análise do discurso humorístico - UNIFAL-MG

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análise do discurso humorístico - UNIFAL-MG
ANÁLISE DO DISCURSO HUMORÍSTICO: AS MARCAS SOCIOLINGUÍSTICAS,
CULTURAIS E HISTÓRICAS PARA A/O PRODUÇÃO/DESVIO DO SIGNIFICADO
Geraldo José Rodrigues LISKA (Unifal-MG)1
RESUMO
Este artigo objetiva apresentar diversas produções semânticas marcadas por fatores
sociolinguísticos, culturais e históricos nas palavras inseridas em um discurso humorístico.
Pretende-se justificar a importância das diferentes construções do significado para a
compreensão do humor presente nas piadas como um processo de (re)criação do texto. A
maioria delas contém algum elemento linguístico com pelo menos dois sentidos possíveis, um
óbvio e um dominante, cuja leitura deve ser realizada pela busca de pistas linguísticodiscursivas, repletas de intertextualidade, ambiguidade e informações implícitas. Após a
exposição dos aspectos teóricos, será apresentado o corpus como comprovação prática do
efeito humorístico da polissemia.
Palavras-chave: discurso humorístico, piada, polissemia, produção de significado.
ABSTRACT
This article presents several semantic productions marked by sociolinguistic factors, cultural
and historical in the words entered in a humorous speech. It is intended to justify the
importance of different constructions of meaning for understanding the humor in jokes like
this one (re) creation of the text. Most of the jokes contains some linguistic element with at
least two possible meanings, one obvious and one dominant, and the readings should be done
by searching for clues linguistic-discursive, full of intertextuality, ambiguity and implicit
information. After exposing the theoretical aspects The corpus will be presented as evidence
of the practice humorous effect of polysemy.
1
[email protected]
Keywords: speech humorous, joke, polysemy, production of meaning.
1 Introdução
Não é preciso ser linguista para saber que um discurso deve ser de conhecimento
dos interlocutores para que o processo de comunicação se estabeleça com sucesso.
Necessita-se remeter o enunciado à história e às condições de produção/compreensão que
interferem no trabalho de criação/percepção dos sujeitos de um determinado discurso, como
a formação sociolinguística e o desenvolvimento psíquico deles.
Entre os diferentes discursos de estudo dessa área, surge o humorístico, objeto de
estudo deste artigo, que não pode ser visto apenas com função de entretenimento, já que
para sua compreensão se exige um contexto2 que deve ser de conhecimento dos
interlocutores do discurso. Cabe ao leitor fazer operações epilinguísticas, utilizar-se de
conhecimentos sobre a língua, sobre o comportamento linguístico que se espera de um
sujeito em determinada situação, sobre o contexto em que se produziu o texto. É necessário
percorrer um caminho de pistas linguístico-discursivas, pois o enunciado apresenta efeitos
de sentido entre interlocutores. Trata-se de um processo afetado pela situação, pelo contexto
histórico-social, pelas condições de sua produção (PÊCHEUX, 1969). Essa relação acerca
do discurso e sua formação pode ser visualizada da seguinte maneira:
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Bunge (1980) define ‘contexto’ como “um conjunto de proposições referentes a um mesmo
domínio (p.ex., sociedades humanas) contendo certos conceitos (...) que constituem um grupo
homogêneo”
Figura 1
2 A produção do humor: um texto, um contexto e o riso.
A língua move-se ao longo do tempo numa corrente que ela própria constrói. Tem
um curso… Nada é perfeitamente estático. Todas as palavras, todos os elementos
gramaticais, todas as locuções, todos os sons e acentos são configurações que
mudam lentamente, moldadas pelo curso invisível e impessoal que é a vida da
língua (SAPIR, 1921, p.150-171, apud ULMANN, 1973, p.401).
O discurso humorístico é uma das melhores formas para a abordagem na sala de
aula do processo de (re)criação textual. Bergson (1991, p. 69-70) ressalta a importância do
texto humorístico para essa finalidade:
Devemos distinguir entre o cômico que a linguagem exprime e aquele que a
linguagem cria. O primeiro poderia, em rigor, ser traduzido de uma linguagem
para outra, sujeito embora a perder boa parte do seu relevo ao passar para uma
sociedade nova, diferente pelos seus costumes, pela sua literatura e sobretudo
pelas suas associações de ideias. Mas o segundo é geralmente intraduzível. Deve
o seu ser à estrutura da frase ou às palavras escolhidas. Não verifica, mediante o
auxílio da linguagem, certas distrações particulares dos homens ou dos
acontecimentos. Sublinha as distrações da própria linguagem. É a própria
linguagem, aqui, que se torna cômica.
Portanto, esse gênero textual não deve ser encarado apenas com o propósito de
divertir. Nele, percebe-se que tanto emissor como receptor da mensagem possuem papel
ativo na produção do significado, mesmo que este seja diferente para ambos.
A seleção das palavras a fim de produzir vários efeitos de sentido proporciona a
dinamicidade do texto. Ullmann (1973) afirma existir heterogeneidade nas palavras por
meio de seus múltiplos significados, que dependem do contexto no qual estão inseridas, da
situação na qual são utilizadas e da personalidade do emissor da mensagem. Deve-se
analisar também a compreensão do receptor do enunciado como fator importante para a
produção do significado das palavras, que está sujeita a mudança devido à formação
cultural, social e linguística dele. A partir dessa abordagem, temos a seguinte equação para
o humor bem sucedido, elaborada por Raskin (1985)3:
PV [(F, O, E, Ex(f), Ex(o), Ex(f,o), P(f), P(o), S, So(f,o)] =En
Onde:
PV: piada verbal
F: falante
O: ouvinte
E: estímulo
Ex: experiência
P: psicológico
S: situação
So: social
En: ato de humor bem sucedido
Durante a leitura, é preciso que seja ativado um script. Conforme Raskin (1985,
apud DAVEL, 2007), isso é o que levará o leitor a estabelecer cognitivamente uma conexão
entre a palavra ou o conjunto delas ao seu interiorizado conhecimento de mundo. Trata-se
de um processo de inferências estruturado e relativamente previsível, para que seja
formulado o sentido desejado pelo locutor em uma situação discursiva. No caso do humor,
os scripts se ajustam de igual modo aos diversos componentes léxico-sintáticos do
enunciado e apresentam oposições de: real/não real, esperado/não esperado, plausível/não
3
Em sua teoria sobre do ato de humor (humor act).
plausível. O efeito de sentido, então, acontece pela sobreposição de um segundo script em
relação ao primeiro, o que forma, num gatilho4, a interpretação diferenciada do texto,
ambígua.
Além de apresentar scripts opostos, para que leve ao riso, o texto:
[...] contém uma característica pragmático-discursiva non-bona-fide [grifo meu],
que ‘fecha’ o texto. Para que o desfecho produza humor, principal função da
piada, o leitor/ouvinte terá que buscar amparo no contexto, uma vez que a piada
vai ‘brincar’ tanto com fatos lingüísticos, como com fatos concernentes ao
entorno sócio-cultural para veicular discursos geralmente ‘não-autorizados’
socialmente (MUNIZ, 2004, p.145).
O desvio produzido no final de uma piada conta com o modo non-bona-fide. Essa
nova percepção é diferente dos mecanismos utilizados para regular uma comunicação usual
(bona-fide). Nela, infringe-se a máxima da relação5. A característica principal desse modelo
é que não há comprometimento com a verdade, a fim de provocar o riso no ouvinte.
Possenti (1998) afirma que há, em uma piada, algum elemento linguístico com pelo
menos dois sentidos possíveis (os scripts, segundo Raskin). Entre esses dois significados
possíveis, cabe ao leitor “descobrir que, havendo dois, o mais óbvio deles deve de alguma
forma ser posto de lado, e o outro, o menos óbvio, é aquele que, em um sentido muito
relevante, se torna dominante" (p. 39). Diante dessa produção polissêmica, Ullmann (1977,
p. 257, apud BRITTO, 2007) reafirma:
as palavras nunca são completamente homogêneas: mesmo as mais simples e as
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trigger (RASKIN, 1985), ou disjuntor (MORIN, 1970, apud OTTONI, 2008) ou mediador
(GIL, 1991, apud OTTONI, 2008).
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Grice propõe, inicialmente, um exemplo que se tornou clássico: (A) e (B) estão
conversando sobre (C). (A) pergunta a (B) sobre a situação de (C) no seu emprego. (B) responde:
"Oh! muito bem, eu acho; ele gosta de seus colegas e ainda não foi preso". Um diálogo desse tipo,
observa Grice, possibilita perceber, claramente, que há duas formas de significação distintas. A
resposta de (B) diz que (C) está bem e ainda não foi preso e implica ou sugere que isso pudesse
ter acontecido, tendo em vista que (C) é o tipo de pessoa que pode ceder às pressões do seu
trabalho e fazer algo que o leve à prisão. É a partir desse contexto que Grice introduz os termos
técnicos implicitar (implicate), implicatura (implicature) e implicitado (implicatum). Seu objetivo é
organizar, ao redor deles, um sistema explicativo dessa significação que (A) e (B) podem entender,
mas que, efetivamente, não foi dita. É importante ressaltar, aqui, que Grice usa "dito" como o
significado expresso pelo enunciado em termos literais ou, em outras palavras, como a proposição
em seu valor semântico (COSTA, 2008).
mais monolíticas têm certo número de facetas diferentes que dependem do
contexto e da situação em que são usadas, e também da personalidade da pessoa
que ao falar as usa.
É importante lembrar que, para que essas novas produções semânticas aconteçam,
não se podem analisar frases ou sintagmas soltos, mesmo que tenham coesão e coerência
suficientes para remeter a um significado. Existe uma intencionalidade específica para se
formar um discurso. As práticas discursivas acontecem com formas ideologicamente
motivadas e não isoladas. Foucault (apud BRANDÃO, 1995), ao relatar as propriedades do
discurso, afirma que qualquer um deles é parte de um “campo adjacente”, uma rede
discursiva que os integra a outros enunciados. A respeito dessa cadeia discursiva, Possenti
(op. cit) completa: “qualquer texto com mais de um sentido pode servir, mas há chistes que
invocam explicitamente a intertextualidade”. Freud (1969, apud MEDEIROS, 2005) já
observara que o chiste consiste, essencialmente, numa certa técnica. O efeito do humor no
texto surge pela maneira em que é construído, pela forma na qual é tratado, e não pelo
assunto. Não há temas ou assuntos que sejam engraçados por si mesmos.
3 Apresentação do corpus
3.1 Marcas históricas
Pergunta para o Joãozinho:
- Quem disputou a Guerra Fria?
- Pólo Norte e Pólo Sul.
Uma menininha está mexendo nas cinzas de um cinzeiro. Hitler chega e pergunta a ela:
-Procurando alguém?
Porque Hitler cometeu suicidio?
Porque recebeu a conta do gás.
Figura 2
Fonte: Homem Culto – Wordpress
http://homemculto.wordpress.com/2007/10/17/bim-laden-aqui-tem-mais-duas-torres/
Figura 4
Fonte: Blog Guerrilheiros Virtuais
http://guerrilheirosvirtuais.blogspot.com/2009/02/para-folha-de-s-paulo-nao-houve.html
Figura 5
Fonte: Blog “Ainda a Mosca Azul”
http://aindaamoscaazul.blogspot.com/2009/03/revolucao-de-1964.html
3.2 Marcas sociolinguísticas
Figura 6
Fonte: Blog “Café Holandês”
http://cafeholandes.blogspot.com/2009_01_01_archive.html
A professora diz:
- Chico, fale uma frase com o verbo hospedar.
- Claro, fessora, ‘os pedar da bicicleta é de prástico’.
Uma mulher estava esperando o trem na estação ferroviária. Sentiu uma vontade de ir urgentemente ao
banheiro. Foi. Quando voltou, o trem já tinha ido embora. Ela começou a chorar. Nesse momento, chegou um
mineiro, compadeceu-se dela e perguntou:
- Purcaus diquê qui a sinhora tá chorano?
- É que eu fui fazer xixi e o trem partiu...
- Uai, dona! Mas será que a sinhora já num nasceu com esse trem partido, não?!?
3.3 Marcas sociolinguísticas, culturais e históricas
- E aí, cara! Como tava a festa ontem?
- Ah, tava boa! Fiquei com cinco minas lá.
- Que bacana! Falando nisso, conheço uma mina que ficou com trinta caras.
- Sério, cara? E onde isso?
- No Chile.
Figura 8
Fonte: Dosis Diarias, do ilustrador Alberto Montt
http://www.dosisdiarias.com/
Figura 9
Fonte: Casseta e Planeta - Blog do Reinaldo
http://tvglobo.casseta.globo.com/reinaldo/2010/11/08/programas-de-culinaria-para-todosos-gostos/
Figura 11
Fonte: Blog Tatuiano de Apoio à Dilma
http://tatuiedilmais.blogspot.com/2010/11/resumos-das-noticias-desta-terca-feira.html
Considerações finais
Analisando-se as piadas, percebe-se que elas, por serem discursos, servem à
ideologia, consequentemente ligada a fatores externos que afetaram o desenvolvimento do
sujeito. “"Possivelmente todas as piadas veiculam, além do sentido mais apreensível, uma
ideologia, isto é, um discurso de mais difícil acesso ao leitor". (POSSENTI, p.38, 1998). Os
sujeitos envolvidos nesse discurso humorístico são marcados pela heterogeneidade,
provando que, mais que diversão, existe uma intencionalidade específica para a (re)criação
do texto. Além disso, em sua funcionalidade, são dotadas de mecanismos próprios capazes
de gerar o riso. Isso as torna rico material para a análise linguística e para as condições de
produção do discurso, porque, para que elas aconteçam, além da criatividade, é preciso que
haja um “solo” fértil de problemas como os das zonas discursivas assinaladas nos exemplos
apresentados (POSSENTI, op. cit.).
Para compreender qualquer piada, é necessário que a leitura seja realizada pela
busca de pistas linguístico-discursivas, repletas de intertextualidade, ambiguidade e
informações implícitas. Existe autonomia de atividade na produção da leitura de textos
humorísticos, pois o leitor não é mero receptor de informações do autor. Mas essa
autonomia pode influenciar negativamente na interpretação: Segundo Possenti (op. cit.),
embora o texto não seja o único fator relevante no processo de leitura, é o ingrediente mais
importante, pois é ele que demanda e limita a atividade do leitor. Caso não compreenda a
mensagem, será por falta de conhecimentos culturais/de mundo; linguísticos, por não
entender o jogo de palavras existente; ou históricos/geográficos, por não se
situar/posicionar no contexto tempo/lugar em que o discurso foi produzido. Finalizando
com as palavras de Possenti (op. cit.): “Se você diz a alguém que estuda piadas, o primeiro
efeito que produz ainda é o riso. É uma pena que seja assim, porque as piadas são, de fato,
um tipo de material altamente interessante, por várias razões”, espera-se que foram
perceptíveis essas razões neste trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1980.
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Editora da Unicamp, 1995.
BRITTO, L. A. . Breve Análise tipológica dos usos da polissemia: o texto publicitário
na sala de aula. In: IX Fórum de Estudos Lingüísticos, 2007, Rio de Janeiro. I Colóquio de
Semiótica, 2007.
BUNGE, M. Epistemologia; curso de atualização. 2. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980.
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DAVEL, A. P. C. . O humor na propaganda de outdoor. In: XI Congresso Nacional de
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RASKIN, Victor. Semantic Mechanisms of humor. R. P. Company. Holland, 1985.
ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. 4ª ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1977.