental alcance
sujeitos sequer concebidos, possuindo a presente geração a obrigação ju35 COELHO. Op.cit., p. 109.
Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo
119
rídica de satisfazer suas necessidades de desenvolvimento sem o comprometimento das futuras gerações.36
Dentre as metas a serem perseguidas pela estrutura normativa de
proteção ambiental, merece especial destaque a preocupação em se assegurar qualidade de vida para todos, o que pressupõe um mínimo de
existência em matéria ambiental como corolário do princípio da dignidade
da pessoa humana.
A ideia de um mínimo ecológico de existência implica uma série de
atitudes voltadas sempre à fiel observância de padrões mínimos que estabelecem ofertar ao homem tratamento compatível com a condição de pessoa humana. Ao assegurar as prestações (saúde, educação, moradia, etc.)
típicas do Estado Social de Direito, é acrescido o componente ecológico, o
qual identifica o compromisso estatal de guiar suas ações, tendo por foco
o equilíbrio ambiental.37
Há, pois, uma co-responsabilidade que se estabelece entre sociedade e Estado, na tarefa de se assegurar ao ser humano níveis considerados
mínimos para uma existência conforme o conteúdo axiológico da dignidade, consagrado universalmente.
36 CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilidade civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 45.
37 O Professor Patryck de Araújo Ayala afirma que “é possível conceber a noção de mínimo ecológico de existência na condição de resultado que decorre da combinação do exercício da iniciativa estatal e dos particulares, objetivando assegurar a proteção de níveis de qualidade dos recursos naturais, que sejam indispensáveis para que se possa assegurar um conjunto de realidades
existenciais dignas ao homem, compreendido este sob a forma de uma específica imagem de
homem em um Estado de direito, que é social, democrático e ambiental. Compreende-se, sob
a noção de um mínimo ecológico de existência que, este homem, pessoa humana que deve
ter asseguradas condições para o livre desenvolvimento de sua personalidade, somente pode
fazê-lo se lhe estiverem acessíveis, realidades existenciais capazes de proporcionar o exercício
dessas liberdades. Garantias relacionadas a um conjunto mínimo de prestações de conteúdo
social, econômico, cultural e, agora, ecológico, constituem o veículo para a existência digna do
homem como pessoa, destinatária da proteção estatal e, não mais como objeto de sua iniciativa.
(...) A noção de mínimo ecológico de existência surge, portanto, conforme salientado como
uma consequência no plano existencial (no plano ecológico de existência), de um sistema de
responsabilidade compartilhadas. Se a coletividade possui o dever de defender e assegurar que
seus comportamentos não degradem a qualidade de vida de um bem que é indivisível e, que
pode afetar o bem-estar de terceiros, cabe ao Estado, em primeiro lugar, assegurar por sua iniciativa, que esta qualidade não seja degradada, por deficiência em sua proteção normativa, pela
ausência de proteção ou por insuficiência na proteção”. (AYALA, Patryck de Araujo. A proteção
dos espaços naturais, mudanças climáticas globais e retrocessos existenciais: por que o estado
não tem o direito de dispor sobre os rumos da existência da humanidade?. p. 324. In: CUREAU,
Sandra; LEUZINGER, Márcia Dieguez; SILVA, Solange Teles da (Coord.). Código florestal: desafios e perspectivas. Coleção direito e desenvolvimento sustentável. v. 1. São Paulo: Fiúza, 2010).
120 O significado do primado da dignidade da pessoa humana...
CONCLUSÃO
A regra do consumismo desenfreado e do desenvolvimento a qualquer preço impôs à humanidade o pesado fardo de conviver exposta a
riscos de dimensões globais, cujos reflexos a todos já alcançam através de
mudanças detectadas no clima do planeta.
O momento não se satisfaz apenas com reflexões acerca dessa nova
realidade, exigindo de todos, particulares e agentes estatais, posturas e
atitudes que possam contemplar a adequação das estruturas da sociedade
e do Estado à nova consciência ética que se estabelece.
Não é um compromisso limitado por barreiras territoriais e temporais,
mesmo porque envolve a responsabilidade de todos pela preservação da
vida no planeta, que não é habitado somente por seres humanos. É a oportunidade de exercitar a ética do cuidado38 e a dignidade da vida, em todas
as suas formas, que inspira o sentimento de solidariedade39, tão necessário
para a edificação da paz, que não se constrói sem o respeito à natureza.
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38 Leonardo Boff desenvolve a ideia de que o “futuro do planeta e da espécie ‘homo sapiens/
demens’ depende do nível de cuidado que a cultura e todas as pessoas tiverem desenvolvido”.
(In: BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Rio de Janeiro:
Record, 2009. p. 87-88).
39 Ibid., p. 89.
Márcio Frederico de Oliveira Dorilêo
121
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A GESTÃO FLORESTAL PLENA EM
MATO GROSSO
Marcos Henrique Machado1
INTRODUÇÃO
A gestão florestal é uma divisão administrativa da gestão do meio
ambiente, com a competência de assegurar a proteção da flora e permitir
a exploração de forma sustentável, adotando práticas que conciliem o desenvolvimento socioeconômico com o equilíbrio ecológico.
Gestão Florestal Plena é a capacidade de gerir a atividade florestal
na sua inteireza, de forma absoluta, com a convergência de atos e ações
administrativas, não só possibilitando o licenciamento da atividade florestal
como também fiscalizando-a e impondo obrigações ambientais.
O Ministério do Meio Ambiente buscou instituir a gestão florestal
compartilhada entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e os órgãos estaduais (Secretarias de
Estado, Autarquias ou Fundações) do Meio Ambiente, através de Termos
de Cooperação Técnica. Após experiência desenvolvida no Estado de
Mato Grosso, a legislação ambiental permitiu aos Estados-membros implantarem a gestão florestal plena, por expressa previsão contida na Lei
de Florestas Públicas.
Mato Grosso, em virtude da gestão florestal compartilhada e por força da delegação de lei federal para gerir plenamente a atividade florestal,
instituiu normas e criou instrumentos de gestão para assumir e implantar
a gestão florestal plena. Desde 23 de junho de 2005, quando foi criada
a Secretaria de Estado do Meio Ambiente no Estado de Mato Grosso, a
legislação ambiental estadual vem sendo aperfeiçoada em razão e em conformidade com as experiências e descobertas extraídas do seu próprio
gerenciamento florestal. A evolução e os desafios são constantes, tendo
em vista as características ambientais dos quatro ecossistemas existentes no
1 Desembargador do TJMT, ex-promotor de Justiça do MPMT, professor orientador de Direito
Público na Faculdade de Direito da Universidade de Cuiabá, membro da Academia Mato-Grossense de Direito Constitucional, pós-graduado em Direito do Estado, Direito Público, Direitos
Difusos, Direito Processual Civil e Direito Processual Penal.
124 A gestão florestal plena em Mato Grosso
Estado (amazônico, cerrado, Pantanal e Araguaia) e o interesse econômico
de exploração agroflorestal proporcionado pelo território mato-grossense.
DESENVOLVIMENTO
Através da normatização específica e da divisão da competência ambiental, a Gestão Florestal Plena tem o objetivo de administrar a atividade
florestal, de modo a melhorar o controle da exploração vegetal, conservar
os recursos naturais, preservar a estrutura dos biomas e de suas funções,
manter a diversidade ecológica e assegurar o desenvolvimento socioeconômico regional.
Isso porque, a atividade florestal, enquanto ambiente natural, tem
sido tomada como objeto de investigação por impor desafios crescentes
a legisladores, pesquisadores, ambientalistas e autoridades públicas, entre
os quais, os gestores.
No Estado de Mato Grosso, a exploração florestal tem sido objeto de
especulação e discussão mundial. E o interesse não é um acaso, já que a
extensão de áreas produtivas, o clima, a regularidade de chuvas, e o preço
das terras são atrativos econômicos.
Com a descoberta do potencial madeireiro e dos altos índices de
produção agropecuária, Mato Grosso sofreu ações desordenadas de desflorestamento a partir da década de 90.
Além dos problemas ambientais físicos propriamente ditos, como
redução da biodiversidade, as queimadas, a destruição de nascentes e matas ciliares, no ano de 2005, precisamente no mês de maio, após ter ser
sido deflagrada a Operação Curupira2, o governo do Estado de Mato Grosso, sob o comando do governador Blairo Maggi, instituiu uma nova fase na
gestão ambiental, a partir da criação de um grupo de servidores da então
Fundação Estadual do Meio Ambiente para discutir a atividade florestal e
sua exploração, com propósito de aperfeiçoá-la, de modo a se alcançar
uma qualidade ambiental e a segurança jurídica dos atos de gestão.
Após conversações e articulações entre o governo de Mato Grosso
e o Ministério do Meio Ambiente, à época dirigido pela ministra Marina
Silva, iniciou-se um processo verdadeiramente revolucionário de melhoria
2 Nome dado a uma operação policial executada pela Polícia Federal, a pedido do Ministério
Público Federal e autorização da Justiça Federal, que investigou licenciamentos ambientais,
autorizações de explorações florestais e planos de manejos florestais supostamente ilegais.
Marcos Henrique Machado
125
da gestão florestal no Estado, a começar pela criação de um órgão gestor,
a Secretaria de Estado do Meio Ambiente, em 23 de junho do mesmo ano,
através da Lei Complementar n. 214/05.
Nasceu assim, para instrumentalizar a desafiadora missão de reformular o gerenciamento florestal em Mato Grosso, o primeiro Termo de
Cooperação firmado entre o Ministério do Meio Ambiente, o ��������������
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e
o Estado de Mato Grosso, por intermédio da Secretaria de Estado do Meio
Ambiente (SEMA), em 2 de setembro de 2005.3
Com a efetiva participação da Procuradoria Geral de Estado no assessoramento jurídico, o Código Estadual do Meio Ambiente foi revisado,
atualizado e substancialmente alterado, com a edição da Lei Complementar
n. 232, de 12.01.06.
Simultaneamente, foi elaborada a Política Florestal do Estado de
Mato Grosso, corporificada também em lei complementar (LC n. 235, de
21.12.05), com a participação de servidores, integrantes de organizações
não-governamentais, representantes de entidades do setor produtivo,
membros do Conselho Estadual do Meio Ambiente, promotores de Justiça
e advogados militantes na área ambiental.
Em março de 2006, reconhecendo a viabilidade da experiência florestal implantada no Estado de Mato Grosso, até então compartilhada, o
governo federal, através do Ministério do Meio Ambiente, decidiu delegar
aos estados a gestão das atividades florestais, sem prejuízo de atuação e
fiscalização supletiva do órgão federal (IBAMA), ao aprovar a alteração do
art. 19 do Código Florestal.4
Com a nova redação legal, “a exploração de florestas e formações
sucessoras, tanto de domínio público como de domínio privado, dependerá de prévia aprovação pelo órgão estadual competente do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, bem como da adoção de técnicas
de condução, exploração, reposição florestal e manejo compatíveis com os
variados ecossistemas que a cobertura arbórea forme”.
A partir dessa norma federal permissiva, a legislação ambiental, na
3 Termo de Cooperação Técnica para Gestão Florestal Compartilhada que entre si celebram o
Ministério do Meio Ambiente, por intermédio da Secretaria de Biodiversidade e Florestas – SBF,
da Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável – SDS, o Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e o Estado do Mato Grosso, por
Intermédio da Secretaria de Estado de Meio Ambiente – SEMA-MT. Fonte: www.sema.mt.gov.br.
4 Lei n. 11.284, de 2 de março de 2006, art. 83.
126 A gestão florestal plena em Mato Grosso
prática, transferiu aos Estados-membros a gestão florestal plena, a partir da
experiência desenvolvida no Estado de Mato Grosso.
Depois dessa delegação legal, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente instituiu normas regulamentares, editou outras novas e criou instrumentos de gestão para instituir a gestão florestal plena, que vem sendo
aperfeiçoada com experiências e descobertas extraídas do próprio gerenciamento florestal em evolução constante, bem como das características
ambientais dos quatro ecossistemas existentes no Estado (amazônico, cerrado, Pantanal e Araguaia).
Tanto a lei de Política Florestal como o Código Ambiental de Mato
Grosso, ao longo do desenvolvimento da gestão florestal plena em Mato
Grosso, sofreram alterações, entre as quais se destaca a Lei Complementar
n° 327, de 22 de agosto de 2008, que criou o Programa Mato-grossense de
Legalização Ambiental Rural, disciplina as etapas do Processo de Licenciamento Ambiental de Imóveis Rurais e dá outras providências, denominado
MT LEGAL, com o objetivo de promover a regularização das propriedades
e posses rurais e sua inserção no Sistema de Cadastramento Ambiental Rural e/ou Licenciamento Ambiental de Propriedades Rurais (SLAPR).
Ocorre que, desde sua implantação, subsistem dúvidas, incompreensões e questionamentos na aplicação das normas estaduais, tanto em
processos administrativos, como também no Judiciário, provocados, em
regra, por servidores do IBAMA, exploradores e comerciantes do setor
florestal, além de possuidores e proprietários rurais.
Não bastasse, embora não consolidado um entendimento uniforme
e pacífico sobre a legislação florestal de Mato Grosso, já foi concluído,
pelo Poder Executivo Estadual, o projeto do novo Código Ambiental, após
um consistente trabalho multidisciplinar que reuniu, além representantes
dos segmentos interessados, produtivo e ambiental, servidores do Meio
Ambiente, professores, advogados ambientalistas, procuradores do Estado
e promotores de Justiça.
O arcabouço legal ambiental que diz respeito, direta ou indiretamente, à ocupação, ao uso e à proteção dos espaços internos a uma propriedade rural, assim como dos recursos naturais que nela existem ou que, deveriam existir, é vasto e encontra-se disperso em diversos diplomas legais.
Como ocorre em qualquer área da atividade humana, também para
a gestão ambiental da atividade florestal, as normas mais importantes estão
contidas na Constituição Federal de 1988.
Marcos Henrique Machado
127
Assim, cabe mencionar que o art. 170 da CF determina que a ordem
econômica deve considerar a soberania nacional, a propriedade privada, a
função social da propriedade e a defesa do meio ambiente, dentre outros
princípios a serem observados.
Em seu art. 5º, inciso XXII, que “é assegurado o direito de propriedade”, o que obviamente inclui, também, a propriedade imóvel rural.
Entretanto, na sequência imediata, o inciso XXIII, do mesmo artigo,
determina que “a propriedade cumprirá sua função social”.
É importante observar que o direito de propriedade assegurado pela
CF 88 não diz respeito a qualquer propriedade, mas apenas àquelas que
cumprem sua função social.
Assim, ainda em norma constitucional, o conteúdo da função social
da propriedade rural é descrito no art. 186, como segue:
A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei,
aos seguintes requisitos:
I - Aproveitamento racional e adequado.
II - Utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio
ambiente.
III - Observância das disposições que regulam as relações de trabalho.
IV - Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Observa-se que a propriedade imóvel rural passou a ser considerada
um bem produtivo e que tem uma destinação socioambiental, não sendo
mais admitida sua utilização para fins especulativos.
Assim, após a CF de 88, o uso da propriedade imóvel rural não é
mais, apenas, um direito do seu proprietário, mas, de certa forma, um dever ou uma obrigação, na medida em que se impõe “o seu aproveitamento
racional e adequado”.
Tal aproveitamento é condicionado pelo conteúdo da norma que
determina a “utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente”.
O não-cumprimento da função social torna a propriedade rural passível de diversas penalidades, incluindo até mesmo a desapropriação, por
interesse social, para fins de reforma agrária. No entanto, excetuam-se
128 A gestão florestal plena em Mato Grosso
daquela sanção as pequenas e médias propriedades, quando único imóvel
de seu proprietário, e as propriedades consideradas produtivas conforme
parâmetros legalmente definidos (Lei nº 8.269/93, art. 9º).
Quanto ao meio ambiente propriamente dito, o art. 225 da CF de
88 prevê:
Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - Preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o
manejo das espécies e ecossistemas;
II - Preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do
País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação do
material genético;
IV - Exigir, na forma da Lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente,
estudo prévio de impacto ambiental a que se dará publicidade;
V - Controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas,
métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de
vida e o meio ambiente;
VII - Proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei, as práticas que
coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de
espécies ou submetam os animais à crueldade.
§ 3º - As condutas e as atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Cabe ressaltar que o conteúdo da norma expressa no art. 225 explicita que o conceito de Desenvolvimento Sustentável foi incorporado à CF
88, na medida em que as gerações futuras, sequer nascidas, já têm direito
ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, restando, portanto, às
gerações presentes, diversas obrigações.
Adicionalmente, o exame dos parágrafos vinculados ao art. 225 revela a obrigatoriedade de elaboração de um Estudo Prévio de Impacto
Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (respectivamente,
Marcos Henrique Machado
129
EIA e Rima), assim como do licenciamento ambiental.
São previstas, também, e de forma explícita, a proteção dos processos ecológicos essenciais, da fauna e da flora, assim como a obrigatoriedade de reparação dos danos causados ao meio ambiente. Tendo em vista
a realidade da agropecuária brasileira, verifica-se que a gestão ambiental
dessa atividade é diretamente afetada.
A Constituição Federal prevê, ainda, que a competência de gerir o
Meio Ambiente cabe à União, aos Estados, ao Distrito Federal, segundo
prevê o art. 23, VI e VII da Constituição Federal. Essa competência é denominada administrativa, comum ao ente federativo (União) e aos entes
federados (Estados, Distrito Federal e Municípios).
Todavia, essa competência, também chamada de material ou administrativa, decorre de outra, a legislativa, que compreende a elaboração de
leis, decretos, resoluções e portarias.
Por sua vez, a competência legislativa sobre o Meio Ambiente, adotada na vigente Constituição Federal (art. 24, I, VI, VII e VIII), prevê que
cabe à União a edição de normas gerais em matéria ambiental (art. 24, § l°),
restando aos Estados e Distrito Federal (art. 24, § 2°) a atuação suplementar.
Consequentemente, é a legislação federal que dispõe sobre a gestão
ambiental, entre as quais se destaca a Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981,
que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e institui o Sistema
Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), integrado pela União, Estados e
Municípios.
Essa lei, em caráter geral, regula:
1) Os objetivos gerais da PNMA: art. 2°, caput, da Lei n. 6.938/81:
a) a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental;
b) assegurar condições ao desenvolvimento socioeconômico;
c) promover os interesses da segurança nacional;
d) proteger a dignidade da pessoa humana.
• Objetivos Específicos da PNMA: art. 4º, I a VIII, da Lei n. 6.938/81:
I - desenvolvimento sustentável;
II - definição de áreas prioritárias de ação governamental;
III - estabelecimento de critérios e padrões de qualidade ambiental;
IV - desenvolvimento de pesquisas e tecnologias;
V - difusão de tecnologias; divulgação de dados e informações am­
bientais; e formação de uma consciência pública;
130 A gestão florestal plena em Mato Grosso
VI - preservação e restauração de recursos ambientais;
VII - imposição ao poluidor de obrigação de recupe­rar e/ou indenizar
os danos (princípio do poluidor-pa­gador) e ao usuário da obrigação de
contribuir (como compensação) pela utilização de recursos ambientais
com fins econômicos (princípio do usuário-pagador).
• Os Princípios da PNMA: Art. 2º, I a X, da Lei n. 6.938/81:
I - meio ambiente como patrimônio de uso comum do povo, portanto
como patrimônio da coletividade;
II - racionalização do uso de recursos naturais;
III - planejamento e fiscalização do uso de recursos naturais;
IV - proteção e preservação dos ecossistemas, inclu­sive com o estabelecimento de APAs e Estações Ecológicas de uso severamente restritivo;
V - controle e zoneamento de atividades poluidoras;
VI - incentivos ao estudo e à pesquisa;
VII - acompanhamento do estado da qualidade ambiental;
VIII - recuperação das áreas degradadas;
IX - proteção de áreas ameaçadas de degradação;
X - educação ambiental.
• Os Instrumentos da PNMA: art. 9º, I A XII, da Lei n. 6.938/81:
I - estabelecimento de padrões de qualidade ambiental (art. 8°, VII);
II - zoneamento ambiental;
III - avaliação dos impactos ambientais (o art. 225, § 1°, IV, da CF exige
estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade efetiva ou poten­cialmente causadora de significativa degradação do
meio ambiente);
IV - licenciamento e revisão de atividades efetiva ou potencialmente
poluidoras (o licenciamento ambiental é previsto no art. 10 da Lei n.
6.938/81);
V - incentivo à produção e instalação de equipa­mentos e criação ou absorção de tecnologia, voltados para a melhoria da qualidade ambiental;
VI - criação de espaços territoriais especialmente protegidos pelo Poder
Público federal, estadual e mu­nicipal, tais como APAS, de relevante interesse ecológi­co e reservas extrativistas (aqui se trata da criação de espaços especialmente protegidos, nos termos do art. 225, § 1°, III, da CF);
VII - sistema nacional de informações sobre o meio ambiente;
VIII - Cadastro Técnico Federal de Atividades e Ins­trumentos de Defesa
Ambiental;
Marcos Henrique Machado
131
IX - penalidades disciplinares ou compensatórias ao não cumprimento das medidas necessárias à preserva­ção ou correção da degradação
ambiental;
X - Constituição do Relatório de Qualidade do Meio Ambiente, a ser
divulgado anualmente pelo IBAMA;
XI - a garantia da prestação de informações relati­vas ao meio ambiente,
obrigando-se o Poder Público a produzi-las, quando inexistentes;
XII - o Cadastro Técnico Federal de atividades po­tencialmente poluidoras e/ou utilizadoras dos recur­sos ambientais;
XIII - instrumentos econômicos, como concessão flo­restal, servidão ambiental, seguro ambiental e outros.
Pois bem, respeitadas as normas ambientais gerais, aos estados se
reserva a faculdade de suplementar a legislação federal, bem como exercer
a gestão ambiental concorrentemente.
Ocorre que a legislação federal ainda dispõe sobre diversas matérias ambientais, que repercutem nos estados e acabam pautando a gestão
ambiental estadual.
Entre as principais leis federais ambientais está a proteção da flora e
uso da terra (Código Florestal).
De forma genérica, toda a legislação brasileira é intervencionista, limitando ou restringindo os poderes inerentes aos direitos de propriedade, em
particular sobre a propriedade imóvel rural. Assim, ao proteger as florestas
e outras formas de vegetação natural, o Código Florestal Brasileiro (Lei nº
4.771, de 15 de setembro de 1965), impõe limites e condições à ocupação
e ao uso das terras que compõem a propriedade (ou posse) imóvel rural.
No art. 1º está previsto:
As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de
interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos
de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem.
§ 1º - As ações ou omissões contrárias às disposições deste Código na
utilização e exploração das florestas são consideradas uso nocivo da
propriedade, aplicando-se, para o caso, o procedimento sumário previsto no Art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil.
132 A gestão florestal plena em Mato Grosso
Por isso, o Código Florestal Brasileiro incorpora o instituto jurídico
“Florestas e demais formas de vegetação (natural) de preservação permanente”, e que tem como propósito proteger os solos (contra a erosão) e as águas
(contra o assoreamento com sedimentos resultantes dos processos erosivos).
A Medida Provisória nº 1.956-50, de 28 de maio de 2000, reeditada
com o mesmo conteúdo normativo, até a MP nº 2.166-67, de 24/08/2001,
e que se encontra vigente, instituiu a figura jurídica das “Áreas de Preservação Permanente”, bem como incorporou, ao Código Florestal, uma
definição legal para Reserva Legal, o que antes não existia, segundo os
seguintes termos:
§ 2º - Para os efeitos deste Código, entende-se por:
II - Área de preservação permanente: área protegida nos termos dos
Arts. 2º e 3º desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a
função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora,
proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.
III - Reserva Legal: área localizada no interior de uma propriedade ou
posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso
sustentável dos recursos naturais, à conservação e à reabilitação dos
processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e
proteção de fauna e flora nativas.
Na sequência, aquelas duas figuras jurídicas serão brevemente examinadas quanto às suas características intrínsecas e sua respectiva localização dentro da propriedade imóvel agrária.
Em seu art. 2º, o Código Florestal estabelece o que segue:
Considera-se de preservação permanente, pelo só efeito desta lei, as
florestas e demais formas de vegetação natural situadas:
a) Ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água, desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima será: (Tabela I).
b) Ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais ou artificiais.5
c) Nas nascentes, ainda que intermitentes, e nos chamados olhos d’água,
5 Segundo dispõe a Resolução Conama 303/2002, (publicada no Diário Oficial da União, DOU, de
13/.../2002), a vegetação natural nas APPs ao redor de lagos e lagoas naturais, localizados em
áreas rurais, deve ser mantida ou restaurada em faixas marginais com, no mínimo, 50 m (para
lagos com área de até 20 ha), ou, no mínimo, 100 m (para lagos com área maior que 20 ha).
Marcos Henrique Machado
133
qualquer que seja a sua localização topográfica, num raio mínimo de 50
(cinquenta) metros.
d) No topo de morros, montes, montanhas e serras.6
e) Nas encostas com declividade superior a 45 graus.
f) Nas restingas, para a fixação de dunas e estabilização de mangues.
g) Nas bordas dos tabuleiros e chapadas, a partir da linha de ruptura
do relevo, em faixas nunca inferiores a 100 m, em projeção horizontal.
h) Em altitude superior a 1.800 m.
Tabela 1. Largura das áreas de preservação permanente (APPs) em
função da largura dos rios.
Largura do rio (em metros)
Menos que 10
Largura da APP (em metros)*
30
Entre 10 e 50
50
Entre 50 e 200
100
Entre 200 e 600
200
Acima de 600
500
* Largura mínima, em cada margem e em projeção horizontal.
** A APP inicia-se no limite do leito maior sazonal ou cota de máxima inundação.
O art. 18 do Código Florestal determina a necessidade da recomposição da vegetação natural original, nas hipóteses consideradas nos incisos
do art. 2º, quando aquela não mais existir, mesmo que apenas parcialmente.
A Reserva Legal é uma determinada parcela da área total de cada
propriedade imóvel rural, coberta por vegetação nativa ou natural.7 Para
efeitos legais, a RL é constituída apenas após a sua averbação à margem
da inscrição da matrícula da propriedade rural no Cartório de Registro de
Imóveis competente.
Segundo o que dispõe o art. 16 do Código Florestal, as seguintes porcentagens da área total de cada propriedade rural devem ser mantidas a título
de Reserva Legal, em diferentes fitofisionomias regiões do território nacional:
6 A Resolução Conama 303/2002 define morro como uma elevação do terreno com altura entre
50 e 300 m em relação à sua base e cujas encostas tenham declividade superior a 30%; topo de
morro é a área delimitada a partir da curva de nível localizada a 2/3 da altura da elevação em
relação à base.
7 Detalhes sobre esta figura jurídica podem ser examinados em Machado (1999, p. 637-644).
134 A gestão florestal plena em Mato Grosso
I - 80% para fitofisionomias florestais, ou 35% para cerrado, na Ama­
zônia Legal;
II - 20% em outras regiões do País;
III - 20% em áreas de campo natural, localizadas em qualquer região
do País.
A lei admite a exploração da vegetação que compõe a RL, mas apenas por meio de cortes seletivos e desde que o proprietário rural elabore
um Plano de Manejo Florestal Sustentável e que sua execução seja autorizada pelo órgão ambiental competente (o IBAMA ou órgão ambiental
estadual). Em qualquer caso, é defeso realizar a supressão (por exemplo,
por meio de corte-raso) da vegetação existente na RL.
Para o cálculo da RL na pequena propriedade ou posse rural familiar, a lei admite considerar os plantios já estabelecidos com espécies exóticas (árvores frutíferas, ornamentais ou industriais), cultivadas em sistema
intercalar ou em consórcio com espécies nativas.8 No entanto, para quaisquer propriedades, quando não mais existir a vegetação na RL, mesmo
que apenas parcialmente, aquela deve ser restaurada com espécies nativas.
Em qualquer caso, o art. 44 do Código Florestal (alterado pela Medida Provisória nº 1.956-50, DOU de 28/05/2000, reeditada, com o mesmo
conteúdo normativo, até a MP nº 2.166-67, DOU de 25/08/2001, e que se
encontra vigente por força da EMC 32, de 11/09/2001) determina que a
recomposição da RL deverá ser realizada adotando-se as seguintes alternativas, isolada ou conjuntamente:
I - pelo plantio, a cada três anos, de no mínimo, 1/10 da área necessária
à sua complementação, com espécies nativas;9
II - pela condução da regeneração natural, desde que autorizada pelo
órgão ambiental competente, após comprovação de sua viabilidade por
meio de laudo técnico, podendo-se exigir que a área seja cercada.
III - pela compensação: na mesma microbacia, e no mesmo ecossistema.
8 O Código Florestal define pequena propriedade ou posse rural familiar como aquela cuja área
não exceda a 150 ha na Amazônia Legal, 50 ha no Polígono das Secas e a leste do Maranhão, e
30 ha nas demais regiões do País.
9 Como exceção àquela regra geral, a lei permite que na restauração da Reserva Legal seja realizado o plantio temporário de espécies exóticas, como pioneiras; visando à restauração do ecossistema original, de acordo com critérios técnicos gerais que ainda deverão ser estabelecidos
pelo Conama.
Marcos Henrique Machado
135
Por sua vez, a Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991, fixa os fundamentos, define os objetivos e as competências institucionais e estabelece as ações
e instrumentos pela Política Agrícola relativamente às atividades agropecuárias, agroindustriais e de planejamento das atividades pesqueira e florestal.
Embora temas referentes à gestão ambiental permeiem todo o texto
desse diploma legal, é no Capítulo VI que diz da Proteção ao Meio Ambiente e da Conservação dos Recursos Naturais, que podem ser encontradas as determinações mais pertinentes a essa análise. Assim, em seu art. 19,
a Lei de Política Agrícola determina que o Poder Público deverá:
I - Integrar a nível de Governo Federal, os Estados, o Distrito Federal,
os Territórios, os Municípios e as comunidades na preservação do meio
ambiente e conservação dos recursos naturais.
II - Disciplinar e fiscalizar o uso racional do solo, da água, da fauna e
da flora.
III - Realizar zoneamentos agroecológicos que permitam estabelecer
critérios para o disciplinamento e o ordenamento da ocupação espacial
pelas diversas atividades produtivas [...].
IV - Promover e estimular a recuperação das áreas em processo de
desertificação.
V - Desenvolver programas de educação ambiental, a nível formal e
informal, dirigidos à população.
VI - Fomentar a produção de sementes e mudas de essências nativas.
VII - Coordenar programas de estímulo e incentivo à preservação das
nascentes dos cursos d’água e do meio ambiente [...].
Parágrafo único - A fiscalização e o uso racional dos recursos naturais
do meio ambiente são também de responsabilidade dos proprietários
de direito, dos beneficiários da reforma agrária e dos ocupantes temporários dos imóveis rurais.
Sem perder de vista o Código das Águas (Decreto nº 24.643, de 10
de julho de 1934), que tem um enfoque econômico e dominial sobre as
águas, como a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, instituiu-se a Política
Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos.
Essa lei estabelece que a água é um bem de domínio público, com valor
econômico e que a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implemen-
136 A gestão florestal plena em Mato Grosso
tação da Política Nacional de Recursos Hídricos assim como para a implementação do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos.10
Em seu art. 3º, a Lei nº 9.433/97 estabelece as diretrizes gerais de ação:
III - A integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental.
V – Articulação da gestão de recursos hídricos com a do uso do solo.
Quanto aos instrumentos, os Planos de Recursos Hídricos incluirão
no seu conteúdo mínimo a análise de alternativas de crescimento demográfico, de evolução das atividades produtivas e de modificações dos padrões de ocupação do solo.
A Lei nº 9.433/97 dispõe, também, sobre a outorga dos direitos de
uso dos recursos hídricos (inclusive de aquíferos subterrâneos), a cobrança
pelo uso da água, assim como sobre a criação e atuação dos comitês de
Bacia Hidrográfica.
A Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, regulamenta o art. 225, § 1º,
incisos I, II, III e VII da CF da 88, e institui o Sistema Nacional de Unidades
de Conservação (SNUC).
Além de estabelecer as categorias, denominações e definições das
Unidades de Conservação (UCS), a Lei do SNUC, como é conhecida, prevê
a obrigatoriedade de que cada UC deva ter um plano de manejo. Salientese que o plano de manejo de uma Unidade de Conservação deve contemplar a área da UC propriamente dita, seu entorno e corredores de biodiversidade adjacentes.
Em seu art.2º, essa lei define zona de amortecimento como “o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão
sujeitas a normas e restrições específicas com o propósito de minimizar os
impactos negativos sobre a unidade”.
Adicionalmente, no art. 25, § 1º, informa-se que o órgão responsável
pela administração da UC estabelecerá normas específicas regulamentando
a ocupação e o uso dos recursos da zona de amortecimento e dos corredores ecológicos de uma UC.
Portanto, cabe registrar que há previsão normativa para o eventual
uso condicionado do solo, para atividades produtivas, em propriedades
rurais localizadas dentro da zona de amortecimento de uma UC.
10 O art. 20 da Lei nº 8.171 /91 também informa que “As bacias hidrográficas constituem-se em unidades básicas de planejamento do uso, da conservação e da recuperação de recursos naturais”.
Marcos Henrique Machado
137
Visando regulamentar as disposições relativas aos instrumentos da
Política Nacional do Meio Ambiente, instituída com a Lei nº 6.938/81, a Resolução Conama nº 001/86 define Impacto Ambiental e exemplifica os empreendimentos que necessitam da elaboração do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA), e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (Rima).
A Resolução Conama nº 237/97 estabelece, exaustivamente, as atividades e empreendimentos que estão sujeitos ao licenciamento e seus
respectivos níveis de competência.
O art. 1º da Resolução Conama nº 001/86 define impacto ambiental
segundo os seguintes termos:
Para, efeito desta Resolução, considera-se impacto ambiental qualquer
alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante
das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam:
I - A saúde, a segurança e o bem-estar da população.
II - As atividades sociais e econômicas.
III - A biota.
IV - As condições estéticas e sanitárias do meio ambiente.
V - A qualidade dos recursos ambientais.
A concessão do licenciamento é feita em etapas, na medida em que
se trata de um processo evolutivo, onde cada fase do empreendimento é
submetida à avaliação pelo órgão ambiental.
Registre-se que impactos ambientais podem ocorrer tanto antes,
como durante e até mesmo depois que o empreendimento tenha entrado
em operação. por isso, as licenças ambientais são divididas, em três categorias distintas:
• Licença Prévia (LP) - É solicitada no início do processo de licenciamento ambiental, na fase de planejamento do empreendimento,
obra ou atividade; quando então o Poder Público procederá a avaliação em relação à situação ambiental e fará exigências em relação
à necessidade de elaboração dos projetos específicos para o caso.
• Licença de Instalação (LI) - É solicitada mediante Licença Prévia.
Nessa fase, serão apresentados os planos e programas ambientais.
Após se obter essa licença, o interessado poderá iniciar a implantação da atividade.
138 A gestão florestal plena em Mato Grosso
• Licença de Operação (LO) - Somente poderá ser requerida após
se obter a LP e a LI. Só nessa fase é que o empreendimento poderá
operar.
A autorização ambiental e/ou florestal difere da licença em virtude de
ser concedida em etapa única e ser específica para uma determinada ação,
permitindo ao requerente implementar, de imediato, a atividade objeto.
Conforme o estabelecido no anexo I, citado no § 1º do art. 2º da
Resolução nº 237/97, editada pelo Conama, dentre as atividades ou empreendimentos que estão sujeitos ao licenciamento ambiental, destacam-se:
• Atividades Agropecuárias: projeto agrícola, criação de animais
como, por exemplo, a suinocultura e os projetos de assentamentos
e de colonização.
• Uso de Recursos Naturais: silvicultura, exploração econômica da
madeira, ou lenha e subprodutos florestais; atividade de manejo de
fauna exótica e criadouro de fauna silvestre: utilização do patrimônio genético natural; manejo de recursos aquáticos vivos: introdução
de espécies exóticas e/ou geneticamente modificadas e uso da diversidade biológica pela biotecnologia.
Ocorre que, em se tratando de gestão florestal, o Código Florestal,
alterado pela Lei Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006, prevê pela nova
redação do art. 19 que:
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exploração de florestas e formações sucessoras, tanto de domínio público como de domínio privado, dependerá de prévia aprovação pelo
órgão estadual competente do Sistema Nacional do Meio Ambiente SISNAMA, bem como da adoção de técnicas de condução, exploração,
reposição florestal e manejo compatíveis com os variados ecossistemas
que a cobertura arbórea forme.
Essa regra transferiu, na sua essência, a gestão florestal aos estados,
estabelecendo um gerenciamento absoluto ou completo sobre a exploração
vegetal através de uma divisão de competência muito semelhante ao que
ocorre no Sistema Único de Saúde, cuja gestão é tripartida entre a União,
Estados e municípios, mas por meio de uma contratualização se transfere
ao município, com financiamentos pactuados, a gestão plena da saúde.
Marcos Henrique Machado
139
Mato Grosso foi o primeiro Estado brasileiro a receber e assumir a
gestão florestal plena, a partir de uma experiência compartilhada na forma
de cooperação técnica que está sendo consolidada pela aplicação de atos
normativos (leis, decretos, portarias) editados no âmbito estadual.
Essa gestão florestal plena, inédita e em evolução, é, seguramente,
um dos principais elementos de autonomia na gestão ambiental do Estado
de Mato Grosso, que não apenas permite ao órgão estadual gerenciar a
atividade de exploração vegetal, não apenas decorrente do inato poder
de política e regulação, mas, sobretudo, porque exerce sobre o setor a
tributação, cuja pauta de comercialização, transporte e industrialização da
madeira é por ele fixada.
CONCLUSÃO
O presente artigo pretendeu mostrar a importância e as consequências socioambiental-econômicas no Estado de Mato Grosso da autonomia
ambiental na área florestal, sem perder de vista o interesse tributário inerente à atividade de exploração florestal.
Acredita-se que, a partir de um diagnóstico histórico, cronológico e
crítico sobre a gestão florestal plena em Mato Grosso, seja possível se estabelecer os pressupostos para que assegurem verdadeiramente a sustentabilidade ambiental, conjugando a viabilidade econômica e a incidência
tributária justa, inerentes à atividade de exploração florestal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Disponível em: <www.presidencia.gov.br>. Legislação.
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141
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MATO GROSSO. Lei Complementar n. 214, de 23 de junho de 2005. Disponível em:
<www.sema.mt.gov.br>. Atos Normativos.
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sema.mt.gov.br>. Atos Normativos.
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Estado de Mato Grosso. Disponível em: <www.sema.mt.gov.br>. Atos Normativos.
_____. Lei Complementar n. 327, de 22 de agosto de 2008 - MT LEGAL. Disponível
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SÍTIOS CONSULTADOS
www.mma.gov.br
www.sema.mt.gov.br
www.ibama.gov.br.
www.florestabrasil.com.br
www.ambientebrasil.com.br
www.arvore.com.br
A COPA DE 2014 E A REALIDADE ESTRUTURAL
NO ATENDIMENTO AO TURISTA ESTRANGEIRO
NA RELAÇÃO CONSUMERISTA EM CUIABÁ
Orivaldo Peres Bergas1
Jéssika Matos Paes de Barros2
Elza de Souza Dias3
INTRODUÇÃO
Pensando na repercussão que despertaria a realização do evento
da Copa do Mundo que acontecerá na cidade de Cuiabá em 2014, empreendeu-se uma pesquisa para abordar alguns aspectos relevantes, quanto
às perspectivas e problemas atuais a serem solucionados ou, ao menos
amenizados, no comércio em Cuiabá, sob o aspecto das relações consumeristas.
Um dos questionamentos que levantamos é se o comércio local
atende às expectativas necessárias ao atendimento do turista estrangeiro
para a Copa em 2014 sob a ótica do atendimento jurídico, a qualidade
dos produtos de consumo, a solução nos litígios consumeristas e quanto à
barreira do idioma.
Pretendemos demonstrar o que está satisfatório e o que ainda está
para ser melhorado de imediato na realização de um atendimento de qualidade dentro dos padrões aceitáveis tanto em nível de comércio local,
quanto em nível jurídico.
Buscamos descobrir se as sociedades empresariais locais, bem como
seus funcionários, estão preparados para atender e interagir com o turista
estrangeiro em suas necessidades, se conhecem os produtos que vendem,
1 Professor universitário, graduado em Direito pela Faculdade Afirmativo, graduado em Ciências
Sociais, História e Geografia FAFIPA-PR, mestre em Agricultura Tropical - UFMT, mestrando em
Gestão Educacional INSET-SP, especialista em Metodologia do Ensino Superior - FGV.
2 Professora de Direito do Consumidor, especialista em Direito Empresarial; especialista em Direito Processual Civil; especialista em Docência do Ensino Superior; mestre em Educação pela
Universidade de Cuba, mestre em Educação pela UNOESTE-SP; doutoranda em Direito pela
Universidade da Espanha.
3 Graduada em Direito pela UFMT, advogada, superintendente do Fundo de Assistência Parlamentar da Assembleia Legislativa de Mato Grosso.
144 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro...
se possuem condições de oferecer ajuda na escolha do produto e, principalmente, condições para solucionar problemas advindos da má qualidade
eventual de um produto ou mau funcionamento deste, direcionando o
cliente para atendimento jurídico do Procon ou, ainda, solucionando o
problema sem a necessidade de prosseguir a instância judicial.
Os procedimentos metodológicos caracterizaram-se em uma abordagem ampla, com pesquisa de campo com a finalidade de obter informações e conhecimento acerca de um problema, e possibilitou descobrir
novos fenômenos e as relações entre eles, por meio da qual se dá a superação de hipóteses sobre visões parciais, caracterizando, de modo geral, uma
abordagem epistemológica privilegiando as dimensões analítica, empírica
e normativa. Ficou determinada a realização da pesquisa exploratória consistindo em investigações cuja principal atribuição foi a formulação de
questões ou de um problema.
A pesquisa foi estruturada com base em um questionário e entrevistas
em 22 lojas de diferentes pontos comerciais, tais como: o centro da cidade e os
shoppings. Entre a diversidade de produtos podemos citar lojas de calçado,
vestuário, alimentação, eletrodoméstico, transporte, perfumaria e livraria.
Sob o ponto de vista histórico, podemos dizer que a última Copa na
América do Sul foi no ano de 1978 na Argentina. Volta, portanto, a copa
a ser realizada após 36 anos no continente sul-americano. A primeira no
Brasil havia sido a de 1950, há 64 anos.
Não é possível ainda se ter uma dimensão exata do que realmente
será a Copa de 2014 para o Estado de Mato Grosso e, principalmente, para
sua capital, porque os estudos ainda estão sendo realizados e os resultados
só poderão ser avaliados após um detalhamento de critérios administrativos, mas podemos entender que, para se preparar a infraestrutura necessária, os investimentos públicos corresponderão com uma das maiores
participações para o bom resultado desse evento.
Esses investimentos vão interferir na capacidade dos serviços no comércio, na rede hoteleira de Cuiabá, devido aos turistas nacionais e internacionais, além do marketing regional do lugar, quanto às suas belíssimas
características ambientais e turísticas (Chapada dos Guimarães, Pantanal e
Amazônia), além, é claro, de uma grande geração de empregos.
Sobre o fato de Cuiabá ter sido escolhida como sede da Copa de
2014, João Havelange acredita que haverá grandes reflexos para o Pantanal, como:
Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias
145
Um impacto interno e externo. Principalmente em função daqueles que
aqui vierem e conhecerem o que essas regiões podem apresentar, oferecer, sua flora, fauna. Tudo isso as torna inesquecíveis para o turista. E
isto traria, no decorrer dos anos, mais turismo e mais desenvolvimento
para cada região.4
O ministro do Turismo, Luiz Barretto, afirmou que a realização da
Copa de 2014 no Brasil “representa uma “janela de oportunidades” para o
turismo brasileiro. É um evento que mobiliza não apenas uma cidade, mas
todo o Brasil”.5
A fala do ministro foi reafirmada por Ray Whelan, consultor da
Fifa: “será a grande oportunidade de o Brasil mostrar o que tem a
oferecer, as ações para “vender” o Brasil vão se estender durante vários anos antes do evento e os resultados vão perdurar pelos 30 anos
subsequentes”.6
O evento da Copa, um espetáculo vislumbrante, é um movimento
que garante aglutinar valores, oportunidades e significados movidos por
expectativas e propriamente ao consumo massivo de serviços e bens culturais produzidos essencialmente na direção da movimentação midiática ao
momento em questão, o encantamento aumenta conforme se aproxima o
momento da abertura do evento.
Também, por formar e (re)constituir intercomunicações sociais, hábitos e estilos de vida que ordenam valores e viabilizam os caminhos da
lógica mercadológica que rege a sociedade do consumo.
Para Walter Feldmann, o esporte vai ocupar um papel determinante
no país, na próxima década.
Há dez anos o país persegue melhorias sociais e através do esporte
temos essa alavanca de transformação. Não podemos perder a oportunidade de transformar um projeto esportivo em um projeto de país. A
4 RIVOLI, Luciana; ROQUE, Geraldo; CHAGAS, Celso. João Havelange fala sobre a Copa de 2014
e os desafios que o Brasil tem pela frente. Assessoria de comunicação da Confederação Nacional
do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Disponível em: http://www.portaldocomercio.org.
br/media/Havelange2.pdf. Acesso em: 18 out. 2009.
5 BARRETO, Luiz. Evento será positivo para o turismo brasileiro. Disponível em: <http://www.
copanopantanal.com.br/index.asp?p=noticia&id_noticia=133>. Acesso em: 9 abr. 2010.
6 WHELAN, Ray. Evento será positivo para o turismo brasileiro. Disponível em: <http://www.
copanopantanal.com.br/index.asp?p=noticia&id_noticia=133>. Acesso em: 9 abr. 2010.
146 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro...
Copa diz respeito à economia, mas, sobretudo ao desenvolvimento e à
qualidade de vida.7
Para Barretto, “hospitalidade, calor humano e talento para o futebol
são fatos. O grande desafio do Brasil e dos brasileiros é dar exemplo de
gestão, organização e administração”.8
O executivo Márcio Santiago explica que, no campo de ações debatidas, discute-se muito a nova configuração na qual:
O turismo passa a ser visto como setor determinante para a manutenção da economia mundial, agindo intrinsecamente desde a geração de
empregos a melhorias na infraestrutura, e mais recentemente fomos
notados como fator preponderante na preservação ambiental. As trocas
de experiências e visões estratégicas são oportunidades de desenvolvimento, melhorias econômicas e sociais e exposição e promoção junto
à comunidade mundial.9
A Copa é um instrumento social interagindo de forma política em
todo o cenário internacional, devendo fortalecer os laços e consolidando a
imagem do Brasil e de Mato Grosso na geopolítica mundial.
A imprensa e o governo, de forma geral, divulgam que o Estado
de Mato Grosso vem sendo o Estado que mais cresce no Brasil e mantém a maior taxa de crescimento nas exportações, subindo a cada ano
posições no ranking dos maiores exportadores brasileiros, ocupando
atualmente a sexta colocação, respondendo por aproximadamente 6,5%
do total das vendas externas do país e mantendo uma das maiores taxas de crescimento nacional, com um superávit na balança comercial
acumulado em torno de US$ 3,34 bilhões, correspondendo a 36% do
saldo comercial do país.
7 FELDMANN, Walter. Márcio Santiago será coordenador dos Conventions nas 12 cidades da
Copa. Jornal BrasilTuris. Informativo da indústria turística brasileira. Caderno de Políticas do
turismo. Disponível em: <http://www.brasilturis.com.br/canal_materia.neo?Materia=10565>.
Acesso em: 9 abr. 2010.
8 BARRETO, Luiz. Seminário sobre a Copa identifica proposta. Jornal BrasilTuris. Informativo da
indústria brasileira. Caderno de Políticas do turismo. Disponível em: <http://www.brasilturis.
com.br/can al_materia.neo?Materia=10565>. Acesso em: 9 abr. 2010.
9 SANTIAGO, Márcio. Márcio Santiago será coordenador dos Conventions nas 12 cidades da
Copa. Jornal BrasilTuris. Informativo da indústria turística brasileira. Caderno de Políticas do
turismo. Disponível em: <http://www.brasilturis.com.br/canal_materia.neo?Materia=10565>.
Acesso em: 9 abr. 2010.
Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias
147
Além da preocupação com a infraestrutura temos também que nos
preocuparmos com a qualificação, tanto em nível dos receptivos turísticos,
como em nível de relacionamento comercial, como atendimento aos estrangeiros em compras, serviços, transportes, hospedagens e nas riquezas
socioculturais regionais.
Para uma adequada convivência dos torcedores com os eventos dos
jogos, a Fifa exige o bloqueio de uma área de 2 quilômetros específica
como estrutura para os torcedores (World Cup Mile ou Fan Mile), onde são
disponibilizadas telas gigantes para projeção dos jogos com estrutura de
apoio, como: sanitários, alimentação, seguranças, posto de saúde, transporte etc., denominados Fans Gardens ou Fans Areas. Esses serviços têm
sido utilizados nas Copas obtendo sucesso absoluto.
Tanto a sociedade quanto o governo, empresários e profissionais de
Mato Grosso devem se mostrar ambientalmente conscientes e desenvolver
uma série de ações para a Copa de 2014, para obter o sucesso necessário
no intuito de mostrar uma imagem vencedora e campeã.
Periodicamente os consumidores nacionais vêm se conscientizando da importância e da necessidade de conhecimento sobre o Código
de Defesa do Consumidor (CDC), como instrumento de amparo aos seus
direitos e na relação de consumo. É sem dúvida um mecanismo inserido na sociedade para disciplinar deveres e obrigações aos produtores e
fornecedores de bens e serviços, podendo esse instrumento ser um importante passo na busca de oferecer também ao turista estrangeiro esse
amparo legal.
A Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, que criou o Conselho Nacional de Imigração, define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, e
em seu art. 1° diz: “em tempo de paz, qualquer estrangeiro poderá, satisfeitas as condições desta Lei, entrar e permanecer no Brasil e dele sair,
resguardados os interesses nacionais”.10
Nossa Constituição Federal, de 1988, tem como princípios a proteção de uma vida digna a quem compartilha o espaço nacional sem
distinção e sem discriminação, devendo todos compartilhar o espaço
jurídico de Estado Democrático de igual forma em direitos e deveres,
tendo como base de produção a livre iniciativa, gerando consumo e
entretenimento.
10 BRASIL. República Federativa do Brasil. Estatuto do Estrangeiro. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/html/legislacao>. Acesso em: 19 jun. 2007.
148 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro...
Além disso, tem como inovação a previsão legal dos direitos difusos
e coletivos, com base constitucional na busca da igualdade, em especial, o
direito do consumidor, conforme trata no:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
XXXII, o Estado promoverá, na forma da Lei, a Defesa do Consumidor,11
Torna o direito do consumidor em direito fundamental, dando destaque à defesa do consumo ou liberdade ao capitalismo. A relação de
consumo está também contemplada nos princípios gerais sobre a ordem
econômica, trazendo no art. 170 da CF as seguintes relações:
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na
livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...]
V- defesa do consumidor [...].12
O Código de Defesa ao Consumidor (CDC), em seu art. 4º, estabelece uma Política Nacional de Relações de Consumo e no art. 5º cria
mecanismos para a execução desta política.
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo
o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua
dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e
harmonia das relações de consumo;
Art. 5º - Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo,
contará o Poder Público com vários instrumentos [...].13
11 BRASIL. República Federativa do Brasil. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/html/legislacao. Acesso em: 21 jun. 2007.
12 Idem (Internet).
13 BRASIL. República Federativa do. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/html/legislacao>. Acesso em: 28 jun. 2007.
Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias
149
É de fácil compreensão que o direito do consumidor deve ser obedecido em todo o território nacional e por todos que, de uma forma ou de
outra, transitem nele, nacionais ou estrangeiros naturalizados ou turistas
que nele exerçam atividades econômicas passivas ou ativas sob a égide da
livre iniciativa, tendo tanto os empreendimentos, como seus consumidores, que respeitar as regras constitucionais e infraconstitucionais adotadas
dentro do nosso país.
Se o turista é sujeito de direito, estando em território nacional, também está sujeito às obrigações aqui previstas em nossas leis, não constituirá ato lícito incitar o desconhecimento da lei. São conferidos os mesmos
direitos que são dados ao brasileiro e ao estrangeiro residente.
Com esse reconhecimento e em conformidade com o texto constitucional, que reconheceu explícita e, implicitamente, a vulnerabilidade e
a hipossuficiência dos consumidores, é que foi editada a Lei nº 8.078 em
11 de setembro de 1990, que consagrou finalmente os Direitos do Consumidor no Brasil.
Estudos realizados pela Organizações das Nações Unidas (ONU),
durante todos os crescimentos históricos das atividades industriais e das
práticas comerciais, verificadas a partir do século XX, e sensível com o
aspecto social desse fenômeno, acreditou fazer-se necessário criar normas
mínimas que pudessem garantir um justo equilíbrio de forças entre produtores e consumidores de bens e serviços, levando-se em consideração os
interesses e necessidades entre todos os países filiados à ONU, em busca
de desenvolvimento sustentável entre produções socioeconômicas, além
da reciprocidade no tratamento do ingresso de estrangeiros. Essas normas
estão na base da “Resolução 39/248, de 16 de abril de 1985, sob a forma
de diretrizes gerais para a proteção do consumidor”.14
Outro órgão importante no desenvolvimento comercial é o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), o qual tem desenvolvido diversos projetos e iniciativas comuns com outros países, principalmente
da América Latina, por compreender que “a defesa do consumidor somente
pode ser efetiva se coordenada para além do âmbito do Estado nacional”.15
14 ONU. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 39/248-ONU, de 16/04/85. Disponível
em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/view/24028/23591>.
Acesso em: 28 jun. 2010.
15 BRASIL. República Federativa do Brasil. Consumidor do Mundo: direito do consumidor. Ministério da Justiça. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/Senasp/data/Pages/MJF17123B2ITEMIDC9360EA3FFE6 4AB29E2179E0253CE2DCPTBRIE.htm>. Acesso em: 19 jun. 2010.
150 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro...
Esses projetos envolvem temas como proteção do consumidor no
comércio eletrônico, proteção de dados pessoais, construção de um sistema de informações latino-americano, bem como a promoção da harmonização normativa e do fortalecimento da legislação da defesa do consumidor na América Latina.
O DPDC participa também de comissões e fóruns internacionais para
a discussão de temas estratégicos e formulação de políticas comuns
para a defesa do consumidor, dentre os quais se destacam, no âmbito
do Mercosul, o Comitê Técnico nº 07 “Defesa do Consumidor” (CT07), cuja finalidade é harmonizar conceitos básicos das legislações de
proteção ao consumidor dos países do Bloco e o SGT-13, que constitui
grupo de trabalho que visa à implementação de normas comuns acerca
de comércio eletrônico.16
O Brasil recebe anualmente a visita de muitos estrangeiros, seja a
trabalho ou turismo. O governo desenvolve um Programa Nacional de
Qualidade e Produtividade (PBQP). As ações constam de: conscientização, educação do consumidor e do usuário, divulgados através do Guia
do Consumidor Estrangeiro, que tem o propósito de orientá-los temporariamente quanto aos seus direitos e responsabilidades, bem como
estabelecer canais de comunicação no consumo de bens e serviços em
nosso país.
Esse guia baseia-se na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990,
conhecida como Código de Defesa do Consumidor, que é um instrumento
jurídico moderno e eficaz, a serviço dos seus direitos, tendo como base
jurídica a Constituição brasileira preconizando como um dos deveres do
Estado a defesa do consumidor.
A política nacional de proteção ao consumidor é coordenada, em
todo o Brasil, pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) coordenada pelo Ministério da Justiça, e executada por
diversos órgãos públicos, da União, dos Estados e dos Municípios, que
fiscalizam e controlam a produção, industrialização, distribuição e a
16 BRASIL. República Federativa do Brasil. Consumidor do Mundo: direito do consumidor. Ministério da Justiça. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/Senasp/data/Pages/MJF17123B2ITEMIDC9360EA3FFE6 4AB29E2179E0253CE2DCPTBRIE.htm>. Acesso em: 19 jun. 2010.
Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias
151
publicidade dos produtos e serviços e pelas entidades privadas de defesa do consumidor. Todos integram o Sistema Nacional de Defesa do
Consumidor (SNDC).17
O conteúdo do guia dá ênfase especialmente no que diz respeito
aos direitos básicos, ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e
à reparação de danos, complementado pela transcrição da legislação
vigente, aplicável aos produtos e serviços normalmente consumidos
pelo estrangeiro temporariamente no país, como serviços, hotelarias e
transportes.
As principais atribuições e responsabilidades do SNDC, Dec. nº
2.181/97, é dar proteção ao consumidor estrangeiro, orientar e analisar
suas consultas, denúncias, reclamações e sugestões no âmbito federal, e
dos Procons e similares nos Estados e municípios.
De acordo com o Código de Defesa do Consumidor e do Decreto
2.181/97, os Procons são organismos que têm a função de intervir nas
relações de consumo em nível municipal, buscando harmonizá-las, protegendo os direitos do consumidor.
Por ser um órgão integrante do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, cabe ao Procon planejar, elaborar, propor, coordenar e executar a
política de proteção e defesa do consumidor em nível municipal.
Deve receber, analisar, avaliar e apurar consultas e denúncias de
consumidores, ou entidades que os representam, processando as reclamações e encaminhamentos a fim de determinar soluções. Cabe-lhe, ainda,
fiscalizar as relações de consumo e desenvolver atividades que visem esclarecer, conscientizar, educar e informar o cidadão sobre seus direitos e
deveres, enquanto consumidor.
O nosso ordenamento jurídico estabelece também em sua conjuntura a efetivação da reparação dos danos como direito fundamental, como os
que estão previstos em nossa Constituição no art. 5º, incisos:
V - é assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, além de
indenização por dano material, moral ou à imagem;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
17 BRASIL. República Federativa do Brasil. Guia do Consumidor Estrangeiro. Ministério da Justiça.
Disponível em: http://portal.mj.gov.br/Senasp/data/Pages/MJF17123B2ITEMIDC9360EA3FFE6
4AB29E2179E0253CE2DCPTBRIE.htm. Acesso em: 19 jun. 2010.
152 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro...
das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação.18
A efetiva reparação de dano é considerada como plena satisfação
requerida sem limites legais ou de restrição de responsabilidade na relação
de consumo, também prevista no CDC em seu art. 6º “são direitos básicos
do consumidor” [...] inciso: VI: “a efetiva prevenção e reparação de danos
patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”.19
O consumidor conta com a Justiça comum, bem como os Juizados Especiais, que têm competência para decidir conflitos relativos a direitos patrimoniais, desde que o valor da causa não ultrapasse 40 salários mínimos. Se o
valor for inferior a 20 salários, o cidadão não necessita constituir advogado.
As Promotorias de Justiça, órgãos do Ministério Público, são responsáveis pela garantia do cumprimento da legislação que protege o consumidor. Atuam nas questões coletivas que envolvam interesse social. Em muitos
estados existem Delegacias de Polícia especializadas no atendimento, que
atuam na repressão dos crimes praticados contra o consumidor estrangeiro.
A ação na Justiça pode ser individual ou em grupo, se várias pessoas
sofreram um mesmo tipo de dano previsto no art. 81 do CDC: “a defesa
dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo [...]”.20
Se o dano for coletivo, os órgãos de proteção ao consumidor, o
Ministério Público ou as associações de consumidores poderão, em nome
próprio, ajuizar ação em defesa dos lesados.
Os aspectos mais importantes do código, sem dúvida, estão na sistematização da defesa dos consumidores, possibilitando a reparação dos
danos causados. Outro aspecto importante é o de orientação dos consumidores como prevenção e proteção nas relações de consumo.
Os serviços mais utilizados pelos estrangeiros no país, enquanto
consumidores, são: transportes, hotelarias e alimentação, e o CDC não
trata apenas dos direitos básicos do consumidor. São também direitos do
consumidor o que prevê o art. 6º:
18 BRASIL. República Federativa do Brasil. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/html/legislacao>. Acesso em: 21 de jun. 2007.
19 BRASIL. República Federativa do Brasil. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/html/legislacao>. Acesso em: 28 jun. 2007.
20 BRASIL. República Federativa do Brasil. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/html/legislacao>. Acesso em: 28 jun. 2007.
Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias
153
Proteção da vida e da saúde, segurança; educação para o consumo;
liberdade de escolha de produtos e serviços; informação clara sobre
o produto; proteção contra publicidade enganosa e cláusulas abusivas; modificação das cláusulas contratuais; indenização e reparação de
danos; acesso à Justiça e administrativos; facilitação de defesa de seus
direitos, adequada prestação de serviços públicos.21
Receber um estrangeiro no país é um direito e não um dever da
nação, por isso a situação jurídica é regulada pela Lei 6.815, de 1980,
denominado “Estatuto do Estrangeiro”, com as alterações da Lei 6.984/81
estabelecendo a liberdade ao entrar, permanecer ou sair do Brasil, desde
que respeitados os interesses do país.
Segundo Fraga, “estrangeiro é todo aquele que não tem nacionalidade do Estado em cujo território se encontra”.22
O “turista estrangeiro” é aquele que vem para o país, em caráter
de visita, sem finalidade imigratória, e sem intenção de exercer atividades
econômicas remuneratórias e permanentes.
O conteúdo apresentado teve avaliação analítica quantitativa e qualitativa, e na comparação dos resultados, entende-se que há necessidade
de mudanças de atitudes, principalmente quanto aos conhecimentos jurídicos e administrativos de proteção ao consumidor e de idiomas estrangeiros. Na realização da pesquisa, algumas questões puderam ser respondidas
de forma satisfatória, tais como:
Das empresas pesquisadas 36% possuem uma média acima de 30
funcionários, sendo a maioria com idade que varia de 21 a 30 anos. Em termos empregatícios isso indica que são empresas de bom porte e estrutura
para o atendimento ao público.
21 Idem (internet).
22 FRAGA, Mirtô. O Novo Estatuto do Estrangeiro Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
154 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro...
Figura 1 – Nível de escolaridade dos funcionários
A maioria dos empregados possui ensino médio completo (figura
1). As empresas que responderam que possuem funcionários que falam
outros idiomas, geralmente se trata do gerente das lojas, porém os funcionários que têm um contato direto com o público não falam outros idiomas.
Dos que falam outros idiomas, o inglês é o predominante, e em segundo lugar, o espanhol (línguas universais). Observamos que 44% das empresas não possuem nenhum funcionário com esta capacitação (figura 2).
Figura 2 – Outros idiomas falados
Quando se trata das modificações que deverão ser realizadas para
aperfeiçoar seus empregados para melhor atendimento ao estrangeiro,
cerca de 84% opinam que é mais importante a realização de cursos de
capacitação e de idiomas para seus próprios empregados do que apenas a
contratação de novos empregados com conhecimento de outros idiomas,
Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias
155
uma vez que já tiveram os treinamentos e aperfeiçoamentos necessários
nos serviços e produtos oferecidos (figura 3).
Figura 3 – Melhorias no atendimento
Ao ser abordado o assunto acerca do Direito do Consumidor descobrimos que a grande maioria nunca participou de nenhum curso sobre
esta temática e que não tem nenhum tipo de experiência de viagem ou de
trabalho no exterior (figura 4).
Figura 4 – Capacitação em Direito ao Consumidor
Questionados sobre quais são as maiores dificuldades que os estrangeiros poderão encontrar no comércio em Cuiabá, é visível e incontestável
que a maior dificuldade está relacionada ao idioma e não ao produto e
156 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro...
ao preço (figura 5). Salientamos que a obrigação principal no tratamento
linguístico cabe ao turista, que deve se adequar às culturas locais.
Figura 5 – Dificuldades do comércio local
Com relação às informações de serviços e produtos, como cardápios
e preços, a tendência deverá ser de que as empresas deverão adequá-los
com informações no mínimo ao idioma inglês e na moeda dólar. Os governos locais também devem se preocupar em divulgar informações, mapas,
endereços, locais turísticos, nesta mesma comunicação, já que tem sido a
mais difundida no mundo.
Quando o assunto é reclamação por estrangeiros, houve certa dúvida, em relação à autoridade competente para solucionar estes litígios consumeristas, muitos não sabem para onde encaminhar o estrangeiro (figura 6).
Figura 6 – Para onde encaminhar o estrangeiro ou encaminhamento
do estrangeiro
Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias
157
Esse é um tema que precisa ser mais divulgado por meio de órgãos
governamentais, orientações pelos Procons, processos de informações
midiáticas e, mesmo em nível comercial e social. Apesar de isso poder
trazer um desconforto às instituições comerciais, poderá dar, simultaneamente, segurança a essa clientela exigente.
Cerca de 59% das empresas não possuem um setor especializado
para atendimento ao estrangeiro, porém, com a aproximação desse evento
internacional, as empresas que desejam oferecer um atendimento e serviço
de mais qualidade deverão preocupar-se com esse tipo de contratação, e
provavelmente a temporária terá predomínio principalmente para atender
à demanda nos momentos de ápice do evento.
Na opinião dos entrevistados é fundamental uma cartilha sobre Direitos do Consumidor em outros idiomas (figura 7).
Informamos que essa cartilha já existe é o “Guia do Consumidor
Estrangeiro”. Além do idioma nacional, há duas versões, uma em inglês e
outra em espanhol, e encontra-se no site do Ministério da Justiça http://
portal.mj.gov.br.
É preciso dar maior divulgação desse guia, pois ele é desconhecido
para a maioria da sociedade.
Figura 7 – Cartilha para o estrangeiro
A maioria dos turistas que vem para Mato Grosso são brasileiros de
outras regiões do país, embora o Estado seja muito promissor em apresentar várias opções turísticas, o comércio local recebe poucos turistas internacionais, não possuindo uma retrospectiva de experiências.
158 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro...
Analisando as perspectivas para o comércio em 2014 (figura 8), percebemos que na visão dos lojistas, em relação à copa, equivale-se em
igual valor tanto em oportunidade quanto ao desenvolvimento, vivem uma
expectativa animadora.
Figura 8 – Perspectiva para o comércio em 2014
Entretanto, oportunidade pode-se ter como indicativo de opções
para resolver um problema, a qual terá uma plataforma de decisões delimitadas por soluções realmente escolhidas.
Enquanto desenvolvimento entende-se por um processo que implica uma mudança, uma evolução, um crescimento e um avanço.
Tanto as oportunidades quanto o desenvolvimento que a Copa poderá trazer têm sido motivo de muita atuação da sociedade e, ao se aproximar, tende a ser mais intensa a participação na busca de benefícios para o
turismo e o desenvolvimento econômico de Mato Grosso, que está tendo
o grande privilégio de ter sido escolhido como uma das sedes pela Fifa.
O desenvolvimento está diretamente ligado ao conhecimento que
o Estado poderá implementar com os benefícios que o evento tradicionalmente conduz e cria, e não apenas a uma posição casuística. Portanto,
os investimentos só serão justificados para a sociedade e o Estado se os
benefícios permanecerem mesmo com o encerramento do evento internacional.
Orivaldo Peres Bergas / Jéssika Matos Paes de Barros / Elza de Souza Dias
159
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendemos que a aplicação correta do Código de Defesa do Consumidor cria um sistema de responsabilidade e de regras próprias no direito e garante a hipossuficiência dos consumidores. Esse é sem dúvida um
instrumento de conhecimento para as atividades de turismo e recreação, o
qual pode envolver estrangeiros e a eles possibilitar a aplicação de normativas jurídicas que possam garantir além da satisfação, do lazer de qualidade, a confiabilidade em um sistema jurídico nacional.
A interação, proteção e conhecimento do consumidor estrangeiro
com os órgãos de defesa do consumidor, baseados nas relações de consumo e serviços, são de fundamental importância. Os consumidores estrangeiros devem manifestar-se sempre que se sentirem lesados, e os órgãos
de administração devem oferecer suporte a estes, pois, assim, além de os
turistas estrangeiros terem seus direitos assegurados, os órgãos também
estarão contribuindo para o aperfeiçoamento da qualidade dos produtos e
serviços disponíveis nos mercados nacional e regional.
Se o setor empresarial, a sociedade e o Estado ainda se encontram
despreparados para receber um evento de tal porte internacional, é necessário começar a preparação urgentemente dos investimentos materiais
e dos recursos humanos, como qualificação de mão de obra, capacitação,
e informações quanto aos direitos e deveres em relação a turistas para a
realização de um resultado qualitativo e que os investimentos aplicados
possam ser importantes na continuidade, no desenvolvimento de programas sociais, após o encerramento do evento. Tanto os programas quanto
os benefícios do evento devem continuar. Cabe aos organizadores e ao
governo listarem os programas e os critérios que possam trazer benefícios
para a sociedade.
Concluímos ainda que deverá ser reconhecido o mínimo de direitos
aos estrangeiros quando os estados permitirem a entrada destes em seu
território, pelo exercício da personalidade e do respeito aos direitos humanos, sob pena de responsabilização internacional. Cabe salientar também
que o Judiciário deverá desempenhar um papel importante para dar uma
boa e rápida resposta aos possíveis conflitos existentes na relação consumerista, devendo realizar mudanças na estrutura jurídica de atendimento
otimizado, necessário para as soluções.
160 A copa de 2014 e a realidade estrutural no atendimento ao turista estrangeiro...
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em: 9 abr. 2010.
Acesso
FENÔMENO BULLYING: CONSEQUÊNCIAS
PSICOLÓGICAS E JURÍDICAS1
Sonia Cristina de Oliveira2
Edison Pereira Prado3
INTRODUÇÃO
Este artigo expõe um tema considerado atualmente um grande vilão
das relações interpessoais, principalmente entre crianças e adolescentes –
o bullying. Este pode ser considerado um tipo de violência cruel, proposital e sistemática na convivência humana, se tornou um problema mundial
pela complexidade de sua identificação, intervenção e combate. Portanto,
apresentamos uma breve contextualização histórica e conceitual e algumas possíveis causas, formas de prevenção, consequências, por fim, breve
pontuação a respeito das consequências jurídicas com algumas sugestões
e reflexões acerca do tema.
DESENVOLVIMENTO
Um grande desafio na atualidade, para profissionais de várias áreas
do conhecimento, tem sido identificar e intervir em algum tipo de violência,
que mesmo sendo antiga, apenas nos últimos 30 anos começou a ser pesquisada com olhar interdisciplinar e científico, em decorrência de seu notório aparecimento e sequelas produzidas no relacionamento interpessoal.
De acordo com Silva, desde a década de 80, na Europa, os pesquisadores iniciaram estudos para estabelecer a diferença entre as brincadeiras
1 Este artigo tem como referência a monografia defendida na Universidade de Cuiabá – Unic em
junho de 2010, sob o título “Prática do Fenômeno Bullying: medidas de Prevenção e Combate”
2 Psicóloga no Estado de Mato Grosso. Mestre em Educação pela UFMT. Professora no Curso de
Direito e orientadora de monografia da Universidade de Cuiabá - Unic.
3 Acadêmico do décimo semestre do Curso de Direito, turma CN – formandos 2010 – da Universidade de Cuiabá - Unic.
164 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas
naturais e saudáveis, típicas da vida estudantil, daquelas com requinte de
crueldade e que extrapolam os limites de respeito e tolerância pelo outro.4
Conforme a autora, é comum crianças e adolescentes brincarem,
“zoar”, por apelidos uns aos outros, tiram “sarros” dos demais e de si
mesmos, e assim dão muitas risadas e se divertem, mas, quando as brincadeiras são realizadas com perversidade, elas se tornam verdadeiros atos
de violência, que ultrapassam os limites suportáveis de convivência. Silvia
explica que:
As brincadeiras normais e sadias são aquelas nas quais todos os participantes se divertem. Quando apenas alguns se divertem à custa de
outros que sofrem, isso ganha outra conotação, bem diversa de um simples divertimento. Nessa situação específica, utiliza-se o termo bullying,
abrange todos os atos de violência (física ou não) que ocorrem de forma intencional e repetitiva contra um ou mais alunos, impossibilitados
de fazer frente às agressões sofridas.5
A violência provocada por bullying tornou-se um problema mundial
nas escolas, palavra ainda pouco conhecida, de origem inglesa e sem tradução no Brasil, utilizada para qualificar comportamentos violentos no âmbito escolar, entretanto, ocorre também em vários contextos além do escolar,
tais como nas famílias, nos locais de trabalho, denominado de assédio moral, asilos, enfim, em lugares onde acontecerem as relações interpessoais.
No dicionário, encontramos as seguintes traduções para a palavra bully: indivíduo valentão, tirano, mandão e brigão. E a expressão
bullying significa um conjunto de atitudes de violência física e/ou psicológica, de caráter intencional e repetitivo, praticado por um bully agressor, contra uma ou mais vítimas que se encontram impossibilitadas de se
defender. Está diretamente ligado ao “abuso de poder, à intimidação e à
prepotência”, são algumas das estratégias adotadas pelos praticantes de
bullying (os bullies) para impor sua autoridade e manter suas vítimas sob
total domínio.6
4 SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Bullying: mentes perigosas na escola. Rio de Janeiro: Fonto-
nar, 2010.
5 Idem, p. 13 (grifo nosso).
6 Idem, p. 21.
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165
O bullying está longe de ser considerado brincadeira inocente da
infância, trata-se de comportamento agressivo, cruel, proposital e sistemático. Relacionado ao preconceito, à intolerância e dificuldade em lidar com
as diferenças, fato este infelizmente presente nas relações interpessoais.
De acordo com Fante, bullying é um conceito específico, e que não
pode ser confundido com outras formas de violência. Por conta de sua
peculiaridade, causa traumas ao psiquismo de suas vítimas e envolvidos.7
Atualmente, além da Noruega, os Estados Unidos, Portugal e a Espanha são os países com maior desenvolvimento de pesquisas sobre o tema.
No Brasil, o primeiro grande levantamento foi realizado pela Associação
Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Juventude (ABRAPIA), entre 2002 e 2003.
Referindo-se ainda ao significado de bullying, Neto diz que “trata-se
de uma violência ou conjunto de comportamentos agressivos, intencionais
e repetitivos, adotados sem motivação evidente contra outros”.8
Buscando ainda entender de outro modo o que significa esse fenômeno, concordamos com Albino e Terêncio, que dizem “todo agressor
acredita piamente ter razões ou causas suficientes para aquilo que faz. São,
sem dúvida, razões preconceituosas, entretanto, não se pode subestimar
seu forte poder de motivar o comportamento violento”.9 Na verdade, quem
não apresenta razões é justamente o agredido, que fica sem compreender
as razões de tanta violência.
Esse fator relacionado às causas é uma questão muito complexa, difícil, e que envolve muitos aspectos. Precisa ter uma atenção especial, uma
conduta investigativa, ao contrário, corre-se o risco de encontrar soluções
simplistas e desprovidas de visão interdisciplinar.
Conforme é importante os pesquisadores problematizarem as supostas causas do bullying, e não se contentarem em citar fatores econô7 FANTE, Cleo. Fenômeno bullying: prevenir a violência nas escolas e educar para a paz. 2. ed.
Campinas: Verus, 2005.
8 ARAUJO, Mariselena, M. S. de; CARVALHO, Neide. M. Bullying escolar: incidência, fatores de
risco e conhecimento dos alunos – em escolas públicas – Uberlândia (MG). Desafios da produção e divulgação do conhecimento: caderno de resumos. In: X ENCONTRO DE PESQUISA
EM EDUCAÇÃO DA ANPED Centro-Oeste, 5 a 8 de julho de 2010. PIMENTA, Eucídio Arruda;
RESENDE, Haroldo de. (Orgs), Uberlândia, Minas Gerais. Faced, 2010. p. 1 (grifo nosso).
9
ALBINO, Priscila Linhares; TERÊNCIO, Marlos Gonçalves. Considerações críticas sobre o fenômeno bullying: do conceito à prevenção. Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público
Catarinense, nº 15. Jul./dez. 2008, p. 169-195. Disponível em: http://portal.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/18_03_2010_15.21.10.2af5ca0c78153b8b4a47993d66a51436.pdf. Acesso em:
10 jun. 2010. p.7.
166 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas
micos, sociais, culturais e individuais.10 É preciso considerar as influências
familiares, de colegas, da escola, da comunidade, as relações de desigualdade e de poder, a relação negativa com os pais e o clima emocional frio
em casa. Todos esses fatores não devem ser entendidos como naturais e
apartados das contradições culturais.
Questionando ainda as causas, a pesquisadora Fante refere-se à carência afetiva, à ausência de limites e ao modo de afirmação de poder e de
autoridade dos pais sobre os filhos, por meio de práticas coercitivas que
incluem maus-tratos físicos e explosões emocionais violentas.11 A autora
demonstra especial atenção às questões de relacionamento intrafamiliar.
O convívio familiar se apresenta ligado às causas, pois muitas crianças presenciam brigas dos pais, brigas entre irmãos, irmãos que brigam
com os pais, em outras palavras, aprendem que com violência se resolvem
os problemas, e o respeito não faz parte do relacionamento.
Constatamos que a inveja é uma causa muito comum e mais recorrente entre as garotas; seguida do fator medo, pois a maioria das crianças
tem medo de piadinhas de mau gosto e outros tentam proteger sua própria
imagem. É preciso deixar claro que as causas desse tipo de comportamento
abusivo são inúmeras, abrangendo fatores interno e externo aos sujeitos.
Existem algumas atitudes que podem se configurar, de acordo com
Silvia, em formas diretas ou indiretas de prática ao bullying.12 Entretanto,
as vítimas recebem mais de um tipo de maus-tratos na maioria das vezes,
e se expressam de formas tais como: verbal (insultar, ofender, xingar, fazer
gozações, apelidos pejorativos, piadas ofensivas e zoar), físico e mental
(bater, chutar, espancar, empurrar, ferir, beliscar, roubar, furtar ou destruir
coisas da vítima, atirar objetos contra a vítima), psicológico e moral (irritar,
humilhar, ridicularizar, excluir, isolar, ignorar, desprezar, fazer pouco caso,
discriminar, ameaçar, chantagear, tiranizar, perseguir, difamar, fazer intrigas, fofocas, etc.), sexual (abusar, violentar, assediar, insinuar). Nota-se que
essa violência pode ser verbal, moral, sexual, psicológica, material e até
virtual, que é o cyberbullying. Esta modalidade permite ao agressor ficar
no anonimato, e propagar de forma rápida o ato transgressor.
10 Idem, 2008.
11 FANTE, Cleo. Fenômeno bullying: prevenir a violência nas escolas e educar para a paz. 2. ed.
Campinas: Verus, 2005.
12 Silvia, 2010.
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167
A literatura tem apontado nessa trama três papéis de destaque no
bullying, que são: agressor, vítima e testemunha. O agressor vitimiza o
mais fraco, costuma ter pouca empatia, geralmente se apresenta como o
mais forte da turma, sente uma necessidade de dominar e subjugar os outros, gosta de impor suas vontades, gostos, preferências, custa a se adaptar
às regras, não aceita ser contrariado, é considerado pela turma como malvado, durão, etc.
A vítima costuma ter um aspecto físico mais frágil que o de seus
companheiros, tem medo de que algo ruim lhe aconteça, de ser ineficaz nos esportes ou brigas, extrema sensibilidade e timidez, passividade,
submissão, insegurança, baixa autoestima, apresenta uma característica
habitual não agressiva, como aquela que serve de bode expiatório para
um grupo. No entanto, existem dois tipos de vítima, a provocadora, que
é aquela que provoca determinadas reações contra as quais não possui
habilidades para lidar e a vítima agressora, que é aquela que reproduz os
maus-tratos sofridos.
A testemunha ou espectador, aquele que presencia os maus-tratos,
porém não os sofre diretamente e nem os pratica, se expõe e reage inconscientemente a sua estimulação psicossocial.
Entretanto, é necessária uma visão mais abrangente sobre essas categorias, pois, na prática, elas não funcionam assim tão separadas e estanques, existe na verdade um ciclo e rotatividade de papéis em muitos casos.
Por isso afirmam Albino e Terêncio:
[...] em situações da vida cotidiana os papéis nunca são tão fixos como
essas categorias fazem crer [...] costuma provocar um ciclo perverso, no
qual muitas vítimas, em uma determinada situação, acabam se tornando
agressores de novos sujeitos [...] gerando uma progressão da violência.13
Por isso é muito relevante analisar essas categorias de forma dinâmica e crítica, olhar crítico e sistêmico, pois elas tendem a apresentar
perfis altamente estanques e estereotipados dos sujeitos envolvidos e da
dinâmica do problema.
Em relação às testemunhas, por exemplo, nem sempre assistem calados, às vezes participam ativamente com aplausos que servem de estí13 Albino e Terêncio, 2008. p. 8.
168 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas
mulo para os agressores. Nem todos assistem à violência silenciosamente,
com medo de serem as próximas vítimas.
Entretanto, sejam agressores, vítimas ou espectadores, todos precisam conhecer formas de combater o bullying e para isso é preciso que
se tenha uma equipe de profissionais que dê suporte para as denúncias,
orientações e intervenções eficazes.
Em relação ao diagnóstico, não é uma tarefa fácil, existem fatores
conceituais envolvidos, a questão do que é considerado violência, como
estabelecer a diferença da brincadeira saudável e natural daquela intencional e com intenção de magoar e ferir.14 No Brasil, o atraso em identificar
e enfrentar foi muito grande, em função de que o tema só começou a ser
abordado junto à sociedade a partir de 2000, quando Cleo Fante e José
Augusto Pedra realizaram uma pesquisa abrangente sobre o tema.
O psicólogo norueguês e pesquisador Dan Olweus, reconhecido
como um pioneiro e um Pai Fundador da investigação sobre Bullying,
estabeleceu critérios para se identificar práticas de bullying, sendo o primeiro critério ocorrer ações repetitivas contra a mesma vítima num período
prolongado de tempo, e o segundo, existir desequilíbrio de poder, o que
dificulta a defesa da vítima e, finalmente, a ausência de motivos que justifiquem as agressões.15
As consequências psicológicas dessa violência podem ser consideradas o aspecto mais devastador. Às vezes, até na vida adulta, a vítima
continua sendo alvo de gozações entre colegas de trabalho e familiares.
Por isso destaca Gusmão e Eugênio que as dificuldades psicológicas, os
transtornos de personalidade nas vítimas e, em ambos os envolvidos, podem ser reconhecidos não somente nas escolas, mas em outros contextos
que existam relações interpessoais.16
Os efeitos afetam a todos os envolvidos de forma diferente, mas
principalmente à vítima, que pode sofrer, no anonimato, boa parte de sua
vida e levar as marcas por toda existência.
De acordo com Silvia, “além de os bullying escolherem um alunoalvo que se encontra em franca desigualdade de poder, geralmente este
14 SILVA, 2010.
15 FANTE. Cleo; PEDRA, José. Bullying escolar: perguntas e respostas. Porto Alegre: Artmed, 2008.
16 GUSMÃO. Daniela; EUGÊNIO, Benedito G. Os professores e a situação de bullying na escola.
Desafios da produção e divulgação do conhecimento: caderno de resumos. In: X ENCONTRO
DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO DA ANPED Centro-Oeste, 5 a 8 de julho de 2010. PIMENTA,
Eucídio Arruda; RESENDE, Haroldo de. (Orgs.). Uberlândia, Minas Gerais: FACED, 2010.
Sonia Cristina de Oliveira / Edison Pereira Prado
169
também já apresenta uma baixa autoestima [...] assim agrava o problema
preexistente, como pode abrir quadros graves de transtornos psíquicos e
ou comportamentais que, muitas vezes, trazem prejuízos irreversíveis”.17
Ainda existem muitos sintomas psicossomáticos que causam desconforto e prejuízos nas atividades cotidianas. Dentre os físicos podemos destacar: cansaço, insônia, dificuldades de concentração, náuseas, diarreia, boca
seca, palpitações, alergias, crises de asma, sudorese, tremores, sensação de
“nó” na garganta, desmaios, calafrios, tensão muscular e formigamentos.18
Sendo também objeto de observação o transtorno do pânico, que
se caracteriza pelo medo intenso e infundado, que parece surgir do nada.
A criança ou adolescente é tomado por uma sensação enorme de medo
e ansiedade acompanhada de uma série de sintomas físicos. Atualmente,
é possível constatar crianças de 6 a 7 anos de idade vítimas de pânico,
em função de situações de estresse prolongado a que são expostas, e o
bullying faz parte dessa condição.
Apresentam-se também como consequências, baixo rendimento escolar, desinteresse pela escola, o que impulsiona a evasão escolar e, às vezes, culmina no quadro de fobia escolar, que se caracteriza por medo intenso da escola.
É possível desenvolver quadro de extrema timidez, que evolui para
fobia social. Igualmente, medo, insegurança, ansiedade, o que pode evoluir para transtorno de ansiedade. Sintomas esses que interferem no relacionamento interpessoal. Também os transtornos alimentares têm feito
parte do universo de sequelas, denominados de anorexia e bulimia.
Aspectos tais como irritabilidade, nervosismo, cansaço, estresse e
tristeza são comuns nos ambientes de bullying. Em relação à vítima, esta
fica com baixa imunidade, o que facilita a predisposição para as doenças.
Sendo também considerado o abuso de drogas e álcool, sequelas estas
presentes na vida adulta.
Quadros mais graves, no entanto menos frequentes, podem ocorrer,
como as psicoses, suicídio e homicídio. Conforme a intensidade da violência
e o tempo submetido, podem desenvolver depressão, suicídio, desejos intensos de vingança que impulsionam o homicídio, às vezes seguido de suidício.
É difícil demarcar de modo sistemático as consequências para cada
participante, pois os papéis podem se inverter e assim os sintomas serem
17 SILVIA, 2010. p. 25.
18 Idem.
170 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas
similares. Entretanto, Fante explica que para os agressores ocorrem o distanciamento e a falta de adaptação aos objetivos escolares. Igualmente, a
supervalorização da violência como forma de obtenção de poder, o desenvolvimento de habilidades para futuras condutas delituosas, além da
projeção de condutas violentas na vida adulta.19
Os espectadores, segundo a autora, que é a maioria dos alunos,
podem sentir insegurança, ansiedade, medo e estresse, comprometendo o
seu processo socioeducacional. Envolve e vitimiza a criança, na tenra idade escolar, tornando-a refém de ansiedade e de emoções que interferem
negativamente no processo de aprendizagem devido à excessiva mobilização de emoções de medo, de angústia e de raiva reprimidas.
Em relação ao agressor, ele reproduz em suas futuras relações o modelo que sempre lhe trouxe resultados que se refere ao mando-obediência
pela força e agressão. É fechado à afetividade e tende à delinquência e à
criminalidade.20
O bullying, afinal, afeta a todos, consequentemente toda a sociedade. Agressor, vítima e espectador saem com marcas e cicatrizes que,
dependendo do nível e intensidade da experiência, causam frustrações e
comportamentos desajustados gerando, até mesmo, atitudes de transtorno
de personalidade antissocial.
Diante dessas consequências, o bullying está longe de ser considerado brincadeira infantil entre crianças e adolescentes, haja vista que se
caracteriza numa forma de violência que tem culminado, algumas vezes,
em atos inflacionais julgados no Poder Judiciário.
Conforme Albino e Terêncio, a CRFB/88 traz para o Brasil um novo
paradigma na seara da infância e juventude, na qual crianças e adolescentes passam a ser considerados sujeitos de direitos, não mais figurando
como propriedade da família ou objeto de tutela do Estado, fazendo jus à
proteção integral.21
19 FANTE, Cleo. Fenõmeno bullying: prevenir a violência nas escolas e educar para a paz. 2. ed.
Campinas: Verus, 2005.
20 SILVA, 2010.
21 ALBINO, Priscila Linhares; TERÊNCIO. Marlos Gonçalves. Considerações críticas sobre o fenômeno bullying: do conceito á prevenção. Atuação – Revista Jurídica do Ministério Público
Catarinense, nº 15, jul./dez. 2008. p. 169-195. Disponível em: http://portal.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/18_03_2010_15.21.10.2af5ca0c78153b8b4a47993d66a51436.pdf. Acesso em:
10 jun. 2010.
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171
Desse modo, as crianças e os adolescentes são acolhidos para o
mundo dos direitos e dos deveres, em outros termos, o mundo da cidadania. Assim se delineia um sistema especial de proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, que se traduz pela Doutrina da Proteção Integral, representada no artigo 227 da CRFB/88. Garante os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana e, igualmente, o direito subjetivo
de desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, preservando
a sua liberdade e a sua dignidade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069/90, intensifica a Doutrina da Proteção Integral, vinca a absoluta prioridade, ressalta
como devem ser tratadas as crianças e os adolescentes considerados pessoas em desenvolvimento. E obriga o dever à família, à comunidade, à sociedade em geral e ao Poder Público de assegurar a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária.
Entre esses direitos, ressaltam-se a preocupação com a educação,
dignidade e respeito, por entender que estão muito próximos da temática
deste artigo, o bullying.
A educação é um direito fundamental, outorgada pela Carta Magna
de 1988 (art. 6º) e estabelecido no art. 205 como direito de todos e dever do
Estado. Por isso precisa ser promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, com a finalidade de desenvolvimento da pessoa, preparo para
o exercício da cidadania e sua formação para o trabalho. É um aspecto
indissociável ao exercício da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
Na sequência, a questão do direito ao respeito que consiste, segundo
o art. 17 do ECA, na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da
criança e do adolescente, abrange a preservação da imagem, da identidade,
da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
O ECA, no art. 18, em relação ao direito à dignidade, diz que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a
salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório
ou constrangedor.
Analisando sucintamente essas questões constatamos que o bullying
se configura em amplo descumprimento desses direitos fundamentais atinentes à infância. Direitos estes que devem ser trabalhados na família, na
sociedade e no Estado.
172 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas
Nesse contexto, a escola tem se apresentado com muitas dificuldades diante do cumprimento desse papel, não só da construção de conhecimentos, mas também de garantias dos direitos fundamentais das crianças
e adolescentes. Neste caso, que envolve bullying, garantia da dignidade
humana e dos direitos humanos.
No entendimento de Albino e Terêncio, uma dificuldade encontrada nesse problema se refere em fazer a distinção entre comportamentos
agressivos dentro da esfera dos atos de indisciplina e/ou dos atos infracionais, cuja distinção gera grandes mal-entendidos e favorece a adoção,
inúmeras vezes, de medidas que contrariam a Lei 8.069/90.22
Para os autores o ato infracional se distingue da infração disciplinar
justamente porque, de um lado, a prática do primeiro se equipara ao crime
ou à contravenção penal (art. 103, ECA) previstos no Código Penal ou nas
leis penais esparsas, enquanto a caracterização da segunda, de outro, depende unicamente das normas e diretrizes fixadas pelo regimento escolar.
É muito importante entender a relação entre o adolescente, o ato
infracional e/ou infração disciplinar, pois esse é um ponto fundamental
para os encaminhamentos de políticas públicas voltadas à questão social
e educacional.
Mais do que a questão punitiva, é preciso investir na prevenção,
direcionada para os problemas detectados. É importante que não se tenha
apenas olhar punitivo, embora concordemos que todo ato de bullying é
um ato ilícito, que causa lesão à dignidade da pessoa humana, estando
todos obrigados a respeitar este direito constitucional, sob pena de responsabilização nas esferas cível e criminal.
Os atos infracionais mais comuns, originários do bullying, são
aqueles equiparados à injúria, à calúnia, à difamação, à ameaça, às lesões corporais e ao racismo. Entretanto, podem ocorrer violências outras que caracterizem o fenômeno, conforme a Apelação Criminal n.
2004091011545-4APR – DF, 13.10.2008. O Poder Judiciário levou em conta
o autor de bullying, o seu responsável legal e o estabelecimento de ensino
a uma indenização por danos materiais, morais e estéticos, com base em
dispositivos do Código Civil.23
22 Idem.
23 ALBINO; TERÊNCIO, op. cit.
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173
A prática do cyberbullying é uma modalidade muito nociva em razão da rapidez com que se difunde o conteúdo eletrônico na internet, por
isso tem sido alvo de análises e decisões judiciais, de acordo com o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Apelação Cível n.
1.0145.08.450392-2/001 – MG, 19.1.2009.
Mediante essas considerações, é preciso dizer que a percepção do senso
comum de que o ECA contemplaria apenas direitos das crianças e dos adolescentes, omitindo os deveres, é muito equivocada. Nessa linha de pensamento
ressaltam ainda esses “críticos” que o ECA tem contribuído para o aumento
dos atos de indisciplina e infracionais ocorridos nas escolas e na sociedade.
As ações responsáveis pela diminuição da violência vão muito além
de responsabilizar o ECA, ou seja, requer um trabalho conjunto entre família, sociedade e profissionais das áreas de saúde, educação e jurídica.
No contexto escolar é fundamental a elaboração de regras claras, explícitas e construídas de forma participativa com o envolvimento de toda a
comunidade escolar e, especialmente, a comunidade externa e os pais. Neste
trabalho dar prioridade ao respeito, à tolerância e aceitação das diferenças.
A família e a escola estão obrigadas juridicamente a agir para reprimir
a atitudes agressivas dos estudantes. A omissão atrairá para ambas a
condição de coniventes de um processo degradante das relações interpessoais, caracterizando a negligência ou até mesmo o dolo, elementos
suficientes capazes de imputar-lhes o dever de reparar os danos dos
agredidos, assim como de responsabilizar criminalmente. O diálogo entre pais e educadores ainda é a melhor solução, porém, reclama urgente para que continuemos vivendo em harmonia, mesmo que isso nos
pareça utópico.24
A sociedade passa por um momento em que os pais não conseguem
educar seus filhos emocionalmente e, tampouco, sentem-se habilitados a
resolver conflitos por meio do diálogo e da negociação de regras. Optam
muitas vezes pela arbitrariedade do “não” ou pela permissividade do “sim”,
não oferecendo nenhum referencial de convivência pautado no diálogo,
na compreensão, na tolerância, no limite e no afeto.
24 POGORZELSKI, Julio. Consequências jurídicas do bullying escolar. Disponível em: http://gramadosite.com.br/economiaenegocios/autor:profjuliopogorzelski/id:25801/xcoluna:1/xautor:1.
Acesso em: 29 jun. 2010.
174 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas
A escola também tem se mostrado inabilitada a trabalhar com a afetividade e com os limites, os alunos mostram-se agressivos, reproduzindo muitas
vezes a educação doméstica, seja por meio dos maus-tratos, do conformismo,
da exclusão pela falta de limites revelados em suas relações interpessoais.
Conforme já citado, o bullying é um problema social complexo,
por isso acreditamos que sua responsabilidade não pode ser delegada de
modo acrítico para a Justiça. É preciso haver medidas de prevenção, mediação e diálogo entre todos.
Segundo Mazzilli, o Mistério Público:
guarda estreita ligação com as normas de proteção à criança e ao adolescente, haja vista se tratar de interesses sociais e individuais indisponíveis.
Trata-se de instituição constitucionalmente incumbida da defesa dos interesses da sociedade, sejam eles coletivos, difusos ou individuais indisponíveis, e que, pelo texto estatutário, assumiu obrigações que lhe colocam na qualidade de verdadeiro curador da infância e adolescência.25
Para este autor é fundamental o envolvimento do Ministério Público
de modo atuante no sentido de ir além do combate. Velar mesmo pelos
interesses da criança e do adolescente com prevenção e proteção.
Desse modo, o Poder Judiciário pode ir além de punições. É importante incentivar ações como campanhas educativas, palestras, etc. com
base nesse pensamento. Por exemplo, o Ministério Público catarinense
idealizou a campanha “Bullying: isso não é brincadeira”.
O Estado do Rio Grande do Sul aprovou a Lei nº 13.474, de 28 de
junho de 2010 (publicada no DOE nº 121, de 29 de junho de 2010), que
dispõe sobre o combate da prática de “bullying” por instituições de ensino
e de educação infantil, públicas ou privadas, com ou sem fins lucrativos.
REFLEXÕES FINAIS
O bullying é sem dúvida uma violência cruel, complexa e difícil de
diagnosticar em virtude do silêncio da vítima, por outro lado, essa situação
estimula e aumenta as agressões que produzem graves cicatrizes na construção psíquica, com sequelas, muitas vezes na vida adulta.
25 MAZZILLI, 1991. Apud ALBINO; TERÊNCIO, 2010. p. 16.
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É preciso levar em conta que existem os conflitos próprios da fase
de crianças e adolescentes; eles passam por várias mudanças, nesse momento da vida, principalmente no que se refere à construção e afirmação
da identidade. Isso gera insegurança, mudança de humor e outras contradições próprias desse período. É um momento que necessita de diálogos
em casa e na escola. E de modelos de resolução de conflitos que não se
sustentem na violência física e psicológica.
O bullying pode ser considerado uma forma de resolução de problemas, na ausência de outros modelos assertivos. Modelo este representado pelos adultos numa cultura de violência. Por exemplo, o preconceito
assimilado pelos jovens faz parte de uma sociedade que se pauta na exclusão social e na opressão dos mais fracos. No cotidiano das relações interpessoais crianças e jovens têm revelado o preconceito em comportamentos
de intolerância ao diferente.
Atualmente, o bullying é uma prática que apresenta uma enorme dificuldade em lidar com as diferenças, por constituir-se na manifestação exacerbada da aversão às coisas com as quais não sabe lidar, conviver e resolver.
Nesse cenário, entendemos ser necessário repensar, senão seria por
demais delegar ao Judiciário, que possui força estatal, a intervenção de um
problema que se constitui na base vários fatores, tais como: econômico,
social, cultural, individual, influências familiares, de colegas, da escola, da
comunidade, relações de desigualdade e de poder, a relação negativa com
os pais, que pode ser clima emocional frio e carência afetiva, ausência de
limites, permissividade em excesso, autoridade dos pais sobre os filhos por
meio de práticas coercitivas que incluem maus-tratos físicos e explosões
emocionais violentas.
Frente a essas inúmeras e variadas causas, acreditamos ser importante por parte dos operadores do Direito profundo entendimento, ir além
da punição, pois apenas o viés punitivo está longe de alcançar esse problema. Isso não significa o Poder Judiciário não cumprir seu papel mediante
atos infracionais e violentos cometidos. Mas sempre se perguntar qual a
melhor forma de responsabilizar sujeitos que ainda estão em período de
formação e ou amadurecimento psicológico, em evidência as escolhas, sua
identificação e afirmação numa sociedade sem referências e sem modelos
explícitos para as crianças e adolescentes.
É preciso analisar que o bullying não pode ser pensado somente
pela ótica do agressor que por sua vez lembramos a punição ou reparação.
176 Fenômeno Bullying: consequências psicológicas e jurídicas
Todos os envolvidos de alguma forma sofrem consequências. Por exemplo, para a vítima é importante a presença de um suporte familiar, este é
muito decisivo para que o infante supere as situações traumáticas vivenciadas ou, ao contrário, ele pode se entregar ao isolamento social como forma
de fuga e proteção contra as agressões.
Ainda sobre essa questão, não podemos nos esquecer daqueles que
desenvolvem sentimentos de vingança a ponto de cometer homicídios
como a mídia tem noticiado. Isso significa que a situação pode, então, progredir para transtornos psicopatológicos graves, como fobias, depressões,
ideias suicidas e desejos intensos de vingança.
Acreditamos que não se trata de assunto que possa ser solucionado
só com a intervenção da Justiça. É um problema social grave, que requer a
intervenção de muitos profissionais – solução multidisciplinar.
Mesmo o bullying sendo um problema que envolve as relações interpessoais em qualquer contexto, é no ambiente escolar que ele mais
ocorre, por isso é necessário buscar solução com a intervenção de todas
as pessoas envolvidas: os protagonistas do bullying (agressor, agredido
e testemunhas), os pais, professores, diretores da escola, funcionários, e
por que não, nessas reuniões, representantes do Ministério Público. Assim
possibilita saber do problema de modo preventivo e não no momento de
uma ocorrência policial.
A responsabilidade na prevenção e combate precisa ser preocupação de todos. A omissão e conivência estimulam mais agressões por parte
de adeptos dessa violência. Por outro lado, quando ocorrer lesão corporal,
calúnia, injúria, difamação, os pais ou responsáveis devem registrar o fato
em uma delegacia, pois casos que envolvem atos infracionais precisam de
providências legais.
A família precisa compreender que um ambiente acolhedor, com
limites claros, com ênfase no respeito, no diálogo e na aceitação das diferenças é uma escolha importante. As escolas, com regras estabelecidas de
modo claro, explícito, e definidas em seu regimento, é uma alternativa essencial, e assim trabalhar o preconceito e os comportamentos de violência,
exclusão, indiferença e agressões por parte dos alunos.
A partir desses apontamentos, podemos inferir que a punição, mesmo sendo às vezes necessária, não é o aspecto determinante de mudança
comportamental. São necessárias intervenções com o envolvimento da família, dos protagonistas do bullying, da comunidade e toda a sociedade.
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Finalmente, todos os profissionais que lidam e trabalham com essa
violência, seja das áreas jurídica, de saúde, da educação, do serviço social,
da psicologia, precisam entender a importância desse tema na área de sua
formação para que possam propor estratégias com a finalidade de mitigar
as consequências desse dilema tão frequente neste século.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAPIA. Bullying, 2004. Disponível em: http://www.bullying.com.br. Acesso em:
15 jun 2010.
ALBINO, Priscila Linhares; TERÊNCIO, Marlos Gonçalves. Considerações críticas
sobre o fenômeno bullying: do conceito à prevenção. Atuação – Revista Jurídica
do Ministério Público Catarinense, nº 15. Jul./dez. 2008. p. 169-195. Disponível em:
http://portal.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/18_03_2010_15.21.10.2af5ca0c7
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BREVES COMENTÁRIOS À LEI
MARIA DA PENHA
Valdenir Rodrigues Barbosa Filho1
INTRODUÇÃO
A Lei Maria da Penha instituída em 2006, veio para quebrar o silêncio das mulheres no seio de sua família. Esse tabu de que em briga de
marido e mulher ninguém mete a colher tem que ser eliminado, sendo
evidente que é dever do Estado oferecer segurança para mulheres que
sofrem com o machismo impregnado por uma herança cultural pela qual
o homem pode tudo e a mulher pode nada.
A referida lei trouxe para o nosso ordenamento jurídico as formas
de violência doméstica caracterizando-se por agressões físicas, psíquicas,
morais, patrimoniais e sexuais.
Apesar de alguns juristas alegarem a inconstitucionalidade da Lei
11.340/06, com o objetivo de oferecer o mesmo tratamento para mulheres em relação aos homens, fortalecemos a lei com base no princípio da
igualdade em que devemos dirimir as diferenças, tratando o igual com
igualdade e o desigual com desigualdade, pois há uma discrepância em
números de agressões domésticas sofridas pelas mulheres em relação às
sofridas pelos homens.
As mulheres, durante séculos, têm sofrido violência no âmbito familiar, violência esta que atinge todas as classes sociais, raça, cor, etnias e
idade. Porém, antes do advento da Lei Maria da Penha, as agressões eram
consideradas de pouca lesividade e quase nunca os agressores eram punidos. A Lei Maria da Penha veio com o intuito de dar maior segurança e
proteção para a mulher formalizar suas denúncias contra o agressor, criando varas especializadas e medidas protetivas.
1 Acadêmico do Curso de Direito da Universidade de Cuiabá – Unic. 10º semestre 2010/2.
182 Breves comentários à Lei Maria da Penha
O PORQUÊ DA CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA
Talvez muitos não saibam por que a Lei 11.340/2006 é chamada
Maria da Penha.
A justificativa é dolorosa, pois a farmacêutica Maria da Penha Maia
Fernandes foi mais uma das tantas vítimas da violência doméstica deste país. Como muitas outras mulheres ela reiteradamente denunciou as
agressões que sofreu. Chegou a ficar com vergonha de dizer que tinha
sido vítima da violência doméstica e pensava: “se não aconteceu nada até
agora, é porque ele, o agressor, tinha razão de ter feito aquilo”.2 Mas, ainda
assim, não se calou. Em face da inércia da Justiça, Maria da Penha escreveu
um livro, uniu-se ao movimento de mulheres e, como ela mesma diz, não
perdeu nenhuma oportunidade de manifestar sua indignação.
Por duas vezes, seu marido, o professor universitário e economista
M.A.H.V., tentou matá-la. Na primeira vez, em 29 de maio de 1983, simulou
um assalto fazendo uso de uma espingarda. Como resultado ela ficou paraplégica. Depois de alguns dias, pouco mais de semana, nova tentativa, buscou
eletrocutá-la por meio de uma descarga elétrica enquanto ela tomava banho.
Tais fatos aconteceram em Fortaleza, Ceará. As investigações começaram em junho de 1983, mas a denúncia só foi oferecida em setembro de 1984.
Em 1991, o réu foi condenado pelo Tribunal do Júri a 8 (oito) anos de prisão.
Além de ter recorrido em liberdade, ele, um ano depois teve seu julgamento
anulado. Levado a novo julgamento em 1996, foi-lhe imposta a pena de 10
(dez) anos e 6 (seis) meses. Mais uma vez recorreu em liberdade e somente 19
(dezenove) anos e 6 (seis) meses após os fatos, em 2002, é que M.A.H.V. foi
preso. Cumpriu apenas dois anos de prisão. Essa é a história de Maria da Penha.
Conforme Rogério Sanches:
A repercussão foi de tal ordem que o Centro pela Justiça e o Direito
Internacional – CEJIL e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para
a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM formalizaram denúncias
à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos.3
2 PENHA, Maria da. Antes de tudo, uma forte. Entrevista concedida à revista Leis e Letras, n. 6,
ano II, p. 20-24, Fortaleza, 2007.
3 CUNHA, Rogério Sanches. Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos e a Constituição Federal de 1988. Boletim IBCCRIM, n. 153, ago. 2005. p.8-9.
Valdenir Rodrigues Barbosa Filho
183
QUEM SÃO OS SUJEITOS ATIVO E PASSIVO
DA LEI MARIA DA PENHA
Para a configuração da violência doméstica não é necessário que as
partes sejam marido e mulher, nem que estejam ou tenham sido casados.
Também na união estável, que nada mais é do que uma relação íntima de afeto e agressão, é considerada como doméstica, quer a união persista ou já tenha findado. Para ser considerada a violência como doméstica,
o sujeito ativo tanto pode ser um homem como outra mulher. Conforme o
doutrinador Sérgio Ricardo de Souza:
Basta estar caracterizado o vínculo de relação doméstica, de relação
familiar ou de afetividade, pois o legislador deu prioridade à criação
de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a
mulher, sem importar o gênero do agressor.4
A empregada doméstica, que presta serviço a uma família, está sujeita à violência doméstica. Assim, tanto o patrão como a patroa podem ser os
agentes ativos da infração. Igualmente, desimporta o fato de ter sido o neto
ou a neta que tenham agredido a avó, sujeitam-se os agressores de ambos
os sexos aos efeitos da lei. A parceira da vítima, quando ambas mantêm
uma união homoafetiva (art. 5º, parágrafo único), também responde pela
prática de violência de âmbito familiar. Os conflitos entre mães e filhas, assim como os desentendimentos entre irmãs, estão ao abrigo da Lei Maria da
Penha quando flagrado que a agressão tem motivação de ordem familiar.
No que diz respeito ao sujeito passivo, há a exigência de uma qualidade especial: ser mulher. Conforme Jayme Walmer de Freitas: “nesse conceito encontra-se as lésbicas, os transgêneros, as transexuais e as travestis,
que tenham identidade com o sexo feminino”.5A agressão contra elas no
âmbito familiar também constitui violência doméstica.
Não só esposas, companheiras ou amantes estão no âmbito de
abrangência do delito de violência doméstica como sujeitos passivos. Também as filhas e netas do agressor, como sua mãe, sogra, avó ou qualquer
4 SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher: Lei Maria
da Penha, 11.340/2006. Curitiba: Juruá, 2007. p. 47.
5 FREITAS, Jayme Walmer de. Impressões objetivas sobre a Lei de Violência Doméstica. Boletim
Jurídico, ano 5, n. 212, Uberaba, 2007. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/
doutrina. Acesso em: 15 abr. 2010.
184 Breves comentários à Lei Maria da Penha
outra parente que mantém vínculo familiar com ele podem integrar o polo
passivo da ação delituosa.
Mas há a possibilidade de o sujeito passivo não ser necessariamente a mulher. A lei prevê mais uma majorante ao crime de lesão corporal
em sede de violência doméstica (CP, art. 129, § 11): “se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência”6. Seja de que sexo for o
deficiente físico, sendo alvo de lesão corporal, a pena de seu agressor é
dilatada. Aliás, a hipótese deveria estar inserida no artigo 61 do Código
Penal, como agravante genérica, para todos os crimes cometidos contra
pessoas portadoras de necessidades especiais, e não só na hipótese de
lesão corporal doméstica.
QUAL A FINALIDADE DA LEI MARIA DA PENHA
A Lei Maria da Penha nasce com a importante missão de resgatar a
mulher de uma situação de desvantagem física, e ao mesmo tempo livrála de uma cultura machista arraigada durante séculos, onde o homem era
mais importante, o cabeça do casal, o chefe da família, senhor de sua casa,
o que gerou um preconceito (pré-conceito) de que as mulheres têm menos
valor, são menos importantes, tendo de suportar humilhações e ofensas,
agressões físicas e morais.
A Lei 11.340/2006, apesar de não ser perfeita, assim como outras leis
existentes, apresenta uma estrutura adequada e específica para atender à
complexidade e à demanda do chamado fenômeno da violência doméstica
ao prever mecanismos de prevenção, assistência às vítimas, políticas públicas e punição mais rigorosa para os agressores.
Pode-se dizer que é uma lei que tem mais cunho educacional e de
promoção de políticas públicas de assistência às vítimas do que a intenção
de punir mais severamente os agressores dos delitos domésticos, pois prevê em vários dispositivos medidas de proteção à mulher em situação de
violência doméstica e familiar, possibilitando uma assistência mais eficiente
e salvaguarda dos direitos humanos das vítimas.
6 BRASIL. Código Penal. Constituição Federal, Código civil, Código de Processo civil, Código
Penal, Código do Processo Penal, Código Comercial, Código de defesa do consumidor, Código
Tributário Nacional, Código Eleitoral, Código de Trânsito Brasileiro,Consolidações das Leis do
Trabalho, Legislação Complementar, Regimento Interno do STF, Regimento Interno do STJ, Súmulas Vinculantes do STF e Súmulas do STF, STJ, TSE e TST. 6. ed. Organização de Anne Joyce
Angher. São Paulo: Rideel, 2009. p. 363. (Vade Mecum).
Valdenir Rodrigues Barbosa Filho
185
Sobre o tema, a ilustre Stela Valéria lembra que:
Não há dúvidas de que o texto aprovado constitui um avanço para a
sociedade brasileira, representando um marco indelével na história da
proteção legal conferida às mulheres. Entretanto, não deixa de conter
alguns aspectos que podem gerar dúvidas na aplicação, e até mesmo,
opções que revelam uma formulação legal afastada da melhor técnica e
das mais recentes orientações criminológicas e de política criminal, daí
a necessidade de analisá-la na melhor perspectiva para as vítimas, bem
como discutir a melhor maneira de implementar todos os seus preceitos.7
Portanto, qualquer ação que tenha embutido sofrimento físico ou
intelectual tomando por base o gênero feminino seguirá os trâmites designados pela lei 11.340/2006.
A LEI MARIA DA PENHA E SUA CONSTITUCIONALIDADE
LEI Nº 11.340/2006
Questiona-se a constitucionalidade da lei, vez que, segundo Rogério
Sanches e Ronaldo Batista, “num primeiro momento, parece discriminatória, tratando a mulher como eterno sexo frágil, deixando desprotegido o
homem, presumidamente impotente”.8
Tal diferenciação, como se sabe, há muito foi espancada pela Constituição Federal, que no seu art. 5º, I, equipara ambos os sexos em direitos e
obrigações, garantindo aos dois sexos, no art. 226, § 8º, proteção no caso de
violência doméstica. É o que pareceu, em bem elaborado artigo, por João Paulo de Aguiar Sampaio Souza e Tiago Abud da Fonseca, quando ressaltam que:
Não é preciso muito esforço para perceber que a legislação infraconstitucional acabou por tratar de maneira diferenciada a condição de homem
e mulher e o status entre filhos que o poder constituinte originário tratou
de maneira igual criando, aí sim, a desigualdade na entidade familiar”.9
7 CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência Doméstica contra a mulher no Brasil.
2. ed. Salvador, Bahia: Podivm, 2008. p. 37.
8 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha
(Lei 11.340/2006). 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 31.
9 SOUZA, João Paulo de Aguiar Sampaio; FONSECA, Tiago Abud da. A aplicação da Lei 9.099/95
nos casos de violência doméstica contra a mulher. Boletim do IBCCrim, n. 168, nov. 2006, p. 4.
186 Breves comentários à Lei Maria da Penha
Para tornar a questão mais clara, citam-se exemplos de absurda injustiça (para com o homem), a saber: numa agressão mútua, o que justifica
a mulher ficar amparada pelo presente diploma e o homem não? Sabendo
que a violência doméstica não se resume à agressão do marido contra a
mulher, qual o motivo para se proteger a filha agredida pelo pai e o filho
agredido não? Para uma agressão do filho contra a mãe há lei específica
protegendo a vítima, porém para a sua agressão contra o pai não?
No entanto, tipos penais que discriminavam o homem foram alvo de
recentes mudanças legislativas, corrigindo a odiosa discriminação, como
aconteceu com o atentado ao pudor mediante fraude, “art. 216 do CP
(onde se lia mulher honesta, a Lei 11.106/2005 alterou para alguém, abrangendo o homem) ou no tráfico de pessoas, art. 231 do CP (antes da Lei
11.106/2005, tipificava-se somente o tráfico de mulheres)”.10
Nessa linha é o pensar de Valter Foleto Santim:
Como se vê, a pretexto de proteção a mulher, numa pseudopostura
politicamente correta, a nova legislação é visivelmente discriminatória
no tratamento de homem e mulher, ao prever sanções a uma das partes
do gênero humano, o homem, pessoa do gênero masculino, e proteção especial à outra componente humana, a mulher, pessoa do sexo
feminino, sem reciprocidade, transformando o homem num cidadão de
segunda categoria em relação ao sistema de proteção contra a violência
doméstica, ao proteger especialmente a mulher, numa aparente formação de casta feminina.11
Apesar dos exemplos seduzirem (e muito) a tese da inconstitucionalidade, pensamos que uma interpretação conforme pode fomentar a
sua aplicação, como exigem as estatísticas que demonstram a situação de
verdadeira calamidade pública que assumiu a agressão contra as mulheres.
Esclarecem, corretamente, Helena Omena Lopes de Faria e Mônica
de Melo:
10 BRASIL. Código Penal. Constituição Federal, Código Civil, Código de Processo civil, Código
Penal, Código do Processo Penal, Código Comercial, Código de Defesa do Consumidor, Código
Tributário Nacional, Código Eleitoral, Código de Trânsito Braileiro, Consolidações das Leis do
Trabalho, Legislação Complementar, Regimento Interno do STF, Regimento Interno do STJ, Súmulas Vinculantes do STF e Súmulas do STF, STJ, TSE e TST. 6. ed. Organização de Anne Joyce
Angher. São Paulo: Rideel, 2009. p. 370. (Vade Mecum).
11 SANTIM, Valdir Foleto. Igualdade constitucional na Violência Doméstica. Disponível em:
www.ibccrim.org.br. Acesso em: 5 jun. 2010.
Valdenir Rodrigues Barbosa Filho
187
O sistema geral de proteção tem por endereçado toda e qualquer pessoa, concebida em sua abstração e generalidade. Por sua vez, o sistema
especial de proteção realça o processo de especificação do sujeito de
direito, que passa a ser visto de forma concreta e específica, pois determinados sujeitos de direitos, ou certa violações de direitos exigem uma
resposta diferenciada. Importa o respeito à diversidade e a diferença,
assegurando-se um tratamento especial.12
Após os entendimentos diversos, citaremos uma jurisprudência que
relata a constitucionalidade da lei.
Respeitando o entendimento diverso, não há como ser considerada
inconstitucional a Lei de Violência Doméstica, por força das disposições que traz em seus artigos 33 e 41, a atribuir a competência ao
Juízo Criminal, enquanto não forem criados os Juizados de que trata.
Agora, também em consonância com a citada norma constitucional, a
Lei 11.340/2006, que é posterior e se refere especialmente às infrações
praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher, por seu
turno, ao afastar a aplicação da Lei 9.099/05 no tocante a estas infrações, deixou de considerá-las infrações de menor potencial ofensivo.
Na verdade, o critério de pena para distinção entre crimes comuns e
os de menor potencialidade ofensiva não é absoluto e pode ser modificado, por lei, em vista da relevância do bem tutelado. Por fim, não
há que se falar em afronta ao princípio da isonomia, pois este não se
refere à igualdade literal. Como ensina o ilustre jurista português J.J.
Gomes Canotilho, ser igual perante a lei não significa apenas aplicação
igual da lei. Significa “igualdade na aplicação do direito”. O princípio
da igualdade pressupõe não somente a igualdade formal, mas também
a igualdade material, ou seja, para todos os indivíduos com as mesmas
características devem prever-se, através da lei, iguais situações ou resultados jurídicos ou, ainda, deve-se tratar de forma igual o que é igual e
desigualmente o que é desigual.13
12 FARIAS, Helena Omena Lopes de; MELLO, Mônica de. Direitos Humanos: construção da liberdade e da igualdade. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra
a mulher e a Convenção para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. São Paulo:
Centro de Estudo, 1998. p. 373.
13 TJSP. Conflito de jurisdição 150.521-0/8. Rel. Maria Olívia Alves, j. 08.10.2007. Disponível em:
http://www.tj.sp.gov.br/. Acesso em: 20 abr. 2010.
188 Breves comentários à Lei Maria da Penha
Dessa forma, podemos verificar que há necessidade de maior proteção à mulher, em razão do maior número de infrações contra ela cometidas
no âmbito doméstico. A legislação editada com essa finalidade, ao contrário, é a aplicação correta do princípio da isonomia. Está claro que quis o
legislador, com a edição da nova lei, impor efetivamente tratamento mais
severo do que aquele dispensado às infrações de menor potencial ofensivo, justamente para atender a nossa realidade social.
OS BENEFÍCIOS CONQUISTADOS
Serão elencados quatro benefícios conquistados com a Lei Maria da
Penha.
1) Servidoras públicas em situação de risco poderão ser transferidas
para outros locais de trabalho.
2) As trabalhadoras de iniciativa privada poderão pedir afastamento por
até seis meses, sem perder vínculo empregatício.
3) Determina o encaminhamento de mulheres em situação de violência
a programas e serviços de proteção extensivos à prole e dependentes.
4) Autoriza a criação de Juizados Especiais da Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher que serão órgãos da justiça ordinária com
competência cível e criminal, podendo ser criados pelos Estados, pela
União, pelo Distrito Federal e pelos territórios.14
A EVOLUÇÃO DAS LEIS DE PROTEÇÃO À MULHER
Decreto-lei nº 2.848, de Criminaliza o estupro, o atentado violento ao pudor e a
07/12/1940 – CPl
agressão física, psicológica e moral contra a mulher
Constituição Federal de Permite a denúncia em casos de discriminação por motivo
1988 – Art. 2º, I – Discrimi- de sexo
nação sexual
CF de 1988 – Art. 226, § 8º - Assegura assistência à família, com mecanismos para coibir
Violência intrafamiliar
a violência
Lei nº 9.099, de 26/09/95 – Dispõe sobre os JECC, que trata de ameaças e lesões corporais
Jecrim
leves
14 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha
(Lei 11.340/2006). 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 170.
Valdenir Rodrigues Barbosa Filho
189
Lei nº 10.224, de 15/15/01 – Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 1940 – CP, sobre o assédio
Assédio sexual no trabalho sexual em caso de superioridade hierárquica
Lei nº 10.445, de 13/05/02 – Em caso de violência doméstica, o juiz pode determinar o
Afastamento do agressor
afastamento do agressor do lar
Projeto de Lei nº 536, de Revoga o dispositivo de Lei nº 9.099/95, que dispõe sobre os
27/03/03 – Violência domés- JECC.15
tica
Projeto de Lei nº 536, de Revoga o dispositivo de Lei nº 9.099/95, que dispõe sobre os
27/03/03 – Violência domés- JECC
tica
Lei nº 10.714, de 13/08/03 – Autoriza o Poder Executivo a disponibilizar, nacionalmente,
Denúncias contra violência telefone para denúncias de violência contra a mulher
Lei nº 10.778, de 24/11/03 Estabelece notificação compulsória no caso de violência con– Violência nos serviços de tra a mulher em serviços de saúde públicos ou privados
saúde
Lei nº 10.886, de 17/06/04 Acrescenta os parágrafos ao artigo 129 do Dec.-lei nº 2.848 –
– Tipifica a violência domés- CP, para criar o tipo “Violência Doméstica”
tica
Projeto de Lei nº 4559, de Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar,
16/11/04 – Violência Do- nos termos do § 8º do art. 226 da CF
méstica e familiar
Lei nº 11.106, de 28/03/05 – Altera os arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231 e acrescenta o 231Altera o CP
A ao Dec-lei nº 2.848 – CP
Lei nº 11.340, de 07/08/06 – Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
Lei Maria da Penha
contra a mulher. Dispõe sobre a criação dos Jufams, altera o
CP, o CPP e a LEP, entre outras providências
CONCLUSÃO
A explicação do número pequeno de condenações se dá pela simples medida de proteção resultando no afastamento do agressor do lar
conjugal, a impossibilidade de aproximação da vítima. Na maioria das vezes essas medidas são suficientes para resolver o problema.15
A maior parte dos pedidos feitos à Justiça por mulheres vítimas de
violência doméstica trata-se de medidas protetivas.
O principal objetivo da Lei Maria da Penha é encorajar as mulheres
a denunciar seus agressores e com isso coibir e prevenir a violência doméstica e familiar.
15 Idem, p. 173.
190 Breves comentários à Lei Maria da Penha
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Valdenir Rodrigues Barbosa Filho
191
Crim, n. 168, nov. 2006. p. 4.
SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher: Lei Maria da Penha, 11.340/2006. Curitiba: Juruá, 2007. p. 47.
TJSP, Conflito de jurisdição 150.521-0/8. Rel. Maria Olívia Alves, j. 08.10.2007. Disponível em: http://www.tj.sp.gov.br/. Acesso em: 20 abr. 2010.
ERRO DE TIPO E ERRO DE PROIBIÇÃO:
UMA ABORDAGEM DIDÁTICA DOS INSTITUTOS
Wanderlei José dos Reis1
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Os acadêmicos e os profissionais do Direito sempre se deparam na
seara penal com a crucial distinção entre erro de tipo e erro de proibição.
Diferenciação esta que já deve ficar assentada desde os primeiros anos do
curso de Direito, como pré-requisito para a ampla e correta compreensão
de outros institutos penais posteriores e pertinentes a estes no estudo da
Parte Geral do Estatuto Repressivo.
Este pequeno estudo não tem o condão de esgotar o tema – que já
foi, inclusive, objeto de obras específicas de grandes penalistas pátrios –,
mas, mostra-se peculiar aos acadêmicos de Direito, que, a partir dele, podem despertar para o fato de que são os pormenores, muitas vezes, que fazem a diferença entre os muitos institutos do Direito, demandando, assim,
perspicácia por ocasião dos estudos, buscando-se a separação conceitual
e, ao mesmo tempo, a integração entre eles, e que ao se estudar as diversas
cadeiras dessa faculdade deve-se ter em mente a interdisciplinaridade, já
que os ramos do Direito não são estanques.
Cumpre destacar também, preliminarmente, que essa questão palpitante, objeto da análise, é de grande frequência em provas e concursos
jurídicos.2
Antes da reforma de 1984, na Parte Geral do Código Penal, o erro de
tipo e o erro de proibição estavam dispostos no art. 17, §§ 1º e 2º daquele
estatuto, que estabelecia:
1 Juiz de Direito em Mato Grosso (1º colocado no concurso); ex-delegado de Polícia (1º colocado
no concurso); doutorando em Direito; MBA em Poder Judiciário pela FGV; escritor; professor;
doutrinador; graduado em Matemática; bacharel em Direito; especialista em Educação pela UFRJ,
em Direito Público Avançado e em Processo Civil Avançado; autor de inúmeras obras e artigos
jurídicos; membro da Academia Mato-Grossense de Letras e da Academia Mato-Grossense de Magistrados. Atua como juiz da 1ª Vara Cível de Sorriso-MT. Recebeu inúmeros reconhecimentos sociais (em nível regional e nacional) pelos trabalhos desenvolvidos no âmbito da Justiça nacional.
2 Como, à guisa de exemplo, o que nos submetemos em 04/06/2000 – Prova Oral para o Cargo
de Delegado de Polícia do Estado de Mato Grosso – ou o XXXVIII Concurso de Ingresso ao
Ministério Público do Estado de Minas Gerais – 2ª Fase – 1999.
194 Erro de Tipo e Erro de Proibição: uma abordagem didática dos institutos
Art. 17 - É isento de pena quem comete o crime por erro quanto ao fato
que constitui, ou quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima.
§1º - Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é
punível como crime culposo.
§2º - Responde pelo crime o terceiro que determina o erro.
Agora, são os arts. 20 e 21, do Código Penal, que tratam do assunto.
Passemos ao tema.
CRIME
Para tratarmos de erro de tipo e erro de proibição, mister se faz,
inicialmente, conceber-se o que é crime, seu conceito, sua estrutura e seus
requisitos.
A teoria clássica considera crime como sendo um fato típico, antijurídico e culpável.
Hoje o entendimento da doutrina é praticamente pacificado que o
Código Penal, reformado em sua Parte Geral pela Lei n.º 7209/84, adotou
a Teoria Finalista – quesito fundamental para se aferir qual a estrutura
do crime. Para esta teoria, crime, sob o prisma formal, é um fato típico e
antijurídico. Constituindo-se a culpabilidade, juízo de reprobabilidade da
conduta do agente, como pressuposto de aplicação da pena.
Logo, crime – fato típico e antijurídico – possui a seguinte estrutura:
1 - Fato típico, que é composto dos seguintes elementos:
a) Conduta humana3 dolosa ou culposa.
b) Resultado (exceto nos crimes de mera conduta).
c) Nexo causal entre a conduta e o resultado (exceto nos crimes de
mera conduta e formais).
d) Tipicidade (enquadramento da conduta realizada pelo agente à
norma penal incriminadora).
2 - Antijurídico
Diz-se que o fato é antijurídico ou ilícito quando contrário ao orde3 Por oportuno, ressalve-se que hodiernamente, com o advento da Lei n.º 9605/98 – art. 3º –, em
decorrência do art. 225, §3º, da CR, há a possibilidade de a pessoa jurídica delinquir.
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namento jurídico. Esse conceito de antijuridicidade se extrairá, na verdade,
por exclusão, tendo-se que o fato típico, em princípio, é antijurídico, pois
milita contra o fato típico a presunção da antijuridicidade, salvo se acobertado por uma das excludentes de ilicitude4 previstas em lei (legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal, estado de necessidade, exercício
regular de direito, normas permissivas da Parte Especial do Código Penal
ou de legislação extravagante).
Já a culpabilidade, que não integra o crime e sim funciona como
condição de aplicação de pena, compõe-se dos seguintes elementos:
1 – Imputabilidade.
2 – Exigibilidade de conduta diversa.
3 – Potencial consciência da ilicitude.
Assim, em resumo, para que alguém cometa um crime ou delito é
necessário que pratique uma conduta típica e antijurídica. E mais, para que
sobre ele recaia uma pena (espécie do gênero sanção penal) é necessário
que se faça presente a culpabilidade (com seus três elementos supracitados).
ERRO DE TIPO
O erro é a falsa representação da realidade: é a crença de ser B,
sendo A; é o equivocado conhecimento de um elemento, ao passo que
ignorância é a ausência de conhecimento.
O erro de tipo é tratado pela doutrina tradicional como erro de fato5
(error facti), o que a moderna doutrina penal, dentre eles Damásio, não
mais faz.6
O art. 20, caput, do Código Penal, prescreve que: “O erro sobre
elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a
punição por crime culposo, se previsto em lei”. Trata-se do erro de tipo,
quando o agente não quer praticar o crime, mas, por erro, vem a cometê-lo.
O erro aí incide sobre elementar ou circunstância do tipo penal
(abrangidas também as qualificadoras, causas de aumento de pena e as
circunstâncias agravantes). O agente tem uma falsa percepção da reali4 Também chamadas de excludentes de antijuridicidade, descriminantes, eximentes, justificativas
ou causas de exclusão do crime.
5 Para Nelson Hungria, antes da reforma da Parte Geral do Código Penal Brasileiro, o erro de fato
excluía o dolo.
6 Damásio entende que o erro de fato não corresponde ao erro de tipo.
196 Erro de Tipo e Erro de Proibição: uma abordagem didática dos institutos
dade, enganando-se, imaginando não estar presente uma elementar ou
circunstância do tipo penal, e com isso falta-lhe a consciência e sem ela
não há dolo, logo, o erro de tipo exclui o dolo, e sem este não há conduta, que, como se viu, integra o fato típico, excluindo a existência do
próprio delito.
Como exemplos citados pela doutrina tem-se o caso do caçador
que atira em seu companheiro achando tratar-se de um animal bravio;
indivíduo que se casa com pessoa já casada, desconhecendo o casamento
anterior; alguém que recebe um carro idêntico ao seu das mãos do manobrista e o leva embora. Ora, nesses casos faltou aos agentes o dolo de
matar “alguém” (pessoa), o dolo de casar com pessoa já casada e o dolo de
furtar (subtrair coisa alheia móvel), respectivamente, logo não respondem
por crime algum.
Há duas formas de erro de tipo, que ensejam tratamentos e consequências diversas: erro de tipo essencial e acidental.
O erro de tipo essencial é o que recai sobre elementares ou circunstâncias do tipo penal, de tal forma que subtrai do agente a consciência de
que está praticando um delito. Com isso, exclui-se o dolo (se o erro essencial for vencível ou inescusável - art. 20, caput, 2ª parte e § 1º, 2ª parte,
CP), permitindo a punição a título de culpa (se houver previsão legal), ou
exclui-se o dolo e a culpa (se o erro essencial for invencível ou escusável
- art. 20, caput, 1ª parte, e § 1º, 1ª parte, CP).
Já o erro de tipo acidental é aquele que recai sobre elementos secundários e irrelevantes da figura típica e não impede a responsabilização
do agente pelo crime, ou seja, não elide nem o dolo nem a culpa. Podendo assumir as modalidades de erro sobre o objeto (error in objecto),
erro sobre a pessoa (error in persona), erro na execução (aberratio ictus),
resultado diverso do pretendido (aberratio criminis) ou erro sobre o nexo
causal (aberratio causae).
Por fim, anote-se que, segundo Mirabete7, o § 1º do art. 20 do Código
Penal, que trata das descriminantes putativas, está topograficamente mal
colocado, haja vista que a teoria dominante entende que tais descriminantes se referem a erro de proibição (art. 21) e não erro de tipo. Por seu turno,
Damásio8, com mais acerto no nosso entender, leciona que neste caso do
7 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 8. ed. v. 1. São Paulo: Atlas, 1994. p. 162.
8 JESUS, Damásio E. Direito penal. 19. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 272.
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§1º do art. 20, se o erro incidir sobre os pressupostos de fato da excludente
de ilicitude, trata-se sim de erro de tipo, aplicando-se o art. 20, §1º, CP;
já, se o erro do sujeito recair sobre os limites legais (normativos) da causa
de justificação, aplicam-se os princípios do erro de proibição (art. 21, CP).
ERRO DE PROIBIÇÃO
A doutrina tradicional trata o erro de proibição como erro de direito
(error iuris), o que a moderna doutrina penal não mais faz.9
O art. 21, do Código Penal, prescreve que: “O desconhecimento da
lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude, se inevitável, isenta de pena; se
evitável, poderá reduzi-la de um sexto a um terço. Considerando-se evitável o erro, se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do
fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.” Trata-se, pois, do erro de proibição.
Consabido que, de acordo com o art. 3º, da LICC10, “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”, pois, ignorantia legis
neminem excusat, tem-se assentado a inescusabilidade da ignorância da lei.
Viu-se, inicialmente, que a culpabilidade é pressuposto de aplicação
de pena e compõe-se de três elementos, dentre eles a potencial consciência da ilicitude, que exige do sujeito, por ocasião da prática do fato, consciência que aquele comportamento é contrário ao ordenamento jurídico
(antijurídico). Daí, erro de proibição: erro que incide sobre a ilicitude do
fato. Se a pessoa o pratica sem saber que ele é proibido, sendo inevitável
esse desconhecimento, fica excluída a culpabilidade, dando-se a isenção
de pena; se evitável, fica atenuada a pena de um sexto a um terço.
No erro de proibição o erro incide sobre a ilicitude do fato, o sujeito
supõe lícito o fato por ele praticado, fazendo um juízo equivocado sobre
o que lhe é permitido fazer no convívio social.
Como exemplos de erro de proibição, mencionados pela doutrina,
pode-se citar o caso de dois irmãos que se casam supondo a inexistência
de impedimento legal, ou a pessoa que tem cocaína na sua casa em depó9 Damásio defende que o erro de direito não corresponde ao erro de proibição.
10 A Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4657/42), ou, recentemente nominada,
“Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro”, não obstante à nomenclatura (introdução
ao Código Civil), não se refere apenas ao Direito Civil e nem somente ao direito privado. Ela
regula as normas jurídicas de uma maneira geral, sejam elas de direito público ou privado, e é
tida como uma norma sobre normas.
198 Erro de Tipo e Erro de Proibição: uma abordagem didática dos institutos
sito reputando aquela conduta como legal. Eles sabem, perfeitamente, o
que estão fazendo, só que julgam tais condutas permitidas.
CONCLUSÃO
Não há o que confundir erro de tipo e erro de proibição. Como
salientado alhures, são institutos distintos.
O erro de tipo recai sobre elementares ou circunstâncias do tipo
penal, ao passo que o erro de proibição é aquele que incide sobre a regra
proibitiva, sobre a antijuridicidade do fato.
No erro de tipo (art. 20, do Código Penal) o erro recai sobre o fato
em si (daí a doutrina tradicional chamá-lo de erro de fato – error facti, e o
Código Penal vigente tratá-lo como tal), ou seja, o dolo do agente não é o
de cometer crime (animus dolandi), mas, por erro sobre elementares ou
circunstâncias do tipo penal, vem a cometê-lo (tem uma noção errônea do
fato, não sabe o que está fazendo), v.g., quando o agente se apodera de
objeto alheio achando que é seu, isso enseja a exclusão do dolo (permitindo a punição a título culposo, se houver previsão legal) ou do dolo e culpa.
Já no erro de proibição (art. 21, do Código Penal) tem-se um erro de
direito (daí a doutrina tradicional chamá-lo de error iuris, e o Código Penal
vigente tratá-lo como tal), ou seja, o agente erra quanto à ilicitude do fato,
tendo um juízo equivocado, entendendo que aquela conduta não é ilegal
(o engano incide sobre o comportamento do sujeito), com reflexos na
culpabilidade, excluindo-a ou atenuando-a, e, em consequência, a pena.
Assim, a diferença marcante entre os dois institutos está na percepção da realidade, pois tem-se que no erro de tipo o agente não sabe
o que faz, tendo uma visão distorcida da realidade, não vislumbrando na
situação que se lhe apresenta a presença de fatos descritos no tipo penal
incriminador como elementares ou circunstâncias; ao passo que, no erro
de proibição, a pessoa sabe perfeitamente o que faz, existindo um perfeito
juízo sobre tudo o que está se passando, mas há uma errônea apreciação
sobre a injustiça do que faz, ela entende lícita sua conduta, quando, em
verdade, é ilícita.
Por fim, traçando-se um paralelo em casos concretos, basta volvermos aos dois exemplos suprarreferidos do erro de proibição. Ora, no
primeiro caso, dos dois irmãos que se casam supondo a inexistência de
impedimento legal, se eles desconhecessem a relação de parentesco, estar-
Wanderlei José dos Reis
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se-ia diante do erro de tipo, e não erro de proibição. Da mesma forma,
no caso da pessoa que tinha cocaína em depósito, se ela julgasse que tal
substância não fosse cocaína e sim outro material inócuo, o caso seria de
erro de tipo e não erro de proibição.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARUFFI, Helder; CIMADON, Aristides. A metodologia científica e a ciência do
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202 Normas e Instruções aos Colaboradores da Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá – Unic
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