FONSECA, Lucas Elias, SANTOS, Yádini do Canto

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FONSECA, Lucas Elias, SANTOS, Yádini do Canto
LEITURA, DECLAMAÇÃO E INTERPRETAÇÃO NA OBRA
DE BANDEIRA, DRUMMOND E JOÃO CABRAL
Lucas Elias Fonseca*
Yádini do Canto Winter dos Santos**
Profº Drº Antônio Marcos Vieira Sanseverino
RESUMO: Este trabalho investiga a relação existente entre a construção formal de poemas e o ato
declamatório, visto não como espetáculo, e sim como manifestação concreta de uma determinada
interpretação do texto. Analisam-se poemas de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João
Cabral de Melo Neto, com base, inicialmente, na análise formal do texto, que compreende a escansão e o
levantamento de figuras de pensamento e de recursos sonoros, como métrica, rimas, aliterações e
assonâncias, etc.; e, posteriormente, na audição de registros em áudio e vídeo de declamações feitas pelos
próprios autores, por artistas ou por estudiosos. Com isso, buscam-se padrões unificadores e elementos que
podem ser geradores de pluralidade do texto poético que levem à identificação da exegese subjacente a cada
leitura. O trabalho é vinculado à pesquisa Versificação Brasileira, voltada para a análise formal da
versificação e da interpretação literária e artística, através da verificação de padrões recorrentes e possíveis
razões para sua existência.
PALAVRAS-CHAVE: Versificação, Poesia Brasileira, Declamação.
ABSTRACT: The present work investigates the relation between the formal construction of poems and the
declamatory action, seen not as a spectacle but as concrete manifestation of a certain interpretation of the
text. Poems written by Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade and João Cabral de Melo Neto are
analyzed based primarily on text formal analysis, which comprehends the scansion and counting of the
figures of thought and sound resources such as metrics, rhymes, alliterations and assonances, etc.; and lately
on the hearing of audio and video records of declamations made by the authors themselves, artists and
scholars. With this, unifying patterns and elements that might be generators of the plurality of the poetic text
which can lead to the identification of each reading’s exegesis are searched for. The work is linked to
Brazilian Versification research, focused on formal analysis of versification of literary and artistic
interpretation by verifying recurring patterns as well as possible reasons for their existence.
KEYWORDS: Versification, Brazilian Poetry, Declamation
1
Como e por que estudar poesia?
Leitores de poesia são raros, e dentro desse grupo poucos são os que realmente
leem por prazer e não por obrigação escolar. A poesia, dentro das escolas e universidades,
parece não ser bem aproveitada quanto poderia. Os professores se prendem a leitura e
interpretação do sentido dos poemas e não exploram tanto o ato declamatório, perdendo a
noção de como se constrói o ritmo e a entonação dentro do poema. A poesia, como arte
*
Graduando de licenciatura em Letras – Português – Francês pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul **
Graduando de licenciatura em Letras – Português – Francês pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul verbal e auditiva, é colocada de lado. Justamente ela, que aproxima o leitor da literatura
através de nossos sentidos.
Não é explorada devidamente uma parte fundamental do poema, que o liga aos
nossos sentidos, através, principalmente, do som, da audição: a declamação de poemas. As
pessoas gostam de música, e não de poesia. Mal sabem que elas leem uma música. Muitos
poemas possuem elementos artísticos de caráter musical, mas isso não fica explícito numa
simples leitura em silêncio do poema, assim como se lêssemos letras de músicas sem saber
que são músicas. Existe toda uma construção formal dentro dos poemas, que podem se
utilizar, por exemplo, de rimas, aliterações e assonâncias, criando um universo sonoro,
rítmico, às vezes até musical, que só se torna perceptível quando manifestamos através da
fala, através dos nossos sentidos. A transposição dos poemas para o nosso universo físico,
tal qual nas suas origens, quando eram de raiz totalmente orais, aproxima a poesia do nosso
corpo. A realidade física do poema é uma parte fundamental de seu trato, que não podemos
deixar de lado.
Analisamos aqui também a profunda relação que existe entre o ato declamatório e a
interpretação crítica do texto literário. Por ser uma parte fundamental do poema, a
experiência auditiva estética é sempre carregada de significado. Como é apresentado em
Conceitos Fundamentais da Poética: “Na criação lírica, ao contrário, metro, rima e ritmo
surgem em uníssono com as frases. Não se distinguem entre si, e assim não existe forma
aqui e conteúdo ali.” (STAIGER, 1977, p. 10). Dependendo do poema analisado,
observamos que essa interpretação crítica, ou exegese, dá-se de modo diferente para cada
autor ou para cada poema. Aqui buscamos analisar essa exegese em três autores modernos
dos mais importantes da literatura brasileira: Manuel Bandeira, lírico por excelência,
Drummond, poeta social, irônico, e João Cabral de Melo Neto, o “poeta engenheiro”, antilírico. Assim, podemos ver quanto a orientação do autor influencia no evento declamatório.
Cremos que a declamação, como evento interpretativo de modo crítico, apresenta uma
leitura coerente, que levará em conta os elementos postos no próprio texto pelos poetas.
2
Análise dos poemas
2.1 Manuel Bandeira
Durante o modernismo a musicalidade ganhou grande destaque no cenário da
poesia brasileira. Os poetas preconizavam a forma livre e a fluidez na composição de suas
obras ao invés da métrica vazia do movimento parnasiano, “do lirismo que pára e vai
averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo”(BANDEIRA, p.129, s/d)
como Manuel Bandeira expressa no seu poema Poética, do livro Libertinagem. Bandeira
foi um dos poetas brasileiros que mais defendeu a proposta da musicalidade na poesia,
sem, contudo, fugir totalmente de métricas e formas propostas até então. Ele possuía uma
versatilidade ao utilizá-las, fazendo com que suas poesias seguissem algumas formas
tradicionais, possuindo rigidez formal, mas aliada a uma fluidez, utilizando-se de seu
vocabulário simples e coloquial.
O seguinte poema de Manuel Bandeira, Trem de Ferro, que se encontra no livro
Estrela da Manhã, apesar de não possuir uma métrica formal, com sílabas poéticas fixas,
tem um ritmo bastante marcado e constante ao longo do poema. A temática está explícita
no título: Trem de ferro, um tema bastante comum dentro do período modernista, as
máquinas como ícones da modernidade nas grandes cidades. Os três primeiros versos
definem o ritmo que a leitura deverá seguir, a repetição da frase “Café com pão”, verso de
4 sílabas poéticas, acentuado na segunda e na última, cria uma melodia para o texto
poético. Mas por que o autor nos traz essa marcação? Ritmo pelo ritmo seria pensar
pequeno. Partindo de uma análise grammontiana, de que o som sozinho não produz efeitos
se não estiver ligado ao sentido, essa estrofe pode simbolizar e representar o som
produzido por um trem em movimento deslizando sobre os trilhos. Nas diversas
interpretações feitas por grupos ou pessoas, essa marcação é evidenciada, mostrando que
essa leitura é inerente ao poema. É um efeito um tanto quanto lúdico e de fácil
reconhecimento.
Trem de ferro
Ca/fé/ com/ pão
Ca/fé/ com/ pão
Ca/fé/ com/ pão
(BANDEIRA, p.158, s/d)
Esse ritmo é quebrado com a estrofe seguinte composta de 12 sílabas poéticas que
parece a fala de um personagem. Dentro do contexto do poema, poderia se tratar de um
passageiro ou alguém que está dentro desse trem, que pergunta o porquê do ritmo ter sido
cortado ou do trem ter parado, ou se surpreende com a arrancada do trem:
Vir/ge/ Ma/ri/a/ que/ foi/ i/sso/ ma/qui/nis/ta?
(BANDEIRA, p.158, s/d)
Após isso, volta-se o ritmo anterior, com versos que se alteram entre 4 e 3 sílabas
poéticas indefinidamente, na maioria das interpretações. O efeito, no entanto, é o de ritmo
e encadeamento, seguindo o esquema rítmico da introdução “café com pão”, pois as sílabas
postônicas dos versos de 4 sílabas completam o ritmo, encadeando-se com os versos mais
curtos, mantendo o ritmo constante. Há uma variante, porém, nas declamações na
finalização dessa estrofe. Nos versos ‘Muita força’ em uma das declamações ouvidas,
aumenta-se o tom da voz dos declamadores para cada vez mais alto ao longo do 3 versos,
uma metáfora de que força é tom da voz mais forte, ou seja, mais alto. Contudo em uma
outra interpretação dos versos o tom da voz diminui ao longo dos versos, representando,
através do som e do ritmo das palavras, uma pessoa fazendo força, ‘muita força’:
A/go/ra/ sim
Ca/fé/ com/ pão
A/go/ra/ sim
Ca/fé/ com/ pão
Voa,/ fu/ma/ça
Co/rre,/ cer/ca
Ai/ seu/ fo/guis/ta
Bo/ta/ fo/go
Na/ for/na/lha
Que eu/ pre/ci/so
Mui/ta/ for/ça
Mui/ta/ for/ça
Mui/ta/ for/ça
(BANDEIRA, p.158 -159, s/d)
A próxima estrofe relembra o ritmo de cantigas infantis e parlendas de
conhecimento popular, trata-se de uma união de palavras com um ritmo constante e muitas
vezes com rimas, uma brincadeira bastante comum, onde o brinquedo são as palavras. Os
versos mantêm uma mesma métrica de 3 sílabas poéticas com acento na última,
favorecendo, na declamação, a sequência rápida e ritmada dos versos, como nas cantigas
infantis permanecendo ainda o ritmo “café com pão” do início do poema, que é acelerado
devido às repetições encadeadas de “foge” e “passa”. A finalização dessa estrofe é também
realizada diferente pelos declamadores ouvidos, os dois últimos versos tiveram
interpretações diferentes: em uma delas o tom da voz aumenta, assemelhando-se a um
grito, para que se possa ser ouvido por todos o desejo de cantar do sujeito; em uma outra é
declamado em um tom menos elevado como se fosse um suspiro, um desejo do sujeito
confessado para si mesmo .
O/ô..
Fo/ge,/ bi/cho
Fo/ge,/ po/vo
Pa/ssa/ pon/te
Pa/ssa/ pos/te
Pa/ssa/ pas/to
Pa/ssa/ boi
Pa/ssa/ boia/da
Pa/ssa/ ga/lho
De in/ga/zei/ra
De/bru/ça/da
No/ ri/a/cho
Que/ von/ta/de
De/ can/tar!
(BANDEIRA, p.159, s/d)
A estrofe seguinte segue na mesma linha de cantigas populares, três cantigas
diferentes separadas pelo ‘Oô’, que já havia sido utilizado anteriormente para separar as
estrofes. O ‘Oô’ aparece como se fosse um berro, do maquinista ou de algum passageiro do
trem, que organiza o poema, separando temáticas diferentes dentro do mesmo. Porém, os
versos a seguir extrapolam a métrica que até aqui era praticamente regular, eles oscilam
entre 4, 5 e 6 sílabas poéticas, fazendo com que o ritmo “café com pão” seja cortado e
acelerado. Coloca-se em evidência os três mini relatos dessa estrofe. Os versos lembram
muito cantigas populares porque a maneira de escrever não é a que pregada pela gramática
tradicional, utilizando-se de expressões faladas em certas regiões do país, de certas classes
sociais, aproximando, ainda mais, a poesia de uma musicalidade, pois é um jeito de falar
que sai mais naturalmente.
O/ô…
Quan/do/ me/ pren/de/ro
No/ ca/na/vi/á
Ca/da/ pé/ de/ ca/na
E/ra um/ o/fi/ci/á
Ô/o…
Me/ni/na/ bo/ni/ta
Do/ vês/ti/do/ ver/de
Me/ dá/ tua/ bo/ca
Pra/ ma/tá/ mi/nha/ se/de
Ô/o…
Vou/ mim/bo/ra/ vou/ mim/bo/ra
Não/ gos/to/ da/qui
Na/sci/ no/ ser/tão
Sou/ de Ou/ri/cu/ri
Ô/o…
(BANDEIRA, p.159, s/d)
A estrofe que finaliza esse poema de Manuel Bandeira retoma o ritmo “café com
pão” criado na primeira estrofe do mesmo, variando nas sílabas poéticas, mas mantendo o
ritmo. Um traço marcante nas declamações dessa estrofe é sobre os três últimos versos, em
que, novamente, o sentido das palavras interfere no modo como são declamados os versos:
o tom da declamação vai diminuindo ao longo das três estrofes até restar só o silêncio,
como se o trem tivesse parado – na medida em que vão diminuindo as pessoas (“pouca
gente”) no trem, mais perto está a estação final e, consequentemente, a parada do trem.
Vou/ de/pre/ssa
Vou/ co/rren/do
Vou/ na/ to/da
Que/ só/ le/vo
Pou/ca/ gen/te
Pou/ca/ gen/te
Pou/ca/ gen/te…
(BANDEIRA, p.159, s/d)
Esse poema mescla o som, o ritmo e o significado das palavras. Eles estão tão
ligados dentro do poema que se torna difícil separá-los. Numa explicação sobre som e
ritmo do poema sempre recorremos ao significado e vice e versa. Roman Jakobson, dentro
do seu livro Linguística e Comunicação, apresenta essa mesma ideia no seu ensaio
Linguística e Poética:
O simbolismo sonoro constitui uma relação inegavelmente objetiva, fundada
numa conexão fenomenal entre diferentes modos sensoriais, em particular entre
experiência visual e auditiva. (...) o nexo interno entre som e significado se
converte de latente em patente e se manifesta da forma mais palpável e intensa
(...)” (JAKOBSON, 2007, p. 153)
Em uma primeira leitura silenciosa do dado poema não fica explícito o ritmo e a
marcação que existe no seu interior, porém ao lermos em voz alta a melodia criada por esse
poema é tão visível e intensa que um dos mestres da música popular brasileira, Tom Jobim,
musicou este mesmo poema; permanecendo o ritmo marcado, e bastante salientado antes,
“café com pão” de 4 sílabas poéticas.
Em um dos mais conhecidos poemas de Manuel Bandeira, “obra-prima do volume
(Libertinagem), e quiçá de toda a poesia de Manuel Bandeira”, como afirma Massaud
Moisés (2001, p. 92), no seu livro História da Literatura Brasileira. Vou-me embora pra
Pasárgada – que, atualmente, representa quase uma expressão popular - apesar de o poeta
seguir um ideal modernista, aderindo ao verso livre, a métrica se mantém: são 5 estrofes,
com a quantidade de versos variável entre 5, 8 e 12, com versos em redondilha maior, com
acentuação variável. Esse verso é bastante utilizado na poesia popular, legitimando o ideal
de simplicidade muito presente em toda obra de Bandeira. Tornou-se também um dos
poemas mais declamados por artistas e apreciadores da sua poesia, entre eles Juca de
Oliveira, Antonio Abujamra e pelo próprio Bandeira,
além das duas musicalizações
gravadas por Paulo Diniz e Gilberto Gil.
Nas declamações, ou citações apenas, há uma discussão quanto ao título desse
poema, que propõe a questão da pronúncia da palavra “Pasárgada”, se com som de “s” ou
“z”. O próprio escritor ao declamar seu poema pronuncia de acordo com a regra, com som
de ‘z’. Podemos ver que a questão sonora, no caso o uso das fricativas (sonoras ou não), é
fundamental, pois o som e o significado se ligam aqui no nível artístico, gerando
discussões em torno de si.
Nas duas primeiras e na última estrofe do poema aparecem advérbios de lugar
como ‘lá’ e ‘aqui’, esses são bastante enfatizados por todas as declamações, principalmente
a de Bandeira, fazendo com que se quebre um pouco o devaneio e estabelecendo
rigorosamente que “lá”, no caso Pasárgada, não é “aqui”, mundo real, demonstrando assim
o tom trágico do poeta tuberculoso. Como já se sabe, Manuel Bandeira sofria com as
limitações de sua doença desde muito jovem, justificando assim nessa poesia a melancolia
e o desejo do poeta em realizar atividades que não poderia na vida real.
Vou/-me em/bo/ra/ pra/ Pa/sár/gada
Lá/ sou/ a/mi/go/ do/ rei
Lá/ te/nho/ a/ mu/lher/ que eu/ que/ro
Na/ ca/ma/ que es/co/lhe/rei
Vou/-me em/bo/ra/ pra/ Pa/sár/gada
Vou/-me em/bo/ra/ pra/ Pa/sár/gada
A/qui/ eu/ não/ sou/ fe/liz
Lá a e/xis/tên/cia é u/ma a/ven/tu/ra
De/ tal/ mo/do in/con/se/qüen/te
Que/ Joa/na a/ Lou/Ca/ de Es/pa/nha
Ra/i/nha e/ fal/as/ de/men/te
Vem/ a/ ser/ con/tra/pa/ren/te
Da/ no/ra/ que/ nun/ca/ ti/vê
(...)
— Lá/ sou/ a/mi/go/ do/ rei —
Te/rei/ a/ um/lher/ que eu/ que/ro
Na/ ca/ma/ que es/co/lhe/rei
Vou/-me em/bo/ra/ pra/ Pa/sár/gada.
(BANDEIRA, p.143, s/d)
Na terceira estrofe do poema, dos primeiros versos até o ponto de exclamação, está
presente nas declamações um tom emocionado com as “aventuras” do eu poético do poema
que é apaziguado pelo verso seguinte. A palavra “cansado” influencia na mudança no tom
da estrofe, pois a interpretação extrapola, mais uma vez, o ritmo, e se utiliza do significado
real da palavra, as interpretações tendem a diminuir o ritmo a partir desse momento, surge
uma lentidão que permanece até o final da estrofe, como se fosse alguém que estivesse
realmente cansado de tantas ações, unindo a isso o tom saudosista que geralmente marca o
tema da infância.
E/ co/mo/ fa/rei/ gi/nás/tica
An/da/rei/ de/ bi/ci/cle/ta
Mon/ta/rei/ em/ bu/rro/ bra/bo
Su/bi/rei/ no/ pau/-de/-se/bo
To/ma/rei/ ba/nhos/ de/ mar!
E/ quan/do es/ti/ver/ can/sa/do
Dei/to/ na/ bei/ra/ do/ rio
Man/do/ cha/mar/ a/ mãe/-d'á/gua
Pra/ me/ con/tar/ as/ his/tó/rias
Que/ no/ tem/po/ de/ eu/ me/ni/no
Ro/as/ vi/nha/ me/ con/tar
Vou/-me em/bo/ra/ pra/ Pa/sár/ga/da
(BANDEIRA, p.143-144, s/d)
Merece destaque, na quarta estrofe do poema a palavra “tudo”, do primeiro verso, a
forma como ela é declamada pelos cantores e declamadores. O tom utilizado para
expressar “tudo” é um tom abrangente, uma fala longa, arrastada, dando a impressão de
que a palavra abarca uma grande quantidade de coisas. Essa maneira de expressá-la é
também utilizada em conversas cotidianas; temos o hábito de representar as palavras
através de sons ou gestos.
Em/ Pa/sár/ga/da/ tem/ tu/do
É ou/tra/ ci/vi/li/za/ção
Tem/ um/ pro/ce/sso/ se/gu/ro
De im/pe/dir/ a/ con/cep/ção
Tem/ te/le/fo/ne/ au/to/má/tico
Tem/ al/ca/lói/de à/ von/ta/de
Tem/ pros/ti/tu/tas/ bo/ni/tas
Pa/ra a/ gen/te/ na/mo/rar
(BANDEIRA, p.144, s/d)
A última estrofe tem dois tons, um no começo e outro no final. Os primeiros 4
versos giram em torno das palavras “triste” e “morte” , trazendo uma melancolia expressa
através do tom de voz mais baixo, mais ameno, como um lamento. Nos últimos quatro
volta o tom do começo do poema, bastante ritmado.
E/ quan/do eu es/ti/ver/ mais/ tris/te
Mas/ tris/te/ de/ não/ ter/ jei/to
Quan/do/ de/ noi/te/ me/ der
Von/ta/de/ de/ me/ ma/tar
— Lá/ sou/ a/mi/go/ do/ rei —
Te/rei/ a/ mu/lher/ que eu/ que/ro
Na/ ca/ma/ que es/co/lhe/rei
Vou/-me em/bo/ra/ pra/ Pa/sár/gada.
(BANDEIRA, p.144, s/d)
Existe diferença de tom geral do poema dependendo da declamação, pois depende
também da interpretação que a pessoa fará do poema. Como afirma Jakobson (2007,
p.141), no ensaio Linguística e Poética: “Qualquer que seja a maneira de ler de quem
recita, a coerção da entonação permanece válida”.
Na leitura de Juca de Oliveira, há elementos mais divertidos que nas outras leituras.
O eu poético traz um ar de bonachão, de engraçado, de quem ri da própria desgraça; já
Antonio Abujamra preferiu se focar na emoção extremada, declama com uma rapidez
angustiante. Manuel Bandeira lê seu poema de uma maneira mais melancólica, como um
desabafo de seus desejos. Nas duas músicas que fizeram com o poema, Vou-me embora
pra Pasárgada, permanece como refrão e os ritmos não fogem muito do proposto pelo
autor.
2.2 Carlos Drummond de Andrade
Outro poeta que segue nos moldes do modernismo, porém mais tardiamente,
explorando a questão do ritmo e da tonalidade dentro de seus poemas é Carlos Drummond
de Andrade, que “cultivou, ao longo de uma carreira de mais de cinco décadas, o conto, a
crônica e a poesia, sempre num alto nível de inventividade e expressão” (MOISÉS, 2001,
p.263). No seu livro José há o célebre poema, marcante em sua obra, que se tornou até
mesmo expressão popular, também chamado José. Esse poema possui um ritmo marcado e
repetitivo. A maioria dos seus versos é de 5 sílabas poéticas, ou seja, redondilha menor,
com acento na 2ª e a 5ª sílaba poética, e alguns poucos de 6 sílabas poéticas, acentuados na
3ª e 6ª sílabas, encaixando-se assim na categoria de heroico quebrado. Apesar de não ser
metrificado regularmente, parece ser, pois seu ritmo é constante e bem marcado e, também,
bastante recorrente na nossa cultura, com versinhos infantis, que se utilizam desse tipo de
métrica.
Os primeiros dois versos hexassílabos que aparecem no poema, na segunda estrofe,
parecem estar desvinculados do tema que até ali era martelado, logo também fogem da
métrica regular e do tom declamatório que até ali era semelhante nos versos, mas
permanece dentro do tema geral do poema e não gera nenhuma incompreensão do mesmo.
Outra observação a ser feita sobre a declamação do seguinte trecho é sobre os 3 versos
anteriores ao da pergunta, acabam com a vogal “u”, logo com um fechamento da boca,
trazendo um tom fechado, soturno para esta parte do poema.
Es/tá/ sem/ mu/lher,
es/tá/ sem/ dis/cur/so,
es/tá/ sem/ ca/ri/nho,
já/ não/ po/de/ be/ber,
já/ não/ po/de/ fu/mar,
cus/pir/ já/ não/ po/de,
a/ noi/te es/fri/ou,
o/ di/a/ não/ vei/o,
o/ bon/de/ não/ vei/o,
o/ ri/so/ não/ vei/o,
não/ vei/o a u/to/pi/a
e/ tu/do a/ca/bou
e/ tu/do/ fu/giu
e/ tu/do/ mo/fou,
e a/go/ra,/ Jo/sé?
(ANDRADE, 2008, p.30)
Os hexassílabos aparecem novamente nas duas últimas estrofes, adicionando um
efeito aos versos anteriores, mudando a voz discursiva, como se fossem um comentário
dentro do poema. Os dois seguintes versos destacados dão a ideia de comentário, de uma
fala do sujeito do discurso, pois se referem mais diretamente ao seu destinatário, José, que
os outros versos do poema.
Se/ vo/cê/ gri/ta/sse,
se/ vo/cê/ ge/me/sse,
se/ vo/cê/ to/ca/sse,
a/ val/sa/ vie/nen/se,
se/ vo/cê/ dor/mi/sse,
se/ vo/cê/ can/sa/sse,
se/ vo/cê/ mo/rre/sse....
Mas/ vo/cê/ não/ mo/rre,
vo/cê é/ du/ro,/ Jo/sé!
So/zi/nho/ no/ es/cu/ro
qual/ bi/cho/-do/-ma/to,
sem/ te/o/go/nia,
sem/ pa/re/de/ nua
pa/ra/ se en/cós/tar,
sem/ ca/va/lo/ pre/to
que/ fu/ja a/ ga/lo/pe,
vo/cê/ mar/cha,/ Jo/sé!
Jo/sé,/ pa/ra/ on/de?
(ANDRADE, 2008, p. 31-32)
Nas declamações ouvidas e observadas desse poema, o que muda é a interpretação
da emoção do personagem que remete a mensagem, o ritmo permanece o mesmo, o
marcado pela métrica do poema. Na leitura do próprio Drummond, o sujeito que ‘fala’ é
conformado e sem muita emoção, carrega um tom de quem aceita o destino – algo como ‘a
vida é assim mesmo’ – como o pobre diabo ‘José’; as palavras são muito bem expressas na
leitura do autor, trazendo mais um caráter de leitura dinâmica que de declamação ou
representação e interpretação. O ritmo é marcado, mas de uma forma mais lenta, diferente
da interpretação de Paulo Autran que traz uma vivacidade ao poema. O ritmo acelera,
gerando desespero teatral no ouvinte, bem mais do que Drummond; porém a voz soturna,
que se assemelha à de Drummond, permanece na interpretação de Autran. Essa voz
soturna, nos mostra a tristeza da situação que nos é contada, relacionando mais uma vez
conteúdo do poema ao tom que é lido e expresso. Existem ainda outras interpretações em
que o ritmo é enlouquecedor devido ao êxtase e rapidez com que são lidos os versos de
Drummond, não deixando de ser também uma interpretação válida. Jakobson, no mesmo
ensaio, cita um excerto de uma observação de Wimsatt e Beardsley:
“Há muitas recitações possíveis do mesmo poema — que diferem entre si de
muitas maneiras. Uma recitação é um acontecimento, mas o poema propriamente
dito, se é que um poema existe, deve ser alguma espécie de objeto duradouro."
(apud JAKOBSON, 2007, p. 142)
Mais uma vez o poema estudado se tornou alvo da música, Paulo Diniz, musicou
este poema de Drummond seguindo o mesmo ritmo proposto pela métrica. E agora , José?
se tornou o título da canção e também o refrão, pois este verso se repete diversas vezes ao
longo do poema, nada mais l.
O outro poema do autor que nos propusemos a analisar é o antológico No meio do
caminho. Ele é dividido em duas partes, marcadas apenas por uma quebra nos três
primeiros versos da segunda estrofe, onde há, propriamente, mudança da frase utilizada.
Não há necessidade de escandirmos o poema, que é um autêntico poema em verso livre. O
autor busca através de outros elementos formais, de ordem sintática, referentes à evolução
do pensamento, construir o seu poema. O que temos, então, é a repetição não só de
estruturas, mas das mesmas estruturas. Vejamos:
NO MEIO DO CAMINHO
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
no meio do caminho tinha uma pedra.
(ANDRADE, 2008, p.267)
Temos, nessa primeira estrofe, vários elementos introduzidos pelo poeta a fim de
gerar efeitos e significados. O efeito mais óbvio, a repetição, nos dá a ideia de tédio, de
cansaço. O tom parece meio “blasé”. Os dois sintagmas são repetidos, alternadamente,
quatro vezes cada um. Não há acréscimo de informação, há apenas a inferência da
monotonia, que se dá exatamente na repetição exaustiva. Há também um efeito de bloqueio
aqui, com uma pedra que se põe ‘no meio do caminho’. Esse bloqueio é tanto no nível
verbal, pois não há progressão do pensamento, quanto na sintaxe, uma vez que no 3º verso
‘tinha’ (ou melhor, ‘tem’) ‘uma pedra’ exatamente ‘no meio do caminho’ da estrofe,
funcionando como ligação entre os sintagmas que o precedem e o sucedem, simbolizando a
própria pedra. Na segunda estrofe ocorre uma mudança:
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho.
(ANDRADE, 2008, p.267)
Os 6º, 7º e 8º verso são os únicos que diferem da construção do resto do poema.
Eles vêm reforçar a ideia do cansaço e do tédio, uma vez que uma pedra é o grande
acontecimento da vida do eu lírico na vida de suas retinas tão fatigadas, um movimento
carregado de ironia. Ocorre, novamente, o verso “tinha uma pedra” entre dois outros
versos, mas não ligando nada dessa vez, deixando apenas a impressão da pedra no meio do
caminho.
As interpretações desse poema seguem mais ou menos a linha do tédio e do cansaço
mental. A interpretação feita pelo próprio poeta traz a marca de um eu lírico fatigado. É
importante notarmos o efeito gerado pela repetição, aliada ao tom de cansaço, que gera
uma atmosfera de monotonia melancólica, a qual pode ser percebida na leitura silenciosa
do poema, mas ganha um efeito mais corpóreo quando no evento declamatório
propriamente dito. Temos também a leitura de Paulo Autran. Nela, percebemos o mesmo
clima de cansaço, mas está presente, talvez por se tratar de uma interpretação mais
artística, um tom irônico muito sutil, que serve para realçar a imagem monótona, que se
torna carregada de um tom pejorativo. Essa fina ironia só aparece a partir do 6º verso,
quando há uma mudança de ordem sintática e vocabular, que parece favorecer tal
entonação. Encontramos um material feito no formato de curta-metragem cujo único texto
era o poema No meio do caminho. Em tal interpretação a exegese torna-se curiosamente
diversa daquela dos artistas mais voltados para a literatura. A pedra no meio do caminho
representa não mais o objeto da melancólica ironia ou do cansaço intelectual, mas sim um
desafio, um bloqueio a ser superado. A declamação, nesses casos, se dá em cima de uma
ironia muito mais marcada, cujo pico não é o 6º verso, mas as repetições de “tinha uma
pedra”.
Observamos, com relação aos poemas de Drummond, que a pluralidade poética e
sua construção formal, seja em versos livres, seja sobre uma versificação mais aparente,
favorece uma diferente gama de interpretações. É um fenômeno observável também na
obra de Bandeira. Essa pluralidade é muito rica em termos de poesia, mas ela por si só não
é denotativo de qualidade. O próximo poeta que analisaremos prova que é possível fazer
excelentes poemas mesmo com uma interpretação mais fechada.
2.3 João Cabral de Melo Neto
A obra poética de João Cabral, especialmente na sua fase madura, é baseada na
busca da objetividade, voltando-se, a sua poesia, para o mundo externo e observável. Tal
construção de ponto de vista é visível nas características formais do poema, que não só
evita a rima aparente, mas também busca variações rítmicas que trancam a leitura, mas
geram o efeito visual desejado pelo poeta. Esse tipo de construção poética ficou conhecida
como a poética tipicamente “cabralina”. É devido a ela que podemos explicar a maior
dificuldade em achar materiais sonoros da obra do poeta, em contraponto aos outros dois
artistas estudados.
Estudamos aqui dois poemas fundamentais do autor: Morte e Vida Severina
(trechos iniciais) e Educação pela pedra. Os dois poemas são notavelmente diferentes,
devido aos efeitos buscados individualmente em relação à tentativa estética do autor, mas
mantêm a busca pela objetividade acesa, mostrando o mundo seco que o autor busca: o
poema voltado para fora.
Morte e Vida Severina começa nos apresentando o que parece ser um poema feito
com base nas características poéticas líricas da língua portuguesa. Essa característica se dá
devido à aproximação do poeta com a construção da poética dos cordéis. Uma análise mais
atenta, contudo, nos mostra que não é exatamente o que ocorre: os elementos poéticos se
fundem numa dissolução parcial do lirismo, uma vez que a construção de imagens é
objetiva, e o verso, nem sempre regular, é às vezes quebrado, com acentos que variam de
verso para verso. As rimas, mesmo sendo rimas abertas, gerando o encadeamento, são
muitas vezes repetições da mesma palavra, rimas internas, imperfeitas ou toantes, deixando
a impressão de um lirismo dissolvido, mas não totalmente. Aqui se postula antes uma
secura do poema que uma antidiscursividade, que veremos adiante. Vejamos:
“— O/ meu / no / me é/ Se/ ve / ri / no,
co / mo / não / te / nho ou/ tro / de / pi / a.
Co / mo há / mui / tos / Se / ve / ri / nos,
que é / san / to / de / ro / ma / ri / a,
de / rã en / tão / de / me / cha / mar
Se / ve / ri / no / de / Ma / ri / a;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.”
(NETO, 1986, p.203)
A marcação pelo travessão nos indica a fala, que é dada a voz a um sertanejo. Essa
fala, apesar do ritmo mais ou menos marcado, é despida do lirismo tradicional, uma vez
que o ritmo tem acentos muitas vezes irregulares que truncam a leitura poética. Podemos
ver que todo o caráter do personagem é objetivo: a apresentação de si, a localização
geográfica, a história das famílias e outros elementos. Desse poema, temos a interpretação
feita pelo especial Morte e Vida Severina, feito pela Rede Globo, sob direção de Walter
Avancini. O ritmo prosaico dado pelo ator José Dumont ilustra bem a impessoalidade,
apresentando o mundo. O tom é de quem descreve, pura e simplesmente, a sua terra, sua
história, sua situação. Isso se torna interessante, na medida em que esse poema parece se
aproximar da poética tradicional, inclusive com algumas rimas, soando mais musical em
contraste com sua poética mais conhecida. A interpretação de Dumont mostra que a leitura
do poema não se baseia na lírica e os elementos rítmicos, voltando-se para a exterioridade
e a secura do sertão.
Outra interpretação artística dada ao poema de João Cabral é a musicalização do
mesmo pelo cantor e compositor Chico Buarque. “Talvez por não conhecer João Cabral eu
aceitei.”, disse ele em entrevista para o documentário ‘O artista inconfessável’, feito pela
editora Alfaguara. A leitura feita pelo cantor denota, talvez pelo clima musical, um
sofrimento do eu lírico com sua vida diluída, num sertão descaracterizado. Entra em cena o
elemento subjetivo do sofrimento da terra agreste. Vale ressaltar que essa é a única das
declamações pesquisadas em que entra em cena tal interpretação intimista do eu lírico em
um poema do autor, o que não representa um ‘limite’, mas é um forte demonstrativo da
aplicação da poética cabralina.
Passemos agora a outro de seus poemas, que é quase como seu tratado poético:
A Educação pela Pedra
U / ma e / du / ca / ção / pe / la / pe / dra /: por / li / ções;
pa / ra a / pren / der / da / pe / dra, / fre / quen / tá- / la;
ca / ptar / sua / voz / i / nen / fá / ti / ca, im / pes / soal
(pe / la / de / dic / ção / e / la / co / me / ça as / au / las).
A / li / ção / de / mo / ral / , sua / re / sis / tên / cia / fri / a
ao / que / flui / e / a / flu / ir /, a / ser / ma / lea / da;
a / de / poé / ti / ca, / sua / car / na / du / ra / com / cre / ta;
a / de e / co / no / mi / a /, seu / a / den / sar /-se / com / pac / ta:
li / ções / da / pe / dra / (de / fo / ra / pa / ra / den / tro,
car / ti / lha / mu / da /), pa / ra / (quem) / so / le / trá /-la.
*
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
(NETO, 1986, p.11)
Como podemos ver na análise formal, a métrica não é perfeitamente regular, apesar
de aparentar. Nesse poema, muito mais que no anterior, o efeito buscado é visual, não
sonoro. Antônio Cândido nos fala sobre essa construção: ela é “ritmo criando a impressão
de igualdade entre versos que de fato tem contagem silábica diversa, como ocorre em
muitos poetas modernos, e de maneira quase sistemática na obra mais recente de João
Cabral de Melo Neto.” (CÂNDIDO, 1996, p. 50). A métrica é quebrada, irregular,
fragmentada, representando essa firmeza estética buscada pelo poeta. As rimas mais
regulares são as toantes nas sílabas pares. Isso e a ocorrência de rimas internas, contudo,
acabam fragmentando o que seria regularidade de som, não favorecendo a cadência. Tanto
isso é verdade que essas rimas não nos são evidentes, ou antes relevantes, mesmo quando
lidas em voz alta na declamação analisada. O poema é uma pedra. É um poema firme e
duro. Quanto à poética, ele tem uma “carnadura concreta”. Esse exemplo, entre outros,
favorece o movimento declamatório mais comum da obra de João Cabral: uma simples
leitura prosaica e cortada em voz alta. É aqui que se evidencia o efeito da
antidiscursividade referido anteriormente: o poema é antissonoro, antideclamatório. A
declamação a que tivemos acesso é uma gravação que aparenta ser do próprio escritor, mas
isso não está marcado.
Nas declamações pesquisadas, de outras poesias do pernambucano, a sensação que
temos é de uma simples leitura em voz alta, sobre a qual não se pode fazer muitas
variações. Aliás, como interpretar a pedra de João Cabral da mesma forma que a pedra de
Drummond? Este nos apresenta a pedra em situação, dá margem às interpretações,
enquanto aquele apresenta a própria pedra, estática, dura, impassível. Como se não fosse
suficiente, ele disseca a pedra, nos dá todas as suas características. Quando há um
deslocamento da pedra a lecionar para a pedra no sertão, há apenas o deslocamento: a
pedra ainda é a pedra, com a mesma dureza. A única diferença é que no sertão a pedra e o
ambiente são da mesma natureza.
É interessantíssimo observar que a busca da objetividade e do poema como
realização concreta em si dentro do texto e não como realidade sonora também se reflete
na escassez de material sonoro. O depoimento de artistas como Chico Buarque e Liminha,
vocalista do grupo Cordel do Fogo Encantado, dão conta de que musicar os poemas de
João Cabral é um exercício interessante exatamente por causa da extrema dificuldade,
imposta pelos textos do poeta. Não é à toa que seja tão comum vermos Bandeira e
Drummond em saraus, mas não tenhamos a mesma produtividade em termos declamatórios
com as poesias de João Cabral. A preocupação estética na obra deste é a causa primária da
admiração dos concretistas, que o elegeram como uma espécie de mentor poético. Ele é,
sem dúvida, o poeta engenheiro, de pedra.
3
CONCLUSÃO
Podemos observar que a orientação artística dos autores influencia nas leituras
declamatórias dos poemas, pois estas se dão em cima de elementos formais utilizados pelos
poetas. A possibilidade de diversas interpretações na declamação reflete diretamente a
orientação dos artistas. Podemos ver que a produtividade de materiais sonoros baseados na
obra de Bandeira e Drummond é muito maior do que no caso de João Cabral, exatamente
por causa do texto.
Essa dimensão física do poema, fora do papel, é fundamental na boa compreensão
do fenômeno literário, pois a partir daí é possível explicar diversos fenômenos, como, por
exemplo, a rejeição ao verso, dos concretistas, inspirando-se em João Cabral. Enquanto
não se prestar atenção nos aspectos formais que podem gerar interpretações artísticas e
literárias, o ensino estará deixando de lado um dos aspectos fundamentais da arte poética,
manifestado desde seu começo. É importante mostrar, para quem quer que seja que esteja
aprendendo literatura, que o poema, antes de ser um texto no papel, tem uma realidade
física intrínseca a si. Para isso, é necessário que os professores saibam declamar as poesias,
exaltando quais são os aspectos fundamentais dessa interpretação.
REFERÊNCIAS
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2008.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Editora Record, s/d.
CÂNDIDO, Antônio. Inquietudes na Poesia de Drummond. São Paulo: Duas Cidades,
1970.
_________________. O estudo analítico do poema / São Paulo: Humanitas Publicações /
FFLCH/USP, 1996.
JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação.Trad. BLIKSTEIN, Izidoro e PAES,
José Paulo. São Paulo: Cultrix, 2007.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Volume III - Modernismo. São
Paulo: Editora Pensamento, 2001.
NETO, João Cabral de Melo. Poesias Completas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1986.
STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Trad. GALEÃO, Celeste Aída. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.
VILLAÇA, Alcides. Expansão e limite da poesia de João Cabral In: BOSI, Alfredo (org.).
Leitura de Poesia. São Paulo: Ática, 1996
AUDIOVISUAL
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Manuel
Bandeira
-
Vou-me
embora
pra
pasargada
–NP.
Disponível
em:
http://www.youtube.com/watch?v=LwxT9JZJAZk (Última consulta feita em 26/07/12)
No
meio
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caminho;
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Disponível
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http://www.youtube.com/watch?v=Oj6wf‐N3AMg (Última consulta feita em 26/07/12)
NO
MEIO
DO
CAMINHO
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Drummond.
Disponível
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O
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http://www.youtube.com/watch?v=Pc7mSYhPApI (Última consulta feita em 26/07/12)
O
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inconfessável
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Editora
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http://www.youtube.com/watch?v=honRyFrjR_E (Última consulta feita em 26/07/12)
SABINO, Fernando; NEVES, David; ANDRADE, Pedro de; O Habitante de Pasárgada
(Documentário) in Encontro Marcado com o Cinema de Fernando Sabino e David Neves
(DVD). Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=acWHzVBs394 (Última
consulta feita em 26/07/12)
Sarau Poético Vestibular UFRGS 2011 - Parte 1 (Manuel Bandeira) - Grupo VerBras e
ParaLÊlos. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=5gFS2wz4x5g (Última
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Vou-me Embora pra Pasárgada - Manuel Bandeira - Juca de Oliveira. Disponível
em:http://www.youtube.com/watch?v=LzgER5su9fU (Última consulta feita em 26/07/12) 

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