melina de oliveira bittencourt - PPGHIS
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melina de oliveira bittencourt - PPGHIS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL MELINA DE OLIVEIRA BITTENCOURT SANTOS E DEVOTOS: HISTÓRIAS DE VIDA E DEVOÇÕES, EM SANTO ANTONIO DE JESUS - BA. Santo Antonio de Jesus/BA 2011 MELINA DE OLIVEIRA BITTENCOURT SANTOS E DEVOTOS: HISTÓRIAS DE VIDA E DEVOÇÕES, EM SANTO ANTONIO DE JESUS - BA. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia (UNEB – Campus V) para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História Regional e Local Orientador: Charles D’Almeida Santana Santo Antonio de Jesus/BA 2011 Melina de Oliveira Bittencourt SANTOS E DEVOTOS: HISTÓRIAS DE VIDA E DEVOÇÕES, EM SANTO ANTONIO DE JESUS - BA. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia (UNEB – Campus V) para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História Regional e Local Banca Examinadora Profº. Drº. Charles D’Almeida Santana - UEFS __________________________ Profº. Drº. Wellington Castellucci Júnior – UFRB ___________________________ Profº Drº. Vilson Caetano de Sousa Júnior - UNEB ________________________ À minha família que, com carinho, tanto me auxiliou e me compreendeu nos momentos de estudo AGRADECIMENTOS A todas as pessoas que contribuíram para a concretização deste trabalho de pesquisa. A todos os professores que contribuíram com suas respectivas disciplinas acadêmicas, no Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado da Bahia – Campus V, assim como a Coordenação, cargo que foi ocupado pela professora Dra. Suzana Severs, professora Dra. Maria das Graças e o atual professor Dr.Raimundo Nonato Pereira. Ao professor Dr. Welligton Castellucci, que ao iniciar o mestrado foi quem me acolheu para orientação. Apesar de temporalidades diferentes de estudo, nos identificamos pela história oral e pelo interesse em registrar trajetórias de vida de mulheres negras e devotas. Ao professor Dr. Charles Santana, que tanto contribui com sua paciência e cautela a partir do remanejamento realizado no processo de orientação, por conta da aquisição de bolsas. A presença atuante das secretárias deste PPG, Ane Nunes, Consuelo Silva e Vilma, as quais com todo o conhecimento adquirido na área administrativa nos orientavam nos momentos de incertezas. A Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), a qual apoiou o processo de construção da presente dissertação, assim como a Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES). Aos entrevistados, os quais promoveram a construção da pesquisa através de narrativas, cedendo-nos um pouco de suas trajetórias de vida, a partir da vivência religiosa. Aos colegas, pelos momentos de discussão bibliográfica e busca de fontes, além da socialização das expectativas surgidas ao longo dos estudos e confecção da dissertação. Sou grata aos meus familiares que tanto me ajudou no decorrer desses 02 anos de estudos historiográficos com paciência, amor, dedicação e sempre indicando o melhor caminho a seguir. Ao meu esposo que foi, é e continuará sendo o meu “braço direito” em todos os momentos. À minha filha, Maria Clara, que esteve sempre comigo nos momentos de estudos, compreendendo a minha presença e ausência. À Deus, pelo dom da existência e por estar concluindo esta pósgraduação com muito afinco e dedicação. “Não se pode narrar a história inteira.” E. P. Thompson RESUMO Esta pesquisa visa analisar a participação da população negra nas manifestações populares religiosas, em Santo Antonio de Jesus – Bahia, identificando trajetórias de vida a partir das redes de sociabilidade. O estudo do cotidiano das populações negras é uma oportunidade de incorporar à história as tensões sociais do dia-a-dia, implicando numa reconstrução da organização de sobrevivência deste grupo. A pesquisa pretende revelar, portanto, os papéis desempenhados pelas mulheres negras dentro da comunidade em que vivem a partir das práticas religiosas populares. A estratégia metodológica baseia-se na abordagem da História Oral, sendo que no percurso de captura das entrevistas, considera-se como fundamental a discussão em torno das relações entre História e Memória. Palavras – chave: trajetória - devoção popular – memória. SUMMARY: This research aims to analyze the participation of black people in popular religious manifestations in Santo Antonio de Jesus - Bahia, identifying courses of life from social networks. The study of everyday life of blacks is an opportunity to incorporate the history of social tensions of the day to day, resulting in a reconstruction of the organization's survival in this group. The research aims to reveal, therefore, the roles played by black women within the community they live from the popular religious practices. The methodological approach is based on oral history, and in the course of capture of the interviews, it is considered as a fundamental discussion about the relationship between History and Memory. Key - words: history - religious folk - memory. LISTA DE FOTOS Foto 01: Capela de D. Glória em dia de reza à Santa Bárbara CAPA Foto 02: Altar da Igreja Matriz de Santo Antonio 34 Foto 03: Residência de D. Glória em dia de reza à Santa Bárbara 76 Foto 04: Momento de reza em homenagem à Santa Bárbara 78 Foto 05: Bolo - Reza a Santa Bárbara 82 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 11 1º CAPÍTULO: RAÍZES DO CATOLICISMO POPULAR 1.1- Família rural: fonte de religiosidade popular 23 1.2- Momentos de devoção: a família e a comunidade 47 2º CAPÍTULO: A RELIGIOSIDADE NA CIDADE 2.1- A continuidade da devoção popular 57 2.2- Aparatos devocionais 67 3º CAPÍTULO: REDES DE SOCIABILIDADES 3.1- As relações de poder construídas na comunidade 86 3.2- As novas tendências devocionais 99 CONSIDERAÇÕES FINAIS 105 FONTES 108 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 109 INTRODUÇÃO O tema que proponho para análise nesta Dissertação é um desdobramento da discussão realizada no trabalho de conclusão de curso em Licenciatura Plena em Geografia, na Universidade do Estado da Bahia, quando procurei entender, a partir do olhar da Geografia Cultural, as mudanças e permanências sócio-espaciais em torno da festa ao padroeiro Santo Antônio, em Santo Antônio de Jesus. Naquela oportunidade mantive contatos com dezenas de fiéis, devotos, autoridades eclesiásticas, arquivos paroquiais e particulares os quais me disseram muito mais do que aquele trabalho se propunha discutir. Tais inquietações, em sua maioria, se deram por conta da relação entre homem/mulher e o sagrado e como esta relação impactou em suas trajetórias de vida e vice-versa. Assim, neste trabalho, me preocupo em entender essas relações com o sagrado na vida de mulheres negras, pobres, reconhecidas pela comunidade que a cerca por sua liderança religiosa, seja nos cultos oficiais, seja nas suas devoções e práticas religiosas no âmbito doméstico. Busco, principalmente, compreender formas de ascensão social, conflitos e resistências em suas trajetórias de vida inteiramente marcadas pela relação com o sagrado. Nossas interlocutoras são, em sua maioria, moradoras do bairro do Cajueiro, Santo Antônio de Jesus-BA, mas advindas de áreas rurais locais e regionais, onde exerciam a função de agricultoras e com o passar do tempo e com a transferência para a cidade passaram a exercer outras atividades. Sobre o bairro do Cajueiro é preciso dizer que se trata, hoje, de um bairro extremamente populoso, formado por algumas ruas principais, porém, com um número muito grande de vielas e becos surgidos de forma irregular, ao longo do tempo, a partir de terrenos baldios ou de quintais que deram origem a moradias, muitas das quais situadas em ruas sem calçamento e com uma infraestrutura precária. Atualmente os moradores do bairro, em sua maioria negros, convivem com a violência e o tráfico de drogas constantemente denunciados pela imprensa local. O bairro possui uma igreja católica dedicada a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e é em torno desta igreja que as principais personagens desta pesquisa moram e desenvolvem suas práticas de fé, estabelecendo relações sociais, conflitos e redes de solidariedades. É bem em frente à igreja do bairro que está situada a residência de dona Maria da Glória de Jesus, 78 anos de idade, negra, aposentada por serviços prestados ao governo estadual nas escolas como “tarefeira”, ou seja, auxiliar de serviços gerais, não se casou e nem teve filho. Atualmente mora sozinha e ao fundo de sua residência encontra-se a de sua irmã Ana Maria. Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade, negra, viúva e aposentada por serviços prestados ao governo municipal faleceu em janeiro de 2011 por problemas cardíacos. Casou-se e teve cinco filhos. Esta nossa personagem morava cerca de cinquenta metros da igreja do bairro, onde cuidava de um sobrinho portador de deficiência física e mental. Mantinha ao lado de sua residência a casa de seu único filho vivo. Apesar de morar praticamente sozinha, a movimentação de pessoas em sua casa era grande o dia inteiro, as quais eram acolhidas por dona Lourdes, como era mais popularmente conhecida, em um jogo de sofá na estreita varanda frontal ou na sala, para receber aconselhamentos ou rezar. Duas outras entrevistadas moram a curta distância da igreja onde frequentavam regularmente enquanto, segundo afirmaram, estavam com boa saúde. Ambas residem com familiares: dona Nita, ou, Anita Santos de Santana, 82 anos de idade, negra, viúva e aposentada, nos acolheu para as entrevistas na casa de uma de suas filhas, pois evitava ficar na sua casa sozinha. Dona Judite Cunha, por sua vez, 83 anos de idade, branca, aposentada por serviços prestados ao governo federal, também moradora da Rua do Cajueiro, não se casou e nem teve filhos. Dona Maria de Jesus, 47 anos de idade, negra, dona de casa, foi entrevistada quando esta foi visitar dona Maria da Glória, casada e com dois filhos residindo ao final da rua do Cajueiro. As duas últimas personagens moravam em ruas do bairro, porém, um pouco mais distantes da igreja. Dona Maria da Conceição, ou Conceição “Madeira”, 76 anos de idade, negra, viúva e aposentada, mora atualmente com uma de suas filhas na Rua Viriato Lobo, também pertencente ao bairro do Cajueiro. Dona Ermelina S. Oliveira, conhecida por Milú, 79 anos de idade, viúva e aposentada, moradora da Av. Luiz Viana, reside em uma casa localizada nos fundos de outra que teria ocupado durante décadas e que, posteriormente passou para uma de suas filhas, os quais são ao todo sete. O estudo das trajetórias, da devoção, dos conflitos e resistências presentes na relação entre essas mulheres, em sua maioria negras e pobres, e a comunidade que as cerca vem num momento em que se aumentam significativamente os estudos e pesquisas regionais, não obstante, devido à busca pelas particularidades que acabam sendo ocultadas, consequências de um pensamento globalizado com a homogeneidade das regiões. Mas, também, conforme identifica Janaína Amado na introdução ao livro República em Migalhas1, outros fatores colaboram para a regionalização dos estudos, tais como: o esgotamento das macro-abordagens; o comprometimento dos pesquisadores com temas locais – incentivados pela área de concentração desta Pós-graduação - e a volta do olhar do pesquisador sobre a organização espacial do país, observando que neste, há ainda, áreas pouco conhecidas como o norte e nordeste e seu interior. Estes fatores refletem a escolha do tema e do espaço para o estudo. Regionalizar passa, então, a ser a tarefa de dividir o espaço segundo diferentes critérios que são devidamente explicitados e que variam segundo as intenções de cada trabalho. Neste trabalho, a regionalização está presente não como uma forma obrigatória, mas como ponto de referência. Neste trabalho está se optando em avaliar traços comuns, distintivos, responsáveis pela unidade regional, sua identidade cultural, laços que unem esta população. “É nesse sentido que a região passa a ser um meio e não mais um produto”2, conclui Amado. Sendo assim, a história regional não é um outro tipo de história, ou uma história diferente, é simplesmente história. Os estudos de trajetórias negras nas décadas que se seguiram à abolição têm crescido muito no Brasil nos últimos anos3. Porém a maioria desses estudos tem se concentrado, principalmente, nos aspectos demográficos e econômicos ou em análises realizadas tendo como recorte temporal os primeiros anos imediatamente após a libertação dos escravos. Da mesma forma, os estudos sobre práticas religiosas negras e suas influências na sociedade ou, como estes grupos se serviram delas para o exercício da resistência cotidiana, tiveram como foco 1 AMADO, Janaína. História e Região: Reconhecendo e Construindo Espaços. In: Silva. Marcos. República em Migalhas, História Regional e Local. Ed. Marco Zero, 1989. pp7-15. 2 AMADO, Janaína. op.cit, p. 63. 3 Sobre trajetórias de afro-descendentes, ver entre outras as obras de: FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia, 1870-1910. Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2006. RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe Maria. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. predominante na historiografia brasileira o período Colonial e Imperial. Carece, por isso, de outros estudos, mais regionalizados, que procurem entender como as populações negras, sendo majoritárias na Bahia, procuraram estabelecer redes de sociabilidades e solidariedades tendo por mote a prática religiosa nos meados do século XX. A religiosidade que durante muito tempo foi um campo de estudos voltado principalmente para a sociologia, antropologia, filosofia e teologia também passou a ser de interesse da história, em especial com o surgimento da História Social que incluiu novas abordagens e novos olhares, muitos dos quais restritos às ciências sociais. Vale lembrar que a História sempre estudou a instituição Igreja juntamente com o Estado em uma visão predominantemente política. Mas, a partir da década de 80 do século XX, esta ciência passou a enfatizar as ações dos grupos religiosos e seus comportamentos diante dos ritos sagrados. Nessa tendência histórica, a religiosidade popular ganhou destaque a partir de 1990 e vários são os autores que influenciam a historiografia da religião atualmente. Michele Volvelle 4, por exemplo, propõe o tema como forma criativa de leitura popular do cristianismo, e Keith Thomas5 complementa que as crenças estão intimamente relacionadas com as idéias religiosas e sociais do período em que elas acontecem, ideia que em muito esse trabalho concorda. Do catolicismo oficial provém uma corrente popular que, por causa da resistência escrava, promove a esperança de salvação física e moral, renovando o sentido da vida. Enquanto a religião popular foi, na historiografia brasileira, o único meio de significar a vida dos vencidos e dominados em um contexto de invasões e colonização européias a partir do século XVI, em um contexto social permeado pela violência, em seus vários olhares, o pobre e marginalizado inventou um cotidiano para viver com dignidade e/ou até mesmo, sobreviver através dos valores morais vitais. Com o passar dos séculos a sociedade mundial viveu grandes e intensas transformações como, por exemplo, as guerras mundiais, a Revolução Industrial as quais incutiram, no ser humano, novas formas de pensar e, conseqüentemente, novos costumes e crenças. Mesmo com tais mudanças ocorridas durante o tempo e 4 VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. 2 Ed.. São Paulo: Brasiliense, 1991. THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia: crenças populares na Inglaterra nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 5 com a ampliação da oferta de bens simbólicos religiosos ou com presença de novas formas de religiosidade, privilegiando novas práticas, bem como o processo de secularização, as devoções católicas populares ainda permanecem como fonte de conforto e esperança para importante parte da população negra. Essa valorização é percebida através das variadas manifestações e expressões de devoção popular que se preservam e crescem, tais como: romarias, promessas, festas, missas, altares, santinhos, consagrações nacionais e regionais. Essa permanência se concretiza na continuidade da geração de devotos, sendo que estes remodelam constantemente a religiosidade popular. Essas novas práticas devocionais proporcionam, conseqüentemente, novas formas de linguagem, comunicação, gestos e rituais em seus espaços sagrados, demarcando, assim, novos territórios. O grupo humano que demarca o seu espaço através do exercício de religiosidade proporciona a cada membro o envolvimento deste com a identidade entre o poder e o sobrenatural, o qual é agraciado pela proteção, atenção e companhia de Deus, pela proximidade com os santos, revelando uma estratégia de sucesso para o cotidiano fragmentado. Esse universo devocional está regido não só pelo contratual, mas também por manifestações e expressões particulares como benzer, rezar, escrever, carregar, visitar, colocar hábito, peregrinar entre outras, expandindo o seu espaço de devoção, mesmo que essa presença seja instantânea, pois estabelece uma memória onde a vontade de Deus se faz presente. A festa oficial do catolicismo é realizada de acordo com o calendário litúrgico da Igreja, no entanto, existem devoções que são extraordinárias, ou seja, são realizadas além do que é promovido pela regularidade religiosa. São manifestações que se caracterizam como táticas bem sucedidas para enfrentar as tristezas, as decepções, a desilusão, a violência, a pobreza e outros fatores que teimam em desestimular o ser humano a continuar a viver. É nesse jogo do cotidiano que se percebe que a religiosidade acaba sendo para muitos a solução mais acessível para permanecer resistindo aos problemas da vida. Essa manifestação de fé no santo e a esperança de dias melhores se concretizam desde em um amuleto a uma reza domiciliar. O estudo desta religiosidade, cujas práticas, em sua maioria, só se encontram registradas na memória de seus praticantes, expressam não apenas o religioso, o místico e o sagrado, mas, também expressam o social, a relação do homem/mulher com pessoas do mesmo grupo social e de outros grupos. Vale lembrar que a religiosidade na zona rural acontecia, e ainda acontece, nas casas dos moradores em que a liderança é leiga e exercida por homens e mulheres, principalmente rezadores, na ausência ou escassez de sacerdotes permanentes. Esses cultos aconteciam descartando ou recriando os ritos litúrgicos oficiais, estando, em muitos casos, as rezas coletivas e festas de santos voltadas a produção agrícola, constituindo uma prática denominada de catolicismo barroco6. Percebe-se, portanto, que a população passou a (re)inventar o seu cotidiano social marcado por atitudes de disposição moral e fé, estando presente no cotidiano das pessoas, influenciando e, por vezes, determinando o curso histórico social desse grupo. Estudar o cotidiano não é uma tarefa fácil devido a amplitude do tema. O cotidiano ressalta as experiências de vida que escaparam ao normativo e institucional, vislumbradas nas entrelinhas, nas fímbrias do sistema, e aponta para o provisório, para os papéis informais que desafiam as regras instituídas. As práticas vividas, a concretude das relações humanas se confrontam com os valores herdados e os papéis prescritos e apontam para o imponderável. Sempre relegado ao terreno das rotinas obscuras, o quotidiano tem se revelado na história social como área de improvisação de papéis informais, novos e de potencialidade de conflitos e confrontos, em que se multiplicam formas peculiares de resistência e luta. Trata-se de reavaliar o político no campo da história social do dia-a-dia. (...).7 A análise do cotidiano de mulheres negras8 é uma oportunidade de incorporar à história as tensões sociais do dia-a-dia, implicando numa reconstrução da organização de sobrevivência deste grupo populacional. Este estudo pretende apontar os papéis desempenhados por mulheres negras no interior do grupo social no qual vivem a partir da devoção religiosa aos santos. Tomando as palavras de Maria Odila Dias, “Não me refiro a papéis sociais normativos e prescritos, mas a 6 Ver: NOVAIS, Fernando A.(coord. Geral). SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.103. 7 DIAS, Maria Odila L. da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995, p.14. 8 Ao apontar a característica as nossas narradoras como mulheres negras estamos nos referindo, além das características étnicas que as identifica, a afirmação das mesmas como tal. Em diversos momentos das narrativas, de forma explícita ou nas entrelinhas as falas de muitas delas são marcadas por questões de afirmação étnica e identitária que veremos no transcorrer do texto, como as memórias de infância de dona Lourdes ou as vivências de dona Milú. mediações sociais continuamente improvisadas no processo global de tensões e conflitos, que compõem a organização das relações de produção, o sistema de dominação e de estruturação do poder”.9 A religião católica também passou por transformações à medida que as pessoas passaram a entender que essa instituição não abarcava mais as suas necessidades da vida corriqueira. As pessoas, então, passam a remodelar a forma de devoção, fugindo da oficialidade da Igreja, promovendo o surgimento do que convencionalmente passou a se chamar de religiosidade popular. E nesse novo arranjo religioso, o crente manifesta a sua fé sem precisar de um sacerdote ou outro membro oficial do catolicismo. Umas das questões que nos propusemos a responder durante esta pesquisa é: qual a relação das práticas devocionais com o cotidiano de população no meado do século XX? Teria a prática religiosa da devoção popular algum impacto nos arranjos sociais construídos entre fiéis e devotos? Quais seriam esses rearranjos sociais? As devoções populares ocupam um lugar estritamente religioso ou os(as) líderes religiosos(as) (curandeiros(as), benzedeiros(as), rezadeiros(as)) procuram, através de suas práticas, ocupar novos espaços na comunidade, que utilizando de seu poder de liderança religiosa popular passa também a ser uma espécie de inspiração para as atitudes cotidianas na vida do ser humano a ele(a) relacionados? Carlos Santaló10 afirma que a religiosidade popular tem como registros documentais a sua prática e suas especificidades, tais como as relações de: autoridade-obediência, paradigma-mimetismo, poder-submissão. A partir dessa análise relacional complexa o historiador expandirá a sua compreensão sobre o tema. No Brasil, diversos estudos surgiram, em especial nas últimas décadas, analisando aspectos de práticas religiosas, desde a Colônia à história recente, apontando para as interfaces entre o popular e o oficial, destacando-se Laura de Mello e Souza11 que discute práticas religiosas no Brasil colonial (magia/feitiçaria) e 9 DIAS, Maria Odila L. da Silva. Op. Cit. p.13. SANTALÓ Carlos Alvarez La Religiosidad Popular - II Hermandades, Romerías u Santuários. REY, Maria J. B. La Religiosidad Popular. Hermandades, Romarias y Santuarios. Barcelona: Fundación Machado/Anthropos, 1989, v. III, p.7-12. 11 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 10 João José Reis12 com os rituais fúnebres na Bahia no século XIX. Tais estudos são importantes para entendermos a diversidade de conflitos e resistências entre o que é normatizado e o que é reinventado pelo povo ao longo do tempo. Pela tradição oral, o negros ao chegarem na América ressignificaram o corpo de origem africana, os símbolos culturais e textuais, assim como toda a complexidade de sua alteridade, cultura, lingüística, diversidade étnica e de sua história. A cultura negra baseada nos ancestrais e seus modos peculiares e diversos de visão de mundo teve como amparo as tradições e a memória oral africana que ao se confrontar com os sistemas simbólicos americanos, construíram, assim, a identidade afro-brasileira13. A maioria das práticas de benzeduras e rezas realizadas pelas personagens deste trabalho traz elementos de uma religiosidade de matriz africana, seja no uso dos elementos da natureza (folhas, água, óleos, etc), seja na estrutura destas práticas (o canto, a dança, os instrumentos musicais como o atabaque), seja na forma de celebrar (a comida e as oferendas), embora muitas delas neguem qualquer ligação com o candomblé. Este trabalho não tem como objetivo o estudo destas práticas religiosas per si, mas no transcorrer dos capítulos procurarei levantar algumas questões acerca da refutação da associação entre as práticas religiosas destas mulheres e a religiosidade de matriz africana. Acredita-se, que as narrativas das pessoas são fontes fundamentais para a análise histórica, pois As narrativas possuem a potencialidade de fazer viajar o ouvinte através da viagem narrada. Como fontes para construção do conhecimento histórico, seu potencial é inesgotável, pois também, como afirma Benjamin, ‘incorporam as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes’. Em outras palavras, possibilitam ‘pontuar entre o momento da fala e o eternizar da escrita, desvãos que vazam no tempo o sentido da existência’14. A estratégia metodológica baseia-se na abordagem da História Oral, sendo que no percurso de captura das entrevistas, considera-se como fundamental 12 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 13 MINTZ, Sidney W. PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Pallas: Universidade Candido Mendes, 2003. 14 GROSSI, Yonne e FERREIRA, Amauri. Razão narrativa: significado e memória. História Oral (4). São Paulo: ABHO, 2001, p. 26. a discussão em torno das relações entre História e Memória. Dialogando com Pierre Nora15, para quem “[...] a história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais [...]” e “[...] a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente [...]”. Assim, debruçar-se sobre a busca das memórias e vivências de mulheres negras e devotas é sintomático de um espaçotempo onde a memória está sendo constantemente ameaçada em desaparecer, daí o empenho, enquanto pesquisadora, em reconstruir, problematizar e preservar os lugares de sua representação16. Essa sensação também é comum a todas as sete pessoas que no presente trabalho contribuíram com a narrativa. As interlocutoras se assemelham nesta Dissertação por possuírem origem rural, bem como serem, [...] depositários de uma mesma memória que, mesmo narrada de forma individual, expressasse as lembranças coletivas; que partilhassem experiências comuns e tivessem a constituição de uma identidade marcada pelo sentido de pertença e de construção de um espaço único [...]17. Além dessa identificação comum encontra-se também a presença fortemente feminina. Sendo esta incluída com veemência na ciência historiográfica a partir de 1970, imbricada com o movimento feminista – diferenciação de gênero -, com o florescimento da antropologia e da história das mentalidades, bem como as novidades no campo da história social e as inéditas pesquisas da memória popular. No entanto, pesquisadores ao procurarem descrever os papéis femininos identificaram uma quantidade de “[...] práticas específicas que por meio de um jogo de compensações, de interferências ou de significações simbólicas terminaram por esboçar os traços de uma cultura feminina sem a qual o sentido social não existiria”18. Logo, um estudo voltado para as mulheres não significa analisar apenas 15 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto História – História e Cultura. PUC/SP, n 17, p. 9, 1998. 16 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. 17 FUNES, Eurípedes A. . Mocambos: natureza, cultura e memória. História Unisinos.Vol. 13. Nº 2 – mai-agosto de 2009, p. 146-153, p. 149. 18 PRIORE, Mary Del. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos Cesar (org).. Historiografia Brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p. 221. 18 PRIORE, Mary Del. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos Cesar (org).. Historiografia Brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p. 221. uma divisão de papeis sociais, mas permite “[...] maior intimidade e ampliação do horizonte da história [...]”19. É válido ressaltar que a presença de narrativas femininas não induz a ausência de figuras masculinas nas manifestações religiosas, sinal desta presença são as constantes rememorações de dona Lourdes em relação a seu pai o qual era referência religiosa onde moravam. Bem como, os homens encontrados nas práticas devocionais atualmente que mesmo em pouca quantidade são co-participantes nos momentos de religiosidade. Talvez devido às mulheres terem tido mais oportunidades em (re)criar as suas práticas devocionais quando comparado ao gênero oposto, é que tenha sido proporcionado às mesmas pelo modelo familiar vigente até meados do século XX o qual indicava que competia ao homem trabalhar e à mulher ficar em casa cuidando de seu lar e da educação dos filhos. Além da viuvez e da eterna solteirice. Outra característica comum entre as narradoras é o fato de a maioria ser aposentada e ter entre 70 e 80 anos de idade. Por já estarem afastadas de seus afazeres mais obrigatórios do cotidiano, exercitam com mais freqüência a memória e “[...] se dá mais habitualmente à refacção do seu passado.”20, desenhando a sua memória atual em um cenário mais “definido”21 quando comparado as pessoas mais jovens. Lucília Neves, ao estudar os desafios da memória e da história oral, assinala o problema [...] da relação entre os múltiplos tempos, realidades, pois em uma entrevista ou depoimento fala o jovem do passado, pela voz do adulto, ou do ancião do tempo presente. Adulto que traz em si memórias de suas experiências e também memórias a ele repassadas, mas filtradas por ele mesmo, ao disseminá-las. Fala-se em um tempo sobre um outro tempo. Enfim, registram-se sentimentos, testemunhos, visões, interpretações, em uma narrativa encontrada pelas emoções do ontem, renovadas ou avaliadas pelas emoções do hoje. 22 19 SOIHET, Rachel. História das mulheres. In: VAINFAS, Ronaldo. CARDOSO, Ciro Flamarion (orgs). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 296. 20 BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras.1994, p. 63. 21 Idem, p. 60. Bosi ressalta que as lembranças de velhos são mais “definidos”, pois refletem a possível dimensão psicossocial da memória por já não estarem tão consumidos pelos reveses do cotidiano e por já vivenciaram vários tempos, espaços e sociedades. 22 NEVES, Lucília. Os desafios da história oral – ensaios metodológicos. In: PINHEIRO, Áurea da Paz; NASCIMENTO, Francisco Alcides do (orgs). Cidade: história e memória. Teresina: EDUFPI, 2004. p. 276-277. A historiadora reforça ainda, que essas fontes “[...] não são a história em si, mas um dos possíveis registros sobre o que passou e sobre o que ficou como herança ou como memória”23. Nessa perspectiva, percebe-se na fala das entrevistadas as esperanças, as dores, os sonhos e as frustrações no momento em que relembram sentimentos que se mantêm vivos em suas memórias e que mesmo com o passar do tempo não conseguiram apagar. Essa opção metodológica tenta inspirar-se na abordagem micro-histórica preconizada pelos historiadores italianos Carlo Ginzburg24 e Giovanni Levi25, já que a micro-história fornece vias alternativas – com contornos muito próprios – às abordagens macro-sociais totalizadoras, permitindo a construção de uma história social e cultural centrada em ‘escalas’ de análise mais circunscritas e nos “jogos” que se estabelecem entre elas26. O trabalho de contextualização múltipla praticado pelos microhistoriadores considera “que cada ator histórico participa de maneira muito próxima ou distante de processos – e, portanto, se inscreve em contextos – de dimensões múltiplas e de níveis variáveis do mais local ao mais global”27 Nesse sentido, a presente Dissertação aborda as trajetórias de vida a partir da religiosidade e suas facetas em três capítulos. No primeiro capítulo, analisase o início da trajetória de vida das interlocutoras, a fase infanto-juvenil em ambiente ruralizado, as referências pessoais e grupais que fundaram e encandearam as mesmas na formação religiosa. A partir das lembranças, buscadas na memória, encontram-se a figura do pai, da mãe e da própria família, sendo esta, então, a raiz profunda e eterna em suas respectivas memórias das histórias passadas pelos 23 Idem. p. 277. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2. ed São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 25 LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 26 A partir desse ponto de vista historiográfico, enfoques sobre as histórias de indivíduos, vilarejos, grupos específicos – entre instituições, associações e classes – passaram a ser privilegiados. Mais que uma diferença em termos de objetos, a micro-história definiu-se por escolhas metodológicas. Revel (1998 [1996]) enfatiza que a mudança de escalas praticada pelos “micro-historiadores” italianos produz efeitos de conhecimento considerando que “é o princípio da variação que conta e não a escolha de uma escala em particular” (p.20). Como no uso de uma lente objetiva, em fotografia, o enquadramento do objeto focado não se limita à mera ampliação ou redução do mesmo, mas é a própria maneira de apresentar suas formas. Em outra perspectiva, a arte e as técnicas cartográficas não consistem apenas em apresentar em diversos tamanhos uma paisagem que se quer fixa e constante; a escolha da escala e sua explicitação são a chave de criação e de leitura para os conteúdos desse tipo de representação e de apropriação cognitiva do espaço geográfico (Revel, 1998 [1996]:20). REVEL, Jacques (org.). Jogos de Escala: a experiência da microanálise. Tradução Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. 27 REVEL, op. cit., p. 20. 24 mesmos através da tradição oral, bem como as lembranças dos momentos de devoção popular em seu lar e grupo social. O segundo capítulo, por sua vez, discute como as práticas do catolicismo popular se comportou diante da transumância de seus atores, os quais necessitaram sair de seu espaço geográfico rural para ir em direção ao urbano por fatores diversos, com a ressalva de que em meados do século XX as mudanças residenciais não se realizavam de forma corriqueira ou banal. Para que tal acontecimento se concretizasse, como percebemos nas narrativas, era preciso motivos financeiros, sociais e/ou familiares. Neste capítulo, também se destaca a análise de um ritual característico do catolicismo barroco na residência dona Maria da Glória28 e nas práticas devocionais das outras interlocutoras. No entanto, faz-se necessário ressaltar que há uma imbricação de difícil separação entre a religiosidade popular e a oficial, tamanha é o envolvimento das narradoras em ambas as dimensões. No terceiro e último capítulo, analisamos as redes de sociabilidades e seus contornos elaborados pelo catolicismo popular, sua extensão e intensidade, bem como as relações de poder incutidas no grupo social delineando as alegrias e conflitos presentes em qualquer relação grupal. E dentre as interlocutoras, assim como na pesquisadora, a apreensão em perceber que as tradicionais práticas devocionais realizadas pelos antepassados das narradoras já não são seguidas à risca pelas mesmas e estão sendo, cada vez mais, alterada por sua descendência. Essa constatação é motivada pela escassa freqüência de jovens nessa modalidade de manifestações religiosas e pelas novas tendências devocionais que surgem diante da mudança no cenário religioso mundial, em que a tecnologia televisiva e informacional influencia o cultural, social, econômico e político. 1º CAPÍTULO 28 Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010. RAÍZES DO CATOLICISMO POPULAR 1.1 - Família rural: fonte de religiosidade popular A vida no mundo rural, não obstante os sacrifícios e dificuldades que se apresentam, é sempre lembrada pelos entrevistados por seus bons momentos. Todas as narradoras, cujas trajetórias de vida e de fé são fonte de pesquisa e análise neste trabalho, fizeram questão de apresentar a vida no campo e destacar as suas recordações. No entanto, no decorrer das entrevistas, as narradoras deixavam “escapar” sinais de sofrimento e dor relacionados ao tempo em que viveram na roça. Durante as entrevistas, elas permitiram aflorar nas memórias e em suas narrativas, momentos nostálgicos. É válido ressaltar que as pessoas entrevistadas, no decorrer da execução dessa pesquisa, têm algo em comum: todas são advindas da zona rural de Santo Antonio de Jesus e região, logo a rotina de lidar com a terra lhes é fator em comum, bem como a vivência religiosa, a qual esteve presente nos lares rurais. Mesmo tendo uma infância no limiar da pobreza, o que mais desperta saudades nas entrevistadas é o convívio familiar permeado de ensinamentos e transmissão de costumes através da história oral. Os mesmos são lentamente diversificados através da reprodução e ressignificação, de geração em geração, das práticas e normas sociais que se desenvolvem de acordo com as necessidades do grupo. Deste modo é que se busca analisar as trajetórias de vida de mulheres negras que transferiram-se do campo para a cidade, entendendo como se deram as práticas religiosas e de fé neste processo de transumância e após o estabelecimento na cidade. É como nos afirma Thompsom em que “As práticas e normas se reproduzem ao longo das gerações na atmosfera lentamente diversificada dos costumes. As tradições se perpetuam em grande parte mediante a tradição oral, com seu repertório de anedotas e narrativas exemplares.”29 A esta passagem de práticas e sabedoria grupal para as seguintes gerações, a família e 29 THOMPSOM, E. P. Introdução: Costume e cultura. In: Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das letras, 1998, p.18. seus entes mais próximos são os maiores responsáveis com o intuito em prepará-las para continuar com o legado que lhes é deixado. Dona Nita,30 mulher negra de família pobre, hoje aposentada, aos 82 anos de idade, se considera a primeira moradora do atual bairro do Cajueiro, espaço urbano onde reside a maioria de nossas interlocutoras, no município de Santo Antonio de Jesus. Trazendo sobre si um lenço branco e um xale feito de crochê azul claro envolto ao pescoço e braços para se proteger do frio que faz na cidade nesta época do ano (meses de maio a agosto) cobrindo o vestido estampado também com tons de azul, dona Nita nos convida para adentrar em sua pequena casa localizada logo no início da Rua do Cajueiro em meio a tantas outras que foram se instalando ao seu redor com o passar das décadas.31 É com um vísivel prazer que ela lembra, apesar da idade avançada, pois a memória só verbaliza o que realmente lhe foi marcante, a sua fase infanto-juvenil. Levantando os olhos ao teto da casa afirma: “nasci, me criei, me casei e criei meus fios tudo aqui...nesta casa. Não tá da mesma forma,....”32, mas está no mesmo lugar há décadas. Além das reformas a que esta casa foi submetida, houve também a divisão da mesma para atender às necessidades dos filhos que, ao constituírem famílias, dona Nita passou a ajudar dando-lhes parte do pequeno terreno no qual a casa está situada. Esta forma de organização familiar e de divisão dos bens é bastante comum entre as famílias pobres, contexto que pode ser aproximado do conceito fundado por E.P. Thompson sobre a “economia moral”. Para o autor estas práticas, que muitas vezes fogem à lógica do mundo capitalista, estão inseridas no contexto da luta pela sobrevivência do povo.33 Segundo dona Nita, quando ainda era criança, tudo naquele bairro era uma enorme plantação dividida ao meio: de um lado cana-de-açúcar e do outro, o fumo, lado este em que estava erguida a sua residência, única casa da plantação na qual vivia com seus pais e irmãos. Todos os membros da família trabalhavam na 30 Dona Anita Santos de Santana, 82 anos. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010. A área da casa que a entrevistada menciona era zona rural quando a mesma era criança. Atualmente é considerada como periferia da cidade. 31 O bairro do Cajueiro, em Santo Antonio de Jesus, se formou ao longo das primeiras décadas do século XX, sobre uma antiga pastagem. As primeiras famílias que ali se fixaram eram de pessoas que advindas da zona rural começaram a povoar a, então, periferia urbana. As primeiras casas passaram a serem erguidas de adobe (muitas ainda conservam a mesma estrutura, apesar da situação precária, e outras estão abandonadas) sem, no entanto, um planejamento urbano, o que acarretou uma desorganização dos limites entre as casas e a rua que, ainda hoje, é possível se verificar. 32 Dona Anita Santos de Santana, 82 anos de idade. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010. 33 Ver mais em: THOMPSOM, op. cit. plantação de fumo, desde o momento de preparação da terra para semear até o enrolar das folhas de fumo para a confecção de charutos.34 Ela recorda que: [...] Ficava nós tudo ali na cozinha, enrolando a foia, ou intão na porta de casa, tudo ali trabaiando, conversando, cantano, rezano..., quando eu era piquena não fazia muita coisa não, mas gostava muito da ....dessa reunião em família em volta da mesa da cozinha[...]35. Como ela nos conta, apesar de não seguir regularmente o curso temporal de sua trajetória de vida, toda a família trabalhava na produção de um único produto – o fumo – que era a grande riqueza do Recôncavo Baiano até meados do século XX36. Se fosse por sua vontade de criança, como reflete em sua narrativa, ela não gostava de estar somente olhando a mãe, o pai e os irmãos trabalharem. Ela também gostaria de limpar a terra, colocar as sementes na terra já preparada, cuidar da plantação, colher o fumo, colocar as folhas para secar e depois enrolá-las produzindo os charutos para a comercialização37. Mas toda essa sua posição de testemunha ocular, enquanto criança, não foi em vão. Isto a faz perceber, nos momentos de produção familiar, peculiaridades que quem estava envolvido diretamente no trabalho, talvez, não estivesse atento para a importância da união dos membros familiares nesses momentos de produção que além de garantir a renda, reforçava valores familiares, tais como: união, solidariedade, obediência aos pais e aos mais velhos, a importância do trabalho, da família e da religiosidade. E foi a partir dessa rotina de labor que os pais de dona Nita passaram para os filhos a crença religiosa, a visão de mundo, as histórias de seus antepassados, enfim, criavam e educavam a sua prole de acordo com o que lhes era possível e no que acreditavam.38 Para dona Nita, e para tantas outras pessoas, a cozinha era o lugar da casa que mais gostava de frequentar, seja pelo ato de comer, de trabalhar, de conversar, mas também pelo aquecer-se do frio. A partir narrativa, d. Nita aponta que as famílias que se encontravam no limiar da pobreza, muitas vezes, não possuíam móveis suficientes em todos os cômodos da casa, assim, era comum que 34 Dona Anita Santos de Santana, 82 anos de idade. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010. Idem. 36 BARICKMAN,B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 37 Dona Anita Santos de Santana, 82 anos de idade. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010. 38 Idem. 35 o local de maior convívio fosse a cozinha onde, o trabalho e o entretenimento proporcionado pelas conversas acontecia. Através de sua narrativa, percebem-se os poucos recursos materiais que a casa possuía e, situada à beira de uma plantação, supõe-se que a mesma deveria ser muito fria no inverno e ainda, por serem pobres, provavelmente não tinham condições de adquirir roupas apropriadas suficientes para todos. As pessoas vão comendo e conversando, conversando e comendo, dando risadas e por vezes também se lamentando e chorando. A cozinha é o lugar da casa que é comum a todos que nela chegam, onde todos os membros da família, vizinhos e compadres/comadres podem estar ao mesmo tempo e fazendo a mesma coisa: compartilhando, juntos, os momentos que a vida proporciona, sejam eles de alegria ou de tristeza, de esperança ou de temores. A cozinha, para esta família, era, portanto, lugar de acolhimento, alimentação, conversação, confraternização e produção39. E como dona Nita cresceu observando e posteriormente participando, de forma ativa, do ofício da produção de fumo, ao se tornar adulta foi trabalhar em um dos vários armazéns de fumo instalados na cidade de Santo Antonio de Jesus. O armazém, segundo a mesma, era um grande galpão onde se armazenava a matériaprima para a produção de fumo, trabalho executado pelas mulheres, mas que também tinha uma área reservada na entrada do estabelecimento para a comercialização dos charutos, posto esse assumido pelos homens – o dono do armazém e/ou seus filhos e algum ajudante.40 Ao narrar com mais detalhes o ambiente de trabalho, assim como o processo de preparação de charutos, é nítida a satisfação em ter participado ativamente do “ciclo do fumo”. A emoção toma conta de seus olhos e de seu tom de voz que se torna mais compassado e suave, pois o fumo do Recôncavo Baiano era conhecido nacional e internacionalmente.41 O orgulho era saber que de suas mãos saía uma das melhores remessas de charutos para o Brasil e para o mundo, bem como presenciar em seu ambiente de trabalho a reprodução de seu ambiente familiar: o trabalho coletivo e permeado de companheirismo, amizades, mas por vezes também de tensões, como em 39 Dona Anita Santos de Santana, 82 anos de idade. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010. Idem. 41 Idem. 40 qualquer relacionamento de grupo social. A narrativa de dona Nita se apresenta de forma seletiva, pois evitou relatos de conflitos no ambiente de trabalho o que, de certa forma é compreensível, visto que alguns fatores podem ter influenciado nesta seleção, entre eles o fato da narradora ocupar uma posição na igreja na qual se relaciona com ex-trabalhadores e ex-patrões; outra possibilidade é de que tais lembranças sendo rememoradas lhes tragam mais dor. Assim, é provável que a exploração, o desânimo, o cansaço, a queixa contra os patrões e o regime de trabalho tenha existido, inclusive com a participação direta da entrevistada, pois há conflitos em todas as relações sociais, principalmente nas relações e ambientes de trabalho. Foi neste ambiente de labor que as mulheres, responsáveis em enrolar as folhas de fumo e produzir os tão cobiçados charutos, dividiam além da produção, os seus medos, alegrias, problemas domésticos, familiares e conjugais, firmando assim uma teia de relações por estarem todas submetidas a situações parecidas cotidianamente42. No entanto, no decorrer da entrevista, o semblante de dona Nita entristece ao relatar que foi obrigada a deixar o trabalho por um problema de saúde. Em plena idade ativa, dona Nita precisou se afastar da produção fumageira e a sua rotina foi totalmente modificada. Passou a cuidar, integralmente, da casa, dos filhos, do marido e da mãe, sua grande companheira de vida, que já se encontrava bastante idosa. Mas, o pior desse momento em sua trajetória de vida foi a diminuição de sua renda o que passou a dificultar o sustento da família que dependia, também, do seu trabalho para sobreviver. O marido, segundo ela, vivia de “biscates”, ora tinha serviço, ora não tinha. E, coincidência, ou não, esse afastamento aconteceu simultaneamente com a decadência da produção de fumo na cidade e região, causando impacto econômico nos armazéns e, consequentemente, nas plantações, gerando desemprego em massa e agruras há muitas famílias durante a década de 1960. Desse mal, a família de dona Nita não foi excluída, pois sentiu as dificuldades econômicas e sociais que essa crise proporcionou, já que não era somente ela que trabalhava com o fumo, mas, irmãos, tios, primos. Mas, juntos também superaram essas dificuldades trabalhando em serviços que iam aparecendo.43 42 43 Dona Anita Santos de Santana, 82 anos de idade. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010. Idem. Enquanto dona Nita nos relata uma experiência familiar com o fumo, dona Maria de Lurdes, falecida em janeiro de 2011, aos 76 anos de idade, nos relatou uma infância marcada, principalmente, pela figura do pai, o senhor Elias. Caracterizada pela sua paciência, solidariedade e com tom de voz bem baixo, devido à saúde já um pouco debilitada, dona Lourdes, como era popularmente chamada, sempre nos recebeu em sua residência de forma bastante acolhedora. Nascida e crescida em uma zona rural de Santo Antonio de Jesus, no lugar denominado de Boa Vista, afirma que a figura paterna em sua trajetória de vida foi de essencial importância: É uma grande firmeza que encontrei nele, firmeza mesmo, de vera. Através de meu pai eu comecei a sentir a vontade de caminhar pra igreja... Nós morava na roça, então aí a gente rezava era a ladainha de São Cosme, de Santo Antonio, Nossa Senhora da Conceição, às vezes São Benedito, o pessoal, ... se sabe que antigamente tinha aquela devoção segura, né? Aí, chamava... a gente acompanhava papai e aí... eu aprendi.44 Filha de pais agricultores cresceu em uma vida com poucos recursos, juntamente com mais três irmãos, ajudando nas tarefas domésticas, de roça e na feira, vendendo os alimentos que plantavam em seu pequeno quintal. Com o pai, dona Lourdes aprendeu a lidar com a terra, assim como a realizar as rezas. Esses momentos religiosos se realizavam nas casas de amigos e vizinhos, que por sinal eram bem distantes uma das outras, mediante convite. Toda a comunidade local era convocada a participar, assim como o rezador(a)45. Na comunidade da Boa Vista, cerca de setenta anos atrás, o principal puxador de reza era o Sr. Elias, o pai de d. Lourdes. É de intrigar. Porque não uma mulher, já que a figura feminina era preponderante nas lideranças religiosas em detrimento da masculina? Isso não quer dizer que o homem não tinha fé ou não praticasse alguma forma de manifestação religiosa, mas as tarefas masculinas e femininas eram padronizadas na sociedade: o homem cuidava do sustento da casa e a mulher dos afazeres domésticos, da educação dos filhos e da manutenção da religiosidade no seio familiar. No entanto, a família de dona Lourdes não está inserida nestes padrões familiares que, como podemos perceber, não são tão estáticos. O Sr. Elias era quem 44 Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009. Rezador é o nome dado pelo próprio grupo social aquele(a) que lidera as ladainhas, os hinos e ofícios durante a reza popular. 45 liderava, em sua comunidade e em seu lar, os momentos de devoção popular e fazia questão de ensinar aos filhos os diversos tipos de rezas e a importância de cada uma delas no calendário camponês. Ele era o “puxador” das rezas, papel este realizado comumente pela figura feminina. Mas, em sua família a mãe não tinha esse interesse religioso e só acompanhava o marido e os filhos quando havia a disposição para caminhar léguas nas estradas e ladeiras de terra da zona rural. Segundo dona Lourdes, sua mãe não era tão participativa nas rezas, como lembra: [...] Não, ela morava ... quer dizer ela não saía. Se fosse por perto ela ia, mas mais era papai que ia. Agora, a gente aprendeu muito na quaresma, papai sentava com a gente dentro de casa pra ensinar a rezar, e quando assim dia de sábado, também sexta feira a gente fazia nas casas que pedia, a gente ia [...]46 Pela narrativa acima, a mãe de dona Lourdes aparentava ser uma pessoa muito fadigada ou até mesmo doente; caso contrário, agia por conveniência – só acompanhava a família nas devoções populares quando lhe conviesse. Talvez por isso, pela figura materna se mostrar tão distante da rotina religiosa familiar, é que dona Lourdes tenha substituído a figura materna pela paterna em seu referencial religioso. Dona Milú, por sua vez, se orgulha da mãe Clementina por sua habilidade nas rezas, principalmente em romarias: [...] Minha mãe rezava muito bem, minha mãe não precisava de livro pra rezar, minha mãe rezava ofício de cor, ladainha... tudo de cor... tinha livros porque ela comprava, ela viajava assim ela trazia aqueles livros...mas, hinos ela rezava daqui na Lapa, daqui em Candeias, daqui em Brotas, o hino sabia todo de cor[...]47 Enquanto morava na roça, por não ser tão presente a figura sacerdotal nas atividades religiosas, e enquanto a comunidade ainda não tinha o seu templo, dona Lourdes conta que as famílias se reuniam em suas próprias residências para suprir esta necessidade de estar em contato com o sagrado, com seus santos e 46 47 Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009. Dona Armelina S. Oliveira, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. realizar as suas orações.48 Então, rezavam em ambientes domésticos em homenagem a vários santos como: São Cosme e São Damião, Santo Antonio, Nossa Senhora da Conceição, São Benedito, São Jorge entre outras devoções. Dos filhos do Sr. Elias, somente dona Lourdes incorporou esse legado de “puxadora” 49 de reza até o fim de seus dias em vida. Falci nos informa que: [...] Dentre os inúmeros santos curadores, destacamos pela sua grande permanência entre os cristãos e duração, na cultura popular, no Brasil, S. Cosme e S. Damião e S. Roque.[...] E além de terem especificidade na cura das doenças também tem especificidade nos lares. Cada família, ou cada cidade ou cada grupo mantém o hábito de cultuar um determinado santo para uma determinada doença. E a devoção atravessa gerações [...]50 O “puxador” de reza, segundo as lembranças de dona Lourdes, era uma espécie de líder espiritual da comunidade. Sua função era reunir as pessoas para os cultos devocionais, muitas vezes organizado pelo próprio “puxador” seja em sua casa, seja na casa de alguém que se dispunha a receber a reza, ministrando cânticos e orações Muitas pessoas possuíam devoções que as “obrigavam” a realizar anualmente determinada reza. Ao “puxador” cabia motivar a participação das pessoas e conduzir as orações, muitas das quais utilizando termos e cantos próximos do Latim51. Isso se deve a uma tradição herdada desde os tempos coloniais quando as orações católicas, inclusive a missa, eram feitas em Latim. Por conta das funções religiosas atribuídas ao líder espiritual - inclusive aos “puxadores e puxadoras” de rezas -, estes muitas vezes, eram responsáveis em batizar crianças à beira da morte e ministrar a extrema-unção para os adultos em perigo de vida, substituindo os padres, por muitos deles fazerem visitas à estas localidades de forma esporádica. Assim, homens e mulheres eram, na comunidade, 48 Ainda hoje, mesmo existindo as igrejas próximas, seja na zona rural, seja na periferia da zona urbana, as pessoas ainda se reúnem em residências para cultuar seus santos. Sobre isso discutiremos melhor no II Capítulo desta dissertação. 49 Puxador(a) de reza é aqui citado pela fonte oral com a função semelhante a do rezador(a). 50 FALCI, Miridan Brito Knox. Doença e Religiosidade. In: LIMA, Lana Lage da Gama et al (orgs). História e religião. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2002, p.138. 51 Sendo o Latim, até os dias atuais, a língua oficial da Igreja Católica, após as reformas implantadas pela Igreja no Concílio Vaticano II as missas e demais atos públicos passaram a ser realizadas em língua local, porém, em muitos lugares do interior do Brasil, se conservou a prática, em especial entre o povo mais simples, de rezar em Latim, como se fosse uma oração mais “original”, “pura”. pessoas com certo prestígio social, pois a elas, pobres ou ricos recorriam nos momentos que necessitavam de rezas. Segundo a tradição oral, ao contrário da religião praticada pela Igreja Católica, que atribuía ao padre o papel de líder religioso, destinado a enfrentar as preocupações espirituais dos fiéis cristãos, a religião praticada no campo era dirigida por homens e mulheres leigos, sem o estudo das disciplinas religiosas do catolicismo oficial. Eram, desse modo, os rezadores e rezadeiras que assumiam a liderança das práticas e rituais no catolicismo devocional, “puxando” as ladainhas aos santos do gosto popular, organizando procissões e peregrinações, conduzindo as novenas, trezenas, terços e ofícios. Era na presença desses e seguindo-lhes que os moradores dos tantos lugares espalhados pelo Recôncavo, desfiavam seus rosários, pagavam suas promessas, alimentavam suas almas pouco assistidas pela Igreja.52 Uma boa parte deles, também, por conta das funções religiosas, acabava se aproximando dos poderes oficiais – Igreja e Estado. Padres viam em muitos destes homens e mulheres pessoas de confiança para conduzir a comunidade, organizar as missas e, onde já tivesse capela, cuidar dos templos. Já os políticos e governantes, devido ao grau de popularidade e prestígio dentro e fora da comunidade, buscavam cooptá-los para suas hostes. Não raro, muitos líderes comunitários e religiosos se tornaram cabos eleitorais valiosos. Assim como dona Lourdes, dona Maria da Glória, atualmente com 78 anos de idade, também aprendeu a realizar as rezas a partir de sua vivência familiar. Segundo ela, para cada mês tem as suas respectivas rezas: em março, Nossa Senhora do Mont Serrat; maio, Mãe Rainha; junho, Santo Antonio, São João e São Pedro; em agosto, São Roque e Bom Jesus; em outubro, Nossa Senhora Aparecida e São Crispim, em homenagem à sua mãe: “[...] aqui, no dia 25 de outubro é o que eu vou rezar... que ela teve gêmeos...duas barriga de gêmeo[...]”53; dezembro, Santa Bárbara, São Cosme e São Damião e Santa Luzia. Segundo a mesma, tudo isso foi passado de geração em geração: “Já vem dos meus avôs, como Santo Antonio, São 52 JESUS, Elivaldo Souza de. “Gente de promessa, de reza e de romaria”: Experiências devocionais na ruralidade do Recôncavo Sul da Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado: Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006, p. 22. 53 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009, se referindo a intenção da reza em memória de sua mãe. João Batista, Santa Bárbara, São Cosme e São Damião, O Divino Espírito Santo, Nossa Senhora das Candeias, já é devoção dos meus avôs e de minha mãe.” 54 Esse encadeamento de rezas advém, como a mesma nos informa, de seus antecessores os quais moravam na zona rural de Santo Antonio de Jesus e região e se utilizavam das festas religiosas como um marcador de tempo, faziam, então, essa proeza de acordo com o meio ambiente em que viviam, ou seja, com as plantações, as colheitas, a chuva; como também as festas: nascimentos, falecimentos, casamentos, em quase tudo a base para a contagem do tempo eram as festas religiosas e suas respectivas rezas.55 Charles Santana nos afirma que “A religiosidade, fenômenos da natureza e elementos das atividades participavam, prioritariamente, na construção do tempo camponês. [...] como colheita de café, de flores ou a altura em centímetros das mudas de fumo quando prontas para o transplante [...]”.56 Sousa Júnior57, inspirado por Honaert, nos instrui sobre essa miscelânea de práticas religiosas, a qual caracterizou o refúgio da península ibérica. Portugal, por estar localizado estrategicamente sobre o mar, sofreu invasões de vários tipos de povos levando consigo o seu modo de viver e suas crenças. O “português do descobrimento” do Brasil, segundo o autor, já é fruto, portanto, desse contato entre as culturas de povos que se refugiou na Península Ibérica. Ao serem transportados para o Brasil, os portugueses encontraram, no Novo Mundo 58, hábitos de vida que não seguiam a conduta moral e religiosa conhecida e aprovada pelos mesmos. 59 Por isso, o país era considerado pelos mesmos como inferno, inicialmente pelos hábitos indígenas e posteriormente pelos dos escravos. E a religiosidade da colônia por estar tão distante de sua oficial igreja católica matriz possibilitou a instauração de 54 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009, se referindo a intenção da reza em memória de sua mãe. 55 Idem. 56 SANTANA, Charles D’Ameida. Farturas e Venturas Camponesas: Trabalho, cotidiano e migrações: Bahia 1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998. 57 JÚNIOR, Vilson Caetano de Sousa. Orixás, Santos e Festas: Encontros e desencontros do sincretismo afro-católico na cidade de Salvador. Salvador-BA: Ed UNEB, 2003. 58 Denominação dada por Mintz e Price ao analisar a chegada e o estabelecimento de povos africanos no novo e misterioso continente americano. Para conhecer melhor este Novo Mundo ver: MINTZ e PRICE, op. cit. 59 Para conhecer mais sobre esse tema ver: SOUSA, Laura de Melo e. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral Sexualidade e Inquisição no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Campus, 1989. variedades de cultos, marcados pela devoção “[...] com santos resolviam tudo, desde problemas de procriação a questões financeiras[...]”60. Fato este que dona Conceição “Madeira”, senhora aposentada e devota de Santo Antonio, conhece bem: Ele fez uma graça muito grande para mim. Tava pra ter um filho e chamava, “ai meu Santo Antonio”, aí passei mal, desmaiava todo dia, todo dia desmaiava, “ai meu santo Antonio”. Meu Santo Antonio se você me ajudar que a criança nasça em paz eu não vou perder uma festa e vai se chamar Antonio e o meu santo que eu tenho em casa vou dar pra ele ter como seu padroeiro em casa. Eu tive uma gravidez complicadíssima, tive uma queda, mas graças a Deus e a Santo Antonio, ele foi nosso intercessor e ele nasceu perfeito.61 O poder do santo, segundo dona “Madeira”, pode ser comprovado pelas graças que este santo lhe proporcionou, sendo o nascimento de seu filho a mais marcante. Hoje com saúde debilitada por uma deficiência na perna esquerda sendo amparada por uma muleta, não aguenta caminhar por trajetos longos. Seu cabelo sempre tingido, solto ou amarrado em coque, seu jeito atencioso, dona “Madeira” como é mais comumente chamada, relata este fato da sua trajetória de vida com tanta “veracidade” que nos faz sentir participantes da cena. Através de seus olhos arregalados, sua voz ofegante e toda a sua performance corporal, gesticulando com os braços, tenta transmitir o que viveu naquele determinado momento de sua gestação e nascimento do filho. Nossa narradora conta, então, que homenageou o santo registrando o filho com o nome de Antônio, bem como se comprometeu com o seu agraciador em participar de todas as trezenas62 e doou a imagem do santo que tinha em casa para o seu filho, quando este fundou a sua família, como forma de mostrar e provar ao mesmo quão “poderoso é este santo”.63 É a partir de fatos como esses que Steil64 afirma que são nos momentos mais difíceis da vida que o homem religioso faz seus pedidos aos santos, prometendo-lhe algum sacrifício em troca. E continua, “[...] Estabelece-se dessa 60 SOUSA JÚNIOR, op. cit., p. 80. Dona Maria da Conceição “Madeira”, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 02 de junho de 2010. 62 São as treze noites de reza em homenagem a santo Antonio, sendo o seu dia festivo dia 13 de junho. 63 Dona Maria da Conceição “Madeira”, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 02 de junho de 2010. 64 STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e Cultura. In: VALLA, Victor Vicent (org.). Religião e Cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001. 61 forma, um sistema de troca de bens simbólicos, entre vivos e mortos, geralmente narrados como milagres, envolvendo os fiéis e os santos, numa mesma comunidade lingüística e de sentidos.” 65. Essa relação devocional66 entre o fiel e o santo pode ser observada na foto abaixo em que os fiéis ajoelham-se diante da imagem do santo para realizar vários pedidos, orações, promessas, e existem aqueles que colocam cartas e mensagens atrás da imagem, pois acreditam que somente a verbalização da prece não funcionará, assim como oferendas financeiras com o intuito de querer “comprar” o santo, fazendo o pagamento da graça mesmo antes de sua realização. Observe a foto a seguir: Foto 02: Altar da Igreja Matriz de Santo Antônio Fonte: Foto de Melina de O. Bittencourt, em 12 de junho de 2006 A Foto 02, aponta para uma diversidade de práticas devocionais que resistem ao tempo e são expressas publicamente por seus fiéis através do culto particular e/ou coletivo realizado tanto no templo religioso oficial da igreja e/ou em suas respectivas residências. Nesse instante de manifestação devocional realizado 65 Idem. p. 22. Ibidem. Para saber mais sobre sacrifícios religiosos, ver também, ROSENDAHL, Zeny. Espaço, Cultura e Religião: Dimensões de Análise. In: ROSENDAHL, Zeny e CORRÊA, Roberto Lobato (org). Introdução à geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 66 após a missa – celebração oficial da igreja católica – o devoto busca um contato ainda mais próximo com seu santo padroeiro em preces e orações por vezes silenciosas e recolhidas, outras de forma mais expansiva. É relevante observar que, para estas fiéis apenas o rito missal não foi suficiente para expressar a sua devoção, as suas necessidades, sejam pedidos ou agradecimentos. Ajoelhadas diante da imagem do santo padroeiro da cidade, essas fiéis que participaram da missa desejam também um momento de “conversa” com o santo, sem a intermediação de ninguém, que no caso da missa esse papel de interlocutor é feito pelo padre. Esses momentos de devoção popular, segundo Steil, [...] São, na verdade, o lugar onde o invisível se torna acessível e palpável. [...] Através das imagens se estabelece uma comunicação entre vivo e mortos. Fundado no dogma da comunhão dos santos, esse modelo de catolicismo cria uma cosmologia em que as fronteiras entre a vida e a morte são continuamente ultrapassadas sem necessariamente a mediação de agentes especializados. As relações entre os santos e os fiéis são pessoais e baseadas no princípio da proteção e lealdade. Cada fiel tem seu santo protetor, ou seu padrinho celestial, que em contrapartida lhe pede lealdade. 67 A escolha do santo preferido é feita pelo fiel, ou seja, o indivíduo determina qual é o seu santo protetor e agraciador de seus pedidos de acordo com os critérios existentes em cada época e em cada sociedade. A devoção a santo Antônio, por exemplo, é em grande parte devido ao surgimento nesta cidade de um oratório dedicado ao santo português erguido pelo padre Mateus, considerado o fundador da Vila. Por ser o santo fundador e, por isso, padroeiro da atual cidade que leva o seu nome, foi se tornando alvo de devoção por todos os que aqui passavam e os que, posterior e vagarosamente por aqui foram fixando as suas residências e comércio. É conhecido, popularmente como santo casamenteiro, mas também adquiriu o título de santo que acha todas as coisas perdidas desde um alfinete a um escravo68. Por conta disto se tornou padroeiro do exército e recebeu as mais variadas e importantes patentes militares.69 67 STEIL, op. cit., p. 21-22. Parafraseando Mott (1996), é válido ressaltar que o apelo ao santo pelas coisas perdidas somente iniciou dois séculos após sua morte, e a partir de 1600, este santo escalou todos os postos da hierarquia militar, “tornando-se o principal santo guerreiro da cristandade e recuperador de escravos prófugos no Brasil”, pois foi nesse século que os negros aquilombados nos palmares causaram as maiores inquietações aos donos do poder. Santo Antonio é, então, associado à segurança e tranqüilidade desde o século XVII e a partir de 1612, passou a assumir o posto de “capitão do mato” 68 Padre Antônio Vieira, conterrâneo de santo Antônio, foi, provavelmente, quem mais pregou e publicou sermões sobre este santo. Através de seus sermões, Vieira intitula santo Antônio como santo universal, onipresente e atendedor de toda e qualquer tipo de prece. Se vos adoece um filho, santo Antônio[...] Se vos foge o escravo, santo Antônio[...]Se requereis um despacho, santo Antônio[...]Se aguardais a sentença,santo Antônio[...]Se perdeis a menor miudeza de vossa casa, santo Antonio[...] e talvez se quereis os bens alheios, santo Antônio[...].70 Vale ressaltar que as orações creditadas a este padre, não são reconhecidas pela igreja – através da ausência destas nos rituais oficiais - assim como algumas outras práticas devocionais - as fitas de Bom Jesus da Lapa e Senhor do Bomfim – as quais são manifestações que sobrevivem, essencialmente, por conta da devoção popular, pois a religião foi abastecida por esses elementos ao longo do tempo, mesmo não sendo aceitos explicitamente pela Igreja. Isso se dá porque a Igreja necessita dos devotos para assim também continuar com o exercício de seu poder. Nascida na localidade do Bonfim, zona rural de Santo Antonio de Jesus, dona Glória também recorre, sempre que necessário, a Santo Antonio. Até chegar à sua atual moradia ela conta que residiu em várias localidades da cidade, já que a sua família não tinha casa própria, percorrendo a região desde a fase infanto-juvenil e alcançando a idade adulta buscando, provavelmente, na transumância “[...] a maleabilidade necessária para escapar da penúria e da fome, da violência que entrelaçava ao mandonismo local e aos recrutamentos forçados [...]” 71. Sua família, desfavorecida financeiramente, se restringia à sua mãe, uma tia materna e irmãos, pois não conheceu o pai. Mas, o nome de seus antecedentes ela conhece e faz questão de destacá-los em vários momentos da entrevista, talvez como uma forma de demonstrar uma constituição familiar sólida. Apesar da idade, ela lembra com ou “capitão do campo”. No entanto, foi a partir do século seguinte que esse novo título ganhou impulso, conquistando a fé não só dos cristãos, como também de ciganos, feiticeiros e dos negros, cada um com sua reza. Ver mais em MOTT, Luis. Santo Antonio, O Divino Capitão do Mato. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (org). Liberdade por um Fio. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 69 Idem. 70 Para conhecer mais sobre estes sermões ver mais em: MOTT, op. cit., p.114-115. 71 NOVAIS, Fernando A. (coordenador geral da coleção). SEVCENKO, Nicolau (organizador do volume). História da vida privada no Brasil.Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 59. facilidade de todos os consanguíneos mais próximos - um exercício de memória realizado constantemente. Segundo a mesma, justamente para não esquecer a sua história genealógica, o nome de seu avô paterno era Vitulino [Vitorino] Cardoso, materno era Manoel José -“era homem de engenho” -, que apesar de não ter conhecido esse avô lembra-se de momentos em que sua mãe contava histórias sobre ele - o Mané José72. Seu pai era Manuel Teodoro dos Santos e sua mãe Maria Germana dos Santos, e continua com sua voz itinerante e de forma precisa a valorizar os membros familiares: “[...]minhas tia (materna) Maria Lucilia dos Santos e Maria Santiago dos Santos, morreu todas três aqui (a mãe e as duas tias) foi nesta casa. E a minha avó materna era Maria Florinda de Jesus” (grifo nosso). Esta casa refere-se a sua atual residência, na Rua do Cajueiro, periferia de Santo Antonio de Jesus. mesma rua em que se localiza a residência de dona Nita e dona Lourdes, nossas outras duas personagens. Por não ter convivido com o pai, a família de dona Glória se destaca pela liderança doméstica da mãe e tias e, posteriormente, da geração feminina seguinte. É notório também em sua memória o registro apenas do nome do pai e avô paterno, não detalhando a árvore genealógica paterna, que pode ser justificada pela não convivência com o pai e seus consanguíneos. O que se destaca no desenrolar de sua fala é a importância da figura materna ao descrever a origem de sua família. Segundo dona Glória, sua mãe contava, de vez em quando, histórias sobre o seu avô Mané José, como era popularmente conhecido o “homem de engenho” 73, como a que se segue: Sim, falava dele que ele trabalhava,... que antigamente os negros não tinha autorização que hoje tá tendo não! Bebeu, o pau comia (gargalhadas), castigo (mais gargalhadas). E a esposa dele, minha vó, mamãe não contava muita... que ela era, minha vó era, minha bisavó ela era calada, ela num falava por isso que num tem história dela. Mas meu avô tinha história ... de que ele trabalhava.74(grifo nosso) 72 Mané José é um encurtamento no ato da fala da narradora a se referir ao nome Manuel José, avô materno de dona Glória, o qual também era assim conhecido no ambiente de trabalho – engenho – e que foi perpetuado até a geração da mesma através da tradição oral. 73 Como era popularmente chamado o avô materno de dona GlórIa e que permanece até os dias atuais em sua memória. 74 Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010. O “homem de engenho” é facilmente lembrado pela neta através da tradição oral, ao contrário da ausência de narrativa sobre a avó, a qual só é caracterizada pela mesma como uma mulher calada75, logo não participa ativamente de sua memória. Ou seja, é possível que a tradição oral passada ao longo desta geração não destacou o papel da avó em detrimento da supervalorização do Mané José como “homem de engenho”. As histórias pertencentes ao contexto escravo, em que a geração de dona Glória não viveu, contadas por suas antecessoras provavelmente inebriou os seus sentidos com os casos de heroísmo e sacrifícios, sendo os escravos personagens ativos e construtores da sociedade e, por realizarem grandes feitos, são referencial principalmente entre os seus. As gargalhadas, presentes nesta narrativa, podem denotar várias interpretações. Pode retratar algo realmente engraçado, mas como se fala dos maus tratos aos negros, é possível que não seja esta a causa; pode, também, se referir ao orgulho em ser descendente de escravo; ou, até mesmo, como em uma atitude dissimulada, demonstrar a rápida angústia por imaginar o que seu avô passou nas mãos de seus senhores, disfarçando um sentimento em ser bisneta de um escravo que, pela sua fala, era atrevido e, por isso, deve ter apanhado muito.76 Provavelmente, dona Glória relembrou este episódio familiar motivada pelo desejo de deixar registrada em sua trajetória de vida fatos importantes para se afirmar historicamente e se diferenciar de outras trajetórias de vida. A mãe de dona Glória, por sua vez, que criava os filhos sem a ajuda do pai, era, segundo a mesma, multifuncional: trabalhava na roça com plantações, fazia panela de barro, bolo, lavava e passava roupa do colégio das freiras 77 – Colégio Santo Antonio -, e tantas outras coisas mais, pois segundo a mesma, era [...] pra nos criar e botar num caminho pra não proceder mal...foram ...oi três, não peraí...eu fui a primeira, ...Ana Maria, Mané Mariano, 75 Característica passada para d. Glória por seus antecessores através da tradição oral. Importante ressaltar que, mesmo sendo este tempo narrado pela entrevistada, muito aquém do “tempo da roça” percebe-se que a vida dela foi influenciada diretamente pelas narrativas que ela afirma ter ouvido de seus pais durante a infância. Assim o “tempo da roça” foi marcado pelas histórias que ora é recontada pela entrevistada. 77 O Colégio Santo Antonio era popularmente identificado como colégio/internato das freiras por ser direcionado e lecionado pelas mesmas. Atualmente, essa instituição faz parceria com uma rede de ensino conhecida nacionalmente pelo seu bom desempenho na aprendizagem do alunado, bem como a direção e alguns cargos administrativos e de apoio são ocupados pelas freiras da ordem Mercedária enquanto o quadro magisterial e pedagógico é ocupado por profissionais das respectivas áreas, não sendo partícipes da ordem. 76 Maria Jose e Zé Mané. Foi dois homens e três mulheres. Ela tinha 2 a 2 (intervalo de 2 anos de uma gestação para outra).78 (grifo nosso) Percebe-se pelo relato de dona Glória que dona Germana, sua mãe, não se dava por satisfeita com sua situação econômica e social, procurando meios de melhorar a renda familiar e conseguir criar seus filhos. Como não possuía terra para trabalhar e nem um emprego fixo, aceitava qualquer trabalho que lhe rendesse algum dinheiro. Ao todo foram cinco filhos, sendo três mulheres e dois homens e todos tem em comum o nome Maria, entre as mulheres, para continuar com a tradição do nome Maria na família, e Manoel entre os homens em homenagem a seu avô. Segundo o modelo de normatização familiar presente no início do século XX como forma de controlar as ações sociais, aos pais, segundo Azzi, [...] competia ‘criar’ os filhos, o que significava não apenas dar-lhes a vida mediante a geração, mas também zelar para que essa vida desabrochasse e se desenvolvesse, oferecendo-lhes um lar, onde tivessem o agasalho, o alimento necessário, para que pudessem crescer saudáveis[...].79 E Hildegardes Viana em suas memórias, apesar de possuir um olhar de cima, a partir da elite soteropolitana, tem pensamentos semelhantes aos das nossas narradoras quanto à valorização da educação familiar. Ela afirma ainda que uma boa educação era imprescindível a todos os indivíduos, independente de sua faixa etária e classe social, pois as famílias “[...] Avaliavam pessoas de acordo com o temperamento de cada uma. Estabeleciam uma espécie de classificação em que, além da indispensável educação doméstica e boa moral, a maneira de ser contava muito.” 80 Mas, as condutas descritas acima não eram seguidas à risca por todos o indivíduos, até mesmo porque existiam outras vertentes de valores familiares. As condutas apresentadas são representações da vivência familiar das entrevistadas presentes nesta Dissertação. Segundo dona Glória, aos quatro anos de idade seu pai faleceu, foi quando sua mãe passou a ser responsável pelos cinco filhos, sendo que, ainda na 78 Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010. AZZI, Riolando. Presença da igreja na sociedade brasileira e formação das dioceses no período republicano. In:SOUZA, Rogério Luiz. OTTO, Clarícia (orgs). Faces do Catolicismo. Florianopólis: Insular, 2008, p. 24. 80 VIANNA, Hildegardes. Antigamente era assim. Rio de Janeiro: Record; Salvador, BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1994, p. 22. 79 infância, três deles faleceram ficando apenas ela e sua irmã Ana Maria. A mortalidade infantil, que sempre esteve presente em muitos lares brasileiros, principalmente naqueles mais pobres onde não havia uma alimentação adequada com escassez de substâncias essenciais para a sobrevivência e fortalecer o sistema imunológico, bem como não possuíam uma infra-estrutura adequada à condição de moradia, provavelmente atingiu a família de dona Glória.81 Episódios como esses aconteciam e ainda acontecem em famílias pobres as quais não tinham acesso fácil ao atendimento médico e quando as crianças eram acometidas por algum mal fisiológico não resistiam e faleciam82. Aparentemente, esse fato na vida de dona Glória não interferiu em seu emocional, é o que ela teima em demonstrar. Porém, ao lembrar-se dos nomes de seus irmãos que faleceram, quando ainda eram crianças reflete, através de seu semblante abatido, as dificuldades que essa família viveu e como fez para superar esta dor. Talvez, uma forma de tentar superar a dor tenha sido o esquecimento. Este é um artifício utilizado pela memória83 para fazer com que as experiências ruins não transformem o presente cotidiano em dores, sofrimentos e angústias.84 Um parêntese. Estas vivências de dona Glória, marcadas principalmente pelas suas condições de vida situadas nos limites da pobreza, foram, em parte, responsáveis pela inserção de nossa entrevistada no mundo religioso. Esta temática será melhor discutida no próximo capítulo. Dona Maria da Glória, para ajudar a mãe e sua irmã, acompanhava-as nos serviços, realizando trabalhos em casas de família, como domésticas. Destacase aqui, mais uma vez as condições sociais da entrevistada, e sua família, e os meios de sobrevivência encontrados por eles para garantir o sustento. De forma preponderante esse, também, foi o destino de outras mulheres nas primeiras décadas do século XX. O trabalho doméstico, a exploração desta mão-de-obra negra e pobre, foi o encaminhamento dado por uma sociedade que trazia resquícios de um longo e recém-concluído período de escravidão85. 81 PRIORI, Mary Del. História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto 1999. Para melhor conhecer a saúde no Brasil nos séculos XIX e XX ver: CHALLOUB, Sidney et al(org.). Arte e Ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003. 83 Para saber mais consultar: LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5 edição. Campinas-SP: Ed. Unicamp, 2003. 84 POLLACK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989. 85 FRAGA FILHO, op. cit.. 82 Uma forma da entrevistada querer driblar esta realidade é, em vários momentos da entrevista, afirmar os laços de “amizade” entre ela e sua mãe e as famílias para as quais trabalhou e que, segundo ela, se perpetuam até os dias atuais86. Deste tempo, dona Glória traz algumas permanências como o fato de, quando pela primeira vez, deixou de trabalhar em casas de família passou a integrar o quadro de funcionários públicos do município de Santo Antônio de Jesus, com a função do que se denomina hoje de Auxiliar de Serviços Gerais (ASG), responsável pela limpeza e arrumação do ambiente escolar. Sobrevivendo a partir da demanda e das necessidades da família, dona Glória aposentou-se e isso lhe rendeu uma segurança salarial para amparar a sua velhice87. Enquanto a vida de dona Maria da Glória na juventude foi marcada pelo trabalho como forma de sustento para a família, o grande sonho de dona Lourdes era estudar, preferivelmente, no “Colégio das Feiras” em Santo Antonio de Jesus. No entanto, a vida lhe reservou um destino semelhante ao de sua futura vizinha, dona Glória. Ela relatou o fato de que, parte de sua infância e adolescência, foi vivida na casa de um familiar na cidade de Santo Antônio de Jesus 88. Segundo dona Lourdes, sua vinda para a cidade, ainda criança, aconteceu devido ao desejo de estudar no Colégio Santo Antonio, instituição de ensino liderada por freiras e que tinha como público as crianças e adolescentes de famílias financeiramente bem favorecidas da cidade e região, funcionando também como internato. Como não pertencia ao grupo social de principal clientela do colégio – crianças e adolescentes de posses -, ao qual se destinava para conseguir esta vaga, a sua mãe foi pessoalmente pedir auxílio ao poder executivo – prefeito Antonio Fraga, em 1947 - para conseguir a vaga e realizar o sonho de sua filha, já que não tinha condições financeiras para custear os estudos89. Esta narrativa nos faz refletir se este sonho era originado por ela ou seria uma vontade dos pais em colocá-la em uma escola de freiras para que futuramente se tornasse uma, já que se destacava no seio familiar e na comunidade como uma menina de hábitos religiosos. Podemos pensar, no entanto, que uma das formas de ascensão social das famílias pobres e negras, desde os tempos coloniais, era a vinculação em grupos religiosos ou irmandades que lhes pudesse, não só garantir um 86 Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010. Idem. 88 Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. 89 Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. 87 reconhecimento e prestígio dentro das várias camadas da sociedade, mas um espaço de sociabilidades onde surgiam redes de solidariedade formada por pessoas que possuíam uma origem e uma realidade semelhante e, cujos membros se valiam uns dos outros nas necessidades90. É possível que os pais de dona Lourdes também vissem na educação uma forma de ascensão social ou de garantia de um futuro menos sofrido para sua filha, em especial através do magistério, profissão muito valorizada nos meados do século XX e cujo principal local de formação das professoras da cidade e da região era o Colégio Santo Antônio91. Para alcançar este intento, portanto, dona Lourdes precisou deixar a casa de seus pais, com apenas sete anos de idade, e se instalar na casa de parentes. Ao ingressar nesta nova fase de sua vida ela não era considerada apenas uma visita, mas, também, uma espécie de empregada doméstica92. A condição de agregada e doméstica, disfarçada pela condição de parente, foi um dos meios pelos quais muitas pessoas exploraram o trabalho alheio e mantiveram vivas as formas de dependência oriundas do período da escravidão. Essa foi apenas uma delas. São os prolongamentos das maneiras informais de exploração e dominação da escravidão que adentraram a era do pós-abolição e mantiveram pessoas na condição de dependência e de exploradas93. Além da mudança do espaço geográfico94 a qual pertencia, saindo do rural e partindo para o urbano, e de estar longe da família, foi imposto sobre dona Lourdes o dever de cumprir com os afazeres domésticos: limpar, cozinhar, lavar roupa, entre outras tantas tarefas95. Segundo a mesma, quase não dava tempo para estudar, pois, quando a noite chegava já estava tão exausta que lhe faltavam as forças para realizar as atividades escolares. Essa realidade desconfortável levou dona Lourdes a “implorar” seu retorno para casa dos pais, mesmo sendo mais longo 90 Sobre Irmandades negras ver: OLIVEIRA. Anderson José Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet: FAPERJ 2008. 91 TEIXEIRA, Moema De Poli.”Negros e universidade”: identidade e trajetória de ascensão social no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1998. 157p.Tese (Doutorado) Museu Nacional/UFRJ. 92 Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. 93 Para melhor compreender a exploração do trabalho no pós-abolição consultar: FRAGA FILHO, op. cit. 94 Categoria de análise da ciência geográfica. Corrêa o define como “[...] a morada do Homem. [...] é multidimensional.[...]”. Para melhor aprofundamento sobre o conceito de espaço geográfico ver: CORRÊA, Roberto Lobato. Espaço: um conceito-chave da geografia. In: CASTRO, Iná Elias de. GOMES, Paulo César da Costa (et al). Geografia: Conceitos e Temas. 5ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 95 Dona Maria de Lourdes, 76 anos. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. o caminho para chegar até a escola e que tivesse que acordar mais cedo e andar léguas para chegar lá. Com o passar do tempo, por conta destes muitos empecilhos, dona Lourdes, aos 15 anos, deixou de frequentar a escola. Logo que se afastou da educação regular, além de costurar, dona Lourdes iniciou na profissão de professora em sua própria comunidade local, Boa Vista, em uma escola particular. Era comum que, nas áreas rurais, algumas pessoas com melhor formação fossem recrutadas para exercer o magistério.96 Mesmo sem ter concluído a sua formação, dona Lourdes se tornou funcionária pública municipal sendo efetivada como professora. Segundo ela, “[...] inté hoje guardo o papel da posse...é... a portaria”97, tamanha foi a importância desse emprego. Ali, durante a entrevista, transparece o orgulho da entrevistada em ter superado um destino que se mostrava não tão favorável. A trajetória de vida de dona Lourdes aponta para a questão da importância do período de seus estudos. Mesmo sem afirmar de forma direta, a sua fala deixa entrever como sua trajetória estudantil lhe rendeu muito mais que os conhecimentos escolares: [...] E por sinal estudei no colégio das freiras, ali já sabe que é...aí nos meus 7 anos eu passei pra estudar no colégio das freiras e fiquei até os 15 anos. Quer dizer, não internada sabe, mas ali certo com a igreja com as freiras tem aquele horário certo de rezar, levava a gente na capela pra lá fazer orações, tudo aí isso me marcou muito.98 Com a vida permeada pela experiência religiosa trazida, inicialmente, através da vivência familiar - porém nem sempre vinculada ao catolicismo oficial – e continuada pela instituição de ensino por cerca de 8 anos, segundo cálculos da mesma, lhe proporcionou um acréscimo na bagagem religiosa, tais como: conviver com pessoas que não faziam parte de seu cotidiano rural, organização de tempo, respeito à hierarquia, conhecer outras formas de rezas – oficializadas pela Igreja - e a importância de estar em contato com o sagrado constantemente e, através da observação, o papel de liderança99. Os valores dessa instituição escolar, regida pela igreja católica, que tinha uma prática educacional feminina diferenciada da masculina para atender aos 96 LOPES, Eliane Marta & GALVÃO, Ana Maria. História da educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. Dona Maria de Lourdes, 76 anos. Entrevista coletada em 14 de julho de 2010. 98 Idem. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. 99 Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. 97 anseios da elite local, pois valorizavam a formação de seus descendentes em pessoas “dignas”100, inserindo-as na sociedade de forma que a religião católica tivesse espaço privilegiado. Além de ter como clientela a elite local e regional de Santo Antonio de Jesus, o “Colégio das Freiras” possuía, consequentemente, um alunado predominantemente branco. Foi inserida nesse contexto que dona Lourdes, menina negra e de família pobre passou a conviver com pessoas pertencentes a um contexto social bastante oposto ao seu. Dona Lourdes afirmou ter se adaptado bem a escola durante o tempo em que lá esteve. Mesmo em nenhum momento da entrevista ela tenha relatado algo que possa negativar a instituição de ensino, nem na dimensão da estrutura física nem na humana (dirigentes, professores e funcionários), percebe-se uma constante tentativa de dona Lourdes, durante a entrevista, em explicar e justificar uma suposta aproximação entre negros e brancos. Afirmou, ainda, ter se aproximado dos alunos mais ricos e que tais momentos eram prazerosos101. Seria “ingenuidade histórica” pensar que dona Lourdes, que se tornou forte liderança religiosa na comunidade – era Ministra da Eucaristia – dentro das práticas religiosas oficiais da Igreja, apresentaria de forma espontânea algo que desabonasse um órgão da igreja à qual ela se tornou uma representante. Assim, é preciso que o historiador atente para os silêncios do entrevistado.102 É válido salientar que para as autoras das narrativas presentes nesta Dissertação não há uma divisão aparente entre a devoção oficial e a popular, pois, inclusive, assumiram ou ainda assumem cargos importantes no catolicismo oficial. O que motivou os silêncios de nossa narradora? Podemos supor que um medo de exclusão dentro do seu atual mundo religioso ou o constrangimento de reconhecer ter sido alvo de discriminação por conta de sua situação social ou cor, essas são algumas possíveis causas do seu silêncio. Mais adiante, por conta do fato que passarei a analisar, estas possibilidades ganham força. Trata-se do período em que ela estudava o ginásio103. Nossa narradora relembra com bastante saudade e aparente mágoa, que, nesse período, havia um garoto em sua sala de aula, “[...] 100 A característica digna refere-se ao seguimento dos valores culturais da época. Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. 102 Sobre os silêncios na História Oral ver: HALBAWCHS, Maurice. Memória Coletiva. São Paulo: Centauro.2006. 103 Nomenclatura correspondente ao Ensino Fundamental, atualmente. 101 muito bonitinho, educado [...]”104 e que a paquerava e era correspondido pela mesma. A narrativa de dona Lourdes, em parte da entrevista, foi impregnada por um tom dramático ao relatar que sua família se posicionou terminantemente contra qualquer tipo relação com o garoto branco. Segundo ela, sua mãe a alertava, constantemente, “[...] que o branco só quer nos fazer mal, eles são interesseiros, não devemos nos aproximar deles”105. Mas, para a jovem menina, aquele garoto não representava nenhum perigo aparente, pois tinham afinidades e gostavam de partilhar os momentos quando estavam juntos. O imaginário dessa família acerca do homem branco tem justificativas reais em uma raiz profunda e longínqua. Segundo dona Lourdes, essa aversão às uniões conjugais entre negros e brancos teria nascido, ainda, durante a época da escravidão. De acordo com a história oral passada de geração em geração em sua família materna, a sua bisavó, que era “mulher de senzala...vivia na mata” 106, foi vítima de assédio sexual por um dos filhos de seu senhor e desse relacionamento nasceu esta sua bisavó a qual foi desamparada pelo suposto pai branco. Situações como estas estão registradas pela historiografia colonial, em que os setores escravos e senhores não deveriam se envolver sexualmente e, na grande maioria dos casos, segundo Mintz e Price107 “para os colonos, era crucial negar que tais relações pudessem ocorrer...”108 para não manchar a sua imagem de homem de moral ilibada. No entanto, existem também registros em que a união conjugal foi assumida publicamente por ambas as partes, envolvendo nesta relação não só o ato sexual, mas também o sentimento forte que os unia como casal. Estes casos, segundo estudos historiográficos, são minoria, sendo os registros de casos, como o exemplo que aconteceu na família de dona Lourdes, a maioria dos contabilizados. Segundo a avó, a prole oriunda desse contato físico entre escrava e senhor, com quem dona Lourdes conviveu e acompanhou muitas vezes no trabalho em mina de manganês, localizada na região de Santo Antônio de Jesus, levando o 104 Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. Idem. Dona Lourdes reproduzindo o que as mulheres de sua família acreditavam. 106 Idem. 107 MINTZ e PRICE, op. cit., p. 48-49. 108 Mintz e Price também nos relatam exemplos de uniões ilícitas que se tornaram conhecidos ao público através de uma análise minuciosa e atenta de registros judiciais, bem como o outra face da união sexual, que além de ser em forma de exploração e violenta, existiram também aqueles “marcados por ternura e afeição.” (p.50). Para aprofundar mais sobre os primeiros contatos entre as cultura americanas e africanas, consultar MINTZ e PRICE, op. cit.. 105 seu alimento ou qualquer outro serviço que sua mãe mandava, sempre afirmava que o “homem branco não presta”109 relembrando, através da tradição oral, essa marca negativa da presença do branco. Com as experiências adquiridas ao longo de sua trajetória como professora, inicialmente em uma escola particular e posteriormente em um prédio escolar, próximo a sua casa, na zona rural da Boa Vista, que atendia às crianças e adolescentes da comunidade formando salas multisseriadas110, bem como sendo a única professora da localidade onde, também, ensinava o catecismo para a mesma clientela, dona Lourdes passou a se destacar como liderança na comunidade local111. Trazendo na memória a figura paterna, materna e da família como um todo, dona Lourdes, dona Glória, dona Milú e dona Nita, respectivamente, justificam essa forte lembrança pela herança religiosa deixadas por eles e que vamos conhecê-las mais à frente, sabendo-se que mesmo tendo bons momentos na infância e juventude, os maus também se fazem presentes em cada trajetória, no entanto são prontamente selecionados por seus narradores para não serem relatados em sua plenitude. Estes são, segundo Giraudo, “[...] um lembrete irônico de que o processo de conscientemente rememorarmos não apenas nos permitem contar as histórias difíceis que tem de ser passadas adiante, mas também nos permite encontrar um sentido para nossas vidas individual e coletiva.”112 As narrativas, presentes neste trabalho estão permeadas pela seletividade da memória em que o entrevistado, consciente ou inconscientemente, destaca em suas falas aquilo que ele achou importante e, principalmente, os fatos considerados positivos. Os episódios de vida que possam causar qualquer tipo de desconforto perante o grupo social, os seus ou a si mesma são raramente declarados e, quando isso acontece, é de forma pontual e discreta para não necessitar entrar em detalhes sobre o assunto. A tradição oral, portanto, permite, tanto para quem ouve como para quem fala, ressignificar a própria existência. 109 Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. São salas de aula que comportam alunos de diversas séries simultaneamente. 111 As lideranças comunitárias não exercem apenas o papel religioso, elas exercem, também, um papel político importante em reivindicar melhorias para aquela comunidade da qual faz parte. Geralmente, assumiam este papel aqueles que eram alfabetizados , pois, como a maioria dos moradores da zona rural eram analfabetos, o líder comunitário era responsável em fazer aquelas pessoas “se comunicarem” com o mundo oficial dos bancos, governos, etc. 112 GIRAUDO, José Eduardo Fernandes. Poética da Memória: uma leitura de Toni Morrison. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1997. (MOBLEY, 1973, p.197 apud GIRAUDO, 1997, 103). 110 1.2 Momentos de devoção: a família e a comunidade O ambiente rural proporciona a seus moradores uma religiosidade caracterítica que se desenvolveu num processo misto de afastamento e proximidade com o catolicismo oficial e que é aceita pelo grupo como forma de se comunicar diretamente com seus santos, constituindo-se como uma manifestação peculiar de fé e devoção. Essa religiosidade, para existir, não faz distinções de classe social, faixa etária ou até mesmo origem étnica e grau de escolaridade. Ela está presente em todos os lugares em que o ser humano necessita de momentos para transpor a realidade e alcançar a transcendentalidade.113 A existência das devoções populares, representadas pelas rezas em casa, pelas caminhadas e procissões lideradas por leigos, advém desde o início da colonização, quando elementos da religião católica foram absorvidos pela sociedade e posteriormente reinterpretados de acordo com os costumes e práticas das diferentes culturas. Ao longo do tempo, o caminho da religiosidade européia se somou a outras advindas de outros povos como os nativos e os africanos. A partir desta simbiose formou- se um aparato religioso peculiar com suas variações de crenças e ritos. No entanto, é válido ressaltar que não se refere a sincretismo, como bem afirma Euclides Marchi: Não se trata de um mero sincretismo religioso ou da sobreposição de rituais e crenças, mas da construção de uma religiosidade vivenciada nas suas crenças, nos seus ritos e nos santos de sua fé. Como diz Otto, foi e é uma “experiência do sagrado” sem necessidade de intermediação, de fórmulas prontas e estáticas.114 Os ritos realizados a partir desta manifestação religiosa são produzidos e reproduzidos sem a necessidade de uma aceitação formal por parte da igreja católica e/ou pelo grupo social local. Isso não significa que com essa pluralidade de 113 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Tradução de Fernando Tomaz e Natália Nunes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 114 MARCHI, Euclides. O Sagrado e a Religiosidade: vivências e Mutualidades. Revista: História: Questões & Debates, Curitiba, n. 43, p. 33-53, 2005. Editora UFPR, p. 49. fé e ritos tenha se distanciado do catolicismo original. Constitui-se, portanto, como uma nova vertente, a partir da mesma raiz, que se concretiza através de diferentes formas de devoção. Isso se justifica pelos seguintes motivos: número reduzido ou a falta de sacerdotes na localidade, grandes e difíceis distâncias, as barreiras de comunicação. Parafraseando Wissenbach115, diante do contexto dos séculos XIX e XX, em que os representantes oficiais da igreja apareciam esporadicamente na comunidade rural, não saciando assim as necessidades da mesma, os rituais do catolicismo popular eram ministrados por membros da própria comunidade. Os puxadores de rezas ou rezadores, como eram e ainda continuam sendo denominados, foram assim “selecionados”, pelo grupo local pela sua conduta cristã, pelo conhecimento das rezas católicas e seu repertório de rituais e pelas atitudes de liderança que lhes impunha respeito e poder. Caracterizavam-se também pela simplicidade nas realizações dos cultos, pela pouca formação sobre a doutrina católica e por não estarem envolvidos com hierarquia clerical. E, Marchi continua afirmando que, “[...] Constituiu-se, então, uma religiosidade que foi transmitida pela oralidade e sustentada em saberes pouco afeitos aos princípios da teologia ou da escolaridade organizada” 116 . Assim, surgiu a fé e a religiosidade local, a qual nesta pesquisa é o eixo para o desenrolar de trajetórias de vida. Na zona rural, era através dos dias de santo que se mexia estrategicamente com a terra como, por exemplo, o dia de São José – 19 de março em que a terra é semeada com sementes de milho e amendoim para que no mês de junho, em que se comemoram três dias santos – Santo Antonio, São João e São Pedro – possam colher esses frutos festejando o mês junino.117 E para garantir uma safra de qualidade, ou que pelos menos lhes rendessem algo para subsistência, os agricultores e toda a sua família, além do plantar e do cuidar, realizavam as rezas, em suas próprias residências, em homenagem a esses santos. Mas, não era somente esse o motivo para devotar os seus santos. Além de esperar por uma boa colheita, eles também rezavam em busca da cura de doenças físicas e mentais, pela resolução de problemas de ordem econômica, social, conjugal, familiar, bem como 115 WISSENBACH, Cristina Cortez. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível. In: NOVAIS, Fernando A.; SEVCENKO, Nicolau. (org.). História da vida privada no Brasil: República: da Belle Époque à Era do Rádio. Volume 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 78. 116 MARCHI, op. cit., p. 50. 117 Estas festividades marcam, segundo Wissenbach, as graças recebidas e as relações intergrupais. Ver: WISSENBACH, op. cit., p. 82. para comemorar aniversários, casamentos e, principalmente, com o objetivo de angariar forças para superar as dificuldades que a vida rural lhes proporcionava. Eram esses momentos os mais esperados por todo o grupo rural local, pois, como as residências eram localizadas longe uma das outras as pessoas só se encontravam quando era dia de feira ou quando havia algum motivo para rezar, como nos dias de guarda118, conforme narra dona Milú, quando seu pai questionava, “[...] Dia de guarda? Porque trabalhar se hoje é dia santo?A gente morre amanhã e nada leva então hoje a gente num vai trabalhar não, vamo reza passar o dia junto, almoçar todo mundo junto, sair junto, procurar visitar[...]”. 119 Segundo Charles Santana, Os trabalhadores da zona rural realizavam o culto diante de um altar peculiar, onde colocavam retratos, imagens de divindades cristãs, flores silvestres e artificiais, castiçais, andorinhas de louça apertados no pequeno espaço especialmente reservado para este fim. [...] como componente integral das casas.120 Ao se constituir como parte integrante de cada lar rural, este espaço religioso representa mais que uma decoração instalada, geralmente, na entrada da residência. Com o intuito, mesmo que inconscientemente, de demonstrar a quem chega a devoção religiosa presente naquela família, bem como, de realizar as rezas individuais ou coletivas, manter o contato direto com o sagrado sem precisar de um intermediador, o altar é local de reafirmação da fé e da identidade que une o grupo de pessoas que diante dele se reúne para professar a sua fé e sua devoção religiosa. Como afirma dona Milú, “[...] em toda casa (residiu em localidades diferentes) meu pai fazia um altar de... tijolo e cimento e formava aquele altar ali ...ali era templo sagrado que ninguém... era na sala [...]”121.(grifo nosso) Quando a reza acontecia na área exterior da casa, segundo dona Lourdes122, era confeccionado um pequeno arraial em baixo de alguma árvore, a maior que houvesse, com folhas de bananeiras ou palmeiras, com flores de tecido e/ou naturais, colocava o santo em lugar de destaque. Depois da reza, a mesa estava sempre farta de comida que os próprios participantes produziam e levavam 118 Ver: WISSENBACH, op. cit., p. 78. Dona Armelina S. Oliveira, 79 anos. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. 120 SANTANA, op.cit., p. 62. Para saber mais ver: WISSENBACH, op. cit. 121 Dona Armelina S. Oliveira, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. 122 D. Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. 119 para a confraternização, inspirados pelo sentimento do companheirismo rural. Esse comportamento intenso, presente entre os trabalhadores rurais contribuiu, provavelmente, para que eles pudessem enfrentar as dificuldades da vida rural. O recinto em que ficava a mesa era o lugar preferido da casa, depois do ritual religioso, pois reunia as pessoas em torno da partilha e comunhão de uma manifestação religiosa. Através de experiências vividas e passadas por/para Vianna em Salvador/BA no século XX, segue um exemplo de confraternização e sua respectiva organização em algumas residências: [...] Nos lares, um dia santo era como dia de aniversário ou algo parecido. Havia confraternização expressa em repastos copiosos. Tudo era motivo para um almoço lauto, e a mesa era um móvel em cuja volta toda a família se reunia para comer e conversar.[...] Os donos da casa, embora pareça mentira, nem sempre se sentavam....A dona de casa, ciosa de suas responsabilidades, preferia ficar de pé, atenta a tudo quanto fosse necessário.123 Obviamente, nem todos os lares, em especial das áreas empobrecidas do interior da Bahia, em que aconteciam as rezas haviam os “lautos almoços” de que trata Hildegardes Viana em suas memórias. Em verdade ela está se referindo às rezas que aconteciam em casas de pessoas de posse. A narrativa de Hildegardes Vianna, no entanto é útil, pois nos faz confirmar a ideia de que parte importante da reza era o momento de servir a comida, bem como nos mostra que tais práticas (a reza e o repasto) não se deram unicamente entre pobres, desfavorecidos ou camponeses, estas práticas estavam (e ainda estão) permeando diversas classes sociais. Dona Lourdes se recorda de ter vivido essa experiência por conta de seu casamento. Este, planejado mais pela conveniência de seus pais do que pela vontade da jovem moça, se realizou, como era de costume, na casa da família da noiva. Como é comum, a família da noiva é quem dá a festa assim, “ se matava o melhor peru, porco, galinha... fazia o bolo... tudo que podia e não podia.”124 Dona Lourdes narrou com muito entusiasmo ao lembrar, não só da festa do casamento, mas de todos os rituais religiosos que aconteciam em ambientes domésticos, sempre fazendo referência ao seu pai Elias. Ali a família que recebia a 123 124 VIANNA, op. cit., p. 49-52. Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. reza, que celebrava a novena, que pagava a promessa, preparava a comida para ser servida aos convidados. Era comum que fosse “[...] bolos e biscoitos com café, mas quando tinha samba, tinha a cachaça também.”125. Sobre isso dona Glória afirmou que “[...] é mais comum que se dê comida de azeite: caruru, vatapá, galinha [...]”126 percebe-se, mais uma vez, como as culturas se misturaram o que nos impede de tratar as devoções religiosas como algo homogêneo ou puro. As devoções religiosas destas mulheres sofreram, como as devoções de tantas outras pessoas, influência direta de diversas culturas com as quais, de uma forma ou de outra, se relacionaram. Quando o padre não podia estar presente para presidir o rito religioso, o que era bastante freqüente, a pessoa responsável em “puxar a reza” se planejava, física – por causa da voz - e espiritualmente, para realizar uma reza de qualidade, ou seja, que fosse atrativa o bastante para que todos ali presentes participassem e ficassem ansiosos por uma outra oportunidade daquelas. Enquanto o sagrado era de responsabilidade de uma ou mais pessoas – aquelas que ajudavam a cantar as rezas – com o profano não era diferente. Neste âmbito também existia alguém responsável para organizá-lo, era o denominado por Marchi de “festeiro”127. Era ele o encarregado de convidar as famílias para participar da reza, selecionar e preparar as comidas para o cardápio da reza, juntamente com seu grupo de ajudantes, providenciar as bebidas e as outras distrações que eram necessárias com o intuito de fazer e manter a alegria do grupo ali que iria se reunir. A partir dessas devoções populares percebe-se que o sagrado é uma realidade antropológica em que o ser humano sacraliza o mundo e, simultaneamente, a própria sociedade ao reforçar e reproduzir no grupo através da religiosidade, os seus valores e visão de mundo. Essa idéia é defendida por Émile Durkheim quando afirma que, [...] a religião é uma coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que só surgem no interior de grupos coordenados e se destinam a suscitar, manter ou refazer alguns estados mentais desses grupos.128 125 Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. Idem. 127 MARCHI, op. cit. 128 DURKHEIM, Emile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes,1996. 126 Na zona rural, como as casas eram longe umas das outras e não tinha igreja na localidade, o acontecimento de um festejo, popular ou oficial, era motivo de muita festa e alegria, pois eram naqueles momentos que as pessoas se encontravam, se cumprimentavam e atualizavam as conversas, ora ouvindo as lamúrias, ora relatando as agruras e contando casos para a diversão. São em momentos como esses, portanto, que o grupo fortalece a unidade entre seus membros e, consequentemente, a identidade por serem partícipes de uma realidade próxima. Para a cerimônia de casamento de dona Lourdes, por exemplo, alguém foi buscar o padre na cidade. Um jegue, animal mais comum que o cavalo naquela localidade e época, foi preparado e decorado com as melhores mantas para cobrir o lombo do animal e amortecer os tombos da viagem e com enfeites na crina, para carregar o representante oficial da igreja do centro de Santo Antonio de Jesus até o Benfica. A festa durou todo o dia regada a muita comida, bebida, dança e narração de casos129. Este relato, como tantos outros, também apresenta a dificuldade de acesso dos representantes religiosos à zona rural. Era tão restrito que só se faziam presentes nessas localidades para realizar algo que dependia exclusivamente dele – a realização de sacramentos como batizados, casamentos, missa, entre outros. O que não era ofício sacramental, portanto, era realizado pelos representantes locais como: a reza de terços, ladainhas, bênçãos, cantorias, procissões. Assim, dona Lourdes, após a morte de seu pai Elias, passou a substituí-lo nas devoções religiosas da comunidade local como “puxadora de rezas”. A escolha por ela pode ter se dado por diversos motivos entre eles a “tradição familiar”, já que ela era filha de um respeitado líder religioso; sua desenvoltura no falar, adquirida nos tempos que estudou no “colégio das freiras” e a proximidade com o mundo letrado, o que fazia dela uma pessoa importante no decifrar das informações para a comunidade, fator que pode ter se somado à sua inclinação religiosa o que, aos poucos, levou-a a assumir esse destaque na zona rural local. Professora, catequista, agricultora e depois do casamento, mulher e mãe, dona Lourdes permaneceu inserindo ao seu cotidiano a religiosidade herdada de seu pai Elias. Este homem que, juntamente com os outros trabalhadores rurais, 129 Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. apesar da “fartura e ventura” 130 que a vida apresenta ao homem do campo, acreditava que, como afirma Azzi, [...] Tanto no aconchego do lar como distante dele, tanto nas fases de esperança como nos momentos de dúvida, tanto na alegria festiva como na tristeza e na dor, as famílias cristãs não conseguiam imaginar situação alguma ao contrário do esperado, também percebiam um texto redigido pelas mãos divinas: ‘Deus escreve direito por linhas tortas’131. De certo modo, dona Lourdes deixou transparecer nas entrevistas que a sua vida religiosa era uma espécie de legado familiar, transmitido pelo pai, o qual ela se sentia na responsabilidade de dar continuidade. De “puxadora de reza” de devoções populares na área rural dona Lourdes se tornou uma forte liderança do catolicismo oficial na área urbana. Entre os motivos desta profunda mudança estão: a cooptação deste tipo de liderança pelos padres, como forma de coibir as práticas que não eram vistas com bons olhos pela Igreja , diminuindo as devoções religiosas realizadas fora das paredes da igreja e, utilizar-se do carisma destas pessoas como forma de atrair mais fiéis para os cultos oficiais. Mesmo assumindo uma função oficial, dona Lourdes nunca deixou de realizar suas rezas nas casas de terceiros, o que demonstra a resistência destas práticas mesmo em condições desfavoráveis. Sobre isso discutirei mais detidamente no próximo capítulo. Assim como dona Lourdes, dona Glória buscou sua referência religiosa de devoção aos santos junto à sua família, principalmente à sua mãe 132. Ela cresceu observando e presenciando as rezas que sua mãe realizava. Dona Germana era conhecida não como puxadora de reza, o que sabia fazer, mas como rezadeira/benzedeira. Era ela a mediadora entre a comunidade local e o sagrado. Através dos ritos realizados em sua residência ou em qualquer outra que fosse convocada. Por este ofício, ela é lembrada mesmo após a sua morte, pois, segundo vizinhos “a reza dela era forte”133, ou seja, funcionava. 130 Conceito trabalhado por SANTANA, op. cit., AZZI, Riolando. Presença da igreja na sociedade brasileira e formação das dioceses no período republicano. In:SOUZA, Rogério Luiz. OTTO, Clarícia (orgs). Faces do Catolicismo. Florianopólis: Insular, 2008,p.17. 132 Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010. 133 Dona Judite Cunha, 83 anos de idade. Entrevista coletada em 21/09/2009. 131 Individual ou coletivamente ela era solicitada para rezar ou benzer pessoas que estivessem passando por alguma dificuldade fosse financeira, psicológica ou física. Segundo depoimento daqueles que se utilizaram de seus serviços religiosos, dona Germana atendia a todos em domicílio – quando ainda tinha condições de se deslocar -, mas com o passar da idade a sua saúde foi se debilitando e as pessoas que desejavam o seu serviço se dirigiam à sua casa.134 Enquanto em vida, a benzedeira se preocupava em deixar este seu legado para as filhas – dona Glória e sua irmã Ana Maria - que juntas estavam sempre participando, de forma ativa ou como testemunha, dos momentos de religiosidade praticados pela matriarca. Entretanto, não bastava somente aprender o como fazer, era preciso, essencialmente, possuir o dom da reza/benção. E isso a matriarca identificou em sua filha mais velha, Maria da Glória.135 No entanto, essa passagem de legado não foi tão fácil como dona Germana esperava e desejava. Ainda em vida ela convidou sua filha para assumir o seu lugar de rezadeira, pois sabia que tal ofício não podia se findar em sua geração. Mas, para a sua surpresa a filha – dona Glória - não aceitou, alegando que não iria saber realizar aqueles momentos de manifestação religiosa, individual ou coletiva, da forma adequada.136 No transcorrer das entrevistas fica aparente que o real motivo da negação ao pedido de sua mãe era o receio que, ao se tornar rezadeira, passasse a ser identificada como “candomblezeira”137. Algumas coisas podem ter amparado este medo: primeiro o fato do candomblé ter sido visto durante muito tempo como uma religião de pessoas incultas, desinformadas, supersticiosas ou como uma religião ligada à prática do mal. O mundo dos “feitiços” e da “macumba”, ao mesmo tempo que atraia, assustava as pessoas e estas práticas acabavam sendo associadas às benzeções138 pelos instrumentos que, comumente se fazia uso: óleos e azeites; folhas e ervas; bebidas e unguentos. Tudo isso fazia parte dos dois 134 D. Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010. Idem. 136 Idem. 137 Idem. 138 Este termo refere-se ao ato de benzer para abençoar, curar, espantar coisas ruins ou clamar por coisas boas. Para um maior aprofundamento sobre esta temática ver: JESUS, Elivaldo Souza de. “Gente de promessa, de reza e de romaria”: experiências devocionais na ruralidade do Recôncavo Sul da Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006; SANTOS, Denilson Lessa. Nas Encruzilhadas da cura: Crenças, saberes e diferentes práticas curativas - Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005. 135 mundos, reza/benção e práticas de religiões de matriz africana, cuja fronteira era e continua sendo muito tênue139. Como afirmou uma velha conhecida dos dons de dona Glória: Meu filho tava com um abscesso nas costas, levei em vários médicos mas nenhum resolveu e o abscesso só crescia. Aí então foi quando me disseram pra eu vim aqui rezá ele. E com D. Glória foi tiro e queda...ela rezou meu filho e me passou um óleo para colocar todos os dias...e foi indo, foi indo e desapareceu...graças a Deus!...primeiramente a ele, né? E depois a D. Glória... Aí sempre que preciso eu venho aqui.140 A recorrência aos dons das rezadeiras, enunciado na fala de dona Maria, cliente dos serviços de reza daquela mulher, é significativo. Isso demonstra que as rezadeiras, bem como as puxadoras de reza criavam, com os seus serviços, uma rede ampla de homens e mulheres que buscavam na reza a cura para seus males; um contato mais próximo com o sagrado através de alguém que pudesse servir de intermediário entre o devoto e o divino. No próximo capítulo vamos explorar mais o impacto do processo de transferência residencial, zona rural – zona urbana, nas práticas religiosas das entrevistadas, em especial as influências do novo meio e como se dá a sobrevivência dessas práticas no mundo urbano. Os relatos de trajetórias destas mulheres nos permite, como por uma fresta, enxergar uma parte - pois é impossível enxergar-se o todo, como exatamente aconteceu141 – das experiências, não só destas mulheres que são personagens deste trabalho, mas também uma parte da vida de mulheres pobres, negras que se transferiram do campo para a cidade. A partir destas experiências, nos é dado a conhecer partes dessas histórias de vida, do que moveu as “relações de força” que as envolveram e, sobretudo, o quanto e como estas trajetórias representativas.142 139 CHALLOUB, op. cit. Dona Maria de Jesus, 47 anos de idade. Entrevista coletada em 07 de julho de 2010. 141 Ver mais em: GUINZBURG, op. cit.; WHITE, op. cit. 142 Ver mais em: BOURDIEU, op. cit.. 140 são 2º CAPÍTULO A RELIGIOSIDADE NA CIDADE 2.1- A continuidade da devoção popular Ao acompanhar trajetórias de vida nos deparamos com a transferência, da zona rural para a zona urbana de Santo Antonio de Jesus, das autoras das narrativas. Esta mudança de lugar em meados do século XX foi justificada por vários motivos – sociais, econômicos e/ou familiares -, mas dentre eles um era comum a todas: “[...] buscar uma condição melhor [...]”143. Sabendo que a partir da segunda metade do século XX as transferências de residências da zona rural para a zona urbana foi intensificada pelo cerceamento do acesso à terra, pela substituição do gado em detrimento das plantações de fumo e café destinados à exportação e que demandavam uma quantidade de terras suficiente para sua produção. Tal mudança conduziu a uma progressiva desestruturação das pequenas propriedades ante às grandes fazendas, expulsando o pequeno camponês, acarretando problemas sociais como o desemprego e a falta de terra para trabalhar e se alimentar, especialmente para os mais jovens.144 Charles Santana nos traz a seguinte reflexão sobre o contexto rural da época: Assim, é que, [...], durante 1950 e 1980, municípios da sub-região do Recôncavo experimentavam uma profunda transformação em sua vida no campo. [...] No âmago de todo o processo, as condições de vida da maior parcela da população rural aceleraram a sua deteriorização. Em tais circunstâncias, a migração configurou-se como alternativa a uma expressiva parcela da coletividade, especialmente para as novas gerações que se viram sem perspectiva de encontrar terra para o trabalho.145 Durante a entrevista, dona Nita, com um olhar distante como se buscasse encontrar em algum lugar do passado as lembranças perdidas nas brumas do tempo, afirmou ter vivenciado de perto a crise do fumo na região do Recôncavo. Relembrando sua infância, quando ajudava a família na roça, a entrevistada fala sobre o momento em que a maioria das propriedades da região foram se formando e quando passaram a ser substituídas por capim e, juntamente com ela, aqueles que também lá viviam e trabalhavam procuraram outras formas de sobrevivência como o trabalho nos armazéns de fumo, na área urbana de Santo Antonio de Jesus, que 143 Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009. Ex: Sobre as plantações de fumo em Santo Antônio de Jesus e seu entorno, ver: SILVA, Elizabete Rodrigues da. Fazer Charutos: uma Atividade Feminina. Dissertação de Mestrado. Salvador, UFBA, 2001.; Sobre o tamanho das propriedades rurais, sua posse e organização em Santo Antonio de Jesus e região, ver: OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Recôncavo Sul: Terra, Homens, Economia e Poder no Século XIX. Salvador: UNEB, 2002; COSTA, Alex Andrade. Arranjos de sobrevivência: autonomia e mobilidade escrava no Recôncavo Sul da Bahia (1850-1888), 2009.; Sobre os conflitos existentes nas áreas rurais por conta do surgimento de latifúndios, ver, entre outras, FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Terra, Trabalho e Poder, São Paulo, Brasiliense, 1988. 145 SANTANA, op. cit., p.110-111. 144 ainda resistiam à crise, ou foram para outras localidades em busca de uma renda para sustentar a família.146 A narradora, ainda em sua fala, demonstra orgulho ao afirmar que foi uma das produtoras manuais, também chamada de charuteira, dos mais conhecidos charutos do mundo pela qualidade de seu produto. Ao constatar a plantação de fumo que ela viu crescer e se desenvolver em seu quintal de casa ser trocada por um capim, o qual à sua família não fornecia lucros, precisou buscar em outro lugar a fonte de renda para manter a sua subsistência e a de sua família. Ela, então, passou a exercer e ofício de charuteira em um dos armazéns de fumo ainda existentes na cidade.147 Inicialmente quando chegavam as folhas de fumo eram criteriosamente selecionadas e preparadas para que pudessem ser enroladas pelas habilidosas e jeitosas mãos de dona Nita e de tantas outras mulheres que participavam da linha de produção. Segundo a mesma, os charutos ali confeccionados eram vendidos para todo o Brasil e para o exterior. Para cumprir com as suas obrigações, dona Nita saía pela manhã e só retornava à noite, tendo ainda que conciliar com a sua segunda jornada de trabalho – o cuidar da casa, dos filhos, e do marido. Neste momento da narrativa, ela recorda, com gratidão, a importância que sua mãe teve em sua vida, pois, segundo ela, lhe ajudou a compartilhar a criação dos filhos enquanto trabalhava no armazém. Lembra que certa vez “[...] sai para trabaiá e pelo meio do dia recebi um recado do vizinho lá que meu fio tava passano mal, então, falei com as menina (companheiras de trabalho), que ia em casa e voltava rapidinho,[...]”, para que o patrão não percebesse a sua ausência, “... e vim em casa correndo ver o proque minha mãe mim mandou chamar, ela só mim mandava chamar quando não pudia resolver o probrema” (grifo nosso) 148. A mãe, neste caso, pediu que chamasse dona Nita para levar o filho mais novo em algum médico, pois o mesmo não estava passando bem e ela não conseguia remediá-lo. Então ela se ausentou no trabalho por algumas horas 146 Dona Anita Santos de Santana, 82 anos. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010. Para maior aprofundamento sobre a crise do sistema agro-exportador fumageiro do Recôncavo da Bahia ver: ALMEIDA, Paulo Henrique de. Quatro séculos de cultivo e manufatura do fumo na Bahia: história de um outro Recôncavo. Nexos Econômicos, Salvador: FCE/UFBA, v.2, n.4, p.25-36, nov. 2002. 148 Dona Anita Santos de Santana, 82 anos. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010. 147 “sem que o patrão arrumasse confusão”149, pois “as meninas” conseguiram justificar de maneira discreta a falta da funcionária e ela voltou sem que ele nem percebesse. A vida no mundo urbano se diferenciava, em muitos aspectos da vida no campo. Porém, o que, talvez tenha causado mais estranhamento aos migrantes tenha sido o controle rígido do horário de trabalho e a fiscalização dos serviços por parte de gerentes e chefes de produção. Para o recém-chegado do campo, o individualismo e a frieza das relações humanas dentro das fábricas, marcas do mundo citadino e industrial, poderia até dificultar tomada de atitudes solidárias, mas as resistências às imposições do mundo urbano eram claras nas atitudes que os trabalhadores tomavam como forma de criar direitos.150 O depoimento de dona Nita é revelador ao apontar para a existência de teias de solidariedades estabelecidas entre os membros de uma mesma família, bem como as construídas em ambientes de trabalho. Redes que são tecidas por seus produtores a partir de necessidades mútuas. Estas teias podem ser recriações do mundo rural no ambiente citadino, numa tentativa de incorporar elementos comuns à vida da maioria das pessoas e que se encaminhava para um desaparecimento, causado pelo distanciamento das relações impostas pelo mundo do trabalho e pelo mundo urbano. As migrações não levavam à substituição de uma cultura por outra ou conflitos entre elas, mas a reelaborações destas culturas na vida dos migrantes e se imbricava na cultura citadina, tornando impossível distinguir onde começa uma e termina a outra151. Na família, era dona Nita quem trabalhava e levava o dinheiro para casa mantendo sua mãe vestida e alimentada e esta, por sua vez, ficava em casa cuidando de seus descendentes, já que não possuía mais forças para trabalhar fora de casa. No mundo do trabalho, entretanto, se fez presente o companheirismo, característica essencial para vencer as dificuldades e nesta narrativa os imprevistos e urgências. Tais redes não são desestruturadas com facilidade, pois são tecidas profundamente entre aqueles que dela necessitam e que por isso a preservam e reelaboram-na. Apesar das décadas que se passaram, ao relatar sobre a fartura da produção de fumo e pela quantidade de armazéns, dona Nita, em sua narrativa, se 149 Idem. Sobre a vida privada nas indústrias, ver, entre outros: NOVAIS, Fernando A.(coord. Geral). SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). op. cit. 151 SANTANA, op. cit. 150 empolga e ainda relembra com espanto como um produto pode crescer tanto no mercado, nacional e internacional, como também se surpreendeu com a sua crise, talvez por não compreender como um produto que gerava tanta riqueza poderia fracassar, a qual originou desemprego em Santo Antonio de Jesus e região. 152 Por problemas de saúde, dona Nita precisou se afastar do trabalho no armazém e passou a cuidar integralmente dos seus filhos e marido. Com a diminuição das pequenas produções agrícolas, as quais a entrevistada lembra ficarem ao redor de sua casa quando era pequena e com o crescimento da cidade, ela presenciou, como anfitriã, a formação do bairro onde mora até hoje - Cajueiro. A casa não permanece estruturalmente a mesma, pois foi reformada e dividida para abrigar alguns filhos que ao longo do tempo foram constituindo a sua família 153. Presenciou muita gente chegar de outras cidades, de outros estados e, principalmente, da zona rural de Santo Antonio de Jesus e região, como por exemplo, dona Lourdes, que já fora apresentada na presente pesquisa. A transferência, mesmo sendo em pequena distância, exigiu de seus autores muita determinação, esforços físicos, financeiros e emocionais para abandonar o seu lugar e ir à busca de outro desconhecido. Em meados do século passado, era necessário um motivo bastante consistente para, inicialmente, refletir e depois executar uma mudança residencial. Como lembra Vianna: Antigamente as mudanças eram mais raras. As famílias permaneciam por várias gerações em uma casa, fosse própria ou de aluguel. As que tinham vontade de se mudar pesavam tanto os prós e os contras que acabavam não se mudando. Salvo um tangolomango nas finanças, a morte de alguém, ou qualquer outra possibilidade de continuar como vinha sendo.154 Na trajetória de vida de dona Lourdes, portanto, houve um desses “tangolomangos”, mas não financeiro. O motivo que trouxe esta professora, catequista e puxadora de rezas a transferir sua residência da zona rural para a urbana envolve, principalmente, motivos emocionais e familiares. O referido motivo, ela narra contrita e com um olhar distante sugerindo a não superação do que a vida lhe proporcionou. Segundo a mesma, a partir do casamento, ela teve quatro filhos e 152 D. Anita Santos de Santana, 82 anos. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010. Idem. 154 VIANNA, op. cit., p.108. 153 uma filha. Vivia às margens da pobreza, plantando em seu próprio e pequeno pedaço de terra, cuidava dos filhos, da casa, do marido e sempre ao lado dos pais, os quais moravam perto de sua residência, na localidade da Boa Vista. E mesmo residindo em zona rural sempre que possível estava presente na cidade “[...] de vez em quando ia dá um passeiozinho,... participar de alguma festa [...]”, 155 com ou sem os filhos, participando de alguma festividade, seja ela religiosa ou não. Importante destacar que o camponês via o mundo urbano com um misto de curiosidade e medo, um espaço “de ilimitadas possibilidades, de encontro e movimento”156. As festas, os encontros, as missas e as feiras são exemplos de instantes que despertavam a curiosidade e o interesse do camponês, porém a cidade ainda era um mistério a ser desvendado pelo mesmo. No entanto, a estrutura de sentimentos resultante não de baseia apenas na ideia de um passado mais feliz. Apoia-se também numa outra ideia de inocência, associada à primeira: a inocência rural dos poemas bucólicos, neobucólicos e reflexivos. A chave de sua compreensão é o contraste entre, de um lado, o campo e, de outro a cidade e a corte: aqui a natureza, lá mundanidade. Muitas vezes tal contraste depende justamente do tipo de escamoteação do trabalho rural – e das relações de propriedade através das quais esse trabalho é organizado – que já observamos. Porém há outros elementos envolvidos. Os meios de produção agrícola – os campos, os bosques, as plantações, os animais – são atraentes para o observador e – sob muitos aspectos, nas estações propícias – para os homens que lá trabalham. Isso pode ser contrastado de modo eficaz com os mercados e escritórios do mercantilismo, ou com as minas, pedreiras, oficinas e fábricas da produção industrial. Este contraste, sob muitos aspectos ainda vigora.157 Dona Lourdes narrou que sua filha, adolescente, certo dia foi para a cidade participar de uma festa de rua – inauguração do calçamento da Rua do Andaiá - juntamente com um grupo de amigas, e, caminhando, se sentiu mal. Os que estavam ao seu redor encaminharam a jovem ao médico e este constatou, após análise dos sinais vitais, o falecimento da jovem. “[...] E esta foi a notícia que recebi em casa: que minha filha tava morta,... sem acontecer nada de mais,... assim, de uma hora pra outra, ... e a gente não sabia que ela tinha problemas de coração...” 158, 155 D. Maria de Lourdes Santos, 76 anos. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009. WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.17. 157 WILLIAMS, op. cit., p.69. 158 Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009. 156 uma morte que, segundo o laudo médico, foi provocada por problemas cardiovasculares. Este foi o primeiro dos quatro sepultamentos de filhos que esta mulher vivenciou. Os outros três, meninos, faleceram por motivos acidentais e de saúde, dois, quando ainda eram pequenos, e o outro já em fase adulta, além de gestações abortadas espontaneamente, restando em vida apenas um filho que mora em uma casa anexada à sua, o qual já formou a sua família. Diante de tantas mortes filiais, destaca-se, como a mesma afirma, a morte de sua única filha. E este foi o motivo maior para a sua transferência para a cidade. Enquanto morava na roça, além de exercer a função de agricultora, dona Lourdes era professora, catequista e tinha, segundo a mesma, “uma vida modesta”.159 Vivia com seu esposo em uma pequena casa, próximo à casa de sua mãe e ao colégio em que trabalhava como professora. E, assim como na casa de seus pais, na sua também tinha pedacinho de terra onde o casal utilizava para plantar. Plantavam, colhendo o fruto para subsistência e para vender na feira livre de Santo Antônio de Jesus aos sábados. Esses produtos eram transportados ao lombo de um animal conduzido, o jegue geralmente, por ela e pelo seu esposo160. Porém, a perda de sua única filha debilitou de maneira decisiva a sua saúde psicológica e, consequentemente, física, pois se afastou do ofício que tanto gostava - ser educadora -, e lhe impulsionou a tomar a decisão de ir para cidade motivo maior que ela identifica - para que pudesse sanar a dor do sofrimento da ausência da filha e de suas lembranças, bem como ficar mais perto de seus pais, os quais já haviam se transferido por motivos de conforto maior por conta da idade já avançada. A ida para a cidade teria como sentido, também, e, talvez principalmente, mudar de um ambiente que lhe trazia tristes recordações, onde, possivelmente, o isolamento e a distância colaborava para o sentimento de solidão.161 Então, a casa da zona rural – Boa Vista - foi vendida e com o dinheiro desta venda dona Lourdes e seu esposo compraram outra casa no bairro do Cajueiro, rua que fica próxima a estrada do Benfica, onde moravam. Iniciava, assim, uma nova etapa na vida de dona Lourdes e de sua família.162 159 Idem. Idem. 161 Sobre isso ver mais em: WILLIAMS, Raymond, op. cit. 162 Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009. 160 Segundo a mesma, ao chegar à cidade reservou um cômodo da casa nova e instalou um pequeno bar para que o marido pudesse angariar alguma renda, pois não havia terra para trabalhar. Este empreendimento proporcionou ao casal momentos difíceis os quais somente findaram com o falecimento do marido. Pois, este por passar a maior parte de seu tempo cuidando do bar e fazendo companhia a seus clientes passou a consumir bebida alcoólica constantemente proporcionandolhe atitudes sob efeito do álcool, as quais interferiram cada vez mais na saúde emocional de dona Lourdes, bem como na “paz familiar”163. Com o passar do tempo, a saúde do marido piorava. Os seus órgãos não suportavam mais a ingestão de álcool, debilitando gradativamente os seus movimentos, e, então, “[...] partiu desta vida para uma melhor”.164 Segura em sua narrativa, dona Lourdes acreditou que este foi o melhor acontecimento tanto na sua vida quanto na de seu esposo nos últimos anos em que conviveram juntos, pois assim ela ficou mais descansada e ele encerrou o sofrimento causado pelo alcoolismo. Mas esta mulher não cuidou somente do marido, quando em vida, mas também de sua mãe, pois, quando seu pai faleceu acolheu-a dentro de sua casa e cuidou dela até o seu falecimento, bem como foi responsável por um sobrinho deficiente físico e mental, o qual vivia acamado e sob efeito de medicamentos controlados, deixado sob seus cuidados por uma irmã.165 As solidariedades não se davam somente entre vizinhos e conhecidos mas, também, dentro das famílias. Com a partida de entes familiares para o trabalho na capital – como foi o caso da irmã de dona Lourdes – ou até mesmo no sudeste do país, o restante da família se responsabiliza pelo cuidado e criação dos que ficavam, em especial as crianças. Assim as famílias passavam, como a de dona Lourdes, a contar com parentes e agregados. Percebe-se, nesta trajetória de vida, como o nascimento de uma criança do sexo feminino foi tão importante para uma mãe que era rodeada de homens (marido e filhos). Uma filha que lhe pudesse fazer companhia, ajudar nos trabalhos domésticos e com o passar do tempo viver as mesmas situações do universo adulto feminino e, assim, dona Lourdes passaria adiante o seu legado de mãe e de mulher, e talvez de rezadeira. No entanto, a vida reservou para dona Lourdes outras 163 Idem. Idem. 165 Idem. 164 experiências, onde pudesse, talvez suprir as faltas e carências que a própria vida lhe proporcionou. Assim, foi na comunidade do Cajueiro, onde instalou a sua residência na cidade, que ela encontrou a motivação para superar esse episódio de sua trajetória, descobrindo a melhor maneira para conviver com estas lembranças166. A necessidade em criar novas redes de solidariedade é que levou dona Lourdes a estreitar os laços de amizade com as moradoras do bairro do Cajueiro, onde passara a viver. Estas redes têm funções diversas: não servem apenas de apoio material mútuo, mas, de auxílio nas diversas necessidades apresentadas por aqueles que a compõem. As práticas religiosas coletivas são um bom caminho para se construir tais redes, pois nesta se concretiza a partilha de suas alegrias e sofrimentos, comuns, em sua maioria, entre seus membros. A busca pelo conforto espiritual proporcionado pela religião, portanto, torna-se, muitas vezes, o único fio que sustenta aquelas vidas. Tendo como referência religiosa o seu pai, Elias, ela procurou participar das práticas devocionais que aconteciam naquele bairro, se juntando a um grupo de rezadeiras, dentre elas dona Conceição “Madeira" e dona Conceição Muniz. Essas duas mulheres, com histórias de vida semelhantes à de dona Lourdes passaram a compartilhar suas agruras cotidianas, descobrindo afinidades que as unia, o que, segundo dona Lourdes, ajudou no processo de aceitação da morte da filha. Mas parece que tal “aceitação” se deu quando dona Lourdes passou, progressivamente, a ser uma pessoa mais ativa nas práticas religiosas e diante da comunidade. A morte dos outros filhos, através de sua narrativa, parece não ter sido tão dolorosa, que sendo o primeiro falecimento familiar anestesiou-a diante dos outros. Superado, aparentemente, este trauma, dona Lourdes passou a acompanhar os itinerários da devoção popular juntamente com o grupo social ao qual estava se inserida. Dona Maria da Glória, por sua vez, só veio instalar-se de forma definitiva na cidade quando sua mãe comprou a atual casa, em 1947, também na rua principal do bairro do Cajueiro, a poucos metros da residência de dona Lourdes, com um dinheiro que fora emprestado pela Madre do Colégio Santo Antonio, onde trabalhava como lavadeira. Nascida no Bonfim, zona rural de Santo Antonio de Jesus, dona Glória até chegar ao bairro do Cajueiro, passou por vários outros bairros, já que a 166 Sobre as lembranças e esquecimento ver: POLLAK, op. cit., p. 3-15. sua família não tinha casa própria. Sua família se restringia à sua mãe, tia e às suas irmãs, pois não conheceu o pai. Interessante destacar aqui como a base de muitas das famílias pobres está assentada na família matrifocal, seja por abandono, por viuvez ou por opção.167 Ao relatar a formação da Rua do Cajueiro, bem como a chegada de seus vizinhos, dona Glória afirma que esta rua começou a se estruturar melhor a partir do governo de Antonio Magalhães Fraga, prefeito de Santo Antônio de Jesus entre 1954 e 1958, com o nivelamento da rua desde a rua Castro Alves - centro da cidade - até perto do Campo do Governo, divisa com área rural. Mesmo sendo considerado um bairro periférico, dona Glória afirma ser feliz por residir em uma rua estruturada com pavimentação e saneamento básico. Mas, seu orgulho maior é ser reconhecida como a benzedeira da rua, da comunidade e uma das mais conhecidas e requisitadas da cidade, “[...] e hoje graças a Deus a nossa rua tá em primeiro lugar, tem posto (médico)..., igreja, cemitério, benzedeira, como bem o sou, rezadeira, benzedeira [...]” (grifo nosso)168. Apesar de sua vida nos limites da pobreza, dona Glória demonstra satisfação com as transformações urbanas que presenciou e com a chegada dos moradores daquele bairro, muitos dos quais oriundos de áreas rurais e empobrecidas. Dona Nita, que desde criança mora no referido bairro acolheu dona Glória e dona Lourdes e suas respectivas famílias e, juntamente com elas e com outras mulheres, fez do bairro do Cajueiro um espaço de religiosidade marcada pela devoção popular aos santos. A presença dessas mulheres é indiretamente valorizada pelo universo religioso, sendo que, O papel atribuído à mulher dentro da igreja católica leva, indubitavelmente, a pensar como esta mesma instituição acaba por impor papeis aos seus fieis; Compreendendo-se por gênero não propriamente as características sexuais, ‘mas a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino.169 167 Ver mais em: ARIÉS, op. cit.. Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. 169 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade, Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petropólis:Vozes,1997, p.21. 168 Se tornando líderes comunitárias, as mulheres quem compõem este estudo, tinham como características em comum a religiosidade, adquirida de seus antecedentes, tornando-se referência para o bairro onde moravam como modelo de mulher, religiosa, trabalhadora e conselheira. Além disso, os sofrimentos proporcionados pela vida e a busca pela superação através das práticas devocionais foram outros elementos que as uniram. A partir deste aspecto comportamental sugere-se uma dupla função das narradoras, para as quais não há uma separação entre as atividades da religiosidade popular e oficial. Mesmo com a mudança campo-cidade, aparentemente brusca, as interlocutoras narraram que trouxeram toda a carga religiosa do ambiente ruralfamiliar, a qual impactou na vida cultural, social, econômica e familiar. Mesmo residindo na cidade e com a presença mais próxima da igreja e de seus representantes e rezas oficiais, os que aqui chegavam traziam consigo a religiosidade, a qual foi coexistindo de forma lenta e gradual no ambiente urbano. Com a intenção em prosseguir com o catolicismo popular, os devotos estavam sempre em estado de alerta para que não perdessem a “essência” desta devoção e ao mesmo tempo analisando como realizar estes momentos em um ambiente com um ritmo cotidiano diferente dos que estavam habituados a viver. É necessário considerar, mesmo com estas declarações por parte das narradoras, que a vida urbana promoveu reformulações na prática religiosa e devocional.170 2.2- Aparatos devocionais A devoção característica do catolicismo popular, descrita pelas entrevistadas em suas narrativas, demonstram uma coexistência ritualística entre seus seguidores e as práticas oficiais da Igreja. Essas pessoas que se instalaram no mundo urbano de Santo Antonio de Jesus, a partir de 1950, têm outro fator em comum, além da origem rural: fazer da religiosidade uma manifestação de fé para que pudessem ter a sabedoria para driblar os reveses da vida. 170 Ver mais em: MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: NOVAIS, Fernando. SCHWARCZ, Lília M. História da Vida Privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998. Para continuar o seu ofício de “cantadora das rezas” / “puxadora das ladainhas” ensinado por seu pai Elias, dona Lourdes afirmou que foi logo em busca de amizades com as pessoas da comunidade do Cajueiro e acompanhando as rezas que rotineiramente eram realizadas, tendo como referência de religiosidade algumas mulheres como dona Conceição “Madeira” e dona Conceição Muniz que cantavam e/ou rezavam nas casas do bairro ou fora do bairro, sempre que eram solicitadas, o que nesta época era constante171. A partir desta atividade religiosa, dona Lourdes começou a destacar-se em momentos ritualísticos pela sua voz firme e compassada ao entoar as ladainhas172. É válido ressaltar que a devoção popular não impedia a nenhuma dessas mulheres em desenvolver, também, uma função ativa no catolicismo oficial. Dona Lourdes era considerada uma das líderes da comunidade, pois além de “tomar conta” da igreja, ou seja, ela era a detentora da chave da igreja do bairro sendo a responsável por tudo e todos que nela adentravam, bem como desempenhava a função de ministra da eucaristia, que segundo ela, “é a missão que a gente tem com a igreja em fazer a celebração, levar a eucaristia para os irmãos doentes em casa ou que não podem ir pra missa por qualquer outro motivo.” 173 Mas, para se tornar um ministro(a) era necessário que exercesse testemunho de vida cristã e estar sempre ensinando os dogmas, a moral e os sacramentos da igreja. A realização e participação nas rezas aconteciam, nos últimos anos de vida de dona Lourdes, mediante convite: De vez em quando, que vem assim e pede: ‘ô dona Lurdes a senhora podia rezar uma ladainha em minha casa?’ Aí eu chamo as menina como bem Ligia, Toinha, Tina, Edite aí nós vamos... Preta, lá da Bela Vista (rua pertencente ao mesmo bairro)... a gente reza. 174 (grifo nosso) As rezas não eram apenas momentos de louvação e oração, mas eram instantes em que pessoas, com trajetórias de vida semelhantes, dividiam suas dores, angústias e sofrimentos; partilhavam suas alegrias e obtinham auxílio nas necessidades. A reza tinha uma função social tão importante quanto a religiosa. Nos 171 Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos. Entrevista coletada em 07 de agosto de 2009. Idem. 173 Idem. 174 Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 14 de julho de 2010. 172 depoimentos de dona Lourdes, prestados nos últimos meses de vida, ela aparentava uma resignação ao falar sobre os atendimentos aos convites para rezar nas casas. O atendimento aos pedidos se dava como uma forma de “cumprimento de dever”. O melhor e maior argumento para ser uma cobiçada “cantadora das rezas” / “puxadora das ladainhas” era a voz. Por já ter experienciado essa vivência na zona rural desde criança, dona Lourdes trouxe consigo para a cidade o ritmo das rezas e o seu tom de voz firme, compassado e envolvente. Com o passar do tempo foi conhecendo as pessoas do bairro do Cajueiro e tecendo relações de sociabilidades através da identidade religiosa, passando a acompanhar as moradoras mais antigas do bairro para realizar os cultos devocionais nas casas em que eram convidadas. Geralmente essas casas pertenciam à pessoas que vieram da zona rural e que não se satisfaziam somente com a religiosidade oficial, mesmo contando com uma igreja no bairro– Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – com a presença dos padres regularmente. Dona Lourdes, então, logo se destacou no grupo, segundo ela, por sua voz e com o passar do tempo passou a não ser mais uma mera acompanhante e participante das rezas, e sim a ser a líder desse grupo, pois algumas mulheres que lideravam as rezas foram adoecendo e outras faleceram, bem como aquelas que se afastaram por problemas de convivência 175. Com orgulho ela nos relata sobre a sua presença nas rezas: Ziu faz a promessa, me parece que desde menina, que ela teve uma problema na perna, uma ferida.Se apegou com São Roque e ficou boa então ela, prometeu a São Roque,que todo ano, nem que soubesse em palavra ela rezava a ladainha de São Roque. Então quando eu cheguei pra qui ela já tinha essa devoção há muito tempo, aí quando eu comecei aqui, rezando com as menina ela me contratou para fazer, aí todo ano a gente vai.176 Em uma espécie de contrato selado com o santo, o qual se realiza anualmente, dona Lourdes cumpria, simultaneamente, com a sua obrigação de rezadeira e a promessa feita por dona Ziu, moradora da mesma rua. A rezadeira afirma que esses rituais devocionais mudaram bastante nos últimos anos. Então, para não ser criticada ou mal interpretada pelas pessoas, dona Lourdes preferiu se adaptar às novidades e coerência da religiosidade aceita pela sociedade, as práticas 175 Idem. D. Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 14 de julho de 2010. 176 religiosas oficiais. Talvez tenha feito isso para ser aceita no seio da comunidade. A partir deste comportamento, portanto, percebe-se como as pessoas realizam o papel de se adaptar ao mundo oficial, mas praticando de modo sub-reptício a devoção dos seus antepassados, as “escondias” da igreja, em suas casas, em locais onde o olhar do padre não alcançava, ou fazia de conta não enxergar. Em geral a igreja sempre soube dessas práticas, as ignorava por não lhe interessar criar conflitos abertos com lideranças religiosas que, também, lhes eram úteis. Mas, uma coisa é fato: essas pessoas, de uma forma ou de outra, sempre se constituíram em uma “sombra” ao poder da igreja e do líder paroquial. Por isso sempre foram “bem fiscalizadas”. Sobre as práticas das rezas ela disse que, De antes fazia nas casa, mas o pessoal...por exemplo aqui na cidade mermo mudou muito o sistema aí ... ói se é pra ficar na rua pra alguém ficar criticando a gente faz na igreja que é o lugar principal.... Agora mesmo na época da quaresma tem pessoas que pede pra rezar o ofício aí a gente vai.177 A partir desta narrativa, percebe-se o quanto dona Lourdes e seu grupo de fiéis precisou adaptar, recriar, para que fossem aceitas pela sociedade. Diante das mudanças de valores culturais e religiosos impostos na sociedade em meados do século XX, o Catolicismo oficial buscou demarcar com mais precisão o seu território e seus agentes produtores através da valorização dos rituais no interior dos templos oficiais sagrados catequizando seus fieis para a importância de seus representantes sacerdotais estendendo-se aos seus ensinamentos. Àqueles que criticavam por determinadas atitudes religiosas, acreditavam que não era mais necessário realizar estes feitos, pois já havia uma igreja no bairro e seu respectivo representante178. Mas, apesar de algumas mudanças em sua devoção, dona Lourdes não a extinguiu por completo, assim como alguns de seus seguidores, resistindo à pressão social com o objetivo de manter viva a sua religiosidade e a de muitas outras pessoas que se dividiam entre as práticas religiosas oficiais e a devoção considerada popular. 177 Idem. O não descrever quem são os “aqueles” retrata o silêncio, o não dito da historiografia para não revelar a essência da afirmação. Sugere-se, então, que os “aqueles” de D. Lourdes se referem ao vizinhos, mas também aos integrantes da igreja e até o próprio dirigente desta instituição. 178 Assim, também aconteceu com dona Glória, a qual afirma que, para continuar com o ofício que sua mãe exercia quando era viva – benzedeira -, não foi fácil. Primeiramente, porque não queria assumir “uma responsabilidade tamanha e ainda ser difamada”179, como relata em uma das conversas que teve com sua mãe, quando esta ainda era viva: Eu digo eu num quero não, eu num quero que pessoa nenhuma diga que eu sou centro espírita. Ela disse: ô minha fia foi Jesus, aí eu disse: eu sei, o que existe no mundo é Jesus Cristo. Eu não liguei, ela disse: ô bobage, se tu ficasse era milhor. Eu disse: não, eu não quero não!...180 Ao negar à sua mãe este legado, com voz firme e segura, do que não queria que acontecesse, dona Glória demonstra o receio em ser identificada como representante de uma religiosidade que não servisse para o bem da sociedade e nem estivesse inserida nas boas práticas do Catolicismo e da medicina. Como nos mostra Challoub: “[...] as mais variadas práticas de cura, diferentes da medicina científica, serão igualmente tachadas de charlatanismo pelos cientistas. Seus praticantes, considerados bárbaros e atrasados [...]”181. Ao relatar este posicionamento repressivo da sociedade brasileira aos produtores e reprodutores da religiosidade popular, o autor o justifica pelo ensaio da comunidade científica em estabelecer o seu discurso como único e verdadeiro.182 Apesar do pouco avanço, a discussão a respeito da medicina natural e da liberdade religiosa, a comunidade acadêmica alertava a sociedade dos meados do século XX quanto aos perigos de se utilizar remédios naturais sem, inicialmente, serem testadas nas pesquisas em laboratórios para validar ou não as ervas medicinais.183 No entanto, essa reflexão está aquém da decisão de dona Glória. Ao chegar à comunidade, ela logo se prontificou em reunir as crianças da rua para lecionar o catecismo, mesmo não exercendo a profissão de professora, queria ensinar os dogmas da igreja católica. Foi a primeira professora de catecismo da 179 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. Idem. 181 CHALLOUB, op. cit., p.12. 182 Idem. 183 Ver SANTOS, Denilson Lessa. Nas Encruzilhadas da Cura: Crenças, Saberes e Diferentes Práticas Curativas - Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado: Salvador, UFBA, 2005. 180 comunidade, outro orgulho em sua vida, além de ser benzedeira. Ensinou durante 22 anos o catecismo, inicialmente em sua própria residência e, posteriormente, na igreja quando a construção da mesma foi finalizada e que fica situada em frente à sua casa.184 Além dessa função catequizante, no período que o templo estava sendo construído, por volta de 1958, integrou a comissão para adquirir fundos para a construção da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Inserida neste contexto de liderança comunitária, dona Glória permite transparecer em sua narrativa que não queria dar falso testemunho e/ou trair a confiança daqueles que tanto lhe admiravam na comunidade e na igreja através de seus atos religiosos, ou seja, não queria tomar atitudes as quais sabia que iriam ser criticadas e, consequentemente, ser excluída do grupo. Aparece na fala da entrevistada uma necessidade de se sentir incluída e “respeitada” pela comunidade. Isso também é uma forma de ascensão social, em especial por três coisas: ser mulher, negra e pobre. Além dos apelos de sua mãe, quando em vida, para que desse continuidade ao ofício de rezadeira, os mesmos continuaram a acontecer através dos seus sonhos. A aceitação do ofício de rezadeira somente se concretizou, segundo dona Glória, mediante uma ameaça de morte dada por um enviado de Deus, também em sonho185. Ela nos conta que após o falecimento de sua mãe, nunca perdeu o contato com a mesma, pois sempre estava presente em seus sonhos pedindo que assumisse a posição de rezadeira. Sonhos estes, e todos os outros, que sempre comentava com a sua irmã Ana Maria, sua grande companheira de vida e incentivadora para que aceitasse o pedido de sua mãe186. Na narrativa abaixo, dona Glória nos conta parte do sonho no qual foi selado o acordo entre ela e “o homem”, como ela designa aquele que lhe aparecia nos sonhos: [...]‘Sua mãe mandou, a senhora não quis aceitar o que ela disse e agora quem mandou foi Jesus. Se a senhora quiser me diga logo porque se não quiser quando for de manhã que a senhora abrir a porta só dá tempo olhar pra cima e pra baixo e antes da senhora fechar a porta a senhora cai, a cabeça pra porta da rua e os pés para 184 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. Idem. 186 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. 185 dentro de casa. Quer vim?’ Minha filha eu, do medo que eu fiquei, eu abracei o velho e disse: Não, eu assumo[...].187 A experiência de sonhos é de suma importância na vida de dona Glória, pois relembra fatos, orienta, solicita algo, cobra o que ainda não foi cumprido e no exemplo acima, interfere em seu cotidiano através da manipulação de suas ações e decisões. De acordo com Schmidt, os sonhos, no universo religioso, “... desempenham papel essencial, pois estabelecem a relação mais íntima entre o peregrino e o santo ou a santa – que lhe aparece em seu sono para o ajudar, ameaçar ou castigar”188. Diante, então, da ameaça de morte proposta em sonho e relatada por ela, dona Glória aceitou o ofício de bezendeira e iniciou o atendimento às pessoas que em sua casa chegavam pedindo a reza e, quando não era possível esse deslocamento, a benzedeira atendia em domicílio, como, por exemplo, dona Judite Cunha que há oito anos caiu no quintal de sua residência fraturando o fêmur e foi benzida por dona Glória. Segundo dona Judite “[...] mandei chamar ela pra poder me rezar, pra que esse osso colasse logo, [...]”189. E durante 10 anos de ofício, a benzedeira fortalece cada vez mais a sua manifestação religiosa na rua, no bairro e em toda a Santo Antonio de Jesus, pois os seus clientes190 são de todas as classes sociais, faixas etárias e religiosidade. A sua residência é, hoje, estruturalmente preparada para receber os “sedentos por graça”191. Por vezes,quando é uma reza rápida, ela a realiza na sala de visita mesmo, em que consta um jogo de sofá com dois e três lugares e um jogo de mesa com seis cadeiras. No entanto, para melhor acolher os seus clientes e para concretizar a reza com privacidade, transformou um cômodo da casa em uma espécie de consultório com entrada independente de sua residência. Ao abrir o portão posicionado ao lado da entrada principal de sua casa, encontra-se uma pequena ante-sala, logo em seguida outra sala, de mesma área que a anterior, com 187 Idem. SCHIMDTT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na idade média. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p.21. 189 Dona Judite Cunha, 83 anos. Entrevista coletada em 21 de setembro de 2009. 190 Os indivíduos que procuram o serviço religioso são denominados nesta pesquisa como clientes, pois baseado em Ferreira (2008) em seu Miniaurélio o cliente é aquele que, entre outros dois significados, “utiliza com certa regularidade os serviços de profissional ou empresa”. FERREIRA, 2008, p.239. 191 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. 188 dois bancos de cimento paralelos entre e perpendiculares às paredes. E nesta sala, também se faz presente, um pequeno altar sobre uma mesa de madeira, ornamentado com imagens de alguns santos, o rosário pendurado no telhado baixo além de algumas flores, que por vezes são artificiais e por outras naturais, e uma vela acesa, tudo bem à vista a todos que chegam. E ao lado do mesmo, uma divisória feita por uma cortina de tecido indicando a presença de um pequeno quarto com uma cama de solteiro e uma cômoda, ambos os móveis feitos de madeira. Este cômodo é bem freqüentado por todos que buscam alguma graça para sanar problemas sejam eles de ordem financeira, familiar, física ou mental. Vale ressaltar, que para coletar as narrativas de dona Glória foi necessário marcar um horário, e ainda assim, aguardar uma brecha entre um fiel e outro que estaria a chegar. Enquanto o momento da entrevista não acontecia foi observado e constatado o frequente e intenso atendimento das rezas, além das visitas que chegam para entregar alguma encomenda ou simplesmente ver e conversar com dona Glória. As “encomendas”, na maioria das vezes, são bens materiais ou dinheiro enviado pelos “clientes” de dona Glória em retribuição aos serviços prestados. É daí que dona Glória tira boa parte do que vai sustentar os cultos e rezas feitos por ela. Apesar de dizer que não cobra pelo serviço, ela indica um objeto ou material que está precisando para realizar uma reza ou para reformar sua capela. Sobre isso falaremos um pouco mais adiante. As pessoas que vão à busca desta rezadeira não esquecem os seus compromissos para com ela, nem tampouco os horários. São estritamente pontuais, para não passar da hora de receber a reza, pois possa ser que “desande” – ou seja, dê errado, a reza não funcione.192 Além das rezas individuais para conceder as bênçãos, dona Glória realiza as rezas coletivas, em que se fazem presentes pessoas conhecidas e também as que lhes são estranhas, sendo esta presença mediante um convite, para garantir um público “selecionado”193. Para a realização dessas devoções religiosas em que se rezam ladainhas, ofícios e orações, a anfitriã reformou outro cômodo da casa: uma sala que tinha apenas uma janela para rua se transformou em uma capela e abriu uma porta no lugar da janela; e em um quarto, junto a esta sala, o qual passou a ter a função de armazenar os utensílios necessários para uma reza (toalhas, jarros, 192 193 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. Segundo ela formado por pessoas que gostem de reza. flores artificiais,...) e para uma futura missa (cálices e livros litúrgicos), isto é, como ela mesmo denomina como “[...] a sacristia”. Segundo dona Glória, essa decisão em realizar as reformas na casa também foi inspirada por sonhos, através da aparição de Nossa Senhora – Mãe Rainha. A rezadeira afirma que: [...] a santa vei.... 05 de julho de ... 2004... Mãe Rainha....foi em agosto de 2003...quer dizer...tá com 6 anos e estou muito alegre e feliz, graças a Deus... Bom, essa mensage, ela vei no sonho pidir que eu fizesse um quarto, uma sala, a sala era aqui (capela) e o quarto é a sacristia. Que ela andava o dia todo, mas à noite ela ficava aqui ou aonde eu fizesse e toda as 3 hora, domingo 3 hora, rezar o teurço e a oração da mãe rainha que era pra livrar as mães, que tem filho, de que,... que ela disse isso é a tentação da serpente é as drogas, de assalto, de roubo, de ....assassinato. Só tira esse negócio debaixo de oração.194 Apesar da confusão nas datas do sonho, ela afirma o tempo de existência da capela em sua residência em oito anos195. Muitas vezes, as narrativas orais [...] mostram-se contraditórias, conforme a entonação conferida pelo relator, principalmente quando há observância rígida das regras e lógicas gramaticais, sem se atentar para o teor emocional existentes nos conteúdos das narrativas, quanto a velocidade, pausa, pontuação, intenção, mudanças de discursos e oscilações, que se desvelam mais pelo ato de ouvir, que de escrever196. No entanto, não considerar tais elementos implica em [...] equalizar o conteúdo emocional das narrativas ao nível da objetividade das fontes escritas, desconsiderando o fator primordial da subjetividade do expositor das fontes orais, pois estas não são objetivas, cujas características essenciais incidem em serem artificiais, variáveis e parciais. Fontes orais contam-nos o lado psicológico emocional do povo, quanto não só ao que fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora 197 pensa que fez . 194 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. Nas narrativas orais a temporalidade linear é falha. Muitas vezes as datas estão associadas a eventos e acontecimentos, outras vezes se perde no tempo. Aqui, não estamos interessados na linearidade do tempo, mas nas experiências vividas pelos entrevistados nesse tempo. 196 PORTELLI, Alessandro. O Que Faz a História Oral Diferente. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduação em História, n.º 14, São Paulo, 1997, p. 28. 197 Idem., p. 31. 195 A narrativa descreve a importância de reservar um local e um horário para rezar em homenagem a mais uma santa de sua devoção e, mais uma vez, remete a responsabilidade de suas decisões a seus próprios sonhos, como uma forma de justificar a lógica de suas atitudes. Esse local não só é utilizado quando se faz rezas comunitárias como a reza para Santa Bárbara, em dezembro, mas também como espaço de oração e reflexão individual dos familiares198. A capela é organizada com cadeiras de frente para o altar e na quantidade que couber, dependendo da estrutura da mesma, em torno de dez. Mas, como o espaço não comporta a todos que querem participar da referida devoção, as pessoas vão se acomodando no sofá da sala; em pé, no corredor e na cozinha além de ultrapassar o ambiente interno da casa alcançando o lado externo da frente da casa, preenchendo o passeio, o qual também foi nivelado para melhor acomodar os convidados. Como mostra a imagem abaixo: Foto 03: Residência de D. Glória em dia de reza à Santa Bárbara 198 Irmã e sobrinhos, pois não se casou e nem tem filhos. Fonte: Melina de O. Bittencourt, registrada em 06 de dezembro de 2009. A partir desta foto, percebe-se, ao lado esquerdo, encontra-se o portão que dá acesso ao “consultório”, ao seu lado, à porta central, a sala de chegada e ao extremo direito, a porta que dá acesso a capela erguida mediante “pedido de Mãe Rainha”199 juntamente com o passeio todo reformado, além da iluminação externa especial para este dia de festa. E como uma exímia dona de casa e anfitriã, dona Glória se preocupa, primeiramente, em acomodar a todos para depois iniciar o rito. Todos precisam estar acomodados, seja sentado ou em pé, pois não há cadeiras suficientes para todos. A rezadeira confere o posicionamento dos tocadores de violão e percussão, bem como o microfone e a caixa de som. A partir de então, inicia-se o rito devocional e todos ali presentes acompanham e rezam juntos. Durante a reza, alguns participantes dormem, mudam de lugar, outros ajoelham e participam ativamente da reza. É notório, diante de tais comportamentos, que alguns 199 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. se fazem presentes para não fazer desfeita ao convite da anfitriã, outros por costume, mas também tem aqueles que elevam as suas orações aos santos como maneira de agradecer e simultaneamente fazer os seus pedidos. Vale lembrar que ao preparar a festa de Santa Bárbara, ela promove, inicialmente, na véspera um caruru (com vatapá, galinha cozida e arroz branco) em homenagem a São Cosme e São Damião, convidando sete crianças. No entanto, alguns adultos também se fazem presentes, sendo que, primeiramente, o caruru e seus acompanhamentos, como refrigerantes e doces, são servidos às crianças, posteriormente, aos adultos. As crianças são residentes do próprio bairro e somente depois que todas elas chegam e se sentam ao redor da toalha colocada ao chão do “consultório” é que se recrutam as mulheres cozinheiras para ajudar a servi-las. E enquanto elas degustam o referido cardápio, o qual é preparado especialmente para este dia, o grupo de adultos, em sua maioria mulheres, cantam a música de São Cosme e São Damião ao ritmo acelerado das palmas. A rapidez na alimentação, portanto, pode ser justificada ou pelo ritmo musical ou mesmo em saciar a fome e ganhar os doces distribuídos após a refeição. E um fato curioso é que a anfitriã e gestora do ritual não degusta do próprio caruru, pois, segundo a mesma, “[...] não me dou bem não”.200 Isso demonstra um outro fator importante dentro das práticas devocionais: a alimentação tem um sentido muito maior que a sustentação do corpo. A escolha do prato a ser servido na festa religiosa tem haver com as preferências do santo e não com as preferências do organizador/anfitrião. No que se refere ao campo das religiões, a alimentação tem um papel fundamental no cotidiano de seus adeptos: permissões, proibições e jejuns são regulações religiosas simbólicas constantemente exercidas. Flandrin e Montanari no livro História da Alimentação, apresentam um panorama da alimentação no mundo, desde a pré-história até os tempos atuais201. A comida nos cultos devocionais católicos do nordeste, em especial na Bahia, está muito associada à comida de oferendas ligadas às práticas do candomblé202, estas são algumas das sobrevivências da cultura afro-brasileira nas celebrações devocionais de um catolicismo popular. 200 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. FLANDRIN, J-F. MONTANARI, M. (orgs) História da Alimentação. 4 ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. 202 Para mais informações sobre o ato de comer e as práticas religiosas ver, entre outros: SOUSA JUNIOR, Vilson Caetano. O Banquete Sagrado: notas sobre a comida e o comer em terreiros de candomblé. Salvador: Atalho, 2008. 201 No dia seguinte, então, continua a preparação para a festa em homenagem à Santa Bárbara. A capela é ornamentada de forma especial, pois para dona Glória é a reza mais significativa do ano, como mostra a foto a seguir: Foto 04: Capela de dona Glória em dia de reza à Santa Bárbara Fonte: Melina de O. Bittencourt, registrada em 06 de dezembro de 2009. Percebe-se nesta capela a presença de imagens de santos sobre mesas e no interior dos santuários de madeira fixados entre a parede da capela e da sacristia, bem como a grande quantidade de fotografias de santos como “[...] Nossa Senhora do Monte Serrat, Mãe Rainha, Santa Bárbara, São Cosme e São Damião [...]”203 e outras. E ao centro da parede frontal, o símbolo maior para o Catolicismo: a imagem de Jesus Cristo crucificado. A presença de imagens promove a seus devotos a sensação de proteção, força e graça, ou seja, 203 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. Entre a imagem e o devoto, a troca de olhares é desde o primeiro momento determinante: ao fixar a imagem dos olhos, este último sente-se invadido por uma presença viva, antes de encontrara em sonho a confirmação de seu poder ativo....ficam fascinados pelo olhar (vultus) desses personagens celestiais que parecem descer na terra....eles se esforçam para adivinhar os sinais favoráveis à sua prece.204 As flores também se fazem presentes neste recinto. Para os dias comuns, as flores são confeccionadas de papel crepom ou de material reciclado, como por exemplo, de garrafas plásticas, mas para este dia especial elas são naturais. As velas também fazem parte do ambiente e tem função específica na ritualística, representam a luz da fé, a qual, segundo os devotos, não deve nunca se acabar. As paredes pintadas recentemente e a arrumação da cortina demonstram o cuidado e o bom gosto para com o ambiente e seus rituais religiosos. Vale ressaltar que toda essa ornamentação, segundo ela, foi ordenada por sua mãe e pela Mãe Rainha através de seus sonhos. E para este momento de festa em sua casa, ela planejou uma modificação na capela que foi realizada a tempo para homenagear Santa Barbara, São Cosme e São Damião: fazer um arco no teto, colocar cortinas brancas com laços vermelhos e pintar o teto de azul: [...] eu num ia bulir mais em casa, quando foi a semana passada mamãe vei me pediu que eu fizesse arcada, ‘bota pano vermelho e branco, que o espírito santo vai ficar aqui’... e essa mãe rainha ela vei também me pedir, foi por isso que eu fiz essa capelinha dentro de casa.205 É através desse exemplo de dona Glória que Schimdtt nos confirma que “[...] a possibilidade aberta pelo sonho de dar voz à cruz, ou mais tarde ao crucifixo ou outras imagens, permitia dar ao objeto sua plena legitimação ideológica e, simultaneamente, justificar o ato de adoração do fiel”206. Mais uma vez as atitudes de dona Glória foram orientadas por sonhos. Estes, por sua vez, são relatados, primeiramente à sua irmã Ana Maria, e depois socializados a todos os indivíduos que em sua casa chegam ou quem ela encontra na rua e, estes, se tornam reprodutores dos relatos que ouvem. E estes sonhos 204 SCHIMDTT, op. cit., p. 19. Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. 206 SCHIMDTT, op. cit., p.172. 205 somente se tornam realidades pela narrativa, caso contrário continuarão como meros devaneios, como nos afirma Schimdt “[...] Um sonho não pode ser conhecido, não existe verdadeiramente, senão pelo relato que se faz dele”207. A narrativa dos sonhos e seu encadeamento na comunicação oral fortalecem a posição de liderança religiosa de dona Glória devido à valorização destinada e repassada, inicialmente pela mesma, desdobrando-a a seus amigos, vizinhos, conhecidos e familiares, como detentora do dom ou mérito, através da narração de seus sonhos, de dialogar com os santos, de ser a escolhida por Deus a transmitir as mensagens enviadas por ele. É notória a curiosidade e a sensação de surpresa atrelada ao sentimento de respeito e obediência dos devotos que convivem com dona Glória mediante os relatos de seus sonhos, e por isso seguem a vida, sem titubear, através de conselhos e orientações emanados pela mesma. O dia da festa registrada na imagem acima coincidiu com o dia em que também se realizava a missa – ritual mais significativo do Catolicismo - na igreja localizada em frente à casa de dona Glória, a qual também ajudou a construir, angariando recursos através do Livro de Ouro208, por exemplo. Os devotos que se dirigiram para a Rua do Cajueiro, na noite do dia 06 de dezembro de 2009, se depararam com dois eventos religiosos, um popular e o outro oficial. Como não era possível estar em dois lugares ao mesmo tempo, as pessoas precisaram decidir onde iriam ficar. Alguns não pensaram duas vezes e escolheram a missa ou a reza na residência de dona Glória, por motivos de afinidade com a forma do culto ou por costume. Mas, houve situações em que as pessoas iam para a casa de dona Glória visitá-la e parabenizá-la enquanto a missa não começava. Quando começava o culto na igreja saiam da capela residencial em direção à missa e vice-versa. No entanto, houve também aqueles que foram na capela apenas para cumprimentá-la e decidiram por ficar e participar do ritual popular em detrimento da missa. Dentre as pessoas presentes na capela domiciliar estavam iniciantes, os quais buscavam conhecer o ritual religioso e pela primeira vez experienciar tal momento através do convite feito pela própria anfitriã ou por algum vizinho. Observe abaixo o seguinte convite: 207 SCHIMDT, op. cit., p. 304. O Livro de Ouro se constitui em um caderno, forrado e confeccionado, em que um grupo de pessoas -comissão- fica responsável em pedir ajuda financeira àqueles que podem e/ou querem ajudar com tal propósito, neste caso com a construção da igreja de Nossa Senhora do Pérpetuo Socorro, no bairro do Cajueiro. E, a cada contribuição, o nome da pessoa e sua respectiva doação são anotados no referido caderno – Livro de Ouro. 208 [...] E você, pela primeira vez que eu te vi, agora fazer como o verso que minha mãe tinha: a primeira vez que te vi fiquei te querendo bem / com minha boca calada sem dizer nada a ninguém / eu te convido. .... Eu convido, minha filha. No dia 06 de dezembro, vai cair num dia de domingo você venha, já sabe onde é minha casa, você é acolhida pela minha porta.209 Utilizando de versos curtos e permeados de simpatia, dona Glória relembra mais uma vez os ensinamentos de sua mãe dona Germana para convidar aqueles os quais ela deseja acolher em sua residência para participar da festa – reza em homenagem à Santa Bárbara e São Cosme e São Damião. Outras pessoas, no entanto, as quais já frequentam esta reza há muitos anos buscam agradecer a seus santos pelas graças já recebidas, bem como a força para superar as dificuldades do cotidiano através da vivência do sagrado. Vale lembrar que esta prática de rezar em domicílio advém de um hábito rural em que os padres não tinham acesso fácil, então as famílias se reuniam para rezar, pois além de serem momentos de religiosidade, eram motivos para reunir a família, os vizinhos e amigos, que moravam tão distantes, para confraternizar. Stakonskinos reflete que “[...] No âmbito da religiosidade popular, a devoção aos santos, procissões, benzeduras, festas e promessas eram práticas correntes e legítimas de um catolicismo em que os leigos assumiam posição de destaque nas atividades religiosas,[...]”210. Logo, continua a autora, [...] Os sacramentos que deveriam ser ministrados exclusivamente pelo clero, substituíam as rezas das benzedeiras, [...] A iniciativa de muitas manifestações religiosas era leiga, em parte, fruto de um hibridismo cultural, que permitia a contínua introdução de novas práticas de veneração e novos santos no imaginário. Essa iniciativa é percebida na construção de oratórios e capelinhas para veneração de santos [...]211 A construção de oratórios era frequente na maioria das casas que abrigavam famílias católicas desde o período colonial, por mais modesta que fosse a 209 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. STAKONSKI, Michelle Maria. O caso Nolasco: reverberações da romanização da irmandade do rosário. In: SOUZA, Rogério Luiz. OTTO, Clarícia (orgs). Faces do Catolicismo. Florianopólis: Insular, 2008. p. 160. 211 STAKONSKI, p.163. 210 casa sempre o proprietário procurava um espaço para colocar a imagem de algum santo. Esse costume se perpetua até os dias atuais, não tão frequente e intenso como antigamente, mas permanece promovendo a continuidade desta tradição através dos esforços de pessoas que buscam, mesmo em tempos em que a tecnologia invade os lares, preservar uma religiosidade considerada, por parte da elite e da intelectualidade, como popular no sentido de diferenciar das práticas oficiais, ou seja, a comunicação direta entre os devotos e o divino, assim como as formas mais peculiares possíveis para manifestar essa religiosidade. Na festa realizada por dona Glória em homenagem a Santa Bárbara e São Cosme e São Damião, além do caruru servido na véspera e a reza, um grande bolo é repartido simbolizando a união em um momento de confraternização, ou seja, a comemoração pela participação de todos os presentes na reza coletiva através de uma refeição. Foto 05: Bolo - Reza a Santa Bárbara Fonte: Melina de O. Bittencourt, registrada em 06 de dezembro de 2009 Por acolher uma quantidade significativa de pessoas em sua casa, uma média de cinquenta, o bolo necessita ser grande como mostra a imagem acima, quase alcançando o tamanho da mesa da sala. Colocado sobre a mesa forrada com uma toalha branca feita de crochê permeada por fitas vermelhas de cetim, o bolo é delicadamente decorado com azul e branco e generosos cachos de uva. Este foi doação de uma padaria, talvez de um frequentador anônimo, alguém que pediu benzeduras ou rezas. Esta sala é um dos recintos da casa que todos os seus freqüentadores sentem a necessidade de visitar com o intuito de verificar o famoso bolo da reza. Assim como o bolo foi uma doação, outros itens também se inserem neste processo. Como a preparação desta festa acontece durante o ano inteiro, dona Glória recebe, em troca das rezas e benzeduras individuais, materiais que irão confeccionar o ambiente da manifestação religiosa, tanto na ornamentação como na reforma. Ela afirma: “[...] É minha filha, mas o povo coopera. Num viu agora a sacola? É presente que o povo tá dando para o dia 06 de dezembro, dia da festa do Espírito Santo, Cosme e Damião e Santa Bárbara [...]”212, além do cimento e areia para fazer o arco do teto no interior da capela e o nivelamento do passeio, as almofadas para as cadeiras, as cortinas e as fitas vermelhas que tanto foram solicitadas em seus sonhos. Mas, também existem aquelas doações do cotidiano como o pão para fazer as refeições matinais e noturnas, um tecido para confecção de alguma roupa, flores para ornamentar seus altares, entre outras. Segundo dona Glória, tais doações são realizadas espontaneamente por seus “clientes”, os quais insistem em retribuí-la pela graça recebida com algo material, até mesmo com dinheiro. Os atendimentos realizados por esta benzendeira não são cobrados financeiramente e nem com outros recursos, pois como a mesma afirma, através da narrativa de sonhos, esta condição foi mais uma imposição feita em seus sonhos quando assumiu o ofício de benzedeira: [...] ‘Quer vim?’ Minha filha eu, do medo que eu fiquei, eu abracei o velho e disse: não, eu assumo. “Assume?” Eu disse: assumo. Aí ele disse: “olhe, não cobre, se alguém lhe der qualquer coisa aceite por amor. E se nada lhe der, se dizer assim Deus lhe pague, num se preocupe não, o que é seu tá guardado. [...]213 Através da narrativa de dona Glória, relatando mais um de seus sonhos, percebe-se a forma como se deu o convite, a aceitação e a condição para que a 212 213 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. Idem. mesma assumisse o ofício que, um dia, teria sido de sua mãe. Segundo dona Glória, aquelas benzedeiras que cobram algum dinheiro não realizam a reza de forma verdadeira, isto é, não executam este ofício por amor ao próximo, mas por mero interesse individual não viabilizando a realização da graça solicitada por seus clientes. Aqui, mais uma vez, dona Glória procura se diferenciar das demais rezadeiras, num desejo de expor uma “pureza” das suas práticas devocionais. E durante todas as etapas de preparação e realização da festa, a anfitriã transborda de ansiedade e alegria: “[...] minha fia enche de gente lá (gargalhadas), do lado de lá e aqui fica cheiozinho. Tenho a alegria, tenho prazer mesmo [...]” (grifo nosso).214O entusiasmo de dona Glória se torna aparente, durante a entrevista, ao reconhecer o seu prestígio de rezadeira/benzedeira na cidade de Santo Antonio de Jesus através da quantidade de pessoas que se fazem presentes em sua capela e advindas de várias localidades da referida cidade. Esta posição de valor é analisada por Charles Santana ao relatar a existência de momentos festivos religiosos na zona rural de Santo Antonio de Jesus, em meados do século XX, como o que se segue: Assim, a grandeza da festa registrava e reafirmava a posição do organizador na sociedade local. Maior seria a consideração pelo ‘dono da casa’, quanto maiores fossem o número de pessoas presentes, a quantidade de comida e bebida e o tempo de duração da festividade. Em poucas palavras a festa revestia-se de poder.215 Ao promover a reza de Santa Barbara que é a mais esperada do ano, dentre tantas outras que ela celebra, pela sua forte presença de convidados, ornamentação e aparato musical, bem como pela confraternização após a reza através da partilha do bolo, dona Maria da Glória reafirma junto com a comunidade o seu poder de liderança religiosa e, consequentemente, social. E o grande anseio desta benzedeira que ainda não foi realizado, até a presente data, é a celebração de uma missa em sua capela. Um propósito um tanto audacioso por exigir que as autoridades eclesiais locais ultrapassem os limites espaciais e territoriais da religiosidade católica oficial ao pretender assumir papéis no campo do catolicismo popular. No entanto, ela não desiste e afirma: [...] Paro ano, se Deus quiser, vai ter a missa aqui, ou o padre Nelson, ou o padre Antenor, ou o padre Edésio ou o padre, esse 214 215 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. SANTANA, op. cit, p. 64. menino,... Sérgio. Tenho tudo aí na sacristia, tudo arrumado. Na hora que ele disser “é hoje”, minha casa neste dia pára (gargalhadas).(grifo nosso)216 A expectativa da realização deste feito é o que promove a esperança e a alegria em dona Glória. A capela construída e recentemente reformada para assemelhar-se a um templo religioso oficial com arco no teto, toalhas brancas, imagens de santo e a funcionalização de um quarto como sacristia onde armazenam os utensílios para a concretização de uma missa retrata, além da devoção popular atrelada ao catolicismo oficial, um indício de afastamento das atividades da mesma para com as atividades da Igreja, a qual se localiza em frente à sua casa. Percebese, ao observar a capela de dona Glória, que até mesmo a parte decorativa ela tentou assemelhar a da igreja. Aparentemente não há tensões envolvendo os dois lados. Aparentemente. Pois, com maior atenção vamos perceber que os silêncios de algumas pessoas ao, praticamente ignorar as práticas de dona Glória, são fortemente reveladores. Dona Lourdes, que desempenha uma importante função na Igreja, desvia-se constantemente de comentar as práticas de dona Glória, sua vizinha, como também o faz dona Nita.217 Diante da análise registrada no transcorrer do presente capítulo, percebese a presença de rituais oficiais e populares, mas em ambas as manifestações religiosas pessoas afirmaram que já não se realiza as rezas como antigamente, como disse dona Glória “[...] Aqui reuni muita gente ...reunia muita gente, até isso, ...num tá tendo mais aquela quantia de gente que era [...]”218. Além da quantidade de fiéis freqüentadores, outros aspectos também foram modificados promovendo o desânimo na liderança religiosa, bem como a preocupação com o seu legado, pois os seus descendentes não se interessam em perpetuar com o mesmo. Não só isso preocupava nossas entrevistadas, mas uma possível perda de prestígio com a diminuição dos frequentadores estava entre outros motivos causadores de suas preocupações. 3º CAPÍTULO 216 Dona Maria da Glória, 78 anos. Entrevista coletada em 10 de agosto de 2009. Idem. 218 Idem. 217 REDES DE SOCIABILIDADES 3.1- As relações de poder construídas na comunidade A manifestação religiosa seja ela popular ou oficial, proporciona aos seus agentes produtores e reprodutores a construção de redes de sociabilidades, diversas e numerosas, pois ao exercer a sua religiosidade através de suas rezas e cantos de ladainhas e ofícios, o grupo social e seus visitantes compartilham algo em comum, bem como, “[...[ajuda a criar o sentimento de um destino compartilhado,... canto desempenha ainda,[...], uma função especificamente mnemônica[...]”219, ou seja, o ato de cantar proporciona ao grupo uma catalisação da memória, fazendo com que os membros destes reforcem a essência da devoção popular passada por seus ancestrais. As trajetórias de vida guardadas na memória de nossas entrevistadas nos apontam as peculiaridades que só encontramos diretamente quando estamos em contato com os sujeitos que participam desta história compartilhada. A religiosidade afro-brasileira foi formada pelos recém-chegados ao Novo Mundo como alternativa para construírem uma nova forma de viver e sobreviver à escravização, uma identidade com rupturas e permanências de suas experiências e de seus ancestrais. Tais experiências foram incorporadas, também por negros libertos, muitos dos quais, participaram de diferentes redes sociais e religiosas. As interlocutoras aqui registradas construíram, ao longo de suas respectivas trajetórias de vida, peculiaridades nas relações interpessoais, tanto relacionadas à intensidade quanto à diversidade. Todas teceram relações com pessoas de várias localidades da cidade, de diferentes classes sociais, faixa etária e religiosidades. Dona Glória, mais especificamente, devido a seu ofício de benzedeira, traz em sua trajetória de vida esse conjunto de peculiaridades de forma 219 GIRAUDO, op. cit., p. 110-111. mais completa. Algumas dessas relações se tornaram intensas a ponto da mesma considerá-las como familiar. A partir das redes sociais, dona Glória, dona Nita, dona Lourdes e dona Milú alcançaram alguma forma de poder, através da liderança católica. Inicialmente dona Glória, por ter sido a primeira catequista do bairro do Cajueiro, como afirma: “Ensinei o catecismo 22 anos, mas quando eu estava com 11 anos de ensino, [...]” 220 - chegou ao bairro um grupo de representantes da igreja católica para mobilizar os moradores do bairro com o objetivo de construir, principalmente, uma igreja, recebeu a seguinte proposta: “Ô Maria nós tamo aqui fiscalizando, pra vê que a gente acolhe o povo pra mais tarde fazer uma igreja.”221 E a catequista, ao rememorar os preparativos para a construção do templo religioso oficial, bem como o seu esforço em testemunhar a realização de tal objetivo declara com convicção o seu poder de liderança no referido bairro: [...] Eu era influente, minha filha (intensidade na fala), eu não comia não, de alegria [...] 11 de fevereiro de 62 a 63, a primeira comunhão. E lá vai primeira comunhão e lá vai primeira comunhão e eu acolhendo o povo depois fez uma reunião para fazer um posto, fazer uma igreja aí eu disse: nós vamos fazer, mas o povo acolheu, acolheu mesmo.222 (grifo nosso) Por ser uma possível reprodutora dos preceitos e dogmas católicos, dona Glória aparenta possuir a atenção e respeito da maioria dos moradores do bairro na época. E como a mesma intensificou a sua influência nas atitudes daqueles indivíduos que a cercavam, auxiliou, juntamente com um grupo de pessoas, a angariar materiais de construção bem como recursos financeiros para erguer a igreja e ao seu lado, anos mais tarde, um posto médico anexado a outra estrutura física na qual funciona, até os dias atuais, uma escola. Por sua personalidade alegre e decidida, além da formação religiosa, foi escolhida pelo representante oficial da paróquia para ser a detentora da chave da igreja monitorando a chegada e a saída de pertences e de pessoas, bem como a utilização do templo sagrado para outros fins, além dos ritos missais. Passados alguns anos esse cargo foi entregue a dona Nita, pois dona Glória, afirma que 220 Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010. Idem. 222 Idem. 221 entregou o mesmo espontaneamente223. A fala dela demonstra uma certa insegurança e vontade de não continuar com aquele assunto que, parece, lhe perturbar bastante. Isso nos leva a questionar se realmente ela teria “entregue” as chaves da igreja ou elas lhes foram tomadas. Caso ela tenha perdido a confiança do poder eclesiástico, um dos motivos prováveis é o fato dela manter o ofício de benzedeira, o que, na maioria das vezes, o poder eclesiástico não aceita, por ir de encontro a certos dogmas da Igreja. Seja lá como for, a perda das chaves, de certa forma, foi a perda de um poder que ela possuía. Após um pequeno período de tempo como a responsável pelo templo, por problemas de saúde, dona Nita passou a responsabilidade para dona Lourdes que permaneceu no ofício até sua morte, em janeiro de 2011. Além deste poder dona Lourdes também exercia outro tipo de liderança religiosa: ministra da eucaristia - representante do sacerdote do Catolicismo. Estas lideranças, Glória, Nita e Lourdes, exerciam também a função de nortear a vida daqueles que as procuravam pedindo alguma graça, aconselhamentos ou apenas para uma conversa. Isso aconteceu devido à respeitabilidade que as três passaram a ter no seio da comunidade. Mesmo recebendo pessoas de diversas classes sociais e de diversos bairros, elas confessaram que a grande maioria dos que as procuravam eram “iguais a gente” 224, ou seja, pobre, negro e morador das imediações do Cajueiro. Não há dúvidas que elas concentravam um poder com vínculo maior junto à sua “comunidade”. O poder de assombrear a vida das pessoas pelos seus ensinamentos está relacionado, mais diretamente, com dona Lourdes - por ter a sua trajetória de vida valorizada por familiares, amigos e vizinhos - e dona Glória pela narração de seus sonhos, considerados como profecias por aqueles que a admiram, assim como por sua atividade de benzedura e o atendimento aos pedidos, os mais diversos, por aqueles que a procuram. Este perfil é “[...] uma qualidade pessoal considerada extracotidiana [...] e em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extracotidianos específicos [...].”225 223 Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010. Idem. 225 WEBER, 1991, p. 58-159 apud Zanotto, 2009, p. 115. ZANOTTO, Gizele. Ortodoxias, Heterodoxia: os tênues limites da religiosidade católica na TFP. In: ISAIA, Artur Cesar (org). Crenças, Sacralidades e Religiosidades. Florianópolis: Insular, 2009. 224 Dona Glória, a qual afirmou que era “influente” e se sentia feliz ao realizar atividades na/pela igreja precisou se afastar, pois houve desavenças no grupo social, do qual era membro. Ela justifica esse afastamento dizendo: “[...] a senhora sabe que a pessoa que trabalha em comunidade226, que tem comunidade que não compreende comunidade. Nisso eu fui diminuindo, me saindo, mas sempre o povo afirmando a fé[...]”227. Nesta narrativa percebe-se a seleção minuciosa da fala – o silêncio que nos fala - para que não proclamasse quais foram as reais situações que se tornaram incompreensíveis e intoleráveis pelos membros do grupo social a qual esta pertencia e nem apontar os responsáveis pela instabilidade grupal. Mais adiante ela continua: O povo vai olhando e dizer: ‘quanto fulano que trabalhou tanto, o povo tá assim e eu?’ Vai se saindo, vai se saindo, se saindo, se saindo, quando vê... . É o caso que se dá na religião, na comunidade é isso. [...] que foi que ele (Jesus) disse: eu vos envio dois a dois aonde chegarmes se ninguém apoiar, a pessoa não ixista sacuda poeira dos pés... em protesto daquele que não deu lida. É o caso da comunidade hoje, porque existe tanta leis, por qualquer espinho que Deus toca já aquela lei católica já não presta mais e vai pro protestante e agora cadê, [...]228 (grifo nosso) É percebido, nesta fala de dona Glória, mágoas causadas pelos conflitos no interior de seu próprio grupo sócio-religioso. Ela que trabalhou intensamente, juntamente com uma comissão, para a construção da igreja e do posto médico, a ponto de ser exemplo de liderança religiosa para outras pessoas do bairro, se desapontou com as atitudes de determinadas pessoas e afastou-se das mesmas e de outras atividades oficiais do catolicismo, inclusive da função de zeladora da igreja sendo substituída por dona Nita. A partir desta sua atitude, é provável que ela tenha se distanciado das práticas católicas mais ortodoxas, exercitando com mais intensidade práticas devocionais do catolicismo barroco. Outro resultado dessa exclusão foi o descarte de lembranças materiais guardadas na residência de dona Glória, a qual passou a não se importar mais com 226 Para a narradora, comunidade significa grupo de pessoas que possuem as mesmas atividades religiosas e moram ou não no mesmo bairro. 227 Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010. 228 Idem. os registros fotográficos e escritos (correspondências, listas das crianças catequizandas, entre outros) que tinha em casa desde o tempo em que lecionou o catecismo até o momento em que se afastou dos trabalhos mais ligados aos rituais oficiais e passou a criar ou recriar seus próprios ritos e celebrações. Ela conta que chegou ao ponto de rasgar parte da documentação, das lembranças que possuía daquele tempo de liderança da Igreja. O que não foi jogado fora não foi conservado da maneira mais adequada permitindo que a umidade da chuva originadas no telhado da casa os destruíssem. Esse comportamento caracteriza a necessidade, consciente ou inconsciente de pessoas sobre fatos que são considerados ruins e que não querem rememorar e nem passar adiante. Por conseguinte, existem nas lembranças de uns e de outros zonas de sombra, silêncios, "não-ditos". As fronteiras desses silêncios e "não-ditos" com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos.229 Mas, a destruição de lembranças materiais não compromete os fenômenos mnemônicos, pois nesta esfera do psíquico só será sanado o problema quando a pessoa souber conviver com os fatos do passado. Após a narração dos maus momentos vividos, dona Glória enaltece as atividades religiosas da época como forma de saná-los com os bons: “Mas aqui eu já vi boniteza: leilão, o povo tudo cooperava com Zé Raimundo230 era, ...e comigo também. Toda vida o povo gostou de mim. Agora a gente vai ficando velho, ...mas a minha igreja, deixei a de lá, mas aqui eu vou te apresentar...”231 e nos convida a conhecer a capela que construiu dentro de sua própria residência. Essa decisão em abandonar a igreja e montar o seu próprio recinto sagrado no interior de sua residência serve para nos atentar a tamanha desestabilização entre os laços afetivos formados neste grupo sócio-religioso. Nesse contexto, muitas das relações tecidas ao longo dos anos se remodelaram, se 229 POLLACK, op. ct.,p. 3-15. José Raimundo Galvão – pároco de Santo Antônio de Jesus à época. 231 Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010. 230 aprofundaram e outras se tornaram mais frágeis à medida que aconteciam os conflitos interpessoais. Segundo Gomes, várias são, [...] as opiniões religiosas [...] sobre a busca de sentido para a existência, mas à têm igualmente sobre os comportamentos, ordenando toda a vida do homem crente, inclusive suas práticas sociais, as religiões são também lugares relevantes dos conflitos sociais. Assim sendo, no campo religioso é simultaneamente lugar, produto e fator ativo daqueles conflitos.232 Conflitos também existiram no meio social religioso ao qual dona Milú participava. Ela, de integrante do Apostolado da Oração – tradicional grupo católico – passou a ser, dois anos mais tarde, a diretora do grupo e relembra com muita emoção na fala essa fase de sua vida em que o trabalho religioso e as amizades foram criadas e fortalecidas pela união e solidariedade entre os seus membros: “[...] foram os dias mais belos de minha vida, ...mais gostoso, ...mais feliz, ... foi naquela época...de apostolado da oração, que eu trabalhava.” 233 Na presente narrativa, os intervalos da fala revelam a alegria em rememorar os bons momentos vividos e, simultaneamente, o sentimento de que poderá não existir tempos tão proveitosos originados pela rede de sociabilidades. Como exemplo de positividade nas relações interpessoais dona Milú se recorda, com a fala engasgada e os olhos lacrimejando de emoção, alguns acontecimentos que revelam as péssimas condições financeiras de membros do grupo, bem como o espírito de companheirismo e solidariedade que o mantinha coeso. A seguir um diálogo traçado entre dona Milú e uma componente do grupo pastoral, em dia de festa: [...] ‘Ô gente, eu não tive nada pra trazer.’ Eu disse: Tome vergonha, entre, você é irmã, é filha do coração de Jesus ou não é? Você não considera a gente como irmã não é, rapaz? ‘Mas, ô gente eu tenho tanta vergonha, todo mundo entrando com a bandejinha e eu ...’ cala a boca, você está entrando com seu coração aí aberto. Vá pra lá, vambora. 234 232 GOMES, Francisco José Silva. A religião como objeto da história. In: LIMA, Lana Lage da Gama et al(org). História e Religião. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2002, p.17. 233 Dona Milú, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. 234 Idem. E continuou com outro fato corrido em uma confraternização de final de ano: [...] Teve uma velha, que a gente fez um amigo secreto, que tava chorando, chorando... e perguntei: porque a senhora tá chorando?... ‘Porque eu num posso entrar no amigo secreto...eu num posso dona Milu... quem sou eu? Onte num tive um tostão pra comprar nem de sal e eu para entrar no amigo secreto eu tenho que comprar qualquer coisinha, como é que eu posso?’ Aí eu disse: Olhe tome jeito ...eu quero domingo você aqui ...Aí Bárbara disse: ô mulher tome juízo, você vem. E Cecília também disse: o que é que está faltando filha? ‘Uma lembrancinha, eu não tenho nem o que fazer feira...’ Cecília disse: você vem, vai dançar, comer e beber aqui com a gente, o grupo não pode desunir não. Se sair um como é que fica?....Aí eu falei: enxugue esse pranto, vá pra casa e no domingo é pra tá aqui com a gente. E saiu nós tudo dando risada e ela saiu alegre.235 A narrativa de dona Milú pretende apresentar o seu poder, sua liderança diante do grupo. O auxílio mútuo e as redes de solidariedades estão presentes, porém, não de forma desinteressada, segundo a interlocutora. Mesmo de forma inconsciente o que as pessoas buscam na organização de tais redes, no fornecimento de auxílio ante às necessidades apresentadas por membros de um mesmo grupo, é o reconhecimento deste grupo e a consolidação de sua liderança, a qual muitos se esforçam para perpetuá-la, seja de forma oficial ou não. Estas redes de solidariedade eram formadas com ações do cotidiano e que buscava proporcionar a seus membros o sentimento de pertencimento a um mesmo padrão de crenças e normas sociais. Outros feitos do Apostolado da Oração, durante o período que dona Milú esteve na liderança foi realizar visitas ao abrigo dos velhos, presídio e hospital da cidade de Santo Antonio de Jesus levando cestas básicas e lanches “pra merendar lá com eles”236. Ao comungar desse momento juntos, o grupo religioso e o social, se conectam, pois não se comia apenas, mas cantavam, rezavam e contavam casos uns aos outros, sociabilizando as suas alegrias, tristezas, esperanças e temores. Essas atividades atreladas ao universo religioso de dona Milú provavelmente são resquícios de grupos religiosos como as irmandades, as quais tradicionalmente, desde os tempos coloniais, se preocupavam com os seus membros. Fazer parte de uma irmandade era o desejo da grande maioria das 235 236 Dona Milú, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. Idem. pessoas, em especial escravos e libertos, até o século XIX. Com a participação em irmandades poderia se garantir uma ajuda para alcançar a liberdade, no caso de escravos e libertos, para auxiliar na doença ou mesmo dar um sepultamento digno. Destas práticas muitas permaneceram e outras se adaptaram aos novos tempos, em especial por conta da perda de prestígio das irmandades leigas no século XX, e sua substituição pelas “pastorais”237. A origem das irmandades religiosas ocorre no período medieval a partir do modelo das corporações de ofício, que atendiam aos interesses de seus integrantes, mas tinham também como objetivo a assistência mútua a seus membros. Enquanto as corporações limitavam o seu auxílio aos próprios membros, as irmandades eram formadas por leigos, sem restrições de qualificação profissional e, até mesmo, sem distinção social.238 Essas instituições eram regidas por um estatuto, o compromisso, que deveria ser endossado pelas autoridades eclesiásticas e pelos monarcas. Nele estavam contidos os objetivos da irmandade, o seu funcionamento, as obrigações de seus membros, assim como os direitos adquiridos ao se tornarem membros dessas associações. As irmandades tiveram o seu apogeu na época colonial e ainda se destacavam no período imperial. Elas conservaram muitas das práticas que hoje fazem parte das chamadas devoções populares e que já tratamos alguns desses aspectos nos capítulos anteriores. Porém, na segunda metade do século XIX e sob influência do catolicismo romanizado, este tipo de associação foi marginalizado e, aos poucos substituído por outras formas de organizações, mais coerentes com os princípios do catolicismo ultramontano.239 Num exemplo de reelaboração das práticas das antigas irmandades, dona Milú conta que realizava visitas aos membros ou conhecidos do grupo religioso que estavam doentes para atualizar ao enfermo as decisões tomadas nas reuniões e “[...] se morria alguma do Apostolado, a capela o apostolado dava e a gente avisava a todos...e o apostolado tava constante ali o grupo [...]”240. 237 Organismos oficiais da Igreja que são responsáveis em pregar os dogmas em diversos setores da sociedade: família, juventude, criança, etc. 238 QUINHÃO, Antonia Aparecida. Irmandades negras: outro espaço de lutas e resistências - São Paulo 1870-1890. São Paulo: AnnaBlume, Fapesp, 2002. p.26. 239 QUINHÃO, op. cit, p. 27-56. 240 Dona Milú, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. Como em todo grupo social, apesar das afinidades que o une, existem também os conflitos. Dentre estes, muitos são superados enquanto outros deixam marcas nas pessoas promovendo o afastamento das mesmas. Como um fato que dona Milú nos relata: [...] aí na sexta-feira, tinha a reunião após a missa. Aí quando ele (o padre) falou que eu opinindo da roupa teve gente da socity e o pessoal da socity tem essa coisa que vai levar, meu deus,... quando morrer vai levar, porque não enxergou, ainda não compreendeu, ... ainda é uma mania de menosprezar os outros, é uma mania de querer pisar nos pobres, nos mais velhos, nos pretos, nos mais humildes. Aí quando falou em trocar essa roupa foi uma guerra dentro daquele salão, foi uma guerra. O pessoal da socity, essas branquinha tirada a mé com terra, disse que não ia vestir branco ... teve uma branca aí que jurou não mudar e não mudou mesmo. Continuou caminhando, mas toda de branco não. E trabalhando no grupo de jovens a branquela me chamava de mulher do padre [...]241 (grifo nosso) Ao assumir a direção do grupo religioso, dona Milú afirma que planejou a utilização de um uniforme para melhor identificar o grupo em eventos e viagens que faziam, pois “[...] era muita gente, cerca de trezentas pessoas,... parecia mais uma salada [...]”242. O aparente descaso da “branquela” pelas decisões tomadas por dona Milú, podem ter por detrás da discussão sobre a roupa a ser utilizada pelo grupo um conflito mais sério e profundo: de relações raciais e sociais. Uma das possíveis causas deste conflito pode estar no fato de a liderança de um grupo religioso, o mais tradicional da igreja católica do século XX, ser dirigido por uma mulher negra e pobre. Os grupos e movimentos como o Apostolado da Oração, Legião de Maria e Congregação Mariana, são reelaborações das antigas irmandades. Estes grupos e movimentos começaram a se espalhar no Brasil no meado do século XX, passando a reunir a elite local. Geralmente, nas igrejas, assim como as irmandades do período colonial e imperial, esses movimentos e grupos passaram a possuir lugares reservados, bem como, nas procissões, lugar de destaque. Desta forma, não é de se estranhar que, mesmo após a abertura destes grupos para pessoas de outras classes sociais, ainda ocorram reações de desprezo ou afastamento. 241 242 Dona Milú, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. Idem. Também é possível que as reações tenham sido, especificamente contra a roupa que dona Milú queria implantar como “fardamento”: roupa branca. Tradicionalmente a roupa branca é vestida às sextas-feiras por adeptos das religiões de matriz africana243. Na Bahia, este costume se popularizou até mesmo entre pessoas de outras religiões. A sexta-feira é o dia que, na igreja católica se celebra o Sagrado Coração de Jesus, padroeiro do Apostolado da Oração. Assim, vemos uma ressignificação das vestes brancas junto a este grupo da Igreja Católica. O termo utilizado pela diretora do grupo para identificar a classe social daquelas que desempenhavam esse tipo de comportamento – “socity” – revela o distanciamento formado no interior do grupo entre alguns membros, sendo uma relação superficial, de tolerância apenas, como também a outra designação – “mé com terra”244 – viabilizando a idéia de que tais membros em nada contribuíam verdadeiramente para o crescimento e fortalecimento do grupo. Dessa forma, se afasta a ideia de homogeneidade dentro de irmandades e grupos religiosos e revela uma intensa, porém escamoteada, disputa por poderes. A construção das identidades se desenvolve em dois níveis que, embora imbricados na realidade, podem ser desmembrados em planos distintos de análise. Expressam, simultaneamente, estratégias organizativas, que definem o jogo de alianças e oposições como respostas às circunstâncias externas, e a afirmação de uma lógica classificatória, capaz de servir como "mapas cognitivos", permitindo aos atores sociais apreenderem as realidades vivenciadas dentro de um sistema dotado de sentido. Isso significa que os processos de identificação coletiva, de constituição de identidades sociais, devem ser apreendidos em seu aspecto relacional, na medida em que expressam, ao mesmo tempo, o modo de se representar, tanto quanto um modo de representar a realidade, fornecendo respostas tanto a "o que somos?" quanto a "onde somos?". São, portanto, escolhas estratégicas através das quais os indivíduos estabelecem relações com a realidade circundante e atuam sobre ela, ordenando-a de modo particular. Ao constituir uma determinada forma de identificação, o grupo não o faz aleatoriamente, mas busca responder positivamente às necessidades de articular os interesses coletivos e de se afirmar favoravelmente ante determinada realidade, bem 243 Para entender mais sobre costumes e práticas das comunidades afrodescendentes ver: SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra do Brasil. Salvador/Rio de Janeiro, Edufba/Pallas, 2004. 244 Dona Milú, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. como estabelecer uma rede solidária de valores e referências comuns. Deriva daí a não substancialidade das identidades, seu caráter relacional. Erigir uma identidade coletiva não significa nomear um conjunto de atributos que são próprios, imanentes ao grupo, e que corresponderiam a alguma substância que lhe fosse inerente, mas eleger um corpo de sinais, em meio às inúmeras possibilidades abertas, capazes de realizar a demarcação, capazes de definir, operando por contrastes, a lógica da distinção e o sentido de pertencimento245. A escolha dos sinais distintivos depende. Portanto, do "outro" ante o qual a diferenciação se faz necessária e com o qual se estabelece uma relação significativa. É nesse sentido que Manuela Carneiro afirma que se trata de "buscar o que é operativo para servir ao contraste"246. Com o passar do tempo dona Milú foi substituída, na função de diretora do grupo por pessoas mais jovens, e que, ao longo dos anos, trouxeram consigo inovações que não agradaram muito a ela, como revela: “[...] aí foram chegando esses jovens cheios de moda, de coisas novas e acabou. Ninguém tem mais aquele costume[...] foi chegando a turma jovem e foi mudando, mudando[...] eu não sei a função hoje do apostolado[...]”247. A afirmação da entrevistada mostra um distanciamento do grupo ao qual pertenceu ativamente durante longos anos provocado, talvez pelas “mudanças” as quais, agora ela, aparentemente não aceitou. O que está em jogo dentro dos grupos, irmandades e demais associações, como em todo ajuntamento humano é a questão de poder. Ao perdê-lo, o ex-líder passa a ocupar um espaço de crítica e oposição. De uns anos pra cá só vi o Apostolado, um grupo grande, na morte de meu marido [...] e na morte de seu Aurelino, [...]. Mas, também morreu uma criatura, uma velha, [...] mais velha que eu no apostolado, manheceu o dia, acharam morta. Me avisaram pra aqui, eu fui, paguei até coisa do carro, paguei até taxista, e eu vi seis pessoas do apostolado,[...] e mais distante quem tava sou eu. Achei aquilo um absurdo, cadê o apostolado da oração[...] e muitas morre aí e eu não sei [...] morre e num tem mais aquele cuidado de avisar as outras que não sabem que tá distante.248 245 "Os traços que são tomados em conta não são a soma de diferenças 'objetivas', e sim somente aquelas que os atores mesmos consideram significativas". BARTH, Fredrik. Introducion. In: Los Grupos Étnicos y sus Fronteras. México: Fondo de Cultura Económica, 1976, p. 15. 246 CUNHA, Manoela Carneiro da. Etnicidade: Da Cultura Residual mas Irredutível. In: Revista de Cultura e Política, v. 1: 35-39, 1979, p. 36. 247 Dona Milú, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. 248 Idem. O desapontamento de dona Milú está relacionado ao progressivo desaparecimento, ou remodelação, das redes de solidariedade, às quais ela considerava importante instrumento de manutenção da unidade do grupo. Pelos depoimentos prestados pela entrevistada e transcritos ao longo deste capítulo podemos perceber algumas das funções daquele grupo: prestar auxílio e visitar os doentes e moribundos, participar de enterros de procissões, etc., na verdade obrigações semelhantes às das antigas irmandades do Brasil até o século XIX 249. As redes de solidariedade ficam mais claras no âmbito das relações femininas em função do espaço tradicionalmente ocupado por elas. Os nascimentos, a “doença”, a preparação das festas e a morte se desenrolavam em espaços onde o domínio do feminino era mais perceptível: nos quartos, na cozinha e no pátio. A necessidade de comunhão de esforços nessas situações revela a permanência de mecanismos de assistência que se estabeleciam na vida comunitária brasileira desde longo tempo250. A partir de conflitos, então, a rede de sociabilidades é constantemente remodelada por seus produtores proporcionando, consequentemente, alterações nas formas de devoção. O desapontamento por parte de dona Milú é nitidamente perceptível ao narrar o descaso com a morte de uma integrante do Apostolado da Oração. Nas entrelinhas, a mesma revela que o perfil e exemplo do líder é o que engendra as atividades grupais. A partir então dessas mudanças e de comentários que ouvia dos mais jovens sobre as mais velhas a fez tomar a decisão de se afastar do convívio diário com o grupo, mas tem a convicção de que: [...] do Apostolado da Oração ninguém vai me tirar, só se eu quiser,... mas num vô querer me desligar de Deus, num vô querer me desligar do coração de Jesus. E continuo sendo essa pessoa do apostolado da oração com muito amor e muito carinho....251 Essa disposição afetiva em relação ao pertencimento ao grupo religioso, mesmo estando parcialmente distante, permanece viva devido à busca constante da memória por lembranças de bons momentos e da teia de relações construídas ao longo de sua trajetória de vida a partir da vivência em grupo. 249 Sobre as irmandades negra nos séculos XVIII e XIX ver: REGINALDO, Lucilene. Os rosários dos angolas: irmandades negras: Experiências escravas e identidades africanas na Bahia Setecentista.Tese de Doutorado em História. Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2005. 250 Ver: PRIORE, 1997. 251 Dona Milu, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. A identidade formada, portanto, tanto em dona Milú quanto entre os membros que compuseram o grupo religioso na época em que a mesma exercia a função de diretora, não se desfez, apenas ficou latente, pois ao se reencontrarem em algum evento do Apostolado da Oração, os sentimentos de amizade e cumplicidade são reavivados, como ela narra, de forma emocionada: [...] E quando a gente se encontrou no encontrão no São Benedito?...Mas menina, gente que trabalhou comigo que hoje tá (residindo) no (bairro do) São Benedito, São José... mas foi tanto abraço, foi tanta coisa, a gente chorava, a gente sorria, e o padre... ele disse: que coisa bonita é ver vocês, eu tive que parar pra ver essas véia tudo chorando, me atrasando, umas chora, outras da risada, rapaz eu queria ver vocês embolar e cair tudo... eu ia passar por cima. (risos).252(grifo nosso) Esse reencontro de mulheres que conviveram intensamente através das atividades religiosas e sociais trouxe a tona, para as mesmas, lembranças de acontecimentos vividos individual e conjuntamente, lembranças que nem sabiam que possuíam. No entanto, no calor das emoções, tinham a convicção de que momentos como aqueles vividos ha anos atrás não viveriam novamente e que o sentimento de pertencimento a um determinado grupo e suas identidades perduraria até os dias atuais devido a intensidade e profundidade com que teceram essa rede de sociabilidades. Um reencontro, portanto, proporciona a seus agentes a alegria e a emoção por exercitar a memória coletiva a partir das seleções, (in)voluntárias, da memória de cada indivíduo. Segundo Halbwachs, Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. [...] Uma ou muitas pessoas juntando suas lembranças conseguem descrever com muita exatidão fatos ou objetos que vimos ao mesmo tempo em que ela, e conseguem até restituir toda a sequencia de nossos atos e nossas palavras em circunstâncias definidas, sem que nos lembremos de nada de tudo isso.253 252 253 Dona Milu, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. HALBWACHS, op. cit., p. 30-31. Algumas entrevistas aqui coletadas aconteceram de forma coletiva. Por vezes, enquanto as narrativas estavam sendo gravadas chegava alguém e ficava ouvindo, participando e colaborando com a memória do narrador principal. Como aconteceu com dona Glória ao receber as varetas para tocar o timbal no dia da festa de Santa Bárbara, “Aqui é pra o tamborim, pro tambor ...tá vendo Nole (gargalhadas)... Chegou na hora, hein Nole,... na hora certa.... Ave Maria, fazer as coisa se ela não tiver (varetas) ....”254(grifo nosso) 255 . Buscando a confirmação do que estava sentindo dona Glória remete-se à amiga, quase uma familiar, pois transita pela residência sem precauções e se senta para ouvir as histórias de dona Glória. De forma semelhante se deram as entrevistas na casa de dona Milú, com o acompanhamento, quase frequente, de sua filha Assunção que, sentada próxima à mãe, a auxiliava com tolhas para enxugar o suor do forte verão santoantoniense e as lágrimas que por vezes teimavam e cair. Assunção, ainda, ajudava a mãe na recordação dos fatos narrados e, principalmente, os nomes das pessoas, visto que dona Milú se justificava dizendo que “a memória está ficando fraca”256. 3.2 - As novas tendências devocionais As redes de sociabilidades formadas pela religiosidade são constantemente remodeladas por seus membros ao longo do tempo proporcionando alterações nas formas de devoção. Desde a devoção característica da população rural até a sua coexistência com a urbanização percebe-se mudanças, permanências e reformulações na manifestação de fé, porém, a conexão com o sagrado e com o outro permanece inserido como identificação grupal. 254 Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010. Destaque em itálico da autora para enfatizar a intensa alegria que aflorou no semblante de D. Glória ao chegar em suas mãos o objeto que fornecerá o ritmo percussionista para a reza, ou seja, a alegria para entoar os cantos. 256 Dona Milu, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. 255 Os conflitos gerados no grupo religioso, atrelados às mudanças inerentes a uma geração de descendentes vinculadas a tecnologia e aos valores da modernidade permitem que a individualidade, a busca pela potencialização profissional e a constante luta pela sobrevivência daqueles indivíduos menos favorecidos financeiramente tornem-se prioridade em suas vidas, alterando as formas de viver a religiosidade, no caso, o catolicismo. Um sintoma de descaso é percebido por dona Lourdes em relação a religiosidade quando esta realizava as rezas em casas de família, mediante convite, como ela nos relatou: “[...] A gente chega pra rezar nas casa e tem pessoa que não tem nem a coragem de participar e nem sequer desliga a televisão e nem abaixa o som, fica vendo novela..., jornal...., não respeitam mais.”257 As mudanças de percepção religiosa também foram percebidas por dona Glória ao fazer uma rápida retrospectiva da vivência em grupo durante os rituais religiosos: “Muita coisa boa já vi ali,... alguma coisa eu alembro e outra não, mas desanimado está, mas um desânimo,... a finalidade (causa) é a falta de oração. Porque quem segue a Jesus Cristo não pode deixar de bater o lábio [...]” (grifo nosso).258 Esta geração que pratica a sua religiosidade e a coloca como prioridade em suas vidas desencadeiam nas narrativas as visões de mundo herdadas por seus antepassados, as quais não devem ser única, pois [...] A religião, assim como a magia, permitiriam pensar como as representações sociais tornam possível a vida coletiva, não só por darem uma inteligibilidade às relações, mas por criarem e serem recriadas por práticas e rituais que reafirmam a existência da sociedade...as representações informam e criam a vida social, mas, por isso mesmo, não são imutáveis e não compõem uma estrutura rígida da qual os indivíduos não podem libertar-se.259 Ao conviver coletivamente, os atores sociais formam as suas identidades e as reafirmam a cada momento de religiosidade. Com a desintegração e 257 Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. Dona Maria da Glória, 78 anos de idade. Entrevista coletada em 25 de maio de 2010. 259 LIMA, Antonio Carlos de Souza. VIANNA, Adriana de Resende Barreto. História, antropologia e relações de poder – algumas considerações em torno de saberes e fazeres sobre o social. In: MALERBA, Jurandir (org). A velha história: teoria, método e historiografia. Campinas/SP: Papirus, 1996, p. 141. 258 reformulação dos grupos religiosos nesta pesquisa mencionados, seja por morte, velhice, afastamento de seus respectivos membros, os costumes estão igualmente sendo reconfigurados. Segundo Hobsbawn e Ranger260, a tradição está intimamente atrelada às mudanças dos costumes, ou seja, à medida que o tempo passa, de acordo com as transformações econômicas, sociais e políticas os costumes da sociedade vão se reconfigurando e adaptando-se às novidades. A este processo, os autores denominam de invenção das tradições: Em suma, inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações suficiente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta....Houve adaptação quando foi necessário conservar velhos costumes em condições novas ou usar velhos modelos para nos fins.261 Os “velhos costumes” ainda estão sendo conservados por poucos, mesmo diante de tanta alteração no cenário social, ou até mesmo reelaborados. A partir do catolicismo popular vivenciado pelas narradoras das fontes orais, é possível perceber o destaque de uma opinião em comum a todas elas: que as manifestações religiosas estão se enfraquecendo, tanto em quantidade quanto em qualidade. E aqueles(as) que lutam para que esse legado dos “velhos costumes” não desapareça de vez ficam apreensivos pela geração atual, que em sua maioria, segundo as entrevistadas, não quer se responsabilizar por compromissos que não sejam vinculados ao estudo, trabalho ou lazer. Mas existem aqueles poucos jovens que tentam exercer a religiosidade quando tem tempo, ou seja, depois de cumprir com as atividades escolares/universitárias e do trabalho. A participação dos jovens na religiosidade remete a inserção de novidades, elementos que os mais velhos não acompanham por não ter o mesmo ritmo e por não concordar que o novo, o qual é revestido de muita euforia,não concordando que este seja o caminho ideal para o exercício de sua religiosidade, como confessa dona Milú: [...] aí foram chegando esses jovens, cheios de moda, de coisas novas e acabou....ninguém tem mais aquele costume de toda primeira sexta-feira do mês ir no abrigo, de fazer cesta básica, pra levar pra o abrigo, de fazer esse negócio, pra levá, pra fazer festinha 260 261 THOMPSOM, op. cit., p.13-24. Idem, p.18. lá com eles.... a gente fazia embaixada (viagem/excursão) continuado alugava esses ônibus da Transramal,... a gente foi pra Amargosa ,Lage, Mutuípe, São Miguel, a gente foi pra Milagres de Brotas várias vezes. Quando tinha ordenação de algum padre ia naquela festa, naquela alegria.262 (grifo nosso) A partir da sucessão de lideranças das atividades pastorais passaram a acontecer de forma esporádica ou como dona Milu afirma com tristeza: “acabou”. Os jovens, na narrativa, citados pela mesma, permitiram que o trabalho, que servia tanto para os outros como para os componentes do próprio grupo para unir, alegrar e fortificar a identidade de pertencimento ao grupo, construindo as redes de solidariedades que, mais uma vez, o depoimento destaca, fosse substituído por outras atividades que nem mesmo dona Milu soube informar. Assim, ela informa que não tem o conhecimento da função religiosa e social atual do grupo. Talvez, com o fim, ou sensível diminuição, das práticas solidárias, de apoio mútuo, do Apostolado da Oração, dona Milú tenha perdido o interesse de acompanhar de perto as atividades do mesmo, resumidas às práticas devocionais “intramuros” da igreja, o que, para muitos devotos não é o bastante. Outra causa pode estar relacionada a uma possível perda ou ofuscamento do poder exercido pelos membros mais antigos do grupo, que, pelo depoimento da narradora, parecem ter se afastado progressivamente da linha de frente. Dona Lourdes também relatou a ausência dos jovens nos momentos de reza refletindo a sua preocupação na possibilidade remota de reposição dos atores sociais para a realização dos “velhos costumes”: [...] pra lhe ser sincera, aqui mesmo na comunidade não tá tendo mais, por que..., vamo dizer assim..., as pessoas de mais idade..., uns já morreram, outras já não tão guentando mais o pique e os jovens não se aproxima..., Apesar dos estudos de hoje em dia, as coisas que o mundo tá oferecendo..., que eles não tão assim muito ligados nas coisas de Deus, não são todos né? Quando tem festa do mundo, na rua, como o povo chama, como eles tem aquele entusiasmo de ir? E porque pra rezar sempre tem dificuldade..., não querem compromisso.263 262 263 Dona Milu, 79 anos de idade. Entrevista coletada em 11 de janeiro de 2011. Dona Maria de Lourdes, 76 anos de idade. Entrevista coletada em 06 de agosto de 2009. Esse desabafo de dona Lourdes reflete a sua preocupação tanto com o destino dos jovens bem como com o das devoções, o qual está se direcionando para uma nova vertente. O ofício de dona Glória de rezar e benzer, como forma de perpetuar o legado de sua mãe; e construção da capela em sua própria residência como forma de ter a sua privacidade religiosa, onde as pessoas que ali iriam freqüentar hesitariam em criticá-la, pelo menos no interior do ambiente sagrado, não a fez abandonar por completo as atividades religiosas oficiais como ir a missa, mas não na igreja a qual ela ajudou a construir e que se afastou pelos conflitos travados entre os seus freqüentadores, mas em outras igrejas até da mesma paróquia. Dona Lourdes, por sua vez, submeteu-se às críticas da sociedade permitindo que tradições como a realização das rezas na rua fossem extintas, realizando-as somente no interior do recinto religioso, seja ele oficial ou domiciliar. Após a sua morte, em janeiro de 2011, não surgiu ninguém, nem da sua própria família, nem da comunidade que pudesse dar continuidade às rezas, como puxadora. Dona Milú, mesmo com os aborrecimentos que disse ter adquirido ao longo dos últimos anos em seu grupo religioso não permite, aparentemente, que os bons momentos se apaguem de sua memória. Por isso, luta pela sobrevivência de uma suposta “essência” da identidade construída no interior da dimensão religiosa, como afirma Giraudo em Poéticas da Memória: [...] essa sensação de perda tem crescido, e quanto mais profunda a convicção de que algo está desaparecendo, tanto mais necessário se torna encontrar um modo de se preservar o que há de útil no passado sem com isso bloquear as possibilidades do futuro.264 Este é o grande desafio dos velhos: viabilizar a perpetuação do legado religioso popular numa geração que, aparentemente não se interessa pelos “velhos costumes” passados pela tradição oral, sendo este momento cada vez menos freqüente nos lares familiares. A dificuldade apresentada nas entrevistas seria em manter as lembranças do passado, mesmo sendo construídas e costuradas por uma coletividade. 264 GIRAUDO, op. cit., p. 108. Como é importante essa condensação das experiências vividas pelos mais velhos, pela riqueza de emoções e detalhes que as narrativas promovem, bem como a convicção presente nos interlocutores de que, A identidade (as identidades, termo mais apropriado para indicar a natureza multifacetada e contraditória da subjetividade) é a consciência do eu que, com o passar do tempo, se constrói por meio da interação com outras pessoas e com as vivências individuais. A identidade se constrói mediante o processo de contar histórias [...] A memória, mesmo sujeita a influências e novos valores, parte natural do processo evolutivo do grupo que a preserva como elemento que dá a sustentação à identidade e ao sentido de origem mantém o cerne como elemento de vínculo entre o passado e o presente.265 A vivência em grupo, além do contato com o sagrado, está em constante formação de identidades, a qual somente se torna possível a partir do reflexo de si mesmo no outro. Tão importante quanto a manifestação religiosa é o ambiente onde o grupo se reúne, pois é nele que as pessoas socializam as suas alegrias, tristezas, a labuta, encontrando ali a força para seguir adiante e vencer as dificuldades da vida familiar, financeira, do trabalho, entre outras. 265 THONSON, 1997,p. 57 apud FUNES, 2009, p. 148. FUNES, op. cit. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das trajetórias de vida, apresentadas ao longo do presente trabalho, foi possível perceber como a religiosidade está intrinsecamente imbricada nas narrativas de seus interlocutores. A partir da devoção popular, característica de um catolicismo barroco, a família de origem rural é fonte deste tipo manifestação religiosa. A partir da vivência familiar, desde a infância até idade adulta, os relatos de dona Anita, dona Maria da Glória, dona Maria de Lourdes e dona Armelina (Milú), essencialmente, acontecem de acordo com a atividade da memória, permitindo transparecer bons e maus momentos vividos, devido as farturas e venturas 266, proporcionados pela ruralidade. E como raízes profundas cravadas em suas lembranças se encontram a figura de mãe, pai e família como referencial moral e religioso. Tais referenciais eram, e continuam sendo, codificados para reger tanto a família como o grupo ao qual pertenciam nos momentos de reza e festa de santo. Com o passar do tempo, as narradoras e suas respectivas famílias sentiram a necessidade em transferirem as suas residências para mais perto do centro da cidade de Santo Antonio de Jesus por motivos familiares, sociais e financeiros. A vida na cidade não interrompeu a devoção popular praticada por essas mulheres, pois promoveram a sua continuidade e coexistência com as manifestações religiosas que já se faziam presentes nesta cidade. Através das narrativas, as quais registram o processo de inserção das mesmas no grupo sócioreligioso e suas estruturações físicas, simbólicas e culturais, desenrolam esta nova etapa de suas vidas esclarecendo a formação da rua e posterior bairro do Cajueiro. As redes de sociabilidades formadas pelos atores sociais presentes nesta pesquisa delineiam as relações de poder construídas no interior do grupo sócioreligioso ao qual pertencem ou pertenciam. Vale ressaltar que as narrativas apontam para as formas, variedades, quantidade e intensidade da teia estruturada pelos mesmos. O papel de liderança é fortemente lembrado pelos interlocutores, assim 266 SANTANA, op. cit. como a redes de solidariedades, legado absorvido das antigas irmandades e confrarias, e os conflitos gerados no interior grupal. Estes, por sua vez, proporcionaram reconfigurações na devoção popular e no convívio grupal em detrimento do afastamento da liderança. Essas novas tendências devocionais estão presentes nas narrativas como forma de aborrecimento e preocupação, simultaneamente. Ao destacar em suas narrativas o descaso percebido durante os momentos de rezas, as mudanças criadas, principalmente por pessoas mais jovens, e até mesmo a ausência destes nos rituais, os interlocutores buscam o exercício da memória com o intuito, consciente ou inconscientemente, em manter viva a lembrança da religiosidade popular a qual estavam inseridas. Existe, portanto, o receio em perder uma “essência” do catolicismo barroco e apesar das tentativas de repassar este legado para as gerações seguintes, através da tradição oral, não estão tendo o êxito esperado. Segundo as narradoras, os mais jovens não se interessam por esta modalidade religiosa devido aos novos instrumentos de valores construídos pela sociedade atual. A religiosidade, principal fator de organização grupal, é também o motivo mantenedor da identidade religiosa, relacionada a uma temporalidade e espacialidade, um processo de construção social com atributos culturais. Pois, como afirma Thompson apud Maia, [...], a tradição não é um guia normativo para a ação, mas antes um esquema interpretativo, uma estrutura mental para entender o mundo. [...] um aspecto identificador, pois, fornece material simbólico para a formação de identidade tanto a nível individual quanto a nível coletivo.267 Nesse sentido, o trabalho com a memória remete a lembranças individuais que foram urdidas coletivamente e reconstruídas com o passar dos anos a partir das transformações do presente. É por isso que Ecléa Bosi afirma: 267 MAIA, Carlos Eduardo Santos. O Retorno para a festa e a transformação mundo: Nos caminhos da emoção. In: ROSENDAHL, Zeny e CORRÊA, Roberto Lobato (org). Religião, identidade e território. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p. 191. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado [...]. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítido que nos pareça de um fato antigo, ele não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. 268 Dessa forma, compreende-se que a memória não é apenas nossa, ela é um somatório de lembranças de várias pessoas que fizeram parte da nossa história. As lembranças são individuais, pois para cada pessoa fica marcado o significado de acontecimentos experimentados coletivamente. As lembranças do passado não permanecem inertes no tempo, mas vão se reconstruindo a partir das representações do presente. Pode-se mesmo dizer que a memória é dinâmica, ela é recriada por novos acontecimentos ou por novas lembranças que são agregadas àquelas do passado que são (re)elaboradas pelas vivências do presente. Portanto, passado e presente se fundem, se confundem, se agregam, pois a memória não conhece passado, mas é sempre presente. No interior desta religiosidade, portanto, permeada de imprevistos, as manifestações estão em constantes mutações, pois seus sujeitos são sempre ativos com o objetivo de adaptar-se às transformações cotidianas. Diante das novas contingências e necessidades da vida, constroem-se traduções, rearranjos, ressignificações para a religiosidade. Nos limites deste estudo, fala-se de tempo, de lugar e de espaço vivido, ocupado por aqueles atores sociais. O tempo individual do devoto no âmbito doméstico, no âmbito do grupo social comunidade, das sociabilidades derivadas destas relações, na festa profana com a igreja católica. Lugar e espaço 269 que se coadunam e se fundem, que possuem significação: é a comunidade, a casa, o grupo, a festa, a cidade de Santo Antonio de Jesus. 268 MAIA, op. cit., p. 57. CERTEAU, Michel de. Relatos de Espaço. In: A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994. 269 FONTES Fotografias: Arquivo pessoal de Melina de Oliveira Bittencourt. Dona Maria da Glória de Jesus, 78 anos de idade, aposentada, Moradora da Rua do Cajueiro, Santo Antonio de Jesus. Entrevista cedida em 10 de agosto de 2009 e 25 de julho de 2010. Dona Maria de Lourdes Santos, 76 anos de idade, aposentada. Moradora da Rua do Cajueiro, Santo Antonio de Jesus. Entrevista Dona Anita Santos de Santana, 82 anos de idade, aposentada. Moradora da Rua do Cajueiro, Santo Antonio de Jesus. Entrevista coletada em 04 de julho de 2010. Dona Maria da Conceição, 76 anos de idade, aposentada. Moradora da Rua do Cajueiro, Santo Antonio de Jesus Entrevista cedida em 02 de junho de 2010. Dona Judite Cunha, 83 anos de idade, aposentada. Moradora da Rua do Cajueiro, Santo Antonio de Jesus. Entrevista cedida em 21 de setembro de 2009. Dona Ermelina S. Oliveira, 79 anos de idade, aposentada. Moradora do centro da cidade, Santo Antonio de Jesus. Entrevista cedida em 11 de janeiro de 2011. Dona Maria de Jesus, 47 anos de idade, dona de casa. Moradora da Rua do Cajueiro, Santo Antonio de Jesus. Entrevista cedida em 07 de julho de 2010. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Paulo Henrique de. Quatro séculos de cultivo e manufatura do fumo na Bahia: história de um outro Recôncavo. Nexos Econômicos, Salvador: FCE/UFBA, v.2, n.4, p.25-36, nov. 2002. AMADO, Janaína. História e Região: Reconhecendo e Construindo Espaços. In: Silva. Marcos. República em Migalhas, História Regional e Local. Ed. Marco Zero, 1989. ARIÉS, P. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2.ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981. AZZI, Riolando. Presença da igreja na sociedade brasileira e formação das dioceses no período republicano. In: SOUZA, Rogério Luiz. OTTO, Clarícia (orgs). Faces do Catolicismo. Florianopólis: Insular, 2008. BARICKMAN,B. J. 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