melina de oliveira bittencourt - PPGHIS

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melina de oliveira bittencourt - PPGHIS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
MELINA DE OLIVEIRA BITTENCOURT
SANTOS E DEVOTOS: HISTÓRIAS DE VIDA E DEVOÇÕES, EM SANTO
ANTONIO DE JESUS - BA.
Santo Antonio de Jesus/BA
2011
MELINA DE OLIVEIRA BITTENCOURT
SANTOS E DEVOTOS: HISTÓRIAS DE VIDA E DEVOÇÕES, EM SANTO
ANTONIO DE JESUS - BA.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História Regional e Local
da Universidade do Estado da Bahia (UNEB
– Campus V) para a obtenção do título de
Mestre em História.
Área de concentração: História Regional e
Local
Orientador: Charles D’Almeida Santana
Santo Antonio de Jesus/BA
2011
Melina de Oliveira Bittencourt
SANTOS E DEVOTOS: HISTÓRIAS DE VIDA E DEVOÇÕES, EM SANTO
ANTONIO DE JESUS - BA.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História Regional e Local
da Universidade do Estado da Bahia (UNEB
– Campus V) para a obtenção do título de
Mestre em História.
Área de concentração: História Regional e
Local
Banca Examinadora
Profº. Drº. Charles D’Almeida Santana - UEFS __________________________
Profº. Drº. Wellington Castellucci Júnior – UFRB ___________________________
Profº Drº. Vilson Caetano de Sousa Júnior - UNEB ________________________
À minha família que,
com carinho, tanto me auxiliou e me compreendeu nos momentos de estudo
AGRADECIMENTOS
A todas as pessoas que contribuíram para a concretização deste trabalho
de pesquisa.
A todos os professores que contribuíram com suas respectivas disciplinas
acadêmicas, no Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado da Bahia –
Campus V, assim como a Coordenação, cargo que foi ocupado pela professora Dra.
Suzana Severs, professora Dra. Maria das Graças e o atual professor Dr.Raimundo
Nonato Pereira.
Ao professor Dr. Welligton Castellucci, que ao iniciar o mestrado foi quem
me acolheu para orientação. Apesar de temporalidades diferentes de estudo, nos
identificamos pela história oral e pelo interesse em registrar trajetórias de vida de
mulheres negras e devotas.
Ao professor Dr. Charles Santana, que tanto contribui com sua paciência
e cautela a partir do remanejamento realizado no processo de orientação, por conta
da aquisição de bolsas.
A presença atuante das secretárias deste PPG, Ane Nunes, Consuelo
Silva e Vilma, as quais com todo o conhecimento adquirido na área administrativa
nos orientavam nos momentos de incertezas.
A Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), a qual
apoiou o processo de construção da presente dissertação, assim como a
Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Aos entrevistados, os quais promoveram a construção da pesquisa
através de narrativas, cedendo-nos um pouco de suas trajetórias de vida, a partir da
vivência religiosa.
Aos colegas, pelos momentos de discussão bibliográfica e busca de
fontes, além da socialização das expectativas surgidas ao longo dos estudos e
confecção da dissertação.
Sou grata aos meus familiares que tanto me ajudou no decorrer desses
02 anos de estudos historiográficos com paciência, amor, dedicação e sempre
indicando o melhor caminho a seguir. Ao meu esposo que foi, é e continuará sendo
o meu “braço direito” em todos os momentos. À minha filha, Maria Clara, que esteve
sempre comigo nos momentos de estudos, compreendendo a minha presença e
ausência.
À Deus, pelo dom da existência e por estar concluindo esta pósgraduação com muito afinco e dedicação.
“Não se pode narrar a história inteira.”
E. P. Thompson
RESUMO
Esta pesquisa visa analisar a participação da população negra nas manifestações
populares religiosas, em Santo Antonio de Jesus – Bahia, identificando trajetórias de
vida a partir das redes de sociabilidade. O estudo do cotidiano das populações
negras é uma oportunidade de incorporar à história as tensões sociais do dia-a-dia,
implicando numa reconstrução da organização de sobrevivência deste grupo. A
pesquisa pretende revelar, portanto, os papéis desempenhados pelas mulheres
negras dentro da comunidade em que vivem a partir das práticas religiosas
populares. A estratégia metodológica baseia-se na abordagem da História Oral,
sendo que no percurso de captura das entrevistas, considera-se como fundamental
a discussão em torno das relações entre História e Memória.
Palavras – chave: trajetória - devoção popular – memória.
SUMMARY:
This research aims to analyze the participation of black people in popular religious
manifestations in Santo Antonio de Jesus - Bahia, identifying courses of life from
social networks. The study of everyday life of blacks is an opportunity to incorporate
the history of social tensions of the day to day, resulting in a reconstruction of the
organization's survival in this group. The research aims to reveal, therefore, the roles
played by black women within the community they live from the popular religious
practices. The methodological approach is based on oral history, and in the course of
capture of the interviews, it is considered as a fundamental discussion about the
relationship between History and Memory.
Key - words: history - religious folk - memory.
LISTA DE FOTOS
Foto 01: Capela de D. Glória em dia de reza à Santa Bárbara
CAPA
Foto 02: Altar da Igreja Matriz de Santo Antonio
34
Foto 03: Residência de D. Glória em dia de reza à Santa Bárbara
76
Foto 04: Momento de reza em homenagem à Santa Bárbara
78
Foto 05: Bolo - Reza a Santa Bárbara
82
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
11
1º CAPÍTULO: RAÍZES DO CATOLICISMO POPULAR
1.1- Família rural: fonte de religiosidade popular
23
1.2- Momentos de devoção: a família e a comunidade
47
2º CAPÍTULO: A RELIGIOSIDADE NA CIDADE
2.1- A continuidade da devoção popular
57
2.2- Aparatos devocionais
67
3º CAPÍTULO: REDES DE SOCIABILIDADES
3.1- As relações de poder construídas na comunidade
86
3.2- As novas tendências devocionais
99
CONSIDERAÇÕES FINAIS
105
FONTES
108
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
109
INTRODUÇÃO
O
tema
que
proponho
para
análise
nesta
Dissertação
é
um
desdobramento da discussão realizada no trabalho de conclusão de curso em
Licenciatura Plena em Geografia, na Universidade do Estado da Bahia, quando
procurei entender, a partir do olhar da Geografia Cultural, as mudanças e
permanências sócio-espaciais em torno da festa ao padroeiro Santo Antônio, em
Santo Antônio de Jesus. Naquela oportunidade mantive contatos com dezenas de
fiéis, devotos, autoridades eclesiásticas, arquivos paroquiais e particulares os quais
me disseram muito mais do que aquele trabalho se propunha discutir. Tais
inquietações, em sua maioria, se deram por conta da relação entre homem/mulher e
o sagrado e como esta relação impactou em suas trajetórias de vida e vice-versa.
Assim, neste trabalho, me preocupo em entender essas relações com o sagrado na
vida de mulheres negras, pobres, reconhecidas pela comunidade que a cerca por
sua liderança religiosa, seja nos cultos oficiais, seja nas suas devoções e práticas
religiosas no âmbito doméstico. Busco, principalmente, compreender formas de
ascensão social, conflitos e resistências em suas trajetórias de vida inteiramente
marcadas pela relação com o sagrado.
Nossas interlocutoras são, em sua maioria, moradoras do bairro do
Cajueiro, Santo Antônio de Jesus-BA, mas advindas de áreas rurais locais e
regionais, onde exerciam a função de agricultoras e com o passar do tempo e com a
transferência para a cidade passaram a exercer outras atividades. Sobre o bairro do
Cajueiro é preciso dizer que se trata, hoje, de um bairro extremamente populoso,
formado por algumas ruas principais, porém, com um número muito grande de vielas
e becos surgidos de forma irregular, ao longo do tempo, a partir de terrenos baldios
ou de quintais que deram origem a moradias, muitas das quais situadas em ruas
sem calçamento e com uma infraestrutura precária. Atualmente os moradores do
bairro, em sua maioria negros, convivem com a violência e o tráfico de drogas
constantemente denunciados pela imprensa local.
O bairro possui uma igreja
católica dedicada a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e é em torno desta igreja
que as principais personagens desta pesquisa moram e desenvolvem suas práticas
de fé, estabelecendo relações sociais, conflitos e redes de solidariedades.
É bem em frente à igreja do bairro que está situada a residência de dona
Maria da Glória de Jesus, 78 anos de idade, negra, aposentada por serviços
prestados ao governo estadual nas escolas como “tarefeira”, ou seja, auxiliar de
serviços gerais, não se casou e nem teve filho. Atualmente mora sozinha e ao fundo
de sua residência encontra-se a de sua irmã Ana Maria.
Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade, negra, viúva e
aposentada por serviços prestados ao governo municipal faleceu em janeiro de 2011
por problemas cardíacos. Casou-se e teve cinco filhos. Esta nossa personagem
morava cerca de cinquenta metros da igreja do bairro, onde cuidava de um sobrinho
portador de deficiência física e mental. Mantinha ao lado de sua residência a casa
de seu único filho vivo. Apesar de morar praticamente sozinha, a movimentação de
pessoas em sua casa era grande o dia inteiro, as quais eram acolhidas por dona
Lourdes, como era mais popularmente conhecida, em um jogo de sofá na estreita
varanda frontal ou na sala, para receber aconselhamentos ou rezar.
Duas outras entrevistadas moram a curta distância da igreja onde
frequentavam regularmente enquanto, segundo afirmaram, estavam com boa saúde.
Ambas residem com familiares: dona Nita, ou, Anita Santos de Santana, 82 anos de
idade, negra, viúva e aposentada, nos acolheu para as entrevistas na casa de uma
de suas filhas, pois evitava ficar na sua casa sozinha. Dona Judite Cunha, por sua
vez, 83 anos de idade, branca, aposentada por serviços prestados ao governo
federal, também moradora da Rua do Cajueiro, não se casou e nem teve filhos.
Dona Maria de Jesus, 47 anos de idade, negra, dona de casa, foi
entrevistada quando esta foi visitar dona Maria da Glória, casada e com dois filhos
residindo ao final da rua do Cajueiro.
As duas últimas personagens moravam em ruas do bairro, porém, um
pouco mais distantes da igreja. Dona Maria da Conceição, ou Conceição “Madeira”,
76 anos de idade, negra, viúva e aposentada, mora atualmente com uma de suas
filhas na Rua Viriato Lobo, também pertencente ao bairro do Cajueiro. Dona
Ermelina S. Oliveira, conhecida por Milú, 79 anos de idade, viúva e aposentada,
moradora da Av. Luiz Viana, reside em uma casa localizada nos fundos de outra que
teria ocupado durante décadas e que, posteriormente passou para uma de suas
filhas, os quais são ao todo sete.
O estudo das trajetórias, da devoção, dos conflitos e resistências
presentes na relação entre essas mulheres, em sua maioria negras e pobres, e a
comunidade
que
as
cerca
vem
num
momento
em
que
se
aumentam
significativamente os estudos e pesquisas regionais, não obstante, devido à busca
pelas particularidades que acabam sendo ocultadas, consequências de um
pensamento globalizado com a homogeneidade das regiões. Mas, também,
conforme identifica Janaína Amado na introdução ao livro República em Migalhas1,
outros fatores colaboram para a regionalização dos estudos, tais como: o
esgotamento das macro-abordagens; o comprometimento dos pesquisadores com
temas locais – incentivados pela área de concentração desta Pós-graduação - e a
volta do olhar do pesquisador sobre a organização espacial do país, observando que
neste, há ainda, áreas pouco conhecidas como o norte e nordeste e seu interior.
Estes fatores refletem a escolha do tema e do espaço para o estudo.
Regionalizar passa, então, a ser a tarefa de dividir o espaço segundo
diferentes critérios que são devidamente explicitados e que variam segundo as
intenções de cada trabalho. Neste trabalho, a regionalização está presente não
como uma forma obrigatória, mas como ponto de referência. Neste trabalho está se
optando em avaliar traços comuns, distintivos, responsáveis pela unidade regional,
sua identidade cultural, laços que unem esta população. “É nesse sentido que a
região passa a ser um meio e não mais um produto”2, conclui Amado. Sendo assim,
a história regional não é um outro tipo de história, ou uma história diferente, é
simplesmente história.
Os estudos de trajetórias negras nas décadas que se seguiram à abolição
têm crescido muito no Brasil nos últimos anos3. Porém a maioria desses estudos tem
se concentrado, principalmente, nos aspectos demográficos e econômicos ou em
análises realizadas tendo como recorte temporal os primeiros anos imediatamente
após a libertação dos escravos. Da mesma forma, os estudos sobre práticas
religiosas negras e suas influências na sociedade ou, como estes grupos se
serviram delas para o exercício da resistência cotidiana, tiveram como foco
1
AMADO, Janaína. História e Região: Reconhecendo e Construindo Espaços. In: Silva. Marcos.
República em Migalhas, História Regional e Local. Ed. Marco Zero, 1989. pp7-15.
2
AMADO, Janaína. op.cit, p. 63.
3
Sobre trajetórias de afro-descendentes, ver entre outras as obras de: FRAGA FILHO, Walter.
Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia, 1870-1910. Campinas, SP: Ed.
UNICAMP, 2006. RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe Maria. Memórias do cativeiro: família, trabalho e
cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
predominante na historiografia brasileira o período Colonial e Imperial. Carece, por
isso, de outros estudos, mais regionalizados, que procurem entender como as
populações negras, sendo majoritárias na Bahia, procuraram estabelecer redes de
sociabilidades e solidariedades tendo por mote a prática religiosa nos meados do
século XX.
A religiosidade que durante muito tempo foi um campo de estudos voltado
principalmente para a sociologia, antropologia, filosofia e teologia também passou a
ser de interesse da história, em especial com o surgimento da História Social que
incluiu novas abordagens e novos olhares, muitos dos quais restritos às ciências
sociais. Vale lembrar que a História sempre estudou a instituição Igreja juntamente
com o Estado em uma visão predominantemente política. Mas, a partir da década de
80 do século XX, esta ciência passou a enfatizar as ações dos grupos religiosos e
seus comportamentos diante dos ritos sagrados. Nessa tendência histórica, a
religiosidade popular ganhou destaque a partir de 1990 e vários são os autores que
influenciam a historiografia da religião atualmente. Michele Volvelle 4, por exemplo,
propõe o tema como forma criativa de leitura popular do cristianismo, e Keith
Thomas5 complementa que as crenças estão intimamente relacionadas com as
idéias religiosas e sociais do período em que elas acontecem, ideia que em muito
esse trabalho concorda.
Do catolicismo oficial provém uma corrente popular que, por causa da
resistência escrava, promove a esperança de salvação física e moral, renovando o
sentido da vida. Enquanto a religião popular foi, na historiografia brasileira, o único
meio de significar a vida dos vencidos e dominados em um contexto de invasões e
colonização européias a partir do século XVI, em um contexto social permeado pela
violência, em seus vários olhares, o pobre e marginalizado inventou um cotidiano
para viver com dignidade e/ou até mesmo, sobreviver através dos valores morais
vitais.
Com o passar dos séculos a sociedade mundial viveu grandes e intensas
transformações como, por exemplo, as guerras mundiais, a Revolução Industrial as
quais incutiram, no ser humano, novas formas de pensar e, conseqüentemente,
novos costumes e crenças. Mesmo com tais mudanças ocorridas durante o tempo e
4
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. 2 Ed.. São Paulo: Brasiliense, 1991.
THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia: crenças populares na Inglaterra nos séculos XVI e
XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
5
com a ampliação da oferta de bens simbólicos religiosos ou com presença de novas
formas de religiosidade, privilegiando novas práticas, bem como o processo de
secularização, as devoções católicas populares ainda permanecem como fonte de
conforto e esperança para importante parte da população negra. Essa valorização é
percebida através das variadas manifestações e expressões de devoção popular
que se preservam e crescem, tais como: romarias, promessas, festas, missas,
altares, santinhos, consagrações nacionais e regionais. Essa permanência se
concretiza na continuidade da geração de devotos, sendo que estes remodelam
constantemente a religiosidade popular.
Essas novas práticas devocionais proporcionam, conseqüentemente,
novas formas de linguagem, comunicação, gestos e rituais em seus espaços
sagrados, demarcando, assim, novos territórios. O grupo humano que demarca o
seu espaço através do exercício de religiosidade proporciona a cada membro o
envolvimento deste com a identidade entre o poder e o sobrenatural, o qual é
agraciado pela proteção, atenção e companhia de Deus, pela proximidade com os
santos, revelando uma estratégia de sucesso para o cotidiano fragmentado. Esse
universo devocional está regido não só pelo contratual, mas também por
manifestações e expressões particulares como benzer, rezar, escrever, carregar,
visitar, colocar hábito, peregrinar entre outras, expandindo o seu espaço de
devoção, mesmo que essa presença seja instantânea, pois estabelece uma
memória onde a vontade de Deus se faz presente.
A festa oficial do catolicismo é realizada de acordo com o calendário
litúrgico da Igreja, no entanto, existem devoções que são extraordinárias, ou seja,
são realizadas além do que é promovido pela regularidade religiosa. São
manifestações que se caracterizam como táticas bem sucedidas para enfrentar as
tristezas, as decepções, a desilusão, a violência, a pobreza e outros fatores que
teimam em desestimular o ser humano a continuar a viver. É nesse jogo do cotidiano
que se percebe que a religiosidade acaba sendo para muitos a solução mais
acessível para permanecer resistindo aos problemas da vida. Essa manifestação de
fé no santo e a esperança de dias melhores se concretizam desde em um amuleto a
uma reza domiciliar. O estudo desta religiosidade, cujas práticas, em sua maioria, só
se encontram registradas na memória de seus praticantes, expressam não apenas o
religioso, o místico e o sagrado, mas, também expressam o social, a relação do
homem/mulher com pessoas do mesmo grupo social e de outros grupos.
Vale lembrar que a religiosidade na zona rural acontecia, e ainda
acontece, nas casas dos moradores em que a liderança é leiga e exercida por
homens e mulheres, principalmente rezadores, na ausência ou escassez de
sacerdotes permanentes. Esses cultos aconteciam descartando ou recriando os ritos
litúrgicos oficiais, estando, em muitos casos, as rezas coletivas e festas de santos
voltadas a produção agrícola, constituindo uma prática denominada de catolicismo
barroco6.
Percebe-se, portanto, que a população passou a (re)inventar o seu
cotidiano social marcado por atitudes de disposição moral e fé, estando presente no
cotidiano das pessoas, influenciando e, por vezes, determinando o curso histórico
social desse grupo.
Estudar o cotidiano não é uma tarefa fácil devido a amplitude do tema. O
cotidiano ressalta as experiências de vida que escaparam ao normativo e
institucional, vislumbradas nas entrelinhas, nas fímbrias do sistema, e aponta para o
provisório, para os papéis informais que desafiam as regras instituídas. As práticas
vividas, a concretude das relações humanas se confrontam com os valores
herdados e os papéis prescritos e apontam para o imponderável.
Sempre relegado ao terreno das rotinas obscuras, o quotidiano tem
se revelado na história social como área de improvisação de papéis
informais, novos e de potencialidade de conflitos e confrontos, em
que se multiplicam formas peculiares de resistência e luta. Trata-se
de reavaliar o político no campo da história social do dia-a-dia. (...).7
A análise do cotidiano de mulheres negras8 é uma oportunidade de
incorporar à história as tensões sociais do dia-a-dia, implicando numa reconstrução
da organização de sobrevivência deste grupo populacional. Este estudo pretende
apontar os papéis desempenhados por mulheres negras no interior do grupo social
no qual vivem a partir da devoção religiosa aos santos. Tomando as palavras de
Maria Odila Dias, “Não me refiro a papéis sociais normativos e prescritos, mas a
6
Ver: NOVAIS, Fernando A.(coord. Geral). SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). História da vida privada no
Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.103.
7
DIAS, Maria Odila L. da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995, p.14.
8
Ao apontar a característica as nossas narradoras como mulheres negras estamos nos referindo,
além das características étnicas que as identifica, a afirmação das mesmas como tal. Em diversos
momentos das narrativas, de forma explícita ou nas entrelinhas as falas de muitas delas são
marcadas por questões de afirmação étnica e identitária que veremos no transcorrer do texto, como
as memórias de infância de dona Lourdes ou as vivências de dona Milú.
mediações sociais continuamente improvisadas no processo global de tensões e
conflitos, que compõem a organização das relações de produção, o sistema de
dominação e de estruturação do poder”.9
A religião católica também passou por transformações à medida que as
pessoas passaram a entender que essa instituição não abarcava mais as suas
necessidades da vida corriqueira. As pessoas, então, passam a remodelar a forma
de devoção, fugindo da oficialidade da Igreja, promovendo o surgimento do que
convencionalmente passou a se chamar de religiosidade popular. E nesse novo
arranjo religioso, o crente manifesta a sua fé sem precisar de um sacerdote ou outro
membro oficial do catolicismo.
Umas das questões que nos propusemos a responder durante esta
pesquisa é: qual a relação das práticas devocionais com o cotidiano de população
no meado do século XX? Teria a prática religiosa da devoção popular algum impacto
nos arranjos sociais construídos entre fiéis e devotos? Quais seriam esses
rearranjos sociais? As devoções populares ocupam um lugar estritamente religioso
ou os(as) líderes religiosos(as) (curandeiros(as), benzedeiros(as), rezadeiros(as))
procuram, através de suas práticas, ocupar novos espaços na comunidade, que
utilizando de seu poder de liderança religiosa popular passa também a ser uma
espécie de inspiração para as atitudes cotidianas na vida do ser humano a ele(a)
relacionados?
Carlos Santaló10 afirma que a religiosidade popular tem como registros
documentais a sua prática e suas especificidades, tais como as relações de:
autoridade-obediência, paradigma-mimetismo, poder-submissão. A partir dessa
análise relacional complexa o historiador expandirá a sua compreensão sobre o
tema. No Brasil, diversos estudos surgiram, em especial nas últimas décadas,
analisando aspectos de práticas religiosas, desde a Colônia à história recente,
apontando para as interfaces entre o popular e o oficial, destacando-se Laura de
Mello e Souza11 que discute práticas religiosas no Brasil colonial (magia/feitiçaria) e
9
DIAS, Maria Odila L. da Silva. Op. Cit. p.13.
SANTALÓ Carlos Alvarez La Religiosidad Popular - II Hermandades, Romerías u Santuários. REY,
Maria J. B. La Religiosidad Popular. Hermandades, Romarias y Santuarios. Barcelona: Fundación
Machado/Anthropos, 1989, v. III, p.7-12.
11
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
10
João José Reis12 com os rituais fúnebres na Bahia no século XIX. Tais estudos são
importantes para entendermos a diversidade de conflitos e resistências entre o que é
normatizado e o que é reinventado pelo povo ao longo do tempo.
Pela tradição oral, o negros ao chegarem na América ressignificaram o
corpo de origem africana, os símbolos culturais e textuais, assim como toda a
complexidade de sua alteridade, cultura, lingüística, diversidade étnica e de sua
história. A cultura negra baseada nos ancestrais e seus modos peculiares e diversos
de visão de mundo teve como amparo as tradições e a memória oral africana que
ao se confrontar com os sistemas simbólicos americanos, construíram, assim, a
identidade afro-brasileira13.
A maioria das práticas de benzeduras e rezas realizadas pelas
personagens deste trabalho traz elementos de uma religiosidade de matriz africana,
seja no uso dos elementos da natureza (folhas, água, óleos, etc), seja na estrutura
destas práticas (o canto, a dança, os instrumentos musicais como o atabaque), seja
na forma de celebrar (a comida e as oferendas), embora muitas delas neguem
qualquer ligação com o candomblé. Este trabalho não tem como objetivo o estudo
destas práticas religiosas per si, mas no transcorrer dos capítulos procurarei levantar
algumas questões acerca da refutação da associação entre as práticas religiosas
destas mulheres e a religiosidade de matriz africana.
Acredita-se, que as narrativas das pessoas são fontes fundamentais para
a análise histórica, pois
As narrativas possuem a potencialidade de fazer viajar o ouvinte
através da viagem narrada. Como fontes para construção do
conhecimento histórico, seu potencial é inesgotável, pois também,
como afirma Benjamin, ‘incorporam as coisas narradas à experiência
dos seus ouvintes’. Em outras palavras, possibilitam ‘pontuar entre o
momento da fala e o eternizar da escrita, desvãos que vazam no
tempo o sentido da existência’14.
A estratégia metodológica baseia-se na abordagem da História Oral,
sendo que no percurso de captura das entrevistas, considera-se como fundamental
12
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
13
MINTZ, Sidney W. PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva
antropológica. Rio de Janeiro: Pallas: Universidade Candido Mendes, 2003.
14
GROSSI, Yonne e FERREIRA, Amauri. Razão narrativa: significado e memória. História Oral (4).
São Paulo: ABHO, 2001, p. 26.
a discussão em torno das relações entre História e Memória. Dialogando com Pierre
Nora15, para quem “[...] a história é a reconstrução sempre problemática e
incompleta do que não existe mais [...]” e “[...] a memória é um fenômeno sempre
atual, um elo vivido no eterno presente [...]”. Assim, debruçar-se sobre a busca das
memórias e vivências de mulheres negras e devotas é sintomático de um espaçotempo onde a memória está sendo constantemente ameaçada em desaparecer, daí
o empenho, enquanto pesquisadora, em reconstruir, problematizar e preservar os
lugares de sua representação16. Essa sensação também é comum a todas as sete
pessoas que no presente trabalho contribuíram com a narrativa.
As interlocutoras se assemelham nesta Dissertação por possuírem origem
rural, bem como serem,
[...] depositários de uma mesma memória que, mesmo narrada de
forma individual, expressasse as lembranças coletivas; que
partilhassem experiências comuns e tivessem a constituição de uma
identidade marcada pelo sentido de pertença e de construção de um
espaço único [...]17.
Além dessa identificação comum encontra-se também a presença
fortemente feminina. Sendo esta incluída com veemência na ciência historiográfica a
partir de 1970, imbricada com o movimento feminista – diferenciação de gênero -,
com o florescimento da antropologia e da história das mentalidades, bem como as
novidades no campo da história social e as inéditas pesquisas da memória popular.
No entanto, pesquisadores ao procurarem descrever os papéis femininos
identificaram uma quantidade de “[...] práticas específicas que por meio de um jogo
de compensações, de interferências ou de significações simbólicas terminaram por
esboçar os traços de uma cultura feminina sem a qual o sentido social não
existiria”18. Logo, um estudo voltado para as mulheres não significa analisar apenas
15
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto História –
História e Cultura. PUC/SP, n 17, p. 9, 1998.
16
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria Manuela
Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
17
FUNES, Eurípedes A. . Mocambos: natureza, cultura e memória. História Unisinos.Vol. 13. Nº 2 –
mai-agosto de 2009, p. 146-153, p. 149.
18
PRIORE, Mary Del. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos Cesar (org)..
Historiografia Brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p. 221.
18
PRIORE, Mary Del. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos Cesar (org)..
Historiografia Brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p. 221.
uma divisão de papeis sociais, mas permite “[...] maior intimidade e ampliação do
horizonte da história [...]”19.
É válido ressaltar que a presença de narrativas femininas não induz a
ausência de figuras masculinas nas manifestações religiosas, sinal desta presença
são as constantes rememorações de dona Lourdes em relação a seu pai o qual era
referência religiosa onde moravam. Bem como, os homens encontrados nas práticas
devocionais atualmente que mesmo em pouca quantidade são co-participantes nos
momentos de religiosidade. Talvez devido às mulheres terem tido mais
oportunidades em (re)criar as suas práticas devocionais quando comparado ao
gênero oposto, é que tenha sido proporcionado às mesmas pelo modelo familiar
vigente até meados do século XX o qual indicava que competia ao homem trabalhar
e à mulher ficar em casa cuidando de seu lar e da educação dos filhos. Além da
viuvez e da eterna solteirice.
Outra característica comum entre as narradoras é o fato de a maioria ser
aposentada e ter entre 70 e 80 anos de idade. Por já estarem afastadas de seus
afazeres mais obrigatórios do cotidiano, exercitam com mais freqüência a memória e
“[...] se dá mais habitualmente à refacção do seu passado.”20, desenhando a sua
memória atual em um cenário mais “definido”21 quando comparado as pessoas mais
jovens.
Lucília Neves, ao estudar os desafios da memória e da história oral,
assinala o problema
[...] da relação entre os múltiplos tempos, realidades, pois em uma
entrevista ou depoimento fala o jovem do passado, pela voz do
adulto, ou do ancião do tempo presente. Adulto que traz em si
memórias de suas experiências e também memórias a ele
repassadas, mas filtradas por ele mesmo, ao disseminá-las. Fala-se
em um tempo sobre um outro tempo. Enfim, registram-se
sentimentos, testemunhos, visões, interpretações, em uma narrativa
encontrada pelas emoções do ontem, renovadas ou avaliadas pelas
emoções do hoje. 22
19
SOIHET, Rachel. História das mulheres. In: VAINFAS, Ronaldo. CARDOSO, Ciro Flamarion (orgs).
Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 296.
20
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3ª Ed. São Paulo: Companhia das
Letras.1994, p. 63.
21
Idem, p. 60. Bosi ressalta que as lembranças de velhos são mais “definidos”, pois refletem a
possível dimensão psicossocial da memória por já não estarem tão consumidos pelos reveses do
cotidiano e por já vivenciaram vários tempos, espaços e sociedades.
22
NEVES, Lucília. Os desafios da história oral – ensaios metodológicos. In: PINHEIRO, Áurea da
Paz; NASCIMENTO, Francisco Alcides do (orgs). Cidade: história e memória. Teresina: EDUFPI,
2004. p. 276-277.
A historiadora reforça ainda, que essas fontes “[...] não são a história em
si, mas um dos possíveis registros sobre o que passou e sobre o que ficou como
herança ou como memória”23. Nessa perspectiva, percebe-se na fala das
entrevistadas as esperanças, as dores, os sonhos e as frustrações no momento em
que relembram sentimentos que se mantêm vivos em suas memórias e que mesmo
com o passar do tempo não conseguiram apagar.
Essa opção metodológica tenta inspirar-se na abordagem micro-histórica
preconizada pelos historiadores italianos Carlo Ginzburg24 e Giovanni Levi25, já que
a micro-história fornece vias alternativas – com contornos muito próprios – às
abordagens macro-sociais totalizadoras, permitindo a construção de uma história
social e cultural centrada em ‘escalas’ de análise mais circunscritas e nos “jogos”
que se estabelecem entre elas26. O trabalho de contextualização múltipla praticado
pelos microhistoriadores considera “que cada ator histórico participa de maneira
muito próxima ou distante de processos – e, portanto, se inscreve em contextos – de
dimensões múltiplas e de níveis variáveis do mais local ao mais global”27
Nesse sentido, a presente Dissertação aborda as trajetórias de vida a
partir da religiosidade e suas facetas em três capítulos. No primeiro capítulo, analisase o início da trajetória de vida das interlocutoras, a fase infanto-juvenil em ambiente
ruralizado, as referências pessoais e grupais que fundaram e encandearam as
mesmas na formação religiosa. A partir das lembranças, buscadas na memória,
encontram-se a figura do pai, da mãe e da própria família, sendo esta, então, a raiz
profunda e eterna em suas respectivas memórias das histórias passadas pelos
23
Idem. p. 277.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2. ed São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
25
LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
26
A partir desse ponto de vista historiográfico, enfoques sobre as histórias de indivíduos, vilarejos,
grupos específicos – entre instituições, associações e classes – passaram a ser privilegiados. Mais
que uma diferença em termos de objetos, a micro-história definiu-se por escolhas metodológicas.
Revel (1998 [1996]) enfatiza que a mudança de escalas praticada pelos “micro-historiadores” italianos
produz efeitos de conhecimento considerando que “é o princípio da variação que conta e não a
escolha de uma escala em particular” (p.20). Como no uso de uma lente objetiva, em fotografia, o
enquadramento do objeto focado não se limita à mera ampliação ou redução do mesmo, mas é a
própria maneira de apresentar suas formas. Em outra perspectiva, a arte e as técnicas cartográficas
não consistem apenas em apresentar em diversos tamanhos uma paisagem que se quer fixa e
constante; a escolha da escala e sua explicitação são a chave de criação e de leitura para os
conteúdos desse tipo de representação e de apropriação cognitiva do espaço geográfico (Revel, 1998
[1996]:20). REVEL, Jacques (org.). Jogos de Escala: a experiência da microanálise. Tradução Dora
Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
27
REVEL, op. cit., p. 20.
24
mesmos através da tradição oral, bem como as lembranças dos momentos de
devoção popular em seu lar e grupo social.
O segundo capítulo, por sua vez, discute como as práticas do catolicismo
popular se comportou diante da transumância de seus atores, os quais necessitaram
sair de seu espaço geográfico rural para ir em direção ao urbano por fatores
diversos, com a ressalva de que em meados do século XX as mudanças
residenciais não se realizavam de forma corriqueira ou banal. Para que tal
acontecimento se concretizasse, como percebemos nas narrativas, era preciso
motivos financeiros, sociais e/ou familiares. Neste capítulo, também se destaca a
análise de um ritual característico do catolicismo barroco na residência dona Maria
da Glória28 e nas práticas devocionais das outras interlocutoras. No entanto, faz-se
necessário ressaltar que há uma imbricação de difícil separação entre a
religiosidade popular e a oficial, tamanha é o envolvimento das narradoras em
ambas as dimensões.
No terceiro e último capítulo, analisamos as redes de sociabilidades e
seus contornos elaborados pelo catolicismo popular, sua extensão e intensidade,
bem como as relações de poder incutidas no grupo social delineando as alegrias e
conflitos presentes em qualquer relação grupal. E dentre as interlocutoras, assim
como na pesquisadora, a apreensão em perceber que as tradicionais práticas
devocionais realizadas pelos antepassados das narradoras já não são seguidas à
risca pelas mesmas e estão sendo, cada vez mais, alterada por sua descendência.
Essa constatação é motivada pela escassa freqüência de jovens nessa modalidade
de manifestações religiosas e pelas novas tendências devocionais que surgem
diante da mudança no cenário religioso mundial, em que a tecnologia televisiva e
informacional influencia o cultural, social, econômico e político.
1º CAPÍTULO
28
Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010.
RAÍZES DO CATOLICISMO POPULAR
1.1 - Família rural: fonte de religiosidade popular
A vida no mundo rural, não obstante os sacrifícios e dificuldades que se
apresentam, é sempre lembrada pelos entrevistados por seus bons momentos.
Todas as narradoras, cujas trajetórias de vida e de fé são fonte de pesquisa e
análise neste trabalho, fizeram questão de apresentar a vida no campo e destacar
as suas recordações. No entanto, no decorrer das entrevistas, as narradoras
deixavam “escapar” sinais de sofrimento e dor relacionados ao tempo em que
viveram na roça. Durante as entrevistas, elas permitiram aflorar nas memórias e em
suas narrativas, momentos nostálgicos. É válido ressaltar que as pessoas
entrevistadas, no decorrer da execução dessa pesquisa, têm algo em comum: todas
são advindas da zona rural de Santo Antonio de Jesus e região, logo a rotina de lidar
com a terra lhes é fator em comum, bem como a vivência religiosa, a qual esteve
presente nos lares rurais. Mesmo tendo uma infância no limiar da pobreza, o que
mais desperta saudades nas entrevistadas é o convívio familiar permeado de
ensinamentos e transmissão de costumes através da história oral. Os mesmos são
lentamente diversificados através da reprodução e ressignificação, de geração em
geração, das práticas e normas sociais que se desenvolvem de acordo com as
necessidades do grupo. Deste modo é que se busca analisar as trajetórias de vida
de mulheres negras que transferiram-se do campo para a cidade, entendendo como
se deram as práticas religiosas e de fé neste processo de transumância e após o
estabelecimento na cidade. É como nos afirma Thompsom em que “As práticas e
normas se reproduzem ao longo das gerações na atmosfera lentamente
diversificada dos costumes. As tradições se perpetuam em grande parte mediante a
tradição oral, com seu repertório de anedotas e narrativas exemplares.”29 A esta
passagem de práticas e sabedoria grupal para as seguintes gerações, a família e
29
THOMPSOM, E. P. Introdução: Costume e cultura. In: Costumes em Comum. São Paulo:
Companhia das letras, 1998, p.18.
seus entes mais próximos são os maiores responsáveis com o intuito em prepará-las
para continuar com o legado que lhes é deixado.
Dona Nita,30 mulher negra de família pobre, hoje aposentada, aos 82 anos
de idade, se considera a primeira moradora do atual bairro do Cajueiro, espaço
urbano onde reside a maioria de nossas interlocutoras, no município de Santo
Antonio de Jesus. Trazendo sobre si um lenço branco e um xale feito de crochê azul
claro envolto ao pescoço e braços para se proteger do frio que faz na cidade nesta
época do ano (meses de maio a agosto) cobrindo o vestido estampado também com
tons de azul, dona Nita nos convida para adentrar em sua pequena casa localizada
logo no início da Rua do Cajueiro em meio a tantas outras que foram se instalando
ao seu redor com o passar das décadas.31
É com um vísivel prazer que ela lembra, apesar da idade avançada, pois
a memória só verbaliza o que realmente lhe foi marcante, a sua fase infanto-juvenil.
Levantando os olhos ao teto da casa afirma: “nasci, me criei, me casei e criei meus
fios tudo aqui...nesta casa. Não tá da mesma forma,....”32, mas está no mesmo lugar
há décadas. Além das reformas a que esta casa foi submetida, houve também a
divisão da mesma para atender às necessidades dos filhos que, ao constituírem
famílias, dona Nita passou a ajudar dando-lhes parte do pequeno terreno no qual a
casa está situada. Esta forma de organização familiar e de divisão dos bens é
bastante comum entre as famílias pobres, contexto que pode ser aproximado do
conceito fundado por E.P. Thompson sobre a “economia moral”. Para o autor estas
práticas, que muitas vezes fogem à lógica do mundo capitalista, estão inseridas no
contexto da luta pela sobrevivência do povo.33
Segundo dona Nita, quando ainda era criança, tudo naquele bairro era
uma enorme plantação dividida ao meio: de um lado cana-de-açúcar e do outro, o
fumo, lado este em que estava erguida a sua residência, única casa da plantação na
qual vivia com seus pais e irmãos. Todos os membros da família trabalhavam na
30
Dona Anita Santos de Santana, 82 anos. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010. A área da
casa que a entrevistada menciona era zona rural quando a mesma era criança. Atualmente é
considerada como periferia da cidade.
31
O bairro do Cajueiro, em Santo Antonio de Jesus, se formou ao longo das primeiras décadas do
século XX, sobre uma antiga pastagem. As primeiras famílias que ali se fixaram eram de pessoas que
advindas da zona rural começaram a povoar a, então, periferia urbana. As primeiras casas passaram
a serem erguidas de adobe (muitas ainda conservam a mesma estrutura, apesar da situação
precária, e outras estão abandonadas) sem, no entanto, um planejamento urbano, o que acarretou
uma desorganização dos limites entre as casas e a rua que, ainda hoje, é possível se verificar.
32
Dona Anita Santos de Santana, 82 anos de idade. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010.
33
Ver mais em: THOMPSOM, op. cit.
plantação de fumo, desde o momento de preparação da terra para semear até o
enrolar das folhas de fumo para a confecção de charutos.34 Ela recorda que:
[...] Ficava nós tudo ali na cozinha, enrolando a foia, ou intão na porta
de casa, tudo ali trabaiando, conversando, cantano, rezano...,
quando eu era piquena não fazia muita coisa não, mas gostava muito
da ....dessa reunião em família em volta da mesa da cozinha[...]35.
Como ela nos conta, apesar de não seguir regularmente o curso temporal
de sua trajetória de vida, toda a família trabalhava na produção de um único produto
– o fumo – que era a grande riqueza do Recôncavo Baiano até meados do século
XX36. Se fosse por sua vontade de criança, como reflete em sua narrativa, ela não
gostava de estar somente olhando a mãe, o pai e os irmãos trabalharem. Ela
também gostaria de limpar a terra, colocar as sementes na terra já preparada, cuidar
da plantação, colher o fumo, colocar as folhas para secar e depois enrolá-las
produzindo os charutos para a comercialização37. Mas toda essa sua posição de
testemunha ocular, enquanto criança, não foi em vão. Isto a faz perceber, nos
momentos de produção familiar, peculiaridades que quem estava envolvido
diretamente no trabalho, talvez, não estivesse atento para a importância da união
dos membros familiares nesses momentos de produção que além de garantir a
renda, reforçava valores familiares, tais como: união, solidariedade, obediência aos
pais e aos mais velhos, a importância do trabalho, da família e da religiosidade. E foi
a partir dessa rotina de labor que os pais de dona Nita passaram para os filhos a
crença religiosa, a visão de mundo, as histórias de seus antepassados, enfim,
criavam e educavam a sua prole de acordo com o que lhes era possível e no que
acreditavam.38
Para dona Nita, e para tantas outras pessoas, a cozinha era o lugar da
casa que mais gostava de frequentar, seja pelo ato de comer, de trabalhar, de
conversar, mas também pelo aquecer-se do frio. A partir narrativa, d. Nita aponta
que as famílias que se encontravam no limiar da pobreza, muitas vezes, não
possuíam móveis suficientes em todos os cômodos da casa, assim, era comum que
34
Dona Anita Santos de Santana, 82 anos de idade. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010.
Idem.
36
BARICKMAN,B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo,
1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
37
Dona Anita Santos de Santana, 82 anos de idade. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010.
38
Idem.
35
o local de maior convívio fosse a cozinha onde, o trabalho e o entretenimento
proporcionado pelas conversas acontecia. Através de sua narrativa, percebem-se
os poucos recursos materiais que a casa possuía e, situada à beira de uma
plantação, supõe-se que a mesma deveria ser muito fria no inverno e ainda, por
serem pobres, provavelmente não tinham condições de adquirir roupas apropriadas
suficientes para todos.
As pessoas vão comendo e conversando, conversando e comendo,
dando risadas e por vezes também se lamentando e chorando. A cozinha é o lugar
da casa que é comum a todos que nela chegam, onde todos os membros da família,
vizinhos e compadres/comadres podem estar ao mesmo tempo e fazendo a mesma
coisa: compartilhando, juntos, os momentos que a vida proporciona, sejam eles de
alegria ou de tristeza, de esperança ou de temores. A cozinha, para esta família, era,
portanto, lugar de acolhimento, alimentação, conversação, confraternização e
produção39.
E como dona Nita cresceu observando e posteriormente participando, de
forma ativa, do ofício da produção de fumo, ao se tornar adulta foi trabalhar em um
dos vários armazéns de fumo instalados na cidade de Santo Antonio de Jesus. O
armazém, segundo a mesma, era um grande galpão onde se armazenava a matériaprima para a produção de fumo, trabalho executado pelas mulheres, mas que
também tinha uma área reservada na entrada do estabelecimento para a
comercialização dos charutos, posto esse assumido pelos homens – o dono do
armazém e/ou seus filhos e algum ajudante.40
Ao narrar com mais detalhes o ambiente de trabalho, assim como o
processo de preparação de charutos, é nítida a satisfação em ter participado
ativamente do “ciclo do fumo”. A emoção toma conta de seus olhos e de seu tom de
voz que se torna mais compassado e suave, pois o fumo do Recôncavo Baiano era
conhecido nacional e internacionalmente.41
O orgulho era saber que de suas mãos saía uma das melhores remessas
de charutos para o Brasil e para o mundo, bem como presenciar em seu ambiente
de trabalho a reprodução de seu ambiente familiar: o trabalho coletivo e permeado
de companheirismo, amizades, mas por vezes também de tensões, como em
39
Dona Anita Santos de Santana, 82 anos de idade. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010.
Idem.
41
Idem.
40
qualquer relacionamento de grupo social. A narrativa de dona Nita se apresenta de
forma seletiva, pois evitou relatos de conflitos no ambiente de trabalho o que, de
certa forma é compreensível, visto que alguns fatores podem ter influenciado nesta
seleção, entre eles o fato da narradora ocupar uma posição na igreja na qual se
relaciona com ex-trabalhadores e ex-patrões; outra possibilidade é de que tais
lembranças sendo rememoradas lhes tragam mais dor. Assim, é provável que a
exploração, o desânimo, o cansaço, a queixa contra os patrões e o regime de
trabalho tenha existido, inclusive com a participação direta da entrevistada, pois há
conflitos em todas as relações sociais, principalmente nas relações e ambientes de
trabalho.
Foi neste ambiente de labor que as mulheres, responsáveis em enrolar as
folhas de fumo e produzir os tão cobiçados charutos, dividiam além da produção, os
seus medos, alegrias, problemas domésticos, familiares e conjugais, firmando assim
uma teia de relações por estarem todas submetidas a situações parecidas
cotidianamente42.
No entanto, no decorrer da entrevista, o semblante de dona Nita
entristece ao relatar que foi obrigada a deixar o trabalho por um problema de saúde.
Em plena idade ativa, dona Nita precisou se afastar da produção fumageira e a sua
rotina foi totalmente modificada. Passou a cuidar, integralmente, da casa, dos filhos,
do marido e da mãe, sua grande companheira de vida, que já se encontrava
bastante idosa. Mas, o pior desse momento em sua trajetória de vida foi a
diminuição de sua renda o que passou a dificultar o sustento da família que
dependia, também, do seu trabalho para sobreviver. O marido, segundo ela, vivia de
“biscates”, ora tinha serviço, ora não tinha. E, coincidência, ou não, esse
afastamento aconteceu simultaneamente com a decadência da produção de fumo
na
cidade
e
região,
causando
impacto
econômico
nos
armazéns
e,
consequentemente, nas plantações, gerando desemprego em massa e agruras há
muitas famílias durante a década de 1960. Desse mal, a família de dona Nita não foi
excluída, pois sentiu as dificuldades econômicas e sociais que essa crise
proporcionou, já que não era somente ela que trabalhava com o fumo, mas, irmãos,
tios, primos. Mas, juntos também superaram essas dificuldades trabalhando em
serviços que iam aparecendo.43
42
43
Dona Anita Santos de Santana, 82 anos de idade. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010.
Idem.
Enquanto dona Nita nos relata uma experiência familiar com o fumo, dona
Maria de Lurdes, falecida em janeiro de 2011, aos 76 anos de idade, nos relatou
uma infância marcada, principalmente, pela figura do pai, o senhor Elias.
Caracterizada pela sua paciência, solidariedade e com tom de voz bem baixo,
devido à saúde já um pouco debilitada, dona Lourdes, como era popularmente
chamada, sempre nos recebeu em sua residência de forma bastante acolhedora.
Nascida e crescida em uma zona rural de Santo Antonio de Jesus, no lugar
denominado de Boa Vista, afirma que a figura paterna em sua trajetória de vida foi
de essencial importância:
É uma grande firmeza que encontrei nele, firmeza mesmo, de vera.
Através de meu pai eu comecei a sentir a vontade de caminhar pra
igreja... Nós morava na roça, então aí a gente rezava era a ladainha
de São Cosme, de Santo Antonio, Nossa Senhora da Conceição, às
vezes São Benedito, o pessoal, ... se sabe que antigamente tinha
aquela devoção segura, né? Aí, chamava... a gente acompanhava
papai e aí... eu aprendi.44
Filha de pais agricultores cresceu em uma vida com poucos recursos,
juntamente com mais três irmãos, ajudando nas tarefas domésticas, de roça e na
feira, vendendo os alimentos que plantavam em seu pequeno quintal. Com o pai,
dona Lourdes aprendeu a lidar com a terra, assim como a realizar as rezas. Esses
momentos religiosos se realizavam nas casas de amigos e vizinhos, que por sinal
eram bem distantes uma das outras, mediante convite. Toda a comunidade local era
convocada a participar, assim como o rezador(a)45. Na comunidade da Boa Vista,
cerca de setenta anos atrás, o principal puxador de reza era o Sr. Elias, o pai de d.
Lourdes. É de intrigar. Porque não uma mulher, já que a figura feminina era
preponderante nas lideranças religiosas em detrimento da masculina? Isso não quer
dizer que o homem não tinha fé ou não praticasse alguma forma de manifestação
religiosa, mas as tarefas masculinas e femininas eram padronizadas na sociedade: o
homem cuidava do sustento da casa e a mulher dos afazeres domésticos, da
educação dos filhos e da manutenção da religiosidade no seio familiar.
No entanto, a família de dona Lourdes não está inserida nestes padrões
familiares que, como podemos perceber, não são tão estáticos. O Sr. Elias era quem
44
Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009.
Rezador é o nome dado pelo próprio grupo social aquele(a) que lidera as ladainhas, os hinos e
ofícios durante a reza popular.
45
liderava, em sua comunidade e em seu lar, os momentos de devoção popular e fazia
questão de ensinar aos filhos os diversos tipos de rezas e a importância de cada
uma delas no calendário camponês. Ele era o “puxador” das rezas, papel este
realizado comumente pela figura feminina. Mas, em sua família a mãe não tinha
esse interesse religioso e só acompanhava o marido e os filhos quando havia a
disposição para caminhar léguas nas estradas e ladeiras de terra da zona rural.
Segundo dona Lourdes, sua mãe não era tão participativa nas rezas, como lembra:
[...] Não, ela morava ... quer dizer ela não saía. Se fosse por perto
ela ia, mas mais era papai que ia. Agora, a gente aprendeu muito na
quaresma, papai sentava com a gente dentro de casa pra ensinar a
rezar, e quando assim dia de sábado, também sexta feira a gente
fazia nas casas que pedia, a gente ia [...]46
Pela narrativa acima, a mãe de dona Lourdes aparentava ser uma pessoa
muito fadigada ou até mesmo doente; caso contrário, agia por conveniência – só
acompanhava a família nas devoções populares quando lhe conviesse. Talvez por
isso, pela figura materna se mostrar tão distante da rotina religiosa familiar, é que
dona Lourdes tenha substituído a figura materna pela paterna em seu referencial
religioso.
Dona Milú, por sua vez, se orgulha da mãe Clementina por sua habilidade
nas rezas, principalmente em romarias:
[...] Minha mãe rezava muito bem, minha mãe não precisava de livro
pra rezar, minha mãe rezava ofício de cor, ladainha... tudo de cor...
tinha livros porque ela comprava, ela viajava assim ela trazia aqueles
livros...mas, hinos ela rezava daqui na Lapa, daqui em Candeias,
daqui em Brotas, o hino sabia todo de cor[...]47
Enquanto morava na roça, por não ser tão presente a figura sacerdotal
nas atividades religiosas, e enquanto a comunidade ainda não tinha o seu templo,
dona Lourdes conta que as famílias se reuniam em suas próprias residências para
suprir esta necessidade de estar em contato com o sagrado, com seus santos e
46
47
Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009.
Dona Armelina S. Oliveira, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
realizar as suas orações.48 Então, rezavam em ambientes domésticos em
homenagem a vários santos como: São Cosme e São Damião, Santo Antonio,
Nossa Senhora da Conceição, São Benedito, São Jorge entre outras devoções. Dos
filhos do Sr. Elias, somente dona Lourdes incorporou esse legado de “puxadora” 49 de
reza até o fim de seus dias em vida.
Falci nos informa que:
[...] Dentre os inúmeros santos curadores, destacamos pela sua
grande permanência entre os cristãos e duração, na cultura popular,
no Brasil, S. Cosme e S. Damião e S. Roque.[...] E além de terem
especificidade na cura das doenças também tem especificidade nos
lares. Cada família, ou cada cidade ou cada grupo mantém o hábito
de cultuar um determinado santo para uma determinada doença. E a
devoção atravessa gerações [...]50
O “puxador” de reza, segundo as lembranças de dona Lourdes, era uma
espécie de líder espiritual da comunidade. Sua função era reunir as pessoas para os
cultos devocionais, muitas vezes organizado pelo próprio “puxador” seja em sua
casa, seja na casa de alguém que se dispunha a receber a reza, ministrando
cânticos e orações Muitas pessoas possuíam devoções que as “obrigavam” a
realizar anualmente determinada reza. Ao “puxador” cabia motivar a participação
das pessoas e conduzir as orações, muitas das quais utilizando termos e cantos
próximos do Latim51. Isso se deve a uma tradição herdada desde os tempos
coloniais quando as orações católicas, inclusive a missa, eram feitas em Latim.
Por conta das funções religiosas atribuídas ao líder espiritual - inclusive
aos “puxadores e puxadoras” de rezas -, estes muitas vezes, eram responsáveis em
batizar crianças à beira da morte e ministrar a extrema-unção para os adultos em
perigo de vida, substituindo os padres, por muitos deles fazerem visitas à estas
localidades de forma esporádica. Assim, homens e mulheres eram, na comunidade,
48
Ainda hoje, mesmo existindo as igrejas próximas, seja na zona rural, seja na periferia da zona
urbana, as pessoas ainda se reúnem em residências para cultuar seus santos. Sobre isso
discutiremos melhor no II Capítulo desta dissertação.
49
Puxador(a) de reza é aqui citado pela fonte oral com a função semelhante a do rezador(a).
50
FALCI, Miridan Brito Knox. Doença e Religiosidade. In: LIMA, Lana Lage da Gama et al (orgs).
História e religião. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2002, p.138.
51
Sendo o Latim, até os dias atuais, a língua oficial da Igreja Católica, após as reformas implantadas
pela Igreja no Concílio Vaticano II as missas e demais atos públicos passaram a ser realizadas em
língua local, porém, em muitos lugares do interior do Brasil, se conservou a prática, em especial entre
o povo mais simples, de rezar em Latim, como se fosse uma oração mais “original”, “pura”.
pessoas com certo prestígio social, pois a elas, pobres ou ricos recorriam nos
momentos que necessitavam de rezas.
Segundo a tradição oral, ao contrário da religião praticada pela Igreja
Católica, que atribuía ao padre o papel de líder religioso, destinado a
enfrentar as preocupações espirituais dos fiéis cristãos, a religião
praticada no campo era dirigida por homens e mulheres leigos, sem
o estudo das disciplinas religiosas do catolicismo oficial. Eram, desse
modo, os rezadores e rezadeiras que assumiam a liderança das
práticas e rituais no catolicismo devocional, “puxando” as ladainhas
aos santos do gosto popular, organizando procissões e
peregrinações, conduzindo as novenas, trezenas, terços e ofícios.
Era na presença desses e seguindo-lhes que os moradores dos
tantos lugares espalhados pelo Recôncavo, desfiavam seus rosários,
pagavam suas promessas, alimentavam suas almas pouco assistidas
pela Igreja.52
Uma boa parte deles, também, por conta das funções religiosas, acabava
se aproximando dos poderes oficiais – Igreja e Estado. Padres viam em muitos
destes homens e mulheres pessoas de confiança para conduzir a comunidade,
organizar as missas e, onde já tivesse capela, cuidar dos templos. Já os políticos e
governantes, devido ao grau de popularidade e prestígio dentro e fora da
comunidade, buscavam cooptá-los para suas hostes. Não raro, muitos líderes
comunitários e religiosos se tornaram cabos eleitorais valiosos.
Assim como dona Lourdes, dona Maria da Glória, atualmente com 78
anos de idade, também aprendeu a realizar as rezas a partir de sua vivência familiar.
Segundo ela, para cada mês tem as suas respectivas rezas: em março, Nossa
Senhora do Mont Serrat; maio, Mãe Rainha; junho, Santo Antonio, São João e São
Pedro; em agosto, São Roque e Bom Jesus; em outubro, Nossa Senhora Aparecida
e São Crispim, em homenagem à sua mãe: “[...] aqui, no dia 25 de outubro é o que
eu vou rezar... que ela teve gêmeos...duas barriga de gêmeo[...]”53; dezembro, Santa
Bárbara, São Cosme e São Damião e Santa Luzia. Segundo a mesma, tudo isso foi
passado de geração em geração: “Já vem dos meus avôs, como Santo Antonio, São
52
JESUS, Elivaldo Souza de. “Gente de promessa, de reza e de romaria”: Experiências devocionais
na ruralidade do Recôncavo Sul da Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado: Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2006, p. 22.
53
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009, se referindo a
intenção da reza em memória de sua mãe.
João Batista, Santa Bárbara, São Cosme e São Damião, O Divino Espírito Santo,
Nossa Senhora das Candeias, já é devoção dos meus avôs e de minha mãe.”
54
Esse encadeamento de rezas advém, como a mesma nos informa, de
seus antecessores os quais moravam na zona rural de Santo Antonio de Jesus e
região e se utilizavam das festas religiosas como um marcador de tempo, faziam,
então, essa proeza de acordo com o meio ambiente em que viviam, ou seja, com as
plantações, as colheitas, a chuva; como também as festas: nascimentos,
falecimentos, casamentos, em quase tudo a base para a contagem do tempo eram
as festas religiosas e suas respectivas rezas.55 Charles Santana nos afirma que “A
religiosidade, fenômenos da natureza e elementos das atividades participavam,
prioritariamente, na construção do tempo camponês. [...] como colheita de café, de
flores ou a altura em centímetros das mudas de fumo quando prontas para o
transplante [...]”.56
Sousa Júnior57, inspirado por Honaert, nos instrui sobre essa miscelânea
de práticas religiosas, a qual caracterizou o refúgio da península ibérica. Portugal,
por estar localizado estrategicamente sobre o mar, sofreu invasões de vários tipos
de povos levando consigo o seu modo de viver e suas crenças. O “português do
descobrimento” do Brasil, segundo o autor, já é fruto, portanto, desse contato entre
as culturas de povos que se refugiou na Península Ibérica. Ao serem transportados
para o Brasil, os portugueses encontraram, no Novo Mundo 58, hábitos de vida que
não seguiam a conduta moral e religiosa conhecida e aprovada pelos mesmos. 59 Por
isso, o país era considerado pelos mesmos como inferno, inicialmente pelos hábitos
indígenas e posteriormente pelos dos escravos. E a religiosidade da colônia por
estar tão distante de sua oficial igreja católica matriz possibilitou a instauração de
54
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009, se referindo a
intenção da reza em memória de sua mãe.
55
Idem.
56
SANTANA, Charles D’Ameida. Farturas e Venturas Camponesas: Trabalho, cotidiano e migrações:
Bahia 1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998.
57
JÚNIOR, Vilson Caetano de Sousa. Orixás, Santos e Festas: Encontros e desencontros do
sincretismo afro-católico na cidade de Salvador. Salvador-BA: Ed UNEB, 2003.
58
Denominação dada por Mintz e Price ao analisar a chegada e o estabelecimento de povos
africanos no novo e misterioso continente americano. Para conhecer melhor este Novo Mundo ver:
MINTZ e PRICE, op. cit.
59
Para conhecer mais sobre esse tema ver: SOUSA, Laura de Melo e. Inferno Atlântico: demonologia
e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; VAINFAS, Ronaldo.
Trópico dos Pecados: Moral Sexualidade e Inquisição no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Campus,
1989.
variedades de cultos, marcados pela devoção “[...] com santos resolviam tudo,
desde problemas de procriação a questões financeiras[...]”60.
Fato este que dona Conceição “Madeira”, senhora aposentada e devota
de Santo Antonio, conhece bem:
Ele fez uma graça muito grande para mim. Tava pra ter um filho e
chamava, “ai meu Santo Antonio”, aí passei mal, desmaiava todo dia,
todo dia desmaiava, “ai meu santo Antonio”. Meu Santo Antonio se
você me ajudar que a criança nasça em paz eu não vou perder uma
festa e vai se chamar Antonio e o meu santo que eu tenho em casa
vou dar pra ele ter como seu padroeiro em casa. Eu tive uma
gravidez complicadíssima, tive uma queda, mas graças a Deus e a
Santo Antonio, ele foi nosso intercessor e ele nasceu perfeito.61
O poder do santo, segundo dona “Madeira”, pode ser comprovado pelas
graças que este santo lhe proporcionou, sendo o nascimento de seu filho a mais
marcante. Hoje com saúde debilitada por uma deficiência na perna esquerda sendo
amparada por uma muleta, não aguenta caminhar por trajetos longos. Seu cabelo
sempre tingido, solto ou amarrado em coque, seu jeito atencioso, dona “Madeira”
como é mais comumente chamada, relata este fato da sua trajetória de vida com
tanta “veracidade” que nos faz sentir participantes da cena. Através de seus olhos
arregalados, sua voz ofegante e toda a sua performance corporal, gesticulando com
os braços, tenta transmitir o que viveu naquele determinado momento de sua
gestação e nascimento do filho. Nossa narradora conta, então, que homenageou o
santo registrando o filho com o nome de Antônio, bem como se comprometeu com o
seu agraciador em participar de todas as trezenas62 e doou a imagem do santo que
tinha em casa para o seu filho, quando este fundou a sua família, como forma de
mostrar e provar ao mesmo quão “poderoso é este santo”.63
É a partir de fatos como esses que Steil64 afirma que são nos momentos
mais difíceis da vida que o homem religioso faz seus pedidos aos santos,
prometendo-lhe algum sacrifício em troca. E continua, “[...] Estabelece-se dessa
60
SOUSA JÚNIOR, op. cit., p. 80.
Dona Maria da Conceição “Madeira”, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 02 de junho de
2010.
62
São as treze noites de reza em homenagem a santo Antonio, sendo o seu dia festivo dia 13 de
junho.
63
Dona Maria da Conceição “Madeira”, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 02 de junho de
2010.
64
STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e Cultura. In: VALLA, Victor Vicent (org.). Religião e Cultura
popular. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.
61
forma, um sistema de troca de bens simbólicos, entre vivos e mortos, geralmente
narrados como milagres, envolvendo os fiéis e os santos, numa mesma comunidade
lingüística e de sentidos.” 65. Essa relação devocional66 entre o fiel e o santo pode ser
observada na foto abaixo em que os fiéis ajoelham-se diante da imagem do santo
para realizar vários pedidos, orações, promessas, e existem aqueles que colocam
cartas e mensagens atrás da imagem, pois acreditam que somente a verbalização
da prece não funcionará, assim como oferendas financeiras com o intuito de querer
“comprar” o santo, fazendo o pagamento da graça mesmo antes de sua realização.
Observe a foto a seguir:
Foto 02: Altar da Igreja Matriz de Santo Antônio
Fonte: Foto de Melina de O. Bittencourt, em 12 de junho de 2006
A Foto 02, aponta para uma diversidade de práticas devocionais que
resistem ao tempo e são expressas publicamente por seus fiéis através do culto
particular e/ou coletivo realizado tanto no templo religioso oficial da igreja e/ou em
suas respectivas residências. Nesse instante de manifestação devocional realizado
65
Idem. p. 22.
Ibidem. Para saber mais sobre sacrifícios religiosos, ver também, ROSENDAHL, Zeny. Espaço,
Cultura e Religião: Dimensões de Análise. In: ROSENDAHL, Zeny e CORRÊA, Roberto Lobato (org).
Introdução à geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
66
após a missa – celebração oficial da igreja católica – o devoto busca um contato
ainda mais próximo com seu santo padroeiro em preces e orações por vezes
silenciosas e recolhidas, outras de forma mais expansiva. É relevante observar que,
para estas fiéis apenas o rito missal não foi suficiente para expressar a sua devoção,
as suas necessidades, sejam pedidos ou agradecimentos. Ajoelhadas diante da
imagem do santo padroeiro da cidade, essas fiéis que participaram da missa
desejam também um momento de “conversa” com o santo, sem a intermediação de
ninguém, que no caso da missa esse papel de interlocutor é feito pelo padre. Esses
momentos de devoção popular, segundo Steil,
[...] São, na verdade, o lugar onde o invisível se torna acessível e
palpável. [...] Através das imagens se estabelece uma comunicação
entre vivo e mortos. Fundado no dogma da comunhão dos santos,
esse modelo de catolicismo cria uma cosmologia em que as
fronteiras entre a vida e a morte são continuamente ultrapassadas
sem necessariamente a mediação de agentes especializados. As
relações entre os santos e os fiéis são pessoais e baseadas no
princípio da proteção e lealdade. Cada fiel tem seu santo protetor, ou
seu padrinho celestial, que em contrapartida lhe pede lealdade. 67
A escolha do santo preferido é feita pelo fiel, ou seja, o indivíduo
determina qual é o seu santo protetor e agraciador de seus pedidos de acordo com
os critérios existentes em cada época e em cada sociedade. A devoção a santo
Antônio, por exemplo, é em grande parte devido ao surgimento nesta cidade de um
oratório dedicado ao santo português erguido pelo padre Mateus, considerado o
fundador da Vila. Por ser o santo fundador e, por isso, padroeiro da atual cidade que
leva o seu nome, foi se tornando alvo de devoção por todos os que aqui passavam e
os que, posterior e vagarosamente por aqui foram fixando as suas residências e
comércio. É conhecido, popularmente como santo casamenteiro, mas também
adquiriu o título de santo que acha todas as coisas perdidas desde um alfinete a um
escravo68. Por conta disto se tornou padroeiro do exército e recebeu as mais
variadas e importantes patentes militares.69
67
STEIL, op. cit., p. 21-22.
Parafraseando Mott (1996), é válido ressaltar que o apelo ao santo pelas coisas perdidas somente
iniciou dois séculos após sua morte, e a partir de 1600, este santo escalou todos os postos da
hierarquia militar, “tornando-se o principal santo guerreiro da cristandade e recuperador de escravos
prófugos no Brasil”, pois foi nesse século que os negros aquilombados nos palmares causaram as
maiores inquietações aos donos do poder. Santo Antonio é, então, associado à segurança e
tranqüilidade desde o século XVII e a partir de 1612, passou a assumir o posto de “capitão do mato”
68
Padre Antônio Vieira, conterrâneo de santo Antônio, foi, provavelmente,
quem mais pregou e publicou sermões sobre este santo. Através de seus sermões,
Vieira intitula santo Antônio como santo universal, onipresente e atendedor de toda e
qualquer tipo de prece.
Se vos adoece um filho, santo Antônio[...] Se vos foge o escravo,
santo Antônio[...]Se requereis um despacho, santo Antônio[...]Se
aguardais a sentença,santo Antônio[...]Se perdeis a menor miudeza
de vossa casa, santo Antonio[...] e talvez se quereis os bens alheios,
santo Antônio[...].70
Vale ressaltar que as orações creditadas a este padre, não são
reconhecidas pela igreja – através da ausência destas nos rituais oficiais - assim
como algumas outras práticas devocionais - as fitas de Bom Jesus da Lapa e
Senhor do Bomfim – as quais são manifestações que sobrevivem, essencialmente,
por conta da devoção popular, pois a religião foi abastecida por esses elementos ao
longo do tempo, mesmo não sendo aceitos explicitamente pela Igreja. Isso se dá
porque a Igreja necessita dos devotos para assim também continuar com o exercício
de seu poder.
Nascida na localidade do Bonfim, zona rural de Santo Antonio de Jesus,
dona Glória também recorre, sempre que necessário, a Santo Antonio. Até chegar à
sua atual moradia ela conta que residiu em várias localidades da cidade, já que a
sua família não tinha casa própria, percorrendo a região desde a fase infanto-juvenil
e alcançando a idade adulta buscando, provavelmente, na transumância “[...] a
maleabilidade necessária para escapar da penúria e da fome, da violência que
entrelaçava ao mandonismo local e aos recrutamentos forçados [...]” 71. Sua família,
desfavorecida financeiramente, se restringia à sua mãe, uma tia materna e irmãos,
pois não conheceu o pai. Mas, o nome de seus antecedentes ela conhece e faz
questão de destacá-los em vários momentos da entrevista, talvez como uma forma
de demonstrar uma constituição familiar sólida. Apesar da idade, ela lembra com
ou “capitão do campo”. No entanto, foi a partir do século seguinte que esse novo título ganhou
impulso, conquistando a fé não só dos cristãos, como também de ciganos, feiticeiros e dos negros,
cada um com sua reza. Ver mais em MOTT, Luis. Santo Antonio, O Divino Capitão do Mato. In: REIS,
João José; GOMES, Flávio dos Santos (org). Liberdade por um Fio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
69
Idem.
70
Para conhecer mais sobre estes sermões ver mais em: MOTT, op. cit., p.114-115.
71
NOVAIS, Fernando A. (coordenador geral da coleção). SEVCENKO, Nicolau (organizador do
volume). História da vida privada no Brasil.Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 59.
facilidade de todos os consanguíneos mais próximos - um exercício de memória
realizado constantemente. Segundo a mesma, justamente para não esquecer a sua
história genealógica, o nome de seu avô paterno era Vitulino [Vitorino] Cardoso,
materno era Manoel José -“era homem de engenho” -, que apesar de não ter
conhecido esse avô lembra-se de momentos em que sua mãe contava histórias
sobre ele - o Mané José72.
Seu pai era Manuel Teodoro dos Santos e sua mãe Maria Germana dos
Santos, e continua com sua voz itinerante e de forma precisa a valorizar os
membros familiares: “[...]minhas tia (materna) Maria Lucilia dos Santos e Maria
Santiago dos Santos, morreu todas três aqui (a mãe e as duas tias) foi nesta casa. E
a minha avó materna era Maria Florinda de Jesus” (grifo nosso). Esta casa refere-se
a sua atual residência, na Rua do Cajueiro, periferia de Santo Antonio de Jesus.
mesma rua em que se localiza a residência de dona Nita e dona Lourdes, nossas
outras duas personagens.
Por não ter convivido com o pai, a família de dona Glória se destaca pela
liderança doméstica da mãe e tias e, posteriormente, da geração feminina seguinte.
É notório também em sua memória o registro apenas do nome do pai e avô paterno,
não detalhando a árvore genealógica paterna, que pode ser justificada pela não
convivência com o pai e seus consanguíneos. O que se destaca no desenrolar de
sua fala é a importância da figura materna ao descrever a origem de sua família.
Segundo dona Glória, sua mãe contava, de vez em quando, histórias sobre o seu
avô Mané José, como era popularmente conhecido o “homem de engenho” 73, como
a que se segue:
Sim, falava dele que ele trabalhava,... que antigamente os negros
não tinha autorização que hoje tá tendo não! Bebeu, o pau comia
(gargalhadas), castigo (mais gargalhadas). E a esposa dele, minha
vó, mamãe não contava muita... que ela era, minha vó era, minha
bisavó ela era calada, ela num falava por isso que num tem história
dela. Mas meu avô tinha história ... de que ele trabalhava.74(grifo
nosso)
72
Mané José é um encurtamento no ato da fala da narradora a se referir ao nome Manuel José, avô
materno de dona Glória, o qual também era assim conhecido no ambiente de trabalho – engenho – e
que foi perpetuado até a geração da mesma através da tradição oral.
73
Como era popularmente chamado o avô materno de dona GlórIa e que permanece até os dias
atuais em sua memória.
74
Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010.
O “homem de engenho” é facilmente lembrado pela neta através da
tradição oral, ao contrário da ausência de narrativa sobre a avó, a qual só é
caracterizada pela mesma como uma mulher calada75, logo não participa ativamente
de sua memória. Ou seja, é possível que a tradição oral passada ao longo desta
geração não destacou o papel da avó em detrimento da supervalorização do Mané
José como “homem de engenho”.
As histórias pertencentes ao contexto escravo, em que a geração de dona
Glória não viveu, contadas por suas antecessoras provavelmente inebriou os seus
sentidos com os casos de heroísmo e sacrifícios, sendo os escravos personagens
ativos e construtores da sociedade e, por realizarem grandes feitos, são referencial
principalmente entre os seus. As gargalhadas, presentes nesta narrativa, podem
denotar várias interpretações. Pode retratar algo realmente engraçado, mas como se
fala dos maus tratos aos negros, é possível que não seja esta a causa; pode,
também, se referir ao orgulho em ser descendente de escravo; ou, até mesmo,
como em uma atitude dissimulada, demonstrar a rápida angústia por imaginar o que
seu avô passou nas mãos de seus senhores, disfarçando um sentimento em ser
bisneta de um escravo que, pela sua fala, era atrevido e, por isso, deve ter
apanhado muito.76 Provavelmente, dona Glória relembrou este episódio familiar
motivada pelo desejo de deixar registrada em sua trajetória de vida fatos importantes
para se afirmar historicamente e se diferenciar de outras trajetórias de vida.
A mãe de dona Glória, por sua vez, que criava os filhos sem a ajuda do
pai, era, segundo a mesma, multifuncional: trabalhava na roça com plantações,
fazia panela de barro, bolo, lavava e passava roupa do colégio das freiras 77 –
Colégio Santo Antonio -, e tantas outras coisas mais, pois segundo a mesma, era
[...] pra nos criar e botar num caminho pra não proceder mal...foram
...oi três, não peraí...eu fui a primeira, ...Ana Maria, Mané Mariano,
75
Característica passada para d. Glória por seus antecessores através da tradição oral.
Importante ressaltar que, mesmo sendo este tempo narrado pela entrevistada, muito aquém do
“tempo da roça” percebe-se que a vida dela foi influenciada diretamente pelas narrativas que ela
afirma ter ouvido de seus pais durante a infância. Assim o “tempo da roça” foi marcado pelas histórias
que ora é recontada pela entrevistada.
77
O Colégio Santo Antonio era popularmente identificado como colégio/internato das freiras por ser
direcionado e lecionado pelas mesmas. Atualmente, essa instituição faz parceria com uma rede de
ensino conhecida nacionalmente pelo seu bom desempenho na aprendizagem do alunado, bem
como a direção e alguns cargos administrativos e de apoio são ocupados pelas freiras da ordem
Mercedária enquanto o quadro magisterial e pedagógico é ocupado por profissionais das respectivas
áreas, não sendo partícipes da ordem.
76
Maria Jose e Zé Mané. Foi dois homens e três mulheres. Ela tinha 2
a 2 (intervalo de 2 anos de uma gestação para outra).78 (grifo nosso)
Percebe-se pelo relato de dona Glória que dona Germana, sua mãe, não
se dava por satisfeita com sua situação econômica e social, procurando meios de
melhorar a renda familiar e conseguir criar seus filhos. Como não possuía terra para
trabalhar e nem um emprego fixo, aceitava qualquer trabalho que lhe rendesse
algum dinheiro. Ao todo foram cinco filhos, sendo três mulheres e dois homens e
todos tem em comum o nome Maria, entre as mulheres, para continuar com a
tradição do nome Maria na família, e Manoel entre os homens em homenagem a seu
avô. Segundo o modelo de normatização familiar presente no início do século XX
como forma de controlar as ações sociais, aos pais, segundo Azzi,
[...] competia ‘criar’ os filhos, o que significava não apenas dar-lhes a
vida mediante a geração, mas também zelar para que essa vida
desabrochasse e se desenvolvesse, oferecendo-lhes um lar, onde
tivessem o agasalho, o alimento necessário, para que pudessem
crescer saudáveis[...].79
E Hildegardes Viana em suas memórias, apesar de possuir um olhar de
cima, a partir da elite soteropolitana, tem pensamentos semelhantes aos das nossas
narradoras quanto à valorização da educação familiar. Ela afirma ainda que uma boa
educação era imprescindível a todos os indivíduos, independente de sua faixa etária
e classe social, pois as famílias “[...] Avaliavam pessoas de acordo com o
temperamento de cada uma. Estabeleciam uma espécie de classificação em que,
além da indispensável educação doméstica e boa moral, a maneira de ser contava
muito.” 80 Mas, as condutas descritas acima não eram seguidas à risca por todos o
indivíduos, até mesmo porque existiam outras vertentes de valores familiares. As
condutas apresentadas são representações da vivência familiar das entrevistadas
presentes nesta Dissertação.
Segundo dona Glória, aos quatro anos de idade seu pai faleceu, foi
quando sua mãe passou a ser responsável pelos cinco filhos, sendo que, ainda na
78
Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010.
AZZI, Riolando. Presença da igreja na sociedade brasileira e formação das dioceses no período
republicano. In:SOUZA, Rogério Luiz. OTTO, Clarícia (orgs). Faces do Catolicismo. Florianopólis:
Insular, 2008, p. 24.
80
VIANNA, Hildegardes. Antigamente era assim. Rio de Janeiro: Record; Salvador, BA: Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1994, p. 22.
79
infância, três deles faleceram ficando apenas ela e sua irmã Ana Maria. A
mortalidade infantil, que sempre esteve presente em muitos lares brasileiros,
principalmente naqueles mais pobres onde não havia uma alimentação adequada
com escassez de substâncias essenciais para a sobrevivência e fortalecer o sistema
imunológico, bem como não possuíam uma infra-estrutura adequada à condição de
moradia, provavelmente atingiu a família de dona Glória.81 Episódios como esses
aconteciam e ainda acontecem em famílias pobres as quais não tinham acesso fácil
ao atendimento médico e quando as crianças eram acometidas por algum mal
fisiológico não resistiam e faleciam82. Aparentemente, esse fato na vida de dona
Glória não interferiu em seu emocional, é o que ela teima em demonstrar. Porém, ao
lembrar-se dos nomes de seus irmãos que faleceram, quando ainda eram crianças
reflete, através de seu semblante abatido, as dificuldades que essa família viveu e
como fez para superar esta dor. Talvez, uma forma de tentar superar a dor tenha
sido o esquecimento. Este é um artifício utilizado pela memória83 para fazer com que
as experiências ruins não transformem o presente cotidiano em dores, sofrimentos e
angústias.84
Um parêntese. Estas vivências de dona Glória, marcadas principalmente
pelas suas condições de vida situadas nos limites da pobreza, foram, em parte,
responsáveis pela inserção de nossa entrevistada no mundo religioso. Esta temática
será melhor discutida no próximo capítulo.
Dona Maria da Glória, para ajudar a mãe e sua irmã, acompanhava-as
nos serviços, realizando trabalhos em casas de família, como domésticas. Destacase aqui, mais uma vez as condições sociais da entrevistada, e sua família, e os
meios de sobrevivência encontrados por eles para garantir o sustento. De forma
preponderante esse, também, foi o destino de outras mulheres nas primeiras
décadas do século XX. O trabalho doméstico, a exploração desta mão-de-obra
negra e pobre, foi o encaminhamento dado por uma sociedade que trazia resquícios
de um longo e recém-concluído período de escravidão85.
81
PRIORI, Mary Del. História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto 1999.
Para melhor conhecer a saúde no Brasil nos séculos XIX e XX ver: CHALLOUB, Sidney et al(org.).
Arte e Ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
2003.
83
Para saber mais consultar: LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5 edição. Campinas-SP: Ed.
Unicamp, 2003.
84
POLLACK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2,
n. 3, 1989.
85
FRAGA FILHO, op. cit..
82
Uma forma da entrevistada querer driblar esta realidade é, em vários
momentos da entrevista, afirmar os laços de “amizade” entre ela e sua mãe e as
famílias para as quais trabalhou e que, segundo ela, se perpetuam até os dias
atuais86. Deste tempo, dona Glória traz algumas permanências como o fato de,
quando pela primeira vez, deixou de trabalhar em casas de família passou a integrar
o quadro de funcionários públicos do município de Santo Antônio de Jesus, com a
função do que se denomina hoje de Auxiliar de Serviços Gerais (ASG), responsável
pela limpeza e arrumação do ambiente escolar. Sobrevivendo a partir da demanda
e das necessidades da família, dona Glória aposentou-se e isso lhe rendeu uma
segurança salarial para amparar a sua velhice87.
Enquanto a vida de dona Maria da Glória na juventude foi marcada pelo
trabalho como forma de sustento para a família, o grande sonho de dona Lourdes
era estudar, preferivelmente, no “Colégio das Feiras” em Santo Antonio de Jesus.
No entanto, a vida lhe reservou um destino semelhante ao de sua futura vizinha,
dona Glória. Ela relatou o fato de que, parte de sua infância e adolescência, foi
vivida na casa de um familiar na cidade de Santo Antônio de Jesus 88. Segundo dona
Lourdes, sua vinda para a cidade, ainda criança, aconteceu devido ao desejo de
estudar no Colégio Santo Antonio, instituição de ensino liderada por freiras e que
tinha como público as crianças e adolescentes de famílias financeiramente bem
favorecidas da cidade e região, funcionando também como internato.
Como não pertencia ao grupo social de principal clientela do colégio –
crianças e adolescentes de posses -, ao qual se destinava para conseguir esta vaga,
a sua mãe foi pessoalmente pedir auxílio ao poder executivo – prefeito Antonio
Fraga, em 1947 - para conseguir a vaga e realizar o sonho de sua filha, já que não
tinha condições financeiras para custear os estudos89. Esta narrativa nos faz refletir
se este sonho era originado por ela ou seria uma vontade dos pais em colocá-la em
uma escola de freiras para que futuramente se tornasse uma, já que se destacava
no seio familiar e na comunidade como uma menina de hábitos religiosos.
Podemos pensar, no entanto, que uma das formas de ascensão social
das famílias pobres e negras, desde os tempos coloniais, era a vinculação em
grupos religiosos ou irmandades que lhes pudesse, não só garantir um
86
Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010.
Idem.
88
Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
89
Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
87
reconhecimento e prestígio dentro das várias camadas da sociedade, mas um
espaço de sociabilidades onde surgiam redes de solidariedade formada por pessoas
que possuíam uma origem e uma realidade semelhante e, cujos membros se valiam
uns dos outros nas necessidades90.
É possível que os pais de dona Lourdes também vissem na educação
uma forma de ascensão social ou de garantia de um futuro menos sofrido para sua
filha, em especial através do magistério, profissão muito valorizada nos meados do
século XX e cujo principal local de formação das professoras da cidade e da região
era o Colégio Santo Antônio91.
Para alcançar este intento, portanto, dona Lourdes precisou deixar a casa
de seus pais, com apenas sete anos de idade, e se instalar na casa de parentes. Ao
ingressar nesta nova fase de sua vida ela não era considerada apenas uma visita,
mas, também, uma espécie de empregada doméstica92.
A condição de agregada e doméstica, disfarçada pela condição de
parente, foi um dos meios pelos quais muitas pessoas exploraram o trabalho alheio
e mantiveram vivas as formas de dependência oriundas do período da escravidão.
Essa foi apenas uma delas. São os prolongamentos das maneiras informais de
exploração e dominação da escravidão que adentraram a era do pós-abolição e
mantiveram pessoas na condição de dependência e de exploradas93.
Além da mudança do espaço geográfico94 a qual pertencia, saindo do
rural e partindo para o urbano, e de estar longe da família, foi imposto sobre dona
Lourdes o dever de cumprir com os afazeres domésticos: limpar, cozinhar, lavar
roupa, entre outras tantas tarefas95. Segundo a mesma, quase não dava tempo para
estudar, pois, quando a noite chegava já estava tão exausta que lhe faltavam as
forças para realizar as atividades escolares. Essa realidade desconfortável levou
dona Lourdes a “implorar” seu retorno para casa dos pais, mesmo sendo mais longo
90
Sobre Irmandades negras ver: OLIVEIRA. Anderson José Machado de. Devoção negra: santos
pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet: FAPERJ 2008.
91
TEIXEIRA, Moema De Poli.”Negros e universidade”: identidade e trajetória de ascensão social no
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1998. 157p.Tese (Doutorado) Museu Nacional/UFRJ.
92
Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
93
Para melhor compreender a exploração do trabalho no pós-abolição consultar: FRAGA FILHO, op.
cit.
94
Categoria de análise da ciência geográfica. Corrêa o define como “[...] a morada do Homem. [...] é
multidimensional.[...]”. Para melhor aprofundamento sobre o conceito de espaço geográfico ver:
CORRÊA, Roberto Lobato. Espaço: um conceito-chave da geografia. In: CASTRO, Iná Elias de.
GOMES, Paulo César da Costa (et al). Geografia: Conceitos e Temas. 5ª edição. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2003.
95
Dona Maria de Lourdes, 76 anos. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
o caminho para chegar até a escola e que tivesse que acordar mais cedo e andar
léguas para chegar lá.
Com o passar do tempo, por conta destes muitos empecilhos, dona
Lourdes, aos 15 anos, deixou de frequentar a escola. Logo que se afastou da
educação regular, além de costurar, dona Lourdes iniciou na profissão de professora
em sua própria comunidade local, Boa Vista, em uma escola particular. Era comum
que, nas áreas rurais, algumas pessoas com melhor formação fossem recrutadas
para exercer o magistério.96 Mesmo sem ter concluído a sua formação, dona
Lourdes se tornou funcionária pública municipal sendo efetivada como professora.
Segundo ela, “[...] inté hoje guardo o papel da posse...é... a portaria”97, tamanha foi a
importância desse emprego. Ali, durante a entrevista, transparece o orgulho da
entrevistada em ter superado um destino que se mostrava não tão favorável.
A trajetória de vida de dona Lourdes aponta para a questão da
importância do período de seus estudos. Mesmo sem afirmar de forma direta, a sua
fala deixa entrever como sua trajetória estudantil lhe rendeu muito mais que os
conhecimentos escolares:
[...] E por sinal estudei no colégio das freiras, ali já sabe que é...aí
nos meus 7 anos eu passei pra estudar no colégio das freiras e fiquei
até os 15 anos. Quer dizer, não internada sabe, mas ali certo com a
igreja com as freiras tem aquele horário certo de rezar, levava a
gente na capela pra lá fazer orações, tudo aí isso me marcou muito.98
Com a vida permeada pela experiência religiosa trazida, inicialmente,
através da vivência familiar - porém nem sempre vinculada ao catolicismo oficial – e
continuada pela instituição de ensino por cerca de 8 anos, segundo cálculos da
mesma, lhe proporcionou um acréscimo na bagagem religiosa, tais como: conviver
com pessoas que não faziam parte de seu cotidiano rural, organização de tempo,
respeito à hierarquia, conhecer outras formas de rezas – oficializadas pela Igreja - e
a importância de estar em contato com o sagrado constantemente e, através da
observação, o papel de liderança99.
Os valores dessa instituição escolar, regida pela igreja católica, que tinha
uma prática educacional feminina diferenciada da masculina para atender aos
96
LOPES, Eliane Marta & GALVÃO, Ana Maria. História da educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
Dona Maria de Lourdes, 76 anos. Entrevista coletada em 14 de julho de 2010.
98
Idem. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
99
Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
97
anseios da elite local, pois valorizavam a formação de seus descendentes em
pessoas “dignas”100, inserindo-as na sociedade de forma que a religião católica
tivesse espaço privilegiado. Além de ter como clientela a elite local e regional de
Santo Antonio de Jesus, o “Colégio das Freiras” possuía, consequentemente, um
alunado predominantemente branco. Foi inserida nesse contexto que dona Lourdes,
menina negra e de família pobre passou a conviver com pessoas pertencentes a um
contexto social bastante oposto ao seu.
Dona Lourdes afirmou ter se adaptado bem a escola durante o tempo em
que lá esteve. Mesmo em nenhum momento da entrevista ela tenha relatado algo
que possa negativar a instituição de ensino, nem na dimensão da estrutura física
nem na humana (dirigentes, professores e funcionários), percebe-se uma constante
tentativa de dona Lourdes, durante a entrevista, em explicar e justificar uma suposta
aproximação entre negros e brancos. Afirmou, ainda, ter se aproximado dos alunos
mais ricos e que tais momentos eram prazerosos101.
Seria “ingenuidade histórica” pensar que dona Lourdes, que se tornou
forte liderança religiosa na comunidade – era Ministra da Eucaristia – dentro das
práticas religiosas oficiais da Igreja, apresentaria de forma espontânea algo que
desabonasse um órgão da igreja à qual ela se tornou uma representante. Assim, é
preciso que o historiador atente para os silêncios do entrevistado.102 É válido
salientar que para as autoras das narrativas presentes nesta Dissertação não há
uma divisão aparente entre a devoção oficial e a popular, pois, inclusive, assumiram
ou ainda assumem cargos importantes no catolicismo oficial.
O que motivou os silêncios de nossa narradora? Podemos supor que um
medo de exclusão dentro do seu atual mundo religioso ou o constrangimento de
reconhecer ter sido alvo de discriminação por conta de sua situação social ou cor,
essas são algumas possíveis causas do seu silêncio. Mais adiante, por conta do fato
que passarei a analisar, estas possibilidades ganham força. Trata-se do período em
que ela estudava o ginásio103. Nossa narradora relembra com bastante saudade e
aparente mágoa, que, nesse período, havia um garoto em sua sala de aula, “[...]
100
A característica digna refere-se ao seguimento dos valores culturais da época.
Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
102
Sobre os silêncios na História Oral ver: HALBAWCHS, Maurice. Memória Coletiva. São Paulo:
Centauro.2006.
103
Nomenclatura correspondente ao Ensino Fundamental, atualmente.
101
muito bonitinho, educado [...]”104 e que a paquerava e era correspondido pela
mesma.
A narrativa de dona Lourdes, em parte da entrevista, foi impregnada por
um tom dramático ao relatar que sua família se posicionou terminantemente contra
qualquer tipo relação com o garoto branco. Segundo ela, sua mãe a alertava,
constantemente, “[...] que o branco só quer nos fazer mal, eles são interesseiros,
não devemos nos aproximar deles”105. Mas, para a jovem menina, aquele garoto não
representava nenhum perigo aparente, pois tinham afinidades e gostavam de
partilhar os momentos quando estavam juntos.
O imaginário dessa família acerca do homem branco tem justificativas
reais em uma raiz profunda e longínqua. Segundo dona Lourdes, essa aversão às
uniões conjugais entre negros e brancos teria nascido, ainda, durante a época da
escravidão. De acordo com a história oral passada de geração em geração em sua
família materna, a sua bisavó, que era “mulher de senzala...vivia na mata” 106, foi
vítima de assédio sexual por um dos filhos de seu senhor e desse relacionamento
nasceu esta sua bisavó a qual foi desamparada pelo suposto pai branco. Situações
como estas estão registradas pela historiografia colonial, em que os setores
escravos e senhores não deveriam se envolver sexualmente e, na grande maioria
dos casos, segundo Mintz e Price107 “para os colonos, era crucial negar que tais
relações pudessem ocorrer...”108 para não manchar a sua imagem de homem de
moral ilibada. No entanto, existem também registros em que a união conjugal foi
assumida publicamente por ambas as partes, envolvendo nesta relação não só o ato
sexual, mas também o sentimento forte que os unia como casal. Estes casos,
segundo estudos historiográficos, são minoria, sendo os registros de casos, como o
exemplo que aconteceu na família de dona Lourdes, a maioria dos contabilizados.
Segundo a avó, a prole oriunda desse contato físico entre escrava e
senhor, com quem dona Lourdes conviveu e acompanhou muitas vezes no trabalho
em mina de manganês, localizada na região de Santo Antônio de Jesus, levando o
104
Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
Idem. Dona Lourdes reproduzindo o que as mulheres de sua família acreditavam.
106
Idem.
107
MINTZ e PRICE, op. cit., p. 48-49.
108
Mintz e Price também nos relatam exemplos de uniões ilícitas que se tornaram conhecidos ao
público através de uma análise minuciosa e atenta de registros judiciais, bem como o outra face da
união sexual, que além de ser em forma de exploração e violenta, existiram também aqueles
“marcados por ternura e afeição.” (p.50). Para aprofundar mais sobre os primeiros contatos entre as
cultura americanas e africanas, consultar MINTZ e PRICE, op. cit..
105
seu alimento ou qualquer outro serviço que sua mãe mandava, sempre afirmava que
o “homem branco não presta”109 relembrando, através da tradição oral, essa marca
negativa da presença do branco.
Com as experiências adquiridas ao longo de sua trajetória como
professora, inicialmente em uma escola particular e posteriormente em um prédio
escolar, próximo a sua casa, na zona rural da Boa Vista, que atendia às crianças e
adolescentes da comunidade formando salas multisseriadas110, bem como sendo a
única professora da localidade onde, também, ensinava o catecismo para a mesma
clientela, dona Lourdes passou a se destacar como liderança na comunidade
local111.
Trazendo na memória a figura paterna, materna e da família como um
todo, dona Lourdes, dona Glória, dona Milú e dona Nita, respectivamente, justificam
essa forte lembrança pela herança religiosa deixadas por eles e que vamos
conhecê-las mais à frente, sabendo-se que mesmo tendo bons momentos na
infância e juventude, os maus também se fazem presentes em cada trajetória, no
entanto são prontamente selecionados por seus narradores para não serem
relatados em sua plenitude. Estes são, segundo Giraudo, “[...] um lembrete irônico
de que o processo de conscientemente rememorarmos não apenas nos permitem
contar as histórias difíceis que tem de ser passadas adiante, mas também nos
permite encontrar um sentido para nossas vidas individual e coletiva.”112
As
narrativas,
presentes
neste
trabalho
estão
permeadas
pela
seletividade da memória em que o entrevistado, consciente ou inconscientemente,
destaca em suas falas aquilo que ele achou importante e, principalmente, os fatos
considerados positivos. Os episódios de vida que possam causar qualquer tipo de
desconforto perante o grupo social, os seus ou a si mesma são raramente
declarados e, quando isso acontece, é de forma pontual e discreta para não
necessitar entrar em detalhes sobre o assunto. A tradição oral, portanto, permite,
tanto para quem ouve como para quem fala, ressignificar a própria existência.
109
Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
São salas de aula que comportam alunos de diversas séries simultaneamente.
111
As lideranças comunitárias não exercem apenas o papel religioso, elas exercem, também, um
papel político importante em reivindicar melhorias para aquela comunidade da qual faz parte.
Geralmente, assumiam este papel aqueles que eram alfabetizados , pois, como a maioria dos
moradores da zona rural eram analfabetos, o líder comunitário era responsável em fazer aquelas
pessoas “se comunicarem” com o mundo oficial dos bancos, governos, etc.
112
GIRAUDO, José Eduardo Fernandes. Poética da Memória: uma leitura de Toni Morrison. Porto
Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1997. (MOBLEY, 1973, p.197 apud GIRAUDO, 1997, 103).
110
1.2 Momentos de devoção: a família e a comunidade
O ambiente rural proporciona a seus moradores uma religiosidade
caracterítica que se desenvolveu num processo misto de afastamento e proximidade
com o catolicismo oficial e que é aceita pelo grupo como forma de se comunicar
diretamente com seus santos, constituindo-se como uma manifestação peculiar de
fé e devoção. Essa religiosidade, para existir, não faz distinções de classe social,
faixa etária ou até mesmo origem étnica e grau de escolaridade. Ela está presente
em todos os lugares em que o ser humano necessita de momentos para transpor a
realidade e alcançar a transcendentalidade.113
A existência das devoções populares, representadas pelas rezas em
casa, pelas caminhadas e procissões lideradas por leigos, advém desde o início da
colonização, quando elementos da religião católica foram absorvidos pela sociedade
e posteriormente reinterpretados de acordo com os costumes e práticas das
diferentes culturas. Ao longo do tempo, o caminho da religiosidade européia se
somou a outras advindas de outros povos como os nativos e os africanos. A partir
desta simbiose formou- se um aparato religioso peculiar com suas variações de
crenças e ritos. No entanto, é válido ressaltar que não se refere a sincretismo, como
bem afirma Euclides Marchi:
Não se trata de um mero sincretismo religioso ou da sobreposição de
rituais e crenças, mas da construção de uma religiosidade vivenciada
nas suas crenças, nos seus ritos e nos santos de sua fé. Como diz
Otto, foi e é uma “experiência do sagrado” sem necessidade de
intermediação, de fórmulas prontas e estáticas.114
Os ritos realizados a partir desta manifestação religiosa são produzidos e
reproduzidos sem a necessidade de uma aceitação formal por parte da igreja
católica e/ou pelo grupo social local. Isso não significa que com essa pluralidade de
113
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Tradução de Fernando Tomaz e Natália Nunes. São
Paulo: Martins Fontes, 1992.
114
MARCHI, Euclides. O Sagrado e a Religiosidade: vivências e Mutualidades. Revista: História:
Questões & Debates, Curitiba, n. 43, p. 33-53, 2005. Editora UFPR, p. 49.
fé e ritos tenha se distanciado do catolicismo original. Constitui-se, portanto, como
uma nova vertente, a partir da mesma raiz, que se concretiza através de diferentes
formas de devoção. Isso se justifica pelos seguintes motivos: número reduzido ou a
falta de sacerdotes na localidade, grandes e difíceis distâncias, as barreiras de
comunicação. Parafraseando Wissenbach115, diante do contexto dos séculos XIX e
XX, em que os representantes oficiais da igreja apareciam esporadicamente na
comunidade rural, não saciando assim as necessidades da mesma, os rituais do
catolicismo popular eram ministrados por membros da própria comunidade.
Os puxadores de rezas ou rezadores, como eram e ainda continuam
sendo denominados, foram assim “selecionados”, pelo grupo local pela sua conduta
cristã, pelo conhecimento das rezas católicas e seu repertório de rituais e pelas
atitudes de liderança que lhes impunha respeito e poder. Caracterizavam-se também
pela simplicidade nas realizações dos cultos, pela pouca formação sobre a doutrina
católica e por não estarem envolvidos com hierarquia clerical. E, Marchi continua
afirmando que, “[...] Constituiu-se, então, uma religiosidade que foi transmitida pela
oralidade e sustentada em saberes pouco afeitos aos princípios da teologia ou da
escolaridade organizada”
116
. Assim, surgiu a fé e a religiosidade local, a qual nesta
pesquisa é o eixo para o desenrolar de trajetórias de vida.
Na zona rural, era através dos dias de santo que se mexia
estrategicamente com a terra como, por exemplo, o dia de São José – 19 de março em que a terra é semeada com sementes de milho e amendoim para que no mês de
junho, em que se comemoram três dias santos – Santo Antonio, São João e São
Pedro – possam colher esses frutos festejando o mês junino.117 E para garantir uma
safra de qualidade, ou que pelos menos lhes rendessem algo para subsistência, os
agricultores e toda a sua família, além do plantar e do cuidar, realizavam as rezas,
em suas próprias residências, em homenagem a esses santos. Mas, não era
somente esse o motivo para devotar os seus santos. Além de esperar por uma boa
colheita, eles também rezavam em busca da cura de doenças físicas e mentais, pela
resolução de problemas de ordem econômica, social, conjugal, familiar, bem como
115
WISSENBACH, Cristina Cortez. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade
possível. In: NOVAIS, Fernando A.; SEVCENKO, Nicolau. (org.). História da vida privada no Brasil:
República: da Belle Époque à Era do Rádio. Volume 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.
78.
116
MARCHI, op. cit., p. 50.
117
Estas festividades marcam, segundo Wissenbach, as graças recebidas e as relações intergrupais.
Ver: WISSENBACH, op. cit., p. 82.
para comemorar aniversários, casamentos e, principalmente, com o objetivo de
angariar forças para superar as dificuldades que a vida rural lhes proporcionava.
Eram esses momentos os mais esperados por todo o grupo rural local,
pois, como as residências eram localizadas longe uma das outras as pessoas só se
encontravam quando era dia de feira ou quando havia algum motivo para rezar,
como nos dias de guarda118, conforme narra dona Milú, quando seu pai questionava,
“[...] Dia de guarda? Porque trabalhar se hoje é dia santo?A gente morre amanhã e
nada leva então hoje a gente num vai trabalhar não, vamo reza passar o dia junto,
almoçar todo mundo junto, sair junto, procurar visitar[...]”. 119
Segundo Charles Santana,
Os trabalhadores da zona rural realizavam o culto diante de um altar
peculiar, onde colocavam retratos, imagens de divindades cristãs,
flores silvestres e artificiais, castiçais, andorinhas de louça apertados
no pequeno espaço especialmente reservado para este fim. [...]
como componente integral das casas.120
Ao se constituir como parte integrante de cada lar rural, este espaço
religioso representa mais que uma decoração instalada, geralmente, na entrada da
residência. Com o intuito, mesmo que inconscientemente, de demonstrar a quem
chega a devoção religiosa presente naquela família, bem como, de realizar as rezas
individuais ou coletivas, manter o contato direto com o sagrado sem precisar de um
intermediador, o altar é local de reafirmação da fé e da identidade que une o grupo
de pessoas que diante dele se reúne para professar a sua fé e sua devoção
religiosa. Como afirma dona Milú, “[...] em toda casa (residiu em localidades
diferentes) meu pai fazia um altar de... tijolo e cimento e formava aquele altar ali ...ali
era templo sagrado que ninguém... era na sala [...]”121.(grifo nosso)
Quando a reza acontecia na área exterior da casa, segundo dona
Lourdes122, era confeccionado um pequeno arraial em baixo de alguma árvore, a
maior que houvesse, com folhas de bananeiras ou palmeiras, com flores de tecido
e/ou naturais, colocava o santo em lugar de destaque. Depois da reza, a mesa
estava sempre farta de comida que os próprios participantes produziam e levavam
118
Ver: WISSENBACH, op. cit., p. 78.
Dona Armelina S. Oliveira, 79 anos. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
120
SANTANA, op.cit., p. 62. Para saber mais ver: WISSENBACH, op. cit.
121
Dona Armelina S. Oliveira, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
122
D. Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
119
para a confraternização, inspirados pelo sentimento do companheirismo rural. Esse
comportamento intenso, presente entre os trabalhadores rurais contribuiu,
provavelmente, para que eles pudessem enfrentar as dificuldades da vida rural.
O recinto em que ficava a mesa era o lugar preferido da casa, depois do
ritual religioso, pois reunia as pessoas em torno da partilha e comunhão de uma
manifestação religiosa. Através de experiências vividas e passadas por/para Vianna
em Salvador/BA no século XX, segue um exemplo de confraternização e sua
respectiva organização em algumas residências:
[...] Nos lares, um dia santo era como dia de aniversário ou algo
parecido. Havia confraternização expressa em repastos copiosos.
Tudo era motivo para um almoço lauto, e a mesa era um móvel em
cuja volta toda a família se reunia para comer e conversar.[...] Os
donos da casa, embora pareça mentira, nem sempre se
sentavam....A dona de casa, ciosa de suas responsabilidades,
preferia ficar de pé, atenta a tudo quanto fosse necessário.123
Obviamente, nem todos os lares, em especial das áreas empobrecidas do
interior da Bahia, em que aconteciam as rezas haviam os “lautos almoços” de que
trata Hildegardes Viana em suas memórias. Em verdade ela está se referindo às
rezas que aconteciam em casas de pessoas de posse. A narrativa de Hildegardes
Vianna, no entanto é útil, pois nos faz confirmar a ideia de que parte importante da
reza era o momento de servir a comida, bem como nos mostra que tais práticas (a
reza e o repasto) não se deram unicamente entre pobres, desfavorecidos ou
camponeses, estas práticas estavam (e ainda estão) permeando diversas classes
sociais.
Dona Lourdes se recorda de ter vivido essa experiência por conta de seu
casamento. Este, planejado mais pela conveniência de seus pais do que pela
vontade da jovem moça, se realizou, como era de costume, na casa da família da
noiva. Como é comum, a família da noiva é quem dá a festa assim, “ se matava o
melhor peru, porco, galinha... fazia o bolo... tudo que podia e não podia.”124
Dona Lourdes narrou com muito entusiasmo ao lembrar, não só da festa
do casamento, mas de todos os rituais religiosos que aconteciam em ambientes
domésticos, sempre fazendo referência ao seu pai Elias. Ali a família que recebia a
123
124
VIANNA, op. cit., p. 49-52.
Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
reza, que celebrava a novena, que pagava a promessa, preparava a comida para
ser servida aos convidados. Era comum que fosse “[...] bolos e biscoitos com café,
mas quando tinha samba, tinha a cachaça também.”125. Sobre isso dona Glória
afirmou que “[...] é mais comum que se dê comida de azeite: caruru, vatapá, galinha
[...]”126 percebe-se, mais uma vez, como as culturas se misturaram o que nos impede
de tratar as devoções religiosas como algo homogêneo ou puro. As devoções
religiosas destas mulheres sofreram, como as devoções de tantas outras pessoas,
influência direta de diversas culturas com as quais, de uma forma ou de outra, se
relacionaram.
Quando o padre não podia estar presente para presidir o rito religioso, o
que era bastante freqüente, a pessoa responsável em “puxar a reza” se planejava,
física – por causa da voz - e espiritualmente, para realizar uma reza de qualidade,
ou seja, que fosse atrativa o bastante para que todos ali presentes participassem e
ficassem ansiosos por uma outra oportunidade daquelas.
Enquanto o sagrado era de responsabilidade de uma ou mais pessoas –
aquelas que ajudavam a cantar as rezas – com o profano não era diferente. Neste
âmbito também existia alguém responsável para organizá-lo, era o denominado por
Marchi de “festeiro”127. Era ele o encarregado de convidar as famílias para participar
da reza, selecionar e preparar as comidas para o cardápio da reza, juntamente com
seu grupo de ajudantes, providenciar as bebidas e as outras distrações que eram
necessárias com o intuito de fazer e manter a alegria do grupo ali que iria se reunir.
A partir dessas devoções populares percebe-se que o sagrado é uma
realidade
antropológica
em
que
o
ser
humano
sacraliza
o
mundo
e,
simultaneamente, a própria sociedade ao reforçar e reproduzir no grupo através da
religiosidade, os seus valores e visão de mundo. Essa idéia é defendida por Émile
Durkheim quando afirma que,
[...] a religião é uma coisa eminentemente social. As representações
religiosas são representações coletivas que exprimem realidades
coletivas; os ritos são maneiras de agir que só surgem no interior de
grupos coordenados e se destinam a suscitar, manter ou refazer
alguns estados mentais desses grupos.128
125
Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
Idem.
127
MARCHI, op. cit.
128
DURKHEIM, Emile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes,1996.
126
Na zona rural, como as casas eram longe umas das outras e não tinha
igreja na localidade, o acontecimento de um festejo, popular ou oficial, era motivo de
muita festa e alegria, pois eram naqueles momentos que as pessoas se
encontravam, se cumprimentavam e atualizavam as conversas, ora ouvindo as
lamúrias, ora relatando as agruras e contando casos para a diversão. São em
momentos como esses, portanto, que o grupo fortalece a unidade entre seus
membros e, consequentemente, a identidade por serem partícipes de uma realidade
próxima.
Para a cerimônia de casamento de dona Lourdes, por exemplo, alguém
foi buscar o padre na cidade. Um jegue, animal mais comum que o cavalo naquela
localidade e época, foi preparado e decorado com as melhores mantas para cobrir o
lombo do animal e amortecer os tombos da viagem e com enfeites na crina, para
carregar o representante oficial da igreja do centro de Santo Antonio de Jesus até o
Benfica. A festa durou todo o dia regada a muita comida, bebida, dança e narração
de casos129.
Este relato, como tantos outros, também apresenta a dificuldade de
acesso dos representantes religiosos à zona rural. Era tão restrito que só se faziam
presentes nessas localidades para realizar algo que dependia exclusivamente dele –
a realização de sacramentos como batizados, casamentos, missa, entre outros. O
que não era ofício sacramental, portanto, era realizado pelos representantes locais
como: a reza de terços, ladainhas, bênçãos, cantorias, procissões. Assim, dona
Lourdes, após a morte de seu pai Elias, passou a substituí-lo nas devoções
religiosas da comunidade local como “puxadora de rezas”. A escolha por ela pode
ter se dado por diversos motivos entre eles a “tradição familiar”, já que ela era filha
de um respeitado líder religioso; sua desenvoltura no falar, adquirida nos tempos
que estudou no “colégio das freiras” e a proximidade com o mundo letrado, o que
fazia dela uma pessoa importante no decifrar das informações para a comunidade,
fator que pode ter se somado à sua inclinação religiosa o que, aos poucos, levou-a a
assumir esse destaque na zona rural local.
Professora, catequista, agricultora e depois do casamento, mulher e mãe,
dona Lourdes permaneceu inserindo ao seu cotidiano a religiosidade herdada de
seu pai Elias. Este homem que, juntamente com os outros trabalhadores rurais,
129
Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
apesar da “fartura e ventura”
130
que a vida apresenta ao homem do campo,
acreditava que, como afirma Azzi,
[...] Tanto no aconchego do lar como distante dele, tanto nas
fases de esperança como nos momentos de dúvida, tanto na
alegria festiva como na tristeza e na dor, as famílias cristãs não
conseguiam imaginar situação alguma ao contrário do esperado,
também percebiam um texto redigido pelas mãos divinas: ‘Deus
escreve direito por linhas tortas’131.
De certo modo, dona Lourdes deixou transparecer nas entrevistas que a
sua vida religiosa era uma espécie de legado familiar, transmitido pelo pai, o qual ela
se sentia na responsabilidade de dar continuidade. De “puxadora de reza” de
devoções populares na área rural dona Lourdes se tornou uma forte liderança do
catolicismo oficial na área urbana. Entre os motivos desta profunda mudança estão:
a cooptação deste tipo de liderança pelos padres, como forma de coibir as práticas
que não eram vistas com bons olhos pela Igreja , diminuindo as devoções religiosas
realizadas fora das paredes da igreja e, utilizar-se do carisma destas pessoas como
forma de atrair mais fiéis para os cultos oficiais.
Mesmo assumindo uma função oficial, dona Lourdes nunca deixou de
realizar suas rezas nas casas de terceiros, o que demonstra a resistência destas
práticas mesmo em condições desfavoráveis. Sobre isso discutirei mais detidamente
no próximo capítulo.
Assim como dona Lourdes, dona Glória buscou sua referência religiosa
de devoção aos santos junto à sua família, principalmente à sua mãe 132. Ela cresceu
observando e presenciando as rezas que sua mãe realizava. Dona Germana era
conhecida não como puxadora de reza, o que sabia fazer, mas como
rezadeira/benzedeira. Era ela a mediadora entre a comunidade local e o sagrado.
Através dos ritos realizados em sua residência ou em qualquer outra que fosse
convocada. Por este ofício, ela é lembrada mesmo após a sua morte, pois, segundo
vizinhos “a reza dela era forte”133, ou seja, funcionava.
130
Conceito trabalhado por SANTANA, op. cit.,
AZZI, Riolando. Presença da igreja na sociedade brasileira e formação das dioceses no período
republicano. In:SOUZA, Rogério Luiz. OTTO, Clarícia (orgs). Faces do Catolicismo. Florianopólis:
Insular, 2008,p.17.
132
Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010.
133
Dona Judite Cunha, 83 anos de idade. Entrevista coletada em 21/09/2009.
131
Individual ou coletivamente ela era solicitada para rezar ou benzer
pessoas que estivessem passando por alguma dificuldade fosse financeira,
psicológica ou física. Segundo depoimento daqueles que se utilizaram de seus
serviços religiosos, dona Germana atendia a todos em domicílio – quando ainda
tinha condições de se deslocar -, mas com o passar da idade a sua saúde foi se
debilitando e as pessoas que desejavam o seu serviço se dirigiam à sua casa.134
Enquanto em vida, a benzedeira se preocupava em deixar este seu
legado para as filhas – dona Glória e sua irmã Ana Maria - que juntas estavam
sempre participando, de forma ativa ou como testemunha, dos momentos de
religiosidade praticados pela matriarca. Entretanto, não bastava somente aprender o
como fazer, era preciso, essencialmente, possuir o dom da reza/benção. E isso a
matriarca identificou em sua filha mais velha, Maria da Glória.135
No entanto, essa passagem de legado não foi tão fácil como dona
Germana esperava e desejava. Ainda em vida ela convidou sua filha para assumir o
seu lugar de rezadeira, pois sabia que tal ofício não podia se findar em sua geração.
Mas, para a sua surpresa a filha – dona Glória - não aceitou, alegando que não iria
saber realizar aqueles momentos de manifestação religiosa, individual ou coletiva,
da forma adequada.136
No transcorrer das entrevistas fica aparente que o real motivo da
negação ao pedido de sua mãe era o receio que, ao se tornar rezadeira, passasse a
ser identificada como “candomblezeira”137.
Algumas coisas podem ter amparado
este medo: primeiro o fato do candomblé ter sido visto durante muito tempo como
uma religião de pessoas incultas, desinformadas, supersticiosas ou como uma
religião ligada à prática do mal. O mundo dos “feitiços” e da “macumba”, ao mesmo
tempo que atraia, assustava as pessoas e estas práticas acabavam sendo
associadas às benzeções138 pelos instrumentos que, comumente se fazia uso: óleos
e azeites; folhas e ervas; bebidas e unguentos. Tudo isso fazia parte dos dois
134
D. Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010.
Idem.
136
Idem.
137
Idem.
138
Este termo refere-se ao ato de benzer para abençoar, curar, espantar coisas ruins ou clamar por
coisas boas. Para um maior aprofundamento sobre esta temática ver: JESUS, Elivaldo Souza de.
“Gente de promessa, de reza e de romaria”: experiências devocionais na ruralidade do Recôncavo
Sul da Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006;
SANTOS, Denilson Lessa. Nas Encruzilhadas da cura: Crenças, saberes e diferentes práticas
curativas - Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado.
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005.
135
mundos, reza/benção e práticas de religiões de matriz africana, cuja fronteira era e
continua sendo muito tênue139.
Como afirmou uma velha conhecida dos dons de dona Glória:
Meu filho tava com um abscesso nas costas, levei em vários médicos
mas nenhum resolveu e o abscesso só crescia. Aí então foi quando
me disseram pra eu vim aqui rezá ele. E com D. Glória foi tiro e
queda...ela rezou meu filho e me passou um óleo para colocar todos
os dias...e foi indo, foi indo e desapareceu...graças a
Deus!...primeiramente a ele, né? E depois a D. Glória... Aí sempre
que preciso eu venho aqui.140
A recorrência aos dons das rezadeiras, enunciado na fala de dona Maria,
cliente dos serviços de reza daquela mulher, é significativo. Isso demonstra que as
rezadeiras, bem como as puxadoras de reza criavam, com os seus serviços, uma
rede ampla de homens e mulheres que buscavam na reza a cura para seus males;
um contato mais próximo com o sagrado através de alguém que pudesse servir de
intermediário entre o devoto e o divino. No próximo capítulo vamos explorar mais o
impacto do processo de transferência residencial, zona rural – zona urbana, nas
práticas religiosas das entrevistadas, em especial as influências do novo meio e
como se dá a sobrevivência dessas práticas no mundo urbano.
Os relatos de trajetórias destas mulheres nos permite, como por uma
fresta, enxergar uma parte - pois é impossível enxergar-se o todo, como exatamente
aconteceu141 – das experiências, não só destas mulheres que são personagens
deste trabalho, mas também uma parte da vida de mulheres pobres, negras que se
transferiram do campo para a cidade. A partir destas experiências, nos é dado a
conhecer partes dessas histórias de vida, do que moveu as “relações de força” que
as
envolveram
e,
sobretudo,
o
quanto
e
como
estas
trajetórias
representativas.142
139
CHALLOUB, op. cit.
Dona Maria de Jesus, 47 anos de idade. Entrevista coletada em 07 de julho de 2010.
141
Ver mais em: GUINZBURG, op. cit.; WHITE, op. cit.
142
Ver mais em: BOURDIEU, op. cit..
140
são
2º CAPÍTULO
A RELIGIOSIDADE NA CIDADE
2.1- A continuidade da devoção popular
Ao acompanhar trajetórias de vida nos deparamos com a transferência,
da zona rural para a zona urbana de Santo Antonio de Jesus, das autoras das
narrativas. Esta mudança de lugar em meados do século XX foi justificada por vários
motivos – sociais, econômicos e/ou familiares -, mas dentre eles um era comum a
todas: “[...] buscar uma condição melhor [...]”143. Sabendo que a partir da segunda
metade do século XX as transferências de residências da zona rural para a zona
urbana foi intensificada pelo cerceamento do acesso à terra, pela substituição do
gado em detrimento das plantações de fumo e café destinados à exportação e que
demandavam uma quantidade de terras suficiente para sua produção. Tal mudança
conduziu a uma progressiva desestruturação das pequenas propriedades ante às
grandes fazendas, expulsando o pequeno camponês, acarretando problemas sociais
como o desemprego e a falta de terra para trabalhar e se alimentar, especialmente
para os mais jovens.144
Charles Santana nos traz a seguinte reflexão sobre o contexto rural da
época:
Assim, é que, [...], durante 1950 e 1980, municípios da sub-região do
Recôncavo experimentavam uma profunda transformação em sua
vida no campo. [...] No âmago de todo o processo, as condições de
vida da maior parcela da população rural aceleraram a sua
deteriorização. Em tais circunstâncias, a migração configurou-se
como alternativa a uma expressiva parcela da coletividade,
especialmente para as novas gerações que se viram sem
perspectiva de encontrar terra para o trabalho.145
Durante a entrevista, dona Nita, com um olhar distante como se buscasse
encontrar em algum lugar do passado as lembranças perdidas nas brumas do
tempo, afirmou ter vivenciado de perto a crise do fumo na região do Recôncavo.
Relembrando sua infância, quando ajudava a família na roça, a entrevistada fala
sobre o momento em que a maioria das propriedades da região foram se formando e
quando passaram a ser substituídas por capim e, juntamente com ela, aqueles que
também lá viviam e trabalhavam procuraram outras formas de sobrevivência como o
trabalho nos armazéns de fumo, na área urbana de Santo Antonio de Jesus, que
143
Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009.
Ex: Sobre as plantações de fumo em Santo Antônio de Jesus e seu entorno, ver: SILVA, Elizabete
Rodrigues da. Fazer Charutos: uma Atividade Feminina. Dissertação de Mestrado. Salvador, UFBA,
2001.; Sobre o tamanho das propriedades rurais, sua posse e organização em Santo Antonio de
Jesus e região, ver: OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Recôncavo Sul: Terra, Homens,
Economia e Poder no Século XIX. Salvador: UNEB, 2002; COSTA, Alex Andrade. Arranjos de
sobrevivência: autonomia e mobilidade escrava no Recôncavo Sul da Bahia (1850-1888), 2009.;
Sobre os conflitos existentes nas áreas rurais por conta do surgimento de latifúndios, ver, entre
outras, FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Terra, Trabalho e Poder, São Paulo, Brasiliense, 1988.
145
SANTANA, op. cit., p.110-111.
144
ainda resistiam à crise, ou foram para outras localidades em busca de uma renda
para sustentar a família.146
A narradora, ainda em sua fala, demonstra orgulho ao afirmar que foi uma
das produtoras manuais, também chamada de charuteira, dos mais conhecidos
charutos do mundo pela qualidade de seu produto. Ao constatar a plantação de
fumo que ela viu crescer e se desenvolver em seu quintal de casa ser trocada por
um capim, o qual à sua família não fornecia lucros, precisou buscar em outro lugar a
fonte de renda para manter a sua subsistência e a de sua família. Ela, então, passou
a exercer e ofício de charuteira em um dos armazéns de fumo ainda existentes na
cidade.147
Inicialmente quando chegavam as folhas de fumo eram criteriosamente
selecionadas e preparadas para que pudessem ser enroladas pelas habilidosas e
jeitosas mãos de dona Nita e de tantas outras mulheres que participavam da linha
de produção. Segundo a mesma, os charutos ali confeccionados eram vendidos
para todo o Brasil e para o exterior.
Para cumprir com as suas obrigações, dona Nita saía pela manhã e só
retornava à noite, tendo ainda que conciliar com a sua segunda jornada de trabalho
– o cuidar da casa, dos filhos, e do marido. Neste momento da narrativa, ela
recorda, com gratidão, a importância que sua mãe teve em sua vida, pois, segundo
ela, lhe ajudou a compartilhar a criação dos filhos enquanto trabalhava no armazém.
Lembra que certa vez “[...] sai para trabaiá e pelo meio do dia recebi um recado do
vizinho lá que meu fio tava passano mal, então, falei com as menina (companheiras
de trabalho), que ia em casa e voltava rapidinho,[...]”, para que o patrão não
percebesse a sua ausência, “... e vim em casa correndo ver o proque minha mãe
mim mandou chamar, ela só mim mandava chamar quando não pudia resolver o
probrema” (grifo nosso) 148. A mãe, neste caso, pediu que chamasse dona Nita para
levar o filho mais novo em algum médico, pois o mesmo não estava passando bem e
ela não conseguia remediá-lo. Então ela se ausentou no trabalho por algumas horas
146
Dona Anita Santos de Santana, 82 anos. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010.
Para maior aprofundamento sobre a crise do sistema agro-exportador fumageiro do Recôncavo da
Bahia ver: ALMEIDA, Paulo Henrique de. Quatro séculos de cultivo e manufatura do fumo na Bahia:
história de um outro Recôncavo. Nexos Econômicos, Salvador: FCE/UFBA, v.2, n.4, p.25-36, nov.
2002.
148
Dona Anita Santos de Santana, 82 anos. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010.
147
“sem que o patrão arrumasse confusão”149, pois “as meninas” conseguiram justificar
de maneira discreta a falta da funcionária e ela voltou sem que ele nem percebesse.
A vida no mundo urbano se diferenciava, em muitos aspectos da vida no
campo. Porém, o que, talvez tenha causado mais estranhamento aos migrantes
tenha sido o controle rígido do horário de trabalho e a fiscalização dos serviços por
parte de gerentes e chefes de produção. Para o recém-chegado do campo, o
individualismo e a frieza das relações humanas dentro das fábricas, marcas do
mundo citadino e industrial, poderia até dificultar tomada de atitudes solidárias, mas
as resistências às imposições do mundo urbano eram claras nas atitudes que os
trabalhadores tomavam como forma de criar direitos.150
O depoimento de dona Nita é revelador ao apontar para a existência de
teias de solidariedades estabelecidas entre os membros de uma mesma família,
bem como as construídas em ambientes de trabalho. Redes que são tecidas por
seus produtores a partir de necessidades mútuas. Estas teias podem ser recriações
do mundo rural no ambiente citadino, numa tentativa de incorporar elementos
comuns à vida da maioria das pessoas e que se encaminhava para um
desaparecimento, causado pelo distanciamento das relações impostas pelo mundo
do trabalho e pelo mundo urbano. As migrações não levavam à substituição de uma
cultura por outra ou conflitos entre elas, mas a reelaborações destas culturas na vida
dos migrantes e se imbricava na cultura citadina, tornando impossível distinguir onde
começa uma e termina a outra151.
Na família, era dona Nita quem trabalhava e levava o dinheiro para casa
mantendo sua mãe vestida e alimentada e esta, por sua vez, ficava em casa
cuidando de seus descendentes, já que não possuía mais forças para trabalhar fora
de casa. No mundo do trabalho, entretanto, se fez presente o companheirismo,
característica essencial para vencer as dificuldades e nesta narrativa os imprevistos
e urgências. Tais redes não são desestruturadas com facilidade, pois são tecidas
profundamente entre aqueles que dela necessitam e que por isso a preservam e
reelaboram-na.
Apesar das décadas que se passaram, ao relatar sobre a fartura da
produção de fumo e pela quantidade de armazéns, dona Nita, em sua narrativa, se
149
Idem.
Sobre a vida privada nas indústrias, ver, entre outros: NOVAIS, Fernando A.(coord. Geral).
SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). op. cit.
151
SANTANA, op. cit.
150
empolga e ainda relembra com espanto como um produto pode crescer tanto no
mercado, nacional e internacional, como também se surpreendeu com a sua crise,
talvez por não compreender como um produto que gerava tanta riqueza poderia
fracassar, a qual originou desemprego em Santo Antonio de Jesus e região.
152
Por problemas de saúde, dona Nita precisou se afastar do trabalho no
armazém e passou a cuidar integralmente dos seus filhos e marido. Com a
diminuição das pequenas produções agrícolas, as quais a entrevistada lembra
ficarem ao redor de sua casa quando era pequena e com o crescimento da cidade,
ela presenciou, como anfitriã, a formação do bairro onde mora até hoje - Cajueiro. A
casa não permanece estruturalmente a mesma, pois foi reformada e dividida para
abrigar alguns filhos que ao longo do tempo foram constituindo a sua família 153.
Presenciou muita gente chegar de outras cidades, de outros estados e,
principalmente, da zona rural de Santo Antonio de Jesus e região, como por
exemplo, dona Lourdes, que já fora apresentada na presente pesquisa.
A transferência, mesmo sendo em pequena distância, exigiu de seus
autores muita determinação, esforços físicos, financeiros e emocionais para
abandonar o seu lugar e ir à busca de outro desconhecido. Em meados do século
passado, era necessário um motivo bastante consistente para, inicialmente, refletir e
depois executar uma mudança residencial. Como lembra Vianna:
Antigamente as mudanças eram mais raras. As famílias
permaneciam por várias gerações em uma casa, fosse própria ou de
aluguel. As que tinham vontade de se mudar pesavam tanto os prós
e os contras que acabavam não se mudando. Salvo um
tangolomango nas finanças, a morte de alguém, ou qualquer outra
possibilidade de continuar como vinha sendo.154
Na trajetória de vida de dona Lourdes, portanto, houve um desses
“tangolomangos”, mas não financeiro. O motivo que trouxe esta professora,
catequista e puxadora de rezas a transferir sua residência da zona rural para a
urbana envolve, principalmente, motivos emocionais e familiares. O referido motivo,
ela narra contrita e com um olhar distante sugerindo a não superação do que a vida
lhe proporcionou. Segundo a mesma, a partir do casamento, ela teve quatro filhos e
152
D. Anita Santos de Santana, 82 anos. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010.
Idem.
154
VIANNA, op. cit., p.108.
153
uma filha. Vivia às margens da pobreza, plantando em seu próprio e pequeno
pedaço de terra, cuidava dos filhos, da casa, do marido e sempre ao lado dos pais,
os quais moravam perto de sua residência, na localidade da Boa Vista. E mesmo
residindo em zona rural sempre que possível estava presente na cidade “[...] de vez
em quando ia dá um passeiozinho,... participar de alguma festa [...]”,
155
com ou sem
os filhos, participando de alguma festividade, seja ela religiosa ou não.
Importante destacar que o camponês via o mundo urbano com um misto
de curiosidade e medo, um espaço “de ilimitadas possibilidades, de encontro e
movimento”156. As festas, os encontros, as missas e as feiras são exemplos de
instantes que despertavam a curiosidade e o interesse do camponês, porém a
cidade ainda era um mistério a ser desvendado pelo mesmo.
No entanto, a estrutura de sentimentos resultante não de baseia
apenas na ideia de um passado mais feliz. Apoia-se também numa
outra ideia de inocência, associada à primeira: a inocência rural dos
poemas bucólicos, neobucólicos e reflexivos. A chave de sua
compreensão é o contraste entre, de um lado, o campo e, de outro a
cidade e a corte: aqui a natureza, lá mundanidade. Muitas vezes tal
contraste depende justamente do tipo de escamoteação do trabalho
rural – e das relações de propriedade através das quais esse
trabalho é organizado – que já observamos. Porém há outros
elementos envolvidos. Os meios de produção agrícola – os campos,
os bosques, as plantações, os animais – são atraentes para o
observador e – sob muitos aspectos, nas estações propícias – para
os homens que lá trabalham. Isso pode ser contrastado de modo
eficaz com os mercados e escritórios do mercantilismo, ou com as
minas, pedreiras, oficinas e fábricas da produção industrial. Este
contraste, sob muitos aspectos ainda vigora.157
Dona Lourdes narrou que sua filha, adolescente, certo dia foi para a
cidade participar de uma festa de rua – inauguração do calçamento da Rua do
Andaiá - juntamente com um grupo de amigas, e, caminhando, se sentiu mal. Os
que estavam ao seu redor encaminharam a jovem ao médico e este constatou, após
análise dos sinais vitais, o falecimento da jovem. “[...] E esta foi a notícia que recebi
em casa: que minha filha tava morta,... sem acontecer nada de mais,... assim, de
uma hora pra outra, ... e a gente não sabia que ela tinha problemas de coração...” 158,
155
D. Maria de Lourdes Santos, 76 anos. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009.
WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: na história e na literatura. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, p.17.
157
WILLIAMS, op. cit., p.69.
158
Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009.
156
uma morte que, segundo o laudo médico, foi provocada por problemas
cardiovasculares.
Este foi o primeiro dos quatro sepultamentos de filhos que esta mulher
vivenciou. Os outros três, meninos, faleceram por motivos acidentais e de saúde,
dois, quando ainda eram pequenos, e o outro já em fase adulta, além de gestações
abortadas espontaneamente, restando em vida apenas um filho que mora em uma
casa anexada à sua, o qual já formou a sua família. Diante de tantas mortes filiais,
destaca-se, como a mesma afirma, a morte de sua única filha. E este foi o motivo
maior para a sua transferência para a cidade.
Enquanto morava na roça, além de exercer a função de agricultora, dona
Lourdes era professora, catequista e tinha, segundo a mesma, “uma vida
modesta”.159 Vivia com seu esposo em uma pequena casa, próximo à casa de sua
mãe e ao colégio em que trabalhava como professora. E, assim como na casa de
seus pais, na sua também tinha pedacinho de terra onde o casal utilizava para
plantar. Plantavam, colhendo o fruto para subsistência e para vender na feira livre de
Santo Antônio de Jesus aos sábados. Esses produtos eram transportados ao lombo
de um animal conduzido, o jegue geralmente, por ela e pelo seu esposo160.
Porém, a perda de sua única filha debilitou de maneira decisiva a sua
saúde psicológica e, consequentemente, física, pois se afastou do ofício que tanto
gostava - ser educadora -, e lhe impulsionou a tomar a decisão de ir para cidade motivo maior que ela identifica - para que pudesse sanar a dor do sofrimento da
ausência da filha e de suas lembranças, bem como ficar mais perto de seus pais, os
quais já haviam se transferido por motivos de conforto maior por conta da idade já
avançada. A ida para a cidade teria como sentido, também, e, talvez principalmente,
mudar de um ambiente que lhe trazia tristes recordações, onde, possivelmente, o
isolamento e a distância colaborava para o sentimento de solidão.161
Então, a casa da zona rural – Boa Vista - foi vendida e com o dinheiro
desta venda dona Lourdes e seu esposo compraram outra casa no bairro do
Cajueiro, rua que fica próxima a estrada do Benfica, onde moravam. Iniciava, assim,
uma nova etapa na vida de dona Lourdes e de sua família.162
159
Idem.
Idem.
161
Sobre isso ver mais em: WILLIAMS, Raymond, op. cit.
162
Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009.
160
Segundo a mesma, ao chegar à cidade reservou um cômodo da casa
nova e instalou um pequeno bar para que o marido pudesse angariar alguma renda,
pois não havia terra para trabalhar. Este empreendimento proporcionou ao casal
momentos difíceis os quais somente findaram com o falecimento do marido. Pois,
este por passar a maior parte de seu tempo cuidando do bar e fazendo companhia a
seus clientes passou a consumir bebida alcoólica constantemente proporcionandolhe atitudes sob efeito do álcool, as quais interferiram cada vez mais na saúde
emocional de dona Lourdes, bem como na “paz familiar”163.
Com o passar do tempo, a saúde do marido piorava. Os seus órgãos não
suportavam mais a ingestão de álcool, debilitando gradativamente os seus
movimentos, e, então, “[...] partiu desta vida para uma melhor”.164
Segura em sua narrativa, dona Lourdes acreditou que este foi o melhor
acontecimento tanto na sua vida quanto na de seu esposo nos últimos anos em que
conviveram juntos, pois assim ela ficou mais descansada e ele encerrou o
sofrimento causado pelo alcoolismo. Mas esta mulher não cuidou somente do
marido, quando em vida, mas também de sua mãe, pois, quando seu pai faleceu
acolheu-a dentro de sua casa e cuidou dela até o seu falecimento, bem como foi
responsável por um sobrinho deficiente físico e mental, o qual vivia acamado e sob
efeito de medicamentos controlados, deixado sob seus cuidados por uma irmã.165
As solidariedades não se davam somente entre vizinhos e conhecidos
mas, também, dentro das famílias. Com a partida de entes familiares para o trabalho
na capital – como foi o caso da irmã de dona Lourdes – ou até mesmo no sudeste
do país, o restante da família se responsabiliza pelo cuidado e criação dos que
ficavam, em especial as crianças. Assim as famílias passavam, como a de dona
Lourdes, a contar com parentes e agregados.
Percebe-se, nesta trajetória de vida, como o nascimento de uma criança
do sexo feminino foi tão importante para uma mãe que era rodeada de homens
(marido e filhos). Uma filha que lhe pudesse fazer companhia, ajudar nos trabalhos
domésticos e com o passar do tempo viver as mesmas situações do universo adulto
feminino e, assim, dona Lourdes passaria adiante o seu legado de mãe e de mulher,
e talvez de rezadeira. No entanto, a vida reservou para dona Lourdes outras
163
Idem.
Idem.
165
Idem.
164
experiências, onde pudesse, talvez suprir as faltas e carências que a própria vida lhe
proporcionou. Assim, foi na comunidade do Cajueiro, onde instalou a sua residência
na cidade, que ela encontrou a motivação para superar esse episódio de sua
trajetória, descobrindo a melhor maneira para conviver com estas lembranças166.
A necessidade em criar novas redes de solidariedade é que levou dona
Lourdes a estreitar os laços de amizade com as moradoras do bairro do Cajueiro,
onde passara a viver. Estas redes têm funções diversas: não servem apenas de
apoio material mútuo, mas, de auxílio nas diversas necessidades apresentadas por
aqueles que a compõem. As práticas religiosas coletivas são um bom caminho para
se construir tais redes, pois nesta se concretiza a partilha de suas alegrias e
sofrimentos, comuns, em sua maioria, entre seus membros. A busca pelo conforto
espiritual proporcionado pela religião, portanto, torna-se, muitas vezes, o único fio
que sustenta aquelas vidas.
Tendo como referência religiosa o seu pai, Elias, ela procurou participar
das práticas devocionais que aconteciam naquele bairro, se juntando a um grupo de
rezadeiras, dentre elas dona Conceição “Madeira" e dona Conceição Muniz.
Essas duas mulheres, com histórias de vida semelhantes à de dona
Lourdes passaram a compartilhar suas agruras cotidianas, descobrindo afinidades
que as unia, o que, segundo dona Lourdes, ajudou no processo de aceitação da
morte da filha. Mas parece que tal “aceitação” se deu quando dona Lourdes passou,
progressivamente, a ser uma pessoa mais ativa nas práticas religiosas e diante da
comunidade. A morte dos outros filhos, através de sua narrativa, parece não ter sido
tão dolorosa, que sendo o primeiro falecimento familiar anestesiou-a diante dos
outros. Superado, aparentemente, este trauma, dona Lourdes passou a acompanhar
os itinerários da devoção popular juntamente com o grupo social ao qual estava se
inserida.
Dona Maria da Glória, por sua vez, só veio instalar-se de forma definitiva
na cidade quando sua mãe comprou a atual casa, em 1947, também na rua principal
do bairro do Cajueiro, a poucos metros da residência de dona Lourdes, com um
dinheiro que fora emprestado pela Madre do Colégio Santo Antonio, onde trabalhava
como lavadeira. Nascida no Bonfim, zona rural de Santo Antonio de Jesus, dona
Glória até chegar ao bairro do Cajueiro, passou por vários outros bairros, já que a
166
Sobre as lembranças e esquecimento ver: POLLAK, op. cit., p. 3-15.
sua família não tinha casa própria. Sua família se restringia à sua mãe, tia e às suas
irmãs, pois não conheceu o pai. Interessante destacar aqui como a base de muitas
das famílias pobres está assentada na família matrifocal, seja por abandono, por
viuvez ou por opção.167
Ao relatar a formação da Rua do Cajueiro, bem como a chegada de seus
vizinhos, dona Glória afirma que esta rua começou a se estruturar melhor a partir do
governo de Antonio Magalhães Fraga, prefeito de Santo Antônio de Jesus entre
1954 e 1958, com o nivelamento da rua desde a rua Castro Alves - centro da cidade
- até perto do Campo do Governo, divisa com área rural.
Mesmo sendo considerado um bairro periférico, dona Glória afirma ser
feliz por residir em uma rua estruturada com pavimentação e saneamento básico.
Mas, seu orgulho maior é ser reconhecida como a benzedeira da rua, da
comunidade e uma das mais conhecidas e requisitadas da cidade, “[...] e hoje
graças a Deus a nossa rua tá em primeiro lugar, tem posto (médico)..., igreja,
cemitério, benzedeira, como bem o sou, rezadeira, benzedeira [...]” (grifo nosso)168.
Apesar de sua vida nos limites da pobreza, dona Glória demonstra satisfação com
as transformações urbanas que presenciou e com a chegada dos moradores
daquele bairro, muitos dos quais oriundos de áreas rurais e empobrecidas.
Dona Nita, que desde criança mora no referido bairro acolheu dona Glória
e dona Lourdes e suas respectivas famílias e, juntamente com elas e com outras
mulheres, fez do bairro do Cajueiro um espaço de religiosidade marcada pela
devoção popular aos santos. A presença dessas mulheres é indiretamente
valorizada pelo universo religioso, sendo que,
O papel atribuído à mulher dentro da igreja católica leva,
indubitavelmente, a pensar como esta mesma instituição acaba por
impor papeis aos seus fieis; Compreendendo-se por gênero não
propriamente as características sexuais, ‘mas a forma como essas
características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz
ou pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é
feminino ou masculino.169
167
Ver mais em: ARIÉS, op. cit..
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
169
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade, Educação: uma perspectiva pós-estruturalista.
Petropólis:Vozes,1997, p.21.
168
Se tornando líderes comunitárias, as mulheres quem compõem este
estudo, tinham como características em comum a religiosidade, adquirida de seus
antecedentes, tornando-se referência para o bairro onde moravam como modelo de
mulher, religiosa, trabalhadora e conselheira. Além disso, os sofrimentos
proporcionados pela vida e a busca pela superação através das práticas devocionais
foram outros elementos que as uniram. A partir deste aspecto comportamental
sugere-se uma dupla função das narradoras, para as quais não há uma separação
entre as atividades da religiosidade popular e oficial.
Mesmo com a mudança campo-cidade, aparentemente brusca, as
interlocutoras narraram que trouxeram toda a carga religiosa do ambiente ruralfamiliar, a qual impactou na vida cultural, social, econômica e familiar. Mesmo
residindo na cidade e com a presença mais próxima da igreja e de seus
representantes e rezas oficiais, os que aqui chegavam traziam consigo a
religiosidade, a qual foi coexistindo de forma lenta e gradual no ambiente urbano.
Com a intenção em prosseguir com o catolicismo popular, os devotos estavam
sempre em estado de alerta para que não perdessem a “essência” desta devoção e
ao mesmo tempo analisando como realizar estes momentos em um ambiente com
um ritmo cotidiano diferente dos que estavam habituados a viver. É necessário
considerar, mesmo com estas declarações por parte das narradoras, que a vida
urbana promoveu reformulações na prática religiosa e devocional.170
2.2- Aparatos devocionais
A
devoção
característica
do
catolicismo
popular,
descrita
pelas
entrevistadas em suas narrativas, demonstram uma coexistência ritualística entre
seus seguidores e as práticas oficiais da Igreja. Essas pessoas que se instalaram no
mundo urbano de Santo Antonio de Jesus, a partir de 1950, têm outro fator em
comum, além da origem rural: fazer da religiosidade uma manifestação de fé para
que pudessem ter a sabedoria para driblar os reveses da vida.
170
Ver mais em: MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In:
NOVAIS, Fernando. SCHWARCZ, Lília M. História da Vida Privada no Brasil: contrastes da
intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998.
Para continuar o seu ofício de “cantadora das rezas” / “puxadora das
ladainhas” ensinado por seu pai Elias, dona Lourdes afirmou que foi logo em busca
de amizades com as pessoas da comunidade do Cajueiro e acompanhando as rezas
que rotineiramente eram realizadas, tendo como referência de religiosidade algumas
mulheres como dona Conceição “Madeira” e dona Conceição Muniz que cantavam
e/ou rezavam nas casas do bairro ou fora do bairro, sempre que eram solicitadas, o
que nesta época era constante171.
A partir desta atividade religiosa, dona Lourdes começou a destacar-se
em momentos ritualísticos pela sua voz firme e compassada ao entoar as
ladainhas172. É válido ressaltar que a devoção popular não impedia a nenhuma
dessas mulheres em desenvolver, também, uma função ativa no catolicismo oficial.
Dona Lourdes era considerada uma das líderes da comunidade, pois além de “tomar
conta” da igreja, ou seja, ela era a detentora da chave da igreja do bairro sendo a
responsável por tudo e todos que nela adentravam, bem como desempenhava a
função de ministra da eucaristia, que segundo ela, “é a missão que a gente tem com
a igreja em fazer a celebração, levar a eucaristia para os irmãos doentes em casa ou
que não podem ir pra missa por qualquer outro motivo.” 173 Mas, para se tornar um
ministro(a) era necessário que exercesse testemunho de vida cristã e estar sempre
ensinando os dogmas, a moral e os sacramentos da igreja.
A realização e participação nas rezas aconteciam, nos últimos anos de
vida de dona Lourdes, mediante convite:
De vez em quando, que vem assim e pede: ‘ô dona Lurdes a senhora
podia rezar uma ladainha em minha casa?’ Aí eu chamo as menina
como bem Ligia, Toinha, Tina, Edite aí nós vamos... Preta, lá da Bela
Vista (rua pertencente ao mesmo bairro)... a gente reza. 174 (grifo
nosso)
As rezas não eram apenas momentos de louvação e oração, mas eram
instantes em que pessoas, com trajetórias de vida semelhantes, dividiam suas
dores, angústias e sofrimentos; partilhavam suas alegrias e obtinham auxílio nas
necessidades. A reza tinha uma função social tão importante quanto a religiosa. Nos
171
Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009.
Idem.
173
Idem.
174
Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 14 de julho de 2010.
172
depoimentos de dona Lourdes, prestados nos últimos meses de vida, ela aparentava
uma resignação ao falar sobre os atendimentos aos convites para rezar nas casas.
O atendimento aos pedidos se dava como uma forma de “cumprimento de dever”.
O melhor e maior argumento para ser uma cobiçada “cantadora das
rezas” / “puxadora das ladainhas” era a voz. Por já ter experienciado essa vivência
na zona rural desde criança, dona Lourdes trouxe consigo para a cidade o ritmo das
rezas e o seu tom de voz firme, compassado e envolvente. Com o passar do tempo
foi conhecendo as pessoas do bairro do Cajueiro e tecendo relações de
sociabilidades através da identidade religiosa, passando a acompanhar as
moradoras mais antigas do bairro para realizar os cultos devocionais nas casas em
que eram convidadas. Geralmente essas casas pertenciam à pessoas que vieram
da zona rural e que não se satisfaziam somente com a religiosidade oficial, mesmo
contando com uma igreja no bairro– Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro –
com a presença dos padres regularmente. Dona Lourdes, então, logo se destacou
no grupo, segundo ela, por sua voz e com o passar do tempo passou a não ser mais
uma mera acompanhante e participante das rezas, e sim a ser a líder desse grupo,
pois algumas mulheres que lideravam as rezas foram adoecendo e outras
faleceram, bem como aquelas que se afastaram por problemas de convivência 175.
Com orgulho ela nos relata sobre a sua presença nas rezas:
Ziu faz a promessa, me parece que desde menina, que ela teve uma
problema na perna, uma ferida.Se apegou com São Roque e ficou
boa então ela, prometeu a São Roque,que todo ano, nem que
soubesse em palavra ela rezava a ladainha de São Roque. Então
quando eu cheguei pra qui ela já tinha essa devoção há muito tempo,
aí quando eu comecei aqui, rezando com as menina ela me
contratou para fazer, aí todo ano a gente vai.176
Em uma espécie de contrato selado com o santo, o qual se realiza
anualmente, dona Lourdes cumpria, simultaneamente, com a sua obrigação de
rezadeira e a promessa feita por dona Ziu, moradora da mesma rua. A rezadeira
afirma que esses rituais devocionais mudaram bastante nos últimos anos. Então,
para não ser criticada ou mal interpretada pelas pessoas, dona Lourdes preferiu se
adaptar às novidades e coerência da religiosidade aceita pela sociedade, as práticas
175
Idem.
D. Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 14 de julho de 2010.
176
religiosas oficiais. Talvez tenha feito isso para ser aceita no seio da comunidade. A
partir deste comportamento, portanto, percebe-se como as pessoas realizam o papel
de se adaptar ao mundo oficial, mas praticando de modo sub-reptício a devoção dos
seus antepassados, as “escondias” da igreja, em suas casas, em locais onde o olhar
do padre não alcançava, ou fazia de conta não enxergar. Em geral a igreja sempre
soube dessas práticas, as ignorava por não lhe interessar criar conflitos abertos com
lideranças religiosas que, também, lhes eram úteis. Mas, uma coisa é fato: essas
pessoas, de uma forma ou de outra, sempre se constituíram em uma “sombra” ao
poder da igreja e do líder paroquial. Por isso sempre foram “bem fiscalizadas”.
Sobre as práticas das rezas ela disse que,
De antes fazia nas casa, mas o pessoal...por exemplo aqui na cidade
mermo mudou muito o sistema aí ... ói se é pra ficar na rua pra
alguém ficar criticando a gente faz na igreja que é o lugar principal....
Agora mesmo na época da quaresma tem pessoas que pede pra
rezar o ofício aí a gente vai.177
A partir desta narrativa, percebe-se o quanto dona Lourdes e seu grupo
de fiéis precisou adaptar, recriar, para que fossem aceitas pela sociedade. Diante
das mudanças de valores culturais e religiosos impostos na sociedade em meados
do século XX, o Catolicismo oficial buscou demarcar com mais precisão o seu
território e seus agentes produtores através da valorização dos rituais no interior dos
templos oficiais sagrados catequizando seus fieis para a importância de seus
representantes sacerdotais estendendo-se aos seus ensinamentos. Àqueles que
criticavam por determinadas atitudes religiosas, acreditavam que não era mais
necessário realizar estes feitos, pois já havia uma igreja no bairro e seu respectivo
representante178. Mas, apesar de algumas mudanças em sua devoção, dona
Lourdes não a extinguiu por completo, assim como alguns de seus seguidores,
resistindo à pressão social com o objetivo de manter viva a sua religiosidade e a de
muitas outras pessoas que se dividiam entre as práticas religiosas oficiais e a
devoção considerada popular.
177
Idem.
O não descrever quem são os “aqueles” retrata o silêncio, o não dito da historiografia para não
revelar a essência da afirmação. Sugere-se, então, que os “aqueles” de D. Lourdes se referem ao
vizinhos, mas também aos integrantes da igreja e até o próprio dirigente desta instituição.
178
Assim, também aconteceu com dona Glória, a qual afirma que, para
continuar com o ofício que sua mãe exercia quando era viva – benzedeira -, não foi
fácil. Primeiramente, porque não queria assumir “uma responsabilidade tamanha e
ainda ser difamada”179, como relata em uma das conversas que teve com sua mãe,
quando esta ainda era viva:
Eu digo eu num quero não, eu num quero que pessoa nenhuma diga
que eu sou centro espírita. Ela disse: ô minha fia foi Jesus, aí eu
disse: eu sei, o que existe no mundo é Jesus Cristo. Eu não liguei,
ela disse: ô bobage, se tu ficasse era milhor. Eu disse: não, eu não
quero não!...180
Ao negar à sua mãe este legado, com voz firme e segura, do que não
queria que acontecesse, dona Glória demonstra o receio em ser identificada como
representante de uma religiosidade que não servisse para o bem da sociedade e
nem estivesse inserida nas boas práticas do Catolicismo e da medicina. Como nos
mostra Challoub: “[...] as mais variadas práticas de cura, diferentes da medicina
científica, serão igualmente tachadas de charlatanismo pelos cientistas. Seus
praticantes, considerados bárbaros e atrasados [...]”181.
Ao relatar este posicionamento repressivo da sociedade brasileira aos
produtores e reprodutores da religiosidade popular, o autor o justifica pelo ensaio da
comunidade científica em estabelecer o seu discurso como único e verdadeiro.182
Apesar do pouco avanço, a discussão a respeito da medicina natural e da
liberdade religiosa, a comunidade acadêmica alertava a sociedade dos meados do
século XX quanto aos perigos de se utilizar remédios naturais sem, inicialmente,
serem testadas nas pesquisas em laboratórios para validar ou não as ervas
medicinais.183
No entanto, essa reflexão está aquém da decisão de dona Glória. Ao
chegar à comunidade, ela logo se prontificou em reunir as crianças da rua para
lecionar o catecismo, mesmo não exercendo a profissão de professora, queria
ensinar os dogmas da igreja católica. Foi a primeira professora de catecismo da
179
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
Idem.
181
CHALLOUB, op. cit., p.12.
182
Idem.
183
Ver SANTOS, Denilson Lessa. Nas Encruzilhadas da Cura: Crenças, Saberes e Diferentes
Práticas Curativas - Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). Dissertação de
Mestrado: Salvador, UFBA, 2005.
180
comunidade, outro orgulho em sua vida, além de ser benzedeira. Ensinou durante
22 anos o catecismo, inicialmente em sua própria residência e, posteriormente, na
igreja quando a construção da mesma foi finalizada e que fica situada em frente à
sua casa.184
Além dessa função catequizante, no período que o templo estava sendo
construído, por volta de 1958, integrou a comissão para adquirir fundos para a
construção da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Inserida neste
contexto de liderança comunitária, dona Glória permite transparecer em sua
narrativa que não queria dar falso testemunho e/ou trair a confiança daqueles que
tanto lhe admiravam na comunidade e na igreja através de seus atos religiosos, ou
seja, não queria tomar atitudes as quais sabia que iriam ser criticadas e,
consequentemente, ser excluída do grupo. Aparece na fala da entrevistada uma
necessidade de se sentir incluída e “respeitada” pela comunidade. Isso também é
uma forma de ascensão social, em especial por três coisas: ser mulher, negra e
pobre.
Além dos apelos de sua mãe, quando em vida, para que desse
continuidade ao ofício de rezadeira, os mesmos continuaram a acontecer através
dos seus sonhos. A aceitação do ofício de rezadeira somente se concretizou,
segundo dona Glória, mediante uma ameaça de morte dada por um enviado de
Deus, também em sonho185. Ela nos conta que após o falecimento de sua mãe,
nunca perdeu o contato com a mesma, pois sempre estava presente em seus
sonhos pedindo que assumisse a posição de rezadeira. Sonhos estes, e todos os
outros, que sempre comentava com a sua irmã Ana Maria, sua grande companheira
de vida e incentivadora para que aceitasse o pedido de sua mãe186.
Na narrativa abaixo, dona Glória nos conta parte do sonho no qual foi
selado o acordo entre ela e “o homem”, como ela designa aquele que lhe aparecia
nos sonhos:
[...]‘Sua mãe mandou, a senhora não quis aceitar o que ela disse e
agora quem mandou foi Jesus. Se a senhora quiser me diga logo
porque se não quiser quando for de manhã que a senhora abrir a
porta só dá tempo olhar pra cima e pra baixo e antes da senhora
fechar a porta a senhora cai, a cabeça pra porta da rua e os pés para
184
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
Idem.
186
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
185
dentro de casa. Quer vim?’ Minha filha eu, do medo que eu fiquei, eu
abracei o velho e disse: Não, eu assumo[...].187
A experiência de sonhos é de suma importância na vida de dona Glória,
pois relembra fatos, orienta, solicita algo, cobra o que ainda não foi cumprido e no
exemplo acima, interfere em seu cotidiano através da manipulação de suas ações e
decisões. De acordo com Schmidt, os sonhos, no universo religioso, “...
desempenham papel essencial, pois estabelecem a relação mais íntima entre o
peregrino e o santo ou a santa – que lhe aparece em seu sono para o ajudar,
ameaçar ou castigar”188. Diante, então, da ameaça de morte proposta em sonho e
relatada por ela, dona Glória aceitou o ofício de bezendeira e iniciou o atendimento
às pessoas que em sua casa chegavam pedindo a reza e, quando não era possível
esse deslocamento, a benzedeira atendia em domicílio, como, por exemplo, dona
Judite Cunha que há oito anos caiu no quintal de sua residência fraturando o fêmur
e foi benzida por dona Glória.
Segundo dona Judite “[...] mandei chamar ela pra poder me rezar, pra que
esse osso colasse logo, [...]”189. E durante 10 anos de ofício, a benzedeira fortalece
cada vez mais a sua manifestação religiosa na rua, no bairro e em toda a Santo
Antonio de Jesus, pois os seus clientes190 são de todas as classes sociais, faixas
etárias e religiosidade.
A sua residência é, hoje, estruturalmente preparada para receber os
“sedentos por graça”191. Por vezes,quando é uma reza rápida, ela a realiza na sala
de visita mesmo, em que consta um jogo de sofá com dois e três lugares e um jogo
de mesa com seis cadeiras. No entanto, para melhor acolher os seus clientes e para
concretizar a reza com privacidade, transformou um cômodo da casa em uma
espécie de consultório com entrada independente de sua residência. Ao abrir o
portão posicionado ao lado da entrada principal de sua casa, encontra-se uma
pequena ante-sala, logo em seguida outra sala, de mesma área que a anterior, com
187
Idem.
SCHIMDTT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na idade média.
Bauru, SP: EDUSC, 2007, p.21.
189
Dona Judite Cunha, 83 anos. Entrevista coletada em 21 de setembro de 2009.
190
Os indivíduos que procuram o serviço religioso são denominados nesta pesquisa como clientes,
pois baseado em Ferreira (2008) em seu Miniaurélio o cliente é aquele que, entre outros dois
significados, “utiliza com certa regularidade os serviços de profissional ou empresa”. FERREIRA,
2008, p.239.
191
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
188
dois bancos de cimento paralelos entre e perpendiculares às paredes. E nesta sala,
também se faz presente, um pequeno altar sobre uma mesa de madeira,
ornamentado com imagens de alguns santos, o rosário pendurado no telhado baixo
além de algumas flores, que por vezes são artificiais e por outras naturais, e uma
vela acesa, tudo bem à vista a todos que chegam. E ao lado do mesmo, uma
divisória feita por uma cortina de tecido indicando a presença de um pequeno quarto
com uma cama de solteiro e uma cômoda, ambos os móveis feitos de madeira. Este
cômodo é bem freqüentado por todos que buscam alguma graça para sanar
problemas sejam eles de ordem financeira, familiar, física ou mental. Vale ressaltar,
que para coletar as narrativas de dona Glória foi necessário marcar um horário, e
ainda assim, aguardar uma brecha entre um fiel e outro que estaria a chegar.
Enquanto o momento da entrevista não acontecia foi observado e constatado o
frequente e intenso atendimento das rezas, além das visitas que chegam para
entregar alguma encomenda ou simplesmente ver e conversar com dona Glória.
As “encomendas”, na maioria das vezes, são bens materiais ou dinheiro
enviado pelos “clientes” de dona Glória em retribuição aos serviços prestados. É daí
que dona Glória tira boa parte do que vai sustentar os cultos e rezas feitos por ela.
Apesar de dizer que não cobra pelo serviço, ela indica um objeto ou material que
está precisando para realizar uma reza ou para reformar sua capela. Sobre isso
falaremos um pouco mais adiante.
As pessoas que vão à busca desta rezadeira não esquecem os seus
compromissos para com ela, nem tampouco os horários. São estritamente pontuais,
para não passar da hora de receber a reza, pois possa ser que “desande” – ou seja,
dê errado, a reza não funcione.192
Além das rezas individuais para conceder as bênçãos, dona Glória realiza
as rezas coletivas, em que se fazem presentes pessoas conhecidas e também as
que lhes são estranhas, sendo esta presença mediante um convite, para garantir um
público “selecionado”193. Para a realização dessas devoções religiosas em que se
rezam ladainhas, ofícios e orações, a anfitriã reformou outro cômodo da casa: uma
sala que tinha apenas uma janela para rua se transformou em uma capela e abriu
uma porta no lugar da janela; e em um quarto, junto a esta sala, o qual passou a ter
a função de armazenar os utensílios necessários para uma reza (toalhas, jarros,
192
193
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
Segundo ela formado por pessoas que gostem de reza.
flores artificiais,...) e para uma futura missa (cálices e livros litúrgicos), isto é, como
ela mesmo denomina como “[...] a sacristia”. Segundo dona Glória, essa decisão em
realizar as reformas na casa também foi inspirada por sonhos, através da aparição
de Nossa Senhora – Mãe Rainha. A rezadeira afirma que:
[...] a santa vei.... 05 de julho de ... 2004... Mãe Rainha....foi em
agosto de 2003...quer dizer...tá com 6 anos e estou muito alegre e
feliz, graças a Deus... Bom, essa mensage, ela vei no sonho pidir
que eu fizesse um quarto, uma sala, a sala era aqui (capela) e o
quarto é a sacristia. Que ela andava o dia todo, mas à noite ela
ficava aqui ou aonde eu fizesse e toda as 3 hora, domingo 3 hora,
rezar o teurço e a oração da mãe rainha que era pra livrar as mães,
que tem filho, de que,... que ela disse isso é a tentação da serpente
é as drogas, de assalto, de roubo, de ....assassinato. Só tira esse
negócio debaixo de oração.194
Apesar da confusão nas datas do sonho, ela afirma o tempo de existência da
capela em sua residência em oito anos195. Muitas vezes, as narrativas orais
[...] mostram-se contraditórias, conforme a entonação conferida
pelo relator, principalmente quando há observância rígida das
regras e lógicas gramaticais, sem se atentar para o teor emocional
existentes nos conteúdos das narrativas, quanto a velocidade,
pausa, pontuação, intenção, mudanças de discursos e oscilações,
que se desvelam mais pelo ato de ouvir, que de escrever196.
No entanto, não considerar tais elementos implica em
[...] equalizar o conteúdo emocional das narrativas ao nível da
objetividade das fontes escritas, desconsiderando o fator primordial
da subjetividade do expositor das fontes orais, pois estas não são
objetivas, cujas características essenciais incidem em serem
artificiais, variáveis e parciais. Fontes orais contam-nos o lado
psicológico emocional do povo, quanto não só ao que fez, mas o
que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora
197
pensa que fez .
194
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
Nas narrativas orais a temporalidade linear é falha. Muitas vezes as datas estão associadas a
eventos e acontecimentos, outras vezes se perde no tempo. Aqui, não estamos interessados na
linearidade do tempo, mas nas experiências vividas pelos entrevistados nesse tempo.
196
PORTELLI, Alessandro. O Que Faz a História Oral Diferente. Revista do Programa de Estudos
Pós-Graduação em História, n.º 14, São Paulo, 1997, p. 28.
197
Idem., p. 31.
195
A narrativa descreve a importância de reservar um local e um horário para
rezar em homenagem a mais uma santa de sua devoção e, mais uma vez, remete a
responsabilidade de suas decisões a seus próprios sonhos, como uma forma de
justificar a lógica de suas atitudes. Esse local não só é utilizado quando se faz rezas
comunitárias como a reza para Santa Bárbara, em dezembro, mas também como
espaço de oração e reflexão individual dos familiares198. A capela é organizada com
cadeiras de frente para o altar e na quantidade que couber, dependendo da
estrutura da mesma, em torno de dez. Mas, como o espaço não comporta a todos
que querem participar da referida devoção, as pessoas vão se acomodando no sofá
da sala; em pé, no corredor e na cozinha além de ultrapassar o ambiente interno da
casa alcançando o lado externo da frente da casa, preenchendo o passeio, o qual
também foi nivelado para melhor acomodar os convidados. Como mostra a imagem
abaixo:
Foto 03: Residência de D. Glória em dia de reza à Santa Bárbara
198
Irmã e sobrinhos, pois não se casou e nem tem filhos.
Fonte: Melina de O. Bittencourt, registrada em 06 de dezembro de 2009.
A partir desta foto, percebe-se, ao lado esquerdo, encontra-se o portão
que dá acesso ao “consultório”, ao seu lado, à porta central, a sala de chegada e ao
extremo direito, a porta que dá acesso a capela erguida mediante “pedido de Mãe
Rainha”199 juntamente com o passeio todo reformado, além da iluminação externa
especial para este dia de festa. E como uma exímia dona de casa e anfitriã, dona
Glória se preocupa, primeiramente, em acomodar a todos para depois iniciar o rito.
Todos precisam estar acomodados, seja sentado ou em pé, pois não há cadeiras
suficientes para todos. A rezadeira confere o posicionamento dos tocadores de
violão e percussão, bem como o microfone e a caixa de som. A partir de então,
inicia-se o rito devocional e todos ali presentes acompanham e rezam juntos.
Durante a reza, alguns participantes dormem, mudam de lugar, outros ajoelham e
participam ativamente da reza. É notório, diante de tais comportamentos, que alguns
199
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
se fazem presentes para não fazer desfeita ao convite da anfitriã, outros por
costume, mas também tem aqueles que elevam as suas orações aos santos como
maneira de agradecer e simultaneamente fazer os seus pedidos.
Vale lembrar que ao preparar a festa de Santa Bárbara, ela promove,
inicialmente, na véspera um caruru (com vatapá, galinha cozida e arroz branco) em
homenagem a São Cosme e São Damião, convidando sete crianças. No entanto,
alguns adultos também se fazem presentes, sendo que, primeiramente, o caruru e
seus acompanhamentos, como refrigerantes e doces, são servidos às crianças,
posteriormente, aos adultos. As crianças são residentes do próprio bairro e somente
depois que todas elas chegam e se sentam ao redor da toalha colocada ao chão do
“consultório” é que se recrutam as mulheres cozinheiras para ajudar a servi-las. E
enquanto elas degustam o referido cardápio, o qual é preparado especialmente para
este dia, o grupo de adultos, em sua maioria mulheres, cantam a música de São
Cosme e São Damião ao ritmo acelerado das palmas. A rapidez na alimentação,
portanto, pode ser justificada ou pelo ritmo musical ou mesmo em saciar a fome e
ganhar os doces distribuídos após a refeição. E um fato curioso é que a anfitriã e
gestora do ritual não degusta do próprio caruru, pois, segundo a mesma, “[...] não
me dou bem não”.200 Isso demonstra um outro fator importante dentro das práticas
devocionais: a alimentação tem um sentido muito maior que a sustentação do corpo.
A escolha do prato a ser servido na festa religiosa tem haver com as preferências do
santo e não com as preferências do organizador/anfitrião.
No que se refere ao campo das religiões, a alimentação tem um papel
fundamental no cotidiano de seus adeptos: permissões, proibições e jejuns são
regulações religiosas simbólicas constantemente exercidas. Flandrin e Montanari no
livro História da Alimentação, apresentam um panorama da alimentação no mundo,
desde a pré-história até os tempos atuais201. A comida nos cultos devocionais
católicos do nordeste, em especial na Bahia, está muito associada à comida de
oferendas ligadas às práticas do candomblé202, estas são algumas das
sobrevivências da cultura afro-brasileira nas celebrações devocionais de um
catolicismo popular.
200
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
FLANDRIN, J-F. MONTANARI, M. (orgs) História da Alimentação. 4 ed. São Paulo: Estação
Liberdade, 1998.
202
Para mais informações sobre o ato de comer e as práticas religiosas ver, entre outros: SOUSA
JUNIOR, Vilson Caetano. O Banquete Sagrado: notas sobre a comida e o comer em terreiros de
candomblé. Salvador: Atalho, 2008.
201
No dia seguinte, então, continua a preparação para a festa em
homenagem à Santa Bárbara. A capela é ornamentada de forma especial, pois para
dona Glória é a reza mais significativa do ano, como mostra a foto a seguir:
Foto 04: Capela de dona Glória em dia de reza à Santa Bárbara
Fonte: Melina de O. Bittencourt, registrada em 06 de dezembro de 2009.
Percebe-se nesta capela a presença de imagens de santos sobre mesas
e no interior dos santuários de madeira fixados entre a parede da capela e da
sacristia, bem como a grande quantidade de fotografias de santos como “[...] Nossa
Senhora do Monte Serrat, Mãe Rainha, Santa Bárbara, São Cosme e São Damião
[...]”203 e outras. E ao centro da parede frontal, o símbolo maior para o Catolicismo: a
imagem de Jesus Cristo crucificado. A presença de imagens promove a seus
devotos a sensação de proteção, força e graça, ou seja,
203
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
Entre a imagem e o devoto, a troca de olhares é desde o primeiro
momento determinante: ao fixar a imagem dos olhos, este último
sente-se invadido por uma presença viva, antes de encontrara em
sonho a confirmação de seu poder ativo....ficam fascinados pelo
olhar (vultus) desses personagens celestiais que parecem descer na
terra....eles se esforçam para adivinhar os sinais favoráveis à sua
prece.204
As flores também se fazem presentes neste recinto. Para os dias comuns,
as flores são confeccionadas de papel crepom ou de material reciclado, como por
exemplo, de garrafas plásticas, mas para este dia especial elas são naturais. As
velas também fazem parte do ambiente e tem função específica na ritualística,
representam a luz da fé, a qual, segundo os devotos, não deve nunca se acabar. As
paredes pintadas recentemente e a arrumação da cortina demonstram o cuidado e o
bom gosto para com o ambiente e seus rituais religiosos.
Vale ressaltar que toda essa ornamentação, segundo ela, foi ordenada
por sua mãe e pela Mãe Rainha através de seus sonhos. E para este momento de
festa em sua casa, ela planejou uma modificação na capela que foi realizada a
tempo para homenagear Santa Barbara, São Cosme e São Damião: fazer um arco
no teto, colocar cortinas brancas com laços vermelhos e pintar o teto de azul:
[...] eu num ia bulir mais em casa, quando foi a semana passada
mamãe vei me pediu que eu fizesse arcada, ‘bota pano vermelho e
branco, que o espírito santo vai ficar aqui’... e essa mãe rainha ela
vei também me pedir, foi por isso que eu fiz essa capelinha dentro de
casa.205
É através desse exemplo de dona Glória que Schimdtt nos confirma que
“[...] a possibilidade aberta pelo sonho de dar voz à cruz, ou mais tarde ao crucifixo
ou outras imagens, permitia dar ao objeto sua plena legitimação ideológica e,
simultaneamente, justificar o ato de adoração do fiel”206.
Mais uma vez as atitudes de dona Glória foram orientadas por sonhos.
Estes, por sua vez, são relatados, primeiramente à sua irmã Ana Maria, e depois
socializados a todos os indivíduos que em sua casa chegam ou quem ela encontra
na rua e, estes, se tornam reprodutores dos relatos que ouvem. E estes sonhos
204
SCHIMDTT, op. cit., p. 19.
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
206
SCHIMDTT, op. cit., p.172.
205
somente se tornam realidades pela narrativa, caso contrário continuarão como
meros devaneios, como nos afirma Schimdt “[...] Um sonho não pode ser conhecido,
não existe verdadeiramente, senão pelo relato que se faz dele”207.
A narrativa dos sonhos e seu encadeamento na comunicação oral
fortalecem a posição de liderança religiosa de dona Glória devido à valorização
destinada e repassada, inicialmente pela mesma, desdobrando-a a seus amigos,
vizinhos, conhecidos e familiares, como detentora do dom ou mérito, através da
narração de seus sonhos, de dialogar com os santos, de ser a escolhida por Deus a
transmitir as mensagens enviadas por ele. É notória a curiosidade e a sensação de
surpresa atrelada ao sentimento de respeito e obediência dos devotos que convivem
com dona Glória mediante os relatos de seus sonhos, e por isso seguem a vida, sem
titubear, através de conselhos e orientações emanados pela mesma.
O dia da festa registrada na imagem acima coincidiu com o dia em que
também se realizava a missa – ritual mais significativo do Catolicismo - na igreja
localizada em frente à casa de dona Glória, a qual também ajudou a construir,
angariando recursos através do Livro de Ouro208, por exemplo. Os devotos que se
dirigiram para a Rua do Cajueiro, na noite do dia 06 de dezembro de 2009, se
depararam com dois eventos religiosos, um popular e o outro oficial. Como não era
possível estar em dois lugares ao mesmo tempo, as pessoas precisaram decidir
onde iriam ficar. Alguns não pensaram duas vezes e escolheram a missa ou a reza
na residência de dona Glória, por motivos de afinidade com a forma do culto ou por
costume. Mas, houve situações em que as pessoas iam para a casa de dona Glória
visitá-la e parabenizá-la enquanto a missa não começava. Quando começava o culto
na igreja saiam da capela residencial em direção à missa e vice-versa. No entanto,
houve também aqueles que foram na capela apenas para cumprimentá-la e
decidiram por ficar e participar do ritual popular em detrimento da missa.
Dentre as pessoas presentes na capela domiciliar estavam iniciantes, os
quais buscavam conhecer o ritual religioso e pela primeira vez experienciar tal
momento através do convite feito pela própria anfitriã ou por algum vizinho. Observe
abaixo o seguinte convite:
207
SCHIMDT, op. cit., p. 304.
O Livro de Ouro se constitui em um caderno, forrado e confeccionado, em que um grupo de
pessoas -comissão- fica responsável em pedir ajuda financeira àqueles que podem e/ou querem
ajudar com tal propósito, neste caso com a construção da igreja de Nossa Senhora do Pérpetuo
Socorro, no bairro do Cajueiro. E, a cada contribuição, o nome da pessoa e sua respectiva doação
são anotados no referido caderno – Livro de Ouro.
208
[...] E você, pela primeira vez que eu te vi, agora fazer como o verso
que minha mãe tinha: a primeira vez que te vi fiquei te querendo bem
/ com minha boca calada sem dizer nada a ninguém / eu te convido.
.... Eu convido, minha filha. No dia 06 de dezembro, vai cair num dia
de domingo você venha, já sabe onde é minha casa, você é acolhida
pela minha porta.209
Utilizando de versos curtos e permeados de simpatia, dona Glória
relembra mais uma vez os ensinamentos de sua mãe dona Germana para convidar
aqueles os quais ela deseja acolher em sua residência para participar da festa –
reza em homenagem à Santa Bárbara e São Cosme e São Damião.
Outras pessoas, no entanto, as quais já frequentam esta reza há muitos
anos buscam agradecer a seus santos pelas graças já recebidas, bem como a força
para superar as dificuldades do cotidiano através da vivência do sagrado. Vale
lembrar que esta prática de rezar em domicílio advém de um hábito rural em que os
padres não tinham acesso fácil, então as famílias se reuniam para rezar, pois além
de serem momentos de religiosidade, eram motivos para reunir a família, os vizinhos
e amigos, que moravam tão distantes, para confraternizar. Stakonskinos reflete que
“[...] No âmbito da religiosidade popular, a devoção aos santos, procissões,
benzeduras, festas e promessas eram práticas correntes e legítimas de um
catolicismo em que os leigos assumiam posição de destaque nas atividades
religiosas,[...]”210. Logo, continua a autora,
[...] Os sacramentos que deveriam ser ministrados exclusivamente
pelo clero, substituíam as rezas das benzedeiras, [...] A iniciativa de
muitas manifestações religiosas era leiga, em parte, fruto de um
hibridismo cultural, que permitia a contínua introdução de novas
práticas de veneração e novos santos no imaginário. Essa iniciativa é
percebida na construção de oratórios e capelinhas para veneração
de santos [...]211
A construção de oratórios era frequente na maioria das casas que
abrigavam famílias católicas desde o período colonial, por mais modesta que fosse a
209
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
STAKONSKI, Michelle Maria. O caso Nolasco: reverberações da romanização da irmandade do
rosário. In: SOUZA, Rogério Luiz. OTTO, Clarícia (orgs). Faces do Catolicismo. Florianopólis: Insular,
2008. p. 160.
211
STAKONSKI, p.163.
210
casa sempre o proprietário procurava um espaço para colocar a imagem de algum
santo. Esse costume se perpetua até os dias atuais, não tão frequente e intenso
como antigamente, mas permanece promovendo a continuidade desta tradição
através dos esforços de pessoas que buscam, mesmo em tempos em que a
tecnologia invade os lares, preservar uma religiosidade considerada, por parte da
elite e da intelectualidade, como popular no sentido de diferenciar das práticas
oficiais, ou seja, a comunicação direta entre os devotos e o divino, assim como as
formas mais peculiares possíveis para manifestar essa religiosidade.
Na festa realizada por dona Glória em homenagem a Santa Bárbara e
São Cosme e São Damião, além do caruru servido na véspera e a reza, um grande
bolo é repartido simbolizando a união em um momento de confraternização, ou seja,
a comemoração pela participação de todos os presentes na reza coletiva através de
uma refeição.
Foto 05: Bolo - Reza a Santa Bárbara
Fonte: Melina de O. Bittencourt, registrada em 06 de dezembro de 2009
Por acolher uma quantidade significativa de pessoas em sua casa, uma
média de cinquenta, o bolo necessita ser grande como mostra a imagem acima,
quase alcançando o tamanho da mesa da sala. Colocado sobre a mesa forrada com
uma toalha branca feita de crochê permeada por fitas vermelhas de cetim, o bolo é
delicadamente decorado com azul e branco e generosos cachos de uva. Este foi
doação de uma padaria, talvez de um frequentador anônimo, alguém que pediu
benzeduras ou rezas. Esta sala é um dos recintos da casa que todos os seus
freqüentadores sentem a necessidade de visitar com o intuito de verificar o famoso
bolo da reza.
Assim como o bolo foi uma doação, outros itens também se inserem
neste processo. Como a preparação desta festa acontece durante o ano inteiro,
dona Glória recebe, em troca das rezas e benzeduras individuais, materiais que irão
confeccionar o ambiente da manifestação religiosa, tanto na ornamentação como na
reforma. Ela afirma: “[...] É minha filha, mas o povo coopera. Num viu agora a
sacola? É presente que o povo tá dando para o dia 06 de dezembro, dia da festa do
Espírito Santo, Cosme e Damião e Santa Bárbara [...]”212, além do cimento e areia
para fazer o arco do teto no interior da capela e o nivelamento do passeio, as
almofadas para as cadeiras, as cortinas e as fitas vermelhas que tanto foram
solicitadas em seus sonhos. Mas, também existem aquelas doações do cotidiano
como o pão para fazer as refeições matinais e noturnas, um tecido para confecção
de alguma roupa, flores para ornamentar seus altares, entre outras.
Segundo dona Glória, tais doações são realizadas espontaneamente por
seus “clientes”, os quais insistem em retribuí-la pela graça recebida com algo
material, até mesmo com dinheiro. Os atendimentos realizados por esta benzendeira
não são cobrados financeiramente e nem com outros recursos, pois como a mesma
afirma, através da narrativa de sonhos, esta condição foi mais uma imposição feita
em seus sonhos quando assumiu o ofício de benzedeira:
[...] ‘Quer vim?’ Minha filha eu, do medo que eu fiquei, eu abracei o
velho e disse: não, eu assumo. “Assume?” Eu disse: assumo. Aí ele
disse: “olhe, não cobre, se alguém lhe der qualquer coisa aceite por
amor. E se nada lhe der, se dizer assim Deus lhe pague, num se
preocupe não, o que é seu tá guardado. [...]213
Através da narrativa de dona Glória, relatando mais um de seus sonhos,
percebe-se a forma como se deu o convite, a aceitação e a condição para que a
212
213
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
Idem.
mesma assumisse o ofício que, um dia, teria sido de sua mãe. Segundo dona Glória,
aquelas benzedeiras que cobram algum dinheiro não realizam a reza de forma
verdadeira, isto é, não executam este ofício por amor ao próximo, mas por mero
interesse individual não viabilizando a realização da graça solicitada por seus
clientes. Aqui, mais uma vez, dona Glória procura se diferenciar das demais
rezadeiras, num desejo de expor uma “pureza” das suas práticas devocionais.
E durante todas as etapas de preparação e realização da festa, a anfitriã
transborda de ansiedade e alegria: “[...] minha fia enche de gente lá (gargalhadas),
do lado de lá e aqui fica cheiozinho. Tenho a alegria, tenho prazer mesmo [...]” (grifo
nosso).214O entusiasmo de dona Glória se torna aparente, durante a entrevista, ao
reconhecer o seu prestígio de rezadeira/benzedeira na cidade de Santo Antonio de
Jesus através da quantidade de pessoas que se fazem presentes em sua capela e
advindas de várias localidades da referida cidade. Esta posição de valor é analisada
por Charles Santana ao relatar a existência de momentos festivos religiosos na zona
rural de Santo Antonio de Jesus, em meados do século XX, como o que se segue:
Assim, a grandeza da festa registrava e reafirmava a posição do
organizador na sociedade local. Maior seria a consideração pelo
‘dono da casa’, quanto maiores fossem o número de pessoas
presentes, a quantidade de comida e bebida e o tempo de duração
da festividade. Em poucas palavras a festa revestia-se de poder.215
Ao promover a reza de Santa Barbara que é a mais esperada do ano,
dentre tantas outras que ela celebra, pela sua forte presença de convidados,
ornamentação e aparato musical, bem como pela confraternização após a reza
através da partilha do bolo, dona Maria da Glória reafirma junto com a comunidade o
seu poder de liderança religiosa e, consequentemente, social.
E o grande anseio desta benzedeira que ainda não foi realizado, até a
presente data, é a celebração de uma missa em sua capela. Um propósito um tanto
audacioso por exigir que as autoridades eclesiais locais ultrapassem os limites
espaciais e territoriais da religiosidade católica oficial ao pretender assumir papéis
no campo do catolicismo popular. No entanto, ela não desiste e afirma:
[...] Paro ano, se Deus quiser, vai ter a missa aqui, ou o padre
Nelson, ou o padre Antenor, ou o padre Edésio ou o padre, esse
214
215
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
SANTANA, op. cit, p. 64.
menino,... Sérgio. Tenho tudo aí na sacristia, tudo arrumado. Na hora
que ele disser “é hoje”, minha casa neste dia pára
(gargalhadas).(grifo nosso)216
A expectativa da realização deste feito é o que promove a esperança e a
alegria em dona Glória. A capela construída e recentemente reformada para
assemelhar-se a um templo religioso oficial com arco no teto, toalhas brancas,
imagens de santo e a funcionalização de um quarto como sacristia onde armazenam
os utensílios para a concretização de uma missa retrata, além da devoção popular
atrelada ao catolicismo oficial, um indício de afastamento das atividades da mesma
para com as atividades da Igreja, a qual se localiza em frente à sua casa. Percebese, ao observar a capela de dona Glória, que até mesmo a parte decorativa ela
tentou assemelhar a da igreja. Aparentemente não há tensões envolvendo os dois
lados. Aparentemente. Pois, com maior atenção vamos perceber que os silêncios de
algumas pessoas ao, praticamente ignorar as práticas de dona Glória, são
fortemente reveladores. Dona Lourdes, que desempenha uma importante função na
Igreja, desvia-se constantemente de comentar as práticas de dona Glória, sua
vizinha, como também o faz dona Nita.217
Diante da análise registrada no transcorrer do presente capítulo, percebese a presença de rituais oficiais e populares, mas em ambas as manifestações
religiosas pessoas afirmaram que já não se realiza as rezas como antigamente,
como disse dona Glória “[...] Aqui reuni muita gente ...reunia muita gente, até isso,
...num tá tendo mais aquela quantia de gente que era [...]”218.
Além da quantidade de fiéis freqüentadores, outros aspectos também
foram modificados promovendo o desânimo na liderança religiosa, bem como a
preocupação com o seu legado, pois os seus descendentes não se interessam em
perpetuar com o mesmo. Não só isso preocupava nossas entrevistadas, mas uma
possível perda de prestígio com a diminuição dos frequentadores estava entre
outros motivos causadores de suas preocupações.
3º CAPÍTULO
216
Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009.
Idem.
218
Idem.
217
REDES DE SOCIABILIDADES
3.1- As relações de poder construídas na comunidade
A manifestação religiosa seja ela popular ou oficial, proporciona aos seus
agentes produtores e reprodutores a construção de redes de sociabilidades,
diversas e numerosas, pois ao exercer a sua religiosidade através de suas rezas e
cantos de ladainhas e ofícios, o grupo social e seus visitantes compartilham algo em
comum, bem como, “[...[ajuda a criar o sentimento de um destino compartilhado,...
canto desempenha ainda,[...], uma função especificamente mnemônica[...]”219, ou
seja, o ato de cantar proporciona ao grupo uma catalisação da memória, fazendo
com que os membros destes reforcem a essência da devoção popular passada por
seus ancestrais.
As trajetórias de vida guardadas na memória de nossas entrevistadas nos
apontam as peculiaridades que só encontramos diretamente quando estamos em
contato com os sujeitos que participam desta história compartilhada. A religiosidade
afro-brasileira foi formada pelos recém-chegados ao Novo Mundo como alternativa
para construírem uma nova forma de viver e sobreviver à escravização, uma
identidade com rupturas e permanências de suas experiências e de seus ancestrais.
Tais experiências foram incorporadas, também por negros libertos, muitos dos quais,
participaram de diferentes redes sociais e religiosas.
As interlocutoras aqui registradas construíram, ao longo de suas
respectivas trajetórias de vida, peculiaridades nas relações interpessoais, tanto
relacionadas à intensidade quanto à diversidade. Todas teceram relações com
pessoas de várias localidades da cidade, de diferentes classes sociais, faixa etária e
religiosidades. Dona Glória, mais especificamente, devido a seu ofício de
benzedeira, traz em sua trajetória de vida esse conjunto de peculiaridades de forma
219
GIRAUDO, op. cit., p. 110-111.
mais completa. Algumas dessas relações se tornaram intensas a ponto da mesma
considerá-las como familiar.
A partir das redes sociais, dona Glória, dona Nita, dona Lourdes e dona
Milú alcançaram alguma forma de poder, através da liderança católica. Inicialmente
dona Glória, por ter sido a primeira catequista do bairro do Cajueiro, como afirma:
“Ensinei o catecismo 22 anos, mas quando eu estava com 11 anos de ensino, [...]” 220
- chegou ao bairro um grupo de representantes da igreja católica para mobilizar os
moradores do bairro com o objetivo de construir, principalmente, uma igreja, recebeu a seguinte proposta: “Ô Maria nós tamo aqui fiscalizando, pra vê que a
gente acolhe o povo pra mais tarde fazer uma igreja.”221 E a catequista, ao
rememorar os preparativos para a construção do templo religioso oficial, bem como
o seu esforço em testemunhar a realização de tal objetivo declara com convicção o
seu poder de liderança no referido bairro:
[...] Eu era influente, minha filha (intensidade na fala), eu não comia
não, de alegria [...] 11 de fevereiro de 62 a 63, a primeira comunhão.
E lá vai primeira comunhão e lá vai primeira comunhão e eu
acolhendo o povo depois fez uma reunião para fazer um posto, fazer
uma igreja aí eu disse: nós vamos fazer, mas o povo acolheu,
acolheu mesmo.222 (grifo nosso)
Por ser uma possível reprodutora dos preceitos e dogmas católicos, dona
Glória aparenta possuir a atenção e respeito da maioria dos moradores do bairro na
época. E como a mesma intensificou a sua influência nas atitudes daqueles
indivíduos que a cercavam, auxiliou, juntamente com um grupo de pessoas, a
angariar materiais de construção bem como recursos financeiros para erguer a igreja
e ao seu lado, anos mais tarde, um posto médico anexado a outra estrutura física na
qual funciona, até os dias atuais, uma escola.
Por sua personalidade alegre e decidida, além da formação religiosa, foi
escolhida pelo representante oficial da paróquia para ser a detentora da chave da
igreja monitorando a chegada e a saída de pertences e de pessoas, bem como a
utilização do templo sagrado para outros fins, além dos ritos missais. Passados
alguns anos esse cargo foi entregue a dona Nita, pois dona Glória, afirma que
220
Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010.
Idem.
222
Idem.
221
entregou o mesmo espontaneamente223. A fala dela demonstra uma certa
insegurança e vontade de não continuar com aquele assunto que, parece, lhe
perturbar bastante. Isso nos leva a questionar se realmente ela teria “entregue” as
chaves da igreja ou elas lhes foram tomadas. Caso ela tenha perdido a confiança do
poder eclesiástico, um dos motivos prováveis é o fato dela manter o ofício de
benzedeira, o que, na maioria das vezes, o poder eclesiástico não aceita, por ir de
encontro a certos dogmas da Igreja. Seja lá como for, a perda das chaves, de certa
forma, foi a perda de um poder que ela possuía.
Após um pequeno período de tempo como a responsável pelo templo,
por problemas de saúde, dona Nita passou a responsabilidade para dona Lourdes
que permaneceu no ofício até sua morte, em janeiro de 2011. Além deste poder
dona Lourdes também exercia outro tipo de liderança religiosa: ministra da eucaristia
- representante do sacerdote do Catolicismo.
Estas lideranças, Glória, Nita e Lourdes, exerciam também a função de
nortear
a
vida
daqueles
que
as
procuravam
pedindo
alguma
graça,
aconselhamentos ou apenas para uma conversa. Isso aconteceu devido à
respeitabilidade que as três passaram a ter no seio da comunidade. Mesmo
recebendo pessoas de diversas classes sociais e de diversos bairros, elas
confessaram que a grande maioria dos que as procuravam eram “iguais a gente” 224,
ou seja, pobre, negro e morador das imediações do Cajueiro. Não há dúvidas que
elas concentravam um poder com vínculo maior junto à sua “comunidade”.
O poder de assombrear a vida das pessoas pelos seus ensinamentos
está relacionado, mais diretamente, com dona Lourdes - por ter a sua trajetória de
vida valorizada por familiares, amigos e vizinhos - e dona Glória pela narração de
seus sonhos, considerados como profecias por aqueles que a admiram, assim como
por sua atividade de benzedura e o atendimento aos pedidos, os mais diversos, por
aqueles que a procuram. Este perfil é “[...] uma qualidade pessoal considerada
extracotidiana [...] e em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou
qualidades
sobrenaturais,
sobre-humanos
ou,
pelo
menos,
extracotidianos
específicos [...].”225
223
Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010.
Idem.
225
WEBER, 1991, p. 58-159 apud Zanotto, 2009, p. 115. ZANOTTO, Gizele. Ortodoxias, Heterodoxia:
os tênues limites da religiosidade católica na TFP. In: ISAIA, Artur Cesar (org). Crenças, Sacralidades
e Religiosidades. Florianópolis: Insular, 2009.
224
Dona Glória, a qual afirmou que era “influente” e se sentia feliz ao realizar
atividades na/pela igreja precisou se afastar, pois houve desavenças no grupo
social, do qual era membro. Ela justifica esse afastamento dizendo: “[...] a senhora
sabe que a pessoa que trabalha em comunidade226, que tem comunidade que não
compreende comunidade. Nisso eu fui diminuindo, me saindo, mas sempre o povo
afirmando a fé[...]”227. Nesta narrativa percebe-se a seleção minuciosa da fala – o
silêncio que nos fala - para que não proclamasse quais foram as reais situações
que se tornaram incompreensíveis e intoleráveis pelos membros do grupo social a
qual esta pertencia e nem apontar os responsáveis pela instabilidade grupal. Mais
adiante ela continua:
O povo vai olhando e dizer: ‘quanto fulano que trabalhou tanto, o
povo tá assim e eu?’ Vai se saindo, vai se saindo, se saindo, se
saindo, quando vê... . É o caso que se dá na religião, na comunidade
é isso. [...] que foi que ele (Jesus) disse: eu vos envio dois a dois
aonde chegarmes se ninguém apoiar, a pessoa não ixista sacuda
poeira dos pés... em protesto daquele que não deu lida. É o caso da
comunidade hoje, porque existe tanta leis, por qualquer espinho que
Deus toca já aquela lei católica já não presta mais e vai pro
protestante e agora cadê, [...]228 (grifo nosso)
É percebido, nesta fala de dona Glória, mágoas causadas pelos conflitos
no interior de seu próprio grupo sócio-religioso. Ela que trabalhou intensamente,
juntamente com uma comissão, para a construção da igreja e do posto médico, a
ponto de ser exemplo de liderança religiosa para outras pessoas do bairro, se
desapontou com as atitudes de determinadas pessoas e afastou-se das mesmas e
de outras atividades oficiais do catolicismo, inclusive da função de zeladora da igreja
sendo substituída por dona Nita. A partir desta sua atitude, é provável que ela tenha
se distanciado das práticas católicas mais ortodoxas, exercitando com mais
intensidade práticas devocionais do catolicismo barroco.
Outro resultado dessa exclusão foi o descarte de lembranças materiais
guardadas na residência de dona Glória, a qual passou a não se importar mais com
226
Para a narradora, comunidade significa grupo de pessoas que possuem as mesmas atividades
religiosas e moram ou não no mesmo bairro.
227
Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010.
228
Idem.
os registros fotográficos e escritos (correspondências, listas das crianças
catequizandas, entre outros) que tinha em casa desde o tempo em que lecionou o
catecismo até o momento em que se afastou dos trabalhos mais ligados aos rituais
oficiais e passou a criar ou recriar seus próprios ritos e celebrações. Ela conta que
chegou ao ponto de rasgar parte da documentação, das lembranças que possuía
daquele tempo de liderança da Igreja. O que não foi jogado fora não foi conservado
da maneira mais adequada permitindo que a umidade da chuva originadas no
telhado da casa os destruíssem. Esse comportamento caracteriza a necessidade,
consciente ou inconsciente de pessoas sobre fatos que são considerados ruins e
que não querem rememorar e nem passar adiante.
Por conseguinte, existem nas lembranças de uns e de outros zonas
de sombra, silêncios, "não-ditos". As fronteiras desses silêncios e
"não-ditos" com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente
não são evidentemente estanques e estão em perpétuo
deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também
de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar
uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se
expor a mal-entendidos.229
Mas, a destruição de lembranças materiais não compromete os
fenômenos mnemônicos, pois nesta esfera do psíquico só será sanado o problema
quando a pessoa souber conviver com os fatos do passado.
Após a narração dos maus momentos vividos, dona Glória enaltece as
atividades religiosas da época como forma de saná-los com os bons: “Mas aqui eu já
vi boniteza: leilão, o povo tudo cooperava com Zé Raimundo230 era, ...e comigo
também. Toda vida o povo gostou de mim. Agora a gente vai ficando velho, ...mas a
minha igreja, deixei a de lá, mas aqui eu vou te apresentar...”231 e nos convida a
conhecer a capela que construiu dentro de sua própria residência.
Essa decisão em abandonar a igreja e montar o seu próprio recinto
sagrado no interior de sua residência serve para nos atentar a tamanha
desestabilização entre os laços afetivos formados neste grupo sócio-religioso. Nesse
contexto, muitas das relações tecidas ao longo dos anos se remodelaram, se
229
POLLACK, op. ct.,p. 3-15.
José Raimundo Galvão – pároco de Santo Antônio de Jesus à época.
231
Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010.
230
aprofundaram e outras se tornaram mais frágeis à medida que aconteciam os
conflitos interpessoais. Segundo Gomes, várias são,
[...] as opiniões religiosas [...] sobre a busca de sentido para a
existência, mas à têm igualmente sobre os comportamentos,
ordenando toda a vida do homem crente, inclusive suas práticas
sociais, as religiões são também lugares relevantes dos conflitos
sociais. Assim sendo, no campo religioso é simultaneamente lugar,
produto e fator ativo daqueles conflitos.232
Conflitos também existiram no meio social religioso ao qual dona Milú
participava. Ela, de integrante do Apostolado da Oração – tradicional grupo católico
– passou a ser, dois anos mais tarde, a diretora do grupo e relembra com muita
emoção na fala essa fase de sua vida em que o trabalho religioso e as amizades
foram criadas e fortalecidas pela união e solidariedade entre os seus membros: “[...]
foram os dias mais belos de minha vida, ...mais gostoso, ...mais feliz, ... foi naquela
época...de apostolado da oração, que eu trabalhava.” 233 Na presente narrativa, os
intervalos da fala revelam a alegria em rememorar os bons momentos vividos e,
simultaneamente, o sentimento de que poderá não existir tempos tão proveitosos
originados pela rede de sociabilidades. Como exemplo de positividade nas relações
interpessoais dona Milú se recorda, com a fala engasgada e os olhos lacrimejando
de emoção, alguns acontecimentos que revelam as péssimas condições financeiras
de membros do grupo, bem como o espírito de companheirismo e solidariedade que
o mantinha coeso. A seguir um diálogo traçado entre dona Milú e uma componente
do grupo pastoral, em dia de festa:
[...] ‘Ô gente, eu não tive nada pra trazer.’ Eu disse: Tome vergonha,
entre, você é irmã, é filha do coração de Jesus ou não é? Você não
considera a gente como irmã não é, rapaz? ‘Mas, ô gente eu tenho
tanta vergonha, todo mundo entrando com a bandejinha e eu ...’ cala
a boca, você está entrando com seu coração aí aberto. Vá pra lá,
vambora. 234
232
GOMES, Francisco José Silva. A religião como objeto da história. In: LIMA, Lana Lage da Gama et
al(org). História e Religião. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2002, p.17.
233
Dona Milú, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
234
Idem.
E continuou com outro fato corrido em uma confraternização de final de
ano:
[...] Teve uma velha, que a gente fez um amigo secreto, que tava
chorando, chorando... e perguntei: porque a senhora tá chorando?...
‘Porque eu num posso entrar no amigo secreto...eu num posso dona
Milu... quem sou eu? Onte num tive um tostão pra comprar nem de
sal e eu para entrar no amigo secreto eu tenho que comprar qualquer
coisinha, como é que eu posso?’ Aí eu disse: Olhe tome jeito ...eu
quero domingo você aqui ...Aí Bárbara disse: ô mulher tome juízo,
você vem. E Cecília também disse: o que é que está faltando filha?
‘Uma lembrancinha, eu não tenho nem o que fazer feira...’ Cecília
disse: você vem, vai dançar, comer e beber aqui com a gente, o
grupo não pode desunir não. Se sair um como é que fica?....Aí eu
falei: enxugue esse pranto, vá pra casa e no domingo é pra tá aqui
com a gente. E saiu nós tudo dando risada e ela saiu alegre.235
A narrativa de dona Milú pretende apresentar o seu poder, sua liderança
diante do grupo. O auxílio mútuo e as redes de solidariedades estão presentes,
porém, não de forma desinteressada, segundo a interlocutora. Mesmo de forma
inconsciente o que as pessoas buscam na organização de tais redes, no
fornecimento de auxílio ante às necessidades apresentadas por membros de um
mesmo grupo, é o reconhecimento deste grupo e a consolidação de sua liderança, a
qual muitos se esforçam para perpetuá-la, seja de forma oficial ou não.
Estas redes de solidariedade eram formadas com ações do cotidiano e
que buscava proporcionar a seus membros o sentimento de pertencimento a um
mesmo padrão de crenças e normas sociais. Outros feitos do Apostolado da Oração,
durante o período que dona Milú esteve na liderança foi realizar visitas ao abrigo dos
velhos, presídio e hospital da cidade de Santo Antonio de Jesus levando cestas
básicas e lanches “pra merendar lá com eles”236. Ao comungar desse momento
juntos, o grupo religioso e o social, se conectam, pois não se comia apenas, mas
cantavam, rezavam e contavam casos uns aos outros, sociabilizando as suas
alegrias, tristezas, esperanças e temores.
Essas atividades atreladas ao universo religioso de dona Milú
provavelmente são resquícios de grupos religiosos como as irmandades, as quais
tradicionalmente, desde os tempos coloniais, se preocupavam com os seus
membros. Fazer parte de uma irmandade era o desejo da grande maioria das
235
236
Dona Milú, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
Idem.
pessoas, em especial escravos e libertos, até o século XIX. Com a participação em
irmandades poderia se garantir uma ajuda para alcançar a liberdade, no caso de
escravos e libertos, para auxiliar na doença ou mesmo dar um sepultamento digno.
Destas práticas muitas permaneceram e outras se adaptaram aos novos tempos, em
especial por conta da perda de prestígio das irmandades leigas no século XX, e sua
substituição pelas “pastorais”237.
A origem das irmandades religiosas ocorre no período medieval a
partir do modelo das corporações de ofício, que atendiam aos
interesses de seus integrantes, mas tinham também como objetivo a
assistência mútua a seus membros. Enquanto as corporações
limitavam o seu auxílio aos próprios membros, as irmandades eram
formadas por leigos, sem restrições de qualificação profissional e, até
mesmo, sem distinção social.238
Essas instituições eram regidas por um estatuto, o compromisso, que
deveria ser endossado pelas autoridades eclesiásticas e pelos monarcas. Nele
estavam contidos os objetivos da irmandade, o seu funcionamento, as obrigações de
seus membros, assim como os direitos adquiridos ao se tornarem membros dessas
associações. As irmandades tiveram o seu apogeu na época colonial e ainda se
destacavam no período imperial. Elas conservaram muitas das práticas que hoje
fazem parte das chamadas devoções populares e que já tratamos alguns desses
aspectos nos capítulos anteriores. Porém, na segunda metade do século XIX e sob
influência do catolicismo romanizado, este tipo de associação foi marginalizado e,
aos poucos substituído por outras formas de organizações, mais coerentes com os
princípios do catolicismo ultramontano.239
Num exemplo de reelaboração das práticas das antigas irmandades, dona
Milú conta que realizava visitas aos membros ou conhecidos do grupo religioso que
estavam doentes para atualizar ao enfermo as decisões tomadas nas reuniões e
“[...] se morria alguma do Apostolado, a capela o apostolado dava e a gente avisava
a todos...e o apostolado tava constante ali o grupo [...]”240.
237
Organismos oficiais da Igreja que são responsáveis em pregar os dogmas em diversos setores da
sociedade: família, juventude, criança, etc.
238
QUINHÃO, Antonia Aparecida. Irmandades negras: outro espaço de lutas e resistências - São
Paulo 1870-1890. São Paulo: AnnaBlume, Fapesp, 2002. p.26.
239
QUINHÃO, op. cit, p. 27-56.
240
Dona Milú, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
Como em todo grupo social, apesar das afinidades que o une, existem
também os conflitos. Dentre estes, muitos são superados enquanto outros deixam
marcas nas pessoas promovendo o afastamento das mesmas. Como um fato que
dona Milú nos relata:
[...] aí na sexta-feira, tinha a reunião após a missa. Aí quando ele (o
padre) falou que eu opinindo da roupa teve gente da socity e o
pessoal da socity tem essa coisa que vai levar, meu deus,... quando
morrer vai levar, porque não enxergou, ainda não compreendeu, ...
ainda é uma mania de menosprezar os outros, é uma mania de
querer pisar nos pobres, nos mais velhos, nos pretos, nos mais
humildes. Aí quando falou em trocar essa roupa foi uma guerra
dentro daquele salão, foi uma guerra. O pessoal da socity, essas
branquinha tirada a mé com terra, disse que não ia vestir branco ...
teve uma branca aí que jurou não mudar e não mudou mesmo.
Continuou caminhando, mas toda de branco não. E trabalhando no
grupo de jovens a branquela me chamava de mulher do padre [...]241
(grifo nosso)
Ao assumir a direção do grupo religioso, dona Milú afirma que planejou a
utilização de um uniforme para melhor identificar o grupo em eventos e viagens que
faziam, pois “[...] era muita gente, cerca de trezentas pessoas,... parecia mais uma
salada [...]”242.
O aparente descaso da “branquela” pelas decisões tomadas por dona
Milú, podem ter por detrás da discussão sobre a roupa a ser utilizada pelo grupo um
conflito mais sério e profundo: de relações raciais e sociais. Uma das possíveis
causas deste conflito pode estar no fato de a liderança de um grupo religioso, o mais
tradicional da igreja católica do século XX, ser dirigido por uma mulher negra e
pobre. Os grupos e movimentos como o Apostolado da Oração, Legião de Maria e
Congregação Mariana, são reelaborações das antigas irmandades. Estes grupos e
movimentos começaram a se espalhar no Brasil no meado do século XX, passando
a reunir a elite local. Geralmente, nas igrejas, assim como as irmandades do período
colonial e imperial, esses movimentos e grupos passaram a possuir lugares
reservados, bem como, nas procissões, lugar de destaque. Desta forma, não é de se
estranhar que, mesmo após a abertura destes grupos para pessoas de outras
classes sociais, ainda ocorram reações de desprezo ou afastamento.
241
242
Dona Milú, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
Idem.
Também é possível que as reações tenham sido, especificamente contra
a roupa que dona Milú queria implantar como “fardamento”: roupa branca.
Tradicionalmente a roupa branca é vestida às sextas-feiras por adeptos das religiões
de matriz africana243. Na Bahia, este costume se popularizou até mesmo entre
pessoas de outras religiões. A sexta-feira é o dia que, na igreja católica se celebra o
Sagrado Coração de Jesus, padroeiro do Apostolado da Oração. Assim, vemos uma
ressignificação das vestes brancas junto a este grupo da Igreja Católica.
O termo utilizado pela diretora do grupo para identificar a classe social
daquelas que desempenhavam esse tipo de comportamento – “socity” – revela o
distanciamento formado no interior do grupo entre alguns membros, sendo uma
relação superficial, de tolerância apenas, como também a outra designação – “mé
com terra”244 – viabilizando
a idéia de que tais membros em nada contribuíam
verdadeiramente para o crescimento e fortalecimento do grupo. Dessa forma, se
afasta a ideia de homogeneidade dentro de irmandades e grupos religiosos e revela
uma intensa, porém escamoteada, disputa por poderes.
A construção das identidades se desenvolve em dois níveis que, embora
imbricados na realidade, podem ser desmembrados em planos distintos de análise.
Expressam, simultaneamente, estratégias organizativas, que definem o jogo de
alianças e oposições como respostas às circunstâncias externas, e a afirmação de
uma lógica classificatória, capaz de servir como "mapas cognitivos", permitindo aos
atores sociais apreenderem as realidades vivenciadas dentro de um sistema dotado
de sentido. Isso significa que os processos de identificação coletiva, de constituição
de identidades sociais, devem ser apreendidos em seu aspecto relacional, na
medida em que expressam, ao mesmo tempo, o modo de se representar, tanto
quanto um modo de representar a realidade, fornecendo respostas tanto a "o que
somos?" quanto a "onde somos?". São, portanto, escolhas estratégicas através das
quais os indivíduos estabelecem relações com a realidade circundante e atuam
sobre ela, ordenando-a de modo particular.
Ao constituir uma determinada forma de identificação, o grupo não o faz
aleatoriamente, mas busca responder positivamente às necessidades de articular os
interesses coletivos e de se afirmar favoravelmente ante determinada realidade, bem
243
Para entender mais sobre costumes e práticas das comunidades afrodescendentes ver:
SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção
cultural negra do Brasil. Salvador/Rio de Janeiro, Edufba/Pallas, 2004.
244
Dona Milú, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
como estabelecer uma rede solidária de valores e referências comuns. Deriva daí a
não substancialidade das identidades, seu caráter relacional. Erigir uma identidade
coletiva não significa nomear um conjunto de atributos que são próprios, imanentes
ao grupo, e que corresponderiam a alguma substância que lhe fosse inerente, mas
eleger um corpo de sinais, em meio às inúmeras possibilidades abertas, capazes de
realizar a demarcação, capazes de definir, operando por contrastes, a lógica da
distinção e o sentido de pertencimento245. A escolha dos sinais distintivos depende.
Portanto, do "outro" ante o qual a diferenciação se faz necessária e com o qual se
estabelece uma relação significativa. É nesse sentido que Manuela Carneiro afirma
que se trata de "buscar o que é operativo para servir ao contraste"246.
Com o passar do tempo dona Milú foi substituída, na função de diretora
do grupo por pessoas mais jovens, e que, ao longo dos anos, trouxeram consigo
inovações que não agradaram muito a ela, como revela: “[...] aí foram chegando
esses jovens cheios de moda, de coisas novas e acabou. Ninguém tem mais aquele
costume[...] foi chegando a turma jovem e foi mudando, mudando[...] eu não sei a
função hoje do apostolado[...]”247. A afirmação da entrevistada mostra um
distanciamento do grupo ao qual pertenceu ativamente durante longos anos
provocado, talvez pelas “mudanças” as quais, agora ela, aparentemente não
aceitou. O que está em jogo dentro dos grupos, irmandades e demais associações,
como em todo ajuntamento humano é a questão de poder. Ao perdê-lo, o ex-líder
passa a ocupar um espaço de crítica e oposição.
De uns anos pra cá só vi o Apostolado, um grupo grande, na morte
de meu marido [...] e na morte de seu Aurelino, [...]. Mas, também
morreu uma criatura, uma velha, [...] mais velha que eu no
apostolado, manheceu o dia, acharam morta. Me avisaram pra aqui,
eu fui, paguei até coisa do carro, paguei até taxista, e eu vi seis
pessoas do apostolado,[...] e mais distante quem tava sou eu. Achei
aquilo um absurdo, cadê o apostolado da oração[...] e muitas morre
aí e eu não sei [...] morre e num tem mais aquele cuidado de avisar
as outras que não sabem que tá distante.248
245
"Os traços que são tomados em conta não são a soma de diferenças 'objetivas', e sim somente
aquelas que os atores mesmos consideram significativas". BARTH, Fredrik. Introducion. In: Los
Grupos Étnicos y sus Fronteras. México: Fondo de Cultura Económica, 1976, p. 15.
246
CUNHA, Manoela Carneiro da. Etnicidade: Da Cultura Residual mas Irredutível. In: Revista de
Cultura e Política, v. 1: 35-39, 1979, p. 36.
247
Dona Milú, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
248
Idem.
O desapontamento de dona Milú está relacionado ao progressivo
desaparecimento, ou remodelação, das redes de solidariedade, às quais ela
considerava importante instrumento de manutenção da unidade do grupo. Pelos
depoimentos prestados pela entrevistada e transcritos ao longo deste capítulo
podemos perceber algumas das funções daquele grupo: prestar auxílio e visitar os
doentes e moribundos, participar de enterros de procissões, etc., na verdade
obrigações semelhantes às das antigas irmandades do Brasil até o século XIX 249.
As redes de solidariedade ficam mais claras no âmbito das relações
femininas em função do espaço tradicionalmente ocupado por elas. Os nascimentos,
a “doença”, a preparação das festas e a morte se desenrolavam em espaços onde o
domínio do feminino era mais perceptível: nos quartos, na cozinha e no pátio. A
necessidade de comunhão de esforços nessas situações revela a permanência de
mecanismos de assistência que se estabeleciam na vida comunitária brasileira
desde longo tempo250.
A partir de conflitos, então, a rede de sociabilidades é constantemente
remodelada por seus produtores proporcionando, consequentemente, alterações
nas formas de devoção. O desapontamento por parte de dona Milú é nitidamente
perceptível ao narrar o descaso com a morte de uma integrante do Apostolado da
Oração. Nas entrelinhas, a mesma revela que o perfil e exemplo do líder é o que
engendra as atividades grupais. A partir então dessas mudanças e de comentários
que ouvia dos mais jovens sobre as mais velhas a fez tomar a decisão de se afastar
do convívio diário com o grupo, mas tem a convicção de que:
[...] do Apostolado da Oração ninguém vai me tirar, só se eu quiser,...
mas num vô querer me desligar de Deus, num vô querer me desligar
do coração de Jesus. E continuo sendo essa pessoa do apostolado
da oração com muito amor e muito carinho....251
Essa disposição afetiva em relação ao pertencimento ao grupo religioso,
mesmo estando parcialmente distante, permanece viva devido à busca constante da
memória por lembranças de bons momentos e da teia de relações construídas ao
longo de sua trajetória de vida a partir da vivência em grupo.
249
Sobre as irmandades negra nos séculos XVIII e XIX ver: REGINALDO, Lucilene. Os rosários dos
angolas: irmandades negras: Experiências escravas e identidades africanas na Bahia
Setecentista.Tese de Doutorado em História. Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2005.
250
Ver: PRIORE, 1997.
251
Dona Milu, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
A identidade formada, portanto, tanto em dona Milú quanto entre os
membros que compuseram o grupo religioso na época em que a mesma exercia a
função de diretora, não se desfez, apenas ficou latente, pois ao se reencontrarem
em algum evento do Apostolado da Oração, os sentimentos de amizade e
cumplicidade são reavivados, como ela narra, de forma emocionada:
[...] E quando a gente se encontrou no encontrão no São
Benedito?...Mas menina, gente que trabalhou comigo que hoje tá
(residindo) no (bairro do) São Benedito, São José... mas foi tanto
abraço, foi tanta coisa, a gente chorava, a gente sorria, e o padre...
ele disse: que coisa bonita é ver vocês, eu tive que parar pra ver
essas véia tudo chorando, me atrasando, umas chora, outras da
risada, rapaz eu queria ver vocês embolar e cair tudo... eu ia passar
por cima. (risos).252(grifo nosso)
Esse reencontro de mulheres que conviveram intensamente através das
atividades religiosas e sociais trouxe a tona, para as mesmas, lembranças de
acontecimentos vividos individual e conjuntamente, lembranças que nem sabiam
que possuíam. No entanto, no calor das emoções, tinham a convicção de que
momentos como aqueles vividos ha anos atrás não viveriam novamente e que o
sentimento de pertencimento a um determinado grupo e suas identidades perduraria
até os dias atuais devido a intensidade e profundidade com que teceram essa rede
de sociabilidades.
Um reencontro, portanto, proporciona a seus agentes a alegria e a
emoção por exercitar a memória coletiva a partir das seleções, (in)voluntárias, da
memória de cada indivíduo. Segundo Halbwachs,
Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por
outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos
envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque
jamais estamos sós. [...] Uma ou muitas pessoas juntando suas
lembranças conseguem descrever com muita exatidão fatos ou
objetos que vimos ao mesmo tempo em que ela, e conseguem até
restituir toda a sequencia de nossos atos e nossas palavras em
circunstâncias definidas, sem que nos lembremos de nada de tudo
isso.253
252
253
Dona Milu, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
HALBWACHS, op. cit., p. 30-31.
Algumas entrevistas aqui coletadas aconteceram de forma coletiva. Por
vezes, enquanto as narrativas estavam sendo gravadas chegava alguém e ficava
ouvindo, participando e colaborando com a memória do narrador principal. Como
aconteceu com dona Glória ao receber as varetas para tocar o timbal no dia da festa
de Santa Bárbara, “Aqui é pra o tamborim, pro tambor ...tá vendo Nole
(gargalhadas)... Chegou na hora, hein Nole,... na hora certa.... Ave Maria, fazer as
coisa se ela não tiver (varetas) ....”254(grifo nosso)
255
. Buscando a confirmação do
que estava sentindo dona Glória remete-se à amiga, quase uma familiar, pois
transita pela residência sem precauções e se senta para ouvir as histórias de dona
Glória.
De forma semelhante se deram as entrevistas na casa de dona Milú, com
o acompanhamento, quase frequente, de sua filha Assunção que, sentada próxima à
mãe, a auxiliava com tolhas para enxugar o suor do forte verão santoantoniense e
as lágrimas que por vezes teimavam e cair. Assunção, ainda, ajudava a mãe na
recordação dos fatos narrados e, principalmente, os nomes das pessoas, visto que
dona Milú se justificava dizendo que “a memória está ficando fraca”256.
3.2 - As novas tendências devocionais
As
redes
de
sociabilidades
formadas
pela
religiosidade
são
constantemente remodeladas por seus membros ao longo do tempo proporcionando
alterações nas formas de devoção. Desde a devoção característica da população
rural até a sua coexistência com a urbanização percebe-se mudanças,
permanências e reformulações na manifestação de fé, porém, a conexão com o
sagrado e com o outro permanece inserido como identificação grupal.
254
Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010.
Destaque em itálico da autora para enfatizar a intensa alegria que aflorou no semblante de D.
Glória ao chegar em suas mãos o objeto que fornecerá o ritmo percussionista para a reza, ou seja, a
alegria para entoar os cantos.
256
Dona Milu, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
255
Os conflitos gerados no grupo religioso, atrelados às mudanças inerentes
a uma geração de descendentes vinculadas a tecnologia e aos valores da
modernidade permitem que a individualidade, a busca pela potencialização
profissional e a constante luta pela sobrevivência daqueles indivíduos menos
favorecidos financeiramente tornem-se prioridade em suas vidas, alterando as
formas de viver a religiosidade, no caso, o catolicismo.
Um sintoma de descaso é percebido por dona Lourdes em relação a
religiosidade quando esta realizava as rezas em casas de família, mediante convite,
como ela nos relatou: “[...] A gente chega pra rezar nas casa e tem pessoa que não
tem nem a coragem de participar e nem sequer desliga a televisão e nem abaixa o
som, fica vendo novela..., jornal...., não respeitam mais.”257
As mudanças de percepção religiosa também foram percebidas por dona
Glória ao fazer uma rápida retrospectiva da vivência em grupo durante os rituais
religiosos: “Muita coisa boa já vi ali,... alguma coisa eu alembro e outra não, mas
desanimado está, mas um desânimo,... a finalidade (causa) é a falta de oração.
Porque quem segue a Jesus Cristo não pode deixar de bater o lábio [...]” (grifo
nosso).258
Esta geração que pratica a sua religiosidade e a coloca como prioridade
em suas vidas desencadeiam nas narrativas as visões de mundo herdadas por seus
antepassados, as quais não devem ser única, pois
[...] A religião, assim como a magia, permitiriam pensar como as
representações sociais tornam possível a vida coletiva, não só por
darem uma inteligibilidade às relações, mas por criarem e serem
recriadas por práticas e rituais que reafirmam a existência da
sociedade...as representações informam e criam a vida social, mas,
por isso mesmo, não são imutáveis e não compõem uma estrutura
rígida da qual os indivíduos não podem libertar-se.259
Ao conviver coletivamente, os atores sociais formam as suas identidades
e as reafirmam a cada momento de religiosidade. Com a desintegração e
257
Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010.
259
LIMA, Antonio Carlos de Souza. VIANNA, Adriana de Resende Barreto. História, antropologia e
relações de poder – algumas considerações em torno de saberes e fazeres sobre o social. In:
MALERBA, Jurandir (org). A velha história: teoria, método e historiografia. Campinas/SP: Papirus,
1996, p. 141.
258
reformulação dos grupos religiosos nesta pesquisa mencionados, seja por morte,
velhice, afastamento de seus respectivos membros, os costumes estão igualmente
sendo reconfigurados. Segundo Hobsbawn e Ranger260, a tradição está intimamente
atrelada às mudanças dos costumes, ou seja, à medida que o tempo passa, de
acordo com as transformações econômicas, sociais e políticas os costumes da
sociedade vão se reconfigurando e adaptando-se às novidades. A este processo, os
autores denominam de invenção das tradições:
Em suma, inventam-se novas tradições quando ocorrem
transformações suficiente amplas e rápidas tanto do lado da
demanda quanto da oferta....Houve adaptação quando foi
necessário conservar velhos costumes em condições novas ou usar
velhos modelos para nos fins.261
Os “velhos costumes” ainda estão sendo conservados por poucos,
mesmo diante de tanta alteração no cenário social, ou até mesmo reelaborados. A
partir do catolicismo popular vivenciado pelas narradoras das fontes orais, é possível
perceber o destaque de uma opinião em comum a todas elas: que as manifestações
religiosas estão se enfraquecendo, tanto em quantidade quanto em qualidade. E
aqueles(as) que lutam para que esse legado dos “velhos costumes” não desapareça
de vez ficam apreensivos pela geração atual, que em sua maioria, segundo as
entrevistadas, não quer se responsabilizar por compromissos que não sejam
vinculados ao estudo, trabalho ou lazer. Mas existem aqueles poucos jovens que
tentam exercer a religiosidade quando tem tempo, ou seja, depois de cumprir com
as atividades escolares/universitárias e do trabalho.
A participação dos jovens na religiosidade remete a inserção de
novidades, elementos que os mais velhos não acompanham por não ter o mesmo
ritmo e por não concordar que o novo, o qual é revestido de muita euforia,não
concordando que este seja o caminho ideal para o exercício de sua religiosidade,
como confessa dona Milú:
[...] aí foram chegando esses jovens, cheios de moda, de coisas
novas e acabou....ninguém tem mais aquele costume de toda
primeira sexta-feira do mês ir no abrigo, de fazer cesta básica, pra
levar pra o abrigo, de fazer esse negócio, pra levá, pra fazer festinha
260
261
THOMPSOM, op. cit., p.13-24.
Idem, p.18.
lá
com eles.... a gente fazia embaixada (viagem/excursão)
continuado alugava esses ônibus da Transramal,... a gente foi pra
Amargosa ,Lage, Mutuípe, São Miguel, a gente foi pra Milagres de
Brotas várias vezes. Quando tinha ordenação de algum padre ia
naquela festa, naquela alegria.262 (grifo nosso)
A partir da sucessão de lideranças das atividades pastorais passaram a
acontecer de forma esporádica ou como dona Milu afirma com tristeza: “acabou”. Os
jovens, na narrativa, citados pela mesma, permitiram que o trabalho, que servia
tanto para os outros como para os componentes do próprio grupo para unir, alegrar
e fortificar a identidade de pertencimento ao grupo, construindo as redes de
solidariedades que, mais uma vez, o depoimento destaca, fosse substituído por
outras atividades que nem mesmo dona Milu soube informar. Assim, ela informa que
não tem o conhecimento da função religiosa e social atual do grupo. Talvez, com o
fim, ou sensível diminuição, das práticas solidárias, de apoio mútuo, do Apostolado
da Oração, dona Milú tenha perdido o interesse de acompanhar de perto as
atividades do mesmo, resumidas às práticas devocionais “intramuros” da igreja, o
que, para muitos devotos não é o bastante. Outra causa pode estar relacionada a
uma possível perda ou ofuscamento do poder exercido pelos membros mais antigos
do grupo, que, pelo depoimento da narradora, parecem ter se afastado
progressivamente da linha de frente.
Dona Lourdes também relatou a ausência dos jovens nos momentos de
reza refletindo a sua preocupação na possibilidade remota de reposição dos atores
sociais para a realização dos “velhos costumes”:
[...] pra lhe ser sincera, aqui mesmo na comunidade não tá tendo
mais, por que..., vamo dizer assim..., as pessoas de mais idade...,
uns já morreram, outras já não tão guentando mais o pique e os
jovens não se aproxima..., Apesar dos estudos de hoje em dia, as
coisas que o mundo tá oferecendo..., que eles não tão assim muito
ligados nas coisas de Deus, não são todos né? Quando tem festa do
mundo, na rua, como o povo chama, como eles tem aquele
entusiasmo de ir? E porque pra rezar sempre tem dificuldade..., não
querem compromisso.263
262
263
Dona Milu, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011.
Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009.
Esse desabafo de dona Lourdes reflete a sua preocupação tanto com o
destino dos jovens bem como com o das devoções, o qual está se direcionando para
uma nova vertente.
O ofício de dona Glória de rezar e benzer, como forma de perpetuar o
legado de sua mãe; e construção da capela em sua própria residência como forma
de ter a sua privacidade religiosa, onde as pessoas que ali iriam freqüentar
hesitariam em criticá-la, pelo menos no interior do ambiente sagrado, não a fez
abandonar por completo as atividades religiosas oficiais como ir a missa, mas não
na igreja a qual ela ajudou a construir e que se afastou pelos conflitos travados entre
os seus freqüentadores, mas em outras igrejas até da mesma paróquia.
Dona Lourdes, por sua vez, submeteu-se às críticas da sociedade
permitindo que tradições como a realização das rezas na rua fossem extintas,
realizando-as somente no interior do recinto religioso, seja ele oficial ou domiciliar.
Após a sua morte, em janeiro de 2011, não surgiu ninguém, nem da sua própria
família, nem da comunidade que pudesse dar continuidade às rezas, como
puxadora.
Dona Milú, mesmo com os aborrecimentos que disse ter adquirido ao
longo dos últimos anos em seu grupo religioso não permite, aparentemente, que os
bons momentos se apaguem de sua memória. Por isso, luta pela sobrevivência de
uma suposta “essência” da identidade construída no interior da dimensão religiosa,
como afirma Giraudo em Poéticas da Memória:
[...] essa sensação de perda tem crescido, e quanto mais profunda a
convicção de que algo está desaparecendo, tanto mais necessário se
torna encontrar um modo de se preservar o que há de útil no
passado sem com isso bloquear as possibilidades do futuro.264
Este é o grande desafio dos velhos: viabilizar a perpetuação do legado
religioso popular numa geração que, aparentemente não se interessa pelos “velhos
costumes” passados pela tradição oral, sendo este momento cada vez menos
freqüente nos lares familiares. A dificuldade apresentada nas entrevistas seria em
manter as lembranças do passado, mesmo sendo construídas e costuradas por uma
coletividade.
264
GIRAUDO, op. cit., p. 108.
Como é importante essa condensação das experiências vividas pelos
mais velhos, pela riqueza de emoções e detalhes que as narrativas promovem, bem
como a convicção presente nos interlocutores de que,
A identidade (as identidades, termo mais apropriado para indicar a
natureza multifacetada e contraditória da subjetividade) é a
consciência do eu que, com o passar do tempo, se constrói por meio
da interação com outras pessoas e com as vivências individuais. A
identidade se constrói mediante o processo de contar histórias [...] A
memória, mesmo sujeita a influências e novos valores, parte natural
do processo evolutivo do grupo que a preserva como elemento que
dá a sustentação à identidade e ao sentido de origem mantém o
cerne como elemento de vínculo entre o passado e o presente.265
A vivência em grupo, além do contato com o sagrado, está em constante
formação de identidades, a qual somente se torna possível a partir do reflexo de si
mesmo no outro. Tão importante quanto a manifestação religiosa é o ambiente onde
o grupo se reúne, pois é nele que as pessoas socializam as suas alegrias, tristezas,
a labuta, encontrando ali a força para seguir adiante e vencer as dificuldades da vida
familiar, financeira, do trabalho, entre outras.
265
THONSON, 1997,p. 57 apud FUNES, 2009, p. 148. FUNES, op. cit.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das trajetórias de vida, apresentadas ao longo do presente
trabalho, foi possível perceber como a religiosidade está intrinsecamente imbricada
nas narrativas de seus interlocutores. A partir da devoção popular, característica de
um catolicismo barroco, a família de origem rural é fonte deste tipo manifestação
religiosa.
A partir da vivência familiar, desde a infância até idade adulta, os relatos
de dona Anita, dona Maria da Glória, dona Maria de Lourdes e dona Armelina (Milú),
essencialmente, acontecem de acordo com a atividade da memória, permitindo
transparecer bons e maus momentos vividos, devido as farturas e venturas 266,
proporcionados pela ruralidade. E como raízes profundas cravadas em suas
lembranças se encontram a figura de mãe, pai e família como referencial moral e
religioso. Tais referenciais eram, e continuam sendo, codificados para reger tanto a
família como o grupo ao qual pertenciam nos momentos de reza e festa de santo.
Com o passar do tempo, as narradoras e suas respectivas famílias
sentiram a necessidade em transferirem as suas residências para mais perto do
centro da cidade de Santo Antonio de Jesus por motivos familiares, sociais e
financeiros. A vida na cidade não interrompeu a devoção popular praticada por
essas mulheres, pois promoveram a sua continuidade e coexistência com as
manifestações religiosas que já se faziam presentes nesta cidade. Através das
narrativas, as quais registram o processo de inserção das mesmas no grupo sócioreligioso e suas estruturações físicas, simbólicas e culturais, desenrolam esta nova
etapa de suas vidas esclarecendo a formação da rua e posterior bairro do Cajueiro.
As redes de sociabilidades formadas pelos atores sociais presentes nesta
pesquisa delineiam as relações de poder construídas no interior do grupo sócioreligioso ao qual pertencem ou pertenciam. Vale ressaltar que as narrativas apontam
para as formas, variedades, quantidade e intensidade da teia estruturada pelos
mesmos. O papel de liderança é fortemente lembrado pelos interlocutores, assim
266
SANTANA, op. cit.
como a redes de solidariedades, legado absorvido das antigas irmandades e
confrarias, e os conflitos gerados no interior grupal. Estes, por sua vez,
proporcionaram reconfigurações na devoção popular e no convívio grupal em
detrimento do afastamento da liderança.
Essas novas tendências devocionais estão presentes nas narrativas como
forma de aborrecimento e preocupação, simultaneamente. Ao destacar em suas
narrativas o descaso percebido durante os momentos de rezas, as mudanças
criadas, principalmente por pessoas mais jovens, e até mesmo a ausência destes
nos rituais, os interlocutores buscam o exercício da memória com o intuito,
consciente ou inconscientemente, em manter viva a lembrança da religiosidade
popular a qual estavam inseridas. Existe, portanto, o receio em perder uma
“essência” do catolicismo barroco e apesar das tentativas de repassar este legado
para as gerações seguintes, através da tradição oral,
não estão tendo o êxito
esperado. Segundo as narradoras, os mais jovens não se interessam por esta
modalidade religiosa devido aos novos instrumentos de valores construídos pela
sociedade atual.
A religiosidade, principal fator de organização grupal, é também o motivo
mantenedor
da
identidade
religiosa,
relacionada
a
uma
temporalidade
e
espacialidade, um processo de construção social com atributos culturais. Pois, como
afirma Thompson apud Maia,
[...], a tradição não é um guia normativo para a ação, mas antes um
esquema interpretativo, uma estrutura mental para entender o
mundo. [...] um aspecto identificador, pois, fornece material simbólico
para a formação de identidade tanto a nível individual quanto a nível
coletivo.267
Nesse sentido, o trabalho com a memória remete a lembranças
individuais que foram urdidas coletivamente e reconstruídas com o passar dos anos
a partir das transformações do presente. É por isso que Ecléa Bosi afirma:
267
MAIA, Carlos Eduardo Santos. O Retorno para a festa e a transformação mundo: Nos caminhos
da emoção. In: ROSENDAHL, Zeny e CORRÊA, Roberto Lobato (org). Religião, identidade e
território. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p. 191.
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer,
reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências
do passado [...]. A lembrança é uma imagem construída pelos
materiais que estão agora, à nossa disposição, no conjunto de
representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítido
que nos pareça de um fato antigo, ele não é a mesma imagem que
experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de
então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas
idéias, nossos juízos de realidade e de valor. 268
Dessa forma, compreende-se que a memória não é apenas nossa, ela é
um somatório de lembranças de várias pessoas que fizeram parte da nossa história.
As lembranças são individuais, pois para cada pessoa fica marcado o significado de
acontecimentos experimentados coletivamente. As lembranças do passado não
permanecem inertes no tempo, mas vão se reconstruindo a partir das
representações do presente. Pode-se mesmo dizer que a memória é dinâmica, ela é
recriada por novos acontecimentos ou por novas lembranças que são agregadas
àquelas do passado que são (re)elaboradas pelas vivências do presente. Portanto,
passado e presente se fundem, se confundem, se agregam, pois a memória não
conhece passado, mas é sempre presente.
No interior desta religiosidade, portanto, permeada de imprevistos, as
manifestações estão em constantes mutações, pois seus sujeitos são sempre ativos
com o objetivo de adaptar-se às transformações cotidianas. Diante das novas
contingências e necessidades da vida, constroem-se traduções, rearranjos,
ressignificações para a religiosidade.
Nos limites deste estudo, fala-se de tempo, de lugar e de espaço vivido,
ocupado por aqueles atores sociais. O tempo individual do devoto no âmbito
doméstico, no âmbito do grupo social comunidade, das sociabilidades derivadas
destas relações, na festa profana com a igreja católica. Lugar e espaço 269 que se
coadunam e se fundem, que possuem significação: é a comunidade, a casa, o
grupo, a festa, a cidade de Santo Antonio de Jesus.
268
MAIA, op. cit., p. 57.
CERTEAU, Michel de. Relatos de Espaço. In: A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
269
FONTES

Fotografias:
Arquivo pessoal de Melina de Oliveira Bittencourt.

Dona Maria da Glória de Jesus, 78 anos de idade, aposentada, Moradora da
Rua do Cajueiro, Santo Antonio de Jesus. Entrevista cedida em 10 de agosto
de 2009 e 25 de julho de 2010.

Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade, aposentada. Moradora da
Rua do Cajueiro, Santo Antonio de Jesus. Entrevista

Dona Anita Santos de Santana, 82 anos de idade, aposentada. Moradora da
Rua do Cajueiro, Santo Antonio de Jesus. Entrevista coletada em 04 de julho
de 2010.

Dona Maria da Conceição, 76 anos de idade, aposentada. Moradora da Rua
do Cajueiro, Santo Antonio de Jesus Entrevista cedida em 02 de junho de
2010.

Dona Judite Cunha, 83 anos de idade, aposentada. Moradora da Rua do
Cajueiro, Santo Antonio de Jesus. Entrevista cedida em 21 de setembro de
2009.

Dona Ermelina S. Oliveira, 79 anos de idade, aposentada. Moradora do
centro da cidade, Santo Antonio de Jesus. Entrevista cedida em 11 de janeiro
de 2011.

Dona Maria de Jesus, 47 anos de idade, dona de casa. Moradora da Rua do
Cajueiro, Santo Antonio de Jesus. Entrevista cedida em 07 de julho de 2010.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Bahia: história de um outro Recôncavo. Nexos Econômicos, Salvador: FCE/UFBA,
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