Veja a pesquisa completa em PDF

Transcrição

Veja a pesquisa completa em PDF
COMPORTAMENTO Tema: Drogas Pesquisador: Francis Vogner dos Reis Sinopse Antes de serem um problema legal e de saúde pública (como geralmente são tratadas), as drogas são uma realidade que movimenta questões de caráter social, econômico e cultural. Sua proibição e sua demanda por legalização é parte da discussão e por vezes neutraliza outros fatores importantes. Os filmes escolhidos como base da discussão deste programa buscam refletir as várias controvérsias ligadas ao uso das drogas. Droga como curtição no transgressor Meteorango Kid -­‐ o Herói Intergalático, de André Luiz Oliveira; as drogas como cultura do underground em Paraísos Artificiais, de Marcos Prado; o comércio e o vício em Meu nome não é Johnny, de Mario Lima; a questão legal da droga no documentário Quebrando Tabu, de Fernando Gronstein Andrade. Apresentação dos filmes e das questões Meteorango Kid – O Herói Intergalático (Brasil, 1970), de André Luiz Oliveira Expoente baiano do Cinema Marginal, Meteorango Kid – O Herói Intergalático é a manifestação mais célebre no cinema da contracultura de Salvador entre os anos 1960 e 1970, do desbunde libertário e irreverente. A começar que André Luiz dedica o filme ao “seu cabelo”. Essa postura de irreverência e proclamada irresponsabilidade é o tom também do protagonista Lula, um jovem da classe média baiana que despreza os valores tradicionais da família e do trabalho, como também se mostra indiferente a um engajamento político mais doutrinário em vigor no movimento estudantil na universidade que estuda. O filme se equilibra entre a melancolia desesperada de uma geração no momento mais duro do regime militar e a curtição lisérgica como resposta transgressora ao momento de “ordem e progresso” pelo qual o país passava naquele momento. Ao som dos Novos Baianos, as drogas no filme possuem esse fator de alteração da consciência e rebeldia como uma das únicas posturas de liberdade que o diretor, e parte de sua geração, via como possível naquele momento. Meu Nome Não é Johnny (Brasil, 2008), de Mauro Lima Baseado em romance homônimo do jornalista Guilherme Fiuza, Meu Nome Não é Johhny, do diretor Mauro Lima é um dos sucessos de bilheteria de Selton Mello como ator. Aqui ele interpreta o playboy da Zona Sul do Rio de Janeiro João Estrella, jovem muito popular em seu meio nos 1980 e, entre festas e cocaína, se torna traficante famoso e esbanjador, e acaba indo preso e se tornando notícia nacional. O filme trata do tráfico por um viés pouco comum no cinema brasileiro nos anos 2000: do ponto de vista da classe média alta, não só como consumidora, mas também como fornecedora. O olhar para as drogas aqui é o da curtição hedonista (e da irresponsabilidade), não necessariamente rebelde -­‐ como é o caso de Meteorango Kid – tratada como patologia social (o vício e o crime). Paraísos Artificiáis (Brasil, 2012), de Marcos Prado Paraísos Artificiais, do diretor Marcos Prado, acompanha dois jovens, a DJ Érika e o desenhista Nando, que perseguem festas rave em lugares distantes do Brasil e do exterior. É o primeiro filme brasileiro a tratar da cultura das raves que nos anos 1990 foi sensação na Europa, nos EUA e na América Latina, e ainda hoje movimenta milhares de jovens a praias distantes para ouvir e dançar psy e trance music e tomar drogas sintéticas, parte da cultura das raves. O filme de Marcos Prado acompanha esses jovens de classe média e a relação deles com uma cultura contemporâneo “ritualística” em que a droga é componente fundamental. Porém o filme tenta apontar alguns contradições nessa cultura hedonista do transe lisérgico ao fazer uéa contraposição com a proibição do consumo de drogas. Marcos Prado é produtor de Tropa de Elite, que é outro filme que aponta as contradições da classe média na relação com o consumo e o comércio de drogas. Paraísos Articificais cruza a cultura da droga (como Meteorango Kid) e a questão legalista que envolve os entorpecentes (como Meu Nome não É Johnny). Quebrando o Tabu (Brasil, 2011), de Fernando Grostein Andrade O documentário de Fernando Grostein Andrade procura abrir a discussão sobre o problema das drogas no Brasil e no mundo. Só que ao invés de fazer uma abordagem limitada à “guerra às drogas”, o diretor -­‐ com a contribuição do ex-­‐presidente Fernando Henrique Cardoso, o âncora’ do filme -­‐ faz entrevista com jovens, professores, cientistas e especialistas em política de relação humanizada com a venda e o consumo de drogas em vários países do mundo onde a “quebra desse tabu” foi importante para a pacificação das sociedade em torno dessa questão. Material Anexo A Evolução do Discurso da Droga Se traçarmos a evolução do consumo de drogas, mesmo na sociedade ocidental, iremos encontrar esse consumo articulado, basicamente, a rituais religiosos, à prática de determinados grupos ou, mais recentemente nos anos 60 / 70, à construção simbólica da contracultura. O estilo "libertário-­‐existencial" da contracultura tomou outros rumos no final dos anos 70 no Brasil, e parece que as drogas, desvinculadas de seu campo semântico, foram definitivamente capturadas pelas máfias, pelo narcotráfico e pelo discurso social dominante. Elas parecem ter perdido a "amarração" simbólica que as sustentava durante a contracultura, passando a ser apenas meios, ainda que privilegiados -­‐ devido a seu potencial químico -­‐, para os sujeitos lidarem com o mal-­‐estar da contemporaneidade. Assim, seu consumo foi bastante aumentado e sua oferta diversificada. Se durante a contracultura as drogas faziam, basicamente, parte do contexto de jovens classe média, artistas e intelectuais, nos anos 80 elas atingiram outros estratos populacionais. Além disso, outras drogas, que eram pouco consumidas nesse período, conquistaram rapidamente seu espaço no "ranking" do consumo. Todas essas considerações podem nos levar a refletir sobre a questão das drogas preferidas ou da "moda" por serem elas as que fornecem as capacidades mais valorizadas em nossa sociedade. A maconha e o haxixe eram os elementos básicos na relação do mundo hippie com as drogas. O LSD, os cogumelos e outros tipos de alucinógenos também eram consumidos, mas não de modo tão generalizado (Velho, 1997). No Brasil, destacava-­‐se o uso da maconha e do LSD . No entanto, como já dito acima, o valor de uso das drogas se transformou e a escala de consumo aumentou e se ampliou. Outras camadas populacionais tornaram-­‐se consumidoras sistemáticas de drogas, e outras drogas passaram a ser consumidas. Dentre essas drogas, destaca-­‐se hoje o consumo da cocaína. A cocaína parece ter substituído as "drogas ideológicas" da geração hippie. E, citando Bucher (1992 : 29), parece ser legítimo dizer que "o drogado de hoje não recorre mais a drogas ideológicas, mas a drogas duras, resultando em efeitos mais nefastos e mais trágicos". Carla Mourão Viva Tranquilo Disponível em http://www.vivatranquilo.com.br/saude/colaboradores/carla_mourao/homem_cultura_droga
s/mat3.htm Contracultura, drogas e mídia A questão das drogas apresenta-­‐se, hoje, num contexto absolutamente diferente daquele dos anos 60. Podemos, para ilustrar, fazer um paralelo ficcional criando um pequeno acontecimento que, talvez, com habilidade, um bom contador possa transformar em história. Dele participam dois personagens: o pai, sexagenário, e sua filha, adolescente. A ação limita-­‐se a um comentário e a um gesto. A estudante chega da escola após uma aula especial contra o uso de drogas, e diz a seu pai: “Pai, ele falou um monte contra a maconha. E não é verdade! Eu não vejo acontecer, com você e a mamãe, nada do que ele falou que acontece quando se fuma um baseado!”. O velho hippie sorri. Esse evento condensa dois momentos da mesma história: o presente, manifestado pelo comentário da filha, e o sorriso do pai, que funciona como enigma, exigindo a reflexão sobre o passado. Evidentemente, nas mãos de Angeli, esse mesmo evento ganharia uma leitura antropofágica e tupiniquim na tira cômica dos personagens Wood e Stock, dois velhos cujos nomes referem-­‐se ao festival de música que se tornou ícone do movimento hippie, Woodstock. O pai é personagem de uma época em que o uso de drogas, especialmente as alucinógenas, era visto como uma estratégia para abrir as portas da percepção. Para isso, basta lembrarmos da metáfora que Aldous Huxley utilizou para se referir à alteração dos estados de consciência produzidos pela ingestão de certas ervas e plantas. A filha, ao contrário do pai, vive num ambiente em que a droga é caso de polícia ou, dependendo da ótica, um grande negócio com mercado em franca e constante expansão, apesar dos altos riscos envolvidos. Para o pai, em sua juventude, ser hippie era compartilhar um ideário cuja prática radical dava prioridade às experiências: viver em comunidade, encontrar alternativas para as relações opressivas e alienantes da sociedade de consumo e, é claro, viver de forma prazerosa, numa leitura dionisíaca do cotidiano ou intensamente o aqui e o agora, na versão búdica dessa forma de viver. A radicalidade da experiência passava pela busca de novas maneiras de perceber o mundo e com ele se relacionar. Nessa busca incessante, experimentar tudo o que possibilitasse a abertura das portas da percepção era a palavra de ordem. O ideário hippie envelheceu, seus princípios ganharam vida apenas nos documentos históricos, e o comportamento rebelde adocicou-­‐se com a institucionalização de seus valores . Mas, e no tocante às drogas, o que mudou o sentido da experiência entre uma juventude e outra? Elas perderam seu atributo de libertar o homem ou este atribuiu-­‐lhes novos significados, novas leituras? A resposta parece simples. Parece. As drogas, evidentemente, não perderam suas propriedades. Além do mais, a busca por estados alterados de consciência é algo que acompanha a história do homem desde tempos imemoriais. Se essa busca liberta o homem ou, ao menos, contribui para tal, depende do que se entende por liberação. Depois, o homem encontrou novos significados para sua compreensão do mundo e, dentre estes, a imposição necessária de limites ao uso de drogas, oriundos de sua consciência. Ligue-­‐se. Quando inventou seu famoso slogan “ligar-­‐se, sintonizar-­‐se, libertar-­‐se” para difundir as drogas alucinógenas como terapia do homem moderno, Timothy Leary não fazia senão repetir uma preocupação constante e presente na história do homem com o uso das drogas. Mas deixemos isso de lado, pois é suficientemente conhecido o fato de que inúmeras civilizações utilizaram-­‐se e ainda se utilizam de diferentes substâncias para alcançar estágios alterados de consciência e/ou como formas de penetrar em esferas místicas e religiosas. Concentremo-­‐nos, pois, num segmento mais específico: o da intelectualidade. Nele, encontraremos inúmeros exemplos de personalidades que fizeram das experiências alucinógenas a matéria prima de suas obras e, alguns, de suas próprias vidas. Charles Baudelaire é um nome naturalmente lembrado quando se trata desse assunto. Em 1860 publica Os paraísos artificiais, em que comenta suas experiências com o ópio e o haxixe realizadas com o grupo de poetas e escritores que se reuniam para compartilhar os efeitos produzidos pelo dawamesk, um confeito de haxixe. No livro citado, apesar de reconhecer os “prazeres mórbidos” que a ingestão de drogas como o ópio e o haxixe podem produzir, especialmente depois de um uso prolongado, Baudelaire não deixa de enaltecer aquilo que místicos e xamãs orientais já o sabiam: a descoberta de novas dimensões perceptivas vivenciadas pelo usuário. A crença nas drogas como elemento de liberação leva Aldous Huxley (1894-­‐1963) a escrever livros que o tornaram um dos mais influentes defensores do uso terapêutico das drogas alucinógenas. Dentre os inúmeros e importantes títulos produzidos por ele ao longo de sua existência, destacam-­‐se As portas da percepção, Céu e inferno e A ilha. Seus livros e textos corroboram seu estilo de vida. Anos antes de participar de experiências com Timothy Leary, Huxley já havia experimentado o LSD. A identidade de interesses e valores sobre o uso do LSD foi tanta entre os dois que Huxley não se furtou ao convite de Leary para, juntos, escreverem um manual de uso adequado do LSD. Baseado no livro tibetano dos mortos, o resultado foi publicado sob o título The psychedelic experience. Pouco antes de morrer, bastante enfraquecido pela doença, pede uma dose de LSD para fazer sua última viagem, ouvindo trechos do manual lidos por sua esposa e companheira Laura Huxley. Pouco mais de cem anos separam a publicação de Baudelaire, Os paraísos artificiais, da morte lisérgica de Aldous Huxley ocorrida na ensolarada c psicodélica Califórnia dos anos sessenta. Tanto as experiências lisérgicas de Huxley quanto as opiáceas de Baudelaire apresentam elementos recorrentes: alteração de consciência, percepção de realidades indescritíveis à linguagem comum, descoberta de níveis de sensibilidade e espiritualidade acentuadas pelo efeito das drogas. Não foi à toa que, ao longo do século, em graus variáveis de intensidade, inúmeros cientistas dedicaram-­‐se ao estudo das substâncias psicoativas capazes de alterar a percepção humana. Timothy Leary, com seu slogan – ligar-­‐se, sintonizar-­‐se, libertar-­‐se – não fez senão sintetizar essas experiências e torná-­‐las objeto de desejo da geração de jovens em estado de rebeldia nos anos sessenta. O slogan tem um sentido preciso: ligar-­‐se é o ato de ingerir qualquer substância alucinógena, o que significa realizar um mergulho introspectivo, possibilitando o acesso a múltiplos e diferenciados níveis de percepção; o sintonizar-­‐se denota a necessidade de uma busca harmoniosa e interativa com o mundo exterior, baseada nas novas perspectivas internas, e o libertar-­‐se designa a autoconfiança adquirida com a descoberta das singularidades pessoais. Assim, o slogan de Leary vai ao encontro dos anseios milenares que certas drogas propiciaram a seus usuários no decorrer da história. Tal slogan traz para o campo da reflexão histórica uma novidade que não se encontra no uso da droga como elemento terapêutico, pois essa tese é bastante conhecida tanto por cientistas interessados quanto por usuários de drogas alucinógenas; nem na descoberta dos aspectos místicos e religiosos que, muitas vezes, as experiências alucinógenas produzem. A novidade está no próprio slogan. Pela primeira vez na história, os modernos meios de comunicação seriam utilizados para arquitetar um plano estratégico de divulgação do uso terapêutico dos alucinógenos. Ao se valer dos elementos midiáticos para disseminar sua estratégia de comunicação e vender seu produto, Timothy Leary colaborou para tornar o próprio fenômeno da contracultura um fenômeno midiático. E aqui reside o paradoxo: ao mesmo tempo em que é um movimento radical, adquirindo inclusive características libertárias, anárquicas e de contestação dos valores simbólicos dominantes da época, foi também um movimento que se produziu e foi produzido pela mídia, palavra genérica que serve para designar, de forma econômica, a configuração dos modernos meios de comunicação. Na época em que o slogan foi criado, verão de 66, o “perigo das drogas” já era o mote dos discursos conservadores e da direita norte-­‐americana. Como resultado de uma política repressora e violenta, Leary perde o emprego em Harvard, onde tinha iniciado as experiências com o ácido lisérgico, e se torna alvo de inúmeras perseguições e detenções policiais. Sua expectativa era a de que, assim que seu processo chegasse à Corte Suprema dos Estados Unidos, ele conseguisse promover uma transformação da onda de repressão e violência policial numa oportunidade única de derrubar a lei contra a maconha de 1937 e impedir a proibição do LSD. Mas suas esperanças logo se desvaneceram diante do aumento da repressão. Frente ao impasse, a saída era trabalhar junto à opinião pública, modificando conceitos e opiniões. A idéia de uma grande campanha de comunicação nasce nesse momento crítico. Leary, evidentemente, não estava sozinho em sua empreitada. Entre seus correligionários estava Tom Wolfe, escritor e perspicaz crítico da cultura americana, que realizou diversas tentativas de propagar o uso do ácido lisérgico. Uma delas acabou resultando na campanha publicitária, seguida da criação do slogan psicodélico. Wolfe tinha conversado com seu futuro sogro tentando convencê-­‐lo a entrar no novo negócio que despontava, o LSD. Sua esperança era grande, já que a fortuna do velho tinha sido resultado do comércio ilegal de bebidas, durante a Lei Seca, nos Estados Unidos. Mas a resposta foi negativa. Frustrado, Wolfe conversa com Leary: “Wolfe: -­‐ Vamos ter de fazer as coisas por nossa conta. T. Leary: -­‐ Fazer o quê? Wolfe: -­‐ Tornar as nossas substâncias inebriantes no negócio “in” do momento. Assim como eles tiveram a cultura das casas ilegais e do contrabando de bebidas nos Loucos Anos 20, nós desenvolveremos a nossa própria cultura das drogas. Kerouac e Cassady a começaram, mas eles eram muito boêmios. Temos de fazer o que os caras do álcool fizeram durante a Lei Seca: dissipar essa aura de ilegalidade e perigo. As drogas psicodélicas devem ser associadas à beleza, ao glamour, à sensualidade. Precisamos de símbolos da liberdade individual. Alta moda. Um hedonismo gracioso contra o desleixo dos bêbados”. Da conversa à ação, um passo. Com a campanha do LSD, Leary reitera o que talvez seja o caráter mais paradoxal da contracultura e, ao mesmo tempo, a marca dos acontecimentos históricos da pós-­‐modernidade: a intermediação midiática. Sintonize. Nessa época, tudo convergia para a formação de um universo psicodélico que a indústria cultural tratava de mercadejar. Drogas, sexo, experiências comunitárias, religiões exóticas e filosofias orientais pontilhavam o universo de interesse desse segmento novo de mercado: o jovem. Hábitos, comportamentos e valores tradicionais são contestados, desmontados e modificados. É vital a importância dos meios de comunicação para configurar a contracultura: pela primeira vez, os sentimentos de rebeldia, insatisfação e busca que caracterizam o processo de transição para a maturidade encontram ressonância amplificada nos meios de comunicação. A satisfação juvenil, suas buscas e aventuras ecoam, agora, na velocidade da luz nos tubos eletrônicos da TV. Redes comunicacionais se formam e transformam o planeta em aldeia global. The Beatles foi um fenômeno ímpar na história dessa cultura planetária. Em 1967, o conjunto inglês lança Sgt. Pepper's Lonely Heart Club Band, e o disco é aceito, quase com unanimidade, como a maior obra conceitual da música pop do século. Mas não só isso: é também um ícone psicodélico em que nenhum dos temas da contracultura deixa de se fazer presente: mix experimental, cultural, político e religioso, com temas mesclados a novas texturas e ritmos, além da exploração da sonoridade dos instrumentos exóticos. É difícil não concordar com seu produtor, George Martin: ninguém seria o mesmo depois de ouvir o novo disco. Apesar de desempenhar um papel importante na configuração do universo psicodélico do disco, o LSD ocupou um período relativamente curto na vida do grupo: Lennon e Harrison só haviam experimentado o LSD um ano antes de gravarem o disco e Paul McCartney o faria no ano seguinte, em 1968. Não é difícil perceber no disco sua ambientação psicodélica. E, claro, algumas de suas músicas foram lidas como apologia às drogas alucinógenas: A day in the life, por exemplo, foi proibida na BBC londrina. Mas, curiosa é a história de Lucy in the Sky with Diamonds, outra das músicas do disco considerada ícone da lisergia hippie. Devido às figuras de linguagem psicodélicas e à coincidência das iniciais do título com a sigla do ácido lisérgico, a música de John Lennon foi interpretada como uma apologia ao uso da droga. Desmentindo essa versão, o próprio Lennon explica que a música é uma interpretação poética de um desenho que seu filho, Julian, então com quatro anos, fizera de sua professora, Lucy, passeando no céu, com diamantes (Lucy, in the sky, with diamonds). Apesar do desmentido, Lucy in the sky with diamond ficou registrada como hino lisérgico. Sinal dos tempos. Durante a gravação de Sgt. Pepper’s, os Beatles conhecem um líder espiritual hindu, viajam para a Índia e se aperfeiçoam em meditação transcendental. Em 1968, um ano depois do sucesso estrondoso do disco, anunciam publicamente o abandono do uso de drogas. George Harrison, depois de conhecer Tat Baba, guia espiritual de Ravi Shankar, comentou: “Conhecê-­‐lo e ler a Autobiografia de um Yogi foram as melhores coisas espirituais que já senti; melhores mesmo do que as drogas”. Mas, por que, nos anos 60, a experiência com drogas alucinógenas ganhou tanta importância? Desde a descoberta laboratorial do ácido lisérgico nos anos 40, ele despertou a curiosidade de cientistas e pesquisadores das mais diferentes áreas. A possibilidade de usá-­‐lo como arma estratégica também foi considerada, e a CIA, posteriormente, patrocinou uma série de pesquisas sobre seu uso. Essas experiências não eram de todo desconhecidas. Muitos faziam dela uma forma de aumentar sua receita, outros de ter novas experiências. Personagens ilustres da contracultura como Ken Kesey -­‐ falecido recentemente e conhecido como o roteirista de um dos filmes mais importantes do período contracultural, Um estranho no ninho.-­‐ participaram dessa história. Nesse período, o LSD era um produto bastante disponível enquanto objeto de pesquisa e investigação. Em suas experiências, Timothy Leary recebia centenas depílulas, diretamente do fabricante. Monitorados por cientistas e professores, estudantes e interessados ingeriam a bebida nos laboratórios do curso de Psicologia de Harvard. O culto às drogas ganha nesse momento um entorno mágico, terapêutico ou religioso. Não que ele já não existisse. O homem sempre experimentou produtos que afetam sua percepção, e, desde o começo dos tempos, comunidades inteiras usam bebidas e ervas alucinógenas como parte de rituais religiosos. Mas, se, antes, o culto às drogas é praticado em segmentos restritos da população e é lido e legitimado como hábito cultural, agora tem alcance global e faz parte das pautas e dos programas da mídia impressa e eletrônica. Historicamente, um cenário bastante rico e de muitas transformações. Progressos tecnológicos melhoram a qualidade de vida, a taxa de mortalidade se reduz, e o tempo de vida da população aumenta. Por outro lado, a invenção de pílulas anticoncepcionais e a invenção de satélites que possibilitam a comunicação global do planeta alteram os comportamentos e hábitos da população, que se urbaniza em proporções jamais vistas. Em seus aspectos demográficos, o fenômeno é explosivo. Entre 1946 e 1958, a população jovem cresce assustadoramente. Seus rebentos, chamados de boomers, os nascidos da explosão de bebês (baby-­‐boom), viveram o privilégio de serem os primeiros jovens da sociedade americana do pós-­‐guerra a terem acesso ao dinheiro. Num contexto de abundância material e com dinheiro na mão, essa juventude traduziu-­‐se em poderosa demanda por bens de consumo, constituindo-­‐se num fenômeno mercadológico por excelência. Desde o berço, os boomers acompanham a formação e o desenvolvimento da sociedade pós-­‐
moderna em suas mais diferentes fases. Vivem um cotidiano de abundância material nunca antes visto; acompanham o surgimento e o desenvolvimento da comunicação global, primeiro com o advento da TV, depois com o computador, mas também se enfastiam com a excessiva racionalidade do cotidiano. Ainda que seja tipicamente americano, o fenômeno contracultural encontrou eco na juventude de todos os países que viviam um intenso processo de modernização. Movimentos radicais de juventude afloram em todos os continentes, e, com suas cores locais, os jovens ostentam a bandeira da grande recusa à moderna sociedade. A rebeldia juvenil explode também na indústria cultural: o mercado fonográfico ganha dimensões globais, e a indústria cresce em taxas astronômicas. O suporte dos produtos culturais são as mensagens de insatisfação, recusa e rebeldia que se propagam com a velocidade dos modernos meios globais de comunicação. “Sexo, drogas e rock’n roll” é a frase síntese do momento que dá conta das principais áreas em que o clima juvenil mais se diferencia e se propaga como movimento de mudanças e recusas. Nos anos 60, uma série de acontecimentos históricos condiciona a leitura da rebeldia juvenil, o que a diferencia do movimento beat. Viagens sem destino e experiências diversas continuam na linha de horizonte contracultural, mas agora filtradas pelos problemas colocados pela Guerra do Vietnã, pela ditadura militar nos países latino-­‐americanos, etc. A nova realidade não deixa de produzir suas ironias. Os novos e contestatários ideais, os novos tipos de comportamentos e a irreverência juvenil encontram ressonância no mercado como um segmento promissor. Juventude, mídia e mercado estabelecem mecanismos de retroalimentação. Tomar LSD em qualquer universidade americana que estivesse fazendo experiências com a droga era rotineiro; mas o interesse aumentava na medida em que os resultados das experiências eram divulgados pelos veículos de comunicação, em especial a TV. O contexto da rebelião juvenil era claro, e seus inúmeros produtos (programas de rádio, TV, jornais, livros, fotos, etc.) são, hoje, registros, documentos dessa história. A experiência com as drogas alucinógenas só se torna importante para o sistema simbólico dessa geração porque os efeitos produzidos pela experiência ganham nova significação, nova leitura. Experimentar drogas estava associado a um complexo mecanismo de busca pelo auto-­‐conhecimento, pela expansão da consciência. Sob o efeito de drogas alucinógenas, são poucos os que resistem à percepção de níveis diferenciados de realidade. É como se toda a estruturação lógica de nosso ego se desmoronasse. O inconciliável se concilia, os opostos se complementam. Mente e coração são percebidos enquanto unidade, e o racional é uma parte do vastíssimo campo de estruturações que a mente pode produzir. Os limites entre ilusão e realidade tornam-­‐se tênues e a loucura se vislumbra no horizonte. Sonhar também é perigoso. É difícil não concordar com o poeta quando lamenta que muitos de seus heróis morreram de overdose (Cazuza). Para os críticos, claro, estava instaurado o caos produzido pelo irracionalismo juvenil. Para a contracultura, um caminho pelo desconhecido, pela aventura, pela descoberta de outras formas de conceber e viver o mundo. A erva do diabo é o protótipo desse momento. O livro de Carlos Castañeda dá início a uma série de vários volumes que relatam sua pesquisa antropológica sobre xamanismo. Em sua saga, o que temos é o processo de transformação vivido pelo autor que, antes de concluir sua pesquisa acadêmica, tornou-­‐se, ele próprio, um bruxo. A obra de Castañeda pode, hoje, ser lida como uma espécie de fundamento místico-­‐filosófico da contracultura. Sua narrativa redesenha um dos caminhos traçados no mapa contracultural. Não é difícil compreender o desprezo e o sarcasmo de muitos jornalistas e acadêmicos que o acusam de ser responsável pelo irracionalismo dos anos 70. Longe de serem um culto às drogas, os livros de Castañeda têm seu objeto de investigação centrado no processo de aprendizado dos caminhos da bruxaria. O uso de ervas e plantas alucinógenas é, no caso de Castañeda, um plano de seu mestre e brujo, Don Juan, para desestruturá-­‐lo mentalmente, tornando-­‐o apto a seguir os passos da brujeria. Não é difícil imaginar sua indignação quando soube, pelo próprio mestre, que o caminho espiritual prescinde do uso de qualquer droga. Castañeda tinha ingerido durante anos os mais diferentes tipos de plantas alucinógenas existentes no deserto mexicano; vivido momentos difíceis, com a cabeça confusa, à beira da loucura por causa das drogas. Seu mestre, indiferente, continuava ministrando-­‐lhe alucinógenos. Insistindo na razão do uso maciço de alucinógenos, Don Juan não hesitou: foi a maneira encontrada para quebrar a rigidez intelectual cristalizada na mente de Castañeda. Mas, se por um lado, a experiência com as drogas alucinógenas permite alterações da consciência suficientes para que se percebam os limites da racionalidade, por outro, a reiteração do seu uso faz com que os velhos paradigmas reconquistem o espaço perdido integrando os efeitos alucinógenos como parte de seu sistema mental. Se o objetivo é a libertação das amarras da racionalidade, o obstáculo natural é a própria mente. É impossível generalizar, mas não são poucos os relatos autobiográficos que narram o processo de abandono do uso de drogas após experiências muito fortes, autoreveladoras. Cedo ou tarde, essas experiências levam a secundarizar a importância da droga: depois que você descobre o outro lado... prá quê?, pergunta-­‐se a si mesma uma jovem, ex-­‐freqüentadora do Santo Daime, uma seita religiosa que utiliza uma bebida alucinógena para seus rituais. Em sua maioria, o percurso é recorrente: quando o uso de drogas desperta o universo religioso, místico ou mítico, a droga, de uma forma ou de outra, perde importância e significado. Liberte-­‐se A mesma jovem do início deste texto está agora falando com o pai sobre um livro. Entusiasmada, resume os argumentos que explicam a inexistência de loucura em determinadas sociedades não-­‐civilizadas. Nós tendemos à loucura, pai, diz a menina, porque tentamos explicar tudo. Não existe o desconhecido. No pior das hipóteses, o psicanalista resolve. E a loucura, como a panela, submetida a excessiva pressão, explode. Já para o não-­‐
civilizado, o diálogo se dá pela linguagem do mito, equilibrando o indivíduo às suas condições ambientais. Em última análise, conclui a jovem estudante, o que o autor está dizendo é que a magia cura. E, por que, então, pai, não se usa mais a magia prá se ficar menos louco? Bibliografia: BAUDELAIRE, Charles. Les paradis artificiels. Paris: Garnier-­‐Flammarion, 1966. BENJAMIN, Walter. Haxixe. São Paulo: Brasiliense, 1984. CASTANEDA, Carlos. A erva do diabo. Rio de Janeiro: Record, s.d. (todas as obras de Castaneda foram publicadas por esta editora e encontram-­‐se disponíveis nas livrarias). COCTEAU, Jean. Ópio: diário de uma desintoxicação. São Paulo: Brasiliense, 1985. GABEIRA, Fernando. A maconha. São Paulo: Publifolha, 2000. HUXLEY, Aldous. As portas da percepção e O céu e o inferno. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. LEARY, Timothy. Flashbacks. LSD: a experiência que abalou o sistema. 1ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1989. MARTIN, George. Paz, amor e Sgt. Pepper: os bastidores de Sgt. Pepper. 2a/ ed. Rio de Janeiro: Relume-­‐Dumará, 1995. McKENNA, Terence. Alucinações reais: uma viagem cósmica inspirada pelo uso das plantas de poder. Rio de Janeiro: Record, 1993. QUINCEY, Thomas de. Confissões de um comedor de ópio. Porto Alegre: LPM, 2000. ROBINSON, Rowan. O grande livro da Cannabis: guia completo de seu uso industrial, medicinal e ambiental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. Cesar Carvalho Intercom Disponível em http://intercom.org.br/papers/nacionais/2002/Congresso2002_Anais/2002_NP13CARVALHO.p
df O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas Maurício Fiore A guerra mundial contra as drogas -­‐ nome pelo qual ficaram conhecidas parte das substâncias psicoativas que alteram a consciência e a percepção -­‐ completa, este ano, um século. Ainda que as resoluções da Primeira Conferência Internacional do Ópio de 1912, realizada em Haia, tenham sido praticamente abandonadas nos anos conturbados entre as duas grandes guerras, o modelo ali esboçado foi triunfante. Defendida, patrocinada e sediada pelos eua, já sob a coordenação da onu, a Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961, implantou globalmente o paradigma proibicionista no seu formato atual. Os países signatários da Convenção se comprometeram à luta contra o "flagelo das drogas" e, para tanto, a punir quem as produzisse, vendesse ou consumisse. Proibicionismo é uma forma simplificada de classificar o paradigma que rege a atuação dos Estados em relação a determinado conjunto de substâncias. Seus desdobramentos, entretanto, vão muito além das convenções e legislações nacionais. O proibicionismo modulou o entendimento contemporâneo de substâncias psicoativas quando estabeleceu os limites arbitrários para usos de drogas legais/positivas e ilegais/negativas. Entre outras consequências, a própria produção científica terminou entrincheirada, na maior parte das vezes do lado "certo" da batalha, ou seja, na luta contra as drogas1. O proibicionismo não esgota o fenômeno contemporâneo das drogas, mas o marca decisivamente. Ainda que escape da ambição deste artigo traçar a genealogia da emergência das drogas como questão contemporânea, é preciso ressaltar que não se "explica" o empreendimento proibicionista por uma única motivação histórica. Sua realização se deu numa conjunção de fatores, que incluem a radicalização política do puritanismo norte-­‐americano, o interesse da nascente indústria médico-­‐farmacêutica pela monopolização da produção de drogas, os novos conflitos geopolíticos do século xx e o clamor das elites assustadas com a desordem urbana. Além disso, sem desconhecer a importância histórica do pioneirismo e do empenho dos eua para torná-­‐la universal, é preciso notar que somente convergências locais na mesma direção puderam fazer da proibição uma realidade global2. O caso brasileiro, nesse sentido, é exemplar, na medida em que as legislações proibicionistas foram criadas pari passo às norte-­‐
americanas e, no caso específico da maconha, droga já há muito estigmatizada pelas elites locais, a perseguição oficializou-­‐se primeiro aqui3. Pode-­‐se dizer que três conjuntos de substâncias e/ou plantas foram eleitas alvos-­‐padrão do paradigma proibicionista: papoula/ópio heroína, coca/cocaína e cannabis/maconha. Ainda que o conceito farmacológico de droga seja muito mais amplo -­‐ "substância que, quando administrada ou consumida por um ser vivo, modifica uma ou mais de suas funções, com exceção daquelas substâncias necessárias para a manutenção da saúde normal" -­‐, é a esse conjunto de substâncias que o termo passou a ser aplicado4. Entre as drogas, há as psicoativas ou psicotrópicas, que têm como característica principal a ação sobre o funcionamento do cérebro. Hoje, o termo "drogas" pode se referir tanto a seu sentido farmacológico, muito mais amplo, quanto a um conjunto bem mais restrito, ainda que flexível, de substâncias psicoativas, notadamente as ilícitas. Do ponto de vista conceitual, a Convenção Internacional de 1961 definiu um modelo que permanece vigente e divide as drogas e suas plantas originárias em listas. O critério, por sua vez, seria o potencial de abuso e suas aplicações médicas. A primeira lista é composta daquelas com alto potencial de abuso e nenhum uso medicinal e, como esperado, ali estão incluídas, entre outras, as três drogas-­‐alvo do proibicionismo: heroína, cocaína e maconha. As outras listas reúnem drogas com potencial de abuso, mas conhecido uso medicinal (morfina e anfetaminas, por exemplo) e precursores (substâncias e outros materiais empregados na produção de drogas proibidas)5. Diferente de muitas outras convenções, essas foram seguidas com incrível rigidez pela maior parte dos signatários. Independente de seus intricados feixes e nuances, sustento que o paradigma proibicionista é composto de duas premissas fundamentais: 1) o uso dessas drogas é prescindível e intrinsecamente danoso, portanto não pode ser permitido; 2) a melhor forma de o Estado fazer isso é perseguir e punir seus produtores, vendedores e consumidores. Assim, interessa apresentá-­‐las, seguindo sua própria lógica, mais detalhadamente. Primeira premissa proibicionista: o consumo de drogas é uma prática prescindível e danosa, o que justifica sua proibição pelo Estado A ingestão de qualquer uma das drogas proscritas é fisiológica e mentalmente danosa. Os danos fisiológicos podem ocorrer em curto ou médio prazo. Caso seja continuado, o consumo dessas drogas encadeia graves consequências, podendo levar, inclusive, à morte, seja por deterioração da saúde geral, seja por intoxicação acidental (overdose). Não há padrão, quantidade ou nível seguro para o consumo dessas drogas. Essas drogas provocam dependência. Por ser inicialmente prazeroso, seu consumo tem grande chance de levar seus consumidores à repetição ou à substituição por uma substância mais potente, numa escalada que culmina com a perda do autocontrole e da capacidade de livre escolha. A dependência dessas drogas, ainda que possa variar para cada indivíduo, é uma patologia associada aos seus efeitos neuroquímicos, o que acarreta uma perda gradual de outros interesses, uma busca incessante por novas doses e uma dolorosa síndrome de abstinência -­‐ grande sofrimento psíquico e/ou fisiológico pela suspensão do consumo. Além da dependência, elas potencializam outros transtornos mentais graves, como depressão, psicose e esquizofrenia. Crianças e adolescentes são mais vulneráveis ao consumo dessas drogas, o que é especialmente grave na incompletude de sua formação intelectual. O consumo de drogas gera, também, graves consequências sociais, como o comportamento descontrolado e a deterioração dos laços sociais. Na medida em que seus efeitos suspendem o julgamento normal dos indivíduos, essas drogas levam a ações inconsequentes e, muitas vezes, violentas, agravadas pela incapacidade que muitos dependentes enfrentam para bancar a compra de novas doses. Dado esse conjunto de danos e considerando que o consumo dessas drogas é totalmente prescindível, já que elas não têm aplicação médica, cabe ao Estado proibi-­‐las. Para tanto, ele goza de legitimidade para perseguir e punir quem as produz, vende ou consome. Segunda premissa proibicionista: a atuação ideal do Estado para combater as drogas é criminalizar sua circulação e seu consumo Com a legitimidade conferida pela primeira premissa, o Estado deve agir em duas frentes: impedir a produção e o comércio dessas substâncias e reprimir seus consumidores. Com esse objetivo, a Convenção da onu obriga os Estados a aplicar duras sanções penais aos produtores e vendedores dessas drogas, classificados, então, como traficantes. Para seus consumidores, as Convenções pregaram, inicialmente, a dissuasão via legislação penal. Nas últimas décadas, no entanto, a possibilidade de tratamento passou a ser considerada uma alternativa, desde que se inserisse num conjunto de sanções que deixasse clara a proibição da prática. CRÍTICA ÀS PREMISSAS PROIBICIONISTAS Os potenciais danos individuais e sociais do consumo de drogas não justificam a sua proibição Todas as ações humanas engendram algum potencial de perigo ou dano. Locomoção, esporte e sexo seriam exemplos de práticas potencialmente danosas, mas, pode-­‐se, para os fins deste artigo, limitá-­‐las às que envolvem ingestão voluntária de substâncias (há também a poluição e a contaminação, que provocam danos irrefutáveis). Nesse caso, há um campo controverso, o do consumo abusivo ou desequilibrado de determinados alimentos, considerado um dos mais graves problemas de saúde pública do planeta. Limito-­‐me, neste artigo, aos procedimentos de controle estatal no campo das drogas. Os protocolos de pesquisa de novas drogas com aplicação médica, por exemplo, supõem riscos na forma de efeitos colaterais não previsíveis. Reconhece-­‐se, inclusive legalmente, que eles irão ocorrer, ocasionando complicações graves e até letais. No caso das drogas de uso mais geral, o Estado se limita a regular a produção e a comercialização, não o consumo, sendo responsabilidade dos indivíduos obedecer, ou não, à prescrição médica. E há, ainda, drogas que prescindem de receituário médico, disponíveis nos balcões de farmácia para livre comercialização. Ali se encontram, por exemplo, os analgésicos, que em muitos países, como o Brasil, lideram os investimentos do mercado publicitário e estão, ao mesmo tempo, relacionados a milhares de mortes anuais, seja por reações adversas e efeitos colaterais, seja por consumo abusivo. Mais próximos do objeto de discussão, temos as drogas psicoativas com aplicação médica, cuja comercialização segue regras mais rígidas de controle de receituário, como os ansiolíticos e os antidepressivos. Mesmo com fiscalização permanente, sabe-­‐se que há um enorme mercado clandestino dessas substâncias, que fazem parte de muitos estoques domésticos. Com o grande crescimento do número de diagnósticos de transtornos mentais diversos, esses medicamentos ocupam, há anos, as listas dos mais vendidos, o que tem gerado grande debate entre especialistas6. Mais polêmico ainda é o avassalador crescimento do diagnóstico infantil de transtornos como o do déficit de atenção, tratados por meio do uso sistemático de estimulantes7. Há, também, produtos que contêm substâncias psicoativas e não têm aplicação médica oficial. São as drogas mais consumidas do planeta: as bebidas alcoólicas, as bebidas estimulantes (café, chá e energéticos) e o tabaco8. Fora das listas da onu de drogas proscritas, sofrem restrições diferentes em cada país, mas, no geral, seu comércio é legal e a decisão sobre compra e consumo é individual para os adultos. E, finalmente, as drogas psicoativas que, mesmo ilegais, são maciçamente consumidas por milhões de pessoas no mundo. Sobre sua comercialização não há controle do Estado, que se limita a pedir -­‐ e, de alguma forma, obrigar -­‐ a seus cidadãos que se mantenham distantes para que não coloquem a si e à sociedade em risco. Todas essas drogas psicoativas têm grande potencial de dano, seja fisiológico, seja mental. Além disso, uma parte significativa delas é bastante tóxica, gerando grande número de mortes acidentais todos os anos. E, o que é mais importante, os indivíduos podem consumi-­‐las de maneira abusiva, seja esporádica, seja frequentemente, o que pode levar tanto a comportamentos perigosos como a quadros graves de dependência. Como se vê, tanto as drogas psicoativas livremente disponíveis como as controladas ou totalmente ilegais são perigosas. Mas, por isso, podem ser consideradas prescindíveis? Definitivamente, não. O uso desse enorme conjunto de produtos, plantas e moléculas tem diversas motivações e parte delas são de indiscutível importância para a humanidade: ajudam no enfrentamento de doenças e infecções, aliviam a dor, apaziguam a ansiedade, melhoram o desempenho, despertam prazer, excitam, inspiram reflexões, facilitam relações sociais e, o que talvez seja uma combinação de cada uma dessas coisas, suspendem a forma ordinária de perceber o mundo. Por essas e muitas outras razões, os seres humanos as procuraram em toda a história e continuarão a fazê-­‐lo. Como outras experiências e práticas liminares, essa alteração é arriscada e, por isso mesmo, o consumo de substâncias psicoativas foi sempre cercado de controles e interdições sociais. O exagero da premissa proibicionista é fazer do Estado, cujo motivo primordial de existência é a garantia de liberdades e direitos individuais, o promotor dessas interdições por meio da criminalização que impeça a adultos dispor de seus corpos (e ainda supor, como será discutido a seguir, que eles, com isso, deixarão de fazê-­‐lo). Isso não é o mesmo que advogar por um cenário libertário radical, potencialmente inconsequente, em que ao indivíduo é dada uma autossuficiência abstrata. Sabe-­‐se que o Estado se constrói em permanente arena de conflitos de interesses e valores, alguns antagônicos, mas deve haver limites para sua atuação. As práticas corporais e a ingestão de substâncias devem ser um desses marcos de autonomia, e as interdições tutelares só se justificariam em casos individuais com cuidadoso processo médico-­‐ -­‐judiciário. E, se esse é o caso do consumo de algumas substâncias hoje proscritas, então o Estado teria, por decorrência, que estender a interdição para um campo geral das drogas, dos alimentos e até de outras práticas tidas como "perigosas". O braço mais poderoso e, portanto, perigoso do Estado é a punição e, por isso, seu uso deve ser sempre considerado um recurso excepcional. Os defensores dessa tutela lançam mão de um argumento importante. Uma vez dependentes, os indivíduos perderiam sua capacidade de livre escolha, permanecendo presos à "escravidão" da compulsão pela droga. Porém, mesmo que se reconheça que a dependência é um quadro dramático, a incapacidade de julgamento é controversa. Mais importante, essa condição não justifica a supressão do direito de escolha de outros indivíduos. Além de a interdição do uso não se sustentar pela existência do abuso, ela própria não é capaz, no caso das drogas, de impedi-­‐lo. É provável que muitos dos que discordam da intromissão indevida do Estado na esfera privada continuem preocupados com o papel do Estado diante das consequências negativas que o uso de muitas dessas drogas atualmente proibidas pode acarretar. Mas é justamente a supressão da primeira premissa -­‐ a punição aos consumidores de drogas -­‐ que pode ensejar uma atuação não só mais justa, como mais eficaz. Reconhecendo que as drogas continuarão a existir, o Estado deve promover outros controles sociais e promover o autocuidado, as melhores formas possíveis de prevenção e redução de danos, ignoradas pelo proibicionismo. Ao proibir a produção, o comércio e o consumo de drogas, o Estado potencializa um mercado clandestino e cria novos problemas Sustentada pela legitimidade concedida pela primeira premissa, o Estado centraliza seus esforços para impedir a circulação de drogas e dissuadir seus consumidores. Ao naturalizar a proibição como única forma de enfrentar o problema, cria-­‐se uma falácia para sustentá-­‐la: drogas são proibidas porque são ruins e são ruins porque são proibidas. Enquanto existirem, por essa lógica, as leis devem continuar determinando que consumi-­‐las é errado e, portanto, punível. No entanto, o mesmo século do proibicionismo foi o século do crescimento do consumo de drogas. Ainda que não se possa creditar o aumento do consumo de drogas ilegais à proibição, deve-­‐se admitir que ela falhou em seus objetivos, seja de erradicá-­‐lo, seja de contê-­‐lo. O grande equívoco da segunda premissa é que um fenômeno de tamanha complexidade possa ser contido por um marco regulatório tão simplório, que divide drogas tão diferentes num esquema binário: permitidas e proibidas. A produção e o comércio de drogas ilícitas são, junto com o tráfico de armas, o maior mercado criminoso do mundo. Funcionando sem nenhum tipo de regulação, o comércio dessas drogas envolve, na maior parte das vezes, exploração de trabalho, inclusive infantil, contaminação ecológica, corrupção de agentes públicos e, o que é mais grave, utilização de violência armada para demarcação de interesses e outros conflitos. É importante lembrar, nesse último ponto, que, diferente do que pregam os defensores da proibição, os dados empíricos não relacionam o consumo de drogas à violência, mesmo na dinâmica própria do comércio ilegal. Países da Europa Ocidental, por exemplo, têm, proporcionalmente, mais consumidores de drogas ilegais do que a maior parte dos países da América Latina, mas tanto o consumo como o comércio dessas substâncias se dão de forma muito menos violenta. Ou seja, a violência do comércio de drogas responde aos contextos em que ele ocorre e, portanto, ele acentua a desigualdade internacional e intranacional. Como o tráfico é uma atividade de lucro hipertrofiado, principalmente no setor de distribuição atacadista da cadeia, parte significativa dos ganhos pode ser usada para a compra de armamentos e para corromper setores da burocracia estatal, principalmente agentes de segurança. O exemplo mais recente e dramático das consequências da guerra às drogas acontece há anos no México: extermínios quase diários no enfrentamento entre gangues e destas com o exército -­‐ cujas vítimas não se restringem aos dois lados, evidentemente9. Como muitas outras formas de violência, as vítimas e os algozes dessa guerra são oriundos, em sua maioria, das camadas mais pobres e estigmatizadas de seus países. E a atuação das polícias se concentra normalmente em cima do mercado varejista, o mais exposto e ocupado pelos que menos lucro têm com esse comércio. Os bilhões que o tráfico movimenta, no entanto, continuam circulando pelos mercados com maneiras diversas de tornar o dinheiro legal. Ano após ano, medidas de inteligência no combate à lavagem desse capital são anunciadas, mas seu impacto no tráfico é pífio. Prendendo cotidianamente os varejistas "de rua", rapidamente repostos num mercado tão dinâmico, a polícia faz do tráfico de drogas um dos principais responsáveis pelo alarmante crescimento do encarceramento em diversos países. No Brasil, entre os cerca de 513 mil presos, estima-­‐se que 106 mil respondam por crimes relacionados às drogas10. E a tendência atual é que os crimes relacionados às drogas respondam por mais encarceramentos, na medida em que seu crescimento entre proporção total de detidos cresceu, entre 2006 e 2010, 62%, contra 8,5% de outros crimes11. Na medida em que não cumpriam a meta de um "mundo livre de drogas" para os próximos decênios, as diversas Convenções Internacionais postergavam seus objetivos. No último deles, o encontro da Comission on Narcotic Drugs (cnd) em Viena, 2009, a nova justificativa tomou contornos oficiais: se um mundo sem drogas parece pouco factível num futuro próximo, continuar a guerra é o que garante que o consumo não atinja níveis catastróficos. Na verdade, a Convenção apenas se apropria de uma perspectiva que já era clara para a maior parte dos agentes envolvidos no cotidiano da guerra às drogas, que nunca vislumbraram uma vitória definitiva. É uma guerra na qual se costuma comemorar "vitórias" parciais, como a prisão de traficantes e a apreensão de drogas, que seriam capazes de retirar das ruas o "veneno" que o inimigo, cada vez mais perigoso, distribui12. Ignorando que há substituição permanente de função e que apenas uma pequena parte do que circula no mercado é apreendida, a polícia exalta mais os procedimentos do que os resultados práticos: os preços da cocaína e de sua versão tragável, o crack, têm permanecido praticamente estáveis em São Paulo há quase duas décadas13. Por fim, sob o proibicionismo, os consumidores de drogas são conduzidos a um contato estreito com o crime. Envoltas por uma aura marginal que tanto seduz como estigmatiza, as drogas tornam-­‐se um marcador de coragem e virilidade. Demonizadas por campanhas que carregam mais pânico do que informação, duas drogas tão diferentes como maconha e cocaína, por exemplo, misturam-­‐se não só no imaginário, mas nos locais e/ ou nas pessoas que as vendem. Diferentemente do que ocorre com as drogas legais, sobre as quais os serviços de saúde podem fornecer informações a respeito de usos mais seguros e, assim, estimular o autocuidado, o consumidor de drogas ilícitas é confrontado com uma única decisão: interromper o consumo ou manter-­‐se escravo da droga. O fortalecimento das críticas e a modernização do paradigma: "Guerra contra o tráfico, tratamento para o viciado" Nos últimos anos, as críticas ao paradigma proibicionista não apenas se fortaleceram como conseguiram escapar do lugar a que foram estrategicamente relegadas ao longo do século xx: um exotismo inconsequente ou fruto do comprometimento pessoal de defender o uso de drogas como positivo14. Abordagens pragmáticas e realistas, como a redução de danos, conseguiram se distanciar das premissas proibicionistas e alcançar bons resultados, com os quais ganharam, lentamente, credibilidade. Guiadas pelo pressuposto de que cabe aos profissionais de saúde a minimização dos danos e não a erradicação das drogas, as políticas de redução de danos foram decisivas para recolocar os termos do debate15, principalmente no cuidado com o consumidor. Dessa forma, o encarceramento de usuários/ dependentes foi sendo mais e mais considerado uma ação estatal anacrônica e desumana. Em vez de puni-­‐los com prisão, o Estado deveria tratá-­‐los, mesmo que contra sua vontade. Essa perspectiva, já prevista pelas Convenções, se configura hoje como uma espécie de "modernização" da premissa proibicionista e influenciou, no Brasil, importantes mudanças na atualização da legislação sobre o tema. A Lei de Drogas (n. 11.343), promulgada em 2006, endureceu o combate ao tráfico e manteve a criminalização do consumidor -­‐ o fato de o uso estar incluído no código penal é prova disso -­‐, mas eliminou a pena de prisão para os indivíduos flagrados com drogas para seu próprio uso, estipulando penalidades que vão de advertência verbal à prestação de serviços públicos. Na outra ponta, a lei aumentou a pena mínima de prisão para quem portar drogas destinadas ao tráfico de três para cinco anos16. Chamo a atenção para duas consequências práticas da lei: ao não estipular quantidades ou outros critérios objetivos para definir se a droga é destinada para venda ou para o consumo, continua sendo conferida à autoridade policial a responsabilidade dessa interpretação e a instauração de inquérito, avaliado posteriormente pelo Ministério Público e pelo poder Judiciário17. Duas pesquisas recentes mostraram que a lei encarcera jovens, normalmente pobres, primários e que portam pouca quantidade de drogas. Além disso, uma vez enquadrados como traficantes, grande parte deles responde ao processo encarcerados e dificilmente conseguem escapar de condenação18. Em segundo lugar, ao aumentar o fosso que divide consumidores e traficantes, a lei parece ter aumentado o rigor policial, que desde sua promulgação cresceu substancialmente, como citado há pouco. A mudança da lei, inegavelmente importante ao suprimir a pena de prisão de usuários, parece encerrar um dilema: por quais caminhos conduzir as críticas ao proibicionismo. Sua concretização está implícita, por exemplo, na mais influente confrontação política internacional, a Comissão Global de Política de Drogas, que reúne líderes políticos importantes19, artistas e especialistas célebres. O argumento principal do grupo é que a guerra às drogas é um fracasso, com terríveis efeitos colaterais do mercado ilegal de drogas e das violentas e dispendiosas tentativas de combatê-­‐lo. Seu principal ataque, assim, se dá à segunda premissa proibicionista, a de que as drogas devem ser combatidas penal e militarmente. Como essa, outras críticas ao proibicionismo não estão direcionadas a sua premissa fundamental, a de que o Estado pode e deve interferir na decisão individual de consumir drogas. Há, sem dúvida, um componente tático nessa opção. O debate sobre drogas está pautado há mais de um século pelo pânico moral e por um formato belicista no qual questionamentos da primeira premissa -­‐ o Estado deve, realmente, proibir o consumo de drogas? -­‐ são normalmente interpretados como simpatia interessada ou inconsequente pelo inimigo20. Quando questiona o resultado da guerra, a crítica se torna mais palatável e pode angariar mais apoio. Caberia uma reflexão sobre os seus limites. A manutenção da premissa de que as drogas são ruins a ponto de justificar sua proibição é o esteio mais profundo do paradigma. Assemelhando-­‐se a muitos outros debates políticos contemporâneos, a discussão sobre política de drogas ensejará, necessariamente, conflitos entre valores morais que, no mais das vezes, terminam em um estéril polemismo. É possível, no entanto, que mudanças significativas possam ocorrer sem que os limites ao papel do Estado sejam questionados? Seguindo a provocação de David Husak21, uma das maneiras retóricas de recolocar o papel do Estado na discussão é inverter a pergunta que normalmente é feita aos críticos do proibicionismo. Assim, em vez de responder passivamente à questão "Por que o Estado deve descriminalizar o uso de drogas?", deve-­‐se colocar outra: "Por que o Estado deve proibir o uso de drogas?". A estratégia de questionar a primeira premissa, ainda que politicamente mais delicada, pode abalar de maneira mais consistente todo o paradigma. A ruína histórica de outro modelo proibicionista é didática. Na década de 1920, os eua, depois de décadas de pressão de grupos religiosos, comunitários e feministas, conseguiu reunir apoio político suficiente para uma ambiciosa empreitada: extirpar o consumo de álcool do país22. A "Lei Seca" vigorou durante treze anos e, até hoje, é o exemplo mais evocado de fracasso por conta de suas consequências: aumento de crimes violentos, consolidação do crime organizado e envenenamentos por conta da produção clandestina. Hoje, ela não é considerada um delírio proibicionista apenas por ter fracassado, mas porque seu fundamento autoritário -­‐ o Estado pode, em defesa da sociedade, proibir que indivíduos comprem álcool legalmente -­‐ não parece nem um pouco plausível, o que torna pouco provável sua reintrodução. ALGUNS PRESSUPOSTOS PARA MODELOS ALTERNATIVOS Como dito acima, defender um modelo alternativo ao proibicionismo não é afastar o Estado do problema, mas rediscutir o seu papel para que ele atue com mais eficiência dentro de limites democráticos. A luta pela mudança do paradigma deve, portanto, ser simultânea à construção de legislações e políticas públicas que estabeleçam normas justas, promovam práticas menos nocivas e atendam da melhor forma possível os problemas que o consumo de drogas inexoravelmente causará. Apresento, de forma bastante resumida, algumas sugestões gerais oriundas da literatura e de algumas experiências internacionais: 1. Valorizar o autocuidado e os controles sociais A alteração sistemática da consciência por meio de substâncias não é uma ação isolada. Os indivíduos o fazem em contextos sociais específicos que estão, como todos os outros, repletos de valores, regras e sentidos que tanto incitam quanto estabelecem parâmetros. Aos efeitos desordenadores das drogas, sempre são postos controles e freios sociais, inclusive com aplicação de sanções. Num exemplo atual, indivíduos e sociedade se equilibram entre estímulos, valores e sanções que dizem respeito ao consumo de álcool. O Estado, nesse caso, se ausenta da tarefa de regular o mercado e desestimular o uso, mas, ainda assim, a maior parte dos bebedores não pode ser considerada socialmente disfuncional ou dependente crônica. Quando se reconhece que é impossível suplantar os problemas que o consumo de drogas inevitavelmente pode causar, percebe-­‐se com mais facilidade que nenhuma medida preventiva será mais eficiente do que o autocuidado e o fortalecimento de laços sociais. Há que se evitar, também, a crença de uma regulamentação onipresente da produção e do comércio de substâncias psicoativas. Medidas de controle e desestímulo são fundamentais -­‐ aumento de preços, restrição de pontos de venda, limitação de quantidade ofertada, controle de dosagem etc. -­‐, mas devem ser levados em conta os padrões de consumo mais comuns para que não se configurem num grande incentivo à hipertrofia do inevitável mercado clandestino. 2. Descriminalização (de fato) do consumo e estipulação com critérios objetivos Uma política justa e eficiente sobre drogas pressupõe, no mínimo, a descriminalização do consumidor. Uma experiência prática que tem sido apontada como modelo é a portuguesa. Há uma década, uma nova lei manteve a ilegalidade das drogas, mas tornou seu porte para consumo uma infração administrativa. Caso flagrado com drogas, o indivíduo é ouvido por uma junta civil composta de psicólogos, médicos e assistentes sociais que, de forma compartilhada e sob a perspectiva do cuidado à saúde integral, decidem se é o caso de um tratamento ou de sanções mais sérias, como multas. Em boa parte dos casos envolvendo adultos e drogas como maconha, o papel do Estado se encerra, temporariamente, nesse contato. As normas portuguesas estabelecem com mais clareza qual a quantidade que tipifica a posse para uso (estimada para dez dias de consumo), e os resultados obtidos desde a mudança são positivos, como a queda do número de consumidores problemáticos e a diminuição do envolvimento de crianças com drogas23. A maior conquista do modelo, no entanto, é demonstrar que a supressão da punição não faz com que todos, principalmente os jovens, corram para o traficante mais próximo em busca de drogas. Sua introdução, no entanto, deve ser adaptada a contextos como o brasileiro, caracterizado por grande seletividade penal contra populações vulneráveis. Tirar o consumidor da órbita do direito penal por meio de critérios claros para definir o que é porte para consumo e para tráfico é uma mudança menos polêmica e com impactos positivos. 3. Planejamento de ações de acordo com as especificidades de cada droga O uso recorrente do termo "drogas" neste artigo pode levar à conclusão equivocada de que se está sugerindo que elas devem ter, por parte do Estado, tratamento equivalente. Sob o proibicionismo, um único critério obscuro -­‐ legalidade versus ilegalidade -­‐ uniformiza substâncias muito diferentes. Políticas eficientes devem se basear em dados empíricos sobre os efeitos, os riscos potenciais e os padrões de consumo de cada uma delas. É com base nessa especificidade que grande parte dos críticos do proibicionismo defendem a possibilidade de mudança imediata, por exemplo, do estatuto jurídico da maconha, a droga ilegal mais consumida do planeta. Não obstante seu consumo possa acarretar danos e nem todos eles serem plenamente conhecidos, a maconha não apresenta toxicidade letal e o padrão de consumo mais comum não é problemático. Além disso, a manutenção da maconha na lista de plantas proscritas tem dificultado a investigação sobre a sua ampla e bem demonstrada função medicinal24. Outras drogas ilegais e bastante difundidas, como a cocaína, demandariam modelos mais complexos de regulamentação, algo próximo do que atualmente é feito para os medicamentos controlados. Nesses casos, o desafio seria equilibrar uma política que garantisse mais controle sem criminalização, desestimulando o mercado clandestino25. Não se deve esquecer que cada vez mais substâncias estarão disponíveis, demandando novas formas de o Estado lidar com a questão. Hoje, proibir tem sido a resposta. Desafiados por novas substâncias ou formas de alterar a consciência no futuro, os Estados poderão pagar um preço alto por não ter testado e aprimorado outras alternativas. O álcool e o tabaco são outros bons parâmetros para o planejamento da inclusão das drogas ilegais na supervisão estatal. O álcool, legalizado, sofre o mesmo controle de qualidade dos alimentos e seu comércio, desde que tributado, é livre (preços e pontos de venda), sendo apenas fiscalizado, com pouco rigor, o acesso por menores de idade. Sua publicidade, objeto de investimentos maciços, praticamente não sofre restrições26. Portanto, é um exemplo de omissão do Estado, o que se explica em grande parte pela pressão dos interessados diretos no seu comércio. Já o tabaco, também legalizado, por outro lado, vem sendo objeto de recente intervenção estatal sob quatro vertentes principais, justificada pelos incontestáveis danos epidêmicos gerados pelo seu consumo: disseminação de informações e alertas sobre seus danos potenciais, veto quase total da publicidade, aprimoramento do atendimento aos dependentes e restrição de locais de uso (nesse caso, com a justificativa de proteger outros indivíduos). Independente das controvérsias sobre seus exageros, trata-­‐se de um exemplo duplamente bem-­‐sucedido: sem adotar as premissas proibicionistas, o Brasil viu diminuir, em vinte anos, a proporção de fumantes em cerca de 50%. Outros países também têm alcançado, com políticas equivalentes, bons resultados27. A regulação dos mercados de álcool e tabaco, drogas legais, demonstram, portanto, que a ausência de políticas públicas não diz respeito à legalidade de uma droga. Mercados legais podem ser bem (tabaco) ou mal (álcool) regulados fora do paradigma proibicionista. PERSPECTIVAS DE MUDANÇAS NO BRASIL Não obstante o inegável crescimento das vozes dissonantes e dos movimentos políticos de contestação ao paradigma proibicionista, que certamente tem e terá papel decisivo na mudança do modelo, o horizonte de mudanças práticas não parece promissor no Brasil. Julgando pelo histórico de atuação do legislativo sobre o tema, é improvável que alguma mudança além do aprofundamento do modelo atual possa ocorrer. Desde a promulgação da Lei de Drogas, em 2006, os projetos que ganharam algum destaque e maior apoio no Congresso previam, por exemplo, o retorno da pena restritiva de liberdade para consumidores, dessa vez sob a forma de tratamento compulsório e com a justificativa de que a lei atual havia eliminado as ferramentas da dissuasão do Estado. Outra iniciativa, dada a grande repercussão do aumento do consumo de crack pelo país, tentou endurecer ainda mais as penas para os traficantes dessa forma específica de cocaína28. Mudanças significativas dificilmente virão, também, do atual Executivo federal. Ainda que haja vozes dissonantes no interior do governo, discursos que apresentem qualquer crítica da proibição são evitados29, e a pauta de atuação tem se concentrado nos investimentos ao combate ao tráfico, controle de fronteiras e tratamento de dependentes. Nesse último aspecto, que mereceria uma discussão específica, medidas anunciadas recentemente aumentaram os investimentos no atendimento público aos dependentes, mas, ao mesmo tempo, garantiram o financiamento das comunidades terapêuticas, instituições privadas em que, normalmente, se privilegia a internação como forma de tratamento, decisão bastante controversa30. Num livro recente sobre alternativas ao proibicionismo31, o jornalista Denis Burgierman usou uma metáfora interessante para explicar a inércia dos políticos com relação ao tema: eles seriam dependentes das drogas; não da ingestão dessas substâncias, mas do seu uso eleitoral. De fato, os políticos esperam não só ganhar votos quando defendem o combate sem trégua às drogas, como conseguem tirá-­‐los de adversários que ousem propor o debate sobre qualquer alternativa. Mas, se o fazem, é também porque encontram forte ressonância e apoio em praticamente todos os segmentos sociais. No caso das drogas, prevalece uma regra política: quanto maior a ambição eleitoral, menos se deve mexer no vespeiro. Apenas prometa odiar e lutar contra as vespas. O alento pode vir da instância máxima do Judiciário, que não depende diretamente de votos. Este ano, o Supremo Tribunal Federal deve julgar, com repercussão geral32, a inconstitucionalidade da atual lei de drogas, que criminaliza a posse de drogas para consumo próprio. Se seguirem a decisão de seus colegas da Colômbia e da Argentina e considerarem inconstitucional a punição aos cidadãos que portem droga para consumo, os ministros brasileiros serão os responsáveis pelo único, mas extremamente relevante, questionamento ao paradigma proibicionista que se pode vislumbrar a curto prazo no Brasil. Recebido para publicação em 8 de dezembro de 2011. MAURÍCIO FIORE é doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp e pesquisador do Cebrap e do Neip (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos). [1] Sobre os desdobramentos do proibicionismo, ver, entre outros, Labate, Beatriz, Fiore, Maurício e Goulart, Sandra. "Introdução". In: Labate, B. et al. Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: Edufba/Ministério da Cultura, 2008. [ Links ] [2] Entre uma ampla bibliografia sobre a história do proibicionismo nos eua e seus desdobramentos internacionais, ver Escohotado, Antonio. Historia de las Drogas, vol. 3. Madri: Alianza, 1998; [ Links ] Davenport-­‐Hines, Richard. La búsqueda del olvido. Madri: Turner/Fondo de Cultura Económica, 2001; [ Links ] e Rodrigues, Thiago. Política e drogas nas Américas. São Paulo: Educ/Fapesp, 2004. [ Links ] [3] No Brasil, a maconha foi considerada definitivamente ilegal em 1932, cinco anos antes de o mesmo ocorrer nos eua. [4] A polissemia e a ambiguidade do termo "drogas" são algumas das principais características do debate sobre o tema. Em trabalho anterior, grafei o termo sempre entre aspas para justamente indicar "perigo". Para mais detalhes sobre a importância do conceito de drogas, ver Fiore, Maurício. Uso de "drogas": controvérsias médicas e debate público. Campinas: Mercado de Letras/Fapesp, 2007. pp. 63-­‐71. [ Links ] [5] Anexo al informe estatístico anual. Junta Internacional de Fiscalización de Estupefacientes. Viena, 2001. [6] O Rivotril (ou Clonazepam), um benzodiazepínico utilizado como calmante e inibidor de ansiedade, é o segundo medicamento mais vendido do Brasil numa lista que inclui analgésicos e anticoncepcionais. [7] Atualmente, muitos trabalhos têm exposto e criticado esses diagnósticos e prescrições em massa. Um bom resumo de trabalhos sobre o tema pode ser lido em Angeli, Marcia. "A epidemia de doença mental". Piauí, n. 59, ago. 2011. [8] Poderiam ser incluídos nessa lista, ainda, os solventes e outros inalantes, que são produzidos com outras finalidade comerciais, têm venda pouco controlada, mas são amplamente utilizados, sobretudo por jovens, como substâncias psicoativas (cola, éter, benzina etc.). [9] O conflito mexicano, tratado como genocídio pelas autoridades, é apontado como a causa principal de parte considerável dos 50 mil homicídios nos últimos quatro anos. [10] infopen, Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça. [11] Comunicação oral de Pedro Abramovay, ex-­‐secretário nacional de Justiça e professor da Fundação Getúlio Vargas, em seminário realizado no Cebrap, em novembro de 2011. [12] Um oficial da polícia militar paulista, quando perguntado por repórter da tv Globo, em meados de 2011, se a operação contra um ponto conhecido de tráfico não seria como "enxugar gelo", posto que em alguns dias o comércio de drogas funcionaria ali novamente, sintetiza, em sua resposta, o realismo proibicionista: "Se não enxugássemos o gelo, a poça estaria muito maior". [13] Além disso, a maior parte da população brasileira, principalmente os jovens, considera fácil obter drogas ilícitas. A última pesquisa domiciliar de abrangência nacional realizada pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), em 2005, apontou que cerca de 65% dos brasileiros acima de 12 anos consideram fácil obter maconha. 51% consideram fácil obter cocaína. [14] Os crescentes movimentos populares pela mudança da lei de drogas, dos quais se destaca a Marcha da Maconha, têm tido dois papéis fundamentais: desmistificar, por meio da ocupação do espaço público, o caráter marginal associado às drogas e, ao mesmo tempo, reivindicar sua existência política para além da apologia do consumo de drogas, argumento normalmente utilizado para retirar sua legitimidade. [15] O conceito de redução de danos é muito controverso, sendo objeto de disputa semântica entre especialistas. Para uma discussão mais aprofundada, ver Fiore, Maurício, op. cit. [16] Considerado crime hediondo, a pena para o tráfico de droga é comparável às previstas para homicídio e estupro. [17] "Para determinar se a droga destinava-­‐se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente", Lei n. 11.343. art. 28, parágrafo terceiro. [18] Ver Boiteux, Luciana et al. "Relatório de pesquisa tráfico e constituição". Pensando o direito. Brasília/ Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 2009; [ Links ] e Prisão provisória e lei de drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 2011. [ Links ] [19] Entre outros, três ex-­‐presidentes, Fernando Henrique Cardoso, Cesar Gaviria (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México), o ex-­‐secretário geral da onu, Kofi Annan, e o ex-­‐secretário de Estado dos eua, George Shultz. [20] Profissionais da saúde ligados à redução de danos, pesquisadores e líderes de movimentos antiproibicionistas são alvo frequente de ataques que os estereotipam como "simpatizantes ou defensores das drogas". [21] Husak, Douglas e Marneffe, Peter de. The Legalization of Drugs: for and against. Nova York: Cambridge: 2005. pp. 26-­‐27. [ Links ] [22] Uma obra recente fundamental para se aprofundar na instituição da "Lei Seca" é Okrent, Daniel. Last Call: the rise and tall of Prohibition. Nova York: Scribner, 2010. [23] Ver Greenwald, Gleen. Drug Descriminalization in Portugal: lessons for creating fair and successful drug policies. Nova York: Cato Institute, 2009. [ Links ] [24] Ver Malchier-­‐Lopes, Renato e Ribeiro, Sidarta. Maconha, cérebro e saúde. Rio de Janeiro: Vieira e Lent, 2007. [ Links ] [25] Para que cenários futuros de regulação sejam viáveis, é importante que não se descartem algumas estruturas de controle já estabelecidas internacionalmente, inclusive pela própria Convenção. Para uma discussão detalhada e minuciosa de cenários de regulação, uma obra fundamental é After the War on Drugs: Bluprint for Regulation. Londres: Transform Drug Policy Foundation, 2009. [26] Somente as bebidas com mais de treze graus na escala Gay-­‐Lussac sofrem algum tipo de restrição publicitária no Brasil. Assim, a maior parte dos fermentados, como as cervejas e os vinhos, além dos ices (misturas de refrigerantes e bebidas destiladas), não é considerada, para fins publicitários, bebida alcoólica. [27] Nos eua, um em cada dois homens fumava na década de 1960. Hoje, esse número é inferior a dois em cada dez, com viés de queda. Ver Chartbook on trends in the health of americans. eua: National Center for Health Statistics, 2007. [28] Esses projetos ignoram que legislação semelhante, aprovada nos eua na década de 1980, é duramente criticada por ter aumentado o processo de encarceramento em massa, de nítida seleção social/racial, que faz dos eua o maior encarcerador do mundo. Sobre esse ponto, ver especialmente Vagins, Debora J. e McCurdy Jesselyn. Cracks in the system: twenty years of the unjust federal crack cocaine law. Washington: America Civil Liberties Union, 2006. [29] Depois de declarar à imprensa que o governo vinha estudando mecanismos para diminuir o encarceramento em massa de pequenos traficantes, sugerido por documentos do próprio Ministério da Justiça, o ex-­‐secretário nacional de Justiça, Pedro Abramovay, foi "desnomeado" da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas antes de assumir o cargo. [30] As comunidades terapêuticas são muitas vezes ligadas a grupos religiosos e exigem a abstinência total durante o isolamento, o que é criticado por especialistas. Além disso, um relatório recente do Conselho Federal de Psicologia apontou problemas graves em muitas comunidades, inclusive tortura. Ver "4º Relatório Nacional de Inspeção de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas". Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2011. [31] Burgierman, Denis Russo. O fim da guerra: a maconha e a criação de um novo sistema para lidar com as drogas. São Paulo: Leya, 2011. pp. 54-­‐60. [ Links ] [32] Ao apontar a repercussão geral, o stf indica que ela deve ser usada como parâmetro norteador de decisões semelhantes em instâncias inferiores. Meteorango Kid – O Herói Intergalático (1970), de André Luiz Oliveira Meteorango Kid – O Herói intergalático Bem no começo de Meteorango Kid, nosso herói Lula acorda e aponta o dedo para câmera reclamando: “tira isto daqui!”. É um momento que diz muito sobre o que o torna um filme especial, mas não é a óbvia quebra da quarta parede que nos delicia, mas o que se segue: André Luiz Oliveira corta para um ângulo de câmera do lado oposto do quarto revelando-­‐o na sua extensão e claro sem nenhuma câmera presente no rosto de Lula. É um corte simples, básico até, mas neste movimento de validar a vontade do seu personagem, o filme nos ganha e garante que estamos diante de um objeto audiovisual incomum. A verdade é que não há no cinema brasileiro qualquer filme como Meteorango. Claro que temos outros filmes tão irreverentes quanto, mas há uma exuberância própria em Meteorango Kid. Diante de um Bang Bang ou um A Mulher de Todos, a irreverência surge numa outra chave, é quase um distanciamento do cineasta, Meteorango não, está ali ao lado do seu jovem protagonista, num pacto com ele a cada momento, seja este de curtição ou de completa crueldade e o filme é refrescante entre outros motivos porque estes dois movimentos são contínuos, sem nenhuma grande diferenciação entre eles. E está aí o grande desafio de escrever sobre esse filme: eu poderia passar parágrafos falando sobre tropicalismo e antropofagia, Caetano e Oswald, Glauber e Sganzerla e tudo faria sentido, mas ao mesmo tempo seria uma quase traição ao filme. Ao que ele tem de único, que é a energia que parece pulsar de cada plano. Meteorango Kid é o único filme do cinema brasileiro que parece existir no mesmo plano dos primeiros longas de Marco Bellocchio e Nagisa Oshima, ratos de cinemateca que aplicavam a gramática do cinema moderno para filmes jovens e de uma crueldade juvenil. Os primeiros filmes de Bellocchio, em especial, têm uma semelhança muito forte com Meteorango Kid, o herói intergalático na maneira como a forma do filme parece gritar contra todo um peso sócio-­‐familiar. São filmes que parecem partir da mesma pergunta – feita em tom raivoso – “como conciliar minha posição de artista progressista quando venho de um meio tão arcaico?”. Só que André Luiz Oliveira cultiva uma energia de filme B totalmente alienígena ao cineasta italiano. Parte do charme de Meteorango é que por vezes pensamos que poderia mesmo se tratar de um filme da AIP, menos pela forma ou conteúdo, mas pelo tom. Muitos destacam que as fantasias de Lula incluem Tarzã e Batman, mas isso entra no filme menos através de algum tipo de desconstrução, mas porque são mesmo parte do universo que o cineasta, seu protagonista e seu filme saboreiam. Se há algo que diferencia Meteorango Kid de, por exemplo, Bang Bang é que sua câmera parece sempre estar ali na primeira pessoa. Vendo o filme nunca temos dúvidas de que André viu a O Bandido da Luz Vermelha e disse “ok, agora vou pegar aquela mesma câmera e filmar os meus amigos”. Ao longo de todo o filme a câmera parece sempre em sincronia com Lula, íntima dele e do seu mundo, seja nos momentos reais, seja nas fantasias -­‐ e não faz muito sentido tentar diferenciá-­‐los. O espaço cênico do filme parece sempre em constante mutação, acompanhando os humores de Lula – herói, mártir, sonhador, piadista, etc. – e o filme o acompanha sempre. É raro vermos um filme tão apegado à sua figura central e ao mesmo tempo tão relaxado e seguro. Meteorango Kid não é um filme tão encoberto de glórias como outros contemporâneos seus, mesmo entre os filmes do tal “Cinema Marginal”, mas sempre que indico para algum amigo, ele não falha: dias depois o sujeito agradece e diz que nunca teria o descoberto sozinho. É um filme por demais contagiante para não envolver o espectador e sua posição relativamente marginalizada só se explica por Oliveira não ter uma obra extensa reconhecível como Sganzerla, Bressane, Carlão, etc. Os seus filmes posteriores têm muitos méritos, mas não se alinham perfeitamente como Meteorango. Percebo agora que Meteorango Kid completa 40 anos, é estranho constatar isso, o mais honesto elogio que cabe a ele é justamente constatar sua eterna adolescência. Filipe Furtado Revista Zingu! Disponível em http://www.revistazingu.blogspot.com.br/2009/07/dalo-­‐
meteorangokidoheroiintergalatico.html Meteorango Kid -­‐ herói intergalático Com 85 minutos de duração, Meteorango Kid não é exatamente um longa-­‐metragem. Ele não tem aquela unidade romanesca que se espera de um longa, ele é mais uma catada de esquetes alucinados, uns divertidos, outros não. O que une a(s) história(s) de Meteorango Kid é o personagem principal, Lula, um bicho-­‐grilo apaixonado pela própria cabelereira. (Eu ri muito da cena que ele entra na farmácia e compra um shampoo. E só.) O filme foi feito em 1969, no meio da ditadura militar, e dizem os especialistas que é uma oposição ao regime. Eu não vi. Eu vi o Lula entrar na UFBA e ignorar uma reunião de estudantes politizados que mais me pareceu o chá que a Alice toma com o Chapeleiro Louco e a Lebre Maluca. Eu vi muita tropicália e muita vontade de fazer cinema brasileiro. Vi um cartaz do O padre e a moça do Joaquim Pedro em cima da cama do Lula. Vi citações textuais de O bandido da luz vermelha do Sganzerla. Vi o contador de vantagens -­‐ "o papo mais manjado da Bahia" -­‐ dizer que tinha sido convidado pra trabalhar com o Gláuber. Às vezes a gente perde a dimensão de quanto as coisas são antigas. Só pra ter uma idéia, quando Meteorango Kid foi feito, o Raul Seixas ainda morava na Bahia e tocava com Raulzito e os Panteras. O presidente Lula, há que se desfazer o engano de qualquer ligação por causa do nome, ainda não era líder sindicalista e tinha todos os dez dedos das mãos. O Lula é o cara mais popular da faculdade, é o moço que atrai os olhares das mocinhas no ônibus por causa da cabeleira, é o rebelde que enfia o dedo no nariz e fuma maconha na sala de jantar com os pais, é o bandido da luz vermelha, é o batman, é o tarzan e é pirata. Ele é um herói. Até aí eu entendi. Tinha aquela coisa do cinema americano de filme de superherói, lembra? Então, o André Luiz Oliveira quis fazer o dele também. Tinha também alguma coisa estranha acontececendo na época com discos voadores, que apareceu no filme do Rogério Sganzerla e apareceu nesse aqui também, e o Lula vai com uma repórter até uma aldeia de pescadores pra entrevistar os locais sobre o aparecimentos dos OVNIs, e acabam encontrando um gringo esquisito que diz adorar a natureza do Brasil. É, eu sei. Não faz muito sentido mesmo. De qualquer maneira, daí o "intergalático". O filme é um clássico do cinema marginal, ganhou o prêmio do público do Festival de Brasília (Candango!!!), não é qualquer coisa. Mas me lembrou os filmes que o Corvo fazia na época da faculdade, sem pé nem cabeça, só pra gente se divertir. Meu comentário quadrado, lá pela hora e dez do filme, foi "os caras ficam fumando maconha na Bahia e cinquenta anos depois a gente tem que assistir o filme deles..." Cinebrazuka Disponível em http://cinema-­‐brazuca.blogspot.com.br/2010/04/meteorango-­‐kid-­‐heroi-­‐
intergalatico.html CONTRACULTURA, HUMOR E EXPERIMENTAÇÃO NO CINEMA BAIANO O cinema experimental encontrou um terreno fértil em Salvador a partir do final de 1960. A vivência de um ambiente marcado pela contracultura, pelo tropicalismo, na música, e pelas vanguardas artísticas de forma mais abrangente, emolduraram filmes que expressam as contradições do período pós AI-­‐5 no Brasil, adotando a perspectiva de jovens inseridos no contexto de uma revolução comportamental que se contrapõe frontalmente ao acirramento das ditaduras militares na América Latina. Diferentemente das produções do Ciclo Baiano de Cinema, realizadas entre 1959 e 1965, marcadas pelo diálogo com o cinema realista de cunho social – e, ao mesmo tempo, com o gênero policial, como é o caso dos filmes de Roberto Pires, o mais importante diretor do período, tendo dirigido Redenção (1959), A Grande Feira (1961) e Tocaia no Asfalto (1962) –, os filmes do final da década focalizam a classe média e, em especial, os jovens, a questão da família e dos valores morais, as dinâmicas relacionadas a uma nova sensibilidade urbana, com consolidação da indústria cultural vinculada a uma intensa repressão política e artística. A violência, a experiência com as drogas, o sexo, surgem como formas de subversão dessa realidade e, ao mesmo tempo, como reflexo de um desencanto latente em relação às possibilidades de futuro – restaria a celebração do presente e a reflexão sobre o próprio fazer cinema. O humor irônico e a paródia serão algumas das estratégias narrativas adotadas por essa produção de viés anárquico, realizada com poucos recursos, mas com grande liberdade de criação. Meteorango Kid, o herói intergaláctico (1969), de André Luiz Oliveira, e Caveira my friend (1970), de Álvaro Guimarães, são dois filmes representativos do período, além do desaparecido Akpalô (1971), de Deolindo Checcucci e André Frazão, e numa outra chave, sob o viés da afirmação da cultura negra, O anjo negro (1972), de José Umberto. Ao longo dos anos 70, a geração superoitista atualizará essa tradição experimental, numa produção vigorosa e ainda pouco estudada. No final dos 80, um de seus principais expoentes, Edgar Navarro, retoma algumas das mesmas estratégias narrativas em um filme que se torna mítico para o cinema na Bahia, o média-­‐metragem Super-­‐Outro (1989). Essa herança pode ser identificada, ainda, nas produções de videoartistas, que despontam na segunda metade dos anos 90 e início dos 2000, como Marcondes Dourado (Ogodô ano 2000, 1996), Danillo Barata (Capitália, 2002) e Daniel Lisboa (O Fim do homem cordial, 2004). Chama atenção em Meteorango Kid, Caveira my friend e O anjo negro, o enfrentamento dos personagens em relação à câmera, a denúncia do dispositivo cinematográfico através do ato deliberado de apontar uma arma para o espectador, o que sinaliza o rompimento do contrato com o cinema clássico, baseado na invisibilidade da câmera. Ao atirar contra a quarta parede herdada pelo cinema do teatro burguês do século XVIII, seus personagens falam diretamente para o espectador e reivindicam outra posição em relação ao fluxo de imagens. Esses filmes dialogam diretamente com o chamado Cinema Marginal Brasileiro, etiqueta atribuída a um conjunto de curtas, médias e longas experimentais, undergrounds ou údigrudis, como preferia Glauber Rocha, realizados de forma independente entre o final de 1960 e a primeira metade de 1970. O rótulo “marginal” encontra ressonância no elenco de personagens desajustados ou marginalizados socialmente que essa produção apresentou; na Estética do Lixo que radicaliza a Estética da Fome glauberiana, agora a partir da colagem ou reciclagem de subgêneros do cinema industrial, do gosto pelo grotesco e pelas matérias orgânicas; na perspectiva de desesperança frente ao futuro de um país que se moderniza a ferro e fogo; no ponto de vista assumido por seus personagens, sempre a partir das bordas da cidade, ou seja, das margens de espaços urbanos que se expandem empurrando o “lixo” para a sua periferia; e, por fim, no diálogo com as artes visuais e com o lema irônico de Hélio Oiticica: “seja marginal, seja herói”. São características que aparecem em dois filmes marcantes do período, A Margem (1967), de Ozualdo Candeias, e O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, este último um filme que atualiza Godard, Welles e a chanchada brasileira para a realidade cinematográfica terceiro mundista pós 1968, criando uma narrativa complexa e polifônica que oferece novos contornos ao cinema moderno no Brasil e na América Latina. Na Bahia, a idéia de um “inventário das descontinuidades históricas do ponto de vista dos vencidos”, como define Ismail Xavier em O Cinema Brasileiro Moderno (1995), pode ser observada já em um das primeiras produções do ciclo baiano de cinema. Em A grande feira (1961), Roberto Pires focaliza o universo popular dos feirantes de Água de Meninos a partir do ponto de vista de personagens “marginais”, tendo no centro da narrativa, que opõe desenvolvimento e inclusão social, o bandido Chico Diabo (Antonio Pitanga) e sua companheira, a prostituta Maria da Feira (Luiza Maranhão). A expressão “cinema marginal”, no entanto, se impôs muito mais como um estigma, refletindo tanto a censura oficial quanto o conservadorismo da ideologia nacionalista de esquerda da época. Numa direção oposta ao Cinema Novo, que àquela altura passava a ocupar uma posição de hegemonia no campo cultural brasileiro, produzindo filmes com valores de produção maiores, com vistas à institucionalização do cinema brasileiro via financiamento estatal, o “cinema marginal” reafirmava a condição periférica do país. Em Marginais, lixo e chanchada, João Luiz Vieira observa que “muitos desses filmes organizam uma espécie de colagem de materiais achados, promovendo a noção de que o Terceiro Mundo só herda as migalhas do Primeiro”. Através de uma “redescoberta da chanchada”, negada pelo Cinema Novo e tida como sinônimo de baixa cultura, os filmes “marginais” utilizam-­‐se da paródia como elemento estruturante da narrativa. Só que dessa vez, observa João Luiz, os filmes vão tomar não apenas “o cinema estrangeiro como alvo satírico, como havia sido na chanchada, nos anos 50, mas o respeitável Cinema Novo”. Seria mais correto dizer, assim, que os filmes foram “marginalizados” pelo discurso oficial que se construía em torno do cinema brasileiro, embora nem sempre o tenham sido pelo mercado exibidor, como muitas vezes se supõe. Basta lembrar que tanto o O Bandido da luz vermelha (1968) quanto A mulher de todos (1969), de Sganzerla, tiveram grande retorno de bilheteria. Da mesma forma, os filmes de Zé do Caixão, realizados também no ambiente da Boca do Lixo, região do Centro de São Paulo que concentrou a maior parte dessa produção. Fora de São Paulo, apenas Rio de Janeiro, Minas Gerais e Salvador produziram filmes sintonizados com essa experiência. Bicho interessa? Heróis “marginais” baianos Na Bahia, o filme Meteorango Kid (1969), de André Luiz Oliveira, retoma o caminho já apontado no início dos anos 60 por Roberto Pires ao criar uma representação distópica do processo de modernização da cidade, através de um elenco de personagens “desajustados” socialmente. Agora, no entanto, o foco não é mais a luta de classe, nem a questão do popular, nem o realismo social. Claramente influenciado pelo filme Bandido da luz vermelha, de Sganzerla, André Luiz Oliveira vai se apropriar da Estética do Lixo em uma narrativa fragmentada, feita de colagens e humor corrosivo, sobre um jovem de classe média alta, amoral e sem projeto de futuro. Em Meteorango Kid, o herói intergaláctico, André Luiz Oliveira cria uma imagem infernal da cidade de Salvador e das perspectivas que se colocam para jovens como Lula. Apresentado no início e no final do filme em sua crucificação, o martírio de Lula tem como pano de fundo um coqueiral, numa representação paródica. A paisagem tropical é transformada em ambiente inóspito pela luz estourada e pelos riffs agonizantes de guitarra substituídos na sequência seguinte, à noite, pelo intenso barulho de carros, sirenes, e uma movimentação de câmera (na mão) vertiginosa, que revela o ponto de vista do personagem que se desloca rapidamente por ruas e galerias da cidade, sendo preso logo em seguida. Tanto em Meteorango, quanto em Caveira, My Friend (1970), de Álvaro Guimarães, é principalmente a montagem sonora que posiciona a narrativa em relação a seus personagens, conferindo densidade a seus comportamentos “condenáveis”. Nos dois filmes, a música, com forte presença de Moraes, Pepeu e Paulinho Boca de Cantor, os futuros Novos Baianos, além de Caetano Veloso, inclusive de sua imagem como ícone pop, tropicalista, tem um papel estruturante na narrativa, compondo, assim como as citações e letreiros, uma montagem polifônica, feita de colagem de canções, poesias recitadas, diálogos, ruídos. A multiplicação das informações sonoras se associa ao preto-­‐e-­‐branco da imagem e à movimentação de câmera que percorre os espaços urbanos da cidade em crescimento, transitando entre suas construções modernas e a velha e decadente cidade da Bahia. Em Caveira, entretanto, a paródia como forma de sátira à indústria cultural, inserida num fluxo de imagens que não faz distinção entre realidade e delírio, cede lugar ao registro quase documental, vivencial, do cotidiano, dos conflitos e aspirações do grupo de Caveirinha, líder de uma espécie de gangue que transgride a ordem social realizando assaltos. O filme se estrutura como um work in progress, em que os atores falam de suas histórias “reais”, em depoimentos improvisados, que se superpõem e abordam o próprio desejo de cinema, afirmam a vida “artística”, as relações de amizade, a celebração do presente. O humor é restabelecido através da narração e dos letreiros que comentam as ações através de citações irônicas. O filme praticamente lança o primeiro disco dos Novos Baianos, Ferro na Boneca, editado pela RGE no mesmo ano, e conta com a participação de Baby Consuelo como atriz, além de músicas de Caetano Veloso, como a emblemática Cinema Olímpia. O Anjo Negro (1972), de José Umberto, assim como Akpalô (1971), de Fernando Checcucci e José Frazão, foi realizado em cores, um traço que diferencia esses filmes da maior parte da produção normalmente identificada sob o rótulo Cinema Marginal. No entanto, no que se refere a O Anjo Negro, que permanece acessível à crítica atual, podemos identificar diversos pontos de contato com essa produção e, diretamente, com Meteorango e Caveira. Nos três filmes, a discussão sobre a família ocupa um lugar central, a figura materna sendo questionada em seus papéis tradicionais, assim como os valores burgueses. A mesa de jantar, assim como na canção ícone dos Mutantes, surge como emblema do conflito geracional. A deambulação dos personagens pelo espaço urbano e, em especial, por suas margens, é outra característica marcante nessas produções, assim como a narrativa fragmentada, não-­‐linear, a colagem e a paródia. Em O Anjo Negro, que conta com a presença performática do ator cachoeirano Mário Gusmão, no papel de um exu que chega misteriosamente e se instala na sala de jantar de uma família em crise de valores, a discussão em torno do projeto de modernização se dá sob o viés do embate entre a religiosidade de matriz afro-­‐baiana e os valores cristãos, entre a urbanização e as raízes negras da população. A partir da mitologia do candomblé, compõe uma narrativa alegórica, carregada de simbologias, que explora a viscosidade de matérias orgânicas para produzir o choque, o estranhamento. O recurso à paródia se torna explícito na Semana Épica, em que o exu derruba com sua lança, a cada dia, um herói ícone da indústria cultural internacional. A construção de heróis marginais através da paródia é um dado recorrente no “cinema marginal baiano” e vai encontrar sua melhor síntese em Super-­‐Outro, média de Edgar Navarro que faz a ponte entre o Pires de A Grande Feira e o André Luiz Oliveira de Meteorango Kid, retomando a questão social ao acompanhar o cotidiano miserável de um louco pelas ruas de Salvador, com interpretação incrivelmente realista de Bertrand Duarte. O filme de Navarro, embora marcado pelo humor cáustico, a escatologia e o grotesco, diferencia-­‐se pelo profundo lirismo, pelo desejo de afirmação radical de toda e qualquer alteridade, expresso pelo solene pronunciamento do personagem em praça pública, vestido de Super-­‐Outro em contraposição ao Superman do cartaz afixado no antigo Cine Glauber Rocha: “Brasileiros e brasileiras: o Brasil espera que cada um cumpra o seu dever. E o meu dever é voar”. Produzido vinte anos após Meteorango, já não se trata da denúncia de uma geração sem rumo, mas de outro tipo de alerta. Acorda humanidade!, grita e apita o nosso louco vestido de uniforme do Bahia no meio da noite. Cyntia Nogueira é Professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. Mestre em Comunicação, Imagem e Informação pela Universidade Federal Fluminense (2006). Tem atuado principalmente com o tema história e crítica do cinema brasileiro. Cine Cachoeira Disponível em http://www.ufrb.edu.br/cinecachoeira/2010/11/contracultura-­‐humor-­‐e-­‐
experimentacao-­‐no-­‐cinema-­‐baiano/ Meu Nome Não é Johnny (2008), de Mauro Lima TRÁFICO NO ASFALTO CHEGA ÀS TELAS A produtora Mariza Leão compra os direitos do livro 'Meu nome não é Johnny' e promete 'thriller com drama humano' A produtora Mariza Leão pegou o livro 'Meu nome não é Johnny' numa quarta-­‐feira à noite e, na manhã de quinta, encerradas as 336 páginas, disse a si mesma: — Gente, vou fazer este filme. Havia um pequeno problema: várias outras pessoas tiveram a mesma idéia — e antes dela. Interessada numa parceria, Mariza procurou Rodrigo Saturnino Braga, diretor-­‐geral da Columbia Pictures, e ouviu: — Da mesma maneira que você me mandou o livro, fui procurado por outros produtores. Vocês primeiro se entendam. O livro, escrito pelo jornalista Guilherme Fiuza, conta a história real de João Guilherme Estrella, que se tornou, nos anos 90, o principal fornecedor de cocaína das altas-­‐rodas da sociedade carioca. Filho de um alto executivo do extinto Banco Nacional, Estrella acabou preso e encarcerado na Polícia Federal e no manicômio judiciário. Recuperado, trabalha como produtor musical e dá palestras sobre como sobreviveu ao mundo das drogas. Lançado em abril pela Record, o livro vendeu cinco mil exemplares e atraiu o interesse de produtoras como a Conspiração e a TV Zero, de distribuidoras como a Lumière e de cineastas como Roberto Santucci e Sandra Werneck. Mariza ficou mais de 40 dias à espera do sim Alguns pontos pesaram a favor de Mariza, produtora de filmes como 'Guerra de Canudos' e 'Onde anda você', que ficou '40 e tantos dias esperando um sim' da dupla. — Ela mostrou muita garra — diz Fiuza. — E tocou em questões sensíveis, como a figura do pai do João, que deu a ele as noções de liberdade, e da juíza, que lhe restituiu a liberdade. Na minha cabeça, sempre houve uma ponte entre essas duas figuras. Um e-­‐mail enviado por Mariza também foi fundamental. Num trecho, ela escreve: 'EU QUERO FAZER ESTE FILME. Meu maior capital é minha energia, minha experiência, meu desejo. Já movi muitos moinhos e sempre o fiz a partir de um fôlego apaixonado... É este fôlego que ofereço a vocês, além da vivência de ter feito alguns filmes que se basearam em personagens reais, como 'O homem da capa preta' e 'Lamarca'. Estes filmes me ensinaram a conviver com ficção e realidade, personagens e pessoas, resguardando sempre o limite do respeito à história real e o vôo da ficção.' — Foi o xeque-­‐mate — diz Estrella. Mariza quer começar a rodar o filme — co-­‐produzido e distribuído pela Columbia — no segundo semestre do ano que vem. Já convidou um ator famoso para o papel, mas prefere não adiantar o nome. Os três ainda não pensaram no roteirista e no diretor. Sérgio Rezende, marido de Mariza, está envolvido na produção de 'Angel', longa de ficção baseado na história de Zuzu Angel. A produtora avisa que o filme será um thriller. Ou melhor, 'um drama humano em ritmo de thriller'. — Às vezes, você tem um ótimo personagem e um texto medíocre. Mas o livro tem uma escrita especial e personagens tão bons que seria até difícil inventá-­‐los. Há a senhora de quase 70 anos, moradora de uma cobertura em Copacabana, que é traficante. Há o tenente da Aeronáutica, um cliente-­‐modelo. Há um dos chefes da conexão, um paralítico cheio de namoradas. Há o violinista clássico que transporta a droga para a Europa. O exemplar do livro de Mariza está todo riscado. Cada personagem novo que aparece — são mais de 60 — é apontado num círculo. Há perguntas espalhadas pelas páginas, assim como pontos de exclamação assinalando 'situações cinematograficamente fortíssimas'. Como a que relata a prisão de Estrella por policiais federais num apartamento com seis quilos de cocaína. A certa altura, uma das cúmplices apela aos policiais: 'Olha, tô muito nervosa, assim eu não vou agüentar. Vocês se incomodam se eu fumar um baseado?'. Mariza diz que se trata de uma história 'inesperada'. — Há uma tendência de se olhar o fornecedor da droga, agente do mal, como o favelado. Não é o caso aqui. Como é que alguém desta classe social, convivendo com a elite intelectual e artística, torna-­‐se um traficante que chegou a movimentar 15 quilos de cocaína de uma vez? — pergunta ela, que ressalva: — Mas o livro ultrapassa o interesse só do tráfico no asfalto e fala muito do lado humano. E é um personagem com muito humor, absolutamente desencanado, que enfrenta situações dramáticas com uma irreverência e uma inconseqüência que tornam as coisas engraçadas. A produtora prevê um filme de sucesso. Cinco sobrinhos seus já leram o livro e disseram: — Tia, você vai fazer esse filme? Sinistro! Mauro Ventura O Globo – 25 de julho de 2004 ‘Meu nome não é Johnny’ une realismo e diversão em retrato de traficante Trama gira em torno de garoto de classe média que vira barão da cocaína. Nunca um traficante foi retratado com tanta simpatia pelo cinema brasileiro como em “Meu nome não é Johnny”, que estréia nesta sexta-­‐feira (4). No longa-­‐metragem, Selton Mello exibe todo seu talento e empresta seu típico tom debochado para encarnar João Estrella, jovem da vida real que saiu da classe média e virou um barão da cocaína no Rio de Janeiro dos anos 1990. Com bom humor e sem moralismo, o filme mostra a trajetória de João, das festas animadas e viagens luxuosas aos dois anos de sofrimento na prisão. A direção caprichada de Mauro Lima consegue unir realismo a diversão, com uma fotografia mergulhada em referências pop. Tudo ao som de uma trilha sonora acertada, com Lobão, Titãs e outras pérolas do rock nacional. Baseada no elogiado livro homônimo do jornalista Guilherme Fiúza, a trama acompanha a “viagem” do garotão da zona sul carioca pelo mundo das drogas, impulsionado por um misto de espírito bon-­‐vivant e ambição megalomaníaca. De usuário ele passa a traficante informal e, em seguida, entra no circuito internacional do contrabando de drogas. Mas os bons tempos logo acabam, e os risos dão lugar às lágrimas. Essa transição é feita de forma elegante e contundente, graças à mão leve do diretor e ao brilho de Selton Mello. O elenco também conta com Cássia Kiss e Júlia Lemertz, sempre excelentes, além da bela Cléo Pires, que interpreta a namorada do protagonista, numa atuação que certamente não impressiona, mas não chega a comprometer o saldo positivo do filme. Carla Meneghini G1 Disponível em http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL245155-­‐7086,00+en-­‐
USS_0FSCC.html A moralização em estética amoral Muito tem se falado sobre Meu Nome não é Johnny, mas pouco sobre Meu Nome não é Johnny. Muito sobre o que o filme está contando, sobre o que ele representa como objeto, e quase nada sobre como é o filme, sobre o objeto em si. Isso, na prática, significa nada além da “representatividade” do longa, pois ele ecoa algo que vem sendo bastante discutido na imprensa (o tráfico de drogas e o envolvimento da classe média no dito grande problema nacional chamado tráfico de drogas). Nesse quesito, Meu Nome não é Johnny é mero estandarte de uma causa, um “saiba mais” sobre o envolvimento da elite no tráfico, uma “prestação de serviço” (termo este que virá abaixo, na análise sobre o filme propriamente dito). Mais relevante é o papel que este filme de Mauro Lima cumpre dentro da nossa tradição de cinema, e o quanto diferenciado ele é. O tema em si (um playboy que vira traficante) nem é tão inédito, e a sua singularidade é numérica. Explicando melhor: é como se em vez de se fazer um filme ambientado nos barracos de uma favela carioca, rodassem-­‐no em palafitas no Amazonas, ou fizessem um Ó Paí, Ó ambientado no ABC ao som do rap paulista. Mudam-­‐se alguns dados, mas não a relação entre esses dados. Se é fato que Meu Nome Não É Johnny diferencia-­‐se um pouco da produção contemporânea brasileira, que ainda se volta para o pobre (ora vítima, ora ameaça e sempre efeito do meio), ao ir de encontro a uma classe média, deixando por 2/3 do filme as motivações do protagonista sem vínculo sociológico, isso desmorona no terço final. No todo, o longa não resulta além de uma variante de outras incursões narrativas mais “pop” (O Homem do Ano e Odiquê, por exemplo). Se Cidade de Deus tinha como curiosidade (não necessariamente virtude, algo que dependeria único e exclusivamente da direção) o viés do filme de gênero norte-­‐americano, viabilizado por toda uma estrutura dramatúrgica, Meu Nome Não É Johnny não possui uma particularidade, nada que o diferencie, que faça uma diferença, como fizeram o longa de Meirelles ou Tropa de Elite (que aparenta um filme B, de direita, em estética e enunciado esquálidos). O fato de muitos colocarem a fita de Mauro Lima como um avanço na discussão apresentada no filme de José Padilha, só ressalta que a maior parte das discussões paira, sobretudo, no enredo. Diante disso, mais interessante é ver que o filme dialoga com Alpha Dog, de Nick Cassavetes, pelo menos pelas evidências que surgem na tela – nada além ou anterior a isso.Alpha Dog mostrava traficantes classe média baladeiros, envolvidos em seqüestros e assassinatos, tudo meio sem querer, por boçalidade mesmo, e tudo isso trespassando outras questões (como a relação pai e filho, a perdição de uma geração sem monitoramento paterno e político e, o melhor do filme, a amizade entre seqüestrador e seqüestrado – tudo muito raso e filmado com acelerações, slow motion, seqüências musicais, cortes secos). Tudo muito Sundance Film Festival. Nick, filho de John Cassavetes, pisa um pouco em terreno melhor explorado por Larry Clark, mas prefere o action movie e a estilização arregalada. A história, baseada em fatos reais (esses “fatos reais” contribuem para imantar o filme nos valores e assuntos acima apresentados), de João Guilherme Estrella é contada numa gramática avizinhada à do filme de Nick, ou seja: bem contemporânea, com câmera móvel e instável que, por exemplo, faz ela própria a decupagem em cenas de diálogo, omitindo-­‐se os cortes do campo-­‐contracampo; um uso de distorções na trilha incidental; slow motions; acompanhamento musical-­‐pop; montagem agitada que não alonga os planos e nem estende as seqüências; tempo narrativo não-­‐linear mas extremamente retilíneo no looping que faz. Essa gramática fala sobre muita coisa. O filme começa nos anos 90, com a mãe de João Estrella sabendo da prisão do seu filho e indo atrás de informações. Um flashback voltará à infância do rapaz, com o pai e mãe, os colegas, tudo isso num ambiente classe média da zona sul do Rio de Janeiro dos anos 70. Está claro que Mauro Lima quer dar um valor àquilo que poderia bem ser uma experiência do personagem ao nível da experiência em si. Uma frase, que é epígrafe do longa, é citação à Marguerite Yourcenar, “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos”. Frase perigosa, como veremos daqui a pouco. Há, também, informações acerca do pai, homem devastado por doença e pela solidão, cuja fraqueza de têmpera afrouxou os arreios que permitiram João engrenar para o “carpe diem” das baladas, bebedeiras, mulherada e consumo expressivo de drogas. Tudo isso, literalmente, trazido à casa, ou seja, ao cotidiano, o que aliás resulta numa cena bastante simplória – a câmera de fora avistando a pequena mansão da família, olhando o quarto do pai no andar de cima e a festinha porra-­‐louca no piso inferior. É nesse personagem do pai e sua relação com o amado filho que transparece o apelo dramático deste filme cheio de piadas e correrias, o que virá no tal terço final. A velocidade com que as coisas acontecem na vida do João Estrella dos anos 80 deixa as coisas ao nível da experiência isolada, ou menos que isso, pois a aceleração vaporiza a retenção. Vida esta, aliás, que remete à tradição norte-­‐americana dos filmes de gângster, como Os Bons Companheiros de Scorsese, mas cujas imagens realmente estão mais para o cinema indie, suas derivações que destilam mal Tarantino, versão riquinha de um “gangsta-­‐rap-­‐skating clipe”, o tal Alpha Dog de Nick Cassavetes, ou o que Curtis Hanson tentou fazer com 8 Mile e Eminem. E fica claro, em cada gesto formalista de Mauro Lima, uma necessidade de “fazer bonito”. Há, daí, um jogo curioso de intenções, num filme cujo diretor quer laurear Selton Mello ao mesmo tempo que pretende mostrar uma caligrafia visual que salta tanto aos olhos que chega a pôr em risco a visibilidade da persona de Selton. Não à toa, as duas melhores seqüências do filme são aquelas em que a direção aparentemente interveio pouco: a de João Estrella com a dupla de policiais corruptos e com sua mulher na Europa. A câmera assiste com mais grado e calma à performance de Selton Mello, que, no caso, parece mais livre de um roteiro bastante cheio de intenções, bastante poluído por frases “literárias” e idéias construtoras de uma moral. Moral, aliás, que surge com tudo no terço final do longa, que avança a partir daquele momento enunciado no início do filme, quando João Estrella vai em cana. Num filme com elenco um tanto “figura carimbada” (Julia Lemmertz, Cléo Pires, o geração praia e saúde André di Biasi, Eva Todor), surge Cássia Kiss, altiva como sempre, no papel da juíza. Vira filme de tribunal, e o protagonista fará um discurso lúcido que explica por que ele ficou nessas, de traficar para consumir e gastar a jamais montar um cartel ou coisa do tipo. Na fala de João no banco dos réus, o contracampo vem como uma pedra áspera, mostrando um primeiro plano da juíza refletindo sobre a coitadice do rapaz. Aquele que tinha ótima vida, bem criado, que mergulhou na tráfico, cuja meta não era acumular mas torrar 1 milhão de dólares e que explica “eu não faço nada, mas sou bem bom no que eu faço” elucida seu (des)caminho, explica “Sou João, nunca soube o que é dentro, o que é fora da lei... a minha vida... as coisas foram acontecendo”. João, meio em lágrimas, é um coitadinho, que nunca teve norteamento moral. E receberá uma lição, quando no manicômio, no momento em que a história vira outra coisa, ingressando numas de “filme de prisão”. O que era interessante, no que suas ações tinham de amorais e inconseqüentes, numa meio luta entre liberdade de ações e roteiro cheio de intenções, vai ao chão com a vitória do tal roteiro cheio de intenções. Retorna, potente e justificada, a frase de Marguerite Yourcenar. O que deixa claro que a detenção e a reinclusão de Estrella é a cura a um ser antes doente. Estranho que o filme tivesse mostrado Estrella tão generosamente, com câmera e fricotes visuais tão embasbacados com o personagem, tudo muito alegria e humor. Estranho que o clima sério acometa o filme, torne-­‐o um serviço para conscientizar, para alertar sobre o dano das drogas e tráfico. Nada a favor, que fique claro, mas a linguagem dos primeiros 2/3, não corresponde ao 1/3 final. Um filme que muito queria falar, o tempo todo soltando imagens “espertas” e falas “bem sacadas” para ao final promover um discurso de palanque, cuja única sintonia é a visual: Mauro Lima é um artesão sem maior talento, e seu conceito estilístico é de turbulências e saídas de rota. Curioso que o final na prisão, seguido pelo final otimista e pra cima do cara que encontrou a “moral correta” e ascendeu, faça Meu Nome Não É Johnny lembrar um pouco Prenda-­‐me Se For Capaz. Ali, Spielberg começava seu filme com o personagem de Leonardo DiCaprio numa prisão francesa para, num flashback, mostrar a genealogia do golpista, com muito humor e alguns dramas, mas sempre bastante franco em prescrever as causas (ruína familiar) que levaram-­‐no para o caminho torto. Ao final deste filme de 2002, o rapaz era convidado para trabalhar no FBI, ou seja, apertar a mão da legalidade. Tirando a direção e as opções estilísticas (anos-­‐luz à frente em Spielberg), ambos os filmes são parecidos. Mas parece que Mauro Lima, de fato, estava meio perdido, meio sem norte, ensaiando o salto para onde achava que tinha de ser levada sua história. Isso transparece na tela, que é o que importa. Assim como importa, revendo tudo, percebermos que o diálogo que um filme faz, sobretudo em tempos de distâncias encurtadas e comunicações amplificadas, é sempre bastante múltiplo, transmutando experiências do momento ou outrora, ou mesmo da experiência de seu diretor, e cônscio e inconscientemente. Meu Nome Não É Johnny faz, pelo que aparece através do projetor, um diálogo muito maior com outros cinemas, inclusive o brasileiro em sua tradição e negação, o indie americano e tal, e certamente bem mais importantes de atenção (para análise) que o tal serviço anti-­‐drogas. Paulo Santos Lima Revista Cinética Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/meunomenaoejohnny.htm Paraísos Artificiáis (2012), de Marcos Prado Paraísos Artificiais (2012), de Marcos Prado Paraísos Artificiais, o primeiro longa de ficção de Marcos “Estamira” Prado, simula a experiência de uma rave. Da expectativa com a festa movida a música eletrônica e da abertura para descobrir novas drogas e sensações à constatação final de que algo se perdeu no processo, temos espelhada na narrativa do filme a experiência de participar de um evento desses, com forte teor de música eletrônica e uma noção de que “ninguém é de ninguém”. Está tudo ali, flagrado de maneira não linear por uma câmera mais esperta do que atenta. A impressão geral é a de termos visto um gigantesco comercial de energético com inserções de “aprenda a falar inglês em Amsterdan” e um flashback final no Rio de Janeiro que acerta uma pequena parte das pendências do filme (infelizmente, só no que diz respeito à trama, nunca do ponto de vista cinematográfico). Frases como “Uau, isto aqui está demais”, ou “nossa, que experiência incrível” (não exatamente assim, mas com o mesmo teor), que ouvimos a todo momento (como numa propaganda), reforçam seu lado propagandístico: de um estado de espírito, de um bem estar que é punido, de um fazer cinema festivo e doente. Isso posto, é necessário destacar que Nathalia Dill, a atriz principal, demonstra certo talento. Não só porque tem uma beleza incomum, mas também porque veste-­‐se muito bem no papel de DJ de sucesso, uma jovem que flertou com o espírito rave mantendo-­‐se deslocada de sua parte mais promíscua e perigosa. Disseram-­‐me que faz parte da novela das nove. Sinal de que pode aparecer algo que preste ainda nesse espaço global. É a história dela que acompanhamos com certo interesse no filme. Ela e sua alma gêmea, uma amiga inseparável com quem tem momentos de paixão carnal e ternura, vão para uma rave numa praia paradisíaca do nordeste brasileiro. Lá experimentam novas drogas, conhecem tipos místicos e dividem sexualmente um playboy, só pela experiência de dividirem algo intenso. As coisas não vão sair nada bem, sabemos desde o princípio, e o que nos resta acompanhar é o caminho de volta desses personagens perdidos, todos merecedores de alguma redenção, exceto a amiga amante, que precisou ser sacrificada pela trama – algo que o filme só mostra depois de uma hora de projeção, mas que já tinhamos percebido antes, graças a alguns sinais. Em relação à narrativa, a pergunta que se impõe é: para que filmar tudo fora da ordem cronológica? O cinema contemporâneo herdou o pior do cinema moderno, essa mania de propiciar ao espectador uma experiência semelhante à da revisão, já na primeira visão de um filme. Dessa forma, dá-­‐lhe pistas e mais pistas do que vai acontecer (e do que já aconteceu), para que o espectador sinta-­‐se inteligente ao montar um simples quebra-­‐cabeça. O drama desses personagens seria muito forte caso se optasse pela ordem cronológica. Ainda mais porque os atores, quando não são bons, ao menos não comprometem. Infelizmente, prefere-­‐se sempre os jogos de inteligência, de habilidade mais que duvidosa, a coisas simples e desprezadas como construção dramática; a confusão aparente à simplicidade transparente, o preguiçoso embaralhar de tempos à linearidade que reforça as emoções. Pobre dramaturgia. Sérgio Alpendre Revista Interlúdio Disponível em http://www.revistainterludio.com.br/?p=3149 Fixando o vazio Não é segredo que o primeiro Tropa de Elite (2007) partiu de um status quo alucinado – a malévola e finíssima classe média – para dele extrair um pacote de teses. Elas pululam: de onde viemos, para onde o bonde está indo, qual o final de tudo. Contrariando o lacrimoso Ônibus 174 (2002), José Padilha mexeu no geist sem dó nem piedade: injetou toneladas de incorreção política. Bateu na hipocrisia mequetrefe dos campi, dos gestos que observava desde garoto. E ao bulir na santidade de muitos hereges, deixou claro que a perversão pode acontecer tanto no universo épico do tráfico de drogas quanto nas miudezas, nas vigarices cariocas cotidianas. Capitão Nascimento grita, se descabela como personagem de Charlton Heston, mas não soa divinal. É justamente ele quem reconhece que a alienação e a violência do meio o fazem engolir o guisado de cara feia, lambendo os dedos e chupando lentamente os ossinhos. Paraísos Artificiais, de Marcos Prado, não pretende uma explicação tão ampla quanto as do Capitão Nascimento. Não vai na laje tomar cerveja com os amizades, não elabora várias frentes de batalha e, sobretudo, não utiliza referenciais pitorescos – do tipo dos que aliviaram a truculência e fizeram de Tropa de Elite um produto na linha do pop e do consumível: os refrões dos personagens e da música-­‐tema ainda hoje inebriam os amantes da franquia. Ainda assim, apesar das diferenças irreconciliáveis, Paraísos Artificiais funciona como uma nota de pé de página ao projeto destrinchado por Padilha, seu colega e produtor deste novo filme (assim como Prado era produtor dos dois Tropa). Ao invés de acompanhar o rito de passagem da juventude, entre a faculdade e o morro – para dali mostrar o efeito dominó rolando solto –, Paraísos se fixa em um instante: o da droga que socializa. O vazio, a ausência de motivos em um prazer que roda e não chega a um patamar duradouro. Sem ideologias, vagando por aí. Nando deixa a prisão e estende-­‐se na cama quentinha feita pela mãe em casa. Procura o irmão, quer impedir que ele cometa os mesmos erros que o levaram ao claustro infernal. Memórias do cárcere nem pensar. O libelo de Paraísos Artificiais passa longe do realismo de Graciliano Ramos ou da denúncia de um modelo de Estado. As memórias são as anteriores à prisão. O que se quer são as experiências individuais, misturadas e compondo uma tentativa de liberdade para cada personagem. Para Nando, a libertação era inicialmente da família, após o drama de perder o pai (intepretado pelo próprio Marcos Prado, em rápida ponta). Para Érika, sua esbelta e rosácea aventura extra-­‐mar, o fato de conhecer Lara e depois Nando encerra um case pessoal. DJ, o arquétipo da arte em tempos de guerra, ela quer um esteio, um lugar, um modo de vencer outros problemas do passado. Érika poderia ruminar entre os dentes que o amor a faz melhor, que a loucura de viver a mil por hora é coisa que não compensa e que já bateu cabelo demais. A questão é tangenciada, fica bem perto de ser dita com todas as letras, mas o diretor evita a imensa cafonice. O filme retrata a postura ambivalente e alienada dessa gente eucarística, pegadora em Amsterdã ou na costa do Nordeste. Prado consegue escapar dos falsos conselhos, apesar de flertar em determinados momentos com um rol de condutas que lembram o bom-­‐mocismo. Lipe, o revoltado irmão, dificilmente verbalizaria um veredito da sua consciência. Sabe-­‐se que a trégua entre irmãos não é algo comum de acontecer. Pior ainda se a atmosfera depressiva – família destruída, mãe chorosa, pai morto – joga contra as esperanças do brabo adolescente, encantado com a perspectiva de ser pária e reeditar o querido parente colateral. Na folia de todas as cores que era São Francisco durante o “Verão do Amor” de 1967, Érika e Nando poderiam embarcar no equivalente das raves: o furgão de Ken Kesey e os Merry Pranksters. Batismo de fogo entre os beatniks da linha antiga e os hippies adocicados, errantes, que erigiram Jerry Garcia um semideus. O debate então englobava os testes de LSD com propósitos medicinais e a descoberta de uma porta química para outra maior: a vida em uma comunidade que se julgava ungida, abençoada eternamente no mel do drop out. Os vestígios arqueológicos dessa remota era dão conta de que sair de casa era uma forma de combater o triângulo devocional de pai-­‐mãe-­‐filho, colocar o sexo como um norte, algo que Nando, Érika e Lara parecem tentar. Durante a façanha do enrosco lésbico, aquele vagar homoerótico em toda plenitude, é interessante perceber que o corpo de Érika recebe excessivamente a qualidade de protagonista: para a câmera, ele é o ponto de partida e de chegada. Cabe à outra garota curtir uma coadjuvância que nos leva a pensar se o filme de fato quis mostrar a comunhão das duas – o que seria até certo ponto “ousado” – ou preferiu a vertente soft da moça “descobrindo o prazer”. Nesta quase assepsia, o outro lado do trisal (Nando e Érika) se basta, sem maiores planos de vôo. Não têm a plataforma eleitoral de colonizar o planeta, de repovoá-­‐lo com as boas novas do ácido – ou do GHB, ecstasy, mescalina. Tudo se acaba em uma quarta-­‐feira de cinzas qualquer, mesmo fora do carnaval, porque não abrem mão da estrutura que os suga de volta. Afinal, quando menos se espera, surge um agente da DJ com o celular tremulando e um cartão de visitas. A temporada do exótico acaba rapidamente, sejamos práticos e profissionais. Hábil em conduzir a leitura dinâmica de um mundo maior, que às vezes cede para o “hear the grass grow” visual – as imagens imperando diante do discurso – Paraísos Artificiais usa uma pitada de reportagem. Sem querer, promove um encontro das águas entre o lado confessional da trama e o caráter de “alerta” que tentarão dar ao filme. Para muitos, é fácil idealizar um ex-­‐
presidiário que não quer ser líder de nada e que apenas está disposto a falar, com a companhia de criaturas luxuriosas por perto. Espera-­‐se que o rapaz não seja alçado à condição de pastor redimido, exemplo das cartilhas motivacionais. Enquanto os polaróides ficarem na gritaria sobre a agitação hormonal das meninas e do menino, algum caminho terá sido andado. Caso o vejam como roteiro pedagógico para se atingir as virtudes, os acertos deste estudo sobre a galera alienada diminuirão irremediavelmente, conduzindo-­‐o à obscuridade. Andrea Ormond Revista Cinética Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/paraisosartificiais.htm Muita ousadia de fachada e caretice de fundo Talvez seja um problema geracional, e ele ocupou boa parte do debate sobre Paraísos Artificiais, quando o filme de Marcos Prado concorreu no Cine PE. No local em que o repórter estava sentado, a fileira da frente foi ocupada por jovens que passaram o tempo todo do filme manipulando seus celulares e enviando mensagens. Aqueles jovens queriam dar seu testemunho de que estavam no cinema, e talvez tenham escrito nas mensagens que assistiam a um filme de 'pegação'. Sob o efeito das drogas, as raves viram festas sensoriais na tela. Pela primeira vez, Lula Carvalho não é seu câmera. Ele ficou somente no visor, como diretor de fotografia. A intenção assumida de Marcos Prado foi fazer um filme belo e sensorial. Os jovens drogados viajam nos paraísos artificiais. Pegam-­‐se -­‐ homens e homens, mulheres e mulheres, homens e mulheres. Paraísos Artificiais coloca na tela a geração 'T', de testemunho, esses jovens que ficam twittando o tempo todo, dando conta do que vivem. E a estética do filme é 'corta e cola', como a arte do DJ -­‐ não por acaso, Érika, a protagonista feminina, é uma DJ, que faz carreira musical no País e no exterior. Um pouco por isso, a narrativa do filme viaja -­‐ Rio, Amsterdã, praias do Nordeste. Prado e Lula Carvalho recriam o clima alucinatório das drogas, mas sem exagerar nas lentes deformantes. As garotas ficam acuadas por búfalos num desfiladeiro em Alagoas -­‐ e a cena é muito bem filmada. O Ibama teve de autorizar o transporte dos animais do Pará. A estética é nova, ou pretende ser nova, mas considerando-­‐se a censura do filme -­‐ 16 anos -­‐, está uma geração atrás. O básico sensorial e audiovisual de Paraísos Artificiais vem de Kathryn Bigelow -­‐ o importante é que tem gente que sabe disso. E, a despeito das novidades e ousadias -­‐ das safadezas -­‐, o filme conta uma história tradicional (careta?) de perda e reparação, de encontros, desencontros e reencontros. Marcos Prado embaralha a narrativa -­‐ 'esculpe o tempo', como se diz. Mas não há nada, em seu filme, que não esteja em À Beira do Caminho, de Breno Silveira, que também concorreu no Recife, Só que, lá, a rave é substituída por canções românticas de Roberto Carlos. No universo de jovens, há até um velho -­‐ o hippie -­‐ que, por meio da palavra, reflete sobre as drogas e resume a 'mensagem' do autor. Luiz Carlos Merten O Estado de S. Paulo Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,critica-­‐muita-­‐ousadia-­‐de-­‐
fachada-­‐e-­‐caretice-­‐de-­‐fundo-­‐,869670,0.htm Quebrando o Tabu (2011), de Fernando Grostein Andrade Para FHC, documentário deve fazer sociedade debater drogas Fernando Henrique Cardoso estará nos cinemas na próxima sexta-­‐feira (3). Ele é o personagem principal do documentário "Quebrando o Tabu", de Fernando Grostein Andrade, sobre o combate ao uso de drogas em diferentes partes do mundo. No filme, o ex-­‐presidente da República argumenta que a criminalização do usuário, ao invés de inibir, incentiva o tráfico de drogas. Ele e todos os entrevistados do filme, que incluem personalidades como Bill Clinton, Paulo Coelho e Drauzio Varella, defendem a descriminalização do consumo e o tratamento médico, não policial, a dependentes químicos. "Esse não é um filme de tese", disse FHC, em conversa com jornalistas, na segunda-­‐feira. "É um documentário à procura de soluções." Afirmou também que o objetivo do longa-­‐metragem é informar o público a respeito do problema, para fomentar um debate. "Não acho que o tema deva ser discutido pelo Congresso neste momento. As sociedades não mudam de uma vez, mas em etapas", declara. FINANCIAMENTO Mesmo apresentando entrevistas favoráveis à descriminalização do uso de drogas ilícitas, o documentário captou R$ 2,7 milhões em leis de incentivo para ser realizado. "Só conseguimos patrocínio quando já tínhamos material para mostrar às empresas, para que vissem que estávamos fazendo um trabalho sério", diz Fernando Menocci, um dos produtores de "Quebrando o Tabu". "Apesar de este ser um filme a favor da diminuição do consumo de drogas", completa. Daniel Médici Folha de S. Paulo Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/923094-­‐para-­‐fhc-­‐documentario-­‐deve-­‐
fazer-­‐sociedade-­‐debater-­‐drogas.shtml Quebrando o tabu Quebrando o Tabu se enreda num terreno conflituoso. Mas o faz por necessidade: há muito que se discutir quando o que está em jogo é a regulamentação das drogas. O filme de Fernando Grostein Andrade logo assume algumas dificuldades: narrar uma pequena história de contradições e interesses com parcialidade – o que é um mérito, pois não há nada menos cinematográfico que o mito da imparcialidade. Capitaneado pelo ex-­‐presidente Fernando Henrique Cardoso, o documentário visa desmistificar a lógica e a métrica da produção, da distribuição e do consumo das principais drogas hoje ilícitas (isto é, imorais), embora seja claramente uma peça de defesa da regulamentação e legalização especificamente da maconha. Há, claro, a necessidade de trazer o grande público para dentro do debate, sendo que a ilegalidade das drogas é a alimentação do tráfico, das milícias (o que não aparece no filme, mas deveria) e de uma política opressora que aufere todos seus esforços, suas forças táticas e inteligentes, no combate a um inimigo que foi por ela mesma criado. O argumento é o seguinte: drogas sempre foram consumidas pela espécie humana, em muitos dos registros históricos conhecidos. Além disso, elas constituíam parte de toda uma simbologia cultural, preenchiam cultos religiosos que contribuíam na ligação do corpo com o espírito. Com o início das políticas repressivas, o movimento de combate às drogas conduzido pelo governo dos Estados Unidos, sob a massiva propaganda de guerra à época da invasão do Vietnã pelos EUA, logo ganhou força em outros países. Se a Lei Seca americana já havia incentivado uma rede inteira de mercados de produção e venda de bebidas alcoólicas no início do século passado, hoje, a política criminalizante e estritamente punitiva contra as drogas não corrigiu os problemas do consumo irresponsável (uma questão bastante discutível) e potencializou o uso marginal, assim como deu poder ao tráfico para depois querer tirá-­‐lo sob o pretexto da salvaguarda da moral e da segurança. Política de contradições e interesses, que também não aparecem no filme, a guerra as drogas não falha porque é ineficiente, mas porque cria monstros que ela mesma visa combater. Neste ponto, o filme Cortina de Fumaça, Você Precisa Ouvir o que Eles Têm a Dizer (2011), de Rodrigo Mac Niven, assusta muito mais os discursos opressores. Menos badalado e menos visto, o filme de Mac Niven aprofunda a questão ao retirar o estigma do usuário doente e levar a questão para longe das disputas de ego. Cortina parte de onde Quebrando o Tabu termina: após a regulamentação, resta todo o processo produtivo pelas cooperativas e as redes de consumo que plantam e usam as drogas para fins medicinais e recreativos. Grosso modo, a diferença entre os filmes é que, enquanto Cortina de Fumaça não chama o usuário de doente, Quebrando o Tabu o faz; o primeiro reconhece que a política antidrogas é uma política de combate às classes mais baixas. Ora, se a produção e consumo de drogas sempre fez parte da espécie, não há mal em seu uso – o que precisa é um programa educativo pungente, como mostram os dois filmes; aqui, o filme ancorado pelo ex-­‐presidente vai mais fundo. Mais que apresentar ex-­‐presidentes arrependidos de suas atuações frente ao combate, Quebrando o Tabu perde a oportunidade de conectar-­‐se à disputa ainda mais profunda. O que fica claro é uma carência de um posicionamento mais crítico, que escape à questão moral e não sucumba à publicidade dos discursos. Ora, se usuários de drogas não são criminosos, não são necessariamente doentes, como diz FHC. Se, por um lado, rever uma opinião equivocada é atitude honrada – e o filme apropria-­‐se disso como bandeira – a mera exposição culpada daquilo que poderia ter sido não é sustentação suficiente para a defesa de um argumento. Há muito mais a fazer do que apresentar casos internacionais (Holanda, Suíça, Suécia, Portugal), pois há também toda uma teia de complexas relações materiais e de classes a ser compreendida e levada à análise. A trilha sonora revela algo dos discursos. Ao contrário de Cortina de Fumaça, em que o silêncio é muito, não há diálogos sem música pontuando as falas em Quebrando o Tabu. Todavia, Fernando Grostein coloca pais lamentando a dureza de ver filhos viciados, quando, a bem dizer, o debate do filme não é este. Assim, persiste a ideia do preto, pobre, maconheiro e doente, uma vez que o menino de classe média é apenas vítima do poder coercitivo do tráfico e das substâncias viciantes contidas nas drogas. Quebrar o tabu é estraçalhar com outras situações. Pedro Henrique Gomes Tudo é Crítica Disponível em: http://tudoecritica.com.br/?tag=maconha 

Documentos relacionados