Igreja e Questão Agrária no Início do Século XXI
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Igreja e Questão Agrária no Início do Século XXI
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL 51ª Assembleia Geral da CNBB Aparecida-SP, 10 a 19 de abril de 2013 23/51ª AG(Sub) A Igreja e a questão agrária no século XXI INTRODUÇÃO Fazendo memória 1. Há mais de 30 anos, em 1980, a XVIII Assembleia Geral da CNBB aprovou o documento “A Igreja e os Problemas da Terra”. A difícil situação em que viviam os trabalhadores e trabalhadoras do campo brasileiro interpelava a Igreja e exigia seu compromisso e sua palavra. O documento de Puebla, com sua opção preferencial pelos pobres, estimulava a fidelidade ao Cristo presente nos rostos dos irmãos e das irmãs vítimas da opressão e da exploração. 2. De lá para cá muitas foram as mudanças pelas quais passou a sociedade brasileira. Foram importantes mudanças políticas, como o fim da ditadura militar e o processo de redemocratização do País, que culminou com a promulgação da Constituição Federal, em 1988. Diante do enfraquecimento do socialismo de estado, o capitalismo se impôs, internacionalmente, como única alternativa econômica e ideológica. As mudanças econômicas mais importantes foram capitaneadas pela globalização do mercado. Seus dogmas continuam marcando as relações de mercado e as relações sociais: a soberania intocável e inquestionável do capital financeiro, muitas vezes especulativo em sua volatilidade e virtualidade; a privatização, praticamente descontrolada, dos serviços públicos essenciais, como educação, saúde e transporte; a redução e a fragilidade do papel do estado, posto a serviço dos interesses do mercado que se tornou o indiscutível marco regulador de quase todas as políticas públicas. 3. A sociedade brasileira, por sua vez, foi protagonista de mobilizações muito significativas: as campanhas pela anistia, pelas eleições diretas já, pela participação popular na constituinte, pela auditoria da dívida pública, pela reforma agrária, pelo voto consciente e a ficha limpa foram momentos importantes de uma expressão cívica atuante e consciente. Os anos oitenta viram, também, os esforços para unificar as lutas sindicais, o surgimento de movimentos sociais combativos e a construção de um partido popular que condensasse os anseios de mudança vindos das camadas populares organizadas, que buscavam dar outro rosto à política brasileira. Em todo este processo, a Igreja teve seu papel: evangelizou, estimulou, incentivou as comunidades cristãs a assumir a dimensão política e social como própria e específica da vocação dos fieis leigos. 4. A jovem democracia brasileira passou por governos de diferentes matizes ideológicos, em alguns casos, até antagônicos, mas que acabaram enveredando por políticas sociais e econômicas muito parecidas. A implantação das regras relativas às políticas sociais brasileiras, estabelecidas pela constituição de 1988, garantiu avanços importantes no sistema de proteção aos direitos do cidadão, principalmente na educação básica e na seguridade social. Estas políticas sociais, porem, convivem com iniciativas pontuais de gestão da pobreza, de caráter assistencialista que, mesmo sendo responsáveis por alguma melhoria na desigualdade econômica e social, têm caráter marginal e, muitas vezes, de forte apelo eleitoral. Não são políticas de estado, pois estão vinculadas aos programas dos governos de plantão. Quase sempre, as poucas mudanças estruturais 1 5. 6. realizadas foram feitas para fortalecer o capital e acompanhar a lógica do mercado neoliberal. Esta realidade é evidente, sobretudo, quando vista a partir das comunidades do campo, da floresta e das águas do nosso País. A sempre prometida reforma agrária não foi prioridade de nenhum dos governos democráticos. As decisões governamentais, nestas três décadas, foram, quase sempre, tomadas para favorecer o latifúndio e o agronegócio: financiamentos altíssimos, subvenções e até anistia para os endividados, impunidade e regularização da grilagem, legislação favorável aos interesses da bancada ruralista. É injustificável que os índices de produtividade, essenciais para provar a função social da propriedade, ainda sejam os do tempo da ditadura militar1. Hoje, mais de 30 anos depois, o povo do campo vive uma realidade mais dura e complexa. Se por um lado houve alguns avanços na afirmação de direitos, de outro, sente-se que os conflitos aumentam2. Nada indica que esta tendência possa ser revertida e que tamanha violência venha a diminuir. A tradição da CNBB 7. A Igreja, com sua presença pastoral em todos os recantos de nosso país, procurou estar atenta à realidade dos povos do campo e das florestas. Nestes mais de trinta anos, sua palavra se fez solidária e, ao mesmo tempo, crítica, reafirmando os valores fundamentais contidos nas sagradas escrituras e no magistério eclesial, sempre procurando, também, se fundamentar na contribuição das ciências sociais para fazer a leitura da realidade agrária histórica. Fazer memória deste serviço provoca nossa prática coerente e nos chama a um processo permanente de conversão. 8. Em 1980 o documento “Igreja e problemas da terra”, marcou, de maneira indelével, a reflexão e a atuação da Igreja diante da situação extremamente grave dos que sofriam por questões de terra em nosso país, desse povo sofrido ameaçado de perder sua terra ou impossibilitado de alcançá-la. 9. Naquele momento a CNBB já denunciava: Os poucos empregos gerados pelo agronegócio: “Entre 1950 e 1970, as oportunidades de trabalho para terceiros na agropecuária, assalariados e subordinados, caíram em cerca de um milhão e meio de empregos”(14). “O estrangulamento da pequena agricultura está intimamente associado à expansão das pastagens e à política inadequada de reflorestamento” (15). “A política de incentivos fiscais desvia dinheiro de todos para uso de uma minoria, não atendendo às exigências do bem comum. Essa política revela o Estado comprometido com os interesses dos grandes grupos econômicos” (19). “Em quase todas as unidades da Federação, sob formas distintas, surgem conflitos entre, de um lado, grandes empresas nacionais e multinacionais, grileiros e fazendeiros e, de outro, posseiros e índios. (...) Nessas violências, já se comprovou amplamente, 1 Um quadro comparativo dos dados do IBGE nos ajuda a ilustrar esta realidade. Segundo os dados dos censos realizados entre 1980 e 2006, o número dos estabelecimentos produtivos permaneceu praticamente igual, a área plantada diminuiu em quase 35 milhões de hectares (cerca de10%) e mais de 4milhões e meio de trabalhadores (22%) deixaram o campo. Mesmo assim, alguns setores da produção agropecuária tiveram um grande aumento: a silvicultura, por exemplo, entre 1990 e 2010 aumentou em 146%. Entre 1980 e 2006, o rebanho bovino aumentou mais de 45%, o bubalino em 132% e a produção de aves em quase 240%. A produção da soja em grãos teve um aumento de 219% e a cana-de-açúcar de 175%. 2 A série histórica dos dados organizados pela CPT é contundente: o número de conflitos aumentou de 768, em 1985, para 1.363, em 2011 (+77,5%) e a área em disputa passou de 9,5 milhões de hectares para 14,4 milhões (+ 50,8%). 2 estão envolvidos desde jagunços e pistoleiros profissionais até forças policiais, oficiais de justiça e até juízes” (28). “Concentram-se os bens, o capital, a propriedade da terra e seus recursos, concentrando-se ainda mais o poder político, num processo cumulativo resultante da exploração do trabalho e da marginalização social e política da maior parte de nosso povo” (38). 10. 11. 12. 13. 14. 3 “Mais grave ainda é a situação dos peões na Amazônia Legal. São trabalhadores sem terra, recrutados pelos “gatos” em Goiás, no Nordeste e mesmo em São Paulo e depois vendidos como uma mercadoria qualquer aos empreiteiros encarregados do desmatamento” (49). “Justifica-se a venda de peões pelas dívidas que o trabalhador é obrigado a contrair, durante a viagem, com alimentação e o próprio transporte” (51) A novidade do documento foi a distinção feita entre “terra de exploração e terra de trabalho”. “Terra de exploração é a terra de que o capital se apropria para crescer continuamente. (84) “Terra de trabalho é a terra possuída por quem nela trabalha. Não é terra para explorar os outros, nem para especular” (85). Esta afirmação norteou o documento todo. Poucos dias depois deste pronunciamento da CNBB, em julho de 1980, o papa João Paulo II, em São Luis do Maranhão, falando da concentração da propriedade da terra, disse que sobre ela pesa sempre uma hipoteca social e reafirmou com veemência a denúncia contra o latifúndio, repetindo o que já tinha dito na encíclica Centesimus annus3: “Semelhante propriedade não tem qualquer justificação e constitui um abuso diante de Deus e dos homens”. Entristece-nos constatar a atualidade destas palavras, depois de mais de trinta anos. A declaração pastoral da CNBB de 1986 “Por uma nova ordem constitucional” reafirmava os princípios da justiça social e o acesso à propriedade, subordinando a propriedade privada à destinação universal dos bens da terra para a realização de todas as pessoas (120 a 123) e cobrava, em nome da justiça social, a implantação da reforma agrária, garantindo a terra para quem realmente nela trabalha, proibindo o despejo daqueles que estão efetivamente utilizando a terra e criando mecanismos que impeçam a concentração fundiária (127). Em 1993, o documento “Ética: pessoa e sociedade” se confrontava, pela primeira vez, com a vida do planeta terra e com a problemática ambiental (59, 106). Em 1997, a CNBB, no documento “Exigências cristãs de uma ordem política”, afirmava: ser marginalizado é ser privado da terra por estruturas inadequadas e injustas (23). A Igreja voltou a se pronunciar sobre o assunto, em 2002, no documento “Exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome”: “Garanta-se o acesso de todos os seres humanos às fontes de vida. A terra, a água, o ar, as sementes e a tecnologia, bens comuns a serviço de todos (...) não podem ficar à mercê da propriedade privada e do mercado...” (39). Em continuação, a CNBB reafirmou a atualidade da oposição entre terra de trabalho e terra de negócio, invocou a urgência da reforma agrária, condenou a mercantilização da água e proclamou o direito universal á segurança alimentar (39,40). A nova sociedade tem a obrigação de atender aos direitos e às necessidades básicas da população: educação, saúde, reforma agrária, política agrícola, demarcação das terras indígenas e das terras remanescentes de quilombo... (53) Em 2006, o documento “Os pobres possuirão a Terra – Pronunciamento de bispos e pastores sinodais sobre a terra” já fazia uma análise mais orgânica da situação atual da realidade do campo brasileiro e apontava: “a culpa maior cabe aos que montam e mantém, no Brasil, um sistema de vida e trabalho que enriquece uns poucos às custas da pobreza ou Joâo Paulo II. Centesimus annus, 43 3 15. 16. 17. 18. 19. miséria da maioria”. Não é vontade de Deus que o povo sofra e viva na miséria; certamente todos nós temos alguma responsabilidade em relação a esta situação de sofrimento e miséria. A demarcação das áreas indígenas e o reconhecimento das terras das comunidades quilombolas e de outras populações tradicionais foram lembrados também, em 2010, no documento “Por uma reforma do estado com participação democrática” (53). Dois pontos importantes deste documento diziam respeito à democratização do acesso à terra e ao solo urbano (86 a 91) e aos cuidados com o planeta terra como responsabilidade humana (92 a 95). Sempre em 2010, em sua Assembleia Geral, a CNBB aprovou um texto de estudos, sob o título “Igreja e Questão Agrária no Início do Século XXI” que serviu de subsídio à reflexão das comunidades eclesiais. Estes assuntos foram retomados pelas “Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora” que, em 2011, depois de afirmar que “os critérios que regem as leis do mercado, do lucro e dos bens materiais regulam também as relações humanas, familiares e sociais” e que “por vezes, os pobres são considerados supérfluos e descartáveis. Desta forma, se compromete o equilíbrio entre os povos e nações, a preservação da natureza, o acesso à terra para trabalho e renda, entre outros fatores”(21). As diretrizes tratam também dos migrantes sazonais, que constituem mão de obra barata e superexplorada pelo agronegócio em suas formas variadas e dos trabalhadores explorados pelos métodos de terceirização, vítimas de atravessadores de mão de obra (111). O documento cobrou dos cristãos o apoio às iniciativas em prol da inclusão social e o reconhecimento dos direitos das populações indígena e africana (113). E acrescentou que um importante campo de ação é a educação para a preservação da natureza e o cuidado com a ecologia humana, no respeito da biodiversidade e do zelo pelo meio ambiente. “Entre essas ações, destaca-se a preservação da água, patrimônio da humanidade, evitando sua privatização, do solo e do ar. O esforço por maior crescimento econômico deve ser orientado para o desenvolvimento sustentável” (114). Em todos estes documentos, assim como em muitos outros documentos produzidos pelos seus regionais, o episcopado, manteve-se fiel à memória da Sagrada Escritura, ao tesouro da Tradição Apostólicas e na coerência ao magistério da igreja universal. Com base nestas múltiplas reflexões e com a valiosa contribuição das ciências sociais, nasce o presente texto. Na Assembléia Geral da CNBB de maio de 2010 o episcopado aprovou um texto de estudos, sob o título “Igreja e Questão Agrária no Início do Século XXI”, que serviu de subsídio à reflexão das comunidades eclesiais aos longo dos últimos três ano. Com base na reflexão e em ulteriores contribuições, a CNBB optou por evoluir para um documento de caráter doutrinário e pastoral atualizando sua leitura histórica da problemática agrária brasileira. Desta reflexão e decisão nasce o presente texto, no qual pretendemos, nos pronunciar sobre a questão agrária no século XXI. O documento é uma palavra dos Bispos para o Povo de Deus, elaborada em comunidade de fé , tendo em vista profeticamente animar e anunciar , como também denunciar graves injustiças ainda vigentes sobre os „povos da terra, das água e das florestas‟. Em outras circunstâncias históricas, como em 1980, a palavra episcopal assumiu um tom de protagonismo social e político, plenamente compreensível à época, dadas as notórias limitações impostos pela ditadura militar à organização dos movimentos campesinos. Atualmente a Igreja se sente identicamente comprometida, como em 1980, e identifica na realidade social deste século um protagonismo social e político do movimentos sociais e agrários na luta pela terra, a ser exercido e principalmente apoiado, tendo em vista reverter o quadro de desigualdade social vigente. Na primeira parte, queremos alimentar nossa fidelidade aos pobres de Deus, abrindo nossos ouvidos aos gritos, muitas vezes abafados, que saem deste chão sofrido. 4 Num segundo momento, abriremos nossas mentes para compreender de forma crítica as velhas e novas razões do sofrimento e da violência, que marcam esta terra que é de Deus para todos e todas. Em seguida, abriremos, mais uma vez, nosso coração aos apelos das Sagradas Escrituras, e do magistério eclesial, fortalecendo nosso compromisso de fidelidade ao Deus dos pobres. Na última parte confrontaremos nossa missão de igreja com a realidade do povo e os valores da Palavra de Deus, para discernir o que precisamos fazer, aqui e agora, nas nossas realidades eclesiais, para que venha a nós o seu Reino, testemunhando, com nossa prática, a sua presença já atuante no meio de nós. 5 1ª Parte: EU VI A OPRESSÃO DO MEU POVO(Êx 3,7) 20. Nossa obrigação pastoral é testemunhar, com nossa vida e nossas escolhas, a prática de Jesus bom pastor. É dele que nós aprendemos a verdadeira metodologia que deve ser seguida. O ponto de partida é claro: “Eu sou o bom pastor. Conheço minhas ovelhas e elas me conhecem” (Jo 10,14). É a dinâmica gravada nas mais antigas memórias do povo de Israel: “do meio da escravidão seu grito de socorro subiu até Deus. Deus ouviu seus lamentos” (Êx 2,23s). É por isso que, nesta primeira parte, no intuito de vivenciar uma pastoral coerente com as propostas de Jesus, buscamos conhecer a voz, o grito, o lamento, muitas vezes abafado, que sai do chão da opressão em que vivem as populações e as comunidades do campo brasileiro. O clamor dos povos indígenas 21. Em 1974, com o apoio do recém-criado CIMI, os povos indígenas se reuniram na primeira assembleia de líderes indígenas. De lá para cá, os povos indígenas cresceram em articulação, autonomia e suas lutas se multiplicaram. Em 1980 nasceu a União das Nações Indígenas e o movimento indígena se consolidou ao redor de três bandeiras: a luta pelos territórios, a participação nas políticas indigenistas e a urgência de uma sempre maior articulação entre as nações indígenas. Em 1988, a Constituição Federal reconhecia os direitos inegociáveis dos povos indígenas e, no artigo 67 da ADCT, estabelecia: “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos, a partir da promulgação da Constituição”. Esta determinação constitucional está muito longe de ser cumprida. Os dados do CIMI nos dizem que só foram regularizadas 405 das 1.044 áreas indígenas existentes4. A soma de todas as áreas indígenas regularizadas é menor do que a soma dos pouco mais de 15 mil latifúndios com área superior a 2.500 hectares5. E, mesmo assim, é muito comum se ouvir, sobretudo de políticos da bancada ruralista e de outras autoridades, que há muita terra para pouco índio. 22. O que nos preocupa, mais do que o atraso no processo de regularização dos territórios indígenas, é a pressão e a invasão que muitas dessas áreas regularizadas sofrem para retirada de madeira, exploração de minérios, construção de barragens para hidrelétricas e para outro sem número de atividades, às vezes, ilegais. O CIMI informa que, em 2011, foram registrados 42 casos de invasões e exploração ilegal de recursos naturais. Em 2010, haviam ocorrido outros 33 casos. 23. Esse esbulho dos territórios indígenas lhes limitou o espaço vital, necessário para a reprodução da vida da família e do grupo e, provocou a extrema violência que sofrem. O CIMI constata uma média de 55 assassinatos por ano entre 2003 e 2011, num total de 503 mortos nesse período. Em 2011, foram 51 vítimas. E outro dado alarmante é o alto número de suicídios, sobretudo entre os Guarani Kaiowá. Entre 2000 e 2011, foram registrados 555 suicídios. Isso, segundo vários pesquisadores, se explica pela falta de perspectivas de futuro. Os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul são exemplo vivo desta brutal realidade: boa parte deles vive em acampamentos às beiras das estradas e são tratados como intrusos em sua própria terra. 24. No congresso nacional tramitam, também, vários projetos de lei que propõem a redução de direitos tão duramente conquistados. A PEC 215, por exemplo, quer retirar a 4 As demais terras indígenas se encontram na seguinte situação: Declaradas 58, Identificadas 37, a identificar 154, sem providência 339, reservadas/dominiais 40, com restrição 05, GT constituído no MS como Terra Indígena 06 (fonte CIMI, 23/11/2012: www.cimi.org.br/site/ptbr/?system=paginas&conteudo_id=5719&action=read) 5 A área ocupada pelas 405 terras indígenas regularizadas é de 97.917.083 hectares e a área ocupada pelos 15.012 estabelecimentos rurais com mais de 2.500 hectares é de 98.480.672 hectares. 6 25. competência do Executivo na definição dos territórios indígenas passando-a para o Senado. Se o Executivo é tão lento na definição e regularização destes territórios, o que será quando isso passar para o Congresso, onde uma grande bancada se opõe ferrenhamente contra os interesses dos grupos minoritários em nosso país? O próprio Executivo, recentemente, baixou uma portaria em que determina que para a identificação e regularização de territórios indígenas deve-se ouvir primeiro o Ministério de Minas e Energia. Outra portaria da Advocacia Geral da União quer estender a todas as áreas indígenas as condicionantes que um ministro do Supremo Tribunal Federal estabeleceu em relação à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. São os interesses econômicos que se sobrepõem aos direitos imemoriais das comunidades indígenas sobre seus territórios. Ontem como hoje os interesses do “desenvolvimento econômico” falam mais alto que os povos que lá se encontram com suas culturas. A estrutura da FUNAI, também, foi modificada e seu papel foi reduzido e enfraquecido. O clamor dos quilombolas 26. Em 1980 os documentos da CNBB ainda não explicitavam, apesar de seu grito persistente ao longo de nossa história, a opressão das comunidades quilombolas presentes no nosso país. Os negros sofreram toda sorte de humilhações e violência durante a escravidão e a eles se negou o direito à terra, ao se anunciar sua “liberdade”. Na busca pela liberdade, os negros construíram espaços de vida livre que se chamaram de Quilombos. Em 1978 teve sua origem o Movimento Negro Unificado contra a discriminação racial (MNU). As lutas e a resistência das comunidades de afrodescendentes fizeram com que a Constituição de 1988 reconhecesse o direito dos negros aos territórios que ocupavam. Assim diz o Art. 68 das ADCT: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Em 1989, finalmente, a lei Caó, de autoria do deputado Carlos Alberto de Oliveira definiu o racismo como crime. 27. Até 2011, depois de mais de 20 anos, somente 111 das 2.8476 comunidades quilombolas existentes no Brasil tinham sido tituladas, beneficiando 11.588 famílias, com 963.058 hectares, menos de 10% da área ocupada pelos latifúndios com mais de 2.500 hectares. Além de não terem seus territórios reconhecidos, os quilombolas sofrem toda sorte de pressão e violência para dar espaço a grileiros, fazendeiros, empresários e a projetos governamentais que querem se apoderar das terras que ainda hoje ocupam. Em 2010, a CPT registrou 71 comunidades em conflito pelo seu território, em oito estados, envolvendo 5.926 famílias. Em 2011, esse número cresceu para 100 comunidades em conflito, em 11 estados, que atingiram 7.692 famílias. As principais formas de agressão e violência são: a expulsão de suas terras com destruição de suas casas e roças, os despejos judiciais, as ameaças de morte e os assassinatos. Entre as 347 pessoas ameaçadas de morte, registradas pela CPT, em 2011, 77 são quilombolas. Em 2012, mais três quilombolas sofreram tentativa de assassinato e outros três foram assassinados. 28. Preocupam-nos os ataques violentos e sistemáticos que as comunidades quilombolas vêm sofrendo contra seus direitos duramente conquistados. Proliferam no âmbito do Congresso Nacional projetos de Lei que buscam restringir os direitos que lhes garantem o acesso à terra. Alguns partidos acionaram o Supremo Tribunal Federal para que declare inconstitucional o Decreto 4887/2003 que regulamentou o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Outro instrumento utilizado para penalizar as comunidades quilombolas e abrir caminho para a invasão de suas terras é a 6 175 na Região Sul, 442 na região Norte, 1.724 na Nordeste, 375 na Sudeste e 131 na Centro-Oeste. 7 29. cobrança, em “terras de preto”, do Imposto Territorial Rural com valores insuportáveis e que, em alguns casos, chegaram a milhões de reais. Povos indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais de ribeirinhos, pescadores, seringueiros, posseiros e outras muitas, ao resistirem nas terras que ocupam, ao lutar para recuperar os territórios que lhes pertenceram e ao se recusarem a inserir no mercado os bens naturais de que desfrutam e necessitam, são considerados fatores de atraso e empecilho ao crescimento e ao progresso. Empecilhos que devem ser removidos. São vítimas da expansão do capital e do dinheiro na agricultura, nos projetos da chamada “expansão primário-exportadora”. O clamor dos sem-terra 30. Já fazem parte da paisagem nacional, em quase todos os estados brasileiros, os inúmeros acampamentos formados de barracas cobertas de lona preta, às beiras das estradas. Famílias inteiras, homens, mulheres, jovens, crianças, idosos, em minúsculos espaços, sujeitos às intempéries do tempo, esperando o tão sonhado pedaço de chão, para de ele tirar seu sustento. Os sem-terra sempre foram uma parte muito significativa da população rural do Brasil. Esta realidade gritante levou 80 trabalhadores rurais, que ajudavam a organizar ocupações de terra em 12 estados a se reunirem, em 1984, na cidade de Cascavél. Eram os primeiros passos do que viria a ser o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. O movimento ganhou espaço no cenário nacional pelas diversas formas de ação que realizou: ocupação de terras, acampamentos, marchas e manifestações. Hoje, ao MST somam-se dezenas de movimentos, todos lutando para que a Reforma Agrária se torne realidade. O próprio INCRA reconhece a existência de, em torno a, 180 mil famílias acampadas. 31. A resposta a esta demanda tem sido mínima. No ano de 2011, segundo os dados precaríssimos fornecidos pelo INCRA, somente 22.021 famílias foram assentadas, o menor número desde 1995. No mesmo ano, a CPT informou que foram expulsas da terra 2.137 famílias, 7.033 foram despejadas por ordem judicial e 12.368 sofrem ameaças de despejo. 32. É gravíssimo constatar que os trabalhadores sem terra, por causa de sua luta, são discriminados e considerados cidadãos de segunda categoria. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o processo de escolarização das crianças nos próprios acampamentos foi proibido, por ser considerado nocivo às crianças que são, por isso, obrigadas a percorrer dezenas de quilômetros para chegar ao local da escola mais próxima. 33. Quando os sem-terra ocupam áreas, muitas delas notoriamente griladas, reivindicando a realização da reforma agrária, sua ação é criminalizada pelos poderes públicos e pela grande mídia. São tratados como criminosos e bandidos. Muitos juízes, porém, não levam em conta o crime de grilagem de terras públicas, conforme o art. 20 da Lei 4.947/66, mas, incoerentemente, alguns deles aplicam este mesmo artigo para criminalizar a luta de quem busca resgatar as terras que são do estado, para que voltem ao patrimônio público. A Constituição Federal estabelece que ”A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária” (art. 188). 34. Como diz o eminente jurista Jacques Alfonsin7 há “uma cultura jurídica interpretativa dos fatos e das leis, que pré-julga, por uma síndrome medrosa e preconceituosa, todo o povo pobre ativo - como são as/os sem-terra que defendem seus direitos - fechado numa clausura de suspeita antecipada de que ele é, por sua própria condição social, perigoso e tendente a praticar crimes.” 7 Alfonsin, Jacques, Do respeito à lei, às leis do respeito, in Conflitos no Campo Brasil, 2008, pag. 19 a 24. 8 O clamor dos assalariados e escravizados do campo 35. Outro clamor que sobe aos céus é o dos homens e mulheres assalariados no campo e que, muitas vezes, no seu trabalho, são submetidos a condições degradantes, análogas ao trabalho escravo. 36. Encontram-se assalariados nas mais diversas atividades rurais e no cultivo dos mais diversos produtos. A situação dos cortadores de cana é emblemática, seja pelo grande número de pessoas envolvidas, seja pelas difíceis condições de trabalho a que são obrigados a suportar. Diante da maior atenção por parte dos fiscais do trabalho, consequência das muitas denúncias apresentadas e da degradação do meio ambiente provocada pela queimada da palha, as empresas estão optando pela mecanização da colheita da cana. Esta mecanização está trazendo consigo duas consequências perversas para os trabalhadores: tem diminuído consideravelmente o número de trabalhadores contratados para este trabalho e têm piorado as condições de trabalho dos que permanecem empregados, pois os cortadores necessitam atingir uma cota de produtividade cada vez maior para garantir seu emprego. Os que não atingem a cota de produção estipulada ficam desempregados. Foram registrados casos em que um único cortador colheu até 12 toneladas diárias de cana. As jornadas exaustivas tornaram esta atividade a campeã dos “auxílios-doença” registrados pelo INSS8. Não são poucos os que morreram por exaustão, devido ao esforço excessivo. As empresas utilizam a mecanização como chantagem para evitar que os trabalhadores reivindiquem melhorias de salário e de condições de trabalho. As usinas do Mato Grosso do Sul, diante das denúncias de irregularidades na contratação, alojamento, alimentação, segurança e transporte de trabalhadores migrantes, que vinham do Nordeste, optaram pelo uso do trabalho indígena local. 37. Os cortadores não têm o controle de sua produção, tanto na medição do que cortaram, quanto na pesagem da cana, o que facilita a exploração do trabalho não pago pelas usinas e pelos chamados “gatos”, como são chamados os intermediários no aliciamento dos trabalhadores. 38. O que acontece com os cortadores de cana, de uma forma ou outra, também, acontece com os que trabalham na colheita do café, do tomate, do mate, no plantio de eucalipto, na produção de carvão vegetal e em outras atividades, como roçagem de pastos, levantamento de cercas etc. Além disso, muitos ficam expostos à pulverização de agrotóxicos que afeta sua saúde. 39. Muitos destes trabalhadores são levados de lugares distantes e colocados em áreas de trabalho de difícil acesso. São enganados com promessas falsas, ludibriados nos contratos e acabam superexplorados no trabalho e obrigados a viver em condições degradantes, tratados pior que animais. Quando adoecem não tem o menor atendimento. Sua dignidade é espezinhada. São alojados em espaços sem qualquer cuidado e segurança. Muitas vezes têm que disputar o espaço com animais ou ficam no mesmo lugar onde se guardam os venenos aplicados nos pastos e nas lavouras. Trata-se de trabalho análogo ao trabalho escravo. Muitos, na hora do acerto não recebem o que lhes é devido e alguns ainda sofrem ameaças, quando não são mortos. 40. Apesar das constantes denúncias, (a Igreja o vem fazendo desde a década de 1970) e das ações públicas que o combatem, este tipo de trabalho continua presente em terras brasileiras. Os trabalhadores são vistos e tratados como peças de uma máquina e sua condição de seres humanos é espezinhada e vilipendiada. 9 Dados não publicados do “Relatório sobre Benefícios por Incapacidade da Previdência Social – 1998-2005” (Brasília- IPEA-2008) revelam que entre 2000e 2005 os”auxílios-doença” concedidos pelo INSS nas atividades de “Cultivo da Cana” (Cód. O1139), “Fabricação do Açúcar” (Cód. O15610) e “Fabricação do Álcool (Cod. 23.400), somaram no ano 2000 o numero. de 4864 concessões e 18.227 concessões em 2005 9 41. 42. Encontram-se situações de escravidão em quase todos os estados do país. O trabalho escravo não se restringe ao meio rural. Foi flagrado em indústrias do vestuário e também na construção civil explorando, sobretudo imigrantes de países vizinhos. Mas é no campo que ele tem sido encontrado em maior número e com mais frequência. A CPT tem divulgado, a cada ano, um relatório com os registros desta chaga social. Entre 2003 e hoje, foram registrados cerca de 250 casos de trabalho escravo a cada ano. As equipes de fiscalização do Ministério do Trabalho já resgataram mais de 38.000 trabalhadores na roçagem de pasto, na produção de carvão vegetal ou em grandes lavouras. Em 2011, foram 2.500 libertados, entre eles 600 em atividades não agrícolas. Só a custo de muita pressão social, a Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda Constitucional 438/2001, que determina o confisco de propriedades em que for flagrado trabalho escravo e seu encaminhamento para reforma agrária ou uso social. O texto agora está tramitando no Senado onde os ruralistas pretendem modificar a definição de trabalho escravo. Espera-se que, no senado, a tramitação seja mais célere, visto que na Câmara dos Deputados, entre a votação em primeiro turno e a votação em segundo turno passaram-se nove anos! O clamor dos assentados 43. Nas últimas décadas cresceu consideravelmente o número de famílias assentadas em projetos de assentamento da reforma agrária9. Assentamentos, a maior parte deles, nascidos pela pressão de sem-terra que ocuparam áreas, acamparam às margens das rodovias ou de alguma outra forma pressionaram o governo. Outros assentamentos são, na realidade, a regularização de áreas já ocupadas há muitos anos e que foram, finalmente, reconhecidas. Na Amazônia, o INCRA criou, também, de cima para baixo, dezenas de assentamentos em área de floresta, sem nenhum plano de uso e sem nenhum cuidado ambiental, provocando, assim, um desmatamento de dimensões impressionantes. 44. Alguns assentamentos podem ser considerados um modelo por sua organização interna e por sua produtividade. Mas o que se vê, na maioria dos casos, é que os assentados acabaram jogados à própria sorte. 45. Atenta, a Igreja escuta os gritos que provém destes assentamentos. É a situação de quem não consegue ter os meios para alcançar uma vida digna. Não há escolas adequadas, o atendimento à saúde é distante e mais que precário, as estradas, os ramais e as vicinais estão em situação péssima. O assentado não dispõe de assistência técnica que o oriente 9 Os dados do INCRA são incoerentes e incongruentes: em 16/10/2012, no sito web do INCRA, constavam três links que apresentavam dados diferentes em relação ao número de famílias assentadas: 1) relação de projetos de reforma agrária http://www.incra.gov.br/index.php/reforma-agraria-2/questao-agraria/numeros-dareforma-agraria/file/31-relacao-de-projetos-de-reforma-agraria; 2) famílias assentadas http://www.incra.gov.br/index.php/reforma-agraria-2/questao-agraria/numeros-da-reforma-agraria/file/1148familias-assentadas; 3) relação de beneficiários http://www.incra.gov.br/index.php/reforma-agraria2/projetos-e-programas-do-incra/relacao-de-beneficiarios-rb. Os assentamentos são 8.865, sua área total é de 87.559.858,9467 hectares (muito menos dos que os latifúndios com mais de 2.500 hectares) e têm a capacidade total de assentar 1.129.271 famílias. Os dados, porém, informam: Data Tipo de relatório N.º famílias % capacidade 23/03/2012 Relação de projetos de reforma agrária 931.730 82,51 06/02/2012 Famílias assentadas 1.235.130 109,37 10/07/2012 Relação de beneficiários 1.243.478 110,11 As incongruências são mais do que evidentes: há uma diferença de 33,5% entre uma e outra lista. As listas das famílias assentadas chegam a superar em mais de 10% a capacidade máxima dos assentamentos. Há incongruências ainda mais graves quando se confrontam as listas por estado: Goiás (94,7%), Tocantins (73%), Roraima (70%), Paraná (69,6%) e Distrito Federal (53,8%). 10 46. sobre as melhores formas de cultivo. O acesso ao crédito não lhe é facilitado e tem muitas dificuldades para comercializar o que produz. O endividamento é altíssimo e, por falta de uma alternativa mais adequada de produção, o assentado é presa fácil do desmatamento ou do agronegócio, que lhe propõe o arrendamento da terra para o cultivo de cana, soja, eucalipto ou outras, ou que ele próprio produza o que lhe é proposto, sem qualquer ônus para quem o incentiva a isso. Na produção, o assentado, na maioria das vezes, é levado a utilizar insumos químicos e agrotóxicos que prejudicam a terra e, sobretudo a saúde da família. Em muitos casos os assentamentos estão cercados por monocultivos diversos que acabam envenenando a terra, a água e as plantações dos pequenos agricultores. Constatamos, também, que, nos assentamentos de regularização fundiária, os assentados são impelidos, pelo poder público, a criar organizações específicas para o recebimento dos créditos. Estas colidem de frente com a organização social e comunitária existente, provocando, assim, dolorosas e traumáticas divisões internas e facilitando o incrível, inesgotável e invencível desvio de recursos federais e estaduais. O clamor dos ribeirinhos e pescadores 47. Outra situação de opressão é vivida pelos ribeirinhos, sobretudo da Amazônia e pelos pescadores e pescadoras artesanais que, hoje, veem seus territórios sendo invadidos e ocupados, atropelando seu tradicional modo de viver e de lidar com a natureza, de raízes profundas, transmitidas de geração para geração. 48. A pesca artesanal não é somente uma profissão. É um jeito de viver, de se relacionar com a natureza, é responsável também pela manutenção de diversos ecossistemas existentes no país, pois as comunidades pesqueiras extraem da natureza o que ela é capaz de repor, conciliando, de forma harmoniosa, a sua sustentabilidade e a sustentabilidade ambiental dos recursos utilizados. Essa relação é caracterizada principalmente pelo conhecimento que as comunidades têm da natureza e o respeito por ela. 49. Para ribeirinhos e pescadores, o espaço que ocupam é seu território de uso coletivo para sustentabilidade da família, da comunidade e dos estoques pesqueiros. Território que abrange espaços terrestres e o dos rios, lagos, lagoas e mar. Ribeirinhos e pescadores não vivem só na água, precisam da terra e da água, dos mangues e das matas ciliares. 50. Estes territórios tradicionais são considerados espaços vazios e são disputados por grandes empreendimentos empresariais da construção civil, do turismo, para a implantação de parques aquícolas e por projetos de produção de energia, com a construção de grandes barragens e de parques eólicos. Os ganhos econômicos não contabilizam os rios destruídos, os estuários afetados, as populações expulsas, os estoques pesqueiros diminuídos. Além disso, desde 2003, estão em curso planos de privatização de corpos d‟água para os aquicultivos, seja do mar, como dos rios. A carcinicultura (criação de camarão em cativeiro) é exemplo disso e está deixando um rastro de violência e insustentabilidade, com degradação das áreas de manguezais. As fazendas de carcinicultura utilizam, em grande quantidade, produtos e antibióticos que contaminam as águas e representam um significativo impacto potencial para a saúde humana. 51. Para satisfazer os interesses do capital em suas diversas atividades, nega-se o pescador e a pesca artesanal, como atividade importante para a economia brasileira, para soberania alimentar e para a diversidade cultural do país. Ribeirinhos e pescadores acabam sendo vistos como entraves para o desenvolvimento e, com isso, se justifica a apropriação dos territórios que eles ocupam. Muitas ilhas e ilhotas importantes para o trabalho e segurança das comunidades pesqueiras estão sendo tomadas, de forma ilegal e com a conivência do estado, para nelas desenvolver grandes empreendimentos de luxo como resorts, marinas, campos de golfe, etc. Os ribeirinhos e os pescadores expulsos dos 11 52. locais onde suas comunidades e famílias, há dezenas de anos, se estabeleceram, são obrigados a migrar para outros lugares de pesca ou para centros urbanos. Para se libertar desta opressão, o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais MPP, a partir da I Conferencia da Pesca Artesanal, realizada em Brasília, em setembro de 2009, fortaleceu sua organização e sua resistência ao modelo de desenvolvimento que esmaga as comunidades pesqueiras, a partir de grandes projetos que concentram a riqueza e degradam o meio ambiente. Suas principais bandeiras de luta são a defesa do território e do meio ambiente; o respeito aos direitos e igualdade para as mulheres pescadoras; a garantia de direitos sociais; a luta por condições adequadas para produzir e viver com dignidade10. A mais recente iniciativa assumida pelos ribeirinhos e pescadores e pescadoras artesanais foi convocar a sociedade para a “campanha pela regularização dos territórios das comunidades pesqueiras”, um projeto de lei de iniciativa popular que tem como objetivo assegurar o reconhecimento, a proteção e a garantia do direito ao território de comunidades tradicionais pesqueiras. O clamor dos pequenos produtores familiares 53. Os pequenos agricultores, também, sentem-se, muitas vezes, abandonados e empobrecidos. A atenção à saúde, mais que precária, o difícil acesso à educação e a falta de estradas e transportes que facilitem a comercialização de seus produtos, empurram grande parte das famílias, sobretudo os mais jovens, a buscar melhores condições na cidade. E os que ficam veem sua identidade camponesa se diluir. 54. A pressão do agronegócio acaba expulsando milhares de famílias, a cada ano, de suas terras, com isso mantendo o êxodo rural. Na última década, mais dois milhões de pessoas abandonaram o campo. Os que resistem sofrem por causa do endividamento junto aos bancos e, sobretudo pelo envenenamento pelos agrotóxicos. Grande parte das famílias vê seus filhos buscarem melhores condições de vida na cidade. 55. Outra situação de opressão é a dos agricultores integrados que se tornam reféns de grandes indústrias. As dificuldades começam na hora dos contratos nos quais as indústrias impõem as regras da produção e definem, unilateralmente, os preços dos produtos. Para abastecer o mercado interno e poder exportar grandes quantidades dos produtos, as indústrias forçam os produtores a aumentar a produção, obrigando-os a jornadas exaustivas de trabalho, sem direito aos sábados, domingos e feriados. Os agricultores integrados entram com a terra, a infraestrutura e a força de trabalho e as empresas entram com a matéria prima e ficam com toda a produção. O agricultor tornase, assim, um prestador de serviços para a indústria, sem carteira assinada e sem direitos trabalhistas. Para evitar reclamações trabalhistas as indústrias forçam os pequenos produtores a se constituírem como empresas. 56. Os interesses das indústrias levam, também, os agricultores a ampliar suas instalações e a se especializar em apenas um tipo de atividade no processo de produção, cortando, assim, a pouca autonomia que o produtor teria ao tomar conta do ciclo completo da produção. O valor pago pelo produto, muitas vezes, não chega a cobrir os custos de produção. Pensando que estão tendo lucro, os agricultores integrados sofrem, na verdade, um empobrecimento crescente. 57. Outro grito do campo vem dos que acabam subjugados pelas grandes empresas de sementes que, com os mais eficazes meios de propaganda, convencem os agricultores a utilizarem sementes transgênicas, que subordinam o agricultor ao controle das empresas às quais ele tem que pagar pelas variedades transgênicas criadas. O agricultor perde o controle sobre as sementes que produz, tanto as sementes naturais, chamadas de 10 http://cppnorte.wordpress.com/carta-do-movimento-dos-pescadores-e-pescadoras-artesanais/ 12 58. tradicionais ou “crioulas”, quanto as sementes que os agricultores vieram melhorando, ao longo de séculos, adaptando as diversas espécies cultivadas às mais distintas condições ambientas e sociais. São milhares de variedades tradicionais de milho, feijão, arroz etc. que os transgênicos substituem, fazendo com que se perca a rica diversidade existente. Tudo isso impulsiona os grandes monocultivos que utilizam poucas variedades da mesma espécie. Estas culturas são facilmente suscetíveis ao ataque de pragas e doenças com grandes riscos para a produção: aumenta, assim, a demanda por agrotóxicos perigosos para o meio ambiente e para a saúde humana e animal e o agricultor fica ainda mais dependente das empresas que, além das sementes transgênicas, produzem, também, os agrotóxicos necessários. Já se tem notícia de pragas resistentes aos agrotóxicos utilizados atualmente, exigindo a produção e aplicação de venenos cada vez mais fortes e perigosos. Muitas são as formas de resistência contra a exploração que pesa sobre os agricultores familiares. A bandeira dos pequenos agricultores é levantada e defendida, de maneira especial, pelo Movimento dos Pequenos Agricultores, nascido em 1996 e que, ao lado de outros movimentos, se propõe a resgatar a identidade e a cultura camponesa, com suas diversidades regionais, a incentivar uma produção agroecológica e diversificada, a valorizar e multiplicar as sementes crioulas e a produzir comida saudável, abundante e barata para o autossustento e a alimentação dos próprios camponeses e das populações urbanas. A Via Campesina junto com muitas outras entidades está desenvolvendo, a nível nacional, a “Campanha contra os Agrotóxicos e pela Vida”, alertando a sociedade brasileira sobre a quantidade de veneno que o consumidor ingere e propondo uma agricultura livre de agrotóxicos e transgênicos. Uma opressão que aumenta em todos os lados 59. Trata-se de uma opressão provocada por um equivocado modelo de desenvolvimento e que alcança todos os lugares do País. Dezenas de milhares de famílias acabaram sendo expulsas por grandes obras, sobretudo as do Programa de Aceleração do Crescimento, PAC, que sob o manto do desenvolvimento nacional, acabam beneficiando os interesses do capital, causando sofrimento e tristeza indizíveis às famílias que são atingidas por eles. São as construções de barragens para hidrelétricas, as obras da transposição de rios, as obras de rodovias, ferrovias e hidrovias. E são, também, as atividades das mineradoras que, por ter legalmente e inquestionavelmente a prioridade sobre o uso do solo, afastam, em troca de indenizações insignificantes, inteiras comunidades que são totalmente desestruturadas. As famílias expulsas são transformadas, de repente, em mão de obra urbana desqualificada. 60. Atualmente estão em atividades cerca de oito mil projetos de produção mineral no Brasil, número que vai se expandir muito com a definição do novo marco legal que está sendo elaborado, no qual os interesses da sociedade são reduzidos a um mero e insignificante aumento dos impostos a serem pagos. Apesar de as jazidas pertencerem à União, elas têm sido utilizadas mais para exploração predatória de tipo colonialista, controlada pelo capital estrangeiro, ao qual não são postos limites de nenhum tipo. Muitas vezes, o controle dos projetos minerários é objeto de simples especulação 11, como reconhecem até agentes públicos. 61. O Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB está, desde 1989, manifestando sua resistência a este modelo de crescimento energético, em defesa das inúmeras famílias que perderam suas posses e seus meios de sobrevivência, com a construção de barragens. Com seu lema: “água e energia não são mercadoria” eles compreendem que a água e a energia são bens essenciais para a vida das pessoas e para a sociedade, e por isso devem ser um bem 11 Deputado Inocêncio Oliveira, Seminário Setor Mineral: Rumo a um Novo Marco Legal. 13 62. público, onde todos tenham acesso com qualidade. Não pode ser privatizadas nas mãos de multinacionais que tem como único interesse aumentar seus lucros12. Na resistência á opressão gerada pela mineração nasceram outros movimentos populares, entre eles, em 2007, foram se articulando muitas pessoas e várias organizações, numa coordenação chamada “justiça nos trilhos”, no enfrentamento com uma das mineradoras mais poderosas do mundo. É uma articulação dos que denunciam a agressividade e o poder destrutivo da empresa, com seus impactos irreversíveis, causados ao meio ambiente, com seu desrespeito aos direitos das comunidades atingidas e das leis trabalhistas. Por trás do propagandeado desenvolvimento, esconde-se a obsessão transnacional pelo lucro e pela máxima concentração de riquezas que provocam desrespeito, injustiça, pobreza, sofrimento, morte. É uma articulação internacional de brasileiros, chilenos, peruanos, argentinos, moçambicanos, canadenses, indonésios… Indignados com o saque cotidiano de riquezas que pertencem a nossos povos13. A violência que atinge os trabalhadores 63. Milhares de famílias de trabalhadores e trabalhadoras do campo, em todos os recantos do nosso país, gritam pelas agressões e pela violência que sofrem e clamam por justiça. A CPT vem, com fidelidade, registrando os conflitos que envolvem homens e mulheres do campo e as violências que sobre eles se abatem. Desde 1985, cinco anos depois do documento Igreja e Problemas da Terra, vem publicando, ano a ano, os números indicativos dessas violências e desses conflitos, procurando discernir e explicitar as causas de tamanha, incompreensível atrocidade. 64. Os conflitos atingem milhares de famílias a cada ano 14. Essa violência no campo é somente aquela que chega ao conhecimento e é registrada. Muitíssimos outros casos de violência acontecem sem que ninguém tome conhecimento deles. É sempre importante recordar o grande número de assassinatos por causa de conflitos por terra. De 1985 a 2011, foram registrados os assassinatos de 1.610 pessoas. O que chama a atenção, neste caso, é que só foram julgadas 96 ocorrências e só foram condenados 21 mandantes e 75 executores. A impunidade é a grande alimentadora da violência. 67. Também nos preocupa o grande número de pessoas ameaçadas. A CPT registrou que, entre 2000 e 2010, 1.855 pessoas, em todo o país, foram ameaçadas pelo menos uma vez. 207 delas foram ameaçadas mais de uma vez. 42 pessoas que receberam ameaças foram assassinadas e 30 sofreram tentativa de assassinato. Em 2010, houve o registro de 125 pessoas ameaçadas, e em 2011 de 347. 12 http://www.mabnacional.org.br/historia http://www.justicanostrilhos.org/ 14 A série histórica da CPT é contundente: Período Média anual de conflitos SARNEY (1985-1989) 675 COLLOR (1990-1992) 445 ITAMAR (1993-1994) 515 CARDOSO 1 (1995-1998) 785 CARDOSO 2 (1999-2002) 862 LULA 1 (2003-2006) 1.757 LULA 2 (2007-2010) 1.270 ROUSSEFF (2011) 1.363 13 Média anual de pessoas atingidas 714.244 432.606 349.874 740.340 561.613 992.930 621.285 600.925 14 O grito inaudível do planeta Terra 68. A própria terra está gritando. A crescente onda de cataclismos ambientais como enchentes sem controle, deslizamentos de encostas que tudo carregam, secas prolongadas que destroem plantações, secam fontes e mananciais, tornam impossível a vida animal e até mesmo a humana, faz elevar um grito surdo de dor e desespero de centenas de milhares de famílias que são as vítimas destas tragédias. 69. As catástrofes naturais, resultado, também, das mudanças climáticas que acompanham o aquecimento global, cientificamente comprovadas, tem afetado pessoas e povos em todo o mundo. A responsabilidade por este aquecimento é, em grande parte, do ser humano, por causa do modelo de desenvolvimento e do estilo de vida adotado. O Brasil é o sétimo maior país provocador do efeito estufa e o desmatamento intensivo é o principal componente negativo deste modelo econômico. Apesar de o ritmo do desmatamento ter diminuído, ainda é muito grande, 93% da Mata Atlântica já foi destruída; 67% do Cerrado já sofreu modificação; a Caatinga já teve sua vegetação reduzida pela metade, e a Floresta amazônica, já perdeu em torno a 18% de sua cobertura vegetal. 70. Estas catástrofes naturais nos fazem refletir e apontam para a necessidade de se imprimir, com urgência, um novo rumo ao processo de desenvolvimento. As mudanças climáticas estão provocando mudanças drásticas também na agricultura. Menos solos disponíveis, menos água, alternância de secas e enchentes, mais doenças, mais pragas geram uma intensa instabilidade agrícola, com a possível migração de plantios de uma região para outra. Nesse cenário, o Brasil tende a perder espaços agrícolas, particularmente no Norte e Nordeste e a perder também sua biodiversidade e sua diversidade produtiva. Outras áreas extensas tendem à desertificação, tornando-se impróprias para pessoas e agriculturas. 71. Os sinais emitidos pela própria natureza, e uma nova leitura científica da Terra, mostram que a Terra tem suas próprias leis, que precisa de determinada cobertura vegetal para seu próprio metabolismo, que o regime das águas depende da vegetação. Enfim, há uma intrincada rede de conexões entre seres vivos e não vivos, necessária para a existência de todas as formas de vida. A substituição desta cobertura vegetal natural pelos monocultivos intensivos e extensivos está provocando a degradação dos mananciais de água, sua poluição acelerada e já se faz sentir no secamento de rios e aquíferos e na impossibilidade de uso da água para fins de abastecimento humano. 72. A contínua expansão do agronegócio, especialmente dos monocultivos de soja, milho, cana, florestas plantadas e da pecuária bovina, avançam com enorme voracidade sobre os biomas da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal e estão se intensificando ainda mais na Mata Atlântica, no Pampa e em determinadas zonas úmidas do Semiárido15. A incorporação destas novas e imensas áreas, em vista do enriquecimento do grande capital, tem provocado a depredação deste rico patrimônio natural responsável importante pelo equilíbrio do clima em todo o planeta e das mais ricas fontes de água subterrânea do mundo, os aquíferos, de onde brotam boa parte dos rios que formam as principais bacias hidrográficas brasileiras. 73. A expansão agrícola, sob a exclusiva hegemonia do capital e do dinheiro, levou para o campo o modo industrial de produção, comum ao capitalismo e ao socialismo, substituindo os policultivos por monocultivos, que mais se parecem com desertos verdes, numa veloz destruição da fauna e da flora locais, levando à extinção diversas espécies e afetando, de forma brutal, toda a biodiversidade existente. 15 Segundo dados do Censo Agropecuário de 2006 a expansão pecuária bovina está ocorrendo principalmente na Região Norte, sendo o Estado do Pará o campeão (seu efetivo bovino dobrou de 6,0 para 12,8 milhões de cabeças entre 1995 e 2006), enquanto que a expansão de “commodities” agrícola se dá mais acentuadamente nos cerrados. 15 74. 75. 76. As frentes de produção de “commodities” - palavra que designa produtos primários armazenáveis, transacionados em mercados mundiais organizados - se expandem sem nenhum limite da propriedade, sem levar em conta o zoneamento agroecológico nos biomas, sem a responsabilidade da gestão das águas, das florestas e dos demais recursos naturais do meio-ambiente. Quase sempre impõem custos sociais insuportáveis, carregados por toda a nação, enquanto os benefícios monetários são exclusivos dos que controlam, de fato, as terras e regulam os preços das “commodities”. A expansão agrícola, produtora de commodities, veio acompanhada do uso intensivo de agrotóxicos. Mais de 700 milhões de litros de agrotóxicos são despejados anualmente sobre os solos brasileiros, gerando problemas ambientais de contaminação de solos e corpos de água, com consequências inevitáveis e imprevisíveis sobre os mananciais superficiais e subterrâneos. Além disso, geram problemas para a saúde, sobretudo, das pessoas que manipulam estes produtos e das famílias que vivem no entorno das grandes fazendas sobre cujas extensas plantações os aviões despejam os agrotóxicos. A produção de agrocombustíveis, por exemplo, que tem sido alardeada como um grande avanço, tem um efeito perverso sobre o meio ambiente. Grandes áreas, antes destinadas à pecuária, estão sendo atualmente usadas para o plantio de cana-de-açúcar e de soja; desta forma, a pecuária é empurrada para outras áreas ainda preservadas, e é colocada em risco a soberania alimentar de nosso país. A força dos pequenos 77. A força avassaladora deste modelo de crescimento baseado na concentração de riquezas, na devastação ambiental e na violência contra as pessoas, as comunidades e as populações nos atinge diretamente. Se ficarmos olhando, assustados ou admirados, este fenômeno, aparentemente, invencível e até sedutor, podemos ficar petrificados e incapazes de reagir. 78. Precisamos saber olhar, também, com a mesma atenção e com ainda mais admiração, as inúmeras, mesmo que pequenas e quase invisíveis, conquistas que vem dos pequenos: sua capacidade de se organizar e se reorganizar, sua teimosia em resistir, fazendo de seus gemidos, clamores por justiça. 79. Nestas mais de três décadas vimos as comunidades lutar por sindicatos combativos, afastando corruptos e pelegos. Depois surgiram movimentos que marcaram e continuam marcando a história dos diferentes campesinatos que vivem nas terras brasileiras: movimentos de indígenas, de quilombolas, de sem terra, de pequenos agricultores, de atingidos pelas barragens, pela mineração. Movimentos de mulheres camponesas que enriqueceram a luta popular com sua teimosia e criatividade. Movimentos da juventude rural, escolas famílias, centros de formação, escolas e universidades camponesas. 80. Junto com eles, no meio deles, caminhou a instituição eclesial com suas pastorais sociais que tiveram um papel fundamental em oferecer reflexões, espaços e instrumentos que fortaleceram sua luta e sua resistência, unindo a realidade da vida com a contribuição da Palavra. Com eles e com elas, nossos agentes de pastoral, também derramaram seu sangue fecundo, mártires/testemunhas que não podem e não devem ser esquecidos, nunca. 81. Todo este movimento popular participou, com sua militância, na eleição do presidente Lula, na esperança de ver implantado um modelo diferente, novo, alternativo àquele governado pelo mercado neoliberal globalizado. 82. Hoje, ao ver que seus sonhos foram esquecidos pelos governantes, ao ver que eles, também, se sujeitaram, quando não se aliaram ao capital e aos interesses do mercado, depois de um período de “congelamento” estão sentindo a necessidade de fortalecer sua 16 83. 84. 16 articulação, de somar forças, de construir resistências e alternativas. Um dos sinais mais importantes é a articulação da Via Campesina, um movimento internacional, que coordena organizações camponesas de pequenos e médios agricultores, trabalhadores agrícolas, mulheres rurais e comunidades indígenas e negras da Ásia, África, América e Europa. Suas principais políticas são: a defesa da soberania alimentar, priorizando a produção de alimentos sadios, de boa qualidade e culturalmente apropriados, para o mercado interno; a participação ativa dos movimentos camponeses no processo de definição de políticas agrícolas e alimentares; a defesa da biodiversidade, vista não só como flora e fauna, solo, água e ecossistemas, mas envolvendo, também, tradições culturais, sistemas produtivos, relações humanas e econômicas; a Reforma Agrária, pois a alta concentração da propriedade da terra, nas mãos de uma minoria é a causa da existência de elevados níveis de pobreza, da enorme desigualdade social, das péssimas condições de vida, do subdesenvolvimento crônico e dependente da economia, da dominação política e da falta de perspectiva para a maioria da população. O acesso à terra por parte dos camponeses deve ser entendido como uma forma de garantia de valorização de sua cultura, da autonomia das comunidades e de uma nova visão de preservação dos recursos naturais, para a humanidade e para as gerações futuras. A terra é um bem da natureza que deve estar a serviço do bem estar de todos. A terra não é e não pode ser apenas uma mercadoria. Registramos, neste sentido, a importância do encontro nacional de todos os movimentos sociais e entidades que atuam no meio rural brasileiro que se realizou, em Brasília, em agosto de 2012. Foi um encontro unitário, plural e expressivo de todas as formas de organização e representação que existem hoje no meio rural brasileiro, abrangendo desde os assalariados rurais, camponeses, pequenos agricultores familiares, posseiros, ribeirinhos, quilombolas, pescadores e povos indígenas e pastorais sociais. Todos unidos, independente da corrente política ou ideológica a que se identificam. Foi uma grande articulação para resistir à ofensiva do capital no campo, conduzida sob a hegemonia do capital financeiro e das empresas transnacionais e que está impondo um novo padrão de produção, exploração e espoliação da natureza pelo agronegócio; questionar e denunciar a subserviência do Estado brasileiro a esse projeto16. A Igreja se faz presente neste esforço de articulação, através de várias iniciativas locais e nacionais, lembramos, de maneira especial, o Grito dos Excluídos, as campanhas da fraternidade e outras campanhas como a do limite de propriedade e as Semanas Sociais Brasileiras, para discutir, a partir das bases, o projeto de um Brasil em que o bem comum seja o verdadeiro e supremo objetivo. É neste caminho que queremos continuar andando com nossa ação pastoral. No entanto temos a lucidez de perceber que a luta dos pequenos permanece quase que ausente dos grandes meios de comunicação social, portanto, pouco conhecida à opinião pública e mesmo por boa parte das comunidades cristãs. http://www.brasildefato.com.br/node/10325 17 2ª Parte: OUVI O GRITO DE AFLIÇÃO DIANTE DOS OPRESSORES (Êx 3,7b) 85. 86. Nosso discernimento pastoral manifesta-se, agora, na obrigação de conhecer melhor as causas e as razões da situação de opressão em que vivem as comunidades e as populações do campo e das florestas. Se há opressão, há opressores. Seguindo a metodologia de Jesus, Bom Pastor, sabemos que, hoje, também “o ladrão vem só para roubar, matar e destruir” (Jo 10,10). Sabemos que “o assalariado, que não é pastor e a quem as ovelhas não pertencem, vê o lobo chegar e foge, e o lobo as atacam e as dispersam” (Jo 10,12). O primeiro testamento, também, nos alertava a respeito dos falsos pastores que, no lugar de cuidar do rebanho “se apascentam a si mesmos” (Ez 34,2) e como consequência deste descaso, “as ovelhas se dispersaram... tornaram-se presa de todos os animais selvagens”(Ez 34,8). Pretendemos nesta segunda parte conhecer: quais as causas da opressão, hoje? Quais as formas que, atualmente, caracterizam a opressão? O que mudou nas três últimas décadas? 1 – Contextualização Histórica e Conceitual 87. Tão antigos no Brasil quanto a História Colonial, são os conflitos agrários e sociais que envolvem as populações rurais, os grandes proprietários de terras e os poderes de Estado. A história da ocupação de terras no Brasil e da luta pela sobrevivência das pessoas que nela vivem e trabalham, testemunha uma luta desigual. De um lado, os protagonistas de uma verdadeira idolatria da conquista patrimonial. De outro, a identidade e a cultura dos povos e grupos sociais que vivem da terra e convivem com a natureza como com uma mãe. 88. A História Social registra graves situações de conflito, de repercussão nacional, como Canudos (1893-1898), Contestado (1912/1916) e Juazeiro-CE (1889-1934). Também conflitos locais pela posse da terra. Por outro lado os conflitos e os problemas agrários revelam, também, a marcha contínua da formação do campesinato brasileiro. Situações sociais críticas que, em diferentes regiões do país, tiveram em comum o apelo místico, num ambiente de forte exclusão social, nos marcos da sociedade oligárquica da República Velha. 89. Mas, tanto os conflitos de repercussão nacional quanto os inúmeros conflitos locais pela posse e uso da terra17, não foram entendidos, na ótica política da República, como questões sociais que exigiam uma ação reformadora. Ao contrário, os problemas agrários de então foram enfrentados pelas armas das milícias privadas dos coronéis ou das polícias estaduais ou, em última instância, do Exército Nacional (Canudos e Contestado), sem qualquer preocupação com a reforma da estrutura agrária. 90. A Questão Agrária Nacional, assumida como problema político na agenda do Estado brasileiro, é fato social bem mais recente, a partir dos anos 60 do século XX. Para isso, contribuíram, sobretudo e por diferentes caminhos, a Igreja Católica e os partidos de esquerda, então influenciados teórica e politicamente pelo Partido Comunista e, de maneira especial, as lutas e as ações políticas dos camponeses no movimento das Ligas Camponesas em meados do século passado. 17 Encontramos uma análise histórica mais detalhada em Márcia Motta e Paulo Zorth (orgs.). Formas de Resistência Camponesa: Visibilidade e Diversidade de Conflitos ao Longo da História, São Paulo: NEAD – UNESP, 2008. 18 91. 92. 93. 94. 95. A transição da situação de conflito agrário para uma agenda política de reforma social é, no Brasil, um problema que continua não resolvido, fato que reflete também no presente o peso extraordinário do conservadorismo agrário, na elite do poder. O avanço deu-se, no início dos anos 60 do século XX, quando a Questão Agrária entrou nas prioridades do Executivo e do Congresso Nacional de então. Tal avanço, porém foi, imediatamente, freado e interditado pelo retrocesso imposto pelo regime militar posterior. Atualmente, também, sob a égide da Constituição de 1988, continuam as tentativas dos poderes públicos e da mídia conservadora de tratar como meras questões de criminalidade os problemas agrários ainda em aberto. Durante meio século, o tema da Questão Agrária entrou e saiu na agenda do Estado, de diversas formas. De forma abrupta em 1964, quando, de fato, foi banido da política, ainda que, de direito, figurasse nos compromissos e conceitos estabelecidos pelo Estatuto da Terra (novembro de 1964). Era esta a situação na qual nos encontrávamos quando a CNBB, em 1980, no documento “Igreja e Problemas da terra” declarava apoiar “os esforços do homem do campo por uma autêntica Reforma Agrária” e “a mobilização dos trabalhadores para exigir a aplicação e/ou a reformulação das leis existentes”18. Em 1984, a aliança política que se propôs substituir o Regime Militar, comprometeu-se com a realização da Reforma Agrária através do I Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República, de vida efêmera e resultados precários. Sua proposta de assentar 1,4 milhão de famílias, redundou em pouco mais de 100 mil famílias assentadas19. Na Constituinte de 1987/88 deu-se o embate político mais forte entre defensores e oponentes da Reforma Agrária, refletindo nessas posições leituras completamente opostas do que seja a Questão Agrária Nacional. Essencialmente, tem a ver com as concepções antinômicas da “terra de trabalho” e “terra de exploração” ou de negócio, magistralmente conceituadas no documento da CNBB de 1980 – “Igreja e Problemas da Terra”20. O princípio, defendido pelo magistério eclesial, da destinação universal dos bens, questiona radicalmente o direito de propriedade absoluta, estabelecido no direito feudal na Idade Média europeia e, confirmado pelos regimes capitalistas, nos tempos modernos. Neste sentido, é relevante o princípio constitucional brasileiro da Função Social da Propriedade Fundiária (C.F. Art. 186 e Art. 5 - XXIII). A busca pela concretização histórica e geográfica da função social da propriedade é, por isso, missão permanente da Igreja que deve se opor, profeticamente, à concepção mercantilista do direito absoluto de propriedade fundiária que, na prática, corrompe a Função Social, inverte o sentido da destinação universal dos bens da natureza e, ainda mais, põe em risco as populações mais pobres e a vida do planeta. 2 – A Reestruturação da Economia do Agronegócio – Anos 2000 96. Em 1980, quando o documento “Igreja e Problemas de Terra” tratou dos problemas agrários brasileiros, a população brasileira vivia submetida ao autoritarismo do regime militar e à lógica de uma modernização técnica, que não se preocupava com uma reforma social. Era o estilo de crescimento que se convencionou denominar “modernização conservadora”. De lá para cá, decorreram-se pouco mais de 30 anos. Nesse ínterim, passamos do regime militar para o estado de direito e este fato provocou, também, importantes mudanças no Estado, na economia e na sociedade. Essas 18 CNBB: Igreja e problemas da terra, 99. O INCRA é ainda mais restritivo e nos diz que até 1994 só tinham sido assentadas 58.317 famílias (Fonte: DT/Gab-Monitoria - Sipra Web 6/02/2012). 20 CNBB: Igreja e problemas da terra, 82-86. 19 19 mudanças históricas vieram redefinindo a Questão Agrária brasileira, sempre vinculada aos ciclos econômicos e políticos em curso. 97. Olhando, a partir de hoje, podemos dizer que, nessas três décadas ocorreram dois ciclos distintos de desestruturação e reestruturação da estratégia agrícola esculpida durante o período militar. A primeira desestruturação da “modernização conservadora” ocorreu poucos anos antes da Constituinte e nos anos a ela imediatamente posteriores (19821999). Foi, no plano econômico, um longo período de transição, caracterizado por semiestagnação econômica e crise nas relações externas. 98. Neste período, o País se debateu entre pressões fortes e contraditórias: pela democratização do Estado, por um lado e pela hegemonia do pensamento neoliberal, por outro lado. A opção ultra liberal da política econômica brasileira dominou, praticamente, toda a década de 1990 e coexistiu com certa desmontagem das políticas agrícolas convencionais e do sistema de crédito público, que haviam sido peças chaves da “modernização conservadora” na época do regime militar. Ademais, o ciclo mundial do comércio de “commodities” era desfavorável para o Brasil, resultando em pressões pela desvalorização da renda agrícola e dos preços das terras e arrendamentos rurais 21. 99. Os governos da época eram fortemente influenciados pela reengenharia de Estado: deviam, positivamente, implantar as estruturas criadas pela Constituição de 1988, mas, eram, negativamente, influenciados pela ideologia do estado mínimo e da remoção das velhas estruturas da “era Vargas”22. Estiveram ainda empenhados no saneamento financeiro das dívidas e desvios herdados do regime anterior, convertidos então em dívida pública23. 100. Nesse período, praticamente, não foi estruturada nem a expansão agrícola nem a industrial. O comércio internacional, também, estava estagnado. A persistência de altos “déficits” nas transações externas, principalmente de 1994 a 1999, levou a uma situação de insolvência aguda que se manifestou na crise cambial de 199924. Essa crise significou o fim de um ciclo de economia política, marcado pela relativa desorganização dos setores agrários que eram dominantes no período militar. 101. A reinserção do Brasil nas exportações globais, na condição de grande provedor primário é fenômeno típico da década de 200025. Neste período, foi elaborada uma 21 Tabela 1 – Variações Reais Médias do Preço da Terra em Fases Distintas do Ciclo Agropecuário: 1994-1997 e 2000/2006 (Terras de Lavoura) Regiões 1994-1997 (Média Anual) 2000/2006 (Média Anual) Norte (-) 8,0 (+) 4,61 Nordeste (-) 10,0 (+) 4,72 Sudeste (-) 12,0 (+) 7,2 Sul (-) 10,6 (+) 11,36 Centro-Oeste (-) 13,1 (+) 9,40 Brasil (-) 11,2 (+)10,16 22 Fontes: Dados Primários FGV – Dados período 1994 a 1997 – elaborado in Delgago, G.C. e Flores, JF. (1998), op.cit. p. 23 e para o período 2000/2006, Cf. Gasques, J.G (2207), op.cit. p. 6 e 8. A Lei 8.029, de 12/04/1990 autoriza o Poder Executivo a extinguir o IAA, o IBC, o BNC e a fundir as empresas CFP, COBAL e CIBRAZEM numa única sucessora a CONAB. O saneamento financeiro dessas instituições virá mais adiante, no Governo FHC I, depois da reforma monetária do Real e do reconhecimento e transferência à Dívida Pública de passivos e desvios acumulados nessas instituições 23 Para uma importante análise documental desse processo ver ‘OS Passivos Contingentes e a Dívida Pública no Brasil – Evolução Recente (1996-2003) Texto para Discussão nº 107, IPEA, de autoria de Bolivar P. Filho e Maurício M Saboya, op.cit. 24 Entre 1982 a 1999 ocorrem vários processos externos e internos, a exemplo da gestão da Dívida Externa, que dificultaram a inserção do Brasil no comércio mundial. 25 Para uma análise mais exaustiva dos ciclos da economia em geral e da economia agrária em particular dos últimos 50 anos ver Delgado, G. “Do Capital Financeiro na Agricultura à Economia do Agronegócio – Mudanças Cíclicas em Meio Século (1965-2012)” -op.cit. 20 nova estratégia econômica e política de modernização técnica da agricultura, sem, porém, mudar a estrutura fundiária. Houve um virtual pacto entre as grandes cadeias agroindustriais, os grandes proprietários de terras e o Estado que reorganizou a auto denominada economia do agronegócio. 102. A reestruturação interna do agronegócio e a reinserção externa das exportações são contemporâneas ao crescimento acelerado do comércio mundial26, puxado pelo crescimento asiático, principalmente da China. O peso do ruralismo, na economia e na política de Estado, mudou substancialmente, sob influxo de estratégias públicas e privadas que se caracterizam por três alterações substanciais em comparação à década anterior: a. o Sistema Nacional de Crédito Rural retomou o crédito público bancário, como principal via de fomento da política agrícola, associada aos mecanismos de apoio e garantia da comercialização agropecuária (Política de Garantia de Preços Mínimos PGPM); b. o preço da terra e dos arrendamentos rurais subiu, de maneira substancial, em todas as regiões e para todos os tipos de terra, refletindo a alta das “commodities”. O aumento do preço da terra foi, também, afetado pela forte liquidez bancária, associada às subvenções da política agrícola e pela frouxidão da política fundiária, relativamente à regulação da estrutura fundiária; c. aprofundou-se a inserção externa das cadeias agroindustriais que manipulavam, com maior evidência, as vantagens comparativas naturais da matéria prima principal do seu processo produtivo. 103. A articulação da política pública agrária e das estratégias privadas de acumulação de capital, no espaço da agricultura e das cadeias agroindustriais, perseguindo lucro e renda da terra, constitui aquilo que denominamos reestruturação da economia do agronegócio, um novo pacto de economia política centrada na expansão primário-exportadora . 3 – Implicações Sociais e Ambientais da Nova Expansão Primário-exportadora 3.1. A dependência externa 104. Desde o início desta primeira década do século XXI, a orientação da política econômica comum aos Governos FHC II e Lula I e II, foi de conceder máxima prioridade às exportações primárias: produtos agropecuários, minerais e petróleo bruto. Desta forma, o País se relançou no comércio mundial em expansão, na condição de grande provedor de algumas “commodities” e, ao mesmo tempo, retrocedeu relativamente no comércio de manufaturados27. 105. Com essa nova especialização em “commodities”, reestruturam-se as várias cadeias produtivas ligadas às produções primárias da cana-de-açúcar (agroindústria sucroalcooleira), da soja e do milho (vinculados às rações animais), das florestas homogêneas plantadas (papel e celulose) e das carnes (bovinocultura, avicultura e suinocultura). Estas cadeias produtivas, em conjunto, expandem fortemente a produção e exportação das commodities. 106. Os novos papeis de abastecedor do etanol para as frotas automobilísticas do mundo, de provedor de matéria-prima mineral à expansão asiática e de fornecedor de rações e das 26 As exportações brasileiras entre 2000/2011, crescem de um patamar médio de 50,0 bilhões de dólares no quadriênio final da década (1995/98) para mais de 200,00 bilhões no últimos dois anos (2010/2011). 27 As exportações médias de “Manufaturados” no período 1995/99 representavam 56% do total, e os produtos “Básicos” e “Semi elaborados”, 44%, correspondentes ao que se costuma classificar de “primários”. Essa relação se inverte depois de nove anos: em 2008, os “primários” representavam 57,1%, e os “manufaturados”, 42,9%, conforme dados da “Conjuntura Econômica” – março de 2010. 21 carnes bovina, de aves e suína, que o setor primário brasileiro se propõe cumprir na agenda econômica externa brasileira, tem sido apresentados como solução para o problema do déficit externo, que se acumulou no período anterior, entre 1995 e 1999. 107. Esta seria, aparentemente, a solução conservadora virtuosa, para o relançamento do Brasil nos ventos da globalização financeira, sem precisar de qualquer mudança na estrutura agrária. Mas esse arranjo de relações externas, ainda que promova, num primeiro momento, a solução conjuntural ao comércio externo, não resolve, antes agrava a dependência por recursos externos da economia brasileira na indústria e nos serviços, que vem aprofundando suas posições deficitárias. Com isso, a partir de 2008, volta a situação do déficit das transações externas28, provocado, sobretudo, pela crescente perda da capacidade exportadora da Indústria e dos Serviços. No curto prazo, porém, as exportações primárias em expansão são motivo para atrair capitais externos, que dão solvência aos déficits das transações correntes e, ainda, proporcionam o fortalecimento das Reservas Internacionais. 108. A dependência do conjunto da economia pelas exportações primárias contém, porém várias armadilhas, além das relações externas desiguais. Nos campos fundiário, ambiental e social recolocam-se assimetrias, em termos de graves dilemas ao desenvolvimento, muito além de uma questão agrária de caráter setorial. 3.2. A armadilha da especialização primária exportadora para o desenvolvimento do Brasil. 109. A especialização primária no comércio mundial, sob orquestração interna do agronegócio e do setor mineral, tem funcionado como senha para reprodução de graves distorções do nosso sistema agrário. O problema mais grave desse estilo de expansão primária é resultado de três condições necessárias à sua consecução: a. a forte concentração da riqueza fundiária, sob a forma de especulação e apropriação das terras; b. a super exploração de recursos naturais, sob pressuposto da busca do equilíbrio externo a qualquer custo, com graves danos à saúde, ao meio ambiente e à segurança alimentar; c. a desocupação relativa e super exploração do trabalho assalariado nesse processo de expansão. 3.2.1 – Concentração e Supervalorização Fundiária. 110. A concentração e supervalorização das terras agrícolas, pecuárias e de reserva são fenômenos em parte conjunturais e, em parte, reflexo de uma estrutura agrária intocada e, também, inadimplente com as regras constitucionais da função social da propriedade. A valorização fundiária nesta década de 2000 reflete em parte o ciclo de valorização das “commodities” e a entrada expressiva do Brasil no comércio mundial, fato que é comum a outras economias capitalistas e se manifesta pelo incremento dos preços das terras e arrendamentos rurais. Mas, aqui entre nós, o processo de valorização é também incrementado pela forte injeção de dinheiro bancário, sob os auspícios do crédito rural oficial e da política comercial. 111. Por sua vez, a concentração fundiária no Brasil conta, de longa data, com o instituto da criminosa grilagem de terras públicas e devolutas, favorecida pelo permanente descontrole do poder público na execução legítima da política fundiária. 112. Exemplos recentes: 28 - O déficit em Conta Corrente do Brasil com o Exterior entre 2008 e 2011 é o seguinte em bilhões de doares: ano de 2008 28,2, ano de 2009 24,3, ano de 2010 47,5 e ano de 2011 56,4. 22 a. a MP 458/2009, convertida na Lei n.º 11.952/200929, legalizou 67,4 milhões de hectares de terras públicas a grileiros, autodenominados empresárias rurais, que ocupam ilegalmente terras da União; b. a não atualização, pelo poder Executivo, dos índices de produtividade, previstos na Lei Agrária (Lei n.º 8629/1993) como critério definidor da “propriedade produtiva”, não obstante sua desatualização óbvia, por serem, ainda, os do regime militar, baseados nos dados do Censo Agropecuário de 1975; c. a PEC n. 215/2000, recentemente aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, manifesta a pretensão dos ruralistas, no Congresso, de retirar do Poder Executivo a competência para demarcar terras indígenas. Se sancionada, vai enfraquecer os direitos dos povos indígenas e quilombolas, poderá atrasar, se não paralisar o processo de demarcação de suas terras, facilitando a concentração de terras na mão de grandes fazendeiros e grandes empresas transnacionais; d. a lei 11.284/2006 autorizou a concessão de uso de áreas imensas de florestas públicas para nelas, durante décadas, realizar o chamado manejo florestal, que o poder público não tem condições mínimas de fiscalizar; 113. o IBGE, no Censo Agropecuário mais recente (2006), indica o tamanho de concentração fundiária, por meio de conhecido indicador (Índice de GINI): o nível de concentração, praticamente, não se alterou entre 1996 e 200630, passando de 0,856 a 0,872, numa escala em que o máximo absoluto é 1 e o mínimo zero. Esta informação foi, posteriormente, retificada pelo próprio IBGE que, via internet, afirmou que o índice não variou em dez anos. 114. Sobre a terra de exploração imediata, os dados recentes do Censo Agropecuário dão conta do enorme incremento observado entre 1996 e 2006, quando a produção de “commodities” se expandiu, de maneira rápida e horizontal, especialmente, nos biomas dos Cerrados e Amazônia. O IBGE, porém, não registra a expansão da terra destinada à especulação que é muito maior e não aparece nos dados do Censo Agropecuário. Tratase de um movimento ilegal, no mercado de terras de grandes dimensões, resultado da velha instituição clandestina brasileira – a “grilagem” sobre terras públicas. 115. Podemos ter a noção do incrível tamanho do mercado de terras griladas, fazendo uma conta muito simples: Totalidades do território nacional 851 milhões de hectares Totalidade das terras de direito: a) total dos estabelecimentos recenseados; b) as terras indígenas, c) as unidades de conservação ambientais, d) as superfícies 541 milhões aquáticas, e) as zonas urbanos, f) os assentamentos rurais; g) as terras de órgãos de hectares públicos registradas “Outras ocupações” não registradas 310 milhões de hectares Ou seja, mais de um terço das terras do país foram, aparentemente, griladas ou estão cercadas, mas não pertencem a quem as cercou, pois são terras públicas devolutas ou 29 A MP 458 foi antecedida por várias iniciativas governamentais que gradativamente foram elevando a área máxima de alienação: Artigo 118 da Lei nº 11.196/05, elevou para 550ha; MP 422, emitida em março e aprovada em julho de 2008, permitiu ao INCRA titular diretamente, sem licitação, propriedades na Amazônia Legal com até 15 módulos rurais ou 1.500 hectares; MP 458 autoriza a União a licitar áreas excedentes às regularizáveis (15 módulos fiscais) até o limite de 2.500 hectares, dando preferência de compra aos seus ocupantes. 30 Censo Agropecuário de 2006 – Brasil, Grandes Regiões e Unidades da Federação p.109. 23 não. São, portanto, terras que, pela Constituição de 1988, deveriam ser destinadas à Reforma Agrária. 3.2.2. – Super exploração de Recursos Naturais 116. O estilo de expansão agrícola impelido pela demanda externa por “commodities” não é nova na nossa história econômica. A novidade está nesta sociedade urbana e industrial, relativamente madura do século XXI, deslocar seu eixo dinâmico de acumulação de capital para os setores produtores de “commodities”. 117. Com a justificativa de equacionar certo padrão de desequilíbrio externo, o País está caindo numa grave armadilha. A lógica dos mercados exige a completa “mercadorização” das terras e dos recursos naturais, essenciais à vida humana e animal. É a lógica de quem não se preocupa com as necessidades humanas nem com a prevenção dos riscos ambientais, lesando os direitos de toda sociedade e, de maneira especial, dos mais pobres. 118. A atual economia capitalista dos mercados - assim como foi a economia do socialismo real - guia-se por princípios do utilitarismo individual e maximização de resultados monetariamente mensuráveis. Aquilo que é dom gratuito de Deus e da natureza e não é produzido pelo trabalho humano (solos, águas, florestas, biomas e ecossistemas vitais etc.) é percebido pelos mercados só como “vantagens comparativas naturais”, a serem transformadas em mercadorias, ao menor custo monetário. Os custos sociais dessa conversão, como a perda da biodiversidade, o desbarrancamento e assoreamento dos rios, a poluição das águas, a destruição dos manguezais, os desmatamentos etc., são pagos, invisivelmente, por toda a população, enquanto os lucros ficam concentrados nas mãos dos produtores das “commodities” e proprietários das terras. Essa é a rígida norma da repartição dos mercados, submetida a “ética” utilitária compulsória do “reino das mercadorias”. 119. As recentes polêmicas no Congresso Nacional a respeito do Código Florestal, até chegar ao texto aprovado pela maioria, evidenciam, de forma muito clara, a ideia da super exploração de recursos naturais e da prioridade dos interesses imediatos a que tal orientação serve. Além de legalizar a impunidade de quem cometeu crimes ambientais. O que ainda não está claro para o conjunto da população são as consequências de tal estratégia privatista. A presidenta Dilma, ao vetar os artigos mais polêmicos, reacendeu a batalha com os ruralistas inconformados. 120. Há evidências múltiplas de uma “práxis” estritamente mercantil dilapidando patrimônios de recursos ambientais. O Texto Base da Campanha da Fraternidade de 2011 – “Fraternidade e a Vida no Planeta” é pródigo em identificar evidências neste sentido31, corroborando fortes indícios da ampliação dos desmatamentos, perda de recursos hídricos, contaminação por agrotóxicos, perda de biodiversidade etc. A sociedade, infelizmente, ainda não consegue enxergar quais os limites a tal tendência. São sentidos por todos como “mal-estar”, desconforto, mas, muitas vezes, apresentados à opinião pública como efeitos sem causa ou “caprichos da natureza”. 121. A discussão dos limites à depredação ambiental é politicamente difícil nos espaços institucionais, em grande medida porque há uma espécie de acordo invisível a privilegiar a acumulação de capital no setor primário da economia. A ideia de limites políticos, ao estilo estritamente mercantil dessa exploração, não encontra eco nas “bases políticas aliadas” que conferem maioria aos governos republicanos há pelos menos 12 31 Também a Campanha da Fraternidade de 2004 “ Fraternidade e água” e a de 2007 ”Fraternidade e Amazônia” documentaram, fartamente, os efeitos negativos, para a sociedade, deste modelo de exploração dos recursos naturais. 24 anos. O exemplo recente da tramitação do Código Florestal – de 2010 até o presente, é, como vimos, muito elucidativo neste sentido. 122. Devemos, sobretudo, ressaltar dois fatores que são consequência deste modelo de expansão agrícola que o Brasil vem praticando, com ênfase na última década: a. a elevação da produção de dióxido de carbono na atmosfera em razão dos desmatamentos e queimadas na agricultura32; b. a acelerada expansão do uso de agrotóxicos na agricultura (fungicidas, herbicidas e inseticidas), cujo volume de vendas entre 2003 e 2009 cresceu 129%33, o que equivale a um incremento médio anual de 15 % nesse período. O volume atual comercializado de agrotóxicos corresponde a mais de 900 mil toneladas de consumo anual, ou cerca de 4,5 litros de agrotóxicos por habitantes ano. 123. Esses dois indicadores refletem uma exploração de recursos naturais em plena aceleração. Preocupam-nos pelos graves riscos sociais e ambientais que acarretam. O primeiro - elevação do dióxido de carbono - em razão das já notórias implicações sobre um conjunto das mudanças climáticas planetárias; enquanto o segundo - super utilização dos agrotóxicos - pelas implicações de morbidade sobre os trabalhadores, contaminação dos alimentos, das águas e do meio ambiente em geral. 3.2.3. – Exploração de Trabalhadores – Desocupação e Super exploração 124. A CPT levanta, sistematicamente, desde 1985, os conflitos agrários, nos quais a posse da terra e o regime de trabalho vitimam milhares de trabalhadores. Também o documento da CNBB “Igreja e problemas da terra”, em 1980, já denunciava a existência do trabalho escravo. A essa dimensão da exploração do trabalho, precisamos agregar outros enfoques de exploração do trabalho humano como está acontecendo atualmente. 125. A expansão agrícola da qual acabamos de falar, não está promovendo um movimento simultâneo de crescimento do “Pessoal Ocupado na Agropecuária”, como é chamado pelo IBGE. Apesar das “Áreas de Lavoura”, terem aumentado em mais de 43%, entre o Censo de 1996 e o de 200634, o IBGE registrou uma forte queda nos indicadores da ocupação agrícola. O fenômeno da redução das ocupações agrícolas não é novo e se confirma a cada novo Censo. Contudo, a correlação claramente negativa entre a expansão agrícola do Produto e/ou das Áreas exploradas com as ocupações evidencia, ainda mais, a perda de relevância do emprego agrícola na chamada economia empresarial do agronegócio. Há indicações que não podem ser comparadas tecnicamente, de que a perda maior de postos de trabalho aconteceu no segmento do agronegócio e não na Agricultura Familiar35. 126. Os “estabelecimentos não familiares”, como são definidos pelo Censo, ocupam apenas ¼ do total dos trabalhadores, mas o que mais agrava a situação trabalhista são dois fatores, aparentemente contraditórios: a prescindibilidade e a super exploração. 32 O texto base da Campanha da Fraternidade de 2011 indica, citando fontes, que “50% das emissões de gases do efeito estufa no Brasil, diferentemente do resto do mundo, são resultantes de desmatamentos e queimadas” (op.cit. p. 33). 33 O volume da venda de agrotóxicos no Brasil, que passa a ser o maior consumidor mundial, cresce de 3,1 bilhões de dólares em 2003 para 7,1 em 2009, segundo dados da ANDEF (internet). 34 A expansão física das “Áreas de Lavoura” entre os Censos de 1996 e 2006 varia de 41,79 milhões de hectares para 59,87 (43,7%), que corresponde a ritmo de incremento de 4,0% a.a., padrão que vem se mantendo nos anos mais recentes. Por outro lado, o “Pessoal Ocupado na Agricultura” no mesmo período censitário, decresce de 17,76 milhões de pessoas em 1996 para 16,57 em 2006. 35 O Censo da Agricultura Familiar pela primeira vez foi realizado em 2006, não sendo possível comparações retrospectivas. 25 127. Do primeiro fator, há uma vasta quantidade de indicadores empíricos que atestam, na economia empresarial, a presença simultânea de inovações mecânicas, químicas e biológicas que substituem, cada vez mais, o trabalho direto na agricultura. 128. Por outro lado, a massa, sempre decrescente, de trabalhadores assalariados permanentes e temporários - que a economia de agronegócio contrata para as tarefas indispensáveis da produção é, conforme vários indicadores, submetida a condições de exploração excessiva. Há evidências de jornadas de trabalho extenuantes impostas pelo regime de quotas de produção (sobretudo, na colheita de cana-de-açúcar) ou pela exposição a riscos de contaminação com agrotóxicos e outros danos à saúde humana. Isto tem provocado um forte aumento de doenças no trabalho na zona rural, pelo que mostram as perícias médicas do INSS. 129. A evolução dos “auxílios-doença” concedidos ou “em manutenção” para os segurados rurais e urbanos da Previdência entre 2000 e 200936 revela como que a ponta de um grave “iceberg” que merece aprofundamento. Entre 2000 e 2005, cresceram mais de 100% os auxílios-doença, cujas causas, identificadas em perícias médicas, apontam, como principais tipos de enfermidade, as “Doenças Osteomusculares”, “Envenenamentos e Acidentes” e “Transtornos Mentais e Comportamentais”37. Este patamar manteve-se ao longo dos anos seguintes. 130. Podemos concluir que os novos papeis e as formas de inserção dependente da economia brasileira na economia mundial contribuem para o agravamento da tensão entre “terra de trabalho” e “terra de exploração”, antinomia básica que, na leitura da CNBB, em 1980 (“Igreja e problemas da terra”), já constituía o cerne da Questão Agrária de então e continua sendo o cerne da Questão Agrária de hoje. 36 Tabela 2 – Quantidade de Auxílios Doenças em Manutenção de 1998 a 2009 (mil unidades) Auxílios Base ∆% de 2007/2009 ∆ de 2007-2009 Doenças e Inicial: 2005 2005 Base (média) sobre Base Acidentes 1998/2000 Inicial Inicial Rural 68,6 163,5 138,3 141,4 106,1 Urbano 744,1 1.733,7 132,9 1.465,3 96,9 Total 812,7 1.897,2 133,4 1.606,7 97,7 Fonte: Anuário Estatístico da Previdência Social - emitidos em 31/12/2009 e Suplemento Histórico – 1980-2008 37 Tabela 3 – Causas Apuradas de todos os Auxílios Doenças e Acidentes Concedidos em Dois Anos – 1999 a 2005 (%) Capítulos do CID Auxílios Doença Auxílios Acidente 1999 2005 1999 2005 Doenças do sistema osteo-muscular (Cap. XIII) e do tecido 19,2 31,5 15,6 16,1 conjuntivo Lesões, envenenamento e consequências de causas externas 21,9 18,5 78,1 78,3 (Cap. XIX) Transtornos Mentais e comportamentais (Cap. V) 7,5 11,6 --Doenças do Sistema Nervoso 2,3 3,0 1,2 1,4 Doenças do Aparelho Circulatório (Cap. IV) 12,8 10,3 --Fatores que influenciam o Estado de Saúde (Cap. XXI) 12,9 2,7 1,5 1,0 Subtotal 76,6% 77,6% 96,4% 96,8% Demais Capítulos do CID 23,4 22,4 3,6 3,2 TOTAL 100,00 100,00 100,00 100,00 Fonte: Tabelas 31 e 47 do “Relatório Final – Avaliação dos Benefícios por Incapacidade ...” (op.cit.), Cf. Piola, Sergio e Servo, Luciana (2007) 26 4 – A reação do estado diante dos conflitos no campo 131. Desde 1980, a sociedade brasileira viveu mudanças políticas muito importantes, passando da ditadura militar para o estado democrático de direito. Porém, a tudo isso não correspondeu uma democratização do acesso à terra, nem a uma melhor distribuição da riqueza primária. A inegável melhoria na qualidade de vida da população, veio muito mais da valorização do salário mínimo e dos direitos sociais introduzidos pela Constituição de 1998, ainda que a propaganda o atribua aos auxílios sociais de determinados programas governamentais. Das sempre prometidas reformas – política, tributária, previdenciária, trabalhista, agrária e judiciária- só foi levada, parcialmente, a termo a reforma previdenciária à custa, sobretudo, dos trabalhadores do setor privado. A reação dos poderes públicos seguiu, coerentemente, igual orientação. 4.1 A reação do poder judiciário 132. É evidente a progressiva criminalização dos movimentos sociais no campo. O que era combatido em tempos de ditadura militar como atitude antidemocrática, acabou continuando em tempos de estado de direito. Reconhecemos a atitude coerente e democrática de muitos juízes, porém o poder judiciário tem uma grande parcela de responsabilidade neste processo de criminalização, como podemos perceber nos registros de dados coletados, sistematicamente, pela CPT. Em vários estados a sociedade civil realizou importantes eventos, conhecidos como “Tribunal da Terra”, que levaram ao debate público a atitude do poder judiciário e sua responsabilidade nos conflitos agrários. 133. Um dado preocupante é a relação, na violência contra a posse, entre as expulsões de posseiros, operadas por capangas e milícias armadas do latifúndio e os despejos de posseiros feitos por ordem judicial. De 1985 a 2010, estes dados, em números absolutos, indicam, de um lado, a redução das expulsões, ao longo dos anos e, do outro, o aumento vertiginoso dos despejos judiciais: EM NÚMEROS ABSOLUTOS GOVERNOS EXPULSÕES DESPEJOS SARNEY 49.063 10.878 COLLOR 35.124 14.693 ITAMAR 19.983 32.926 CARDOSO 16.992 114.442 LULA 21.426 161.332 134. A mesma realidade se confirma quando é feita a média anual de expulsões e despejos em cada governo: 27 MÉDIA ANUAL GOVERNOS EXPULSÕES DESPEJOS SARNEY 9.813 2.176 COLLOR 11.708 4.898 ITAMAR 9.992 16.463 CARDOSO 2.124 14.305 LULA 2.678 20.167 135. É inquietante constatar que a partir do governo Itamar os despejos superam as expulsões. No governo Itamar os despejos foram 1,6 vezes às expulsões; no governo Cardoso os despejos foram 6,7 vezes às expulsões e no governo Lula os despejos foram 7,5 vezes às expulsões. Tudo indica que o latifúndio não precisa mais do braço armado, como nos tempos da UDR (União Democrática Ruralista). Hoje basta a caneta de um juiz. 136. O INCRA diz que, ao todo, foram assentadas 931.730 famílias. A CPT afirma que o poder judiciário despejou 341.304 famílias e a violência do latifúndio expulsou outras 144.725. Mais da metade! 137. Chama atenção que, em muitos casos, as decisões judiciais são tomadas liminarmente, sem que a outra parte seja sequer ouvida. Pela dinâmica do processo judiciário, muitos são os casos nos quais estas liminares acabam se tornando verdadeira sentença definitiva pela dificuldade que os posseiros encontram em recorrer às instâncias superiores, sobretudo, porque, tendo perdido suas posses não tem como sustentar suas famílias. 138. Outra causa importante destas ocorrências se dá pelo fato dos grileiros conseguirem documentos cartoriais, às vezes irregulares e até forjados. Documentos que são considerados de fé pública, mesmo quando toda a sociedade sabe que a “grilagem cartorial” foi e continua sendo um costume corriqueiro em nosso País. 139. A tudo isso, é preciso acrescentar o desconhecimento de muitos operadores de justiça, da legislação fundiária que regula a posse em terras públicas. Eles, quase sempre, argumentam a partir dos dispositivos gerais do código civil, menosprezando a legislação agrária específica. Isto vale, também, no que diz respeito ao direito ambiental e mineral. É uma lástima constatar que estas disciplinas só constam na grade curricular de poucas universidades. 4.2 – A reação do poder legislativo 140. O poder legislativo, também, não fez o dever de casa. A Constituição Federal dispunha que: “serão revistos pelo Congresso Nacional, através de Comissão mista, nos três anos a contar da data da promulgação da Constituição, todas as doações, vendas e concessões de terras públicas com área superior a três mil hectares, realizadas no período de 1º de janeiro de 1962 a 31 de dezembro de 1987” (CF-ADCT, Art. 51). Não há informação de que o Congresso Nacional tenha realizado esta incumbência. 141. A presença, sempre muito forte, da bancada ruralista, no Congresso Nacional, fez com que projetos de interesse popular e das comunidades do campo fossem longamente protelados e até esquecidos. Direitos constitucionais conquistados pelas populações indígenas e quilombolas estão sofrendo pressão e graves ameaças. Na reformulação do Código Florestal e do Código Mineral transparece claramente a força e os interesses do 28 capital sobrepondo-se aos interesses das populações tradicionais e dos legítimos posseiros, ocupantes das terras públicas. 142. As várias CPIs que foram instaladas para combater a grilagem de terras públicas no Brasil e, de maneira especial, na Amazônia, mesmo encontrando inúmeras irregularidades e ilegalidades, não produziram os resultados esperados. Pelo contrário, o próprio congresso, ao aprovar as leis de concessão de uso das florestas públicas (11.284/2006) e a lei da regularização fundiária na Amazônia (11.952/2009), acabou facilitando e legalizando a ocupação criminal das terras públicas, e legalizando a impunidade. 143. Outro processo legislativo que está gerando polêmica é aquele que diz respeito à aquisição de áreas rurais e suas utilizações, no Brasil, por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras. O relatório apresentado, em Outubro de 2011, pela Subcomissão encarregada do assunto deixou claro que não se conhecem as reais dimensões das grandes extensões de terras no domínio de estrangeiros e que os dados do INCRA, que falam em 4 milhões de hectares, são defasados, devendo ser multiplicados pelo menos por três. A prática atual de criar empresas laranja em nome de brasileiro serve para maquiar a realidade. A subcomissão concluiu pela necessidade de se estabelecer um marco regulatório que garanta a segurança jurídica aos investidores estrangeiros, sem inviabilizar o investimento produtivo, desde que seja garantida a soberania e a segurança alimentar nacionais. Como sempre, nestes casos, o argumento ético é a necessidade de se alimentar a 1 bilhão de pessoas, que, toda a noite, se deitam com fome. Mas a realidade é a lucratividade do empreendimento, uma vez que o relatório do Banco Mundial, de setembro de 2011, informava que os preços dos alimentos estavam, em média, 33% acima dos registrados no ano de 2010. No caso do milho, o aumento foi de 84%; do açúcar, de 62%; do trigo, de 55%; e o do óleo de soja, de 47%. Daí a cobiça pelas nossas terras. 4.3 – A reação do poder executivo 144. Muito já foi falado a respeito das decisões tomadas pelo poder executivo, mas temos outras considerações a fazer sobre as mudanças que ocorreram nestas três décadas e que exigem nossa atenção pastoral. As mais significativas são as mudanças na relação com os movimentos populares no campo e na cidade. 145. Em 1980, o único instrumento de defesa dos trabalhadores, admitido legalmente pelo poder militar, era a organização sindical. Num primeiro momento nossa atenção pastoral foi dirigida no sentido de colaborar em desatrelar os sindicatos dos trabalhadores rurais dos arreios do poder e transformá-los em organizações combativas, preocupadas com a totalidade da vida camponesa e suas reivindicações. Ao longo do caminho, foram criadas e se fortaleceram outras organizações preocupadas com os interesses concretos de grandes setores da sociedade camponesa. Notável foi a participação direta das mulheres camponesas, que se organizaram de forma autônoma, mas sempre articuladas com todos os outros movimentos sociais e populares do campo, contribuindo para democratizar sua organização interna e para incorporar às bandeiras de luta às urgências concretas vividas pelas famílias e comunidades. 146. A força da articulação destes movimentos foi atacada, na busca de enfraquecê-las, pelas chamadas “políticas sociais” do governo Cardoso, políticas que cresceram ainda mais no governo Lula e, atualmente, no governo Dilma. Algumas características, na gestão destas políticas, precisam ser avaliadas com critério. A primeira é que o movimento sindical organizado não tem poder de interlocutor na decisão e na administração das políticas públicas. O grande volume de dinheiro que estas políticas levam até à população mais pobre, passa, sobretudo, pelos municípios e por associações criadas 29 para este fim, muitas vezes, de cima para baixo e a partir de interesses partidários. Vimos, assim, multiplicarem-se o número de associações de produtores e de cooperativas, sobretudo nos assentamentos, disputando entre si a gestão destes recursos. O que poderia, à primeira vista, representar um maior poder organizativo da sociedade, em muitos casos, configura-se numa fragmentação que esgarça e enfraquece a ação da sociedade. 147. O movimento sindical, pelo qual não passam os recursos, acabou, na maioria dos casos, sendo deixado de lado por muitos sócios que o utilizam somente nas relações com o INSS, único órgão público que dá importância ao papel do STR. Vários outros movimentos, também, acabaram enfraquecidos, pois, para manter suas atividades, tiveram que realizar convênios com os poderes públicos e, com isso, sofrem constantes pressões de cooptação e de redução de seu poder de resistência concreta. O uso políticopartidário das inúmeras organizações é uma praga que se alastrou por todo o País. Sem esquecer que, muitas vezes, estas mesmas organizações, são usadas, por sua conivência ou por sua ingenuidade, na prática de desvio dos recursos públicos. 148. Precisamos, porém, destacar que, atualmente, vem amadurecendo no seio dos movimentos sociais agrários uma forte tendência que visa a construção de uma agenda unitária em defesa da terra, da autonomia camponesa, face as política para o agronegócio, e de articulação de projetos de um desenvolvimento alternativo ao da economia do agronegócio. O “Encontro Nacional dos Povos da Terra, das Águas e da Floresta”, realizado em agosto de 2012 em Brasília e replicado em vários Estados, reflete uma saudável busca por caminhos alternativos do desenvolvimento rural. 149. É por isso que, diante deste quadro, precisamos assumir nosso compromisso profético de anunciar uma palavra de vida e de verdade, inspirados pela Palavra do Senhor e na fidelidade ao magistério eclesial. A verdade nos libertará. 30 3ª Parte: DESCI PARA LIBERTÁ-LOS (Êx 3,8) 150. Uma certeza norteia nossa ação pastoral: “as ovelhas escutam a sua voz, ele chama cada uma pelo nome e as leva para fora. E depois de fazer sair todas as que são suas, ele caminha a sua frente e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz. A um estranho, porém, não seguem, mas fogem dele, porque não conhecem a voz dos estranhos” (Jo 10,3-5). A nossa voz só consegue conduzir o povo de Deus quando é eco da voz de Jesus, bom pastor. Depois de escutar o gemido, muitas vezes abafado, que sai da terra e dos pobres da terra, depois de ver porque a vida da terra está ameaçada, assim como ameaçada está a vida dos pequenos que vivem e trabalham na terra, nos sentimos desafiados, também, a buscar novos paradigmas para encontrar, com sabedoria, o melhor caminho diante desta encruzilhada civilizatória na qual estamos vivendo. Com a consciência de não sermos os donos de todas as respostas e sabendo que a humanidade precisa da contribuição de todas as pessoas de boa vontade, nós cristãos buscamos critérios e valores, sobretudo, na memória contida na Sagrada Escritura que é o fundamento da nossa “sabedoria” e para lá temos sempre que voltar, como “um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas” (Mt 13,52). Essa sabedoria quer se somar à sabedoria que vem das experiências milenares dos diversos povos e dos diversos ramos dos estudos científicos. O nosso Deus 151. A memória paradigmática, guardada nas Sagradas Escrituras nos lembra que, de geração em geração, a revelação e o conhecimento do nome/rosto do nosso Deus passa pela sua ação vivificadora, ao reconhecer e atender o grito dos oprimidos: “Eu ouvi os gemidos dos israelitas que os egípcios escravizaram, e lembrei-me da minha aliança. Dize, portanto, aos israelitas: Eu sou o SENHOR. Eu vos tirarei dos trabalhos impostos pelos egípcios, vos libertarei da escravidão e vos resgatarei com braço estendido e com grandiosos atos de juízo. Eu vos tomarei como meu povo e serei o vosso Deus. Assim sabereis que eu sou o SENHOR, vosso Deus que vos liberta” (Êx 6,5-7). 152. A presença do SENHOR na história do povo será sempre marcada pela fidelidade permanente à aliança estabelecida entre Ele e o povo sofrido; aliança que, ao longo da história, se manifestou e continua se manifestando nas três ações divinas, celebradas desde a memória da revelação do SENHOR a Moisés no monte Horeb, quando Ele se apresentou como o Deus que vê, ouve, e conhece as angústias e o sofrimento dos oprimidos; o Deus que desce para dar-lhes terra, vida e liberdade, e o Deus que envia seus profetas com a mesma missão de defender a vida do povo sofrido (Êx 3,7-10). 153. Hoje, mais uma vez, somos provocados por esta palavra a nos fazermos ouvintes atentos dos clamores que saem do povo brasileiro, assumindo o compromisso de nos tornarmos, pela força do Espírito Santo e na fidelidade à palavra de Deus, operadores de vida e de liberdade para todas as pessoas. Uma história de luta e resistência 154. A história da Salvação, revelada através das Sagradas Escrituras, mostra que, desde o começo, na constituição do povo, a terra e a água são dons que se conquistam e se partilham. O acesso do povo ao uso da terra e da água sempre foi marcado por conflitos e tensões. O poço, fonte de vida essencial naqueles lugares semiáridos, foi presença central na história das matriarcas e patriarcas de Israel. Para Agar, Rebeca, Raquel, 31 155. 156. 157. 158. 159. 160. 161. 162. Séfora, Abraão, Isaac, Jacó e Moisés os poços foram o lugar da revelação de Deus, lugar de vida e de encontros e, ao mesmo tempo, lugar de disputa e conflito. Quando as terras e as águas passaram a ser controladas pelos mais fortes, pelos reis e colocadas a serviço dos interesses de poucos, à custa da opressão do povo do campo, pesadamente tributado ou reduzido à escravidão, a história da salvação registrou as inúmeras lutas do povo para garantir o direito de todos as pessoas a viver da herança de Deus. A luta paradigmática entre Moisés e o faraó para que o povo conquistasse a liberdade em busca de uma terra fértil e espaçosa, terra de leite e de mel, tornou-se o centro da fé de Israel, sua memória fundante. A ela foram indissoluvelmente ligadas as festas da Páscoa, a celebração da aliança com Deus, a legislação sempre atenta aos direitos dos mais fracos e dos mais pobres e o critério de discernimento profético presente na história. Os conflitos entre Josué e os reis de Canaã, entre os juízes e os invasores, entre os profetas e o estado dominador e concentrador, entre os Macabeus e os reis gregos, entre Jesus e o templo sadocita, aliado dos romanos e explorador do povo, são memórias de salvação que nos revelam o rosto do nosso Deus, magistralmente descrito nas palavras de Judite: “Tu és o Deus dos humilhados, o socorro dos oprimidos, o protetor dos fracos, o abrigo dos abandonados, o salvador dos desesperados” (Jd 9,11). O grito de Jesus na cruz retoma e condensa os gemidos seculares do povo sofrido: “Deus meu, Deus meu por que me abandonaste?” (Sl 22,1; Mc 15,34). A este grito o Pai responde manifestando sua vontade com a ressurreição de Jesus e revela, assim, definitivamente, ao lado de quem está com seu poder de vida: “Aquele que conduz à vida, vós o mataste, mas Deus o ressuscitou dos mortos, e disso nós somos testemunhas” (At 3,15). A história da salvação nos revela que o nosso Deus não legitima e não compactua com nenhum projeto de dominação e de opressão. Ele sempre estará do lado do humilhado e do oprimido a quem chamará carinhosamente de “meu povo”. - “SENHOR, quem é semelhante a ti que livra do mais forte o indefeso, o pobre e o desvalido, de quem o explora?” (Sl 35,10) - e que sua vontade é que “os humildes herdarão a terra, vão se alegrar com uma paz imensa” (Sl 37,11; Mt 5, 4). Esta história de conflito não é a única vertente a ser considerada. A palavra profética, tão dura contra quem é causa da injustiça e do sofrimento do mais fraco, torna-se extremamente exigente quando requer de todos nós que nos convertamos à solidariedade e à fraternidade, abandonando todo sentimento de cobiça e de ganância, abrindo nossas mãos generosamente aos pobres, que sempre teremos entre nós (Dt 15,711), repudiando todas as formas de escravidão, de dominação, de discriminação, até que se realize o sonho do Pai e da comunidade: “Para que não haja pobres em teu meio, pois o SENHOR seguramente te abençoará na terra que o SENHOR teu Deus te dá em herança para que dela tomes posse, com a condição de obedecer à voz do SENHOR teu Deus” (Dt 15,4-5). É desta história da salvação que todas as comunidades eclesiais devem beber, descobrindo, atualizando e vivenciando os valores e os critérios essenciais e que foram guardados, com todo cuidado, pelo magistério da Igreja. Sua aceitação e observância farão com que nossa história continue, ao longo dos tempos, sendo história de salvação. A sabedoria teológica, fruto desta história, nos leva a aceitar, proclamar e reviver valores importantíssimos que dizem respeito à posse e ao uso da terra e de suas riquezas e que, mesmo depois de tantos séculos, continuam exigindo nossa fidelidade por ser critério de nossa ação pastoral e parte integrante do nosso anúncio evangelizador. 32 A terra é dom de Deus Pai para todos os seus filhos e filhas, sem exclusão 163. Muitas vezes, ao falar da terra do trabalhador, as Sagradas Escrituras usam a palavra “herança” para indicar o direito inalienável que todos tem de viver e de gozar dos frutos da terra e de seu trabalho. É a palavra identificadora da posse da terra que é “recebida em herança” e deve ser “deixada em herança”. A preocupação com as futuras gerações é sempre presente. Inúmeras vezes os textos bíblicos repetem como um refrão: “de geração em geração”. É nossa responsabilidade entregar às futuras gerações, junto com o testemunho da fé que nossos pais e mães vivenciaram, também, a terra que de Deus e de nossos pais herdamos para nela habitar e a possamos deixar em herança, bela e benfazeja, aos nossos filhos e aos filhos dos nossos filhos, de geração em geração. 164. A terra não pode ser transformada em simples mercadoria para produzir lucros, através da especulação ou da exploração do trabalho. “As terras não se venderão a título definitivo, porque a terra é minha, e vós sois estrangeiros e meus agregados” (Lv 25,23). Quando a propriedade e o uso da terra forem causa de pobreza e de opressão para as pessoas, nós temos a certeza que a aliança com Deus foi rompida, que sua vontade foi desobedecida e que o pecado domina nossas relações. 165. A propriedade da terra não pode ser reduzida a uma mera questão jurídica. A visão bíblica nada tem a ver com o conceito absoluto de propriedade individual - exclusivo da cultura ocidental mercantilista e capitalista - pelo qual alguém pode usar, gozar e dispor como quiser de um bem que é seu. A posse da terra é, em primeiro lugar, uma afirmação de fé, pela qual proclamamos que o único e verdadeiro “dono” da terra é Deus e que todos os seus filhos e filhas tem direito a esta herança. Criação como “re-criação” permanente da vida 166. “E Deus viu tudo quanto havia feito e eis que era muito bom” (Gn 1,31). Nesta primeira memória da criação (Gn 1,1-2,4a) que abre a Sagrada Escritura o “bom” é o fruto da ação de Deus: é a vida que, pela palavra divina, venceu as forças primordiais da morte representadas, na mitologia antiga, pelo deserto, pelas trevas e pelo abismo38 (Gn 1,2). 167. Boa é a luz que vence as trevas; bom é o firmamento que divide as águas; boa é a terra com suas plantas e suas sementes que vencem o deserto. Bons são os luzeiros do céu que farão com que a luz continue vencendo as trevas, ao longo dos tempos e marcando o ritmo da vida; bons são os peixes e os pássaros, forças vivas e abençoadas para fervilhar nas águas e para voar sobre a terra; bons são os animais de todas as espécies que, tendo uma alma vivente, abençoados e fecundos, se multiplicarão sobre a terra. 168. Muito bom é “Adam”, homem e mulher, imagem de Deus, abençoados para continuar a obra de Deus, “submetendo a terra e dominando os demais seres vivos” com paixão criadora e amorosa, renovando, ao longo da história, a obra de transformar tudo que for trevas, abismo e deserto, em luz, água e terra boa para se viver, em vista da felicidade de todos os seres vivos, de todas as pessoas, para que a morte não venha nunca a ter a última palavra e tudo possa continuar sendo bom, muito bom. 169. Mesmo que os verbos “submeter” e “dominar” (Gn 1,28) indiquem uma dominação absoluta, não é correto interpretá-los como legitimadores de um falso antropocentrismo que só valoriza a natureza, enquanto serve aos homens e que nos autoriza a fazer da natureza o que bem entendermos. A mulher e o homem, feitos à sua imagem e semelhança (Gn 1,16.22) receberam de Deus a vocação a ser vida, gerar a vida e defender a vida: é a vocação primordial que une entre si, sem distinção alguma, todos os seres humanos ou, como diz o livro da Apocalipse: todos os povos, tribos, línguas e nações (Apoc 7,9). 38 Só no primeiro capítulo do Gênesis o texto bíblico usa 27 vezes o radical hebraico HaYaH = viver, existir 33 170. A criação não terminou com o descanso de Deus no sétimo dia. O que Ele iniciou continua ao longo dos tempos pela nossa ação, animada pela força do Espírito Santo. A Bíblia usa as palavras “Espírito de vida” para indicar tudo o que vive e se move. O salmo 104,30 suplica ”Envias teu Espírito e tudo será criado e renovas a face da terra”. É assim que, desde o princípio, a força da vida vem enfrentando todas as formas da morte, num processo permanente de criação e recriação, até o fim da história, até vermos “novos céus e nova terra e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor” e o Espírito e a esposa, celebrarão a vinda do Senhor (Apoc 22,1-17) e tudo será, definitivamente, bom, muito bom. 171. É nossa responsabilidade, como imagens vivas do Deus invisível, contribuir para que tudo que existe seja fonte de vida abundante para todas as pessoas. Este é o verdadeiro sentido da bênção de Deus “Submetei a terra”. Não temos o direito de concentrar as riquezas, de devastar a natureza. Se Deus colocou tudo aos nossos pés é para que seja manifesto quão grande é o nome de Deus em toda a terra e quanto Ele nos ama (Sl 8,39). 172. A plena compreensão da nossa missão como imagens de Deus, nos vem pela incorporação a Jesus, verdadeira e completa imagem de Deus. Como nos disse o apóstolo na carta aos Colossenses: “Ele é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; pois é nele que foram criadas todas as coisas nos céus e na terra. Tudo foi criado por ele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas e nele todas as coisas tem consistência”. (Col 1,15-17). 173. Dominar a terra, então, significa fazer com que toda a criação participe do plano amoroso que Deus tinha quando criou tudo que existe: “Colocar Cristo como cabeça de tudo o que existe no céu e na terra” (Ef 1,10). Submeter a terra significa conduzir tudo e todos a Jesus, ao seu Reino de vida e de luz, no qual todas as pessoas tenham a vida, a paz, a abundância, sem distinção de raça, credos, classes sociais. 174. É o que a criação toda espera de nós que, com Cristo, em Cristo e por Cristo, somos a imagem de Deus na terra. “A criação espera ansiosamente a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8,19). Assim saberemos que o gemido de dor da criação é na realidade um gemido de parto (Rm 8,22), sinal supremo de vida e de invencível esperança (Jo 16,222). 175. Na contramão do pensamento greco-romano que afirmava ser a natureza algo totalmente inanimado e, por isso, subordinada aos interesses dos humanos racionais, a carta aos Romanos afirma que a criação está indissoluvelmente ligada aos seres humanos: conosco ela geme, conosco ela espera, conosco ela anseia, conosco ela sofre. No horizonte da humanidade e da criação está a mesma esperança de serem libertados da “escravidão da corrupção39, em vista da liberdade que é a glória dos filhos de Deus” (Rm 8,21). É preciso “aguardar com perseverança” tudo que nós esperamos. Não é a esperança de quem sonha e pode se iludir. Esperança é certeza que a vida vai vencer sempre e, por isso, produz nossa perseverança, nossa resistência, na luta contra todas as forças da morte (Rm 8,24-25). 176. O Espírito que, desde o princípio, está na origem da vida, une seus gemidos aos nossos gemidos e aos gemidos da criação e vem em socorro da nossa fraqueza, diante de um desafio tão grande (Rm 8,26-27). As comunidades eclesiais, alimentadas pela certeza que tudo “concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8, 28), deverão sempre ser as testemunhas do ressuscitado, viver segundo a “nova criatura”, buscando sempre, em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, contra os falsos reinos geradores de injustiça e de morte. É o que o Espírito nos impele a fazer. Lutar, como Jesus, em favor 39 O termo grego ftorá significa, sobretudo, destruição, ruína, aniquilamento, devastação. 34 da vida, contra todas as forças caóticas da morte e da exclusão, buscando fazer com que a criação toda possa alcançar a plenitude da vida que nela é contida. Deus criador, Deus libertador 177. Fiel a esta memória da salvação, em momento nenhum, a Sagrada Escritura separa a fé no Deus criador da fé no Deus libertador que, como vimos, ao longo da história, continua eternamente fiel, ao lado dos pequeninos e dos últimos com seu poder de vida. A bondade benfazeja e providente do Pai, fonte de vida e de alegria para seu povo (Sl 65,10-14; 68, 9-10; 104,1-35) e sua presença ao lado do pobre para que o direito e a justiça reinem para sempre (Sl 89,11-14; 96,10-13; 98,7-9; 136,1-14; 147,6-9) são as duas certezas que animaram e continuam animando a resistência dos pobres. Feliz quem recebe auxílio do Deus de Jacó, quem espera no SENHOR seu Deus, criador do céu e da terra,do mar e de quanto contém. Ele é fiel para sempre, faz justiça aos oprimidos, dá alimento a quem tem fome. O SENHOR livra os prisioneiros, o SENHOR devolve a vista aos cegos, o SENHOR levanta quem caiu, o SENHOR ama os justos, o SENHOR protege os migrantes, ampara o órfão e a viúva (Sl 146,5-9). 178. Quantas vezes, nas nossas liturgias, nós proclamamos: Meu auxílio vem do Senhor que fez o céu e a terra (Sl 121,2)! Tudo que existe proclama: “Teu reino é reino de todos os séculos, teu domínio se estende a todas as gerações” (Sl 145, 13). “Do SENHOR é a terra com o que ela contém, o universo e os que nele habitam” (Sl 24,1-2). Nenhum poder na história humana conseguirá tirar de Deus este reino eterno. Ele, no seu imenso amor e fidelidade, o entregou a todas as pessoas como sinal da sua bondade e da sua vida. 179. A fidelidade ao nosso Deus e a fidelidade ao povo, de maneira especial, aos mais pobres, exige de nós a teimosa persistência de recriar as condições para que o céu, a água e a terra continuem sendo vivos e fonte de vida para todas as pessoas. No meio das dolorosas contradições da história, o caminho do Povo de Deus terá sempre como horizonte os “novos céus e a nova terra” (Is 65,17; 66,22) a serem buscados e construídos com a força, sempre presente, do sopro vivificador de Deus que “renova a face da terra” (Sl 104,30). Chegaremos, assim, à nova Jerusalém, a cidade-jardim do fim da história. Suas imensas dimensões40 nos indicam que não se trata de uma cidade privilegiada, isolada e santa, mas é o Reino de Deus que vem substituir o império dominador que persegue e esmaga os santos de Deus, embebedando-se com o sangue dos mártires. Suas doze portas, sempre abertas, suas terras férteis, atravessadas por um rio de água viva, suas praças que mais parecem pomares, cheios de árvores da vida, dando fruto doze vezes ao ano, carregados de folhas medicinais, sem trevas, sem mar e sem deserto, apontam para uma terra fértil e espaçosa, onde todos possam viver em paz e se amar, assim como se amam o Espírito e a Esposa. Terra: a nossa mãe e nossa irmã 180. Esta relação, que chamamos de paixão criadora e amorosa, é sublinhada com muita clareza na segunda memória da criação guardada na Sagrada Escritura (Gn 2,4b-25). Esta página, ainda mais antiga, nos fala de Adam que é formado do solo e vivificado pelo sopro divino e que é colocado no jardim do Éden para “o cultivar e guardar”. Esta tradução não deve nos 40 Cada lado mede 12.000 estádios = 2.200 Km (Apoc 21,16). 2.200 Km é a distância aproximada, em línea reta, entre Jerusalém e Roma, na direção leste-oeste e da Trácia até a Etiópia, na direção norte-sul, cobrindo, assim, 2 toda a parte oriental do império romano Seria uma cidade de 4.480.000 Km : mais da metade do Brasil! 35 fazer esquecer que o significado destes dois verbos não pode ser reduzido ao aspecto produtivo ou econômico. Estes dois verbos tem o sentido profundo e originário de “servir” e “cuidar, guardar, obedecer”41. São verbos quase sempre usados para falar da profunda relação entre Deus e Israel e que, aqui, definem a relação de Adam com a terra: uma relação de serviço e de amor obediente, própria do filho com sua mãe. 181. É o contrário de explorar, de devastar, de destruir para se enriquecer. A terra é vida, a terra é viva e nós vivemos dela, com ela e por ela. Esta é a preocupação divina: “não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18); precisamos estabelecer com todo tipo de vida uma relação de cuidado e de amor. O detalhe de Adam que dá o nome aos animais é importante. Dar o nome significa conhecer e se responsabilizar por alguém e por algo. Esta relação assume seu ponto maior de conhecimento no encontro amoroso, igualitário e apaixonado do homem e da mulher. 182. Esta relação de amor obediente e serviçal foi assumida por Francisco de Assis, quando falava de “nossa irmã a mãe terra que nos sustenta e nos governa” e pedia a todas as criaturas “louvai e bendizei o meu Senhor e agradecei e servi-o com grande humildade”. Vem ao nosso coração um sem número de salmos, hinos e cânticos onde a criação toda soma sua voz à nossa voz numa festa permanente de agradecimento e louvação ao único Pai que a tudo e a todos dá vida e alento. 183. A natureza é, assim, o lugar do encontro e do diálogo amoroso com Deus (Sl 8). Até a tempestade mais violenta é reveladora do nosso Deus e sinal de sua ação libertadora (Sl 18), pois “Os céus narram a glória de Deus, o firmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 19,1). A contemplação da criação, como um todo, nos leva a celebrar: “Ele ama o direito e a justiça; da sua bondade a terra está cheia. Pela palavra do SENHOR foram feitos os céus, pelo sopro da sua boca todo o exército deles” (Sl 33, 5-6). A terra é nossa casa 184. Toda a criação é dom, é mãe e é casa de todos e todas nós. Falar da criação é falar da nossa casa, é nos relacionar com ela como nossa casa, uma casa que queremos bonita, aberta a todos e todas, sem distinção alguma, pois todos e tudo que existe somos parte essencial da vida que nos foi dada e continua sendo dada pelo Criador42. 185. A palavra casa nos leva à palavra “ecologia”43. Ecologia é dizer o que pensamos da nossa casa, como um todo. Quase sempre – e, nisso, governos, empresários e ambientalistas são iguais – entende-se ecologia como a nossa relação com a natureza, com o meio ambiente, poderíamos dizer, com o nosso quintal. Discute-se o ambiente, discute-se como deve funcionar o quintal, mas não se discute qual é a casa que nós queremos. 186. A sociedade liberal, na qual vivemos, quando fala em casa, continua achando normal e justo pensar em “casa-grande” e em “senzala”. Ao falar em ecologia, parecem se preocupar só com o quintal, com a natureza, com o ambiente que está fora da casa e, assim, falam em desenvolvimento sustentável, em defesa da terra e da água, mas continuam sem por em discussão a “casa-grande” dos países mais ricos, das classes dominantes, das corporações industriais e financeiras, das elites privilegiadas e 41 O verbo hebraico abad, quer dizer, sobretudo, servir e/ou prestar culto. Por sua vez, o verbo shamar quer dizer cuidar, observar, muitas vezes aplicado aos mandamentos do senhor. 42 Muito importante, nesta visão holística, é a “Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra” elaborada na Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e Direitos de Pacha Mama, realizada em Cochabamba, Bolívia, em abril de 2010. 43 Do grego oikos, casa e logos, palavra. Esta palavra não aparece nos textos bíblicos e nem mesmo no dicionário da língua grega clássica. 36 187. 188. 189. 190. 191. 192. corruptas que engordam à custa de uma imensa, incalculável “senzala” que é explorada, oprimida, excluída. Já dizia Paulo VI: Os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais ricos44. Progresso, crescimento, desenvolvimento, para muitos, significa entrar a fazer parte da casa-grande. É também necessário reconhecer e nos penitenciar porque a “senzala” ainda não saiu da cabeça de muitos de nós. Precisamos nos converter, pois a economia (a lei, a organização, a administração da casa) vai depender da ecologia (de que casa estamos falando, em que tipo de casa queremos viver). É bom lembrar que a palavra faraó significa, literalmente, “casa grande”. Se continuarmos a acreditar na “casa-grande”, teremos uma economia centrada na especulação financeira, nos monopólios industriais, na privatização dos serviços públicos. Uma economia baseada no agronegócio, no monocultivo, na mineração, nas exportações de matéria prima, no trabalho escravo, na concentração fundiária, nas sementes transgênicas, nos agrotóxicos. Na melhor das hipóteses, teremos os estudos de impacto ambiental e as audiências públicas para tentar minimizar e corrigir a inevitável destruição, que será quase sempre compensada com poucas esmolas sociais, com uma oferta temporária de empregos, com a promessa de impostos que, depois, serão quase sempre descontados através de incentivos fiscais e com algumas medidas compensatórias, regularmente abatidas do imposto de renda devido. A “casa-grande” ficará com os produtos e os lucros; a “senzala” ficará com o trabalho e as migalhas da assistência social e o quintal será devastado. Os pobres perderão a terra. A terra perderá a vida! Nós entendemos que a luta pela terra é, hoje, também e de maneira especial, luta pela VIDA. É a luta pela vida do planeta que é violentamente ameaçada por um falso conceito de crescimento, desenvolvimento, progresso e por uma falsa ideia de que os recursos naturais são infindáveis. Aprender com as sagradas escrituras de todos os povos e com a prática das comunidades tradicionais, o que significa uma casa feita tenda comum, aberta a todos, não significa atraso. Significa vida abundante para todas as pessoas. É o antigo sonho da “Terra sem males” dos povos guaranis que se concretiza na proposta atual da sociedade do “bem viver”. O nosso Deus, o Deus dos nossos pais e das nossas mães – assim como o/s deus/es dos nossos povos ancestrais - nunca estará na casa-grande, apesar dos templos gigantescos que eles construíram e continuarão construindo. Iahweh será sempre o Deus dos hebreus, dos marginalizados que só querem viver em paz, podendo desfrutar do fruto da terra e do trabalho de suas mãos, do pão e do vinho que ofertamos ao Senhor para que seja sempre de todos e de todas. A Memória de Jesus 193. Neste caminho histórico, veio até nós Jesus de Nazaré, revelação definitiva do Deus que desce para nos salvar; é o Filho do Deus vivo, a nos testemunhar e indicar o caminho da vida em abundância. 194. Jesus, na Galileia, vivenciou situações de grande contradição: a presença de donos de terras que tinham administradores, capatazes, trabalhadores e servos (Lc 16,1-8), como, também a situação de pequenos agricultores que teimavam em jogar a semente, mesmo nas pequenas sobras de terras que tinham ficado para eles: terras pedregosas, situadas à beira dos caminhos dos latifúndios, marcados por cercas de espinhos (Mt 13,3-8). Mais grave ainda era a situação dos muitos desempregados que esperavam ser chamados a 44 Populorum Progressio, 57. 37 195. 196. 197. 198. 199. 200. 201. 45 qualquer hora, como diaristas, nas terras dos fazendeiros (Mt 20,1-15), preocupados somente em encher seus celeiros (Lc 12,18). Esta realidade virou imagem do Reino dos céus, critério de novas relações, exemplo de vida nova. Neste contexto, citando o salmo 37, Jesus reafirma: Felizes os mansos, porque receberão a terra em herança45 (Mt 5,5). Este é um dos sinais da justiça a serviço da qual está o pobre no espírito e por causa da qual poderá vir a ser perseguido. “Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (Mt 6,21). Com estas palavras Jesus nos convida a viver a verdadeira mística do relacionamento com a criação e entre nós, uma mística capaz de garantir, ao mesmo tempo, a nossa fraternidade e a sobrevivência do planeta e de toda a humanidade. No lugar de olhar com inveja os celeiros dos poderosos repletos de mercadorias, no lugar de nos deixar seduzir pelas suntuosas roupas dos mais ricos, Jesus nos convida a olhar os pássaros do céu e os lírios dos campos que, assim como toda a criação, nos ensinam que não adianta nos angustiarmos pelo que vamos comer, beber ou vestir. Jesus não está falando do normal cuidado com as coisas da vida. Ele sabe que - como nos ensinava Coelet - o bom, a porção que Deus reservou para todos nós é poder comer, beber, vestir; poder aproveitar do fruto do nosso trabalho (Ecle 2,24; 3,12.22; 5,17; 8,15; 9,7-9). O que Jesus denuncia é a tentação de “se angustiar” querendo encher nossos celeiros e ter palácios luxuosos. A tentação de ver isso como a coisa mais importante a ser alcançada, acreditando que comida, bebida e roupa, só podem ser fruto da concentração das riquezas e do luxo desmedido. Jesus nos diz que quem se angustia é “pequeno na fé”. O desafio é mudar de lógica, mudar de mentalidade. O desafio é crer que comida, bebida e roupa são frutos da construção da justiça do reino de Deus. Justiça é a lógica da gratuidade, do dar, do repartir. O primeiro objetivo de uma política econômica que queira regular a vida da “casa” na qual vivemos, é o de colocar o pão em todas as mesas e não o de encher celeiros e palácios. Pensar só em nós mesmos, na nossa vida e no nosso corpo é a atitude de quem não crê e é a causa da angústia que reina, às vezes, até nas casas dos mais pobres. Este é o evangelho que nossas Igrejas precisam anunciar e testemunhar, vivendo na sobriedade e na generosidade da partilha, denunciando com coragem todos os mecanismos de concentração da riqueza, de devastação da natureza, de violência contra a vida dos mais pobres. Este projeto de fraternidade e de partilha é o centro da vida de Jesus e das primeiras comunidades que, em memória dEle, fizeram do pão partilhado, sacramento da presença viva do Senhor até que ele venha e, ao mesmo tempo, compromisso com a construção de uma sociedade fraterna e igualitária, marca identificadora da vivência apostólica: “E não havia entre eles necessitados” (At 3,34). Pão repartido quer dizer terra repartida, bens partilhados, luta contra toda concentração, contra o latifúndio excludente, devastador e violento. É a defesa da vida contra todas as formas de escravidão, mesmo as que são mascaradas de crescimento e são chamadas de mercado. Pão repartido é crer que nossa casa é uma “tenda” comum. Nem palácios, nem templos, nem quartéis, nem armazéns, nem bancos, nem especulações financeiras podem definir o que é nossa casa. A justiça do Reino que deve ser procurada em primeiro lugar (Mt 6,33) é uma proposta clara, cuja vivência levou Jesus à perseguição e ao martírio. Justiça é fazer com que a vida dos pequenininhos esteja sempre em primeiro lugar. Ela vale mais do que a lei, mais do que o templo, mais do que os interesses do mercado e do império. Justiça é crer que a lógica econômica é aquela da mesa, do dividir, dar e distribuir e não aquela do Mateus usa a tradução grega do Salmo 37,11; o texto hebraico traz: os pobres possuirão a terra. 38 202. 203. 204. 205. 206. mercado, do comprar e vender. Justiça é estabelecer relações políticas marcadas pelo serviço e pelo dar a vida e não pelo domínio e pela opressão. Esta é a casa que Jesus quis edificar: uma casa muito diferente do palácio de Herodes, do quartel de Pilatos, da sinagoga dos escribas e do templo dos sumos sacerdotes. Uma casa na qual Jesus celebrará a sua Páscoa com os discípulos: memorial vivo e permanente de Jesus que substituiu definitivamente o templo pela casa, substituiu os altares pela mesa e substituiu os sacrifícios pelo pão e o vinho repartidos entre todos. Uma casa e uma mesa na qual Jesus está como aquele que serve (Lc 22,27), como aquele que lava os pés (Jo 13,14). Uma casa, uma mesa, na qual Jesus poderá ser reconhecido ao partir o pão (Lc 24,31.35). Esta é a “ecologia” do Reino: o discurso/logos que os evangelhos fazem sobre a casa/oikos. Tendo diante de nossos olhos e consolidado em nossos corações a proposta evangélica de como deve ser a nossa casa, nós podemos, agora, olhar para o “quintal”, para toda a natureza, também, na sua dimensão econômica. A economia, as leis da casa, a administração da casa exige o compromisso de ajudar a viver conforme o projeto de casa na qual queremos viver. É aqui que nós, os que, com a força do Espírito Santo, queremos ser discípulos e missionários de Jesus, precisamos fazer a diferença. Mesmo sem sermos os donos da verdade, mesmo sabendo que precisamos da colaboração dos cientistas sociais e da contribuição de todas as pessoas de boa vontade, nós reafirmamos a nossa tríplice fidelidade: fidelidade ao Deus dos pequenininhos, dos últimos, dos pobres, dos excluídos. Fidelidade aos últimos, aos pobres de Deus. Fidelidade à Terra que é casa, mãe, amante, de todas as pessoas. Temos que ter claro que quando denunciamos e combatemos o desmatamento, o agronegócio, os agrotóxicos, o latifúndio, a contaminação, a mineração colonialista, a pesca predatória, as barragens, o trabalho escravo, a especulação financeira, as megalópolis estressantes, a violência, o narcotráfico, a corrupção do estado, em todos os seus poderes, o fazemos movidos por profundas razões místicas: porque acreditamos firmemente que em toda a criação circula uma única vida, a vida de Jesus: Tudo foi criado por ele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas e nele todas as coisas tem consistência (Cl 1, 16b-17). Querer que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra e que toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor (Fl 2,10s) é viver numa só casa, é o ecumenismo que move nossas relações. Pôr-se a serviço de todas as pessoas, para que tenham vida e a tenham em abundância, sem nenhuma exclusão de religião, de bandeira, de raça, de classe, porque único é o Senhor, diante do qual queremos nos ajoelhar, é a ecologia que queremos defender e testemunhar com toda a nossa vida: é a casa em que queremos nos encontrar. Terra na tradição da Igreja 207. É o Espírito Santo que, ao longo dos tempos e, apesar dos muitos erros, das muitas contradições e dos muitos pecados e infidelidades presentes na nossa vida e na história de nossa Igreja, nos obriga e nos fortalece no compromisso de anunciar as verdades éticas e teológicas que esta história de salvação nos legou para todo o sempre, em vista da nossa permanente conversão e do serviço ao Reino de Deus. 208. No inicio deste documento, fizemos a memória das muitas vezes em que pronunciamos palavras firmes em relação à questão fundiária. O tema da Igreja e da reforma agrária foi um dos temas da 1ª Assembleia Geral da CNBB que aconteceu em Belém do Pará, em 1953. Na 2ª Assembleia realizada em Aparecida-SP, em 1954, “A Igreja e a Reforma Agrária”, foi um dos temas centrais. Ao menos 10 das 50 assembleias da 39 CNBB já realizadas, trataram diretamente de temas relacionados ao direito e à justiça, a questões agrárias, operárias, sócio políticas, econômicas. A tradição da Igreja Latino-americana 209. A Igreja católica latino-americana, também, se pronunciou várias vezes a respeito da problemática da terra. Já na abertura da Primeira Conferência do CELAM que aconteceu no Rio de Janeiro em 1955, os bispos presentes recordaram as palavras de Papa Pio XII, que dizia: “O panorama social que apresenta o continente Latino Americano nos permite advertir que, especialmente, os trabalhadores do campo e da cidade vivem numa situação angustiante46”(12). Na Conferência de Medellín, falando sobre a transformação no campo, assim os bispos diziam: “não há dúvida de que existe um denominador comum em todos os países: a necessidade de promoção humana para as populações camponesas e indígenas. Esta promoção não será possível se não for realizada uma autêntica reforma das estruturas e da política agrária”(14). Na conferência de Puebla, contemplava a presença de Cristo que assume “feições de indígenas e, com frequência, também de afro-americanos, que, vivendo segregados e em situações desumanas, podem ser considerados como os mais pobres dentre os pobres”(34) e “feições de camponeses, que, como grupo social, vivem relegados em quase todo o nosso continente, sem terra, em situação de dependência interna e externa, submetidos a sistemas de comércio que os enganam e os exploram”(35). 210. No documento de Santo Domingo (1992) foi explicitado o compromisso com a ecologia: “Os cristãos, como integrantes da sociedade, não estão isentos de responsabilidade em relação aos modelos de desenvolvimento, que provocaram os atuais desastres ambientais e sociais”(169). E, ao denunciar que “as populações indígenas e camponesas são despojadas de suas terras”, o documento questionava o modelo chamado de desenvolvimento sustentável: “diante desta proposta, temos de nos perguntar se todas estas aspirações são legítimas e quem paga os custos de tal desenvolvimento e a quem se destinam seus benefícios. Não pode ser um desenvolvimento que privilegie minorias em detrimento das grandes maiorias empobrecidas do mundo” (169). 211. Ao falar da terra, os bispos destacaram o contraste entre a visão das populações tradicionais para as quais a terra “é vida, é lugar sagrado, centro integrador de vida da comunidade” e a visão mercantilista que “considera a terra numa relação exclusiva com a exploração e o lucro, chegando até ao desalojamento e à expulsão de seus legítimos donos”. Retomando as palavras do Papa João Paulo II, o documento de Santo Domingo afirma: “cinco séculos de presença do Evangelho... não instauraram ainda uma equitativa distribuição dos bens da terra", que "infelizmente ainda está nas mãos de uma minoria"47. 212. O documento de Aparecida falou em “contemplar os rostos daqueles que sofrem. Entre eles estão as comunidades indígenas e afro-americanas, desempregados, migrantes, deslocados, agricultores sem terra. Os excluídos não são somente explorados, mas supérfluos” (65). E reafirmou: “Os homens do campo, em sua maioria, sofrem por causa da pobreza, agravada por não terem acesso à terra própria. No entanto existem grandes latifúndios em mãos de poucos. Em alguns países, essa situação tem levado a população a exigir Reforma Agrária” (72). 46 Documentos do CELAM, Conclusões das Conferências do Rio de Janeiro, Medellin, Puebla e Santo Domingo, Paulus, 2005. 47 João Paulo II, Mensagem para a Quaresma de 1992. 40 A tradição da Igreja universal 213. É oportuno recordar o princípio imutável de que "Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para o uso de todos os homens e de todos os povos"48, como critério inspirador e partilhado de uma ordem social e econômica capaz de envolver e motivar cada membro da família humana. Com base nisto, a Doutrina Social da Igreja realçou com frequência a condenação do latifúndio como “intrinsecamente ilegítimo"49. É o que nos diz, explicitamente, o documento “Por uma melhor distribuição da Terra – O desafio da reforma agrária” de 1997. É importante recordar alguns destes valores. 214. A doutrina social da Igreja analisa o direito de propriedade da terra, tendo como base o princípio da subordinação da propriedade particular à destinação universal dos bens. Condena, por isso, o latifúndio como algo ilegítimo por natureza. O latifúndio é contrário ao princípio de que “a terra foi dada a todos e não apenas aos ricos”, de tal modo que “ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário”(Populorum progressio, 1967, n.23). O latifúndio, de fato, nega a uma multidão de pessoas o direito de participar, com o seu trabalho, no processo produtivo. E de satisfazer, assim, as suas necessidades, as da família, da comunidade e da nação de que fazem parte. Os privilégios garantidos pelo latifúndio são causa de lutas escandalosas e de situações de dependência e de opressão, no país e em todo o mundo (32). 215. O ensino social da Igreja denuncia também as insuportáveis injustiças provocadas pela apropriação ilegítima da terra, feita por proprietários ou empresas nacionais e internacionais, às vezes apoiados por organismos do Estado. Pisando sobre todos os direitos adquiridos e, muitas vezes, sobre os títulos legais de posse do solo, tiram a terra dos pequenos agricultores e dos povos indígenas. São formas de apropriação muito prejudiciais. Aumentam a desigualdade na distribuição dos bens da terra e destroem, em geral, uma parte desses mesmos bens, empobrecendo toda a humanidade. Elas instalam modos de exploração da terra que quebram equilíbrio entre o ser humano e ambiente construídos durante séculos, e provocam grandes estragos ambientais. Estas práticas são sinal da desobediência da pessoa ao mandamento de Deus: cada um deve agir como guardião e sábio administrador da criação (Gn 2,15; Sb 9,2-3). O preço desta desobediência pecaminosa é altíssimo. Ela causa uma grave e vil forma de falta de solidariedade entre os seres humanos porque prejudica os mais fracos e as gerações futuras (33). 216. A doutrina social não condena só o latifúndio e a apropriação injusta da terra. Condena também as formas de exploração do trabalho, de modo especial quando ele é pago com salários ou outras modalidades que são indignas do ser humano. Com o pagamento injusto do trabalho realizado e com outras formas de exploração, nega-se aos trabalhadores a possibilidade de possuir “um meio concreto, pelo qual a grande maioria das pessoas pode ter acesso àqueles bens que são destinados ao uso comum, quer se trate de bens da natureza, quer de bens que são fruto da produção” (Laborens exercens, cit, n. 19) (34). 217. Em muitos países nada impede, ainda, que a propriedade particular continue sendo um direito absoluto, sem os limites impostos por suas obrigações sociais. Para estas situações, a doutrina social da Igreja indica a reforma agrária como uma política urgente: “Em muitas situações, portanto, são necessárias mudanças radicais e urgentes para devolver à agricultura – e aos trabalhadores do campo – o seu justo valor como base de uma sã economia, no conjunto do desenvolvimento da comunidade social” 48 Gaudium et spes, 69. Cf. Paulo VI: Populorum progressio, n. 23, 1967; Pontifício Conselho "Justiça e Paz": "Para uma melhor distribuição da terra. Os desafios da reforma agrária", nn. 32-34, 1997; Pontifício Conselho "Justiça e Paz": "Compêndio da Doutrina Social da Igreja",n.300, 2004. 49 41 (Ibid, n. 21). É dramático, em relação a isso, o apelo de João Paulo II em Oaxaca, México, aos governantes e aos grandes proprietários rurais: “A vós, responsáveis dos povos, a vós, classe no poder, que às vezes mantendes improdutivas as terras e escondeis o pão às famílias a que ele falta, a consciência humana, a consciência dos povos, o grito dos pobres abandonados, e, sobretudo, a voz de Deus, a voz da Igreja, repetem comigo: não é justo, não é humano, não é cristão continuar com certas situações claramente injustas. É necessário por em prática medidas concretas, eficazes, a nível local, nacional e internacional, segundo as amplas linhas traçadas pela encíclica Mater et Magistra. E é claro que quem mais deve colaborar para isso é quem tem mais poder”. (Discurso aos Índios do México, Cuilapan – Oaxaca, 29/01/79) (35) 218. É por isso que o magistério eclesial insiste em dizer que, se a propriedade é um direito natural, todos tem direito a ela. Um direito que não seja universal não é direito, é abuso. Precisamos repetir, uma vez mais, um dos pontos essenciais da doutrina social da Igreja: o direito à propriedade privada está subordinado ao direito do uso comum, subordinado à destinação universal dos bens50. O direito das pessoas, sobretudo dos mais pobres, a uma vida digna, é o verdadeiro bem supremo ao qual todos os outros direitos devem estar orientados e submetidos, inclusive o direito da propriedade privada da terra que “não se constitui para ninguém num direito incondicional e absoluto"51. Será sempre um direito relativo ao bem maior e comum da vida. 219. “O bem comum exige, por vezes, a expropriação, se certos domínios formam obstáculo à prosperidade coletiva, pelo fato de sua extensão ou da sua exploração fraca ou nula ou da miséria que daí resulta para as populações ou do prejuízo considerável causado aos interesses do país”52. 220. É por isso que, continuamos reafirmando a atualidade do que dizíamos em 1980 no documento “Igreja e problemas da terra”, ao distinguir entre terra de exploração e terra de trabalho: A terra é uma dádiva de Deus para todos. Ela é um bem natural que pertence a todos e não um produto do trabalho. Mas é o trabalho, sobretudo que legitima a posse da terra. É o que entendem os posseiros quando se concedem o direito de abrir suas posses em terras livres, desocupadas e não trabalhadas, pois entendem que a terra é um patrimônio comum e que enquanto trabalharem nela, não poderão ser expulsos (91). 50 João Paulo II. Laborem exercens, 14 Paulo VI. Populorum progressio, 23 52 Paulo VI. Populorum progressio, 24 51 42 4ª Parte: E AGORA, VAI! EU TE ENVIO (Êx 3, 10) 221. “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância. Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas” (Jo 10,10-11). Esta é a síntese mais clara e exigente de nossa identidade e missão pastoral. As primeiras memórias do povo de Israel, e as últimas palavras de Jesus se correspondem: Eu vos envio. “Como o Pai me enviou também eu vos envio”. Então, soprou sobre eles e falou: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,21-22). O Espírito Santo é Deus que nos unge com seu poder e que nos envia. “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu, para anunciar a BoaNova aos pobres: enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano aceito da parte do Senhor” (Lc 4,18-19). Ser testemunhas/mártires de Jesus nos impulsiona a obedecer ao Espírito que recebemos no Batismo e que, com seus dons, nos faz aptos à nossa missão. 222. Nosso compromisso com a Boa-Nova e com os pobres é a mais verdadeira e profunda espiritualidade, entendida como resposta à ação do Espírito Santo na comunidade dos fieis e em cada um de nós. 223. Movidos pela presença vivificante do Espírito Santo em nossas dioceses e comunidades, temos a obrigação pastoral de fazer tudo que estiver ao nosso alcance para libertar os oprimidos e empobrecidos do campo, da floresta e das águas do nosso País. Temos a obrigação de denunciar o acúmulo insustentável da riqueza, a concentração das terras, a devastação ambiental e a violência contra as pessoas, as comunidades e as populações de nossas terras. E, anunciando a Boa-Nova aos pobres, reafirmamos, com Jesus: “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus! Felizes vós que agora passais fome, porque sereis saciados!” (Lc 6,20-21). Renovamos, também, como em 1980, (07) a advertência evangélica aos que querem “ajuntar casa a casa, campo a campo, até que não haja mais lugar e que sejam únicos proprietários da terra”, como já denunciava o profeta Isaías (Is 5,8): “Ai de vós, ricos, porque já tendes vossa consolação. Ai de vós que agora estais fartos, porque passareis fome” (Lc 6,24-25). 224. Este anúncio e esta advertência, porém devem ser vivenciados numa prática coerente e fiel que obriga nossas comunidades eclesiais a uma conversão permanente. “Entendemos que sem ações concretas que já respondam a esses desafios, a Igreja não será sinal do amor de Deus pelos homens” (94). Orientar esta prática é dever ministerial do episcopado. Dizíamos, com efeito, em 1980: “É missão da Igreja convocar todos os homens para que vivam como irmãos superando toda forma de exploração. Devemos não somente ouvir, mas assumir os sofrimentos e angústias, as lutas e esperanças das vítimas da injusta distribuição e posse da terra”(06). É o que pretendemos fazer a seguir. Fidelidade aos compromissos já assumidos 225. Retomamos, neste momento, os compromissos pastorais que assumimos em 1980 e que continuam sendo de uma atualidade profética: A posse e o uso dos bens da Igreja devem ter uma destinação social e pastoral, evitando a especulação imobiliária e respeitando os direitos dos que trabalham na terra(95). Destinar as terras que eventualmente as Igrejas possuam, e que não sejam necessárias ao exercício de sua missão, para atender a finalidades sociais, 43 principalmente sua entrega aos sem-terra ou facilitando sua desapropriação para fins de Reforma Agrária53. Denunciar as situações abertamente injustas e as violências que se cometem e combater as causas geradoras de tais violências (96). Apoiar as justas iniciativas e organizações dos trabalhadores, colocando nossas forças e nossos meios a serviço de sua causa (97). Cuidar de não substituir as iniciativas do povo, estimulando a participação consciente e crítica em suas organizações, para que sejam livres, autônomas e defendam os interesses dos trabalhadores (98). Apoiar os esforços do homem do campo por uma autêntica Reforma Agrária, valorizando e defendendo a propriedade familiar, as posses e a propriedade tribal dos povos indígenas (99). Apoiar a mobilização dos trabalhadores para exigir a aplicação e/ou reformulação das leis existentes, bem como para conquistar uma política agrária, trabalhista e previdenciária que atenda aos anseios da população (99). 226. Aproveitamos a ocasião para pedir perdão se nem sempre nossas dioceses, prelazias e comunidades eclesiais foram fieis a estes compromissos; pedimos perdão, sobretudo, pelas nossas omissões quando deixamos de testemunhar nossa fidelidade aos pobres de Deus e ao Deus dos pobres, buscando sempre, “em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33). Como verdadeiros discípulos de Jesus que “se fez pobre, embora fosse rico, para nos enriquecer com sua pobreza” (2Cor 8,9). Ele nos desafia a dar testemunho autêntico de pobreza evangélica em nosso estilo de vida e em nossas estruturas eclesiais, tal qual Ele fez. Esta é a fundamentação que nos compromete numa opção preferencial pelos pobres, firme e irrevogável, mas não exclusiva e nem excludente, tão solenemente afirmada nas Conferências de Medellín e Puebla. Com o “potencial evangelizador dos pobres” (Puebla 1147) a Igreja pobre que impulsiona a evangelização de nossas comunidades (SD 178). 227. Considerando as mudanças que ocorreram nestas três décadas, confrontando-nos com as Sagradas Escrituras, com o magistério eclesial e, de maneira especial, com o clamor que sobe das comunidades dos campos, das florestas e das águas deste nosso País, queremos reafirmar os compromissos pastorais que devem nortear nossa ação e que assumimos publicamente. 228. Não esperem orientações que respondam às situações concretas de cada lugar, pois isso não seria possível e é missão, na verdade, de cada comunidade e Igreja Particular. À CNBB cabe uma palavra que indique a direção em que vai sendo realizado nosso compromisso com os irmãos e irmãs que lutam pela superação dos limites, violências, exclusões e sacrifícios impostos à vida pela atual estrutura da propriedade da terra e pela política agrária e agrícola dominantes em nosso país. Nossos compromissos pastorais Em relação ao latifúndio 229. Não podemos aceitar a escandalosa e devastante concentração de terras no Brasil. Com o Beato João Paulo II, repetimos: não é justo, não é humano, não é cristão continuar com certas situações claramente injustas. Cabe-nos condenar, também, como moralmente inaceitável o uso da terra para a especulação e o domínio exclusivo do 53 Este compromisso foi assumido pela CNBB em sua 35ª Assembléia Geral de 1997. Ceris – Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais - Terras da Igreja no Brasil - Relatório Final da Pesquisa realizada em 1996 – abril 1997. 44 mercado capitalista de negócios na comercialização de alimentos. Isso é contrário à doutrina social da Igreja e à ordem jurídica brasileira e não pode ser aceita pela consciência ética da humanidade. Reafirmamos, clara e decididamente, que é nossa obrigação moral fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que o latifúndio tenha limites54. 230. Reafirmamos ser um imperativo ético, espiritual, social, econômico e ambiental a luta pela posse da terra e seus bens naturais, como forma de erradicar a pobreza. Fazemo-lo também em memória dos muitos mártires, que tiveram sua vida tolhida, por lutarem contra a concentração e a exploração da terra. 231. Nossa primeira referência está no direito à vida e vida de qualidade, para todas as pessoas do nosso país. Enquanto houver alguém em situação de exclusão, com direito não realizado de um lugar para viver e como oportunidade de trabalho que gere renda, toda a propriedade mantida como fonte de especulação, de exploração e de poder não é legítima. Em relação ao trabalho escravo 232. Apoiamos todas as iniciativas que, buscando acabar, uma vez por todas, com uma prática emblemática dos maus-tratos impostos, até hoje, à mãe terra e aos seus filhos e filhas, procuram arrancar as raízes da escravidão do nosso meio, combatendo a ganância de um modelo predador, a impunidade dos donos do latifúndio e a miséria por eles imposta às maiorias. 233. Não pouparemos forças até erradicar o crime do trabalho escravo, denunciando os modernos feitores e seus cúmplices nas “casas grandes” do poder, acolhendo suas vítimas, apoiando sua busca de vida digna na terra e cobrando do Estado e da comunidade internacional as necessárias providências. Entendemos que este crime reincidente - e que, inclusive, reforça a necessidade de uma profunda reforma agrária, pois tem conexão direta com a propriedade concentrada em poucas mãos - deveria ser julgado em esfera federal, um pouco mais distante das pressões locais e estaduais das pessoas e grupos que o praticam. A dignidade da pessoa humana precisa ser preservada e, por isso, além de leis eficazes, são necessários procedimentos investigativos e judiciais que efetivamente coíbam prática tão degradante. Em relação à defesa da natureza 234. A visão bíblica a respeito da natureza pouco tem em comum com a visão economicista e racionalista ocidental que permeava de igual maneira, tanto o capitalismo, como o socialismo que consideravam a natureza “matéria prima” que só tinha serventia em vista do bem estar do homem e que só adquiria valor quando transformada em riqueza, em mercadoria. Reafirmamos com convicção que a terra é dom de Deus Pai para todos os seus filhos e filhas, sem exclusão. A ela devemos carinho, cuidado e respeito. 235. Em nosso trabalho de evangelização, de catequese e de cuidado com a espiritualidade dos cristãos, assumimos como um dos conteúdos o sentido teológico da relação com a terra como mãe da vida, favorecendo sentimentos que superem a relação de propriedade e de uso agressivo dela, estimulando a vivência de uma relação de uso em que a terra como um todo esteja a serviço da vida. 54 Em relação à propriedade da terra, apoiamos a campanha, lançada pelo Fórum Nacional pela Reforma agrária e Justiça no Campo, que objetiva a aprovação de emenda constitucional que determine o tamanho máximo de propriedade da terra em trinta e cinco módulos fiscais. Evidentemente, esse critério deverá ser superado quando a necessidade social o exigir, caminhando para a direção em que a terra tenha efetivamente uma finalidade social. 45 236. Todas as pessoas tem direito à água potável, ao ar puro, ao solo não contaminado e à segurança alimentar. O uso irracional e devastador da criação, provocando danos graves e, muitas vezes, irreversíveis ao meio ambiente, deve ser condenado com decisão, por atentar contra a força criadora permanente que Deus insuflou em toda a natureza. Reafirmamos a necessidade ética de preservar o meio ambiente nos seus biomas, protegendo e restaurando a diversidade, a integridade e a beleza dos ecossistemas do planeta, vivendo de modo sustentável, promovendo e adotando formas de consumo, produção e reprodução que respeitem e salvaguardem os direitos de todas as pessoas, o bem-estar comunitário e as capacidades regenerativas da terra. Em relação aos cuidados com a água 237. Afirmamos que a água é um bem público, de destinação universal, patrimônio da humanidade e de todos os seres vivos, direito fundamental da pessoa humana. Condenamos todas as formas de privatização, mercantilização e a venda a empresas transnacionais da água, bem indispensável para a vida e que está se tornando sempre mais escasso por causa do seu uso desordenado e pelas mudanças climáticas provocadas, também, pela violência feita ao meio ambiente e aos mais diversos ecossistemas. Reduzir a água a valor mercadológico é um crime tão grande ou maior do que foi e está sendo cometido com a privatização excludente das terras. 238. Assumimos como urgentes e merecedoras de todo nosso empenho, participação e apoio, as iniciativas que visam aprofundar a consciência em relação aos cuidados que devemos tomar para evitar o agravamento da situação da água doce. Apoiamos os que lutam contra a degradação dos mananciais e a poluição da água. Como o Brasil tem uma parte importante da água doce ainda existente no planeta, isso nos dá uma responsabilidade ainda maior. De fato, além da necessária solidariedade com os povos mais carentes desse líquido vital, em nosso país existem extensas regiões já necessitadas de cuidados especiais. É o caso do Semiárido nordestino, do Cerrado, na região central do país, já ameaçados pelo desmatamento irresponsável e pela implantação de pecuária extensiva e monocultivos agrícolas, mantidas através de irrigação e uso de produtos químicos que beiram a irracionalidade. 239. Apoiamos as diferentes formas de preservação dos rios e lagos da Amazônia, desenvolvidas pelos ribeirinhos; as lutas das comunidades praieiras na defesa dos mangues e a iniciativa da criação de territórios pesqueiros. Apoiamos o projeto de construção de uma ou mais cisternas caseiras para e com cada família do semiárido, bem como outras formas de captação e de uso de água da chuva. Trabalharemos para que a captação de água de chuva se torne parte da cultura familiar e condição exigida para a construção de igrejas, prédios, escolas, clubes, hotéis, praças, aprendendo com a sabedoria mais antiga da humanidade e mesmo de projetos atuais inovadores55. 240. Muito nos preocupam os inúmeros projetos de construção de barragem em andamento e previstos: estes grandes represamentos de água expulsam populações, comunidades e famílias, sem nunca compensar, de maneira suficiente o prejuízo sofrido. Cobrem vales férteis, florestas e matas ciliares e desequilibram o meio ambiente. Apoiamos, com decisão, os movimentos em defesa dos direitos dos atingidos por estes grandes projetos. Preocupa-nos, também, que grande parte da energia assim produzida é fornecida, de forma subsidiada, às grandes empresas de transformação, enquanto o cidadão está sendo cobrado em percentuais bem maiores, pelo uso familiar da energia. Temos consciência de que precisamos caminhar com urgência e com criatividade na direção do melhor aproveitamento da energia solar e eólica e de outras formas de energia, como o biogás e 55 O centro olímpico de Sydney (Austrália) foi construído considerando a água e a energia necessárias como produtos não comerciais. E todas as suas imponentes instalações foram auto-suficientes em água e energia. 46 a biomassa, reduzindo a dependência da energia hidrelétrica. Participaremos de iniciativas que objetivam apoiar pesquisas científicas em nossas universidades, visando descobrir materiais mais baratos, simples e eficazes na produção de energia e na sua conservação para uso posterior. Em defesa da destinação universal dos bens 241. Estimulamos os que promovem a distribuição equitativa dos benefícios do uso dos recursos naturais e de um meio ambiente saudável, adequado para a saúde humana e o bem-estar espiritual, entre as nações, entre ricos e pobres, homens e mulheres e gerações presentes e futuras. Nossa consciência não pode aceitar que haja, no mundo, mais de um bilhão de pessoas passando fome e morrendo precocemente. E não pode aceitar que organismos multilaterais, como a ONU e o Banco Mundial, deem essa informação e continuem promovendo, de fato, políticas que mantém e expandem modelos comprovadamente causadores desse aumento trágico de miséria e morte. 242. A agricultura não deve ser vista, sobretudo, como produção de commodities a serem exportadas, em vista de um superávit na balança comercial. Ela deve ser recolocada, em primeiro lugar, a serviço da vida em nosso país, abrindo-nos à solidariedade internacional a partir daí. Não é possível que um país com a maior extensão de área agricultável do mundo tenha que importar alimentos de primeira necessidade. Ao mesmo tempo em que a produção de alimentos para exportação recebe subsídios e incentivos, promovem-se importações de alimentos básicos para garantir a estabilidade da moeda. Com isso os pequenos produtores ficam inviabilizados, por não poderem concorrer com os produtos internacionais que recebem subsídios de seus governos. Em defesa de uma alternativa ao agronegócio 243. Não podemos aceitar o monocultivo intensivo e extensivo, o uso de agrotóxicos, a produção de produtos transgênicos, sem a garantia de controle sobre seus efeitos nos seres vivos e na natureza, que - muitas vezes mascarados com a desculpa de aumentar a produção para atender às necessidades alimentares da população mundial - só servem para os interesses financeiros de grandes grupos econômicos que controlam a produção de sementes, causando uma dependência produtiva ilegítima, além de interferir, de maneira nefasta, no meio ambiente e na vida das pessoas. De fato, já existem alimentos para saciar a fome e para garantir vida saudável para todos os seres humanos existentes na terra. O que impede o acesso de todas as pessoas a eles é o sistema econômico do mercado capitalista, reproduzido na última década por estratégias de globalização financeira especulativa. Esse sistema - que Paulo VI chamava de “nefasto” (PP, 26) faz que uma pequena parcela da humanidade controle e consuma a maior parte das riquezas produzidas, em evidente prejuízo de uma imensa maioria de comunidades e populações pobres. 244. Apoiamos, por isso, as ações que facilitam aos pequenos agricultores a volta à prática da diversificação da produção e o acesso à comercialização solidária, garantindo à família os alimentos básicos para sua autossustentação, segurança e soberania alimentar. Apoiamos a disseminação de formas de cultura adequadas às características ecológicas de cada região do país. Apoiamos as comunidades, quando reafirmam a identidade camponesa dos trabalhadores e trabalhadoras e dos valores que negam o consumismo, o individualismo e a competição e promovem alianças entre os pobres do campo que enfrentem a exclusão social. 245. Unimo-nos aos que defendem a soberania alimentar para nosso país. Para alcançar este objetivo, é necessária uma política agrícola pública voltada para os produtores familiares, comunitários. Eles precisam ser apoiados em cada fase da produção, com a 47 garantia de uma assistência técnica adequada e a construção de políticas agrícolas específicas para o camponês e de preços justos e em diálogo com a cultura camponesa. Essa política agrícola alternativa deve ter como base permanente a promoção social da vida no campo, com garantia de educação e espaços de socialização para as comunidades agrícolas. 246. Há necessidade premente de se mudar a matriz tecnológica atual para que se produzam alimentos saudáveis. Por isso apoiamos as iniciativas que promovam a substituição dos insumos químicos pela utilização de insumos provenientes da agroecologia nacional; os investimentos na pesquisa agropecuária e na assistência técnica públicas; as ações públicas e ou da sociedade civil contra o monopólio genético; a valorização e a produção de sementes “crioulas”. A questão agrária é uma questão nacional 247. É preciso que a questão da terra e da agricultura seja encarada e resolvida como uma questão nacional, e não como algo que diz respeito somente aos camponeses. Para que isso aconteça, assumimos o compromisso de apoiar as iniciativas que sensibilizem a população urbanizada, ajudando-a a perceber como é vital para ela a democratização da propriedade da terra. Além das vantagens já descritas, como alimentos de melhor qualidade, é bom lembrar que a questão do emprego e do salário passa, também, pela democratização do acesso à terra e a uma qualidade de vida na terra, pois, assim, poderão ser criadas novas oportunidades de trabalho e de geração de renda, dinamizando a produção resultante dos trabalhos industriais urbanos. 248. Há uma realidade gerada pelo êxodo rural, que merece nossa atenção e deve ser contemplada nos planos de pastoral de nossas igrejas. As pessoas do campo estão hoje na cidade, sobretudo nos grandes centros urbanos, onde vivem em condições subumanas de habitação, emprego ou desemprego e transporte. Se não conseguirmos desenvolver uma pastoral de acolhida para estas pessoas para que seu desenraizamento da terra não lhes seja insuportável, o caminho que muitos poderão trilhar é o da delinquência ou da busca de anestésicos religiosos. Nossa palavra para os camponeses e as camponesas 249. Nossa palavra se dirige, agora, aos camponeses e camponesas, trabalhadores e trabalhadoras rurais e a todos os povos da terra, das águas e das florestas do Brasil, cujo trabalho põe nas mesas dos brasileiros a maior parte dos alimentos. Apreciamos sua sabedoria e sua cultura. Reafirmamos nossa solidariedade às suas causas, lutas e organizações e, por isso, nos comprometemos a apoiar: a. A reafirmação da identidade camponesa dos trabalhadores e trabalhadoras e dos seus valores, oferecendo espaços e programas formativos e apoiando projetos de educação voltados para a realidade local, histórica e cultural, para que camponeses e trabalhadores rurais identifiquem as causas da sua situação e as possibilidades de superá-las. b. As lutas dos pequenos que buscam oportunidades de vida na terra, na floresta e nas águas. Apoiamos os trabalhadores e trabalhadoras que, não vendo soluções concretas para atender às suas reivindicações de um pedaço de chão para viver e trabalhar, utilizam, como forma legítima de pressão, a ocupação de terras56. 56 Como disse muito claramente o Pontifício Conselho de Justiça e Paz, mesmo sendo “um ato não conforme aos valores e às regras de uma convivência verdadeiramente civil”, as ocupações são “manifestação de situações intoleráveis e deploráveis no plano moral e sinal alarmante que exige a atuação, a nível social e político, de soluções eficazes e justas”. A reforma agrária “é a única resposta concretamente eficaz e possível, a 48 c. As organizações dos camponeses e trabalhadores do campo e suas lutas pela terra e na terra, por políticas públicas que lhes garantam o acesso pleno aos serviços de saúde, educação, transporte e para conseguir a legalização de suas terras e o respeito pelo uso sustentável que delas fazem. d. As experiências agro-ecológicas que estão sendo implementadas em todos os cantos do Brasil e que, além de garantir alimentação abundante e sadia, promovem uma verdadeira revolução nas relações de gênero, de geração, de etnia e são uma alternativa estrutural ao sistema econômico que destrói a vida e exclui as pessoas. e. A resistência contra todas as formas de violência que atingem a vida dos trabalhadores e suas famílias: a grilagem, os despejos ilegítimos, mesmo quando aparentam ser legais, as arbitrariedades dos órgãos de segurança pública, o desvio dos recursos públicos, a corrupção dos políticos, a arrogância, os abusos dos latifundiários e suas milícias privadas, a renovada concentração de terras e renda que devasta o ambiente e violenta o “homem e sua casa, o pobre e sua herança” (Mq 2,1). f. Os esforços no combate a todas as formas de trabalho escravo e degradante e toda superexploração à qual são submetidos milhares de trabalhadores rurais, migrantes e boias frias, forçados a realizar tarefas sobre-humanas e a viver em situações subhumanas por alguns trocados; g. A mobilização pelo direito à educação no campo e do campo, pois o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive e a uma educação pensada a partir de seu lugar e com sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais. 251. Junto com vocês seremos vigilantes para não cair nas ciladas do progresso a qualquer custo e do desenvolvimento predador e nas armadilhas dos salvadores da pátria; para evitar que o veneno da ganância, a sede do poder e a praga da corrupção cresçam dentro das organizações; e para combater todas as formas de cooptação, de favorecimento, de privilégios, de nepotismo, que tentam submeter seus movimentos e organizações aos interesses de grupos econômicos e políticos. Nossa palavra aos administradores da coisa pública Aos detentores do poder executivo 252. Não se pode protelar mais o cumprimento do disposto no artigo 67 das ADCT, da Constituição Federal em relação às terras indígenas. Diante do sofrimento inenarrável de muitos povos indígenas, sobretudo dos guarani kaiowá, no Mato Grosso do Sul, a protelação do cumprimento deste dispositivo torna-se claramente um crime de lesahumanidade. 253. Da mesma forma, é mais que urgente, o reconhecimento dos territórios ocupados pelas comunidades quilombolas, como determina o artigo 68 das mesmas ADCT, como forma de resgate de direitos historicamente negados e claramente espezinhados. 254. A Reforma Agrária continua sendo urgente, necessária e inadiável. Ao mesmo tempo em que democratiza o acesso à terra, ela deve garantir o uso do território no respeito das diferentes culturas camponesas e redesenhar a distribuição das terras, acabando com os latifúndios e redimensionando os minifúndios. É indispensável estabelecer um limite para a propriedade da terra propondo emenda constitucional. A inserção de mais esse item no artigo 186, da Constituição, explicitará com clareza a exigência de estabelecer resposta da lei, ao problema da ocupação das terras” (n.44). A Constituição Brasileira estabeleceu que a propriedade tem que cumprir sua função social e vários juízes, Brasil afora, baseados neste preceito, tem emitido sentenças favoráveis aos trabalhadores que ocupam áreas, pois as mesmas não cumpriam esta função social. 49 255. 256. 257. 258. 259. 260. um limite para o tamanho da propriedade em vista ao cumprimento da sua função social. Os governos devem cumprir seu dever legal de combater a grilagem, arrecadando as terras ainda devolutas e destinando para a Reforma Agrária as terras públicas. Devem impedir também que empreendimentos instalados em terras ocupadas, ilegal ou irregularmente, sejam financiados com recursos públicos. Além disso, a Receita Federal e outros órgãos arrecadadores de impostos devem se certificar do caráter legal e legítimo da posse dos imóveis que tributam. Insistimos para que o poder público garanta incentivos econômicos aos que preservam a natureza, de modo especial, a floresta amazônica e o cerrado. Longe de ser um peso para o pequeno agricultor, a preservação do meio ambiente deve ser reconhecida e recompensada por ser serviço feito em favor de toda a humanidade. Mesmo depois de aprovada a lei da biossegurança, continuamos contrários ao plantio e à comercialização de sementes transgênicas. Além de não haver estudos conclusivos sobre os riscos para a saúde humana e de reduzir a biodiversidade, elas podem contaminar outras espécies. O mais grave, porém, é que favorecem, de maneira escancarada, as grandes empresas controladoras dos grãos, cujo único objetivo é o lucro e, por isto, buscam ter o controle de toda a cadeia alimentar. Com isso ficam ameaçadas a soberania e a segurança alimentares do povo e aumenta a dependência dos produtores, excluindo, aos poucos, os mais pobres. A clandestinidade com que este processo cresce no País, as dificuldades de fiscalização e os progressivos adiamentos para que sejam efetivadas as normas legais nos confirmam ainda mais, em nossa posição. Discordamos da atitude do governo brasileiro que se recusa em admitir a água como um direito fundamental da pessoa humana. Os direitos humanos - no caso o direito à água não podem estar sujeitos às injunções da política e às pressões de empresas interessadas em transformar a água em negócio. Mais do que em grandes obras hídricas, que agridam nossos rios e inundem as terras dos pequenos agricultores, acreditamos, com muitos estudiosos e ambientalistas e de acordo com o bom senso das comunidades envolvidas, que o objetivo de vencer os efeitos negativos da seca pode ser alcançado com projetos alternativos, mais baratos e de maior alcance, como as iniciativas da revitalização do rio São Francisco, com participação das comunidades ribeirinhas, uma política orgânica e difusa de captação das águas de chuva, a socialização de açudes e poços, feitos com recursos públicos e que se encontram sem utilização ou nas mãos de particulares. Questionamos a lei de concessão de uso das florestas públicas na Amazônia. A Floresta Amazônica pode oferecer resultados economicamente viáveis, sem precisar derrubar as árvores. Os produtos florestais não madeireiros são variados e interessantes econômica e socialmente. A criação de reservas extrativistas, a demarcação das áreas indígenas, o combate firme ao uso das florestas para a produção de carvão vegetal, o incentivo aos planos de manejo florestal nas áreas de reserva legal das pequenas propriedades, são instrumentos eficazes de geração de emprego e renda para as populações da Amazônia. É nosso dever advertir que são necessárias medidas rigorosas que visem o investimento em pesquisa de manejo florestal para toda a Amazônia; coíbam a biopirataria, a pesca predatória e o garimpo em áreas indígenas, promovam o zoneamento agro-ecológico da região e fortaleçam a capacidade de fiscalização do poder público sobre as madeireiras. Medidas que reduzam os prazos de concessão das áreas; garantam a transparência nas licitações e a participação com poder de decisão das comunidades envolvidas em todo o processo, são necessárias para que a iniciativa não redunde em novo e colossal fracasso, com grande prejuízo para as comunidades locais, a soberania e o interesse nacionais. 50 261. É necessário e urgente publicar uma instrução ministerial que atualize os índices de produtividade exigidos para o cumprimento da função social da propriedade da terra. 262. Continuar a levar a efeito a recomendação da 2ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar a respeito da aquisição, pela CONAB, da produção de alimentos dos assentamentos e dos pequenos agricultores para recompor os estoques do governo. 263. Regularizar a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos pequenos posseiros e ribeirinhos e criar os territórios pesqueiros para garantir a sobrevivência dos pescadores familiares. 264. Criar instrumentos de participação deliberativa da sociedade em todas as autarquias federais, como INCRA, IBAMA, ICMBIO, INSS e no processo de tomada de decisões governamentais. 265. Destinar recursos orçamentários para promover formas alternativas de educação do campo, no campo e para o campo, tais como Escolas Família Agrícola e Casa Familiar Rural. Aos detentores do poder legislativo 266. Cobramos dos representantes do povo que exercem o poder legislativo, que as questões da terra não sejam reduzidas a um estéril debate entre os interesses de grupos, mas sejam analisadas a partir do que é melhor para a população do campo, a sociedade e a preservação da natureza. As várias CPIs da terra, mesmo depois de terem comprovado a grilagem de milhões de hectares do patrimônio fundiário brasileiro, acabaram ficando letra morta e só serviram como palanque para a defesa dos interesses e das ideologias dos diversos grupos sociais e políticos. Vergonhosa, por exemplo, foi a conclusão da CPMI das Terras que, encobrindo todos os crimes do latifúndio e da grilagem, quis transformar em crime hediondo a luta social pela Reforma Agrária. 267. Do congresso brasileiro esperamos: a. A revisão da legislação penal e sua aplicação, de maneira a não deixar impunes os grileiros de terras públicas. b. Mudanças no Código de Processo Civil, para que os conflitos possessórios, por causa de imóveis rurais não sejam mais resolvidos através de sentenças liminares, sem ouvir todas as partes envolvidas e sem que seja verificada em loco a função social da terra. c. A aprovação definitiva da Proposta de Emenda Constitucional, PEC 438/01, que expropria as terras onde se der exploração de trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravo. d. A realização de uma auditoria, que permita à nação brasileira identificar e retomar os maiores latifúndios grilados e, de maneira especial, as terras ocupadas por pessoas físicas e/ou jurídicas estrangeiras. e. A instalação, em regime de urgência, da comissão mista que deve fazer a revisão de todas as terras públicas doadas, vendidas ou concedidas entre 1º de janeiro de 1962 e 31 de dezembro de 1987, com superfície superior a 3.000 hectares, como manda o artigo 51 das Disposições Transitórias da Constituição Federal. f. A revisão da legislação hídrica brasileira, conforme pediu o abaixo-assinado da Campanha da Fraternidade de 2004, reconhecendo a água como direito fundamental da pessoa humana. g. A aprovação do projeto de lei, em tramitação na Câmara dos Deputados, que determina a imissão imediata do INCRA na posse dos imóveis desapropriados para fins de Reforma Agrária, uma vez comprovado o cumprimento dos requisitos 51 legais para expedição do mandado, resolvendo-se em ações separadas, as impugnações relativas à improdutividade da terra e ao valor do imóvel. h. Aprovar projeto de lei que inclua o tamanho do imóvel entre as causas justificativas de desapropriação. Aos detentores do poder judiciário 268. O Conselho Nacional de Justiça deve investigar a impunidade que acompanha, de maneira vergonhosa, os crimes cometidos pelo latifúndio. Inúmeros assassinatos, violências, humilhações, expulsões sumárias de famílias, casas e roças destruídas, quase nunca recebem a necessária punição. Por causa disso defendemos que os crimes de assassinato no conflito com o latifúndio e os crimes de trabalho escravo sejam julgados em esfera federal, distante das pressões locais e estaduais das pessoas e grupos que os praticam. 269. Pedimos que sejam elaborados instrumentos legais que estabeleçam novos procedimentos para o julgamento das ações discriminatórias, a fim de acelerar a recuperação das terras devolutas da União, dos Estados e dos Municípios e sua destinação à Reforma Agrária. 270. Cobramos a criação e o funcionamento efetivo, em todos os tribunais, dos comitês de acompanhamento e resolução dos conflitos fundiários rurais e urbanos, com a participação da sociedade organizada, conforme orientação do CNJ. 271. É importante que as escolas da magistratura ministrem aos operadores da justiça, cursos sobre a legislação agrária relativa às terras públicas e devolutas, à legislação ambiental e à legislação mineraria. 272. Que os juízes sejam instados a não emitir sentenças liminares nos conflitos possessórios, sem que sejam ouvidas todas as parte, seja verificada a função social da propriedade e sejam analisadas com atenção a consistência das matrículas e dos registros cartoriais dos imóveis em disputa. 273. É com alegria que vemos muitos membros do Ministério Público estadual e federal, promotores de Justiça e procuradores, bem como alguns juízes, assumirem, de acordo com a Constituição Brasileira, a função social como elemento essencial e definidor da propriedade, cumprindo, na prática, seu papel de defensores dos direitos humanos, sociais e ambientais. Mas é com muito pesar que continuamos a ver muitos juízes que se aliam ao latifúndio - várias vezes, latifundiários eles mesmo - atrelados à equivocada visão da propriedade da terra como direito absoluto, acima de todos os direitos. 52 CONCLUSÕES 274. Continuaremos fieis à nossa missão de denunciar o pecado da idolatria da propriedade, da riqueza e do poder, que é a causa da violência que acompanha a luta pela terra, chegando, muitas vezes, ao assassinato premeditado. São “criminosos – pecadores, todos os que querem sacralizar a propriedade da terra neste País de extensão continental! Sacramentar a usurpação, dignificar a grilagem é crime, é pecado.”57 Reafirmamos que a terra deve, em primeiro lugar ser considerada dom e dádiva para a humanidade inteira e, por isso, deve sempre ser “terra de trabalho”, lugar de viver, e não deve se tornar mercadoria morta, “terra de negócio”58. Comprometemo-nos a denunciar toda violência, a dar apoio às famílias atingidas pela violência e a lutar pelo fim da impunidade. 275. Conscientes de nossa fragilidade, apesar da firmeza de nossas decisões, convocamos todos os seguidores e seguidoras de Jesus e, todas as pessoas com sentimento de humanidade, para que nos fortaleçamos uns aos outros, unindo-nos numa grande corrente que nos ajude a ser fieis a novas relações com a terra e toda a natureza e a descobrir os cuidados que podemos e devemos ter para com ela, pois tudo que constitui e garante a geração e reprodução da vida na terra é bem público e deve ser cuidado por toda a sociedade. 276. Desse modo, o Estado, como instrumento do cuidado com o que é bem público da cidadania, não poderá agir como se fosse um vulgar comerciante de qualquer tipo de especiarias, submetendo o país a relações de tipo colonial; cabe-lhe servir à vida de todas as pessoas, zelando pelo meio ambiente. Apostamos no crescimento da cidadania, no seu sentido político, cultural e espiritual pleno, para que seja fonte de cuidados carinhosos da vida em nossa terra. 277. Continuam sendo atuais as antigas palavras do livro do Eclesiástico que converteram Frei Bartolomeu De Las Casas, um dos maiores profetas de nossa América Latina: como o que imola o filho na presença do seu Pai, assim é aquele que oferece um sacrifício com os bens dos pobres (Eclo 34,20). Com estas palavras nos comprometemos a denunciar toda violência que nega aos pobres o direito e o acesso aos bens necessários para uma vida digna ou ameaça e tenta roubá-los e a dar apoio às famílias e às comunidades atingidas. Queremos trabalhar para que desapareça essa violência, por meio da efetivação dos direitos garantidos e da realização efetiva da reforma agrária, que transforme a vida no campo e em toda a sociedade brasileira. A impunidade é que alimenta a violência no campo. Por isso deve ser combatida e devem ser usadas todas as formas de pressão para eliminá-la. Não esqueçamos que, segundo o secular ensinamento ético da Igreja, a opressão dos pobres é pecado que brada ao céu: “clamarão a mim e eu ouvirei seu clamor” (Êx 22,23.27). Ouvir e atender a este clamor é imperativo ético para todas e todos os fieis. 278. De maneira especial pedimos às comunidades da terra, das águas e das florestas, aos indígenas e quilombolas, sem-terra e agricultores assalariados, assentados e ribeirinhos, pescadores e pequenos produtores familiares, assim como a todos as comunidades eclesiais e a todas as pessoas de boa vontade que nos ajudem a ser fieis aos nossos compromissos, para que os mais pobres, sobretudo, os pobres da terra, das águas e da floresta possam ter vida e vida em abundância, até o dia em que, pela força do Espírito da Vida, a quem oferecemos o humilde instrumento da ação de nossas mãos, haja novos céus e nova terra, uma “terra sem males” na qual nunca mais haverá dor e lágrimas. PENDÊNCIAS: N. 27 último parágrafo, atualizar o número das ocorrências de 2012. N. 64 nota 14 completar com o ano de 2012, governo Dilma. 57 “Quem comete crime hediondo neste País” – Documento assinado pela Coordenadora Ecumênica de Serviço – CESE e outras 11 entidades ecumênicas, após a aprovação do relatório Abelardo Lupion na CPMI da Terra – dezembro/2005. 58 Igreja e Problemas da Terra, CNBB, 1980, n 83 a 85. 53