Gaivotas - Fluir Perene

Transcrição

Gaivotas - Fluir Perene
Colecção Fluir Perene
Volumes já publicados
N.º 2 Rodolfo Pais Nunes Lopes, Batracomio­
maquia: a Guerra das Rãs e dos Ratos (2008).
N.º 3 Carlos A. Martins de Jesus, A Flauta e
a Lira: Estudos sobre Poesia Grega e Papirologia
(2008).
N.º 4 José Ribeiro Ferreira, Os Sons e os
Silêncios – A Memória, a Culpa, a Valsa (2008).
N.º 5 José Ribeiro Ferreira, Labirinto e
Minotauro - Mito de Ontem e de Hoje (2008).
N.º 6 José Ribeiro Ferreira, Atenta Antena - A
Poesia de Sophia e o Fascínio da Grécia (2008).
N.º 7 Rui Morais, A Colecção de Lucernas
Romanas do Norte de África no Museu D.
Diogo de Sousa (2008).
N.º 8 Armando Nascimento Rosa, Antígona
Gelada (2008).
Sempre me fascinaram as gaivotas. Não tanto pelo seu andar
que por vezes apresenta ar meio desengonçado. Antes pelas suas
cores, pela sua forma. Sobretudo pelo seu sábio planar assombroso
com que, de forma hábil, aproveitam a brisa e os ventos para –
quase sem esforço, quase sem mexerem asas – subirem em altura
até serem quase pontos no infinito, e com elas nos elevarem os olhos
no azul denso.
Ver-vos voar no voo planado e lento de quem segura o vento e o
leva em suas asas. O equilíbrio instável da vida na hora da decisão e
do futuro. O corpo, quedo e parado, goza o sabor do vento. Apenas
de vez em vez leve torção do pescoço ou o flectir ligeiro das asas
largas. Tudo fácil, exacto, metódico; tudo executado no instante
certo e preciso.
E a olhar-vos me fiquei e fui nas asas que não tenho, mas me
oferecestes na imaginação que me toma, eleva. E o corpo, em ascese,
levita nas asas que me dais e me transportam ao azul de outro sul.
N.º 9 José Ribeiro Ferreira, Rui Morais, A
Busca da Beleza: Vol. 1 - Arquitectura Grega
(2008).
Gaivotas
Gaivotas
N.º 1 José Ribeiro Ferreira, Mitos das Origens
- Rios e Raízes (2008).
(do Prefácio)
N.º 10 José Jorge Letria, Os Lugares Cativos
(2009).
N.º 11 José Ribeiro Ferreira, Três Mestres
Três Lições Três Caminhos (2009).
Fluirwww.fluirperene.com
Perene
Colecção
Colaboração
Associação Portuguesa de
Estudos Clássicos (APEC)
José Ribeiro Ferreira
Inês Cerol
N.º 12 Carlos A. Martins de Jesus,
Anacreontea. Poemas à maneira de Anacreonte
(bilingue) (2009).
Fluir Perene
José Ribeiro Ferreira
Fotografias de Inês Cerol
José Ribeiro Ferreira, nascido em
Santo Tirso, em 1941, é profes­
sor na Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra e Inves­
tiga­dor do Centro de Estudos
Clássi­cos e Humanísticos da mes­
ma Universidade.
Tem mais de centena e meia de
trabalhos — entre livros, artigos
em revistas e enciclopédias —
publicados em Portugal e no
estrangeiro, com realce para Hélade
e Helenos. I – Génese e Evolução de um
Conceito (1983, 21993); A Democracia
na Grécia Antiga (1990); A Grécia
Antiga. Sociedade e Política (1992);
Civilizações Clássicas I – Grécia
(1996); Manuel Alegre: Ulisses ou os
Caminhos da Eterna Busca (2001); Os
Sons e os Silêncios. A memória, a culpa
e a valsa (viagem a Berlim, Viena e
Salzburgo) (2005. 2ª edikção revista
e aumentada, 2008); Mitos das
Origens. Rios e Raízes (2008).
No domínio da poesia, publicou
Os Olhos no Presente (1982, com 2ª
edição em 1998), Pesa o Momento a
Eternidade (1984), Veleiro da Areia
(1985), O Santuário e o Oráculo
(1985), Ficta Imagem (1992), Variações
sobre o tema de Síbaris (1994), Telhas
de Outro Alpendre (1994), A Outra
Face do Labirinto (2002).
GAIVOTAS
José Ribeiro Ferreira
José Ribeiro Ferreira
Fotografias de Inês Cerol
GAIVOTAS
GAIVOTAS
Coimbra — 2009
Coimbra – 2009
AUTOR
José Ribeiro Ferreira
TÍTULO
As Gaivotas
FOTOGRAFIAS
Inês Cerol
CAPA e FOLHA DE ROSTO
Fotografias de Inês Cerol
EDITOR
José Ribeiro Ferreira
CONCEPÇÃO GRÁFICA
Fluir Perene
IMPRESSÃO Simões & Linhares, Lda.
Av. Fernando Namora, nº 83 - Loja 4
3030-185 Coimbra
PEDIDOS
Associação Portuguesa de Estudos Clássicos (APEC).
Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra
Tel.: 239 859 981 / Fax: 239 836 733
3000-447 COIMBRA
ISBN: 978-989-96078-3-5
DEPÓSITO LEGAL: 303504/09
TÁBUA
Prefácio ………................................................
7
Fímbria de água ...............................................
15
Fímbria de água ........................................
17
No azul limpo da manhã ………….…....
19
Arcos da Ponta de Piedade ……..............
21
O ‘Gigante’ ..............................................
25
Gaivotas emigram ....................................
27
Nos barcos por esse mar azul ..................
29
Gaivotas do céu de Lagos ........................
33
Veleiro da areia ........................................
41
Planar de gaivota .......................................
45
Asas ...........................................................
49
Lagos .........................................................
53
A voz das ondas .........................................
59
O vento de Lagos .......................................
63
O azul envolve ...........................................
77
Ali à mão ...................................................
79
Amizade ………………………………..
81
A janela .....................................................
85
Se fôramos gaivotas .................................
87
O mundo e o infinito .........................................
95
Arte poética ...............................................
97
Na limpidez da manhã …………………..
111
A voz do mar .............................................
123
O sol despede-se por trás dos outeiros …..
131
O mundo e o infinito ……………..............
139
Epílogo ..............................................................
151
Prefácio
Sempre me fascinaram as gaivotas. Não tanto pelo seu
andar que por vezes apresenta ar meio desengonçado. Antes
pelas suas cores, pela sua forma. Sobretudo pelo seu sábio
planar assombroso com que, de forma hábil, aproveitam a
brisa e os ventos para – quase sem esforço, quase sem
mexerem asas – subirem em altura até serem quase pontos
no infinito, e com elas nos elevarem os olhos no azul denso.
Ver-vos voar – e retomo, quer com ligeiros retoques,
quer com alterações mais ou menos drásticas, um texto
escrito em Lagos, em 24 e 25 de dezembro de 2000 e saído
nos Cadernos de Poesia “Costa d’ Oiro” (nº 157), com o
título O voo das gaivotas –, ver-vos voar no voo planado e
lento de quem segura o vento e o leva em suas asas. O
equilíbrio instável da vida na hora da decisão e do futuro.
O corpo, quedo e parado, gozava o sabor do vento.
Apenas de vez em vez leve torção do pescoço ou o flectir
ligeiro das asas largas. Tudo fácil, exacto, metódico; tudo
7
executado no instante certo e preciso.
E a olhar-vos me fiquei e fui nas asas que não tenho,
mas me oferecestes na imaginação que me toma, eleva. E o
corpo, em ascese, levita nas asas que me dais e me
transportam ao azul de outro sul.
E a viagem é sonho no azul nítido da tarde. Como se,
ponto distante, a infância recolhesse do fundo do passado, a
desdobar o fio da memória que me faz e me sustenta. Tantos
os passos da incerta vida vária.
A Póvoa de Varzim dos meus primeiros anos. E
desses tempos, apenas a vaga lembrança da casa pequena,
alugada. A mãe sempre presente e a visita do pai nos fins de
semana, que nos outros dias o trabalho impunha a sua lei. As
ondas redondas que se aproximavam, medonhas, e, quais
garras, as mãos seguras do banheiro a mergulhar-nos. O
medo engolia a água salgada, goelas assustadas.
A Azurara da minha juventude, com Mindelo e Vila
do Conde à vista. E logo Santa Clara, altaneira, vinha reverse nas águas do Ave, ainda límpidas. Passava-se a ponte, e o
rio media o ritmo dos versos de Régio, antes de, suspenso,
respirar e de seguida celebrar o encontro com o mar. E nas
praias, na Avenida Marginal, subindo o rio ou sobrevoando
a vila, a vossa presença assentou na memória e lá se
recolheu no silêncio fundo e fecundo.
A aristocrática Ericeira sentia-se orgulhosa na
8
sonoridade das botas, fardas e patentes. Aí vos olhava,
gaivotas, e todo me despia das mágoas de ruas e tapada de
Mafra, alargava os horizontes dos longos corredores do
Convento pejados de ecos e silêncios. O ritmo encurvado
das ondas me lançava e convosco, gaivotas, seguia no voo
que não tinha e de vós tomava. E o espírito partia por
mundos, sonhos e futuros – então e ao longo dos tempos.
A Praia de Mira, da barrinha e dos palheiros,
aconchega-se nas dunas para que passe o vendaval. Aí,
pouco vos vi e nem me lembro de voo vosso que me levasse
ou montasse espera na memória. Apenas o farfalhar dos
pinhais e o marulho do mar, cujas ondas, quais crinas de
cavalo revoltas ao vento, avançavam brancas de espuma e
ameaça. Talvez a causa de as gaivotas recolherem nas areias
da praia, escondidas nos recessos, e não as encontrar no
novelo do tempo.
As praias da Figueira da Foz e de Buarcos, nas dobras
da Boa Viagem resguardadas do vento norte, recolhem as
águas calmas do Mondego e todas se revêem nos largos
areais das suas praias. Aí as gaivotas, em bandos, ora se
passeiam na areia fina em alegre algazarra, ora seguem os
barcos que partem do porto ou da faina regressam.
Aconchegadas na sua modorra, sedentárias, vivem em
evidente apatia e em permanente sonolência. É raro
contemplá-las a voar em altitude. Apenas uma por outra rara
9
vez as vejo planar e convidar para com elas partir na
distância.
Fora do país também as gaivotas vieram ter comigo.
De uma viagem à Escócia, retenho no novelo da memória
dois encontros de fascínio com as gaivotas: em Aberdeen e
em Inverness. Na primeira cidade, acordei meio
estremunhado com o seu som galrador, impositivo.
Chegados já noite caída a Aberdeen e convidados a recolher
por chuva miúda e pelo cansaço, não houvera o habitual
passeio nocturno nem a localização do hotel se fizera. E pela
manhã sinto-me acordado por um charivari quase
assustador, que parecia vir do exterior, muito perto, ou
mesmo da própria parede. Ao abrir a janela, entra pelo
quarto o ar fresco da manhã e o sol radioso que o inunda de
luz. E, pousadas num paredão onde o mar vinha bater, quase
encostado ao hotel, saúdam-me festivas as gaivotas, que
chegam, partem, esvoaçam, olham atentas, se
cumprimentam, se tocam em ademanes de conquista –
salutar algaraviada. E a vida entrou no quarto, em mim e aí
se instalou para todo o dia.
Em Inverness – mais encorpadas, de cor mais
homogénea em cada uma delas – encontrei as gaivotas e o
seu andar balanceado a passear nas ruas com as pessoas, a
entrar nas lojas de comércio e a quase se sentar
connosco a uma mesa de café. E sempre aqueles seus olhos
10
vivos, atentos, interessados, interrogativos, como a
perguntar-nos se estávamos bem com a vida. Não mais
deparei com gaivotas assim tão dadas com os homens e com
o seu viver do dia a dia. Só mais tarde, na Marina de Lagos
uma me veio interpelar à mesa de café e, despertando o
novelo da memória, quase me fez lembrar as sociais
gaivotas de Inverness.
E foi precisamente em Lagos que aprendi a dimensão
do voo das gaivotas. A sua presença surge insistente em
tudo quanto seja sítio: nos céus, longe, perto, pontos
11
indistintos; nas ruas, nos passeios, nos beirais, nos postes de
iluminação, sobre o porto, na marina, nos mastros dos
barcos ancorados, nas praias, nas falésias. Nem vento, nem
calmaria lhes tolhe os movimentos seguros, metódicos,
certos. A cada passo apenas pontos distantes no azul sem
sombra de nuvens, são apelo de partida e de procura. E
sente-se a alma leve, intensa, fugidia.
As gaivotas de Lagos, de planar sereno ou rápido,
sempre a despertar o desejo de errância, de sonho e de
partida. Ora transmitem calma enternecida, e o espírito,
sereno, discorre por longes e pensares; ora trazem distância,
inquietação de alma nunca satisfeita com a Ítaca ou a
definição a que se chega. Sempre a partida no brilho dos
olhos e o infinito por mitigar.
Gaivotas dos céus de Lagos, eu vos saúdo, bendigo e
sigo na descoberta de outras margens, na mira do sul e do
azul, na busca de tudo quanto espero.
Os poemas aqui coligidos abrangem datas que se
estendem por três décadas, alguns deles até já se encontram
publicados em livros meus anteriores. É o caso de “Fímbria
de água”, “Arcos da Ponta de Piedade”, “O Gigante”,
“Gaivotas emigram”, “Nos barcos por esse mar azul”,
“Gaivotas do céu de Lagos” e “Veleiro da areia” que saíram
no livro Veleiro da Areia (1985), respectivamente pp. 5, 11
12
e 12, 13, 23, 21, 25 e 36; o caso de “Planar de gaivota”, “Ali
à mão”, “Amizade” e “Janela” que se encontram em Olhos
no Presente (1982 e 21999), respectivamente pp. 34, 33, 17
e 24; o caso ainda de “Arte poética” e “O azul envolve” que
foram publicados, respectivamente, em Pesa o Momento a
Eternidade (1984, p. 1-10) e Telhas de outro Alpendre
(1994, p. 30).
Vários outros apareceram em plaquetas na colecção
“Costa d’ Oiro” – já conta com 256 números –, dirigida por
Cristiano Cerol que, anualmente, no dia 27 de dezembro,
promove em Lagos um encontro de poetas, com entrega ao
Museu de Lagos de um exemplar de todos os números
publicados nesse ano. Saíram nessa colecção “Lagos” (nº 4),
“Vento de Lagos” (nº 247), “Ali à mão” (nº 66), “Se
fôramos gaivotas” (nº 256), “Na limpidez da manhã” (nº
226), “A voz do mar” (nº 140), “O mundo e o infinito”.
Outros, porém, são inéditos e apresentam-se pela
primeira vez ao público.
De qualquer modo, mesmo os já publicados e
incluídos em colectâneas anteriores, todos eles, aparecem
em Gaivotas alterados, com novas roupagens, ou
remodelados de forma significativa. Alguns quase solicitam
a qualidade de novos poemas.
Todos eles todavia – publicados ou inéditos,
parcamente remodelados ou por completo desconjuntados e
13
com profundas alterações –, todos pedem vénia e aceitam
leitura interessada.
Os poemas têm a companhia de imagens em
fotografia de Inês Cerol – jovem arquitecta e minha afilhada
– que, em resposta a um desafio que lhe lancei, leu os textos
e procurou adequar-lhes as fotos que das gaivotas de Lagos
foi colhendo.
O conjunto é vosso. Talvez vos possa despertar alguns
sonhos e desejo de partida para longes e infinito. O mundo é
belo e a Terra é mãe solícita, criadora e dadivosa. Mas a
vida que nela habita nem sempre lhe faz jus, e é mesquinha,
pequena, invejosa, dolosa. E nós somos sempre os eternos
insatisfeitos, trazemos na alma o desejo constante de
procura, em nenhum lugar encontramos a felicidade e a
plenitude do Ser. Enfim, nunca chegamos à Ítaca que com
denodo buscamos.
Dezembro de 2009
José Ribeiro Ferreira
14
FÍMBRIA DE ÁGUA
Fímbria de água
Rasga o céu um voo de gaivota.
Difusa se perde na distância
Fímbria de água
No devir da vida e do cansaço.
17
No azul limpo da manhã
O planar feliz das gaivotas saúda a manhã
E sorriem as ruas no sol que desponta.
Nos corpos acorda morena a vida
E povoa a cidade o fluir quente do tempo.
Tece o desejo o passar dos dias e das horas
Num denso tecido que nos marca de ausência.
Desenhos que se cruzam precisos e seguros,
Rasgam as gaivotas o azul limpo da manhã.
19
Arcos da Ponta da Piedade
A Walter de Medeiros
Partem as gaivotas e retornam
Sem cessar.
As rochas ganham forma e vida,
Lançam arcos de futuro.
Arcos em procura repetida
Que transpõem sombras e incerteza.
Paciência longamente executada
No fluxo das ondas e da espuma.
Os olhos e sonhos no longe e no futuro,
A obra nasce onda a onda inacabada:
Busca do para-lá de si e do destino.
21
Dia a dia sentinelas da espera
Voam de vós as gaivotas uma a uma.
Cruza o ar um adejo de beleza.
Certo e seguro tudo se conforma.
22
Tudo tem o seu início e o seu fim
Certo e seguro.
Somos barcos que deslizam
Suspensos do destino?
Ou gaivotas que planam
E procuram, leves, o azul?
Sem cessar,
Partem as gaivotas e retornam.
23
O ‘Gigante’
Olha o mar o teu estar aí
Sentinela do além.
De adejar e sonhos te coroam as gaivotas.
E a espuma tece
E te veste de linhos de noivado.
Dos barcos que partem guarda seguro,
No mar te ergueste e aí ficaste.
Trono sereno e reino de gaivotas.
25
Gaivotas emigram
Em minha vida emigram as gaivotas.
O sonho pressentido na manhã
Olha o futuro com pensar pressago.
O destino denso da maçã
Que na ponta do ramo se oferece.
Na minha vida emigram as gaivotas.
27
Nos barcos por esse mar azul
Nos barcos por esse mar azul...
Em rasto de espuma enrodilhado atrás de si
Dobram o recorte da falésia os barcos.
À volta volitam agitadas as gaivotas.
Os barcos aconchegam a esperança
E nos longes o afago acena e chama.
Nos barcos por esse mar azul...
Indeciso desejo imerso no meu ser,
Desliza a pressa dos barcos
E voam seguras as gaivotas.
Nos barcos por esse mar azul...
29
A partida dia após dia procurada.
– Íntimo desejo de sem retorno romper
O limite que susta e que encerra.
Nos barcos por esse mar azul...
Carne e osso agarra-nos à terra.
Espírito somos nos longes dela:
A eterna ânsia de tempo que não chega.
Nos barcos por esse mar azul...
30
E sempre o aqui nos encontra
No partir e no sonho...
No dobrar da curva
Sempre o vazio e o desejo
À espera de outra curva.
Nos barcos por esse mar azul...
Dobram os barcos as rochas da falésia.
E em roda volitam as gaivotas
Ou planam no azul distante.
E os olhos partem, sôfregos de lonjura.
Nos barcos por esse mar azul...
Que rotas e acasos levam os barcos?
Que longes os chamam e que apelos?
Verão no regresso o aceno das gaivotas?
31
Gaivotas do céu de Lagos
1
Nos céus de Lagos planam as gaivotas
A adiar a partida dia a dia sem cessar.
Que espera vos detém e vos sofreia?
Ao balouçar das quilhas e do tempo
Nas amarras e mastros ancoradas,
Embalam a vida no calor da manhã
Ou saúdam os raios fugidios da tarde?
Em suas asas adeja a madrugada
A abraçar a terra de luz e limpidez.
33
2
Partam também os barcos e regressem.
No mar cor de vinho não naufrague
Não feneça nunca
A esperança dia a dia acalentada.
Asas imponderáveis de vento e precisão
A vencer os voláteis grãos do tempo
Sem temor do fugaz fluir frágil..
Planam nos céus de Lagos as gaivotas.
35
3
Gaivotas que cruzais os céus de Lagos!
Voai, gaivotas, geométricas nos céus de Lagos,
Voai nas horas todas, a planar no azul profundo,
Perto ou longe, pontos perdidos na distância.
Parti com a luz e trazei o azul profundo
– O múrmuro ritmo da métrica das ondas.
Alegre rumorejo de frescura e mar sereno,
Vinde gaivotas, vinde sempre, vinde todas.
Impulso imponderável de partir todos os dias,
Vogai serenas nas asas do vento norte ou sul
Gaivotas que voais nas tardes e na procura…
37
E as manhãs sorriem nos olhares de todos
No voo planado que sois e na graça de o ver.
Sonho de ser as asas na liberdade do azul
A transpor as grávidas sombras do futuro
Que nos marcam e nos cercam os passos.
E asas no vento e na luz suave da manhã
O corpo leve dissolve as sombras e temores.
Em voo medido e seguro, partem as gaivotas.
A deslaçar os limites que vedam e tolhem.
A luz fresca da manhã e o afago do sonho,
Sedutores, leves, trazem o azul e o voo.
E com o voo chega a voz e a cor do mar.
39
Tudo concentrado nas linhas que traçais,
– Um complexo desenho nunca satisfeito,
Gaivotas a planar no azul limpo e sem limites..
40
Veleiro da areia
Na areia imprime os contornos o veleiro.
Gaivotas nas amarras, nas velas a esperança,
Leva a mundos e longes que se buscam.
Um dia
O vento que passou e o fluxo das ondas
Deliram persistentes as formas do veleiro.
Sem velas nem gaivotas nas amarras
Já não voga a esperança no veleiro.
Agora
Passam as ondas e o rigor dos ventos
E, nos limites estreitos de praia deserta,
Encontram apenas a sombra do delido.
41
Agora
Os barcos passam no mar ao largo sem parar.
Sem futuro morrem os sonhos ao nascerem.
Dobadoiras sem esperança e sem repouso,
Nunca mais
Em seu voo as gaivotas nele vão pousar.
O veleiro da esperança
Desfez-se na areia varrida pelos ventos
– Cansado desejo e busca do nunca mais…
Os mundos e longes que se buscam.
Ou espera que cheguem as velas do veleiro
Ou se fixem as linhas precisas das gaivotas.
43
Planar de gaivota
Movimento
Lento.
Um ponto distante,
Quedo e constante.
45
O vento braveja
O bosque braceja
Os pinhos ramalham
As ondas marulham.
Arrojo desfia
Tudo desafia.
O corpo parado
Concentra infinito,
No mar agitado.
Longe em longe um grito,
Mais nada se nota.
Planar da gaivota.
47
Asas
Tinha as asas encantadas
Dos sonhos da vida inteira.
E tenho-as hoje cortadas,
Já nem alcanço a ladeira.
As asas me conduziam
Por terras, tempos, distância.
Memória e vida traziam,
Contornos densos de infância.
Palavras, sons me diziam
Essas asas do meu sonho.
Hoje apenas denunciam
Viver amargo, bisonho.
49
Eram belas essas asas,
Planar branco de gaivotas.
Nada as tolhia, nem casas,
Muros, fronteiras ignotas.
50
Rastejam nas ruas planas
Asas que eram meus sonhos.
Meus olhos sabem a terra,
Longe planam as gaivotas.
51
Lagos
Nos céus de Lagos, no seu azul suave,
As gaivotas são pontos e traços no infinito,
Em complexas geometrias se cruzam
Precisas e sem erros ou enganos.
No declive suave das encostas
Debruçam-se as casas atentas
E espelham-se no miúdo revérbero das águas.
Descem em alvas escadas até ao porto.
A cidade revê-se vaidosa na concha da baía.
Por momentos, tropeçam os olhos descuidados
Nos campanários de Santa Maria e Santo António.
53
As gaivotas planam na brisa da tarde
E signos traçam de ocultas mensagens:
O silêncio da escrita no rigor das imagens.
No pedestal da praça olha o Infante o longe.
Que mundos e segredos divisa além do mar?
Fixo silêncio vela o seu olhar atento.
Lamenta ao lado,
A memória de escravos de outros tempos.
Vozear de vida nas tardes de verão
À sombra do Forte e das muralhas
Que guardam a presença do passado.
Os sonhos que se geram, logo partem.
Fluxo e refluxo das gentes e das ondas.
Vem a enchente
E alarga-se o porto e o movimento.
55
Quente nasce o verão na vida a cachoar,
Mas esfria o fervor o outono
E aos poucos rola o peso do silêncio:
Pacato adormece nas ruas o inverno.
Ocupa o vazio e cidade e se instala nos recantos
E as fugidias imagens das gaivotas
Que sonhos profetizam da cidade?
Germina a presença do passado
E grávido decorre o fluir presente.
As gaivotas povoam a memória
De leveza, de harmonia e de distância
– Fluxo e refluxo de vida e de silêncio.
57
A voz das ondas
O silêncio fundo nas ruas de Lagos:
O cansaço do verão a descansar.
Recolhe o fino gume do frio do vento
E a cidade adormece na calma de Inverno.
As gaivotas hibernam e deixam que o sol aqueça,
Acena D. Sebastião aos transeuntes
— Os raros que por ali passam e o olham.
Pensa de certo como suster elmo tão pesado.
Gil Eanes recolhe à sombra das muralhas.
E D. Henrique sente a calma e o sossego
De olhar o mar e a distância irresistível.
59
As gaivotas alimentam a memória de figuras
E a voz das ondas é mais forte e sedutora.
Chamares de sereias e de longes sem recusa.
61
O vento de Lagos
Deitou-se a tarde na múrmura sombra das ondas,
E as gaivotas de Lagos, nítidas, nos céus recortadas.
Que lugares invisíveis, que cidades nos constroem
Os seus voos de arquitectura controlada, desenhada?
A bem medida segurança no espaço azul do infinito.
A perfeição de corpo no voo
E o controlo da vertigem no domínio dos ventos.
Planam ao rugir e silvo de nortadas e marés,
Planam as gaivotas,
Formas impassíveis na penumbra do anoitecer.
63
Assobia o vento nas copas das palmeiras
E o sussurro percorre a avenida solitária.
Recolheu-se o inverno nas praças e ruas
E, denso, o silêncio da noite envolve Lagos.
Tudo parado em tensa espera de manhã de dezembro.
Só a rósea claridade e a brisa fresca parecem destoar,
Em anúncio de que o sol desponta e traz de novo a vida.
Bailam os sons na brisa da manhã
E leve sente-se o rumor dos tempos.
O sussurro da História nas ruas de Lagos.
Deitou-se a tarde na sombra das ondas.
Nítidas, em azul recortadas as gaivotas.
Que cidades invisíveis nos constroem
65
Os seus voos de arquitectura controlada
– Desenho bem medido nos longes e infinito?
66
Rugem as nortadas, estrugem nos rochedos as marés.
Leves nas asas do vento, planam as gaivotas de Lagos,
Formas impassíveis na penumbra do anoitecer.
A perfeição do corpo no voo
E o controlo da vertigem no domínio dos ventos.
Sonhar, bom é sonhar... Comanda
O sonho a vida e todos nós partimos
Demanda de novas Ítacas, outras sempre.
Ilhas imaginadas que nunca descobrimos.
Chegamos, porém, ao fim do dia,
Sufocam a alma o choro e as lágrimas.
Mágoa funda oprime a bloquear todos os poros.
67
Os ventos sacodem a vida,
E ligam as linhas pontos e contactos.
Que mão secreta conduz o dia a dia?
Que força empurra os nossos gestos?
Que impositiva voz nos dita as palavras?
Esvaem-se todos os sonhos pela tarde.
Dos passos, palavras e gestos nem vestígio
Na crespa areia movediça do deserto.
Um ar de vento, um leve sopro tudo ruiu.
Frágeis casas de cartão nas cheias de outono.
Fumo e nada no labiríntico fio da memória.
Deitou-se a tarde na múrmura sombra das ondas.
E as gaivotas, nítidas, recortadas na densidade do azul.
Que cidades invisíveis nos constroem os seus voos
– Arquitectura controlada, desenhada, bem medida?
69
As gaivotas de Lagos e seus voos precisos e simétricos!
Quase pontos indistintos no denso azul do infinito.
Desfia a memória o fino fio do rio do tempo
E a vazia corrente da vida desliza e não abarca nada,
Quais últimas folhas secas levadas pelos ventos.
Os passos medem os caminhos da existência
E marcam-nos as faces de sulcos e ausências.
Figuras recortadas na senda do passado,
Em traço grosso e vivo umas, mais delidas outras,
Ano a ano deixadas na tela da memória.
Nos mares e nos céus de Lagos
Mensageiros de paz e de união
Fossem barcos, corvetas, aviões.
71
Em voos planados e linhas precisas e seguras,
Fossem as gaivotas apelos de longes e de infinito.
Fossem solidárias e atentas as pessoas,
Nos gestos, nos actos, nas palavras,
Nos olhares, nos sorrisos, nos silêncios!
Ouvisse cada um o marulho e cadência do mar
E sentisse o eco e o apelo apetente da distância
— Busca insistente que não encontra nunca!
Observasse a leve dança da espuma
E escutasse a música insistente do vento!
E na memória coexistiriam então ao menos
Alegria, felicidade e a ternura do afago de um olhar.
Ressoaria novo hino de seiva renascida sobre a Terra.
73
As gaivotas, nítida perfeição do corpo no voo,
E o controlo da vertigem no domínio dos ventos.
Ao som do rugir de nortadas e marés vivas
Planam as gaivotas de Lagos,
Formas impassíveis na penumbra do anoitecer.
As gaivotas de Lagos e seus voos simétricos!
Quase pontos indistintos no denso azul do infinito.
Assobia o vento nas copas das palmeiras
E o sussurro percorre a avenida solitária.
Recolheu-se o inverno nas praças e ruas
E, denso, o silêncio da noite envolve Lagos.
75
O azul envolve
O azul envolve
O voo das gaivotas.
Sem medo
Olha o céu
E pousa a confiança
A cabeça.
77
Sem nuvens
O azul envolve...
Sem sombras
Seduz a esperança
E o sonho toma ao longe
A forma do voo das gaivotas.
78
Ali à mão
Desce a limpidez da tarde.
Afluem as ideias,
Uma após outra,
Claras, ordenadas.
No sonho real, o infinito
Ali à mão.
O voo pleno da gaivota.
79
Amizade
Forte e intensa
A presença
Reflexa as ondas
E o planar sereno das gaivotas.
Afluem as imagens.
Memória acumulada
As vozes reconvocam.
Refazem-se de novo
Actos, palavras e gestos.
A manhã dedilha os poros
E voo relança o reencontro:
Harmonias, sensações e coros.
81
Nos adustos passos da vida,
Um dossel de rosas
O brilho dos olhos jubila:
Asas da amizade nas ondas da brisa
– Planar sereno de gaivota
No azul límpido da manhã que nasce.
83
A janela
Recortados na baía e na marina
A partida e o aceno das gaivotas.
O azul do mar reflexa o céu e a distância.
Ali à mão, a baía de Lagos
Recolhe as ondas no côncavo da concha
E atrai a cidade de casas debruçadas e atentas:
O horizonte desce da janela e nos longes se alarga.
Brilham os olhos felizes no alvor da espuma
E deles partem, fastas e festivas, galés e gaivotas.
85
Se fôramos gaivotas
Se fôramos gaivotas, amada minha,
Ou cérilos.
Atravessávamos as procelas da vida
Nas longas buscas da memória perdida.
Forma-se aos poucos o denso tecido
Que nos faz
E é nosso rosto na visão dos outros.
E não mais
Nos abandonam as marcas que deixamos.
Tesselas que são no passeio da nossa vida.
87
Cada um de nós, homem ou cidade,
O que é? Que lhe imprime carácter?
Apenas passado que o conforma faz e marca
E sonhos projectos que nutre e alimenta.
Se fôramos gaivotas, amada minha,
Ou cérilos.
As longas asas de aconchego acolheriam
O espesso passado de ternura e desencontros.
A origem leve e magra de um atrito…
Ou o tímido aflorar de um gesto de ternura.
Tão leve e tão inconsistente,
Simples esboço de mover de dedo…
E logo sombria a borrasca desaba
Ou húmido sorri o brilho inteiro dos olhos.
89
Se fôramos gaivotas, amada minha,
Ou cérilos.
O denso novelo do tempo aos poucos
A memória, solícita, desfiaria:
91
Actos gestos palavras olhares silêncio risos.
Todos nos púnhamos nesse tecer laborioso.
Tudo concentrado nas asas desse voo
Longo, medido, sempre exacto em cada lanço.
Nas linhas, nas curvas, no sereno azul intenso...
Nos ventos desencontrados...
92
Se fôramos gaivotas, amada minha,
Ou cérilos…
93
O MUNDO E O INFINITO
Arte poética
1
Sentou-se na areia e lançou aos ventos as palavras
procuradas. E as vozes partiram nos ventos e nas brisas,
quais gaivotas ou cérilos.
Partiu a mensagem que trouxera nos dedos das
ondas, no suave fluir das brisas ou no agreste açoite dos
ventos. Pelo azul se espalhara, dispersara.
Aos poucos o poema se conforma no silêncio das
vozes que lhe traz o marulho do mar ou lhe escreve o
voo das gaivotas.
E espalham os ramos o poema e os olhos das
janelas. Um silêncio fundo se propaga na claridade da
manhã e frutifica no sazonamento e na madurez da
tarde...
E as vozes partiram nos ventos e nas brisas, quais
gaivotas ou cérilos.
97
2
Nas areias finas e macias distende o corpo a
pensar no futuro. Estirado, atira ao vento as palavras e,
sem demora, sente o mar erguer-se e ser descanso para a
alma.
No azul intenso se concentra a luz clara de
realidade nova. Praia de luz sonora, pensa em si e entoa
um hino no rolar das ondas e no sumir da espuma.
Sem esperar a tarde, embarca logo na manhã que
estava ali e trazia um futuro para se colher e ser vivido.
98
Embarcado, rema forte para o porto que trazia nos
olhos. Na praia deixara ventos e empecilhos. Com a
proa guiada pelo voo das gaivotas, transporta no bornal
a vida, os sonhos, a busca de lonjura.
A lancha de ondas e de espuma sulca a luz fresca
da manhã que ilumina os contornos e volumes do poema
que o poeta embala nos braços em carícia de dedos.
No fogo profético que transforma o brilho do
olhar, as palavras dispersam no bruaá que acolhe a sua
voz. E o sonho que trouxe abala e se esvai.
E as vozes partiram nos ventos e nas brisas, quais
gaivotas ou cérilos.
99
3
Procura e movimento não podem calar-se. O
sonho os fecunda e impele-os o pulsar quente da cidade
acumulada na memória.
Sem uns e outros, búzio vazio dá à praia e as
ondas o arrastam de lado para lado. E não tem amanhã,
é sempre agora mesmo no transformar-se ondulado em
fluxo e refluxo.
Não se parte nunca amanhã. Vive-se sempre o
agora nas crinas sedutoras do que lento germina em
cada passo. E a presença está em cada acto que, mal
aflora, transpõe os umbrais do futuro.
No embalo das ondas, os pensamentos de mar em
movimento são estrada nova por onde tudo parte. Fácil
ou difícil que seja a caminhada, devem ser dados os
passos.
100
O autocarro do futuro viaja por aí. Sem muitas
paragens, mas sempre as necessárias. E nele os sonhos e
a busca, o penar e o sorrir. Sempre se insinuam na
felicidade esforço e sofrimento.
Na viagem devem todos ter lugar. Nunca uma
estrada de coutada. Nunca o aviso a proibir a passagem
a pessoas estranhas. Estendidos os braços, deve o
ceifeiro moreno abarcar toda a seara no abraço pejado.
Nem esquinas que obstruam ruas, nem praças
desertas, nem harpas expostas aos quatro ventos, sem
cordas. Nas sendas e orquestras da memória, o fluir
permanente das imagens e dos sons.
E nesse rememorar procura sempre as vozes
sinceras e fortes que escutou e conformou. Empunhadas,
espalha-as nas palavras de vento, nas ondas.
E nesse rememorar procura sempre as vozes
sinceras e fortes que, escutadas ou vistas, se instalaram.
Empunhadas, espalha-as nas palavras de vento, nas
ondas.
101
As vozes que partiram nos ventos e nas brisas,
quais gaivotas ou cérilos.
102
4
A cidade mergulha no silêncio de esfera insegura?
Será que adormecida nessa quietude de noite? Ou atenta
escuta, ouve bater o coração da vida e das coisas?
Movimento de ondas e de espuma na quilha do
navio traz a vida nos dedos indistintos e multímodos. E
o ritmo, o múrmuro marulho acordam e instigam a
cidade.
Sem perder nunca os raios da manhã, invadem os
jardins, ruas, praças, vielas. E nas vozes que pressente
arde a chama em que pastam as palavras.
Quase sempre a voz nasce discreta, na penumbra.
Voz que traz as gaivotas e as acaricia na brancura da
página. E com elas, no rectângulo mágico, parte pelo
azul intenso do mar e do céu.
A voz canta nas ruas, na estrada e nos caminhos
103
por onde tudo parte na manhã. Canta o porto onde todos
embarcam no veleiro para a mesma viagem.
E a voz, nas velas, é ventos, movimento; na proa,
ondas e espuma. De tudo se enfuna o pensamento. De
tudo se alimentam as palavras. E tudo entretece no ritmo
secreto do poema.
E as vozes partiram nos ventos e nas brisas, quais
gaivotas ou cérilos.
104
5
Rolam na areia as ondas. Na manhã que se estende
e brilha na nitidez do azul, arde a chama do futuro. No
corpo a terra pulsa, geme em cada poro.
Uma sombra entristece o horizonte e aflora a
espaços o azul turquesa das águas da baía. A terra
estremece e afigura soluçar baixinho, em íntimo gemer.
Envenenam-lhe o corpo rios poluídos. Morrem as
brisas da tarde e capacetes de cinza envolvem as
cidades. A vida agoniza nos recantos, e tudo parece
querer tonificar-se, sorvendo o ar em haustos longos,
compassados.
E as vozes gemem nos ventos e nas brisas, quais
trenós de gaivotas ou de cérilos.
105
6
Veio ter à praia em descanso nas areias quentes do
verão – o denso e consistente húmus da memória.
No olhar crepita o fogo e, labareda altiva, sua voz
é chama que incendeia. Combustão real e certa, arde a
esperança. Aberto e sem névoas tudo se modela.
Nova bandeira de vida e movimento drapeja na
cidade. Chegam gentes e carros, ruas e casas movem-se
no denso refluir das coisas e dos dias.
Sentado em rochedo afeiçoado, olha as gaivotas
que planam na distância da vida ou pousam na babugem
das ondas.
Por ele, perpassa a lembrança das cidades à
espera. À luz do entardecer da vida atira as palavras e
sonha. Uma espera serena e reflexiva.
Hoje, reclinado na praia, olha para trás e vê as
palavras que lhe deram. O tocar dos sinos chama as
ilusões – as palavras e as formas chegam mesmo na
sombra da madrugada.
106
Na praia, olha o horizonte longínquo. Os olhos,
seguindo o voo de gaivota, fixam o infinito.
Atento desdoba o novelo o inconsútil tecer do
tempo. Em sucessão, umas às outras se empurram as
questões.
As
suas
palavras
semearam
esperança
e
movimento? Ou enquistaram em quietude estéril,
amorfa e fútil? Ficara esquecimento ou lembrança do
fogo?
O brilho dos seus olhos consome o desfiar da
memória.
E as vozes e imagens partem nos ventos e nas
brisas, quais gaivotas ou cérilos.
107
7
Vogam corvetas de sonho em que todos querem
partir. As lanchas navegam nas ondas e na espuma, o
bulício ocupa praias e cidades.
As nuvens brancas passam pelo céu. Deitado na
praia e no marulho, pensa as palavras que espalhou.
Procura colhê-las ainda, a ver se lhe enchem a mão.
Tão sáfara a colheita! E tanto sonho investido nos
passos, nos gestos, nas palavras. Tão sáfara a colheita!
E as vozes e imagens calam nos ventos e nas
brisas, quais gaivotas ou cérilos recolhidos nos recantos.
108
8
As gaivotas apelam à distância. E a impositiva voz
a insistir:
«Não se demore o descanso na tepidez enlaçante
da areia. Chama a vida sempre a espera.
Vai poeta, vai espalhar o fogo que te arde e sê as
ondas em que navegue a realidade dia a dia.»
O cansaço tolhe os membros e a vontade. Densa
desilusão parece apagar todos os passos marcas vozes e
palavras.
A frustração medrou, raízes fundas na vontade que
havia e nunca acolhida. Um vazio, que pode ser tudo,
cobre a alma de silêncio e expectativa.
Só o voo das gaivotas não deixa de chamar o
poeta e o leva no seu seguro voo planado.
O apelo de longes e infinito.
E as vozes imagens partem nos ventos e brisas,
quais chamares incessantes de gaivotas ou de cérilos.
109
Na limpidez da manhã
1
Cruzam o céu cinzento as gaivotas em linhas e
figuras bem medidas. Todo o espaço lhes pertence, num
planar certo e seguro, mais leves do que o vento ou a brisa.
Luminosas na réstia de sol que rompe as nuvens,
parecem penetrar os longes e distâncias
Na limpidez da manhã rememoro o tempo que todo
flui e se desenrola no momento – no momento preciso que
passa, e nos foge mal se pensa.
Nunca as mesmas águas nos banham o corpo ou
repetem os acasos e actos sentidos ou vividos. Sempre
outras, as imagens desfiam no rio do tempo, reais, nítidas,
espessas, consistentes.
111
O dia corre cinzento, ventoso, salpicado a espaços
por chuveiros. O vento fresco, por vezes agreste, tresmalha
o cabelo. A sensação de que o frio penetra os poros e quer
residir.
E as gaivotas, plumas serenas na grisalha espessura
dos céus de Lagos, esquecem o momento. São liberdade do
corpo, elevação do espírito, alegria do coração.
E vamos com as gaivotas no dobar da memória que
leve desfia o tempo e recorda as marcas do passado: cores,
sonhos,
sabores,
cheiros,
sons,
imagens,
relevos,
espessuras.
Da esplanada onde me sento, olho-as, interessado e
divertido. Olho-as, sempre atentas que as vejo às nortadas e
a tudo quanto em redor se move.
113
2
As nuvens, alvas, diáfanas ou mais grisalhas, são
vertigem de carrossel. No seu enlouquecido curso, parecem
competir com as gaivotas que as cruzam e recruzam.
De entretido na contemplação não noto sequer que
uma delas me espia: uma das muitas que planavam.
Gaivota atrevida, trocista.
Pousa no rebordo da marina, caminha no seu andar
lento e cadenciado, pára junto à porta da esplanada, de
cabecita ao lado, olhos vivos, atentos, investigativos, de
quem se lembra de passadas eras e de outras encarnações.
Que me querem dizer seus olhos, intensos,
brilhantes, percucientes? Miro-a e adivinho qualquer laivo
de ironia ou troça naquele brilho dos olhos miúdos. Que se
esconde naquele inquisitivo olhar vivaz?
115
A fundura das coisas chega-me da luz que neles
pressinto. E já nem sei se sou eu que me penso ou se todo o
passado se concentra naquele momento para ser quem sou.
O pensar sai de mim à desfilada, e tenho de o seguir,
lesto, apressando o passo. E enquanto estugo o andar para
o não perder, a gaivota continua atenta e concentrada.
Tem agora a companhia zelosa, interessada. E o cão
rafeiro – que agora na porta também se perfila – acumula
ternura nos olhos que pedem, imploram mesmo.
E os ingleses, sempre efusivos, entram, saem,
reentram na esplanada. E tudo parece domínio de herança,
território afanosamente conquistado.
Entretenho-me a olhar a gaivota que da porta da
esplanada observa por bom bocado e depois parte no seu
passo lento, desengonçado. E perco-me a pensar…
Na limpidez da memória, a gaivota regressa do seu
117
passeio explorativo, olha-nos por momentos da porta da
esplanada, com os mesmos olhos interrogadores, e logo
parte, em voo tenso e poderoso, a reunir-se às outras que
planam nos céus de Lagos, calmas, serenas, alheias a
ventos e tempestades.
118
3
O silêncio denso forma-se aos poucos nos recessos
da memória e por aí se queda, aconchegado e mudo. O pai
natal tudo avassala e tudo mancha de vermelho.
Procuro com os olhos o leve e artístico voo das
gaivotas e dou com o bisonho pai natal a planar sobre a
Marina. Sobrevoa veleiros e iates, num baloiçar suave ou
sacudido, de acordo com a brisa ou ventania.
Quer a canhestra e vermelha criatura emular com as
figuras leves ziguezagueantes das gaivotas? O baloiçar
desengonçado com os desenhos seguros, precisos,
medidos?
A música não deixa de proclamar «Noite feliz! Noite
feliz!» e «Noite de paz! Noite de paz!». Ou será que nada
dizem já a mensagem e os votos formulados?
119
As pessoas continuam apressadas e em constantes
atropelos, alheias de todo a tais apelos, e nem sequer os
ouvem na limpidez do dia que desponta.
Nessa luz íntima da manhã, só as gaivotas, cada vez
mais altas e mais distantes, parecem espalhar a mensagem
até ao infinito.
E sensação de paz começa em mim a ganhar
espessura. Sinto que se estende em redor e se espelha nas
coisas e no dia.
Dia de paz na limpidez da manhã.
Natal de 2005
121
A voz do mar
Desertas e vazias, as ruas evitam o fino gume do
vento e recolhem os raros transeuntes na primeira porta
ou na esquina mais próxima. De quando em quando,
espreita um gato, mas de imediato encolhe o focinho.
Silêncio nas ruas e na vida.
123
As gaivotas, quedas e mudas, hibernam num
torpor parado. Pousadas nas chaminés, casas ou
rochedos, olham a cidade, as ruas e a praia.
Interessadas em músicas e sons de longes e mares,
fixam o vago e a distância como se nada vissem.
Deixam apenas talvez que o sol aqueça ou que o tempo
passe.
124
D. Sebastião, no meio da praça, pisca os olhos aos
raros transeuntes que por ali passam e o contemplam.
Cansado de guerra e de armadura tão pesada, pensa
talvez na impossibilidade de erguer e suster o elmo que
jaz aos pés.
Tão delicada a figura! E as armas, de tão pesadas,
assustam! E quase nem as gaivotas o visitam!
126
Gil Eanes cobre o desabrigo da avenida com o
manto do arvoredo e adormece à sombra das muralhas.
Por vezes, parece, quem sabe, assustado com os gritos
que ouve – no hospital? – e o distraem da voz que o
chama.
Um apelo que lhe vem do mar e, premente, insiste.
E, a contemplar as evoluções e o planar seguro das
gaivotas, os seus olhos parecem seguir a distância dos
seus voos, na busca de transpor longes e medos.
127
D. Henrique, na calma e no sossego da praça,
esquadrinha o mar e a distância irresistível. Tudo se
concentra naquele olhar e rosto. Atento, ouve chamares
e sons distantes – música e carícia lhe chegam de locais
e longes, e apelam, e seduzem.
E o marulho das ondas cada vez mais forte, mais
sedutor: vozes de sereias, chamares de longes sem
recusa. Como se o mar cantasse e o apelo viesse do
outro lado da terra, de além da vida, de além do sonho.
128
Quem resiste àquela melodia insistente que
envolve e toma as veias e o corpo?!
Tudo é apelo, chamar e voz de distância: desejo
insatisfeito de quem sente a certeza de que esse distante
apelo é a procurada Ítaca.
Sempre o mesmo sonho e a mesma busca nos
passos apressados ou nos silêncios contidos.
129
O sol despede-se por trás dos outeiros
1
O sol despede-se por trás dos outeiros e o dia
encolhe-se nas primeiras sombras da tarde.
Um anil de vinho espesso percorre os veios do mar
e tinge as águas serenas da baía.
O crepúsculo desce ternamente a envolver de
sombras e figuras as ruas, praças e recantos.
131
2
Pontos distantes, delidos na tarde, as últimas
gaivotas
aproveitam
as
asas
da
brisa,
quase
imperceptível.
E planam, pouco mais que quedas, em estranha
emulação com o balancear cadenciado dos mastros na
Marina.
Por fim, só um ligeiro crucitar denuncia, na densa
capa da noite, o seu poiso nocturno.
132
3
Tudo perde nitidez de traços e contornos –
pardacento fluir de imagens e de formas.
A noite ganha vida e movimento: nascem vozes,
vultos e vislumbres deslizam, assomam sombras
expectantes.
Numa espessura cada vez mais densa, suspende-se
a conversa, atentos aos contornos pressentidos num
recanto.
É cão, gato, alucinação ou par de duendes
abraçados?
134
4
O forte perdera nitidez – contornos delidos
primeiro, depois silhueta na noite que aos poucos o
devora.
Estranho mundo de sombras, figuras imprecisas,
vagas formas, fugidios traços, grávidos de receios e
pavores.
136
Um mundo de sombras. Até que, de súbito, a luz
dos holofotes ilumina o forte… e toda aquela dança se
desfaz.
E as gaivotas, sonolentas, erguem espantadas a
cabeça.
Leve sobressalto apenas. Logo cerram pálpebras e
recaem na mesma quietude.
A serena quietude da noite com seu manto denso a
envolver mazelas no aconchego da sua protecção.
137
O mundo e o infinito
Traçam as gaivotas figuras de linhas certas e
medidas. E o espaço se preenche de imagens indistintas
que sublinham o azul fundo e concentrado.
Alongam os olhos o debrum da espuma. E os
contornos das figuras dirigem a mente em voos calmos ou
picados. Um silêncio corporiza e cria a sensação.
Ver as gaivotas planar em tardes de maresia adivinha
a harmonia dos contrários. Braveja o mar em ondas e em
espuma. Que voz o altera e aperta o coração?
O marulho reflexa as falésias e desdobra as ondas em
quebradas e penhascos – os ecos repetidos na distância.
139
E as gaivotas cada vez mais meticulosas, tão calmas
de paradas, suspensas do infinito. Desenham o silêncio nos
olhos concentrados, onde se abrem sendas e sons.
Nem uma mancha macula a nitidez azul do céu. A
brisa nas tardes adustas de estio traz a voz de longes e
chamares.
Deitou-se a tarde na espuma das ondas. As sombras
estendem seu manto que lentamente se espessa. E as
gaivotas, nítidas, recortadas, cruzam o azul anilado da
tardinha.
Que cidades invisíveis nos constroem? Ou que
mundos nos chegam nas figuras que traçam? Reabre a
memória o baú e evoca tempos idos.
A perfeição de um corpo e o controlo da vertigem no
domínio dos ventos. No rugir de ventos e marés, planam as
formas, impassíveis, na penumbra do anoitecer.
141
E o mar recolheu no rubor que aos poucos esmorece
o dia e adensa o horizonte. Um clarão de fogo incendiou o
mar e comprime o coração no peito sufocado.
Que laivos amadura o cair da tarde? Desce o silêncio
a envolver as coisas. E tudo fica suspenso.
Que segredos arrastam seus porões? Que promessas,
ameaças ou medos trazem suas sombras?
A noite dos fundos silêncios que tudo revela e
desmascara.
Na mente, as linhas dos voos das gaivotas insistem,
nítidas, multímodas, a traçar imagens, volumes e
contornos. Planam e a cidade adormecida ganha a forma
indistinta de um sonho e de um apelo.
O planar certo, metódico, medido.
Nos ventos que sacodem a vida, ligam as linhas
pontos e contactos. Que mão secreta conduz o dia a dia?
Os passos medem os caminhos da existência e
marcam-nos as faces de sulcos e ausências. Figuras
143
recortadas na senda do passado, ano a ano deixadas na
memória.
144
Nada nos deixa indiferentes: um simples cheiro, a
alfazema, a hortelã; um rude tacto, a casca rugosa da
figueira ou de uma amendoeira, de um pinheiro; um gosto,
um incisivo gosto, a erva azeda, a macela; ou a cor, a cor
sonora no verde de inverno, a brancura reluzente de uma
casa exposta ao sol.
Forte, o apelo cruzado desses traços invisíveis. Tudo
é construção real e pertinente. Tudo aflora denso, intruso,
intenso, impositivo.
Desdobam as linhas o fio do passado e assomam as
figuras às janelas do tempo: nítidas umas, outras difusas,
vislumbre rápido ainda outras, ou contornos apenas na luz
forte que sufoca a emoção.
E as imagens perfilam-se na mente; à desfilada
percorre a imaginação a memória. A fundura de que somos
abismo e o peso do passado que nos puxa e trava os
passos!
145
Nada esquece a memória, quer certa e arrumada,
quer caótica e impulsiva. Incisivas curvas nas linhas
cruzadas das gaivotas. O destino rapidamente traçado em
dois lanços de vento?
A vida, que é a vida, ao olhá-la nas linhas medidas
do planar das gaivotas? Um poço cheio de sonhos
abortados antes de ganharem forma?
Tem asas a mente e nada a detém nas loucas
cavalgadas. Linhas concisas, contidas nos traços invisíveis
do voo das gaivotas. Em potência, mundos, sonhos,
emoções, o forte fluir das coisas.
A vida concentrada no voo das gaivotas: ponto
conciso, traçado pelo encontro do planar distante com a
linha do horizonte.
147
Do fundo da memória afloram figuras e formas.
Na mente se perfilam reais e evidentes.
O mundo e o infinito.
149
Epílogo
A impregnada névoa das idades
Que dilui todos os contornos.
E quase os não distingo.
Dispersos me fogem os olhos e atenção.
O azul do céu profundo recorta
A silhueta planada das gaivotas.
O horizonte atrai o azul insatisfeito do mar
E os olhos se nos vão na distancia que os apela.
151

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