Igreja e Questão Agrária no Início do Século XXI

Transcrição

Igreja e Questão Agrária no Início do Século XXI
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL
51ª Assembleia Geral da CNBB
Aparecida-SP, 10 a 19 de abril de 2013
23/51ª AG(Sub)
A Igreja e a questão agrária no século XXI
INTRODUÇÃO
Fazendo memória
1.
Há mais de 30 anos, em 1980, a XVIII Assembleia Geral da CNBB aprovou o documento “A
Igreja e os Problemas da Terra”. A difícil situação em que viviam os trabalhadores e
trabalhadoras do campo brasileiro interpelava a Igreja e exigia seu compromisso e sua
palavra. O documento de Puebla, com sua opção preferencial pelos pobres, estimulava a
fidelidade ao Cristo presente nos rostos dos irmãos e das irmãs vítimas da opressão e da
exploração.
2.
De lá para cá muitas foram as mudanças pelas quais passou a sociedade brasileira. Foram
importantes mudanças políticas, como o fim da ditadura militar e o processo de
redemocratização do País, que culminou com a promulgação da Constituição Federal, em
1988. Diante do enfraquecimento do socialismo de estado, o capitalismo se impôs,
internacionalmente, como única alternativa econômica e ideológica. As mudanças
econômicas mais importantes foram capitaneadas pela globalização do mercado. Seus
dogmas continuam marcando as relações de mercado e as relações sociais: a soberania
intocável e inquestionável do capital financeiro, muitas vezes especulativo em sua
volatilidade e virtualidade; a privatização, praticamente descontrolada, dos serviços
públicos essenciais, como educação, saúde e transporte; a redução e a fragilidade do papel
do estado, posto a serviço dos interesses do mercado que se tornou o indiscutível marco
regulador de quase todas as políticas públicas.
3.
A sociedade brasileira, por sua vez, foi protagonista de mobilizações muito
significativas: as campanhas pela anistia, pelas eleições diretas já, pela participação
popular na constituinte, pela auditoria da dívida pública, pela reforma agrária, pelo voto
consciente e a ficha limpa foram momentos importantes de uma expressão cívica
atuante e consciente. Os anos oitenta viram, também, os esforços para unificar as lutas
sindicais, o surgimento de movimentos sociais combativos e a construção de um partido
popular que condensasse os anseios de mudança vindos das camadas populares
organizadas, que buscavam dar outro rosto à política brasileira. Em todo este processo, a
Igreja teve seu papel: evangelizou, estimulou, incentivou as comunidades cristãs a
assumir a dimensão política e social como própria e específica da vocação dos fieis
leigos.
4.
A jovem democracia brasileira passou por governos de diferentes matizes ideológicos,
em alguns casos, até antagônicos, mas que acabaram enveredando por políticas sociais e
econômicas muito parecidas. A implantação das regras relativas às políticas sociais
brasileiras, estabelecidas pela constituição de 1988, garantiu avanços importantes no
sistema de proteção aos direitos do cidadão, principalmente na educação básica e na
seguridade social. Estas políticas sociais, porem, convivem com iniciativas pontuais de
gestão da pobreza, de caráter assistencialista que, mesmo sendo responsáveis por
alguma melhoria na desigualdade econômica e social, têm caráter marginal e, muitas
vezes, de forte apelo eleitoral. Não são políticas de estado, pois estão vinculadas aos
programas dos governos de plantão. Quase sempre, as poucas mudanças estruturais
1
5.
6.
realizadas foram feitas para fortalecer o capital e acompanhar a lógica do mercado
neoliberal.
Esta realidade é evidente, sobretudo, quando vista a partir das comunidades do campo,
da floresta e das águas do nosso País. A sempre prometida reforma agrária não foi
prioridade de nenhum dos governos democráticos. As decisões governamentais, nestas
três décadas, foram, quase sempre, tomadas para favorecer o latifúndio e o agronegócio:
financiamentos altíssimos, subvenções e até anistia para os endividados, impunidade e
regularização da grilagem, legislação favorável aos interesses da bancada ruralista. É
injustificável que os índices de produtividade, essenciais para provar a função social da
propriedade, ainda sejam os do tempo da ditadura militar1.
Hoje, mais de 30 anos depois, o povo do campo vive uma realidade mais dura e
complexa. Se por um lado houve alguns avanços na afirmação de direitos, de outro,
sente-se que os conflitos aumentam2. Nada indica que esta tendência possa ser revertida
e que tamanha violência venha a diminuir.
A tradição da CNBB
7.
A Igreja, com sua presença pastoral em todos os recantos de nosso país, procurou estar
atenta à realidade dos povos do campo e das florestas. Nestes mais de trinta anos, sua
palavra se fez solidária e, ao mesmo tempo, crítica, reafirmando os valores
fundamentais contidos nas sagradas escrituras e no magistério eclesial, sempre
procurando, também, se fundamentar na contribuição das ciências sociais para fazer a
leitura da realidade agrária histórica. Fazer memória deste serviço provoca nossa prática
coerente e nos chama a um processo permanente de conversão.
8.
Em 1980 o documento “Igreja e problemas da terra”, marcou, de maneira indelével, a
reflexão e a atuação da Igreja diante da situação extremamente grave dos que sofriam
por questões de terra em nosso país, desse povo sofrido ameaçado de perder sua terra ou
impossibilitado de alcançá-la.
9.
Naquele momento a CNBB já denunciava:

Os poucos empregos gerados pelo agronegócio: “Entre 1950 e 1970, as
oportunidades de trabalho para terceiros na agropecuária, assalariados e
subordinados, caíram em cerca de um milhão e meio de empregos”(14).

“O estrangulamento da pequena agricultura está intimamente associado à expansão
das pastagens e à política inadequada de reflorestamento” (15).

“A política de incentivos fiscais desvia dinheiro de todos para uso de uma minoria,
não atendendo às exigências do bem comum. Essa política revela o Estado
comprometido com os interesses dos grandes grupos econômicos” (19).

“Em quase todas as unidades da Federação, sob formas distintas, surgem conflitos
entre, de um lado, grandes empresas nacionais e multinacionais, grileiros e fazendeiros
e, de outro, posseiros e índios. (...) Nessas violências, já se comprovou amplamente,
1
Um quadro comparativo dos dados do IBGE nos ajuda a ilustrar esta realidade. Segundo os dados dos censos
realizados entre 1980 e 2006, o número dos estabelecimentos produtivos permaneceu praticamente igual, a
área plantada diminuiu em quase 35 milhões de hectares (cerca de10%) e mais de 4milhões e meio de
trabalhadores (22%) deixaram o campo. Mesmo assim, alguns setores da produção agropecuária tiveram um
grande aumento: a silvicultura, por exemplo, entre 1990 e 2010 aumentou em 146%. Entre 1980 e 2006, o
rebanho bovino aumentou mais de 45%, o bubalino em 132% e a produção de aves em quase 240%. A
produção da soja em grãos teve um aumento de 219% e a cana-de-açúcar de 175%.
2
A série histórica dos dados organizados pela CPT é contundente: o número de conflitos aumentou de 768, em
1985, para 1.363, em 2011 (+77,5%) e a área em disputa passou de 9,5 milhões de hectares para 14,4 milhões
(+ 50,8%).
2
estão envolvidos desde jagunços e pistoleiros profissionais até forças policiais, oficiais
de justiça e até juízes” (28).

“Concentram-se os bens, o capital, a propriedade da terra e seus recursos,
concentrando-se ainda mais o poder político, num processo cumulativo resultante
da exploração do trabalho e da marginalização social e política da maior parte de
nosso povo” (38).

10.
11.
12.
13.
14.
3
“Mais grave ainda é a situação dos peões na Amazônia Legal. São trabalhadores
sem terra, recrutados pelos “gatos” em Goiás, no Nordeste e mesmo em São Paulo
e depois vendidos como uma mercadoria qualquer aos empreiteiros encarregados
do desmatamento” (49). “Justifica-se a venda de peões pelas dívidas que o
trabalhador é obrigado a contrair, durante a viagem, com alimentação e o próprio
transporte” (51)
A novidade do documento foi a distinção feita entre “terra de exploração e terra de
trabalho”. “Terra de exploração é a terra de que o capital se apropria para crescer
continuamente. (84) “Terra de trabalho é a terra possuída por quem nela trabalha. Não é
terra para explorar os outros, nem para especular” (85). Esta afirmação norteou o
documento todo.
Poucos dias depois deste pronunciamento da CNBB, em julho de 1980, o papa João
Paulo II, em São Luis do Maranhão, falando da concentração da propriedade da terra,
disse que sobre ela pesa sempre uma hipoteca social e reafirmou com veemência a
denúncia contra o latifúndio, repetindo o que já tinha dito na encíclica Centesimus
annus3: “Semelhante propriedade não tem qualquer justificação e constitui um abuso
diante de Deus e dos homens”.
Entristece-nos constatar a atualidade destas palavras, depois de mais de trinta anos.
A declaração pastoral da CNBB de 1986 “Por uma nova ordem constitucional” reafirmava
os princípios da justiça social e o acesso à propriedade, subordinando a propriedade privada
à destinação universal dos bens da terra para a realização de todas as pessoas (120 a 123) e
cobrava, em nome da justiça social, a implantação da reforma agrária, garantindo a terra
para quem realmente nela trabalha, proibindo o despejo daqueles que estão efetivamente
utilizando a terra e criando mecanismos que impeçam a concentração fundiária (127).
Em 1993, o documento “Ética: pessoa e sociedade” se confrontava, pela primeira vez, com
a vida do planeta terra e com a problemática ambiental (59, 106). Em 1997, a CNBB, no
documento “Exigências cristãs de uma ordem política”, afirmava: ser marginalizado é ser
privado da terra por estruturas inadequadas e injustas (23). A Igreja voltou a se pronunciar
sobre o assunto, em 2002, no documento “Exigências evangélicas e éticas de superação da
miséria e da fome”: “Garanta-se o acesso de todos os seres humanos às fontes de vida. A
terra, a água, o ar, as sementes e a tecnologia, bens comuns a serviço de todos (...) não
podem ficar à mercê da propriedade privada e do mercado...” (39). Em continuação, a
CNBB reafirmou a atualidade da oposição entre terra de trabalho e terra de negócio,
invocou a urgência da reforma agrária, condenou a mercantilização da água e proclamou o
direito universal á segurança alimentar (39,40). A nova sociedade tem a obrigação de
atender aos direitos e às necessidades básicas da população: educação, saúde, reforma
agrária, política agrícola, demarcação das terras indígenas e das terras remanescentes de
quilombo... (53)
Em 2006, o documento “Os pobres possuirão a Terra – Pronunciamento de bispos e
pastores sinodais sobre a terra” já fazia uma análise mais orgânica da situação atual da
realidade do campo brasileiro e apontava: “a culpa maior cabe aos que montam e mantém,
no Brasil, um sistema de vida e trabalho que enriquece uns poucos às custas da pobreza ou
Joâo Paulo II. Centesimus annus, 43
3
15.
16.
17.
18.
19.
miséria da maioria”. Não é vontade de Deus que o povo sofra e viva na miséria; certamente
todos nós temos alguma responsabilidade em relação a esta situação de sofrimento e
miséria.
A demarcação das áreas indígenas e o reconhecimento das terras das comunidades
quilombolas e de outras populações tradicionais foram lembrados também, em 2010, no
documento “Por uma reforma do estado com participação democrática” (53). Dois
pontos importantes deste documento diziam respeito à democratização do acesso à terra
e ao solo urbano (86 a 91) e aos cuidados com o planeta terra como responsabilidade
humana (92 a 95). Sempre em 2010, em sua Assembleia Geral, a CNBB aprovou um
texto de estudos, sob o título “Igreja e Questão Agrária no Início do Século XXI” que
serviu de subsídio à reflexão das comunidades eclesiais.
Estes assuntos foram retomados pelas “Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora”
que, em 2011, depois de afirmar que “os critérios que regem as leis do mercado, do
lucro e dos bens materiais regulam também as relações humanas, familiares e
sociais” e que “por vezes, os pobres são considerados supérfluos e descartáveis.
Desta forma, se compromete o equilíbrio entre os povos e nações, a preservação da
natureza, o acesso à terra para trabalho e renda, entre outros fatores”(21). As
diretrizes tratam também dos migrantes sazonais, que constituem mão de obra barata
e superexplorada pelo agronegócio em suas formas variadas e dos trabalhadores
explorados pelos métodos de terceirização, vítimas de atravessadores de mão de obra
(111). O documento cobrou dos cristãos o apoio às iniciativas em prol da inclusão
social e o reconhecimento dos direitos das populações indígena e africana (113). E
acrescentou que um importante campo de ação é a educação para a preservação da
natureza e o cuidado com a ecologia humana, no respeito da biodiversidade e do
zelo pelo meio ambiente. “Entre essas ações, destaca-se a preservação da água,
patrimônio da humanidade, evitando sua privatização, do solo e do ar. O esforço por
maior crescimento econômico deve ser orientado para o desenvolvimento
sustentável” (114).
Em todos estes documentos, assim como em muitos outros documentos produzidos
pelos seus regionais, o episcopado, manteve-se fiel à memória da Sagrada Escritura, ao
tesouro da Tradição Apostólicas e na coerência ao magistério da igreja universal. Com
base nestas múltiplas reflexões e com a valiosa contribuição das ciências sociais, nasce
o presente texto. Na Assembléia Geral da CNBB de maio de 2010 o episcopado
aprovou um texto de estudos, sob o título “Igreja e Questão Agrária no Início do Século
XXI”, que serviu de subsídio à reflexão das comunidades eclesiais aos longo dos
últimos três ano. Com base na reflexão e em ulteriores contribuições, a CNBB optou
por evoluir para um documento de caráter doutrinário e pastoral atualizando sua leitura
histórica da problemática agrária brasileira. Desta reflexão e decisão nasce o presente
texto, no qual pretendemos, nos pronunciar sobre a questão agrária no século XXI.
O documento é uma palavra dos Bispos para o Povo de Deus, elaborada em comunidade de
fé , tendo em vista profeticamente animar e anunciar , como também denunciar graves
injustiças ainda vigentes sobre os „povos da terra, das água e das florestas‟. Em outras
circunstâncias históricas, como em 1980, a palavra episcopal assumiu um tom de
protagonismo social e político, plenamente compreensível à época, dadas as notórias
limitações impostos pela ditadura militar à organização dos movimentos campesinos.
Atualmente a Igreja se sente identicamente comprometida, como em 1980, e identifica na
realidade social deste século um protagonismo social e político do movimentos sociais e
agrários na luta pela terra, a ser exercido e principalmente apoiado, tendo em vista reverter o
quadro de desigualdade social vigente.
Na primeira parte, queremos alimentar nossa fidelidade aos pobres de Deus, abrindo nossos
ouvidos aos gritos, muitas vezes abafados, que saem deste chão sofrido.
4
Num segundo momento, abriremos nossas mentes para compreender de forma crítica as
velhas e novas razões do sofrimento e da violência, que marcam esta terra que é de
Deus para todos e todas.
Em seguida, abriremos, mais uma vez, nosso coração aos apelos das Sagradas Escrituras, e
do magistério eclesial, fortalecendo nosso compromisso de fidelidade ao Deus dos pobres.
Na última parte confrontaremos nossa missão de igreja com a realidade do povo e os
valores da Palavra de Deus, para discernir o que precisamos fazer, aqui e agora, nas
nossas realidades eclesiais, para que venha a nós o seu Reino, testemunhando, com
nossa prática, a sua presença já atuante no meio de nós.
5
1ª Parte: EU VI A OPRESSÃO DO MEU POVO(Êx 3,7)
20.
Nossa obrigação pastoral é testemunhar, com nossa vida e nossas escolhas, a prática de
Jesus bom pastor. É dele que nós aprendemos a verdadeira metodologia que deve ser
seguida. O ponto de partida é claro: “Eu sou o bom pastor. Conheço minhas ovelhas e
elas me conhecem” (Jo 10,14). É a dinâmica gravada nas mais antigas memórias do
povo de Israel: “do meio da escravidão seu grito de socorro subiu até Deus. Deus ouviu
seus lamentos” (Êx 2,23s). É por isso que, nesta primeira parte, no intuito de vivenciar
uma pastoral coerente com as propostas de Jesus, buscamos conhecer a voz, o grito, o
lamento, muitas vezes abafado, que sai do chão da opressão em que vivem as
populações e as comunidades do campo brasileiro.
O clamor dos povos indígenas
21. Em 1974, com o apoio do recém-criado CIMI, os povos indígenas se reuniram na primeira
assembleia de líderes indígenas. De lá para cá, os povos indígenas cresceram em
articulação, autonomia e suas lutas se multiplicaram. Em 1980 nasceu a União das Nações
Indígenas e o movimento indígena se consolidou ao redor de três bandeiras: a luta pelos
territórios, a participação nas políticas indigenistas e a urgência de uma sempre maior
articulação entre as nações indígenas. Em 1988, a Constituição Federal reconhecia os
direitos inegociáveis dos povos indígenas e, no artigo 67 da ADCT, estabelecia: “A União
concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos, a partir da
promulgação da Constituição”. Esta determinação constitucional está muito longe de ser
cumprida. Os dados do CIMI nos dizem que só foram regularizadas 405 das 1.044 áreas
indígenas existentes4. A soma de todas as áreas indígenas regularizadas é menor do que a
soma dos pouco mais de 15 mil latifúndios com área superior a 2.500 hectares5. E, mesmo
assim, é muito comum se ouvir, sobretudo de políticos da bancada ruralista e de outras
autoridades, que há muita terra para pouco índio.
22. O que nos preocupa, mais do que o atraso no processo de regularização dos territórios
indígenas, é a pressão e a invasão que muitas dessas áreas regularizadas sofrem para
retirada de madeira, exploração de minérios, construção de barragens para hidrelétricas
e para outro sem número de atividades, às vezes, ilegais. O CIMI informa que, em 2011,
foram registrados 42 casos de invasões e exploração ilegal de recursos naturais. Em
2010, haviam ocorrido outros 33 casos.
23. Esse esbulho dos territórios indígenas lhes limitou o espaço vital, necessário para a
reprodução da vida da família e do grupo e, provocou a extrema violência que sofrem.
O CIMI constata uma média de 55 assassinatos por ano entre 2003 e 2011, num total de
503 mortos nesse período. Em 2011, foram 51 vítimas. E outro dado alarmante é o alto
número de suicídios, sobretudo entre os Guarani Kaiowá. Entre 2000 e 2011, foram
registrados 555 suicídios. Isso, segundo vários pesquisadores, se explica pela falta de
perspectivas de futuro. Os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul são exemplo vivo
desta brutal realidade: boa parte deles vive em acampamentos às beiras das estradas e
são tratados como intrusos em sua própria terra.
24. No congresso nacional tramitam, também, vários projetos de lei que propõem a redução
de direitos tão duramente conquistados. A PEC 215, por exemplo, quer retirar a
4
As demais terras indígenas se encontram na seguinte situação: Declaradas 58, Identificadas 37, a identificar
154, sem providência 339, reservadas/dominiais 40, com restrição 05, GT constituído no MS como Terra
Indígena
06
(fonte
CIMI,
23/11/2012:
www.cimi.org.br/site/ptbr/?system=paginas&conteudo_id=5719&action=read)
5
A área ocupada pelas 405 terras indígenas regularizadas é de 97.917.083 hectares e a área ocupada pelos
15.012 estabelecimentos rurais com mais de 2.500 hectares é de 98.480.672 hectares.
6
25.
competência do Executivo na definição dos territórios indígenas passando-a para o
Senado. Se o Executivo é tão lento na definição e regularização destes territórios, o que
será quando isso passar para o Congresso, onde uma grande bancada se opõe
ferrenhamente contra os interesses dos grupos minoritários em nosso país?
O próprio Executivo, recentemente, baixou uma portaria em que determina que para a
identificação e regularização de territórios indígenas deve-se ouvir primeiro o
Ministério de Minas e Energia. Outra portaria da Advocacia Geral da União quer
estender a todas as áreas indígenas as condicionantes que um ministro do Supremo
Tribunal Federal estabeleceu em relação à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. São os
interesses econômicos que se sobrepõem aos direitos imemoriais das comunidades
indígenas sobre seus territórios. Ontem como hoje os interesses do “desenvolvimento
econômico” falam mais alto que os povos que lá se encontram com suas culturas. A
estrutura da FUNAI, também, foi modificada e seu papel foi reduzido e enfraquecido.
O clamor dos quilombolas
26. Em 1980 os documentos da CNBB ainda não explicitavam, apesar de seu grito
persistente ao longo de nossa história, a opressão das comunidades quilombolas
presentes no nosso país. Os negros sofreram toda sorte de humilhações e violência
durante a escravidão e a eles se negou o direito à terra, ao se anunciar sua “liberdade”.
Na busca pela liberdade, os negros construíram espaços de vida livre que se chamaram
de Quilombos. Em 1978 teve sua origem o Movimento Negro Unificado contra a
discriminação racial (MNU). As lutas e a resistência das comunidades de
afrodescendentes fizeram com que a Constituição de 1988 reconhecesse o direito dos
negros aos territórios que ocupavam. Assim diz o Art. 68 das ADCT: “Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos”. Em 1989, finalmente, a lei Caó, de autoria do deputado Carlos Alberto de
Oliveira definiu o racismo como crime.
27. Até 2011, depois de mais de 20 anos, somente 111 das 2.8476 comunidades quilombolas
existentes no Brasil tinham sido tituladas, beneficiando 11.588 famílias, com 963.058
hectares, menos de 10% da área ocupada pelos latifúndios com mais de 2.500 hectares.
Além de não terem seus territórios reconhecidos, os quilombolas sofrem toda sorte de
pressão e violência para dar espaço a grileiros, fazendeiros, empresários e a projetos
governamentais que querem se apoderar das terras que ainda hoje ocupam. Em 2010, a CPT
registrou 71 comunidades em conflito pelo seu território, em oito estados, envolvendo 5.926
famílias. Em 2011, esse número cresceu para 100 comunidades em conflito, em 11 estados,
que atingiram 7.692 famílias. As principais formas de agressão e violência são: a expulsão
de suas terras com destruição de suas casas e roças, os despejos judiciais, as ameaças de
morte e os assassinatos. Entre as 347 pessoas ameaçadas de morte, registradas pela CPT,
em 2011, 77 são quilombolas. Em 2012, mais três quilombolas sofreram tentativa de
assassinato e outros três foram assassinados.
28. Preocupam-nos os ataques violentos e sistemáticos que as comunidades quilombolas
vêm sofrendo contra seus direitos duramente conquistados. Proliferam no âmbito do
Congresso Nacional projetos de Lei que buscam restringir os direitos que lhes garantem
o acesso à terra. Alguns partidos acionaram o Supremo Tribunal Federal para que
declare inconstitucional o Decreto 4887/2003 que regulamentou o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas
por remanescentes das comunidades dos quilombos. Outro instrumento utilizado para
penalizar as comunidades quilombolas e abrir caminho para a invasão de suas terras é a
6
175 na Região Sul, 442 na região Norte, 1.724 na Nordeste, 375 na Sudeste e 131 na Centro-Oeste.
7
29.
cobrança, em “terras de preto”, do Imposto Territorial Rural com valores insuportáveis e
que, em alguns casos, chegaram a milhões de reais.
Povos indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais de ribeirinhos,
pescadores, seringueiros, posseiros e outras muitas, ao resistirem nas terras que ocupam,
ao lutar para recuperar os territórios que lhes pertenceram e ao se recusarem a inserir no
mercado os bens naturais de que desfrutam e necessitam, são considerados fatores de
atraso e empecilho ao crescimento e ao progresso. Empecilhos que devem ser
removidos. São vítimas da expansão do capital e do dinheiro na agricultura, nos projetos
da chamada “expansão primário-exportadora”.
O clamor dos sem-terra
30. Já fazem parte da paisagem nacional, em quase todos os estados brasileiros, os inúmeros
acampamentos formados de barracas cobertas de lona preta, às beiras das estradas.
Famílias inteiras, homens, mulheres, jovens, crianças, idosos, em minúsculos espaços,
sujeitos às intempéries do tempo, esperando o tão sonhado pedaço de chão, para de ele
tirar seu sustento. Os sem-terra sempre foram uma parte muito significativa da
população rural do Brasil. Esta realidade gritante levou 80 trabalhadores rurais, que
ajudavam a organizar ocupações de terra em 12 estados a se reunirem, em 1984, na
cidade de Cascavél. Eram os primeiros passos do que viria a ser o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. O movimento ganhou espaço no cenário
nacional pelas diversas formas de ação que realizou: ocupação de terras, acampamentos,
marchas e manifestações. Hoje, ao MST somam-se dezenas de movimentos, todos
lutando para que a Reforma Agrária se torne realidade. O próprio INCRA reconhece a
existência de, em torno a, 180 mil famílias acampadas.
31. A resposta a esta demanda tem sido mínima. No ano de 2011, segundo os dados
precaríssimos fornecidos pelo INCRA, somente 22.021 famílias foram assentadas, o
menor número desde 1995. No mesmo ano, a CPT informou que foram expulsas da
terra 2.137 famílias, 7.033 foram despejadas por ordem judicial e 12.368 sofrem
ameaças de despejo.
32. É gravíssimo constatar que os trabalhadores sem terra, por causa de sua luta, são
discriminados e considerados cidadãos de segunda categoria. No Rio Grande do Sul,
por exemplo, o processo de escolarização das crianças nos próprios acampamentos foi
proibido, por ser considerado nocivo às crianças que são, por isso, obrigadas a percorrer
dezenas de quilômetros para chegar ao local da escola mais próxima.
33. Quando os sem-terra ocupam áreas, muitas delas notoriamente griladas, reivindicando a
realização da reforma agrária, sua ação é criminalizada pelos poderes públicos e pela
grande mídia. São tratados como criminosos e bandidos. Muitos juízes, porém, não
levam em conta o crime de grilagem de terras públicas, conforme o art. 20 da Lei
4.947/66, mas, incoerentemente, alguns deles aplicam este mesmo artigo para
criminalizar a luta de quem busca resgatar as terras que são do estado, para que voltem
ao patrimônio público. A Constituição Federal estabelece que ”A destinação de terras
públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano
nacional de reforma agrária” (art. 188).
34. Como diz o eminente jurista Jacques Alfonsin7 há “uma cultura jurídica interpretativa
dos fatos e das leis, que pré-julga, por uma síndrome medrosa e preconceituosa, todo o
povo pobre ativo - como são as/os sem-terra que defendem seus direitos - fechado numa
clausura de suspeita antecipada de que ele é, por sua própria condição social, perigoso
e tendente a praticar crimes.”
7
Alfonsin, Jacques, Do respeito à lei, às leis do respeito, in Conflitos no Campo Brasil, 2008, pag. 19 a 24.
8
O clamor dos assalariados e escravizados do campo
35. Outro clamor que sobe aos céus é o dos homens e mulheres assalariados no campo e
que, muitas vezes, no seu trabalho, são submetidos a condições degradantes, análogas
ao trabalho escravo.
36. Encontram-se assalariados nas mais diversas atividades rurais e no cultivo dos mais
diversos produtos. A situação dos cortadores de cana é emblemática, seja pelo grande
número de pessoas envolvidas, seja pelas difíceis condições de trabalho a que são obrigados
a suportar. Diante da maior atenção por parte dos fiscais do trabalho, consequência das
muitas denúncias apresentadas e da degradação do meio ambiente provocada pela queimada
da palha, as empresas estão optando pela mecanização da colheita da cana. Esta
mecanização está trazendo consigo duas consequências perversas para os trabalhadores:
tem diminuído consideravelmente o número de trabalhadores contratados para este trabalho
e têm piorado as condições de trabalho dos que permanecem empregados, pois os
cortadores necessitam atingir uma cota de produtividade cada vez maior para garantir seu
emprego. Os que não atingem a cota de produção estipulada ficam desempregados. Foram
registrados casos em que um único cortador colheu até 12 toneladas diárias de cana. As
jornadas exaustivas tornaram esta atividade a campeã dos “auxílios-doença” registrados
pelo INSS8. Não são poucos os que morreram por exaustão, devido ao esforço excessivo.
As empresas utilizam a mecanização como chantagem para evitar que os trabalhadores
reivindiquem melhorias de salário e de condições de trabalho. As usinas do Mato Grosso
do Sul, diante das denúncias de irregularidades na contratação, alojamento, alimentação,
segurança e transporte de trabalhadores migrantes, que vinham do Nordeste, optaram pelo
uso do trabalho indígena local.
37. Os cortadores não têm o controle de sua produção, tanto na medição do que cortaram,
quanto na pesagem da cana, o que facilita a exploração do trabalho não pago pelas
usinas e pelos chamados “gatos”, como são chamados os intermediários no aliciamento
dos trabalhadores.
38. O que acontece com os cortadores de cana, de uma forma ou outra, também, acontece
com os que trabalham na colheita do café, do tomate, do mate, no plantio de eucalipto,
na produção de carvão vegetal e em outras atividades, como roçagem de pastos,
levantamento de cercas etc. Além disso, muitos ficam expostos à pulverização de
agrotóxicos que afeta sua saúde.
39. Muitos destes trabalhadores são levados de lugares distantes e colocados em áreas de
trabalho de difícil acesso. São enganados com promessas falsas, ludibriados nos
contratos e acabam superexplorados no trabalho e obrigados a viver em condições
degradantes, tratados pior que animais. Quando adoecem não tem o menor atendimento.
Sua dignidade é espezinhada. São alojados em espaços sem qualquer cuidado e
segurança. Muitas vezes têm que disputar o espaço com animais ou ficam no mesmo
lugar onde se guardam os venenos aplicados nos pastos e nas lavouras. Trata-se de
trabalho análogo ao trabalho escravo. Muitos, na hora do acerto não recebem o que lhes
é devido e alguns ainda sofrem ameaças, quando não são mortos.
40. Apesar das constantes denúncias, (a Igreja o vem fazendo desde a década de 1970) e das
ações públicas que o combatem, este tipo de trabalho continua presente em terras
brasileiras. Os trabalhadores são vistos e tratados como peças de uma máquina e sua
condição de seres humanos é espezinhada e vilipendiada.
9
Dados não publicados do “Relatório sobre Benefícios por Incapacidade da Previdência Social – 1998-2005”
(Brasília- IPEA-2008) revelam que entre 2000e 2005 os”auxílios-doença” concedidos pelo INSS nas atividades
de “Cultivo da Cana” (Cód. O1139), “Fabricação do Açúcar” (Cód. O15610) e “Fabricação do Álcool (Cod.
23.400), somaram no ano 2000 o numero. de 4864 concessões e 18.227 concessões em 2005
9
41.
42.
Encontram-se situações de escravidão em quase todos os estados do país. O trabalho
escravo não se restringe ao meio rural. Foi flagrado em indústrias do vestuário e
também na construção civil explorando, sobretudo imigrantes de países vizinhos. Mas é
no campo que ele tem sido encontrado em maior número e com mais frequência. A CPT
tem divulgado, a cada ano, um relatório com os registros desta chaga social. Entre 2003
e hoje, foram registrados cerca de 250 casos de trabalho escravo a cada ano. As equipes
de fiscalização do Ministério do Trabalho já resgataram mais de 38.000 trabalhadores
na roçagem de pasto, na produção de carvão vegetal ou em grandes lavouras. Em 2011,
foram 2.500 libertados, entre eles 600 em atividades não agrícolas.
Só a custo de muita pressão social, a Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de
Emenda Constitucional 438/2001, que determina o confisco de propriedades em que for
flagrado trabalho escravo e seu encaminhamento para reforma agrária ou uso social. O
texto agora está tramitando no Senado onde os ruralistas pretendem modificar a
definição de trabalho escravo. Espera-se que, no senado, a tramitação seja mais célere,
visto que na Câmara dos Deputados, entre a votação em primeiro turno e a votação em
segundo turno passaram-se nove anos!
O clamor dos assentados
43. Nas últimas décadas cresceu consideravelmente o número de famílias assentadas em
projetos de assentamento da reforma agrária9. Assentamentos, a maior parte deles, nascidos
pela pressão de sem-terra que ocuparam áreas, acamparam às margens das rodovias ou de
alguma outra forma pressionaram o governo. Outros assentamentos são, na realidade, a
regularização de áreas já ocupadas há muitos anos e que foram, finalmente, reconhecidas.
Na Amazônia, o INCRA criou, também, de cima para baixo, dezenas de assentamentos em
área de floresta, sem nenhum plano de uso e sem nenhum cuidado ambiental, provocando,
assim, um desmatamento de dimensões impressionantes.
44. Alguns assentamentos podem ser considerados um modelo por sua organização interna
e por sua produtividade. Mas o que se vê, na maioria dos casos, é que os assentados
acabaram jogados à própria sorte.
45. Atenta, a Igreja escuta os gritos que provém destes assentamentos. É a situação de quem
não consegue ter os meios para alcançar uma vida digna. Não há escolas adequadas, o
atendimento à saúde é distante e mais que precário, as estradas, os ramais e as vicinais
estão em situação péssima. O assentado não dispõe de assistência técnica que o oriente
9
Os dados do INCRA são incoerentes e incongruentes: em 16/10/2012, no sito web do INCRA, constavam três
links que apresentavam dados diferentes em relação ao número de famílias assentadas: 1) relação de projetos
de reforma agrária http://www.incra.gov.br/index.php/reforma-agraria-2/questao-agraria/numeros-dareforma-agraria/file/31-relacao-de-projetos-de-reforma-agraria;
2)
famílias
assentadas
http://www.incra.gov.br/index.php/reforma-agraria-2/questao-agraria/numeros-da-reforma-agraria/file/1148familias-assentadas; 3) relação de beneficiários http://www.incra.gov.br/index.php/reforma-agraria2/projetos-e-programas-do-incra/relacao-de-beneficiarios-rb.
Os assentamentos são 8.865, sua área total é de 87.559.858,9467 hectares (muito menos dos que os
latifúndios com mais de 2.500 hectares) e têm a capacidade total de assentar 1.129.271 famílias. Os dados,
porém, informam:
Data
Tipo de relatório
N.º famílias
% capacidade
23/03/2012
Relação de projetos de reforma agrária
931.730
82,51
06/02/2012
Famílias assentadas
1.235.130
109,37
10/07/2012
Relação de beneficiários
1.243.478
110,11
As incongruências são mais do que evidentes: há uma diferença de 33,5% entre uma e outra lista. As listas das
famílias assentadas chegam a superar em mais de 10% a capacidade máxima dos assentamentos. Há
incongruências ainda mais graves quando se confrontam as listas por estado: Goiás (94,7%), Tocantins (73%),
Roraima (70%), Paraná (69,6%) e Distrito Federal (53,8%).
10
46.
sobre as melhores formas de cultivo. O acesso ao crédito não lhe é facilitado e tem
muitas dificuldades para comercializar o que produz. O endividamento é altíssimo e, por
falta de uma alternativa mais adequada de produção, o assentado é presa fácil do
desmatamento ou do agronegócio, que lhe propõe o arrendamento da terra para o cultivo
de cana, soja, eucalipto ou outras, ou que ele próprio produza o que lhe é proposto, sem
qualquer ônus para quem o incentiva a isso. Na produção, o assentado, na maioria das
vezes, é levado a utilizar insumos químicos e agrotóxicos que prejudicam a terra e,
sobretudo a saúde da família. Em muitos casos os assentamentos estão cercados por
monocultivos diversos que acabam envenenando a terra, a água e as plantações dos
pequenos agricultores.
Constatamos, também, que, nos assentamentos de regularização fundiária, os assentados
são impelidos, pelo poder público, a criar organizações específicas para o recebimento
dos créditos. Estas colidem de frente com a organização social e comunitária existente,
provocando, assim, dolorosas e traumáticas divisões internas e facilitando o incrível,
inesgotável e invencível desvio de recursos federais e estaduais.
O clamor dos ribeirinhos e pescadores
47. Outra situação de opressão é vivida pelos ribeirinhos, sobretudo da Amazônia e pelos
pescadores e pescadoras artesanais que, hoje, veem seus territórios sendo invadidos e
ocupados, atropelando seu tradicional modo de viver e de lidar com a natureza, de raízes
profundas, transmitidas de geração para geração.
48. A pesca artesanal não é somente uma profissão. É um jeito de viver, de se relacionar com a
natureza, é responsável também pela manutenção de diversos ecossistemas existentes no
país, pois as comunidades pesqueiras extraem da natureza o que ela é capaz de repor,
conciliando, de forma harmoniosa, a sua sustentabilidade e a sustentabilidade ambiental dos
recursos utilizados. Essa relação é caracterizada principalmente pelo conhecimento que as
comunidades têm da natureza e o respeito por ela.
49. Para ribeirinhos e pescadores, o espaço que ocupam é seu território de uso coletivo para
sustentabilidade da família, da comunidade e dos estoques pesqueiros. Território que
abrange espaços terrestres e o dos rios, lagos, lagoas e mar. Ribeirinhos e pescadores
não vivem só na água, precisam da terra e da água, dos mangues e das matas ciliares.
50. Estes territórios tradicionais são considerados espaços vazios e são disputados por grandes
empreendimentos empresariais da construção civil, do turismo, para a implantação de
parques aquícolas e por projetos de produção de energia, com a construção de grandes
barragens e de parques eólicos. Os ganhos econômicos não contabilizam os rios destruídos,
os estuários afetados, as populações expulsas, os estoques pesqueiros diminuídos. Além
disso, desde 2003, estão em curso planos de privatização de corpos d‟água para os
aquicultivos, seja do mar, como dos rios. A carcinicultura (criação de camarão em cativeiro)
é exemplo disso e está deixando um rastro de violência e insustentabilidade, com
degradação das áreas de manguezais. As fazendas de carcinicultura utilizam, em grande
quantidade, produtos e antibióticos que contaminam as águas e representam um
significativo impacto potencial para a saúde humana.
51. Para satisfazer os interesses do capital em suas diversas atividades, nega-se o pescador e
a pesca artesanal, como atividade importante para a economia brasileira, para soberania
alimentar e para a diversidade cultural do país. Ribeirinhos e pescadores acabam sendo
vistos como entraves para o desenvolvimento e, com isso, se justifica a apropriação dos
territórios que eles ocupam. Muitas ilhas e ilhotas importantes para o trabalho e
segurança das comunidades pesqueiras estão sendo tomadas, de forma ilegal e com a
conivência do estado, para nelas desenvolver grandes empreendimentos de luxo como
resorts, marinas, campos de golfe, etc. Os ribeirinhos e os pescadores expulsos dos
11
52.
locais onde suas comunidades e famílias, há dezenas de anos, se estabeleceram, são
obrigados a migrar para outros lugares de pesca ou para centros urbanos.
Para se libertar desta opressão, o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais MPP, a partir da I Conferencia da Pesca Artesanal, realizada em Brasília, em setembro
de 2009, fortaleceu sua organização e sua resistência ao modelo de desenvolvimento
que esmaga as comunidades pesqueiras, a partir de grandes projetos que concentram a
riqueza e degradam o meio ambiente. Suas principais bandeiras de luta são a defesa do
território e do meio ambiente; o respeito aos direitos e igualdade para as mulheres
pescadoras; a garantia de direitos sociais; a luta por condições adequadas para produzir
e viver com dignidade10. A mais recente iniciativa assumida pelos ribeirinhos e
pescadores e pescadoras artesanais foi convocar a sociedade para a “campanha pela
regularização dos territórios das comunidades pesqueiras”, um projeto de lei de
iniciativa popular que tem como objetivo assegurar o reconhecimento, a proteção e a
garantia do direito ao território de comunidades tradicionais pesqueiras.
O clamor dos pequenos produtores familiares
53. Os pequenos agricultores, também, sentem-se, muitas vezes, abandonados e
empobrecidos. A atenção à saúde, mais que precária, o difícil acesso à educação e a
falta de estradas e transportes que facilitem a comercialização de seus produtos,
empurram grande parte das famílias, sobretudo os mais jovens, a buscar melhores
condições na cidade. E os que ficam veem sua identidade camponesa se diluir.
54. A pressão do agronegócio acaba expulsando milhares de famílias, a cada ano, de suas
terras, com isso mantendo o êxodo rural. Na última década, mais dois milhões de
pessoas abandonaram o campo. Os que resistem sofrem por causa do endividamento
junto aos bancos e, sobretudo pelo envenenamento pelos agrotóxicos. Grande parte das
famílias vê seus filhos buscarem melhores condições de vida na cidade.
55. Outra situação de opressão é a dos agricultores integrados que se tornam reféns de
grandes indústrias. As dificuldades começam na hora dos contratos nos quais as
indústrias impõem as regras da produção e definem, unilateralmente, os preços dos
produtos. Para abastecer o mercado interno e poder exportar grandes quantidades dos
produtos, as indústrias forçam os produtores a aumentar a produção, obrigando-os a
jornadas exaustivas de trabalho, sem direito aos sábados, domingos e feriados. Os
agricultores integrados entram com a terra, a infraestrutura e a força de trabalho e as
empresas entram com a matéria prima e ficam com toda a produção. O agricultor tornase, assim, um prestador de serviços para a indústria, sem carteira assinada e sem direitos
trabalhistas. Para evitar reclamações trabalhistas as indústrias forçam os pequenos
produtores a se constituírem como empresas.
56. Os interesses das indústrias levam, também, os agricultores a ampliar suas instalações e
a se especializar em apenas um tipo de atividade no processo de produção, cortando,
assim, a pouca autonomia que o produtor teria ao tomar conta do ciclo completo da
produção. O valor pago pelo produto, muitas vezes, não chega a cobrir os custos de
produção. Pensando que estão tendo lucro, os agricultores integrados sofrem, na
verdade, um empobrecimento crescente.
57. Outro grito do campo vem dos que acabam subjugados pelas grandes empresas de
sementes que, com os mais eficazes meios de propaganda, convencem os agricultores a
utilizarem sementes transgênicas, que subordinam o agricultor ao controle das empresas
às quais ele tem que pagar pelas variedades transgênicas criadas. O agricultor perde o
controle sobre as sementes que produz, tanto as sementes naturais, chamadas de
10
http://cppnorte.wordpress.com/carta-do-movimento-dos-pescadores-e-pescadoras-artesanais/
12
58.
tradicionais ou “crioulas”, quanto as sementes que os agricultores vieram melhorando,
ao longo de séculos, adaptando as diversas espécies cultivadas às mais distintas
condições ambientas e sociais. São milhares de variedades tradicionais de milho, feijão,
arroz etc. que os transgênicos substituem, fazendo com que se perca a rica diversidade
existente. Tudo isso impulsiona os grandes monocultivos que utilizam poucas
variedades da mesma espécie. Estas culturas são facilmente suscetíveis ao ataque de
pragas e doenças com grandes riscos para a produção: aumenta, assim, a demanda por
agrotóxicos perigosos para o meio ambiente e para a saúde humana e animal e o
agricultor fica ainda mais dependente das empresas que, além das sementes
transgênicas, produzem, também, os agrotóxicos necessários. Já se tem notícia de
pragas resistentes aos agrotóxicos utilizados atualmente, exigindo a produção e
aplicação de venenos cada vez mais fortes e perigosos.
Muitas são as formas de resistência contra a exploração que pesa sobre os agricultores
familiares. A bandeira dos pequenos agricultores é levantada e defendida, de maneira
especial, pelo Movimento dos Pequenos Agricultores, nascido em 1996 e que, ao lado
de outros movimentos, se propõe a resgatar a identidade e a cultura camponesa, com
suas diversidades regionais, a incentivar uma produção agroecológica e diversificada, a
valorizar e multiplicar as sementes crioulas e a produzir comida saudável, abundante e
barata para o autossustento e a alimentação dos próprios camponeses e das populações
urbanas. A Via Campesina junto com muitas outras entidades está desenvolvendo, a
nível nacional, a “Campanha contra os Agrotóxicos e pela Vida”, alertando a sociedade
brasileira sobre a quantidade de veneno que o consumidor ingere e propondo uma
agricultura livre de agrotóxicos e transgênicos.
Uma opressão que aumenta em todos os lados
59. Trata-se de uma opressão provocada por um equivocado modelo de desenvolvimento e
que alcança todos os lugares do País. Dezenas de milhares de famílias acabaram sendo
expulsas por grandes obras, sobretudo as do Programa de Aceleração do Crescimento,
PAC, que sob o manto do desenvolvimento nacional, acabam beneficiando os interesses
do capital, causando sofrimento e tristeza indizíveis às famílias que são atingidas por
eles. São as construções de barragens para hidrelétricas, as obras da transposição de
rios, as obras de rodovias, ferrovias e hidrovias. E são, também, as atividades das
mineradoras que, por ter legalmente e inquestionavelmente a prioridade sobre o uso do
solo, afastam, em troca de indenizações insignificantes, inteiras comunidades que são
totalmente desestruturadas. As famílias expulsas são transformadas, de repente, em mão
de obra urbana desqualificada.
60. Atualmente estão em atividades cerca de oito mil projetos de produção mineral no
Brasil, número que vai se expandir muito com a definição do novo marco legal que está
sendo elaborado, no qual os interesses da sociedade são reduzidos a um mero e
insignificante aumento dos impostos a serem pagos. Apesar de as jazidas pertencerem à
União, elas têm sido utilizadas mais para exploração predatória de tipo colonialista,
controlada pelo capital estrangeiro, ao qual não são postos limites de nenhum tipo.
Muitas vezes, o controle dos projetos minerários é objeto de simples especulação 11,
como reconhecem até agentes públicos.
61. O Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB está, desde 1989, manifestando sua
resistência a este modelo de crescimento energético, em defesa das inúmeras famílias que
perderam suas posses e seus meios de sobrevivência, com a construção de barragens. Com
seu lema: “água e energia não são mercadoria” eles compreendem que a água e a energia
são bens essenciais para a vida das pessoas e para a sociedade, e por isso devem ser um bem
11
Deputado Inocêncio Oliveira, Seminário Setor Mineral: Rumo a um Novo Marco Legal.
13
62.
público, onde todos tenham acesso com qualidade. Não pode ser privatizadas nas mãos de
multinacionais que tem como único interesse aumentar seus lucros12.
Na resistência á opressão gerada pela mineração nasceram outros movimentos populares,
entre eles, em 2007, foram se articulando muitas pessoas e várias organizações, numa
coordenação chamada “justiça nos trilhos”, no enfrentamento com uma das mineradoras
mais poderosas do mundo. É uma articulação dos que denunciam a agressividade e o poder
destrutivo da empresa, com seus impactos irreversíveis, causados ao meio ambiente, com
seu desrespeito aos direitos das comunidades atingidas e das leis trabalhistas. Por trás do
propagandeado desenvolvimento, esconde-se a obsessão transnacional pelo lucro e pela
máxima concentração de riquezas que provocam desrespeito, injustiça, pobreza, sofrimento,
morte. É uma articulação internacional de brasileiros, chilenos, peruanos, argentinos,
moçambicanos, canadenses, indonésios… Indignados com o saque cotidiano de riquezas
que pertencem a nossos povos13.
A violência que atinge os trabalhadores
63. Milhares de famílias de trabalhadores e trabalhadoras do campo, em todos os recantos
do nosso país, gritam pelas agressões e pela violência que sofrem e clamam por justiça.
A CPT vem, com fidelidade, registrando os conflitos que envolvem homens e mulheres
do campo e as violências que sobre eles se abatem. Desde 1985, cinco anos depois do
documento Igreja e Problemas da Terra, vem publicando, ano a ano, os números
indicativos dessas violências e desses conflitos, procurando discernir e explicitar as
causas de tamanha, incompreensível atrocidade.
64. Os conflitos atingem milhares de famílias a cada ano 14. Essa violência no campo é
somente aquela que chega ao conhecimento e é registrada. Muitíssimos outros casos de
violência acontecem sem que ninguém tome conhecimento deles.
É sempre importante recordar o grande número de assassinatos por causa de conflitos por
terra. De 1985 a 2011, foram registrados os assassinatos de 1.610 pessoas. O que chama
a atenção, neste caso, é que só foram julgadas 96 ocorrências e só foram condenados 21
mandantes e 75 executores. A impunidade é a grande alimentadora da violência.
67. Também nos preocupa o grande número de pessoas ameaçadas. A CPT registrou que,
entre 2000 e 2010, 1.855 pessoas, em todo o país, foram ameaçadas pelo menos uma
vez. 207 delas foram ameaçadas mais de uma vez. 42 pessoas que receberam ameaças
foram assassinadas e 30 sofreram tentativa de assassinato. Em 2010, houve o registro de
125 pessoas ameaçadas, e em 2011 de 347.
12
http://www.mabnacional.org.br/historia
http://www.justicanostrilhos.org/
14
A série histórica da CPT é contundente:
Período
Média anual de conflitos
SARNEY (1985-1989)
675
COLLOR (1990-1992)
445
ITAMAR (1993-1994)
515
CARDOSO 1 (1995-1998)
785
CARDOSO 2 (1999-2002)
862
LULA 1 (2003-2006)
1.757
LULA 2 (2007-2010)
1.270
ROUSSEFF (2011)
1.363
13
Média anual de pessoas atingidas
714.244
432.606
349.874
740.340
561.613
992.930
621.285
600.925
14
O grito inaudível do planeta Terra
68. A própria terra está gritando. A crescente onda de cataclismos ambientais como
enchentes sem controle, deslizamentos de encostas que tudo carregam, secas
prolongadas que destroem plantações, secam fontes e mananciais, tornam impossível a
vida animal e até mesmo a humana, faz elevar um grito surdo de dor e desespero de
centenas de milhares de famílias que são as vítimas destas tragédias.
69. As catástrofes naturais, resultado, também, das mudanças climáticas que acompanham o
aquecimento global, cientificamente comprovadas, tem afetado pessoas e povos em todo
o mundo. A responsabilidade por este aquecimento é, em grande parte, do ser humano,
por causa do modelo de desenvolvimento e do estilo de vida adotado. O Brasil é o
sétimo maior país provocador do efeito estufa e o desmatamento intensivo é o principal
componente negativo deste modelo econômico. Apesar de o ritmo do desmatamento ter
diminuído, ainda é muito grande, 93% da Mata Atlântica já foi destruída; 67% do
Cerrado já sofreu modificação; a Caatinga já teve sua vegetação reduzida pela metade, e
a Floresta amazônica, já perdeu em torno a 18% de sua cobertura vegetal.
70. Estas catástrofes naturais nos fazem refletir e apontam para a necessidade de se
imprimir, com urgência, um novo rumo ao processo de desenvolvimento. As mudanças
climáticas estão provocando mudanças drásticas também na agricultura. Menos solos
disponíveis, menos água, alternância de secas e enchentes, mais doenças, mais pragas
geram uma intensa instabilidade agrícola, com a possível migração de plantios de uma
região para outra. Nesse cenário, o Brasil tende a perder espaços agrícolas,
particularmente no Norte e Nordeste e a perder também sua biodiversidade e sua
diversidade produtiva. Outras áreas extensas tendem à desertificação, tornando-se
impróprias para pessoas e agriculturas.
71. Os sinais emitidos pela própria natureza, e uma nova leitura científica da Terra,
mostram que a Terra tem suas próprias leis, que precisa de determinada cobertura
vegetal para seu próprio metabolismo, que o regime das águas depende da vegetação.
Enfim, há uma intrincada rede de conexões entre seres vivos e não vivos, necessária
para a existência de todas as formas de vida. A substituição desta cobertura vegetal
natural pelos monocultivos intensivos e extensivos está provocando a degradação dos
mananciais de água, sua poluição acelerada e já se faz sentir no secamento de rios e
aquíferos e na impossibilidade de uso da água para fins de abastecimento humano.
72. A contínua expansão do agronegócio, especialmente dos monocultivos de soja, milho,
cana, florestas plantadas e da pecuária bovina, avançam com enorme voracidade sobre
os biomas da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal e estão se intensificando ainda mais
na Mata Atlântica, no Pampa e em determinadas zonas úmidas do Semiárido15. A
incorporação destas novas e imensas áreas, em vista do enriquecimento do grande
capital, tem provocado a depredação deste rico patrimônio natural responsável
importante pelo equilíbrio do clima em todo o planeta e das mais ricas fontes de água
subterrânea do mundo, os aquíferos, de onde brotam boa parte dos rios que formam as
principais bacias hidrográficas brasileiras.
73. A expansão agrícola, sob a exclusiva hegemonia do capital e do dinheiro, levou para o
campo o modo industrial de produção, comum ao capitalismo e ao socialismo,
substituindo os policultivos por monocultivos, que mais se parecem com desertos
verdes, numa veloz destruição da fauna e da flora locais, levando à extinção diversas
espécies e afetando, de forma brutal, toda a biodiversidade existente.
15
Segundo dados do Censo Agropecuário de 2006 a expansão pecuária bovina está ocorrendo principalmente
na Região Norte, sendo o Estado do Pará o campeão (seu efetivo bovino dobrou de 6,0 para 12,8 milhões de
cabeças entre 1995 e 2006), enquanto que a expansão de “commodities” agrícola se dá mais acentuadamente
nos cerrados.
15
74.
75.
76.
As frentes de produção de “commodities” - palavra que designa produtos primários
armazenáveis, transacionados em mercados mundiais organizados - se expandem sem
nenhum limite da propriedade, sem levar em conta o zoneamento agroecológico nos
biomas, sem a responsabilidade da gestão das águas, das florestas e dos demais recursos
naturais do meio-ambiente. Quase sempre impõem custos sociais insuportáveis,
carregados por toda a nação, enquanto os benefícios monetários são exclusivos dos que
controlam, de fato, as terras e regulam os preços das “commodities”.
A expansão agrícola, produtora de commodities, veio acompanhada do uso intensivo de
agrotóxicos. Mais de 700 milhões de litros de agrotóxicos são despejados anualmente
sobre os solos brasileiros, gerando problemas ambientais de contaminação de solos e
corpos de água, com consequências inevitáveis e imprevisíveis sobre os mananciais
superficiais e subterrâneos. Além disso, geram problemas para a saúde, sobretudo, das
pessoas que manipulam estes produtos e das famílias que vivem no entorno das grandes
fazendas sobre cujas extensas plantações os aviões despejam os agrotóxicos.
A produção de agrocombustíveis, por exemplo, que tem sido alardeada como um grande
avanço, tem um efeito perverso sobre o meio ambiente. Grandes áreas, antes destinadas
à pecuária, estão sendo atualmente usadas para o plantio de cana-de-açúcar e de soja;
desta forma, a pecuária é empurrada para outras áreas ainda preservadas, e é colocada
em risco a soberania alimentar de nosso país.
A força dos pequenos
77. A força avassaladora deste modelo de crescimento baseado na concentração de riquezas,
na devastação ambiental e na violência contra as pessoas, as comunidades e as
populações nos atinge diretamente. Se ficarmos olhando, assustados ou admirados, este
fenômeno, aparentemente, invencível e até sedutor, podemos ficar petrificados e
incapazes de reagir.
78. Precisamos saber olhar, também, com a mesma atenção e com ainda mais admiração, as
inúmeras, mesmo que pequenas e quase invisíveis, conquistas que vem dos pequenos:
sua capacidade de se organizar e se reorganizar, sua teimosia em resistir, fazendo de
seus gemidos, clamores por justiça.
79. Nestas mais de três décadas vimos as comunidades lutar por sindicatos combativos,
afastando corruptos e pelegos. Depois surgiram movimentos que marcaram e continuam
marcando a história dos diferentes campesinatos que vivem nas terras brasileiras:
movimentos de indígenas, de quilombolas, de sem terra, de pequenos agricultores, de
atingidos pelas barragens, pela mineração. Movimentos de mulheres camponesas que
enriqueceram a luta popular com sua teimosia e criatividade. Movimentos da juventude
rural, escolas famílias, centros de formação, escolas e universidades camponesas.
80. Junto com eles, no meio deles, caminhou a instituição eclesial com suas pastorais
sociais que tiveram um papel fundamental em oferecer reflexões, espaços e
instrumentos que fortaleceram sua luta e sua resistência, unindo a realidade da vida com
a contribuição da Palavra. Com eles e com elas, nossos agentes de pastoral, também
derramaram seu sangue fecundo, mártires/testemunhas que não podem e não devem ser
esquecidos, nunca.
81. Todo este movimento popular participou, com sua militância, na eleição do presidente
Lula, na esperança de ver implantado um modelo diferente, novo, alternativo àquele
governado pelo mercado neoliberal globalizado.
82. Hoje, ao ver que seus sonhos foram esquecidos pelos governantes, ao ver que eles,
também, se sujeitaram, quando não se aliaram ao capital e aos interesses do mercado,
depois de um período de “congelamento” estão sentindo a necessidade de fortalecer sua
16
83.
84.
16
articulação, de somar forças, de construir resistências e alternativas. Um dos sinais mais
importantes é a articulação da Via Campesina, um movimento internacional, que
coordena organizações camponesas de pequenos e médios agricultores, trabalhadores
agrícolas, mulheres rurais e comunidades indígenas e negras da Ásia, África, América e
Europa. Suas principais políticas são: a defesa da soberania alimentar, priorizando a
produção de alimentos sadios, de boa qualidade e culturalmente apropriados, para o
mercado interno; a participação ativa dos movimentos camponeses no processo de
definição de políticas agrícolas e alimentares; a defesa da biodiversidade, vista não só
como flora e fauna, solo, água e ecossistemas, mas envolvendo, também, tradições
culturais, sistemas produtivos, relações humanas e econômicas; a Reforma Agrária, pois
a alta concentração da propriedade da terra, nas mãos de uma minoria é a causa da
existência de elevados níveis de pobreza, da enorme desigualdade social, das péssimas
condições de vida, do subdesenvolvimento crônico e dependente da economia, da
dominação política e da falta de perspectiva para a maioria da população. O acesso à
terra por parte dos camponeses deve ser entendido como uma forma de garantia de
valorização de sua cultura, da autonomia das comunidades e de uma nova visão de
preservação dos recursos naturais, para a humanidade e para as gerações futuras. A terra
é um bem da natureza que deve estar a serviço do bem estar de todos. A terra não é e
não pode ser apenas uma mercadoria.
Registramos, neste sentido, a importância do encontro nacional de todos os movimentos
sociais e entidades que atuam no meio rural brasileiro que se realizou, em Brasília, em
agosto de 2012. Foi um encontro unitário, plural e expressivo de todas as formas de
organização e representação que existem hoje no meio rural brasileiro, abrangendo
desde os assalariados rurais, camponeses, pequenos agricultores familiares, posseiros,
ribeirinhos, quilombolas, pescadores e povos indígenas e pastorais sociais. Todos
unidos, independente da corrente política ou ideológica a que se identificam. Foi uma
grande articulação para resistir à ofensiva do capital no campo, conduzida sob a
hegemonia do capital financeiro e das empresas transnacionais e que está impondo um
novo padrão de produção, exploração e espoliação da natureza pelo agronegócio;
questionar e denunciar a subserviência do Estado brasileiro a esse projeto16.
A Igreja se faz presente neste esforço de articulação, através de várias iniciativas locais e
nacionais, lembramos, de maneira especial, o Grito dos Excluídos, as campanhas da
fraternidade e outras campanhas como a do limite de propriedade e as Semanas Sociais
Brasileiras, para discutir, a partir das bases, o projeto de um Brasil em que o bem comum
seja o verdadeiro e supremo objetivo. É neste caminho que queremos continuar andando
com nossa ação pastoral. No entanto temos a lucidez de perceber que a luta dos pequenos
permanece quase que ausente dos grandes meios de comunicação social, portanto, pouco
conhecida à opinião pública e mesmo por boa parte das comunidades cristãs.
http://www.brasildefato.com.br/node/10325
17
2ª Parte: OUVI O GRITO DE AFLIÇÃO DIANTE DOS OPRESSORES (Êx 3,7b)
85.
86.
Nosso discernimento pastoral manifesta-se, agora, na obrigação de conhecer melhor as
causas e as razões da situação de opressão em que vivem as comunidades e as
populações do campo e das florestas. Se há opressão, há opressores. Seguindo a
metodologia de Jesus, Bom Pastor, sabemos que, hoje, também “o ladrão vem só para
roubar, matar e destruir” (Jo 10,10). Sabemos que “o assalariado, que não é pastor e a
quem as ovelhas não pertencem, vê o lobo chegar e foge, e o lobo as atacam e as
dispersam” (Jo 10,12). O primeiro testamento, também, nos alertava a respeito dos
falsos pastores que, no lugar de cuidar do rebanho “se apascentam a si mesmos” (Ez
34,2) e como consequência deste descaso, “as ovelhas se dispersaram... tornaram-se
presa de todos os animais selvagens”(Ez 34,8).
Pretendemos nesta segunda parte conhecer: quais as causas da opressão, hoje? Quais as
formas que, atualmente, caracterizam a opressão? O que mudou nas três últimas
décadas?
1 – Contextualização Histórica e Conceitual
87. Tão antigos no Brasil quanto a História Colonial, são os conflitos agrários e sociais que
envolvem as populações rurais, os grandes proprietários de terras e os poderes de
Estado. A história da ocupação de terras no Brasil e da luta pela sobrevivência das
pessoas que nela vivem e trabalham, testemunha uma luta desigual. De um lado, os
protagonistas de uma verdadeira idolatria da conquista patrimonial. De outro, a
identidade e a cultura dos povos e grupos sociais que vivem da terra e convivem com a
natureza como com uma mãe.
88. A História Social registra graves situações de conflito, de repercussão nacional, como
Canudos (1893-1898), Contestado (1912/1916) e Juazeiro-CE (1889-1934). Também
conflitos locais pela posse da terra. Por outro lado os conflitos e os problemas agrários
revelam, também, a marcha contínua da formação do campesinato brasileiro. Situações
sociais críticas que, em diferentes regiões do país, tiveram em comum o apelo místico,
num ambiente de forte exclusão social, nos marcos da sociedade oligárquica da
República Velha.
89. Mas, tanto os conflitos de repercussão nacional quanto os inúmeros conflitos locais pela
posse e uso da terra17, não foram entendidos, na ótica política da República, como
questões sociais que exigiam uma ação reformadora. Ao contrário, os problemas
agrários de então foram enfrentados pelas armas das milícias privadas dos coronéis ou
das polícias estaduais ou, em última instância, do Exército Nacional (Canudos e
Contestado), sem qualquer preocupação com a reforma da estrutura agrária.
90. A Questão Agrária Nacional, assumida como problema político na agenda do Estado
brasileiro, é fato social bem mais recente, a partir dos anos 60 do século XX. Para isso,
contribuíram, sobretudo e por diferentes caminhos, a Igreja Católica e os partidos de
esquerda, então influenciados teórica e politicamente pelo Partido Comunista e, de
maneira especial, as lutas e as ações políticas dos camponeses no movimento das Ligas
Camponesas em meados do século passado.
17
Encontramos uma análise histórica mais detalhada em Márcia Motta e Paulo Zorth (orgs.). Formas de
Resistência Camponesa: Visibilidade e Diversidade de Conflitos ao Longo da História, São Paulo: NEAD – UNESP,
2008.
18
91.
92.
93.
94.
95.
A transição da situação de conflito agrário para uma agenda política de reforma social é,
no Brasil, um problema que continua não resolvido, fato que reflete também no presente
o peso extraordinário do conservadorismo agrário, na elite do poder. O avanço deu-se,
no início dos anos 60 do século XX, quando a Questão Agrária entrou nas prioridades
do Executivo e do Congresso Nacional de então. Tal avanço, porém foi, imediatamente,
freado e interditado pelo retrocesso imposto pelo regime militar posterior. Atualmente,
também, sob a égide da Constituição de 1988, continuam as tentativas dos poderes
públicos e da mídia conservadora de tratar como meras questões de criminalidade os
problemas agrários ainda em aberto.
Durante meio século, o tema da Questão Agrária entrou e saiu na agenda do Estado, de
diversas formas. De forma abrupta em 1964, quando, de fato, foi banido da política,
ainda que, de direito, figurasse nos compromissos e conceitos estabelecidos pelo
Estatuto da Terra (novembro de 1964). Era esta a situação na qual nos encontrávamos
quando a CNBB, em 1980, no documento “Igreja e Problemas da terra” declarava
apoiar “os esforços do homem do campo por uma autêntica Reforma Agrária” e “a
mobilização dos trabalhadores para exigir a aplicação e/ou a reformulação das leis
existentes”18.
Em 1984, a aliança política que se propôs substituir o Regime Militar, comprometeu-se
com a realização da Reforma Agrária através do I Plano Nacional de Reforma Agrária
da Nova República, de vida efêmera e resultados precários. Sua proposta de assentar
1,4 milhão de famílias, redundou em pouco mais de 100 mil famílias assentadas19.
Na Constituinte de 1987/88 deu-se o embate político mais forte entre defensores e
oponentes da Reforma Agrária, refletindo nessas posições leituras completamente
opostas do que seja a Questão Agrária Nacional. Essencialmente, tem a ver com as
concepções antinômicas da “terra de trabalho” e “terra de exploração” ou de negócio,
magistralmente conceituadas no documento da CNBB de 1980 – “Igreja e Problemas da
Terra”20.
O princípio, defendido pelo magistério eclesial, da destinação universal dos bens,
questiona radicalmente o direito de propriedade absoluta, estabelecido no direito feudal
na Idade Média europeia e, confirmado pelos regimes capitalistas, nos tempos
modernos. Neste sentido, é relevante o princípio constitucional brasileiro da Função
Social da Propriedade Fundiária (C.F. Art. 186 e Art. 5 - XXIII). A busca pela
concretização histórica e geográfica da função social da propriedade é, por isso, missão
permanente da Igreja que deve se opor, profeticamente, à concepção mercantilista do
direito absoluto de propriedade fundiária que, na prática, corrompe a Função Social,
inverte o sentido da destinação universal dos bens da natureza e, ainda mais, põe em
risco as populações mais pobres e a vida do planeta.
2 – A Reestruturação da Economia do Agronegócio – Anos 2000
96. Em 1980, quando o documento “Igreja e Problemas de Terra” tratou dos problemas
agrários brasileiros, a população brasileira vivia submetida ao autoritarismo do regime
militar e à lógica de uma modernização técnica, que não se preocupava com uma
reforma social. Era o estilo de crescimento que se convencionou denominar
“modernização conservadora”. De lá para cá, decorreram-se pouco mais de 30 anos.
Nesse ínterim, passamos do regime militar para o estado de direito e este fato provocou,
também, importantes mudanças no Estado, na economia e na sociedade. Essas
18
CNBB: Igreja e problemas da terra, 99.
O INCRA é ainda mais restritivo e nos diz que até 1994 só tinham sido assentadas 58.317 famílias (Fonte:
DT/Gab-Monitoria - Sipra Web 6/02/2012).
20
CNBB: Igreja e problemas da terra, 82-86.
19
19
mudanças históricas vieram redefinindo a Questão Agrária brasileira, sempre vinculada
aos ciclos econômicos e políticos em curso.
97. Olhando, a partir de hoje, podemos dizer que, nessas três décadas ocorreram dois ciclos
distintos de desestruturação e reestruturação da estratégia agrícola esculpida durante o
período militar. A primeira desestruturação da “modernização conservadora” ocorreu
poucos anos antes da Constituinte e nos anos a ela imediatamente posteriores (19821999). Foi, no plano econômico, um longo período de transição, caracterizado por
semiestagnação econômica e crise nas relações externas.
98. Neste período, o País se debateu entre pressões fortes e contraditórias: pela
democratização do Estado, por um lado e pela hegemonia do pensamento neoliberal, por
outro lado. A opção ultra liberal da política econômica brasileira dominou,
praticamente, toda a década de 1990 e coexistiu com certa desmontagem das políticas
agrícolas convencionais e do sistema de crédito público, que haviam sido peças chaves
da “modernização conservadora” na época do regime militar. Ademais, o ciclo mundial
do comércio de “commodities” era desfavorável para o Brasil, resultando em pressões
pela desvalorização da renda agrícola e dos preços das terras e arrendamentos rurais 21.
99. Os governos da época eram fortemente influenciados pela reengenharia de Estado:
deviam, positivamente, implantar as estruturas criadas pela Constituição de 1988, mas,
eram, negativamente, influenciados pela ideologia do estado mínimo e da remoção das
velhas estruturas da “era Vargas”22. Estiveram ainda empenhados no saneamento
financeiro das dívidas e desvios herdados do regime anterior, convertidos então em
dívida pública23.
100. Nesse período, praticamente, não foi estruturada nem a expansão agrícola nem a
industrial. O comércio internacional, também, estava estagnado. A persistência de altos
“déficits” nas transações externas, principalmente de 1994 a 1999, levou a uma situação
de insolvência aguda que se manifestou na crise cambial de 199924. Essa crise
significou o fim de um ciclo de economia política, marcado pela relativa desorganização
dos setores agrários que eram dominantes no período militar.
101. A reinserção do Brasil nas exportações globais, na condição de grande provedor
primário é fenômeno típico da década de 200025. Neste período, foi elaborada uma
21
Tabela 1 – Variações Reais Médias do Preço da Terra em Fases Distintas do Ciclo Agropecuário:
1994-1997 e 2000/2006 (Terras de Lavoura)
Regiões
1994-1997 (Média Anual)
2000/2006 (Média Anual)
Norte
(-) 8,0
(+) 4,61
Nordeste
(-) 10,0
(+) 4,72
Sudeste
(-) 12,0
(+) 7,2
Sul
(-) 10,6
(+) 11,36
Centro-Oeste (-) 13,1
(+) 9,40
Brasil
(-) 11,2
(+)10,16
22
Fontes: Dados Primários FGV – Dados período 1994 a 1997 – elaborado in Delgago, G.C. e Flores, JF. (1998), op.cit. p. 23 e para
o período 2000/2006, Cf. Gasques, J.G (2207), op.cit. p. 6 e 8.
A Lei 8.029, de 12/04/1990 autoriza o Poder Executivo a extinguir o IAA, o IBC, o BNC e a fundir as empresas
CFP, COBAL e CIBRAZEM numa única sucessora a CONAB. O saneamento financeiro dessas instituições virá
mais adiante, no Governo FHC I, depois da reforma monetária do Real e do reconhecimento e transferência à
Dívida Pública de passivos e desvios acumulados nessas instituições
23
Para uma importante análise documental desse processo ver ‘OS Passivos Contingentes e a Dívida Pública no
Brasil – Evolução Recente (1996-2003) Texto para Discussão nº 107, IPEA, de autoria de Bolivar P. Filho e
Maurício M Saboya, op.cit.
24
Entre 1982 a 1999 ocorrem vários processos externos e internos, a exemplo da gestão da Dívida Externa, que
dificultaram a inserção do Brasil no comércio mundial.
25
Para uma análise mais exaustiva dos ciclos da economia em geral e da economia agrária em particular dos
últimos 50 anos ver Delgado, G. “Do Capital Financeiro na Agricultura à Economia do Agronegócio – Mudanças
Cíclicas em Meio Século (1965-2012)” -op.cit.
20
nova estratégia econômica e política de modernização técnica da agricultura, sem,
porém, mudar a estrutura fundiária. Houve um virtual pacto entre as grandes cadeias
agroindustriais, os grandes proprietários de terras e o Estado que reorganizou a auto
denominada economia do agronegócio.
102. A reestruturação interna do agronegócio e a reinserção externa das exportações são
contemporâneas ao crescimento acelerado do comércio mundial26, puxado pelo
crescimento asiático, principalmente da China. O peso do ruralismo, na economia e na
política de Estado, mudou substancialmente, sob influxo de estratégias públicas e
privadas que se caracterizam por três alterações substanciais em comparação à década
anterior:
a. o Sistema Nacional de Crédito Rural retomou o crédito público bancário, como
principal via de fomento da política agrícola, associada aos mecanismos de apoio e
garantia da comercialização agropecuária (Política de Garantia de Preços Mínimos PGPM);
b. o preço da terra e dos arrendamentos rurais subiu, de maneira substancial, em todas
as regiões e para todos os tipos de terra, refletindo a alta das “commodities”. O
aumento do preço da terra foi, também, afetado pela forte liquidez bancária,
associada às subvenções da política agrícola e pela frouxidão da política fundiária,
relativamente à regulação da estrutura fundiária;
c. aprofundou-se a inserção externa das cadeias agroindustriais que manipulavam,
com maior evidência, as vantagens comparativas naturais da matéria prima principal
do seu processo produtivo.
103. A articulação da política pública agrária e das estratégias privadas de acumulação de
capital, no espaço da agricultura e das cadeias agroindustriais, perseguindo lucro e renda
da terra, constitui aquilo que denominamos reestruturação da economia do agronegócio,
um novo pacto de economia política centrada na expansão primário-exportadora .
3 – Implicações Sociais e Ambientais da Nova Expansão Primário-exportadora
3.1. A dependência externa
104. Desde o início desta primeira década do século XXI, a orientação da política econômica
comum aos Governos FHC II e Lula I e II, foi de conceder máxima prioridade às
exportações primárias: produtos agropecuários, minerais e petróleo bruto. Desta forma,
o País se relançou no comércio mundial em expansão, na condição de grande provedor
de algumas “commodities” e, ao mesmo tempo, retrocedeu relativamente no comércio
de manufaturados27.
105. Com essa nova especialização em “commodities”, reestruturam-se as várias cadeias
produtivas ligadas às produções primárias da cana-de-açúcar (agroindústria
sucroalcooleira), da soja e do milho (vinculados às rações animais), das florestas
homogêneas plantadas (papel e celulose) e das carnes (bovinocultura, avicultura e
suinocultura). Estas cadeias produtivas, em conjunto, expandem fortemente a produção
e exportação das commodities.
106. Os novos papeis de abastecedor do etanol para as frotas automobilísticas do mundo, de
provedor de matéria-prima mineral à expansão asiática e de fornecedor de rações e das
26
As exportações brasileiras entre 2000/2011, crescem de um patamar médio de 50,0 bilhões de dólares no
quadriênio final da década (1995/98) para mais de 200,00 bilhões no últimos dois anos (2010/2011).
27
As exportações médias de “Manufaturados” no período 1995/99 representavam 56% do total, e os produtos
“Básicos” e “Semi elaborados”, 44%, correspondentes ao que se costuma classificar de “primários”.
Essa relação se inverte depois de nove anos: em 2008, os “primários” representavam 57,1%, e os
“manufaturados”, 42,9%, conforme dados da “Conjuntura Econômica” – março de 2010.
21
carnes bovina, de aves e suína, que o setor primário brasileiro se propõe cumprir na
agenda econômica externa brasileira, tem sido apresentados como solução para o
problema do déficit externo, que se acumulou no período anterior, entre 1995 e 1999.
107. Esta seria, aparentemente, a solução conservadora virtuosa, para o relançamento do
Brasil nos ventos da globalização financeira, sem precisar de qualquer mudança na
estrutura agrária. Mas esse arranjo de relações externas, ainda que promova, num
primeiro momento, a solução conjuntural ao comércio externo, não resolve, antes
agrava a dependência por recursos externos da economia brasileira na indústria e nos
serviços, que vem aprofundando suas posições deficitárias. Com isso, a partir de 2008,
volta a situação do déficit das transações externas28, provocado, sobretudo, pela
crescente perda da capacidade exportadora da Indústria e dos Serviços. No curto prazo,
porém, as exportações primárias em expansão são motivo para atrair capitais externos,
que dão solvência aos déficits das transações correntes e, ainda, proporcionam o
fortalecimento das Reservas Internacionais.
108. A dependência do conjunto da economia pelas exportações primárias contém, porém
várias armadilhas, além das relações externas desiguais. Nos campos fundiário,
ambiental e social recolocam-se assimetrias, em termos de graves dilemas ao
desenvolvimento, muito além de uma questão agrária de caráter setorial.
3.2. A armadilha da especialização primária exportadora para o desenvolvimento do Brasil.
109. A especialização primária no comércio mundial, sob orquestração interna do
agronegócio e do setor mineral, tem funcionado como senha para reprodução de graves
distorções do nosso sistema agrário. O problema mais grave desse estilo de expansão
primária é resultado de três condições necessárias à sua consecução:
a. a forte concentração da riqueza fundiária, sob a forma de especulação e apropriação
das terras;
b. a super exploração de recursos naturais, sob pressuposto da busca do equilíbrio
externo a qualquer custo, com graves danos à saúde, ao meio ambiente e à segurança
alimentar;
c. a desocupação relativa e super exploração do trabalho assalariado nesse processo de
expansão.
3.2.1 – Concentração e Supervalorização Fundiária.
110. A concentração e supervalorização das terras agrícolas, pecuárias e de reserva são
fenômenos em parte conjunturais e, em parte, reflexo de uma estrutura agrária intocada
e, também, inadimplente com as regras constitucionais da função social da propriedade.
A valorização fundiária nesta década de 2000 reflete em parte o ciclo de valorização das
“commodities” e a entrada expressiva do Brasil no comércio mundial, fato que é comum
a outras economias capitalistas e se manifesta pelo incremento dos preços das terras e
arrendamentos rurais. Mas, aqui entre nós, o processo de valorização é também
incrementado pela forte injeção de dinheiro bancário, sob os auspícios do crédito rural
oficial e da política comercial.
111. Por sua vez, a concentração fundiária no Brasil conta, de longa data, com o instituto da
criminosa grilagem de terras públicas e devolutas, favorecida pelo permanente
descontrole do poder público na execução legítima da política fundiária.
112. Exemplos recentes:
28
- O déficit em Conta Corrente do Brasil com o Exterior entre 2008 e 2011 é o seguinte em bilhões de
doares: ano de 2008 28,2, ano de 2009 24,3, ano de 2010 47,5 e ano de 2011 56,4.
22
a. a MP 458/2009, convertida na Lei n.º 11.952/200929, legalizou 67,4 milhões de
hectares de terras públicas a grileiros, autodenominados empresárias rurais, que
ocupam ilegalmente terras da União;
b. a não atualização, pelo poder Executivo, dos índices de produtividade, previstos na
Lei Agrária (Lei n.º 8629/1993) como critério definidor da “propriedade produtiva”,
não obstante sua desatualização óbvia, por serem, ainda, os do regime militar,
baseados nos dados do Censo Agropecuário de 1975;
c. a PEC n. 215/2000, recentemente aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça
da Câmara, manifesta a pretensão dos ruralistas, no Congresso, de retirar do Poder
Executivo a competência para demarcar terras indígenas. Se sancionada, vai
enfraquecer os direitos dos povos indígenas e quilombolas, poderá atrasar, se não
paralisar o processo de demarcação de suas terras, facilitando a concentração de
terras na mão de grandes fazendeiros e grandes empresas transnacionais;
d. a lei 11.284/2006 autorizou a concessão de uso de áreas imensas de florestas
públicas para nelas, durante décadas, realizar o chamado manejo florestal, que o
poder público não tem condições mínimas de fiscalizar;
113. o IBGE, no Censo Agropecuário mais recente (2006), indica o tamanho de concentração
fundiária, por meio de conhecido indicador (Índice de GINI): o nível de concentração,
praticamente, não se alterou entre 1996 e 200630, passando de 0,856 a 0,872, numa
escala em que o máximo absoluto é 1 e o mínimo zero. Esta informação foi,
posteriormente, retificada pelo próprio IBGE que, via internet, afirmou que o índice não
variou em dez anos.
114. Sobre a terra de exploração imediata, os dados recentes do Censo Agropecuário dão
conta do enorme incremento observado entre 1996 e 2006, quando a produção de
“commodities” se expandiu, de maneira rápida e horizontal, especialmente, nos biomas
dos Cerrados e Amazônia. O IBGE, porém, não registra a expansão da terra destinada à
especulação que é muito maior e não aparece nos dados do Censo Agropecuário. Tratase de um movimento ilegal, no mercado de terras de grandes dimensões, resultado da
velha instituição clandestina brasileira – a “grilagem” sobre terras públicas.
115. Podemos ter a noção do incrível tamanho do mercado de terras griladas, fazendo uma
conta muito simples:
Totalidades do território nacional
851 milhões
de hectares
Totalidade das terras de direito: a) total dos estabelecimentos recenseados; b)
as terras indígenas, c) as unidades de conservação ambientais, d) as superfícies 541 milhões
aquáticas, e) as zonas urbanos, f) os assentamentos rurais; g) as terras de órgãos de hectares
públicos registradas
“Outras ocupações” não registradas
310 milhões
de hectares
Ou seja, mais de um terço das terras do país foram, aparentemente, griladas ou estão
cercadas, mas não pertencem a quem as cercou, pois são terras públicas devolutas ou
29
A MP 458 foi antecedida por várias iniciativas governamentais que gradativamente foram elevando a área
máxima de alienação: Artigo 118 da Lei nº 11.196/05, elevou para 550ha; MP 422, emitida em março e
aprovada em julho de 2008, permitiu ao INCRA titular diretamente, sem licitação, propriedades na Amazônia
Legal com até 15 módulos rurais ou 1.500 hectares; MP 458 autoriza a União a licitar áreas excedentes às
regularizáveis (15 módulos fiscais) até o limite de 2.500 hectares, dando preferência de compra aos seus
ocupantes.
30
Censo Agropecuário de 2006 – Brasil, Grandes Regiões e Unidades da Federação p.109.
23
não. São, portanto, terras que, pela Constituição de 1988, deveriam ser destinadas à
Reforma Agrária.
3.2.2. – Super exploração de Recursos Naturais
116. O estilo de expansão agrícola impelido pela demanda externa por “commodities” não é
nova na nossa história econômica. A novidade está nesta sociedade urbana e industrial,
relativamente madura do século XXI, deslocar seu eixo dinâmico de acumulação de
capital para os setores produtores de “commodities”.
117. Com a justificativa de equacionar certo padrão de desequilíbrio externo, o País está
caindo numa grave armadilha. A lógica dos mercados exige a completa
“mercadorização” das terras e dos recursos naturais, essenciais à vida humana e animal.
É a lógica de quem não se preocupa com as necessidades humanas nem com a
prevenção dos riscos ambientais, lesando os direitos de toda sociedade e, de maneira
especial, dos mais pobres.
118. A atual economia capitalista dos mercados - assim como foi a economia do socialismo real
- guia-se por princípios do utilitarismo individual e maximização de resultados
monetariamente mensuráveis. Aquilo que é dom gratuito de Deus e da natureza e não é
produzido pelo trabalho humano (solos, águas, florestas, biomas e ecossistemas vitais etc.) é
percebido pelos mercados só como “vantagens comparativas naturais”, a serem
transformadas em mercadorias, ao menor custo monetário. Os custos sociais dessa
conversão, como a perda da biodiversidade, o desbarrancamento e assoreamento dos rios, a
poluição das águas, a destruição dos manguezais, os desmatamentos etc., são pagos,
invisivelmente, por toda a população, enquanto os lucros ficam concentrados nas mãos dos
produtores das “commodities” e proprietários das terras. Essa é a rígida norma da repartição
dos mercados, submetida a “ética” utilitária compulsória do “reino das mercadorias”.
119. As recentes polêmicas no Congresso Nacional a respeito do Código Florestal, até chegar
ao texto aprovado pela maioria, evidenciam, de forma muito clara, a ideia da super
exploração de recursos naturais e da prioridade dos interesses imediatos a que tal
orientação serve. Além de legalizar a impunidade de quem cometeu crimes ambientais.
O que ainda não está claro para o conjunto da população são as consequências de tal
estratégia privatista. A presidenta Dilma, ao vetar os artigos mais polêmicos, reacendeu
a batalha com os ruralistas inconformados.
120. Há evidências múltiplas de uma “práxis” estritamente mercantil dilapidando
patrimônios de recursos ambientais. O Texto Base da Campanha da Fraternidade de
2011 – “Fraternidade e a Vida no Planeta” é pródigo em identificar evidências neste
sentido31, corroborando fortes indícios da ampliação dos desmatamentos, perda de
recursos hídricos, contaminação por agrotóxicos, perda de biodiversidade etc. A
sociedade, infelizmente, ainda não consegue enxergar quais os limites a tal tendência.
São sentidos por todos como “mal-estar”, desconforto, mas, muitas vezes, apresentados
à opinião pública como efeitos sem causa ou “caprichos da natureza”.
121. A discussão dos limites à depredação ambiental é politicamente difícil nos espaços
institucionais, em grande medida porque há uma espécie de acordo invisível a
privilegiar a acumulação de capital no setor primário da economia. A ideia de limites
políticos, ao estilo estritamente mercantil dessa exploração, não encontra eco nas “bases
políticas aliadas” que conferem maioria aos governos republicanos há pelos menos 12
31
Também a Campanha da Fraternidade de 2004 “ Fraternidade e água” e a de 2007 ”Fraternidade e
Amazônia” documentaram, fartamente, os efeitos negativos, para a sociedade, deste modelo de exploração
dos recursos naturais.
24
anos. O exemplo recente da tramitação do Código Florestal – de 2010 até o presente, é,
como vimos, muito elucidativo neste sentido.
122. Devemos, sobretudo, ressaltar dois fatores que são consequência deste modelo de
expansão agrícola que o Brasil vem praticando, com ênfase na última década:
a. a elevação da produção de dióxido de carbono na atmosfera em razão dos
desmatamentos e queimadas na agricultura32;
b. a acelerada expansão do uso de agrotóxicos na agricultura (fungicidas, herbicidas e
inseticidas), cujo volume de vendas entre 2003 e 2009 cresceu 129%33, o que
equivale a um incremento médio anual de 15 % nesse período. O volume atual
comercializado de agrotóxicos corresponde a mais de 900 mil toneladas de consumo
anual, ou cerca de 4,5 litros de agrotóxicos por habitantes ano.
123. Esses dois indicadores refletem uma exploração de recursos naturais em plena
aceleração. Preocupam-nos pelos graves riscos sociais e ambientais que acarretam. O
primeiro - elevação do dióxido de carbono - em razão das já notórias implicações sobre
um conjunto das mudanças climáticas planetárias; enquanto o segundo - super utilização
dos agrotóxicos - pelas implicações de morbidade sobre os trabalhadores, contaminação
dos alimentos, das águas e do meio ambiente em geral.
3.2.3. – Exploração de Trabalhadores – Desocupação e Super exploração
124. A CPT levanta, sistematicamente, desde 1985, os conflitos agrários, nos quais a posse
da terra e o regime de trabalho vitimam milhares de trabalhadores. Também o
documento da CNBB “Igreja e problemas da terra”, em 1980, já denunciava a existência
do trabalho escravo. A essa dimensão da exploração do trabalho, precisamos agregar
outros enfoques de exploração do trabalho humano como está acontecendo atualmente.
125. A expansão agrícola da qual acabamos de falar, não está promovendo um movimento
simultâneo de crescimento do “Pessoal Ocupado na Agropecuária”, como é chamado
pelo IBGE. Apesar das “Áreas de Lavoura”, terem aumentado em mais de 43%, entre o
Censo de 1996 e o de 200634, o IBGE registrou uma forte queda nos indicadores da
ocupação agrícola. O fenômeno da redução das ocupações agrícolas não é novo e se
confirma a cada novo Censo. Contudo, a correlação claramente negativa entre a
expansão agrícola do Produto e/ou das Áreas exploradas com as ocupações evidencia,
ainda mais, a perda de relevância do emprego agrícola na chamada economia
empresarial do agronegócio. Há indicações que não podem ser comparadas
tecnicamente, de que a perda maior de postos de trabalho aconteceu no segmento do
agronegócio e não na Agricultura Familiar35.
126. Os “estabelecimentos não familiares”, como são definidos pelo Censo, ocupam apenas
¼ do total dos trabalhadores, mas o que mais agrava a situação trabalhista são dois
fatores, aparentemente contraditórios: a prescindibilidade e a super exploração.
32
O texto base da Campanha da Fraternidade de 2011 indica, citando fontes, que “50% das emissões de gases
do efeito estufa no Brasil, diferentemente do resto do mundo, são resultantes de desmatamentos e
queimadas” (op.cit. p. 33).
33
O volume da venda de agrotóxicos no Brasil, que passa a ser o maior consumidor mundial, cresce de 3,1
bilhões de dólares em 2003 para 7,1 em 2009, segundo dados da ANDEF (internet).
34
A expansão física das “Áreas de Lavoura” entre os Censos de 1996 e 2006 varia de 41,79 milhões de hectares
para 59,87 (43,7%), que corresponde a ritmo de incremento de 4,0% a.a., padrão que vem se mantendo nos
anos mais recentes.
Por outro lado, o “Pessoal Ocupado na Agricultura” no mesmo período censitário, decresce de 17,76 milhões
de pessoas em 1996 para 16,57 em 2006.
35
O Censo da Agricultura Familiar pela primeira vez foi realizado em 2006, não sendo possível comparações
retrospectivas.
25
127. Do primeiro fator, há uma vasta quantidade de indicadores empíricos que atestam, na
economia empresarial, a presença simultânea de inovações mecânicas, químicas e
biológicas que substituem, cada vez mais, o trabalho direto na agricultura.
128. Por outro lado, a massa, sempre decrescente, de trabalhadores assalariados permanentes e temporários - que a economia de agronegócio contrata para as tarefas
indispensáveis da produção é, conforme vários indicadores, submetida a condições de
exploração excessiva. Há evidências de jornadas de trabalho extenuantes impostas pelo
regime de quotas de produção (sobretudo, na colheita de cana-de-açúcar) ou pela
exposição a riscos de contaminação com agrotóxicos e outros danos à saúde humana.
Isto tem provocado um forte aumento de doenças no trabalho na zona rural, pelo que
mostram as perícias médicas do INSS.
129. A evolução dos “auxílios-doença” concedidos ou “em manutenção” para os segurados
rurais e urbanos da Previdência entre 2000 e 200936 revela como que a ponta de um
grave “iceberg” que merece aprofundamento. Entre 2000 e 2005, cresceram mais de
100% os auxílios-doença, cujas causas, identificadas em perícias médicas, apontam,
como principais tipos de enfermidade, as “Doenças Osteomusculares”,
“Envenenamentos e Acidentes” e “Transtornos Mentais e Comportamentais”37. Este
patamar manteve-se ao longo dos anos seguintes.
130. Podemos concluir que os novos papeis e as formas de inserção dependente da economia
brasileira na economia mundial contribuem para o agravamento da tensão entre “terra
de trabalho” e “terra de exploração”, antinomia básica que, na leitura da CNBB, em
1980 (“Igreja e problemas da terra”), já constituía o cerne da Questão Agrária de então e
continua sendo o cerne da Questão Agrária de hoje.
36
Tabela 2 – Quantidade de Auxílios Doenças em Manutenção de 1998 a 2009 (mil unidades)
Auxílios
Base
∆% de
2007/2009
∆ de 2007-2009
Doenças e
Inicial:
2005
2005 Base
(média)
sobre Base
Acidentes
1998/2000
Inicial
Inicial
Rural
68,6
163,5
138,3
141,4
106,1
Urbano
744,1
1.733,7
132,9
1.465,3
96,9
Total
812,7
1.897,2
133,4
1.606,7
97,7
Fonte: Anuário Estatístico da Previdência Social - emitidos em 31/12/2009 e Suplemento Histórico – 1980-2008
37
Tabela 3 – Causas Apuradas de todos os Auxílios Doenças e Acidentes Concedidos em Dois Anos – 1999 a
2005 (%)
Capítulos do CID
Auxílios Doença
Auxílios Acidente
1999
2005
1999
2005
Doenças do sistema osteo-muscular (Cap. XIII) e do tecido
19,2
31,5
15,6
16,1
conjuntivo
Lesões, envenenamento e consequências de causas externas
21,9
18,5
78,1
78,3
(Cap. XIX)
Transtornos Mentais e comportamentais (Cap. V)
7,5
11,6
--Doenças do Sistema Nervoso
2,3
3,0
1,2
1,4
Doenças do Aparelho Circulatório (Cap. IV)
12,8
10,3
--Fatores que influenciam o Estado de Saúde (Cap. XXI)
12,9
2,7
1,5
1,0
Subtotal
76,6%
77,6%
96,4%
96,8%
Demais Capítulos do CID
23,4
22,4
3,6
3,2
TOTAL
100,00 100,00 100,00 100,00
Fonte: Tabelas 31 e 47 do “Relatório Final – Avaliação dos Benefícios por Incapacidade ...” (op.cit.), Cf. Piola,
Sergio e Servo, Luciana (2007)
26
4 – A reação do estado diante dos conflitos no campo
131. Desde 1980, a sociedade brasileira viveu mudanças políticas muito importantes,
passando da ditadura militar para o estado democrático de direito. Porém, a tudo isso
não correspondeu uma democratização do acesso à terra, nem a uma melhor distribuição
da riqueza primária. A inegável melhoria na qualidade de vida da população, veio muito
mais da valorização do salário mínimo e dos direitos sociais introduzidos pela
Constituição de 1998, ainda que a propaganda o atribua aos auxílios sociais de
determinados programas governamentais. Das sempre prometidas reformas – política,
tributária, previdenciária, trabalhista, agrária e judiciária- só foi levada, parcialmente, a
termo a reforma previdenciária à custa, sobretudo, dos trabalhadores do setor privado. A
reação dos poderes públicos seguiu, coerentemente, igual orientação.
4.1 A reação do poder judiciário
132. É evidente a progressiva criminalização dos movimentos sociais no campo. O que era
combatido em tempos de ditadura militar como atitude antidemocrática, acabou
continuando em tempos de estado de direito. Reconhecemos a atitude coerente e
democrática de muitos juízes, porém o poder judiciário tem uma grande parcela de
responsabilidade neste processo de criminalização, como podemos perceber nos
registros de dados coletados, sistematicamente, pela CPT. Em vários estados a
sociedade civil realizou importantes eventos, conhecidos como “Tribunal da Terra”, que
levaram ao debate público a atitude do poder judiciário e sua responsabilidade nos
conflitos agrários.
133. Um dado preocupante é a relação, na violência contra a posse, entre as expulsões de
posseiros, operadas por capangas e milícias armadas do latifúndio e os despejos de
posseiros feitos por ordem judicial. De 1985 a 2010, estes dados, em números absolutos,
indicam, de um lado, a redução das expulsões, ao longo dos anos e, do outro, o aumento
vertiginoso dos despejos judiciais:
EM NÚMEROS ABSOLUTOS
GOVERNOS EXPULSÕES DESPEJOS
SARNEY
49.063
10.878
COLLOR
35.124
14.693
ITAMAR
19.983
32.926
CARDOSO
16.992 114.442
LULA
21.426 161.332
134. A mesma realidade se confirma quando é feita a média anual de expulsões e despejos
em cada governo:
27
MÉDIA ANUAL
GOVERNOS EXPULSÕES DESPEJOS
SARNEY
9.813
2.176
COLLOR
11.708
4.898
ITAMAR
9.992
16.463
CARDOSO
2.124
14.305
LULA
2.678
20.167
135. É inquietante constatar que a partir do governo Itamar os despejos superam as
expulsões. No governo Itamar os despejos foram 1,6 vezes às expulsões; no governo
Cardoso os despejos foram 6,7 vezes às expulsões e no governo Lula os despejos foram
7,5 vezes às expulsões. Tudo indica que o latifúndio não precisa mais do braço armado,
como nos tempos da UDR (União Democrática Ruralista). Hoje basta a caneta de um
juiz.
136. O INCRA diz que, ao todo, foram assentadas 931.730 famílias. A CPT afirma que o
poder judiciário despejou 341.304 famílias e a violência do latifúndio expulsou outras
144.725. Mais da metade!
137. Chama atenção que, em muitos casos, as decisões judiciais são tomadas liminarmente,
sem que a outra parte seja sequer ouvida. Pela dinâmica do processo judiciário, muitos
são os casos nos quais estas liminares acabam se tornando verdadeira sentença
definitiva pela dificuldade que os posseiros encontram em recorrer às instâncias
superiores, sobretudo, porque, tendo perdido suas posses não tem como sustentar suas
famílias.
138. Outra causa importante destas ocorrências se dá pelo fato dos grileiros conseguirem
documentos cartoriais, às vezes irregulares e até forjados. Documentos que são
considerados de fé pública, mesmo quando toda a sociedade sabe que a “grilagem
cartorial” foi e continua sendo um costume corriqueiro em nosso País.
139. A tudo isso, é preciso acrescentar o desconhecimento de muitos operadores de justiça,
da legislação fundiária que regula a posse em terras públicas. Eles, quase sempre,
argumentam a partir dos dispositivos gerais do código civil, menosprezando a legislação
agrária específica. Isto vale, também, no que diz respeito ao direito ambiental e mineral.
É uma lástima constatar que estas disciplinas só constam na grade curricular de poucas
universidades.
4.2 – A reação do poder legislativo
140. O poder legislativo, também, não fez o dever de casa. A Constituição Federal dispunha
que: “serão revistos pelo Congresso Nacional, através de Comissão mista, nos três anos
a contar da data da promulgação da Constituição, todas as doações, vendas e concessões
de terras públicas com área superior a três mil hectares, realizadas no período de 1º de
janeiro de 1962 a 31 de dezembro de 1987” (CF-ADCT, Art. 51). Não há informação de
que o Congresso Nacional tenha realizado esta incumbência.
141. A presença, sempre muito forte, da bancada ruralista, no Congresso Nacional, fez com
que projetos de interesse popular e das comunidades do campo fossem longamente
protelados e até esquecidos. Direitos constitucionais conquistados pelas populações
indígenas e quilombolas estão sofrendo pressão e graves ameaças. Na reformulação do
Código Florestal e do Código Mineral transparece claramente a força e os interesses do
28
capital sobrepondo-se aos interesses das populações tradicionais e dos legítimos
posseiros, ocupantes das terras públicas.
142. As várias CPIs que foram instaladas para combater a grilagem de terras públicas no
Brasil e, de maneira especial, na Amazônia, mesmo encontrando inúmeras
irregularidades e ilegalidades, não produziram os resultados esperados. Pelo contrário, o
próprio congresso, ao aprovar as leis de concessão de uso das florestas públicas
(11.284/2006) e a lei da regularização fundiária na Amazônia (11.952/2009), acabou
facilitando e legalizando a ocupação criminal das terras públicas, e legalizando a
impunidade.
143. Outro processo legislativo que está gerando polêmica é aquele que diz respeito à
aquisição de áreas rurais e suas utilizações, no Brasil, por pessoas físicas e jurídicas
estrangeiras. O relatório apresentado, em Outubro de 2011, pela Subcomissão
encarregada do assunto deixou claro que não se conhecem as reais dimensões das
grandes extensões de terras no domínio de estrangeiros e que os dados do INCRA, que
falam em 4 milhões de hectares, são defasados, devendo ser multiplicados pelo menos
por três. A prática atual de criar empresas laranja em nome de brasileiro serve para
maquiar a realidade. A subcomissão concluiu pela necessidade de se estabelecer um
marco regulatório que garanta a segurança jurídica aos investidores estrangeiros, sem
inviabilizar o investimento produtivo, desde que seja garantida a soberania e a
segurança alimentar nacionais. Como sempre, nestes casos, o argumento ético é a
necessidade de se alimentar a 1 bilhão de pessoas, que, toda a noite, se deitam com
fome. Mas a realidade é a lucratividade do empreendimento, uma vez que o relatório do
Banco Mundial, de setembro de 2011, informava que os preços dos alimentos estavam,
em média, 33% acima dos registrados no ano de 2010. No caso do milho, o aumento foi
de 84%; do açúcar, de 62%; do trigo, de 55%; e o do óleo de soja, de 47%. Daí a cobiça
pelas nossas terras.
4.3 – A reação do poder executivo
144. Muito já foi falado a respeito das decisões tomadas pelo poder executivo, mas temos
outras considerações a fazer sobre as mudanças que ocorreram nestas três décadas e que
exigem nossa atenção pastoral. As mais significativas são as mudanças na relação com
os movimentos populares no campo e na cidade.
145. Em 1980, o único instrumento de defesa dos trabalhadores, admitido legalmente pelo
poder militar, era a organização sindical. Num primeiro momento nossa atenção
pastoral foi dirigida no sentido de colaborar em desatrelar os sindicatos dos
trabalhadores rurais dos arreios do poder e transformá-los em organizações combativas,
preocupadas com a totalidade da vida camponesa e suas reivindicações. Ao longo do
caminho, foram criadas e se fortaleceram outras organizações preocupadas com os
interesses concretos de grandes setores da sociedade camponesa. Notável foi a
participação direta das mulheres camponesas, que se organizaram de forma autônoma,
mas sempre articuladas com todos os outros movimentos sociais e populares do campo,
contribuindo para democratizar sua organização interna e para incorporar às bandeiras
de luta às urgências concretas vividas pelas famílias e comunidades.
146. A força da articulação destes movimentos foi atacada, na busca de enfraquecê-las, pelas
chamadas “políticas sociais” do governo Cardoso, políticas que cresceram ainda mais
no governo Lula e, atualmente, no governo Dilma. Algumas características, na gestão
destas políticas, precisam ser avaliadas com critério. A primeira é que o movimento
sindical organizado não tem poder de interlocutor na decisão e na administração das
políticas públicas. O grande volume de dinheiro que estas políticas levam até à
população mais pobre, passa, sobretudo, pelos municípios e por associações criadas
29
para este fim, muitas vezes, de cima para baixo e a partir de interesses partidários.
Vimos, assim, multiplicarem-se o número de associações de produtores e de
cooperativas, sobretudo nos assentamentos, disputando entre si a gestão destes recursos.
O que poderia, à primeira vista, representar um maior poder organizativo da sociedade,
em muitos casos, configura-se numa fragmentação que esgarça e enfraquece a ação da
sociedade.
147. O movimento sindical, pelo qual não passam os recursos, acabou, na maioria dos casos,
sendo deixado de lado por muitos sócios que o utilizam somente nas relações com o
INSS, único órgão público que dá importância ao papel do STR. Vários outros
movimentos, também, acabaram enfraquecidos, pois, para manter suas atividades,
tiveram que realizar convênios com os poderes públicos e, com isso, sofrem constantes
pressões de cooptação e de redução de seu poder de resistência concreta. O uso políticopartidário das inúmeras organizações é uma praga que se alastrou por todo o País. Sem
esquecer que, muitas vezes, estas mesmas organizações, são usadas, por sua conivência
ou por sua ingenuidade, na prática de desvio dos recursos públicos.
148. Precisamos, porém, destacar que, atualmente, vem amadurecendo no seio dos
movimentos sociais agrários uma forte tendência que visa a construção de uma agenda
unitária em defesa da terra, da autonomia camponesa, face as política para o
agronegócio, e de articulação de projetos de um desenvolvimento alternativo ao da
economia do agronegócio. O “Encontro Nacional dos Povos da Terra, das Águas e da
Floresta”, realizado em agosto de 2012 em Brasília e replicado em vários Estados,
reflete uma saudável busca por caminhos alternativos do desenvolvimento rural.
149. É por isso que, diante deste quadro, precisamos assumir nosso compromisso profético
de anunciar uma palavra de vida e de verdade, inspirados pela Palavra do Senhor e na
fidelidade ao magistério eclesial. A verdade nos libertará.
30
3ª Parte: DESCI PARA LIBERTÁ-LOS (Êx 3,8)
150. Uma certeza norteia nossa ação pastoral: “as ovelhas escutam a sua voz, ele chama
cada uma pelo nome e as leva para fora. E depois de fazer sair todas as que são suas,
ele caminha a sua frente e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz. A um
estranho, porém, não seguem, mas fogem dele, porque não conhecem a voz dos
estranhos” (Jo 10,3-5). A nossa voz só consegue conduzir o povo de Deus quando é eco
da voz de Jesus, bom pastor. Depois de escutar o gemido, muitas vezes abafado, que sai
da terra e dos pobres da terra, depois de ver porque a vida da terra está ameaçada, assim
como ameaçada está a vida dos pequenos que vivem e trabalham na terra, nos sentimos
desafiados, também, a buscar novos paradigmas para encontrar, com sabedoria, o
melhor caminho diante desta encruzilhada civilizatória na qual estamos vivendo. Com a
consciência de não sermos os donos de todas as respostas e sabendo que a humanidade
precisa da contribuição de todas as pessoas de boa vontade, nós cristãos buscamos
critérios e valores, sobretudo, na memória contida na Sagrada Escritura que é o
fundamento da nossa “sabedoria” e para lá temos sempre que voltar, como “um pai de
família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas” (Mt 13,52). Essa sabedoria quer
se somar à sabedoria que vem das experiências milenares dos diversos povos e dos
diversos ramos dos estudos científicos.
O nosso Deus
151. A memória paradigmática, guardada nas Sagradas Escrituras nos lembra que, de
geração em geração, a revelação e o conhecimento do nome/rosto do nosso Deus passa
pela sua ação vivificadora, ao reconhecer e atender o grito dos oprimidos: “Eu ouvi os
gemidos dos israelitas que os egípcios escravizaram, e lembrei-me da minha aliança.
Dize, portanto, aos israelitas: Eu sou o SENHOR. Eu vos tirarei dos trabalhos impostos
pelos egípcios, vos libertarei da escravidão e vos resgatarei com braço estendido e com
grandiosos atos de juízo. Eu vos tomarei como meu povo e serei o vosso Deus. Assim
sabereis que eu sou o SENHOR, vosso Deus que vos liberta” (Êx 6,5-7).
152. A presença do SENHOR na história do povo será sempre marcada pela fidelidade
permanente à aliança estabelecida entre Ele e o povo sofrido; aliança que, ao longo da
história, se manifestou e continua se manifestando nas três ações divinas, celebradas
desde a memória da revelação do SENHOR a Moisés no monte Horeb, quando Ele se
apresentou como o Deus que vê, ouve, e conhece as angústias e o sofrimento dos
oprimidos; o Deus que desce para dar-lhes terra, vida e liberdade, e o Deus que envia
seus profetas com a mesma missão de defender a vida do povo sofrido (Êx 3,7-10).
153. Hoje, mais uma vez, somos provocados por esta palavra a nos fazermos ouvintes atentos
dos clamores que saem do povo brasileiro, assumindo o compromisso de nos tornarmos,
pela força do Espírito Santo e na fidelidade à palavra de Deus, operadores de vida e de
liberdade para todas as pessoas.
Uma história de luta e resistência
154. A história da Salvação, revelada através das Sagradas Escrituras, mostra que, desde o
começo, na constituição do povo, a terra e a água são dons que se conquistam e se
partilham. O acesso do povo ao uso da terra e da água sempre foi marcado por conflitos
e tensões. O poço, fonte de vida essencial naqueles lugares semiáridos, foi presença
central na história das matriarcas e patriarcas de Israel. Para Agar, Rebeca, Raquel,
31
155.
156.
157.
158.
159.
160.
161.
162.
Séfora, Abraão, Isaac, Jacó e Moisés os poços foram o lugar da revelação de Deus,
lugar de vida e de encontros e, ao mesmo tempo, lugar de disputa e conflito.
Quando as terras e as águas passaram a ser controladas pelos mais fortes, pelos reis e
colocadas a serviço dos interesses de poucos, à custa da opressão do povo do campo,
pesadamente tributado ou reduzido à escravidão, a história da salvação registrou as
inúmeras lutas do povo para garantir o direito de todos as pessoas a viver da herança de
Deus.
A luta paradigmática entre Moisés e o faraó para que o povo conquistasse a liberdade
em busca de uma terra fértil e espaçosa, terra de leite e de mel, tornou-se o centro da fé
de Israel, sua memória fundante. A ela foram indissoluvelmente ligadas as festas da
Páscoa, a celebração da aliança com Deus, a legislação sempre atenta aos direitos dos
mais fracos e dos mais pobres e o critério de discernimento profético presente na
história.
Os conflitos entre Josué e os reis de Canaã, entre os juízes e os invasores, entre os
profetas e o estado dominador e concentrador, entre os Macabeus e os reis gregos, entre
Jesus e o templo sadocita, aliado dos romanos e explorador do povo, são memórias de
salvação que nos revelam o rosto do nosso Deus, magistralmente descrito nas palavras
de Judite: “Tu és o Deus dos humilhados, o socorro dos oprimidos, o protetor dos
fracos, o abrigo dos abandonados, o salvador dos desesperados” (Jd 9,11).
O grito de Jesus na cruz retoma e condensa os gemidos seculares do povo sofrido:
“Deus meu, Deus meu por que me abandonaste?” (Sl 22,1; Mc 15,34). A este grito o
Pai responde manifestando sua vontade com a ressurreição de Jesus e revela, assim,
definitivamente, ao lado de quem está com seu poder de vida: “Aquele que conduz à
vida, vós o mataste, mas Deus o ressuscitou dos mortos, e disso nós somos
testemunhas” (At 3,15).
A história da salvação nos revela que o nosso Deus não legitima e não compactua com
nenhum projeto de dominação e de opressão. Ele sempre estará do lado do humilhado e
do oprimido a quem chamará carinhosamente de “meu povo”. - “SENHOR, quem é
semelhante a ti que livra do mais forte o indefeso, o pobre e o desvalido, de quem o
explora?” (Sl 35,10) - e que sua vontade é que “os humildes herdarão a terra, vão se
alegrar com uma paz imensa” (Sl 37,11; Mt 5, 4).
Esta história de conflito não é a única vertente a ser considerada. A palavra profética,
tão dura contra quem é causa da injustiça e do sofrimento do mais fraco, torna-se
extremamente exigente quando requer de todos nós que nos convertamos à
solidariedade e à fraternidade, abandonando todo sentimento de cobiça e de ganância,
abrindo nossas mãos generosamente aos pobres, que sempre teremos entre nós (Dt 15,711), repudiando todas as formas de escravidão, de dominação, de discriminação, até que
se realize o sonho do Pai e da comunidade: “Para que não haja pobres em teu meio,
pois o SENHOR seguramente te abençoará na terra que o SENHOR teu Deus te dá em
herança para que dela tomes posse, com a condição de obedecer à voz do SENHOR teu
Deus” (Dt 15,4-5).
É desta história da salvação que todas as comunidades eclesiais devem beber,
descobrindo, atualizando e vivenciando os valores e os critérios essenciais e que foram
guardados, com todo cuidado, pelo magistério da Igreja. Sua aceitação e observância
farão com que nossa história continue, ao longo dos tempos, sendo história de salvação.
A sabedoria teológica, fruto desta história, nos leva a aceitar, proclamar e reviver
valores importantíssimos que dizem respeito à posse e ao uso da terra e de suas riquezas
e que, mesmo depois de tantos séculos, continuam exigindo nossa fidelidade por ser
critério de nossa ação pastoral e parte integrante do nosso anúncio evangelizador.
32
A terra é dom de Deus Pai para todos os seus filhos e filhas, sem exclusão
163. Muitas vezes, ao falar da terra do trabalhador, as Sagradas Escrituras usam a palavra
“herança” para indicar o direito inalienável que todos tem de viver e de gozar dos frutos
da terra e de seu trabalho. É a palavra identificadora da posse da terra que é “recebida
em herança” e deve ser “deixada em herança”. A preocupação com as futuras gerações é
sempre presente. Inúmeras vezes os textos bíblicos repetem como um refrão: “de
geração em geração”. É nossa responsabilidade entregar às futuras gerações, junto com
o testemunho da fé que nossos pais e mães vivenciaram, também, a terra que de Deus e
de nossos pais herdamos para nela habitar e a possamos deixar em herança, bela e
benfazeja, aos nossos filhos e aos filhos dos nossos filhos, de geração em geração.
164. A terra não pode ser transformada em simples mercadoria para produzir lucros, através
da especulação ou da exploração do trabalho. “As terras não se venderão a título
definitivo, porque a terra é minha, e vós sois estrangeiros e meus agregados” (Lv
25,23). Quando a propriedade e o uso da terra forem causa de pobreza e de opressão
para as pessoas, nós temos a certeza que a aliança com Deus foi rompida, que sua
vontade foi desobedecida e que o pecado domina nossas relações.
165. A propriedade da terra não pode ser reduzida a uma mera questão jurídica. A visão
bíblica nada tem a ver com o conceito absoluto de propriedade individual - exclusivo da
cultura ocidental mercantilista e capitalista - pelo qual alguém pode usar, gozar e dispor
como quiser de um bem que é seu. A posse da terra é, em primeiro lugar, uma afirmação
de fé, pela qual proclamamos que o único e verdadeiro “dono” da terra é Deus e que
todos os seus filhos e filhas tem direito a esta herança.
Criação como “re-criação” permanente da vida
166. “E Deus viu tudo quanto havia feito e eis que era muito bom” (Gn 1,31). Nesta primeira
memória da criação (Gn 1,1-2,4a) que abre a Sagrada Escritura o “bom” é o fruto da
ação de Deus: é a vida que, pela palavra divina, venceu as forças primordiais da morte
representadas, na mitologia antiga, pelo deserto, pelas trevas e pelo abismo38 (Gn 1,2).
167. Boa é a luz que vence as trevas; bom é o firmamento que divide as águas; boa é a terra
com suas plantas e suas sementes que vencem o deserto. Bons são os luzeiros do céu
que farão com que a luz continue vencendo as trevas, ao longo dos tempos e marcando
o ritmo da vida; bons são os peixes e os pássaros, forças vivas e abençoadas para
fervilhar nas águas e para voar sobre a terra; bons são os animais de todas as espécies
que, tendo uma alma vivente, abençoados e fecundos, se multiplicarão sobre a terra.
168. Muito bom é “Adam”, homem e mulher, imagem de Deus, abençoados para continuar a
obra de Deus, “submetendo a terra e dominando os demais seres vivos” com paixão
criadora e amorosa, renovando, ao longo da história, a obra de transformar tudo que for
trevas, abismo e deserto, em luz, água e terra boa para se viver, em vista da felicidade
de todos os seres vivos, de todas as pessoas, para que a morte não venha nunca a ter a
última palavra e tudo possa continuar sendo bom, muito bom.
169. Mesmo que os verbos “submeter” e “dominar” (Gn 1,28) indiquem uma dominação
absoluta, não é correto interpretá-los como legitimadores de um falso antropocentrismo
que só valoriza a natureza, enquanto serve aos homens e que nos autoriza a fazer da
natureza o que bem entendermos. A mulher e o homem, feitos à sua imagem e
semelhança (Gn 1,16.22) receberam de Deus a vocação a ser vida, gerar a vida e
defender a vida: é a vocação primordial que une entre si, sem distinção alguma, todos os
seres humanos ou, como diz o livro da Apocalipse: todos os povos, tribos, línguas e
nações (Apoc 7,9).
38
Só no primeiro capítulo do Gênesis o texto bíblico usa 27 vezes o radical hebraico HaYaH = viver, existir
33
170. A criação não terminou com o descanso de Deus no sétimo dia. O que Ele iniciou
continua ao longo dos tempos pela nossa ação, animada pela força do Espírito Santo. A
Bíblia usa as palavras “Espírito de vida” para indicar tudo o que vive e se move. O
salmo 104,30 suplica ”Envias teu Espírito e tudo será criado e renovas a face da terra”.
É assim que, desde o princípio, a força da vida vem enfrentando todas as formas da
morte, num processo permanente de criação e recriação, até o fim da história, até
vermos “novos céus e nova terra e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor,
nem dor” e o Espírito e a esposa, celebrarão a vinda do Senhor (Apoc 22,1-17) e tudo
será, definitivamente, bom, muito bom.
171. É nossa responsabilidade, como imagens vivas do Deus invisível, contribuir para que
tudo que existe seja fonte de vida abundante para todas as pessoas. Este é o verdadeiro
sentido da bênção de Deus “Submetei a terra”. Não temos o direito de concentrar as
riquezas, de devastar a natureza. Se Deus colocou tudo aos nossos pés é para que seja
manifesto quão grande é o nome de Deus em toda a terra e quanto Ele nos ama (Sl 8,39).
172. A plena compreensão da nossa missão como imagens de Deus, nos vem pela
incorporação a Jesus, verdadeira e completa imagem de Deus. Como nos disse o
apóstolo na carta aos Colossenses: “Ele é imagem do Deus invisível, o primogênito de
toda a criação; pois é nele que foram criadas todas as coisas nos céus e na terra. Tudo
foi criado por ele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas e nele todas as coisas
tem consistência”. (Col 1,15-17).
173. Dominar a terra, então, significa fazer com que toda a criação participe do plano
amoroso que Deus tinha quando criou tudo que existe: “Colocar Cristo como cabeça de
tudo o que existe no céu e na terra” (Ef 1,10). Submeter a terra significa conduzir tudo
e todos a Jesus, ao seu Reino de vida e de luz, no qual todas as pessoas tenham a vida, a
paz, a abundância, sem distinção de raça, credos, classes sociais.
174. É o que a criação toda espera de nós que, com Cristo, em Cristo e por Cristo, somos a
imagem de Deus na terra. “A criação espera ansiosamente a revelação dos filhos de
Deus” (Rm 8,19). Assim saberemos que o gemido de dor da criação é na realidade um
gemido de parto (Rm 8,22), sinal supremo de vida e de invencível esperança (Jo 16,222).
175. Na contramão do pensamento greco-romano que afirmava ser a natureza algo
totalmente inanimado e, por isso, subordinada aos interesses dos humanos racionais, a
carta aos Romanos afirma que a criação está indissoluvelmente ligada aos seres
humanos: conosco ela geme, conosco ela espera, conosco ela anseia, conosco ela sofre.
No horizonte da humanidade e da criação está a mesma esperança de serem libertados
da “escravidão da corrupção39, em vista da liberdade que é a glória dos filhos de
Deus” (Rm 8,21). É preciso “aguardar com perseverança” tudo que nós esperamos.
Não é a esperança de quem sonha e pode se iludir. Esperança é certeza que a vida vai
vencer sempre e, por isso, produz nossa perseverança, nossa resistência, na luta contra
todas as forças da morte (Rm 8,24-25).
176. O Espírito que, desde o princípio, está na origem da vida, une seus gemidos aos nossos
gemidos e aos gemidos da criação e vem em socorro da nossa fraqueza, diante de um
desafio tão grande (Rm 8,26-27). As comunidades eclesiais, alimentadas pela certeza
que tudo “concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8, 28), deverão sempre ser
as testemunhas do ressuscitado, viver segundo a “nova criatura”, buscando sempre, em
primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, contra os falsos reinos geradores de
injustiça e de morte. É o que o Espírito nos impele a fazer. Lutar, como Jesus, em favor
39
O termo grego ftorá significa, sobretudo, destruição, ruína, aniquilamento, devastação.
34
da vida, contra todas as forças caóticas da morte e da exclusão, buscando fazer com que
a criação toda possa alcançar a plenitude da vida que nela é contida.
Deus criador, Deus libertador
177. Fiel a esta memória da salvação, em momento nenhum, a Sagrada Escritura separa a fé
no Deus criador da fé no Deus libertador que, como vimos, ao longo da história,
continua eternamente fiel, ao lado dos pequeninos e dos últimos com seu poder de vida.
A bondade benfazeja e providente do Pai, fonte de vida e de alegria para seu povo (Sl
65,10-14; 68, 9-10; 104,1-35) e sua presença ao lado do pobre para que o direito e a
justiça reinem para sempre (Sl 89,11-14; 96,10-13; 98,7-9; 136,1-14; 147,6-9) são as
duas certezas que animaram e continuam animando a resistência dos pobres.
Feliz quem recebe auxílio do Deus de Jacó, quem espera no SENHOR seu Deus,
criador do céu e da terra,do mar e de quanto contém.
Ele é fiel para sempre, faz justiça aos oprimidos, dá alimento a quem tem fome.
O SENHOR livra os prisioneiros, o SENHOR devolve a vista aos cegos, o SENHOR
levanta quem caiu, o SENHOR ama os justos, o SENHOR protege os migrantes,
ampara o órfão e a viúva (Sl 146,5-9).
178. Quantas vezes, nas nossas liturgias, nós proclamamos: Meu auxílio vem do Senhor que
fez o céu e a terra (Sl 121,2)! Tudo que existe proclama: “Teu reino é reino de todos os
séculos, teu domínio se estende a todas as gerações” (Sl 145, 13). “Do SENHOR é a
terra com o que ela contém, o universo e os que nele habitam” (Sl 24,1-2). Nenhum
poder na história humana conseguirá tirar de Deus este reino eterno. Ele, no seu imenso
amor e fidelidade, o entregou a todas as pessoas como sinal da sua bondade e da sua
vida.
179. A fidelidade ao nosso Deus e a fidelidade ao povo, de maneira especial, aos mais
pobres, exige de nós a teimosa persistência de recriar as condições para que o céu, a
água e a terra continuem sendo vivos e fonte de vida para todas as pessoas. No meio das
dolorosas contradições da história, o caminho do Povo de Deus terá sempre como
horizonte os “novos céus e a nova terra” (Is 65,17; 66,22) a serem buscados e
construídos com a força, sempre presente, do sopro vivificador de Deus que “renova a
face da terra” (Sl 104,30). Chegaremos, assim, à nova Jerusalém, a cidade-jardim do
fim da história. Suas imensas dimensões40 nos indicam que não se trata de uma cidade
privilegiada, isolada e santa, mas é o Reino de Deus que vem substituir o império
dominador que persegue e esmaga os santos de Deus, embebedando-se com o sangue
dos mártires. Suas doze portas, sempre abertas, suas terras férteis, atravessadas por um
rio de água viva, suas praças que mais parecem pomares, cheios de árvores da vida,
dando fruto doze vezes ao ano, carregados de folhas medicinais, sem trevas, sem mar e
sem deserto, apontam para uma terra fértil e espaçosa, onde todos possam viver em paz
e se amar, assim como se amam o Espírito e a Esposa.
Terra: a nossa mãe e nossa irmã
180. Esta relação, que chamamos de paixão criadora e amorosa, é sublinhada com muita clareza
na segunda memória da criação guardada na Sagrada Escritura (Gn 2,4b-25). Esta página,
ainda mais antiga, nos fala de Adam que é formado do solo e vivificado pelo sopro divino e
que é colocado no jardim do Éden para “o cultivar e guardar”. Esta tradução não deve nos
40
Cada lado mede 12.000 estádios = 2.200 Km (Apoc 21,16). 2.200 Km é a distância aproximada, em línea reta,
entre Jerusalém e Roma, na direção leste-oeste e da Trácia até a Etiópia, na direção norte-sul, cobrindo, assim,
2
toda a parte oriental do império romano Seria uma cidade de 4.480.000 Km : mais da metade do Brasil!
35
fazer esquecer que o significado destes dois verbos não pode ser reduzido ao aspecto
produtivo ou econômico. Estes dois verbos tem o sentido profundo e originário de “servir”
e “cuidar, guardar, obedecer”41. São verbos quase sempre usados para falar da profunda
relação entre Deus e Israel e que, aqui, definem a relação de Adam com a terra: uma relação
de serviço e de amor obediente, própria do filho com sua mãe.
181. É o contrário de explorar, de devastar, de destruir para se enriquecer. A terra é vida, a
terra é viva e nós vivemos dela, com ela e por ela. Esta é a preocupação divina: “não é
bom que o homem esteja só” (Gn 2,18); precisamos estabelecer com todo tipo de vida
uma relação de cuidado e de amor. O detalhe de Adam que dá o nome aos animais é
importante. Dar o nome significa conhecer e se responsabilizar por alguém e por algo.
Esta relação assume seu ponto maior de conhecimento no encontro amoroso, igualitário
e apaixonado do homem e da mulher.
182. Esta relação de amor obediente e serviçal foi assumida por Francisco de Assis, quando
falava de “nossa irmã a mãe terra que nos sustenta e nos governa” e pedia a todas as
criaturas “louvai e bendizei o meu Senhor e agradecei e servi-o com grande humildade”.
Vem ao nosso coração um sem número de salmos, hinos e cânticos onde a criação toda
soma sua voz à nossa voz numa festa permanente de agradecimento e louvação ao único
Pai que a tudo e a todos dá vida e alento.
183. A natureza é, assim, o lugar do encontro e do diálogo amoroso com Deus (Sl 8). Até a
tempestade mais violenta é reveladora do nosso Deus e sinal de sua ação libertadora (Sl
18), pois “Os céus narram a glória de Deus, o firmamento anuncia a obra de suas
mãos” (Sl 19,1). A contemplação da criação, como um todo, nos leva a celebrar: “Ele
ama o direito e a justiça; da sua bondade a terra está cheia. Pela palavra do SENHOR
foram feitos os céus, pelo sopro da sua boca todo o exército deles” (Sl 33, 5-6).
A terra é nossa casa
184. Toda a criação é dom, é mãe e é casa de todos e todas nós. Falar da criação é falar da
nossa casa, é nos relacionar com ela como nossa casa, uma casa que queremos bonita,
aberta a todos e todas, sem distinção alguma, pois todos e tudo que existe somos parte
essencial da vida que nos foi dada e continua sendo dada pelo Criador42.
185. A palavra casa nos leva à palavra “ecologia”43. Ecologia é dizer o que pensamos da
nossa casa, como um todo. Quase sempre – e, nisso, governos, empresários e
ambientalistas são iguais – entende-se ecologia como a nossa relação com a natureza,
com o meio ambiente, poderíamos dizer, com o nosso quintal. Discute-se o ambiente,
discute-se como deve funcionar o quintal, mas não se discute qual é a casa que nós
queremos.
186. A sociedade liberal, na qual vivemos, quando fala em casa, continua achando normal e
justo pensar em “casa-grande” e em “senzala”. Ao falar em ecologia, parecem se
preocupar só com o quintal, com a natureza, com o ambiente que está fora da casa e,
assim, falam em desenvolvimento sustentável, em defesa da terra e da água, mas
continuam sem por em discussão a “casa-grande” dos países mais ricos, das classes
dominantes, das corporações industriais e financeiras, das elites privilegiadas e
41
O verbo hebraico abad, quer dizer, sobretudo, servir e/ou prestar culto. Por sua vez, o verbo shamar quer
dizer cuidar, observar, muitas vezes aplicado aos mandamentos do senhor.
42
Muito importante, nesta visão holística, é a “Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra” elaborada na
Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e Direitos de Pacha Mama, realizada em
Cochabamba, Bolívia, em abril de 2010.
43
Do grego oikos, casa e logos, palavra. Esta palavra não aparece nos textos bíblicos e nem mesmo no
dicionário da língua grega clássica.
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corruptas que engordam à custa de uma imensa, incalculável “senzala” que é explorada,
oprimida, excluída.
Já dizia Paulo VI: Os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez
mais ricos44. Progresso, crescimento, desenvolvimento, para muitos, significa entrar a
fazer parte da casa-grande.
É também necessário reconhecer e nos penitenciar porque a “senzala” ainda não saiu da
cabeça de muitos de nós. Precisamos nos converter, pois a economia (a lei, a
organização, a administração da casa) vai depender da ecologia (de que casa estamos
falando, em que tipo de casa queremos viver).
É bom lembrar que a palavra faraó significa, literalmente, “casa grande”. Se
continuarmos a acreditar na “casa-grande”, teremos uma economia centrada na
especulação financeira, nos monopólios industriais, na privatização dos serviços
públicos. Uma economia baseada no agronegócio, no monocultivo, na mineração, nas
exportações de matéria prima, no trabalho escravo, na concentração fundiária, nas
sementes transgênicas, nos agrotóxicos.
Na melhor das hipóteses, teremos os estudos de impacto ambiental e as audiências
públicas para tentar minimizar e corrigir a inevitável destruição, que será quase sempre
compensada com poucas esmolas sociais, com uma oferta temporária de empregos, com
a promessa de impostos que, depois, serão quase sempre descontados através de
incentivos fiscais e com algumas medidas compensatórias, regularmente abatidas do
imposto de renda devido. A “casa-grande” ficará com os produtos e os lucros; a
“senzala” ficará com o trabalho e as migalhas da assistência social e o quintal será
devastado. Os pobres perderão a terra. A terra perderá a vida!
Nós entendemos que a luta pela terra é, hoje, também e de maneira especial, luta pela
VIDA. É a luta pela vida do planeta que é violentamente ameaçada por um falso
conceito de crescimento, desenvolvimento, progresso e por uma falsa ideia de que os
recursos naturais são infindáveis.
Aprender com as sagradas escrituras de todos os povos e com a prática das comunidades
tradicionais, o que significa uma casa feita tenda comum, aberta a todos, não significa
atraso. Significa vida abundante para todas as pessoas. É o antigo sonho da “Terra sem
males” dos povos guaranis que se concretiza na proposta atual da sociedade do “bem
viver”. O nosso Deus, o Deus dos nossos pais e das nossas mães – assim como o/s
deus/es dos nossos povos ancestrais - nunca estará na casa-grande, apesar dos templos
gigantescos que eles construíram e continuarão construindo. Iahweh será sempre o Deus
dos hebreus, dos marginalizados que só querem viver em paz, podendo desfrutar do
fruto da terra e do trabalho de suas mãos, do pão e do vinho que ofertamos ao Senhor
para que seja sempre de todos e de todas.
A Memória de Jesus
193. Neste caminho histórico, veio até nós Jesus de Nazaré, revelação definitiva do Deus que
desce para nos salvar; é o Filho do Deus vivo, a nos testemunhar e indicar o caminho da
vida em abundância.
194. Jesus, na Galileia, vivenciou situações de grande contradição: a presença de donos de
terras que tinham administradores, capatazes, trabalhadores e servos (Lc 16,1-8), como,
também a situação de pequenos agricultores que teimavam em jogar a semente, mesmo
nas pequenas sobras de terras que tinham ficado para eles: terras pedregosas, situadas à
beira dos caminhos dos latifúndios, marcados por cercas de espinhos (Mt 13,3-8). Mais
grave ainda era a situação dos muitos desempregados que esperavam ser chamados a
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Populorum Progressio, 57.
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195.
196.
197.
198.
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200.
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qualquer hora, como diaristas, nas terras dos fazendeiros (Mt 20,1-15), preocupados
somente em encher seus celeiros (Lc 12,18). Esta realidade virou imagem do Reino dos
céus, critério de novas relações, exemplo de vida nova.
Neste contexto, citando o salmo 37, Jesus reafirma: Felizes os mansos, porque
receberão a terra em herança45 (Mt 5,5). Este é um dos sinais da justiça a serviço da
qual está o pobre no espírito e por causa da qual poderá vir a ser perseguido.
“Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (Mt 6,21). Com estas
palavras Jesus nos convida a viver a verdadeira mística do relacionamento com a
criação e entre nós, uma mística capaz de garantir, ao mesmo tempo, a nossa
fraternidade e a sobrevivência do planeta e de toda a humanidade. No lugar de olhar
com inveja os celeiros dos poderosos repletos de mercadorias, no lugar de nos deixar
seduzir pelas suntuosas roupas dos mais ricos, Jesus nos convida a olhar os pássaros do
céu e os lírios dos campos que, assim como toda a criação, nos ensinam que não adianta
nos angustiarmos pelo que vamos comer, beber ou vestir.
Jesus não está falando do normal cuidado com as coisas da vida. Ele sabe que - como
nos ensinava Coelet - o bom, a porção que Deus reservou para todos nós é poder comer,
beber, vestir; poder aproveitar do fruto do nosso trabalho (Ecle 2,24; 3,12.22; 5,17;
8,15; 9,7-9). O que Jesus denuncia é a tentação de “se angustiar” querendo encher
nossos celeiros e ter palácios luxuosos. A tentação de ver isso como a coisa mais
importante a ser alcançada, acreditando que comida, bebida e roupa, só podem ser fruto
da concentração das riquezas e do luxo desmedido.
Jesus nos diz que quem se angustia é “pequeno na fé”. O desafio é mudar de lógica,
mudar de mentalidade. O desafio é crer que comida, bebida e roupa são frutos da
construção da justiça do reino de Deus. Justiça é a lógica da gratuidade, do dar, do
repartir. O primeiro objetivo de uma política econômica que queira regular a vida da
“casa” na qual vivemos, é o de colocar o pão em todas as mesas e não o de encher
celeiros e palácios. Pensar só em nós mesmos, na nossa vida e no nosso corpo é a
atitude de quem não crê e é a causa da angústia que reina, às vezes, até nas casas dos
mais pobres.
Este é o evangelho que nossas Igrejas precisam anunciar e testemunhar, vivendo na
sobriedade e na generosidade da partilha, denunciando com coragem todos os
mecanismos de concentração da riqueza, de devastação da natureza, de violência contra
a vida dos mais pobres. Este projeto de fraternidade e de partilha é o centro da vida de
Jesus e das primeiras comunidades que, em memória dEle, fizeram do pão partilhado,
sacramento da presença viva do Senhor até que ele venha e, ao mesmo tempo,
compromisso com a construção de uma sociedade fraterna e igualitária, marca
identificadora da vivência apostólica: “E não havia entre eles necessitados” (At 3,34).
Pão repartido quer dizer terra repartida, bens partilhados, luta contra toda concentração,
contra o latifúndio excludente, devastador e violento. É a defesa da vida contra todas as
formas de escravidão, mesmo as que são mascaradas de crescimento e são chamadas de
mercado. Pão repartido é crer que nossa casa é uma “tenda” comum. Nem palácios, nem
templos, nem quartéis, nem armazéns, nem bancos, nem especulações financeiras
podem definir o que é nossa casa.
A justiça do Reino que deve ser procurada em primeiro lugar (Mt 6,33) é uma proposta
clara, cuja vivência levou Jesus à perseguição e ao martírio. Justiça é fazer com que a
vida dos pequenininhos esteja sempre em primeiro lugar. Ela vale mais do que a lei,
mais do que o templo, mais do que os interesses do mercado e do império. Justiça é crer
que a lógica econômica é aquela da mesa, do dividir, dar e distribuir e não aquela do
Mateus usa a tradução grega do Salmo 37,11; o texto hebraico traz: os pobres possuirão a terra.
38
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mercado, do comprar e vender. Justiça é estabelecer relações políticas marcadas pelo
serviço e pelo dar a vida e não pelo domínio e pela opressão.
Esta é a casa que Jesus quis edificar: uma casa muito diferente do palácio de Herodes,
do quartel de Pilatos, da sinagoga dos escribas e do templo dos sumos sacerdotes. Uma
casa na qual Jesus celebrará a sua Páscoa com os discípulos: memorial vivo e
permanente de Jesus que substituiu definitivamente o templo pela casa, substituiu os
altares pela mesa e substituiu os sacrifícios pelo pão e o vinho repartidos entre todos.
Uma casa e uma mesa na qual Jesus está como aquele que serve (Lc 22,27), como
aquele que lava os pés (Jo 13,14). Uma casa, uma mesa, na qual Jesus poderá ser
reconhecido ao partir o pão (Lc 24,31.35).
Esta é a “ecologia” do Reino: o discurso/logos que os evangelhos fazem sobre a
casa/oikos. Tendo diante de nossos olhos e consolidado em nossos corações a proposta
evangélica de como deve ser a nossa casa, nós podemos, agora, olhar para o “quintal”,
para toda a natureza, também, na sua dimensão econômica. A economia, as leis da casa,
a administração da casa exige o compromisso de ajudar a viver conforme o projeto de
casa na qual queremos viver.
É aqui que nós, os que, com a força do Espírito Santo, queremos ser discípulos e
missionários de Jesus, precisamos fazer a diferença. Mesmo sem sermos os donos da
verdade, mesmo sabendo que precisamos da colaboração dos cientistas sociais e da
contribuição de todas as pessoas de boa vontade, nós reafirmamos a nossa tríplice
fidelidade: fidelidade ao Deus dos pequenininhos, dos últimos, dos pobres, dos
excluídos. Fidelidade aos últimos, aos pobres de Deus. Fidelidade à Terra que é casa,
mãe, amante, de todas as pessoas.
Temos que ter claro que quando denunciamos e combatemos o desmatamento, o
agronegócio, os agrotóxicos, o latifúndio, a contaminação, a mineração colonialista, a
pesca predatória, as barragens, o trabalho escravo, a especulação financeira, as
megalópolis estressantes, a violência, o narcotráfico, a corrupção do estado, em todos os
seus poderes, o fazemos movidos por profundas razões místicas: porque acreditamos
firmemente que em toda a criação circula uma única vida, a vida de Jesus: Tudo foi
criado por ele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas e nele todas as coisas tem
consistência (Cl 1, 16b-17).
Querer que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, na terra e
debaixo da terra e que toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor (Fl 2,10s) é
viver numa só casa, é o ecumenismo que move nossas relações. Pôr-se a serviço de
todas as pessoas, para que tenham vida e a tenham em abundância, sem nenhuma
exclusão de religião, de bandeira, de raça, de classe, porque único é o Senhor, diante do
qual queremos nos ajoelhar, é a ecologia que queremos defender e testemunhar com
toda a nossa vida: é a casa em que queremos nos encontrar.
Terra na tradição da Igreja
207. É o Espírito Santo que, ao longo dos tempos e, apesar dos muitos erros, das muitas
contradições e dos muitos pecados e infidelidades presentes na nossa vida e na história
de nossa Igreja, nos obriga e nos fortalece no compromisso de anunciar as verdades
éticas e teológicas que esta história de salvação nos legou para todo o sempre, em vista
da nossa permanente conversão e do serviço ao Reino de Deus.
208. No inicio deste documento, fizemos a memória das muitas vezes em que pronunciamos
palavras firmes em relação à questão fundiária. O tema da Igreja e da reforma agrária
foi um dos temas da 1ª Assembleia Geral da CNBB que aconteceu em Belém do Pará,
em 1953. Na 2ª Assembleia realizada em Aparecida-SP, em 1954, “A Igreja e a
Reforma Agrária”, foi um dos temas centrais. Ao menos 10 das 50 assembleias da
39
CNBB já realizadas, trataram diretamente de temas relacionados ao direito e à justiça, a
questões agrárias, operárias, sócio políticas, econômicas.
A tradição da Igreja Latino-americana
209. A Igreja católica latino-americana, também, se pronunciou várias vezes a respeito da
problemática da terra. Já na abertura da Primeira Conferência do CELAM que
aconteceu no Rio de Janeiro em 1955, os bispos presentes recordaram as palavras de
Papa Pio XII, que dizia: “O panorama social que apresenta o continente Latino
Americano nos permite advertir que, especialmente, os trabalhadores do campo e da
cidade vivem numa situação angustiante46”(12). Na Conferência de Medellín, falando
sobre a transformação no campo, assim os bispos diziam: “não há dúvida de que existe
um denominador comum em todos os países: a necessidade de promoção humana para
as populações camponesas e indígenas. Esta promoção não será possível se não for
realizada uma autêntica reforma das estruturas e da política agrária”(14). Na conferência
de Puebla, contemplava a presença de Cristo que assume “feições de indígenas e, com
frequência, também de afro-americanos, que, vivendo segregados e em situações
desumanas, podem ser considerados como os mais pobres dentre os pobres”(34) e
“feições de camponeses, que, como grupo social, vivem relegados em quase todo o
nosso continente, sem terra, em situação de dependência interna e externa, submetidos a
sistemas de comércio que os enganam e os exploram”(35).
210. No documento de Santo Domingo (1992) foi explicitado o compromisso com a
ecologia: “Os cristãos, como integrantes da sociedade, não estão isentos de
responsabilidade em relação aos modelos de desenvolvimento, que provocaram os
atuais desastres ambientais e sociais”(169). E, ao denunciar que “as populações
indígenas e camponesas são despojadas de suas terras”, o documento questionava o
modelo chamado de desenvolvimento sustentável: “diante desta proposta, temos de nos
perguntar se todas estas aspirações são legítimas e quem paga os custos de tal
desenvolvimento e a quem se destinam seus benefícios. Não pode ser um
desenvolvimento que privilegie minorias em detrimento das grandes maiorias
empobrecidas do mundo” (169).
211. Ao falar da terra, os bispos destacaram o contraste entre a visão das populações
tradicionais para as quais a terra “é vida, é lugar sagrado, centro integrador de vida da
comunidade” e a visão mercantilista que “considera a terra numa relação exclusiva com
a exploração e o lucro, chegando até ao desalojamento e à expulsão de seus legítimos
donos”. Retomando as palavras do Papa João Paulo II, o documento de Santo Domingo
afirma: “cinco séculos de presença do Evangelho... não instauraram ainda uma
equitativa distribuição dos bens da terra", que "infelizmente ainda está nas mãos de uma
minoria"47.
212. O documento de Aparecida falou em “contemplar os rostos daqueles que sofrem. Entre
eles estão as comunidades indígenas e afro-americanas, desempregados, migrantes,
deslocados, agricultores sem terra. Os excluídos não são somente explorados, mas
supérfluos” (65). E reafirmou: “Os homens do campo, em sua maioria, sofrem por causa
da pobreza, agravada por não terem acesso à terra própria. No entanto existem grandes
latifúndios em mãos de poucos. Em alguns países, essa situação tem levado a população
a exigir Reforma Agrária” (72).
46
Documentos do CELAM, Conclusões das Conferências do Rio de Janeiro, Medellin, Puebla e Santo Domingo,
Paulus, 2005.
47
João Paulo II, Mensagem para a Quaresma de 1992.
40
A tradição da Igreja universal
213. É oportuno recordar o princípio imutável de que "Deus destinou a terra e tudo o que ela
contém para o uso de todos os homens e de todos os povos"48, como critério inspirador e
partilhado de uma ordem social e econômica capaz de envolver e motivar cada membro
da família humana. Com base nisto, a Doutrina Social da Igreja realçou com frequência
a condenação do latifúndio como “intrinsecamente ilegítimo"49. É o que nos diz,
explicitamente, o documento “Por uma melhor distribuição da Terra – O desafio da
reforma agrária” de 1997. É importante recordar alguns destes valores.
214. A doutrina social da Igreja analisa o direito de propriedade da terra, tendo como base o
princípio da subordinação da propriedade particular à destinação universal dos bens.
Condena, por isso, o latifúndio como algo ilegítimo por natureza. O latifúndio é
contrário ao princípio de que “a terra foi dada a todos e não apenas aos ricos”, de tal
modo que “ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é
supérfluo, quando a outros falta o necessário”(Populorum progressio, 1967, n.23). O
latifúndio, de fato, nega a uma multidão de pessoas o direito de participar, com o seu
trabalho, no processo produtivo. E de satisfazer, assim, as suas necessidades, as da
família, da comunidade e da nação de que fazem parte. Os privilégios garantidos pelo
latifúndio são causa de lutas escandalosas e de situações de dependência e de opressão,
no país e em todo o mundo (32).
215. O ensino social da Igreja denuncia também as insuportáveis injustiças provocadas pela
apropriação ilegítima da terra, feita por proprietários ou empresas nacionais e
internacionais, às vezes apoiados por organismos do Estado. Pisando sobre todos os direitos
adquiridos e, muitas vezes, sobre os títulos legais de posse do solo, tiram a terra dos
pequenos agricultores e dos povos indígenas. São formas de apropriação muito prejudiciais.
Aumentam a desigualdade na distribuição dos bens da terra e destroem, em geral, uma parte
desses mesmos bens, empobrecendo toda a humanidade. Elas instalam modos de
exploração da terra que quebram equilíbrio entre o ser humano e ambiente construídos
durante séculos, e provocam grandes estragos ambientais.
Estas práticas são sinal da
desobediência da pessoa ao mandamento de Deus: cada um deve agir como guardião e
sábio administrador da criação (Gn 2,15; Sb 9,2-3). O preço desta desobediência
pecaminosa é altíssimo. Ela causa uma grave e vil forma de falta de solidariedade entre os
seres humanos porque prejudica os mais fracos e as gerações futuras (33).
216. A doutrina social não condena só o latifúndio e a apropriação injusta da terra. Condena
também as formas de exploração do trabalho, de modo especial quando ele é pago com
salários ou outras modalidades que são indignas do ser humano. Com o pagamento
injusto do trabalho realizado e com outras formas de exploração, nega-se aos
trabalhadores a possibilidade de possuir “um meio concreto, pelo qual a grande maioria
das pessoas pode ter acesso àqueles bens que são destinados ao uso comum, quer se
trate de bens da natureza, quer de bens que são fruto da produção” (Laborens
exercens, cit, n. 19) (34).
217. Em muitos países nada impede, ainda, que a propriedade particular continue sendo
um direito absoluto, sem os limites impostos por suas obrigações sociais. Para estas
situações, a doutrina social da Igreja indica a reforma agrária como uma política
urgente: “Em muitas situações, portanto, são necessárias mudanças radicais e urgentes
para devolver à agricultura – e aos trabalhadores do campo – o seu justo valor como
base de uma sã economia, no conjunto do desenvolvimento da comunidade social”
48
Gaudium et spes, 69.
Cf. Paulo VI: Populorum progressio, n. 23, 1967; Pontifício Conselho "Justiça e Paz": "Para uma melhor
distribuição da terra. Os desafios da reforma agrária", nn. 32-34, 1997; Pontifício Conselho "Justiça e Paz":
"Compêndio da Doutrina Social da Igreja",n.300, 2004.
49
41
(Ibid, n. 21). É dramático, em relação a isso, o apelo de João Paulo II em Oaxaca,
México, aos governantes e aos grandes proprietários rurais: “A vós, responsáveis dos
povos, a vós, classe no poder, que às vezes mantendes improdutivas as terras e
escondeis o pão às famílias a que ele falta, a consciência humana, a consciência dos
povos, o grito dos pobres abandonados, e, sobretudo, a voz de Deus, a voz da Igreja,
repetem comigo: não é justo, não é humano, não é cristão continuar com certas
situações claramente injustas. É necessário por em prática medidas concretas, eficazes,
a nível local, nacional e internacional, segundo as amplas linhas traçadas pela
encíclica Mater et Magistra. E é claro que quem mais deve colaborar para isso é quem
tem mais poder”. (Discurso aos Índios do México, Cuilapan – Oaxaca, 29/01/79) (35)
218. É por isso que o magistério eclesial insiste em dizer que, se a propriedade é um direito
natural, todos tem direito a ela. Um direito que não seja universal não é direito, é abuso.
Precisamos repetir, uma vez mais, um dos pontos essenciais da doutrina social da Igreja:
o direito à propriedade privada está subordinado ao direito do uso comum, subordinado
à destinação universal dos bens50. O direito das pessoas, sobretudo dos mais pobres, a
uma vida digna, é o verdadeiro bem supremo ao qual todos os outros direitos devem
estar orientados e submetidos, inclusive o direito da propriedade privada da terra que
“não se constitui para ninguém num direito incondicional e absoluto"51. Será sempre um
direito relativo ao bem maior e comum da vida.
219. “O bem comum exige, por vezes, a expropriação, se certos domínios formam obstáculo
à prosperidade coletiva, pelo fato de sua extensão ou da sua exploração fraca ou nula ou
da miséria que daí resulta para as populações ou do prejuízo considerável causado aos
interesses do país”52.
220. É por isso que, continuamos reafirmando a atualidade do que dizíamos em 1980 no
documento “Igreja e problemas da terra”, ao distinguir entre terra de exploração e terra
de trabalho: A terra é uma dádiva de Deus para todos. Ela é um bem natural que
pertence a todos e não um produto do trabalho. Mas é o trabalho, sobretudo que legitima
a posse da terra. É o que entendem os posseiros quando se concedem o direito de abrir
suas posses em terras livres, desocupadas e não trabalhadas, pois entendem que a terra é
um patrimônio comum e que enquanto trabalharem nela, não poderão ser expulsos (91).
50
João Paulo II. Laborem exercens, 14
Paulo VI. Populorum progressio, 23
52
Paulo VI. Populorum progressio, 24
51
42
4ª Parte: E AGORA, VAI! EU TE ENVIO (Êx 3, 10)
221. “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância. Eu sou o bom pastor. O
bom pastor dá a vida por suas ovelhas” (Jo 10,10-11). Esta é a síntese mais clara e
exigente de nossa identidade e missão pastoral. As primeiras memórias do povo de
Israel, e as últimas palavras de Jesus se correspondem: Eu vos envio. “Como o Pai me
enviou também eu vos envio”. Então, soprou sobre eles e falou: “Recebei o Espírito
Santo” (Jo 20,21-22). O Espírito Santo é Deus que nos unge com seu poder e que nos
envia. “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu, para anunciar a BoaNova aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a
recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano aceito da
parte do Senhor” (Lc 4,18-19). Ser testemunhas/mártires de Jesus nos impulsiona a
obedecer ao Espírito que recebemos no Batismo e que, com seus dons, nos faz aptos à
nossa missão.
222. Nosso compromisso com a Boa-Nova e com os pobres é a mais verdadeira e profunda
espiritualidade, entendida como resposta à ação do Espírito Santo na comunidade dos
fieis e em cada um de nós.
223. Movidos pela presença vivificante do Espírito Santo em nossas dioceses e comunidades,
temos a obrigação pastoral de fazer tudo que estiver ao nosso alcance para libertar os
oprimidos e empobrecidos do campo, da floresta e das águas do nosso País. Temos a
obrigação de denunciar o acúmulo insustentável da riqueza, a concentração das terras, a
devastação ambiental e a violência contra as pessoas, as comunidades e as populações
de nossas terras. E, anunciando a Boa-Nova aos pobres, reafirmamos, com Jesus:
“Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus! Felizes vós que agora passais
fome, porque sereis saciados!” (Lc 6,20-21). Renovamos, também, como em 1980, (07)
a advertência evangélica aos que querem “ajuntar casa a casa, campo a campo, até que
não haja mais lugar e que sejam únicos proprietários da terra”, como já denunciava o
profeta Isaías (Is 5,8): “Ai de vós, ricos, porque já tendes vossa consolação. Ai de vós
que agora estais fartos, porque passareis fome” (Lc 6,24-25).
224. Este anúncio e esta advertência, porém devem ser vivenciados numa prática coerente e
fiel que obriga nossas comunidades eclesiais a uma conversão permanente.
“Entendemos que sem ações concretas que já respondam a esses desafios, a Igreja não
será sinal do amor de Deus pelos homens” (94). Orientar esta prática é dever
ministerial do episcopado. Dizíamos, com efeito, em 1980: “É missão da Igreja
convocar todos os homens para que vivam como irmãos superando toda forma de
exploração. Devemos não somente ouvir, mas assumir os sofrimentos e angústias, as
lutas e esperanças das vítimas da injusta distribuição e posse da terra”(06). É o que
pretendemos fazer a seguir.
Fidelidade aos compromissos já assumidos
225. Retomamos, neste momento, os compromissos pastorais que assumimos em 1980 e que
continuam sendo de uma atualidade profética:
 A posse e o uso dos bens da Igreja devem ter uma destinação social e pastoral,
evitando a especulação imobiliária e respeitando os direitos dos que trabalham na
terra(95).
 Destinar as terras que eventualmente as Igrejas possuam, e que não sejam
necessárias ao exercício de sua missão, para atender a finalidades sociais,
43
principalmente sua entrega aos sem-terra ou facilitando sua desapropriação para fins
de Reforma Agrária53.
 Denunciar as situações abertamente injustas e as violências que se cometem e
combater as causas geradoras de tais violências (96).
 Apoiar as justas iniciativas e organizações dos trabalhadores, colocando nossas
forças e nossos meios a serviço de sua causa (97).
 Cuidar de não substituir as iniciativas do povo, estimulando a participação consciente
e crítica em suas organizações, para que sejam livres, autônomas e defendam os
interesses dos trabalhadores (98).
 Apoiar os esforços do homem do campo por uma autêntica Reforma Agrária,
valorizando e defendendo a propriedade familiar, as posses e a propriedade tribal dos
povos indígenas (99).
 Apoiar a mobilização dos trabalhadores para exigir a aplicação e/ou reformulação
das leis existentes, bem como para conquistar uma política agrária, trabalhista e
previdenciária que atenda aos anseios da população (99).
226. Aproveitamos a ocasião para pedir perdão se nem sempre nossas dioceses, prelazias e
comunidades eclesiais foram fieis a estes compromissos; pedimos perdão, sobretudo,
pelas nossas omissões quando deixamos de testemunhar nossa fidelidade aos pobres de
Deus e ao Deus dos pobres, buscando sempre, “em primeiro lugar, o Reino de Deus e a
sua justiça” (Mt 6,33). Como verdadeiros discípulos de Jesus que “se fez pobre, embora
fosse rico, para nos enriquecer com sua pobreza” (2Cor 8,9). Ele nos desafia a dar
testemunho autêntico de pobreza evangélica em nosso estilo de vida e em nossas
estruturas eclesiais, tal qual Ele fez. Esta é a fundamentação que nos compromete numa
opção preferencial pelos pobres, firme e irrevogável, mas não exclusiva e nem
excludente, tão solenemente afirmada nas Conferências de Medellín e Puebla. Com o
“potencial evangelizador dos pobres” (Puebla 1147) a Igreja pobre que impulsiona a
evangelização de nossas comunidades (SD 178).
227. Considerando as mudanças que ocorreram nestas três décadas, confrontando-nos com as
Sagradas Escrituras, com o magistério eclesial e, de maneira especial, com o clamor que
sobe das comunidades dos campos, das florestas e das águas deste nosso País, queremos
reafirmar os compromissos pastorais que devem nortear nossa ação e que assumimos
publicamente.
228. Não esperem orientações que respondam às situações concretas de cada lugar, pois isso
não seria possível e é missão, na verdade, de cada comunidade e Igreja Particular. À
CNBB cabe uma palavra que indique a direção em que vai sendo realizado nosso
compromisso com os irmãos e irmãs que lutam pela superação dos limites, violências,
exclusões e sacrifícios impostos à vida pela atual estrutura da propriedade da terra e pela
política agrária e agrícola dominantes em nosso país.
Nossos compromissos pastorais
Em relação ao latifúndio
229. Não podemos aceitar a escandalosa e devastante concentração de terras no Brasil. Com
o Beato João Paulo II, repetimos: não é justo, não é humano, não é cristão continuar
com certas situações claramente injustas. Cabe-nos condenar, também, como
moralmente inaceitável o uso da terra para a especulação e o domínio exclusivo do
53
Este compromisso foi assumido pela CNBB em sua 35ª Assembléia Geral de 1997. Ceris – Centro de
Estatística Religiosa e Investigações Sociais - Terras da Igreja no Brasil - Relatório Final da Pesquisa realizada
em 1996 – abril 1997.
44
mercado capitalista de negócios na comercialização de alimentos. Isso é contrário à
doutrina social da Igreja e à ordem jurídica brasileira e não pode ser aceita pela
consciência ética da humanidade. Reafirmamos, clara e decididamente, que é nossa
obrigação moral fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que o latifúndio tenha
limites54.
230. Reafirmamos ser um imperativo ético, espiritual, social, econômico e ambiental a luta
pela posse da terra e seus bens naturais, como forma de erradicar a pobreza. Fazemo-lo
também em memória dos muitos mártires, que tiveram sua vida tolhida, por lutarem
contra a concentração e a exploração da terra.
231. Nossa primeira referência está no direito à vida e vida de qualidade, para todas as
pessoas do nosso país. Enquanto houver alguém em situação de exclusão, com direito
não realizado de um lugar para viver e como oportunidade de trabalho que gere renda,
toda a propriedade mantida como fonte de especulação, de exploração e de poder não é
legítima.
Em relação ao trabalho escravo
232. Apoiamos todas as iniciativas que, buscando acabar, uma vez por todas, com uma
prática emblemática dos maus-tratos impostos, até hoje, à mãe terra e aos seus filhos e
filhas, procuram arrancar as raízes da escravidão do nosso meio, combatendo a ganância
de um modelo predador, a impunidade dos donos do latifúndio e a miséria por eles
imposta às maiorias.
233. Não pouparemos forças até erradicar o crime do trabalho escravo, denunciando os
modernos feitores e seus cúmplices nas “casas grandes” do poder, acolhendo suas
vítimas, apoiando sua busca de vida digna na terra e cobrando do Estado e da
comunidade internacional as necessárias providências. Entendemos que este crime
reincidente - e que, inclusive, reforça a necessidade de uma profunda reforma agrária,
pois tem conexão direta com a propriedade concentrada em poucas mãos - deveria ser
julgado em esfera federal, um pouco mais distante das pressões locais e estaduais das
pessoas e grupos que o praticam. A dignidade da pessoa humana precisa ser preservada
e, por isso, além de leis eficazes, são necessários procedimentos investigativos e
judiciais que efetivamente coíbam prática tão degradante.
Em relação à defesa da natureza
234. A visão bíblica a respeito da natureza pouco tem em comum com a visão economicista e
racionalista ocidental que permeava de igual maneira, tanto o capitalismo, como o
socialismo que consideravam a natureza “matéria prima” que só tinha serventia em vista
do bem estar do homem e que só adquiria valor quando transformada em riqueza, em
mercadoria. Reafirmamos com convicção que a terra é dom de Deus Pai para todos os
seus filhos e filhas, sem exclusão. A ela devemos carinho, cuidado e respeito.
235. Em nosso trabalho de evangelização, de catequese e de cuidado com a espiritualidade
dos cristãos, assumimos como um dos conteúdos o sentido teológico da relação com a
terra como mãe da vida, favorecendo sentimentos que superem a relação de propriedade
e de uso agressivo dela, estimulando a vivência de uma relação de uso em que a terra
como um todo esteja a serviço da vida.
54
Em relação à propriedade da terra, apoiamos a campanha, lançada pelo Fórum Nacional pela Reforma
agrária e Justiça no Campo, que objetiva a aprovação de emenda constitucional que determine o tamanho
máximo de propriedade da terra em trinta e cinco módulos fiscais. Evidentemente, esse critério deverá ser
superado quando a necessidade social o exigir, caminhando para a direção em que a terra tenha efetivamente
uma finalidade social.
45
236. Todas as pessoas tem direito à água potável, ao ar puro, ao solo não contaminado e à
segurança alimentar. O uso irracional e devastador da criação, provocando danos graves
e, muitas vezes, irreversíveis ao meio ambiente, deve ser condenado com decisão, por
atentar contra a força criadora permanente que Deus insuflou em toda a natureza.
Reafirmamos a necessidade ética de preservar o meio ambiente nos seus biomas,
protegendo e restaurando a diversidade, a integridade e a beleza dos ecossistemas do
planeta, vivendo de modo sustentável, promovendo e adotando formas de consumo,
produção e reprodução que respeitem e salvaguardem os direitos de todas as pessoas, o
bem-estar comunitário e as capacidades regenerativas da terra.
Em relação aos cuidados com a água
237. Afirmamos que a água é um bem público, de destinação universal, patrimônio da
humanidade e de todos os seres vivos, direito fundamental da pessoa humana.
Condenamos todas as formas de privatização, mercantilização e a venda a empresas
transnacionais da água, bem indispensável para a vida e que está se tornando sempre
mais escasso por causa do seu uso desordenado e pelas mudanças climáticas
provocadas, também, pela violência feita ao meio ambiente e aos mais diversos
ecossistemas. Reduzir a água a valor mercadológico é um crime tão grande ou maior do
que foi e está sendo cometido com a privatização excludente das terras.
238. Assumimos como urgentes e merecedoras de todo nosso empenho, participação e apoio,
as iniciativas que visam aprofundar a consciência em relação aos cuidados que devemos
tomar para evitar o agravamento da situação da água doce. Apoiamos os que lutam
contra a degradação dos mananciais e a poluição da água. Como o Brasil tem uma parte
importante da água doce ainda existente no planeta, isso nos dá uma responsabilidade
ainda maior. De fato, além da necessária solidariedade com os povos mais carentes
desse líquido vital, em nosso país existem extensas regiões já necessitadas de cuidados
especiais. É o caso do Semiárido nordestino, do Cerrado, na região central do país, já
ameaçados pelo desmatamento irresponsável e pela implantação de pecuária extensiva e
monocultivos agrícolas, mantidas através de irrigação e uso de produtos químicos que
beiram a irracionalidade.
239. Apoiamos as diferentes formas de preservação dos rios e lagos da Amazônia,
desenvolvidas pelos ribeirinhos; as lutas das comunidades praieiras na defesa dos
mangues e a iniciativa da criação de territórios pesqueiros. Apoiamos o projeto de
construção de uma ou mais cisternas caseiras para e com cada família do semiárido,
bem como outras formas de captação e de uso de água da chuva. Trabalharemos para
que a captação de água de chuva se torne parte da cultura familiar e condição exigida
para a construção de igrejas, prédios, escolas, clubes, hotéis, praças, aprendendo com a
sabedoria mais antiga da humanidade e mesmo de projetos atuais inovadores55.
240. Muito nos preocupam os inúmeros projetos de construção de barragem em andamento e
previstos: estes grandes represamentos de água expulsam populações, comunidades e
famílias, sem nunca compensar, de maneira suficiente o prejuízo sofrido. Cobrem vales
férteis, florestas e matas ciliares e desequilibram o meio ambiente. Apoiamos, com
decisão, os movimentos em defesa dos direitos dos atingidos por estes grandes projetos.
Preocupa-nos, também, que grande parte da energia assim produzida é fornecida, de
forma subsidiada, às grandes empresas de transformação, enquanto o cidadão está sendo
cobrado em percentuais bem maiores, pelo uso familiar da energia. Temos consciência
de que precisamos caminhar com urgência e com criatividade na direção do melhor
aproveitamento da energia solar e eólica e de outras formas de energia, como o biogás e
55
O centro olímpico de Sydney (Austrália) foi construído considerando a água e a energia necessárias como
produtos não comerciais. E todas as suas imponentes instalações foram auto-suficientes em água e energia.
46
a biomassa, reduzindo a dependência da energia hidrelétrica. Participaremos de
iniciativas que objetivam apoiar pesquisas científicas em nossas universidades, visando
descobrir materiais mais baratos, simples e eficazes na produção de energia e na sua
conservação para uso posterior.
Em defesa da destinação universal dos bens
241. Estimulamos os que promovem a distribuição equitativa dos benefícios do uso dos
recursos naturais e de um meio ambiente saudável, adequado para a saúde humana e o
bem-estar espiritual, entre as nações, entre ricos e pobres, homens e mulheres e gerações
presentes e futuras. Nossa consciência não pode aceitar que haja, no mundo, mais de um
bilhão de pessoas passando fome e morrendo precocemente. E não pode aceitar que
organismos multilaterais, como a ONU e o Banco Mundial, deem essa informação e
continuem promovendo, de fato, políticas que mantém e expandem modelos
comprovadamente causadores desse aumento trágico de miséria e morte.
242. A agricultura não deve ser vista, sobretudo, como produção de commodities a serem
exportadas, em vista de um superávit na balança comercial. Ela deve ser recolocada, em
primeiro lugar, a serviço da vida em nosso país, abrindo-nos à solidariedade
internacional a partir daí. Não é possível que um país com a maior extensão de área
agricultável do mundo tenha que importar alimentos de primeira necessidade. Ao
mesmo tempo em que a produção de alimentos para exportação recebe subsídios e
incentivos, promovem-se importações de alimentos básicos para garantir a estabilidade
da moeda. Com isso os pequenos produtores ficam inviabilizados, por não poderem
concorrer com os produtos internacionais que recebem subsídios de seus governos.
Em defesa de uma alternativa ao agronegócio
243. Não podemos aceitar o monocultivo intensivo e extensivo, o uso de agrotóxicos, a
produção de produtos transgênicos, sem a garantia de controle sobre seus efeitos nos
seres vivos e na natureza, que - muitas vezes mascarados com a desculpa de aumentar a
produção para atender às necessidades alimentares da população mundial - só servem
para os interesses financeiros de grandes grupos econômicos que controlam a produção
de sementes, causando uma dependência produtiva ilegítima, além de interferir, de
maneira nefasta, no meio ambiente e na vida das pessoas. De fato, já existem alimentos
para saciar a fome e para garantir vida saudável para todos os seres humanos existentes
na terra. O que impede o acesso de todas as pessoas a eles é o sistema econômico do
mercado capitalista, reproduzido na última década por estratégias de globalização
financeira especulativa. Esse sistema - que Paulo VI chamava de “nefasto” (PP, 26) faz que uma pequena parcela da humanidade controle e consuma a maior parte das
riquezas produzidas, em evidente prejuízo de uma imensa maioria de comunidades e
populações pobres.
244. Apoiamos, por isso, as ações que facilitam aos pequenos agricultores a volta à prática da
diversificação da produção e o acesso à comercialização solidária, garantindo à família
os alimentos básicos para sua autossustentação, segurança e soberania alimentar.
Apoiamos a disseminação de formas de cultura adequadas às características ecológicas
de cada região do país. Apoiamos as comunidades, quando reafirmam a identidade
camponesa dos trabalhadores e trabalhadoras e dos valores que negam o consumismo, o
individualismo e a competição e promovem alianças entre os pobres do campo que
enfrentem a exclusão social.
245. Unimo-nos aos que defendem a soberania alimentar para nosso país. Para alcançar este
objetivo, é necessária uma política agrícola pública voltada para os produtores
familiares, comunitários. Eles precisam ser apoiados em cada fase da produção, com a
47
garantia de uma assistência técnica adequada e a construção de políticas agrícolas
específicas para o camponês e de preços justos e em diálogo com a cultura camponesa.
Essa política agrícola alternativa deve ter como base permanente a promoção social da
vida no campo, com garantia de educação e espaços de socialização para as
comunidades agrícolas.
246. Há necessidade premente de se mudar a matriz tecnológica atual para que se produzam
alimentos saudáveis. Por isso apoiamos as iniciativas que promovam a substituição dos
insumos químicos pela utilização de insumos provenientes da agroecologia nacional; os
investimentos na pesquisa agropecuária e na assistência técnica públicas; as ações
públicas e ou da sociedade civil contra o monopólio genético; a valorização e a
produção de sementes “crioulas”.
A questão agrária é uma questão nacional
247. É preciso que a questão da terra e da agricultura seja encarada e resolvida como uma
questão nacional, e não como algo que diz respeito somente aos camponeses. Para que
isso aconteça, assumimos o compromisso de apoiar as iniciativas que sensibilizem a
população urbanizada, ajudando-a a perceber como é vital para ela a democratização da
propriedade da terra. Além das vantagens já descritas, como alimentos de melhor
qualidade, é bom lembrar que a questão do emprego e do salário passa, também, pela
democratização do acesso à terra e a uma qualidade de vida na terra, pois, assim,
poderão ser criadas novas oportunidades de trabalho e de geração de renda,
dinamizando a produção resultante dos trabalhos industriais urbanos.
248. Há uma realidade gerada pelo êxodo rural, que merece nossa atenção e deve ser
contemplada nos planos de pastoral de nossas igrejas. As pessoas do campo estão hoje
na cidade, sobretudo nos grandes centros urbanos, onde vivem em condições subumanas
de habitação, emprego ou desemprego e transporte. Se não conseguirmos desenvolver
uma pastoral de acolhida para estas pessoas para que seu desenraizamento da terra não
lhes seja insuportável, o caminho que muitos poderão trilhar é o da delinquência ou da
busca de anestésicos religiosos.
Nossa palavra para os camponeses e as camponesas
249. Nossa palavra se dirige, agora, aos camponeses e camponesas, trabalhadores e
trabalhadoras rurais e a todos os povos da terra, das águas e das florestas do Brasil, cujo
trabalho põe nas mesas dos brasileiros a maior parte dos alimentos. Apreciamos sua
sabedoria e sua cultura. Reafirmamos nossa solidariedade às suas causas, lutas e
organizações e, por isso, nos comprometemos a apoiar:
a. A reafirmação da identidade camponesa dos trabalhadores e trabalhadoras e dos
seus valores, oferecendo espaços e programas formativos e apoiando projetos de
educação voltados para a realidade local, histórica e cultural, para que camponeses e
trabalhadores rurais identifiquem as causas da sua situação e as possibilidades de
superá-las.
b. As lutas dos pequenos que buscam oportunidades de vida na terra, na floresta e nas
águas. Apoiamos os trabalhadores e trabalhadoras que, não vendo soluções
concretas para atender às suas reivindicações de um pedaço de chão para viver e
trabalhar, utilizam, como forma legítima de pressão, a ocupação de terras56.
56
Como disse muito claramente o Pontifício Conselho de Justiça e Paz, mesmo sendo “um ato não conforme
aos valores e às regras de uma convivência verdadeiramente civil”, as ocupações são “manifestação de
situações intoleráveis e deploráveis no plano moral e sinal alarmante que exige a atuação, a nível social e
político, de soluções eficazes e justas”. A reforma agrária “é a única resposta concretamente eficaz e possível, a
48
c.
As organizações dos camponeses e trabalhadores do campo e suas lutas pela terra e
na terra, por políticas públicas que lhes garantam o acesso pleno aos serviços de
saúde, educação, transporte e para conseguir a legalização de suas terras e o respeito
pelo uso sustentável que delas fazem.
d. As experiências agro-ecológicas que estão sendo implementadas em todos os cantos
do Brasil e que, além de garantir alimentação abundante e sadia, promovem uma
verdadeira revolução nas relações de gênero, de geração, de etnia e são uma
alternativa estrutural ao sistema econômico que destrói a vida e exclui as pessoas.
e. A resistência contra todas as formas de violência que atingem a vida dos trabalhadores e
suas famílias: a grilagem, os despejos ilegítimos, mesmo quando aparentam ser legais,
as arbitrariedades dos órgãos de segurança pública, o desvio dos recursos públicos, a
corrupção dos políticos, a arrogância, os abusos dos latifundiários e suas milícias
privadas, a renovada concentração de terras e renda que devasta o ambiente e violenta o
“homem e sua casa, o pobre e sua herança” (Mq 2,1).
f. Os esforços no combate a todas as formas de trabalho escravo e degradante e toda
superexploração à qual são submetidos milhares de trabalhadores rurais, migrantes e
boias frias, forçados a realizar tarefas sobre-humanas e a viver em situações subhumanas por alguns trocados;
g. A mobilização pelo direito à educação no campo e do campo, pois o povo tem
direito a ser educado no lugar onde vive e a uma educação pensada a partir de seu
lugar e com sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades
humanas e sociais.
251. Junto com vocês seremos vigilantes para não cair nas ciladas do progresso a qualquer
custo e do desenvolvimento predador e nas armadilhas dos salvadores da pátria; para
evitar que o veneno da ganância, a sede do poder e a praga da corrupção cresçam dentro
das organizações; e para combater todas as formas de cooptação, de favorecimento, de
privilégios, de nepotismo, que tentam submeter seus movimentos e organizações aos
interesses de grupos econômicos e políticos.
Nossa palavra aos administradores da coisa pública
Aos detentores do poder executivo
252. Não se pode protelar mais o cumprimento do disposto no artigo 67 das ADCT, da
Constituição Federal em relação às terras indígenas. Diante do sofrimento inenarrável
de muitos povos indígenas, sobretudo dos guarani kaiowá, no Mato Grosso do Sul, a
protelação do cumprimento deste dispositivo torna-se claramente um crime de lesahumanidade.
253. Da mesma forma, é mais que urgente, o reconhecimento dos territórios ocupados pelas
comunidades quilombolas, como determina o artigo 68 das mesmas ADCT, como forma
de resgate de direitos historicamente negados e claramente espezinhados.
254. A Reforma Agrária continua sendo urgente, necessária e inadiável. Ao mesmo tempo
em que democratiza o acesso à terra, ela deve garantir o uso do território no respeito das
diferentes culturas camponesas e redesenhar a distribuição das terras, acabando com os
latifúndios e redimensionando os minifúndios. É indispensável estabelecer um limite
para a propriedade da terra propondo emenda constitucional. A inserção de mais esse
item no artigo 186, da Constituição, explicitará com clareza a exigência de estabelecer
resposta da lei, ao problema da ocupação das terras” (n.44). A Constituição Brasileira estabeleceu que a
propriedade tem que cumprir sua função social e vários juízes, Brasil afora, baseados neste preceito, tem
emitido sentenças favoráveis aos trabalhadores que ocupam áreas, pois as mesmas não cumpriam esta função
social.
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255.
256.
257.
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259.
260.
um limite para o tamanho da propriedade em vista ao cumprimento da sua função
social.
Os governos devem cumprir seu dever legal de combater a grilagem, arrecadando as
terras ainda devolutas e destinando para a Reforma Agrária as terras públicas. Devem
impedir também que empreendimentos instalados em terras ocupadas, ilegal ou
irregularmente, sejam financiados com recursos públicos. Além disso, a Receita Federal
e outros órgãos arrecadadores de impostos devem se certificar do caráter legal e
legítimo da posse dos imóveis que tributam.
Insistimos para que o poder público garanta incentivos econômicos aos que preservam a
natureza, de modo especial, a floresta amazônica e o cerrado. Longe de ser um peso
para o pequeno agricultor, a preservação do meio ambiente deve ser reconhecida e
recompensada por ser serviço feito em favor de toda a humanidade.
Mesmo depois de aprovada a lei da biossegurança, continuamos contrários ao plantio e
à comercialização de sementes transgênicas. Além de não haver estudos conclusivos
sobre os riscos para a saúde humana e de reduzir a biodiversidade, elas podem
contaminar outras espécies. O mais grave, porém, é que favorecem, de maneira
escancarada, as grandes empresas controladoras dos grãos, cujo único objetivo é o lucro
e, por isto, buscam ter o controle de toda a cadeia alimentar. Com isso ficam ameaçadas
a soberania e a segurança alimentares do povo e aumenta a dependência dos produtores,
excluindo, aos poucos, os mais pobres. A clandestinidade com que este processo cresce
no País, as dificuldades de fiscalização e os progressivos adiamentos para que sejam
efetivadas as normas legais nos confirmam ainda mais, em nossa posição.
Discordamos da atitude do governo brasileiro que se recusa em admitir a água como um
direito fundamental da pessoa humana. Os direitos humanos - no caso o direito à água não podem estar sujeitos às injunções da política e às pressões de empresas interessadas
em transformar a água em negócio.
Mais do que em grandes obras hídricas, que agridam nossos rios e inundem as terras dos
pequenos agricultores, acreditamos, com muitos estudiosos e ambientalistas e de acordo
com o bom senso das comunidades envolvidas, que o objetivo de vencer os efeitos
negativos da seca pode ser alcançado com projetos alternativos, mais baratos e de maior
alcance, como as iniciativas da revitalização do rio São Francisco, com participação das
comunidades ribeirinhas, uma política orgânica e difusa de captação das águas de
chuva, a socialização de açudes e poços, feitos com recursos públicos e que se
encontram sem utilização ou nas mãos de particulares.
Questionamos a lei de concessão de uso das florestas públicas na Amazônia. A Floresta
Amazônica pode oferecer resultados economicamente viáveis, sem precisar derrubar as
árvores. Os produtos florestais não madeireiros são variados e interessantes econômica e
socialmente. A criação de reservas extrativistas, a demarcação das áreas indígenas, o
combate firme ao uso das florestas para a produção de carvão vegetal, o incentivo aos
planos de manejo florestal nas áreas de reserva legal das pequenas propriedades, são
instrumentos eficazes de geração de emprego e renda para as populações da Amazônia.
É nosso dever advertir que são necessárias medidas rigorosas que visem o investimento
em pesquisa de manejo florestal para toda a Amazônia; coíbam a biopirataria, a pesca
predatória e o garimpo em áreas indígenas, promovam o zoneamento agro-ecológico da
região e fortaleçam a capacidade de fiscalização do poder público sobre as madeireiras.
Medidas que reduzam os prazos de concessão das áreas; garantam a transparência nas
licitações e a participação com poder de decisão das comunidades envolvidas em todo o
processo, são necessárias para que a iniciativa não redunde em novo e colossal fracasso,
com grande prejuízo para as comunidades locais, a soberania e o interesse nacionais.
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261. É necessário e urgente publicar uma instrução ministerial que atualize os índices de
produtividade exigidos para o cumprimento da função social da propriedade da terra.
262. Continuar a levar a efeito a recomendação da 2ª Conferência Nacional de Segurança
Alimentar a respeito da aquisição, pela CONAB, da produção de alimentos dos
assentamentos e dos pequenos agricultores para recompor os estoques do governo.
263. Regularizar a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos pequenos posseiros e
ribeirinhos e criar os territórios pesqueiros para garantir a sobrevivência dos pescadores
familiares.
264. Criar instrumentos de participação deliberativa da sociedade em todas as autarquias
federais, como INCRA, IBAMA, ICMBIO, INSS e no processo de tomada de decisões
governamentais.
265. Destinar recursos orçamentários para promover formas alternativas de educação do
campo, no campo e para o campo, tais como Escolas Família Agrícola e Casa Familiar
Rural.
Aos detentores do poder legislativo
266. Cobramos dos representantes do povo que exercem o poder legislativo, que as questões
da terra não sejam reduzidas a um estéril debate entre os interesses de grupos, mas
sejam analisadas a partir do que é melhor para a população do campo, a sociedade e a
preservação da natureza. As várias CPIs da terra, mesmo depois de terem comprovado a
grilagem de milhões de hectares do patrimônio fundiário brasileiro, acabaram ficando
letra morta e só serviram como palanque para a defesa dos interesses e das ideologias
dos diversos grupos sociais e políticos. Vergonhosa, por exemplo, foi a conclusão da
CPMI das Terras que, encobrindo todos os crimes do latifúndio e da grilagem, quis
transformar em crime hediondo a luta social pela Reforma Agrária.
267. Do congresso brasileiro esperamos:
a. A revisão da legislação penal e sua aplicação, de maneira a não deixar impunes os
grileiros de terras públicas.
b. Mudanças no Código de Processo Civil, para que os conflitos possessórios, por
causa de imóveis rurais não sejam mais resolvidos através de sentenças liminares,
sem ouvir todas as partes envolvidas e sem que seja verificada em loco a função
social da terra.
c. A aprovação definitiva da Proposta de Emenda Constitucional, PEC 438/01, que
expropria as terras onde se der exploração de trabalhadores submetidos à condição
análoga à de escravo.
d. A realização de uma auditoria, que permita à nação brasileira identificar e retomar
os maiores latifúndios grilados e, de maneira especial, as terras ocupadas por
pessoas físicas e/ou jurídicas estrangeiras.
e. A instalação, em regime de urgência, da comissão mista que deve fazer a revisão de
todas as terras públicas doadas, vendidas ou concedidas entre 1º de janeiro de 1962 e
31 de dezembro de 1987, com superfície superior a 3.000 hectares, como manda o
artigo 51 das Disposições Transitórias da Constituição Federal.
f. A revisão da legislação hídrica brasileira, conforme pediu o abaixo-assinado da
Campanha da Fraternidade de 2004, reconhecendo a água como direito fundamental
da pessoa humana.
g. A aprovação do projeto de lei, em tramitação na Câmara dos Deputados, que
determina a imissão imediata do INCRA na posse dos imóveis desapropriados
para fins de Reforma Agrária, uma vez comprovado o cumprimento dos requisitos
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legais para expedição do mandado, resolvendo-se em ações separadas, as
impugnações relativas à improdutividade da terra e ao valor do imóvel.
h. Aprovar projeto de lei que inclua o tamanho do imóvel entre as causas
justificativas de desapropriação.
Aos detentores do poder judiciário
268. O Conselho Nacional de Justiça deve investigar a impunidade que acompanha, de
maneira vergonhosa, os crimes cometidos pelo latifúndio. Inúmeros assassinatos,
violências, humilhações, expulsões sumárias de famílias, casas e roças destruídas, quase
nunca recebem a necessária punição. Por causa disso defendemos que os crimes de
assassinato no conflito com o latifúndio e os crimes de trabalho escravo sejam julgados
em esfera federal, distante das pressões locais e estaduais das pessoas e grupos que os
praticam.
269. Pedimos que sejam elaborados instrumentos legais que estabeleçam novos
procedimentos para o julgamento das ações discriminatórias, a fim de acelerar a
recuperação das terras devolutas da União, dos Estados e dos Municípios e sua
destinação à Reforma Agrária.
270. Cobramos a criação e o funcionamento efetivo, em todos os tribunais, dos comitês de
acompanhamento e resolução dos conflitos fundiários rurais e urbanos, com a
participação da sociedade organizada, conforme orientação do CNJ.
271. É importante que as escolas da magistratura ministrem aos operadores da justiça, cursos
sobre a legislação agrária relativa às terras públicas e devolutas, à legislação ambiental e
à legislação mineraria.
272. Que os juízes sejam instados a não emitir sentenças liminares nos conflitos
possessórios, sem que sejam ouvidas todas as parte, seja verificada a função social da
propriedade e sejam analisadas com atenção a consistência das matrículas e dos
registros cartoriais dos imóveis em disputa.
273. É com alegria que vemos muitos membros do Ministério Público estadual e federal,
promotores de Justiça e procuradores, bem como alguns juízes, assumirem, de acordo
com a Constituição Brasileira, a função social como elemento essencial e definidor da
propriedade, cumprindo, na prática, seu papel de defensores dos direitos humanos,
sociais e ambientais. Mas é com muito pesar que continuamos a ver muitos juízes que
se aliam ao latifúndio - várias vezes, latifundiários eles mesmo - atrelados à equivocada
visão da propriedade da terra como direito absoluto, acima de todos os direitos.
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CONCLUSÕES
274. Continuaremos fieis à nossa missão de denunciar o pecado da idolatria da propriedade, da
riqueza e do poder, que é a causa da violência que acompanha a luta pela terra, chegando,
muitas vezes, ao assassinato premeditado. São “criminosos – pecadores, todos os que
querem sacralizar a propriedade da terra neste País de extensão continental! Sacramentar a
usurpação, dignificar a grilagem é crime, é pecado.”57 Reafirmamos que a terra deve, em
primeiro lugar ser considerada dom e dádiva para a humanidade inteira e, por isso, deve
sempre ser “terra de trabalho”, lugar de viver, e não deve se tornar mercadoria morta, “terra
de negócio”58. Comprometemo-nos a denunciar toda violência, a dar apoio às famílias
atingidas pela violência e a lutar pelo fim da impunidade.
275. Conscientes de nossa fragilidade, apesar da firmeza de nossas decisões, convocamos todos
os seguidores e seguidoras de Jesus e, todas as pessoas com sentimento de humanidade,
para que nos fortaleçamos uns aos outros, unindo-nos numa grande corrente que nos ajude a
ser fieis a novas relações com a terra e toda a natureza e a descobrir os cuidados que
podemos e devemos ter para com ela, pois tudo que constitui e garante a geração e
reprodução da vida na terra é bem público e deve ser cuidado por toda a sociedade.
276. Desse modo, o Estado, como instrumento do cuidado com o que é bem público da
cidadania, não poderá agir como se fosse um vulgar comerciante de qualquer tipo de
especiarias, submetendo o país a relações de tipo colonial; cabe-lhe servir à vida de
todas as pessoas, zelando pelo meio ambiente. Apostamos no crescimento da cidadania,
no seu sentido político, cultural e espiritual pleno, para que seja fonte de cuidados
carinhosos da vida em nossa terra.
277. Continuam sendo atuais as antigas palavras do livro do Eclesiástico que converteram Frei
Bartolomeu De Las Casas, um dos maiores profetas de nossa América Latina: como o que imola
o filho na presença do seu Pai, assim é aquele que oferece um sacrifício com os bens dos pobres
(Eclo 34,20). Com estas palavras nos comprometemos a denunciar toda violência que nega aos
pobres o direito e o acesso aos bens necessários para uma vida digna ou ameaça e tenta roubá-los
e a dar apoio às famílias e às comunidades atingidas. Queremos trabalhar para que desapareça
essa violência, por meio da efetivação dos direitos garantidos e da realização efetiva da reforma
agrária, que transforme a vida no campo e em toda a sociedade brasileira. A impunidade é que
alimenta a violência no campo. Por isso deve ser combatida e devem ser usadas todas as formas
de pressão para eliminá-la. Não esqueçamos que, segundo o secular ensinamento ético da Igreja, a
opressão dos pobres é pecado que brada ao céu: “clamarão a mim e eu ouvirei seu clamor” (Êx
22,23.27). Ouvir e atender a este clamor é imperativo ético para todas e todos os fieis.
278. De maneira especial pedimos às comunidades da terra, das águas e das florestas, aos
indígenas e quilombolas, sem-terra e agricultores assalariados, assentados e ribeirinhos,
pescadores e pequenos produtores familiares, assim como a todos as comunidades
eclesiais e a todas as pessoas de boa vontade que nos ajudem a ser fieis aos nossos
compromissos, para que os mais pobres, sobretudo, os pobres da terra, das águas e da
floresta possam ter vida e vida em abundância, até o dia em que, pela força do Espírito
da Vida, a quem oferecemos o humilde instrumento da ação de nossas mãos, haja novos
céus e nova terra, uma “terra sem males” na qual nunca mais haverá dor e lágrimas.
PENDÊNCIAS:
N. 27 último parágrafo, atualizar o número das ocorrências de 2012.
N. 64 nota 14 completar com o ano de 2012, governo Dilma.
57
“Quem comete crime hediondo neste País” – Documento assinado pela Coordenadora Ecumênica de Serviço – CESE e outras 11 entidades
ecumênicas, após a aprovação do relatório Abelardo Lupion na CPMI da Terra – dezembro/2005.
58
Igreja e Problemas da Terra, CNBB, 1980, n 83 a 85.
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