Direito civil I (Desembargador Rui Penha)

Transcrição

Direito civil I (Desembargador Rui Penha)
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
CENTRO DE FORMAÇÃO JURÍDICA
Direito Civil I
Introdução ao direito
Capítulo I – Introdução
1.1. Noção de Direito
Direito consiste no ordenamento jurídico da sociedade. Direito é o sistema normativo de conduta
social, coactivamente protegido porque mobilizado à realização da justiça.1
O objecto material do direito, a matéria a que ele se reporta, é a vida social, são as relações dos
homens entre si, as relações inter-humanas. Dai que o direito não seja uma mera realidade
abstracta, visando antes a solução de casos concretos da vida em sociedade.2
Ou seja, o Direito não regula o ser humano isolado, mas os homens na sua relação uns com os
outros, procurando solucionar nessas relações os interesses conflituantes entre eles, disciplina
que, por vezes, é conseguida dando-se preferência a um dos interesses em prejuízo de outros.3
O Direito integra-se na sociedade como ordem normativa, que tem por base a que é a ordem
natural ao homem: a ordem social.4 A ordem jurídica traduz-se no complexo normativo que
ordena os aspetos mais relevantes da sua vivência social, exprimindo-se através de regras
1
Pereira, Introdução ao Estudo do Direito e às Obrigações, 2001, pág. 11.
Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 2005, pág. 14.
3
Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1999, pág. 21.
4
Diogo e Januário, Noções e Conceitos Fundamentais de Direito, 2007, pág. 74.
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jurídicas prosseguindo como valores fundamentais, a justiça, a segurança e o bem-estar social,
económico e cultural.5
O que distingue o direito de outras normas reguladoras do comportamento humano, como as
normas éticas ou morais e religiosas é, desde logo, aquela finalidade de regular as relações entre
diversas pessoas (há normas morais ou religiosas que se aplicam ao indivíduo individualmente,
independentemente da interacção com outros), e é essencialmente a imperatividade da norma
jurídica.6
As regras jurídicas emanam da autoridade social que as promulga e têm por fim a tutela dos
interesses individuais e colectivos, segundo um critério de justiça.
As normas jurídicas têm que ser gerais e abstractas, no sentido de serem iguais para todos e
aplicarem-se igualmente a todas as pessoas perante iguais situações que se apresentem na vida
social.
E, como se viu, gozam da característica da coercibilidade, ou seja, podem ser impostas pela força
a quem não as cumpra.
1.2. Direito Público e Direito Privado
5
Diogo e Januário, Noções e Conceitos Fundamentais de Direito, 2007, pág. 83. Veja-se ainda Pinto, Teoria Geral
do Direito Civil, 1999, pág. 18.
6
Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 2005, pág. 43.
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Embora a ordem jurídica seja uma só, a mesma decompõe-se tecnicamente em diversos ramos
(os Ramos de Direito), em função dos princípios gerais que lhe são próprios.7
Tradicionalmente divide-se o ordenamento jurídico em dois grandes sectores, em dois ramos
fundamentais: direito público e direito privado.
O critério que hoje prevalece na distinção destes dois ramos de direito é o da chamada teoria dos
sujeitos, que assenta na qualidade dos sujeitos das relações jurídicas disciplinadas pelas normas a
qualificar como de direito público ou de direito privado.8
Ou seja, o critério de distinção resulta da circunstância de, nas relações sociais a que se reporta o
direito positivo, intervir como um dos sujeitos a autoridade pública, o Estado na sua missão de
soberania (como se costuma dizer, dotado de ius imperii). Significa isto que não basta que o
estado seja um dos sujeitos da relação jurídica, é necessário que nessa relação intervenha dotado
da soberania que lhe é própria, e não, como pode acontecer, no mesmo plano de um comum
cidadão.
Nestes termos, deve exigir-se que a relação para ser de Direito Público deva ser travada entre
entidades dotadas de autoridade política (pública) e que intervenham nessa mesma relação
munidas dessa mesma autoridade (Ius Imperii), reservando para o campo das relações de
Direito Privado não só aquelas que se estabeleçam entre os particulares (não dotados de
autonomia política), mas também as relações de que sejam sujeitos entidades dotadas de
7
Sobre esta questão veja-se Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 99, e Oliveira Ascensão, ob. cit., pág.
333.
8
Mota Pinto, ob. cit., pág. 28. No mesmo sentido, Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 101-102, e
Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 335.
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autoridade política mas intervenham desprovidos dessa mesma autoridade; isto é, no mesmo
plano que os particulares.9
Quer o direito público, quer o direito privado, podem ainda dividir-se em vários outros ramos de
direito.
1.3. Direito objectivo e direito subjectivo
A definição que se apresentou de direito reporta-se ao direito objectivo. Assim, direito objectivo
é o conjunto de normas que ordenam a vida social.
Este, como também já se viu, pode ser dividido em vários ramos, consoante as relações ou
situações sociais que concretamente se pretendem regular.
O direito subjectivo é o direito concedido pelo ordenamento jurídico (o direito objectivo) a um
sujeito determinado, ou indeterminado, mas sempre determinável, como igualmente já se referiu
supra.10
Por exemplo, quando se fala de direito das sucessões, estamos a falar de direito objectivo, mais
concretamente do ramo do direito que regula a forma como se determinam os herdeiros de uma
pessoa falecida, e a forma como se procede à distribuição dos bens do falecido entre estes.
9
Diogo e Januário, Noções e Conceitos Fundamentais de Direito, 2007, pág. 102.
Sobre esta materia veja-se Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 2005, pág. 46.
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Mas quando falamos do direito de um herdeiro determinado à herança, já estamos a referir-nos
ao direito subjectivo que esta pessoa em concreto tem, nos termos daquelas regras que
constituem o direito objectivo.
1.3. Direito material e direito processual
Direito material, ou substantivo, é o conjunto de regras que directamente regulam a matéria da
vida social que se pretende ordenar e dirigir.
São as normas que basicamente regulam a vida em sociedade e determinam a forma de resolução
de conflitos entre as pessoas, nos termos que se têm vindo a expor.
O direito processual, ou adjectivo, é constituído por regras que estabelecem, ou regulam o modo
como se pode obter o cumprimento das disposições de direito substantivo. São regras meramente
instrumentais relativamente à realização dos fins que as primeiras se propõem11. O direito
adjectivo é direito público.
Numa formulação mais simplista dir-se-á que o direito substantivo define ou atribui os direitos
subjectivos das pessoas, e o direito adjectivo regula a forma como esses direitos podem ser
exercidos através dos órgãos do Estado especialmente vocacionados para o efeito, os Tribunais.
11
Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 137, e Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 355-357.
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2. Fontes de direito
2.1. Noção
Fontes de direito são modos de formação e revelação de regras jurídicas. 12 Traduz o processo de
criação e de exteriorização das normas jurídicas.13
São fontes directas ou imediatas do direito a lei e o costume e fontes mediatas a jurisprudência e
a doutrina.
2.2. A Lei
Lei é a norma jurídica decidida e imposta por uma autoridade com poder para a exarar, e
determinar na sociedade política.14 “Lei é um texto ou fórmula significativo de uma ou mais
regras emanadas, com observância das formas estabelecidas, de uma autoridade competente para
pautar critérios jurídicos de solução de situações concretas”.15
Trata-se pois de uma fonte intencional do Direito. Para o art. 2º, nº 2, da Lei nº 10/2003, de 10 de
Dezembro (Interpretação do artigo 1º da Lei nº 2/2002, de 7 de Agosto e Fontes do Direito), leis
são as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes.16
12
Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 256.
Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 141.
14
Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 142.
15
Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 284.
16
Segundo o Dicionário Universal da Língua Portuguesa, a palavra Lei provém do Latim lege, que significa uma
norma de carácter imperativo, imposta ao homem, que governa a sua acção e que implica obrigação de obediência
e sanção da transgressão (lei positiva); preceito ou conjunto de preceitos obrigatórios que emanam da autoridade
13
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No mesmo sentido, nos termos do art. 1º, nº 2, do Código Civil, em sentido material, leis são
todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes. Ou seja, é toda a
regra jurídica escrita, emanada dos órgãos do Estado que tenham competência para tal fim.
Em sentido formal, leis serão somente as disposições genéricas provindas do órgão legislativo
normal.
Também o art. 2º, nº 3, da Lei nº 10/2003, de 10 de Dezembro, enumera as fontes de direito
nacionais nos seguintes termos:
a) A Constituição da República;
b) As leis emanadas do Parlamento Nacional e do Governo da República;
c) Supletivamente os regulamentos e demais diplomas legais da UNTAET enquanto não forem
revogados, assim como a legislação indonésia nos termos do artigo 1º da presente lei.
Órgãos legislativos, ou órgãos do Estado com a função de legislar são somente órgãos do Poder
Central: o Parlamento Nacional e o Governo. Vejam-se os arts. 92º e 95º a 98º da Constituição
da RDTL, relativamente ao Parlamento, bem como os arts. 115º a 117º, relativamente ao
Governo.
Sobre este aspecto assume ainda particular relevância a Lei nº 1/2002, de 7 de Agosto, ainda no
mesmo sentido já exposto (arts. 9º, 10º, 12º, 13º e 20º).
soberana de uma sociedade, do poder legislativo; conjunto das regras jurídicas estabelecidas pelo legislador;
(entre outras definições) (acórdão do Tribunal de Recurso de 27-10-2008, proferido no âmbito do processo nº
4/2008, relator Ivo Rosa, publicado no Jornal da República nº 44, Série I, de 26-11-200).
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Conforme referido no aludido acórdão do Tribunal de Recurso de 27-10-2008 (nota 16), “Apesar
disso, no que concerne à identificação das fontes, o texto constitucional faz, em vários
momentos, referência a leis e demais actos do Estado e poder local (art. 2 n. 2); direito
internacional (art. 9); leis constitucionais - Leis de revisão constitucional ( art. 154). Estabelece,
também, a relação hierárquica entre vários tipos de actos legislativos: leis que autorizam o
governo a legislar sobre matéria da competência de reserva relativa do parlamento, definindo o
objecto o sentido e a extensão da autorização (art. 96); leis de bases- leis que estabelecem as
bases gerais dos regimes jurídicos (art. 95 n. 2 al l) e m) bases gerais do sistema de ensino, da
saúde e da segurança social, Por sua vez, o legislador ordinário, através da Lei 1/2002, de 7 de
Agosto, veio dizer, de forma expressa, quais eram os actos legislativos e actos normativos”.
2.3. A Constituição da RDTL
A Constituição ainda se integra na categoria de lei, 17 no sentido amplo analisado (lei
constitucional), conforme resulta expressamente do disposto no art. 9º, nº 2, da Lei nº 1/2002, de
7 de Agosto.
Importa, não ignorar, contudo, a especial natureza da lei constitucional.
A Constituição é uma lei específica, com prevalência sobre todas as outras leis. A Constituição
constitui a lei fundamental da sociedade, da colectividade política. Trata-se da lei-quadro
fundamental da República.18
17
Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, Coimbra Editora, 4ª
ed. Revista, 2007, pág. 57, e Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 292.
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2.4. Leis do Parlamento e diplomas do Governo
Só o Parlamento Nacional pode legislar sobre algumas matérias (competência exclusiva, referida
no art. 95º, nº 2).
Nos modernos Estados de Direito, porém, a conveniência de intervenção legislativa não se
compadece com as delongas do processo de elaboração das leis por um Parlamento, e por isso
sucessivamente se tem vindo a afirmar a competência legislativa do Governo.
Deste modo desapareceu a rígida separação de um poder legislativo e de um poder executivo.
Ao Governo cabe, assim, tanto a função de legislar como a função de prover à execução das leis,
governar e administrar.
A competência legislativa exerce-se por meio de decretos-lei, aprovados pelo Conselho de
Ministros ou referendados por todos os Ministros.
O Governo tem também o poder de regulamentar as leis, de modo que possam ser
convenientemente executadas. Este poder regulamentar exercido pelo Governo relativamente a
todo o território nacional, cede quanto a matérias cuja tutela ou prossecução respeite a órgãos
locais.
A separação de poderes, que constitui princípio fundamental do Estado de Direito Democrático
(preconizado no art. 1º, nº 1, da Constituição), visando inibir que a acção de um deles limite o
18
Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 56.
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outro, constituindo assim um verdadeiro sistema de freios e contrapesos (ou, usando a expressão
anglo-saxónica, cheks and balances), evoluiu no sentido de uma maior ligação entre os poderes,
por forma a poder encontrar-se um equilíbrio de poderes que possa colmatar os inconvenientes
de uma visão hermética e excessivamente rígida da separação de poderes.
É que o poder do Estado é uno e indivisível, sendo aquela divisão ou separação de poderes
meramente pragmática para a consecução dos fins do ente político e para a protecção da
indigitada garantia à liberdade dos indivíduos, através da pulverização do poder estatal.
2.5. Legislação pré-independência (UNTAET e legislação indonésia)
Nos termos do art. 165º da Constituição da RDTL, são ainda fontes de direito as leis e os
regulamentos vigentes em Timor-Leste em tudo o que não se mostrar contrário à Constituição e
aos princípios nela consignados.
É evidente que a última referência era desnecessária. Todo o diploma legal deve ser interpretado
à luz da lei fundamental, ou considerar-se por ela revogado se a sua redacção não permitir
harmonizá-lo com a constituição.
Por outro lado, a Constituição não revoga a lei vigente à data da sua entrada em vigor, a menos
que o declare expressamente.
Reafirmando o preceito constitucional escreveu-se no art. 1º da Lei nº 2/2002, de 19 de Maio, a
legislação vigente em Timor-Leste em 19 de Maio de 2002 mantém-se em vigor, com as
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necessárias adaptações, em tudo o que se não mostrar contrário à Constituição e aos princípios
nela consignados.
Legislação da UNTAET:
A Constituição, ao mencionar os regulamentos vigentes em Timor-Leste, refere-se à legislação
produzida pela UNTAET.
A UNTAET (administração interina para Timor-Leste) Foi criada ao abrigo da Resolução do
Conselho de Segurança das Nações Unidas S/RES/1272 (1999), de 25 Outubro 1999.
Os regulamentos referidos na norma constitucional são os regulamentos emanados da UNTAET
ao abrigo da Secção 4 do Regulamento 1999/1.19
Sobre esta matéria veio a Lei nº 1/2002, de 7 de Agosto, veio consagrar no seu art. 20º20 que:
1. Os regulamentos da Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste, doravante
designada abreviadamente por UNTAET, em vigor em 19 de Maio de 2002 e que foram
aprovados pela Assembleia Constituinte, têm valor igual às leis.
2. Os demais regulamentos da UNTAET, em vigor em 19 de Maio de 2002, têm valor igual aos
decretos do Governo.
19
In the performance of the duties entrusted to the transitional administration under United Nations Security Council
resolution 1272 (1999), the Transitional Administrator will, as necessary, issue legislative acts in the form of
regulations. Such regulations will remain in force until repealed by the Transitional Administrator or superseded by
such rules as are issued upon the transfer of UNTAET's administrative and public service functions to the
democratic institutions of East Timor, as provided for in United Nations Security Council resolution 1272 (1999).
20
Actos da Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste.
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3. As directivas da UNTAET, em vigor em 19 de Maio de 2002, têm valor igual aos diplomas
ministeriais.
4. As ordens executivas e as notificações emitidas pela UNTAET, em vigor em 19 de Maio de
2002, têm o valor que a sua natureza implicar.
A legislação indonésia:
A questão que se colocou relativamente aos preceitos em causa, quer o art. 165º da Constituição,
quer art. 1º da Lei nº 2/2002, de 19 de Maio, o qual aliás seguia o disposto na Secção 3, nº 1, do
aludido Regulamento da UNTAET 1999/1,21 consistia em saber a que legislação se fazia
referência, mais concretamente a legislação portuguesa, face ao não reconhecimento da
integração indonésia,22 ou a legislação indonésia.
O Tribunal de Recurso entendia que “A legislação vigente em Timor-Leste antes de 25 de
Outubro de 1999 só podia ser aquela que, de acordo com os princípios do direito internacional,
estava legitimamente em vigor nesse território. E, de acordo com os princípios do direito
internacional, Portugal continuou a ser reconhecido pela comunidade internacional, pelo
Conselho de Segurança das Nações Unidas e pelo Povo Timorense como potência administrante
de Timor-Leste durante o período de Dezembro de 1975 até 25 de Outubro de 1999”.23
21
Until replaced by UNTAET regulations or subsequent legislation of democratically established institutions of East
Timor, the laws applied in East Timor prior to 25 October 1999 shall apply in East Timor insofar as they do not
conflict with the standards referred to in section 2, the fulfillment of the mandate given to UNTAET under United
Nations Security Council resolution 1272 (1999), or the present or any other regulation and directive issued by the
Transitional Administrator.
22
Importa aqui lembrar o art. 1º, nº 2, da Constituição da RDTL (O dia 28 de Novembro de 1975 é o dia da
Proclamação da Independência da República Democrática de Timor-Leste).
23
Acórdão do Tribunal de Recurso de 18-7-2003, processo nº 03/02, relator Cláudio Ximenes. No mesmo sentido a
generalidade dos acórdão proferidos pelo mesmo Tribunal durante o ano de 2003.
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Porém, este entendimento não era pacífico, nem mesmo no Tribunal de Recurso.24
Este foi o entendimento perfilhado pelo Parlamento Nacional no art. 1º da Lei nº 10/2003, de 10
de Dezembro,25 o qual tem a seguinte redacção: “Entende-se por legislação vigente em TimorLeste em 19 de Maio de 2002, nos termos do disposto no artigo 1º da Lei nº 2/2002, de 7 de
Agosto, toda a legislação indonésia que era aplicada e vigorava “de facto” em Timor-Leste, antes
do dia 25 de Outubro de 1999, nos termos estatuídos no Regulamento nº 1/1999 da UNTAET”.
2.3. O Direito Internacional
Nos termos do art. 9º, nº 1, da Constituição, a ordem jurídica timorense adopta os princípios de
direito internacional geral ou comum.
Esta norma consagra a recepção automática do direito internacional público consuetudinário (o
costume internacional).26 Normas de direito internacional público geral são as normas
consuetudinárias (costume internacional) de âmbito geral, mesmo que se encontrem positivadas
27
(escritas) em instrumentos internacionais (como sejam a Carta das Nações Unidas ou a
Declaração Universal dos Direitos do Homem).28
24
Conforme votos de vencido da juíza Jacinta da Costa, nos quais se defendia que a legislação referida no art. 165º
da Constituição, no art. 1º da Lei nº 2/2002, de 19 de Maio, e na Secção 3, nº 1, do Regulamento da UNTAET
1999/1, era a legislação indonésia.
25
Norma que, como o próprio refere na sua epígrafe, constitui interpretação autêntica das aludidas disposições
legais.
26
Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 271.
27
A aprovação das convenções (tratados ou acordos) compete, conforme os casos, ao Parlamento Nacional ou ao
Governo, cabendo ao primeiro de forma exclusiva a aprovação dos tratados e dos acordos que versem matérias da
sua competência legislativa exclusiva (art. 91º, nº 3, al. f), e art. 115º, nº 1, al. f)), bem como a aprovação dos
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Já as restantes normas de direito internacional público (os tratados ou convenções e acordos
internacionais), só vigoram na ordem jurídica interna mediante aprovação, ratificação ou adesão
pelos respectivos órgãos competentes e depois de publicadas no jornal oficial (art. 9º, nº 2, da
Constituição).
2.4. O Costume
O costume consiste na prática social reiterada com convicção de obrigatoriedade.29
O direito consuetudinário será o direito que se revela no costume, enquanto obrigatório; o direito
escrito o que se expressa na lei.
Para Oliveira Ascensão,30 o costume constitui fonte privilegiada do direito, porquanto “exprime
directamente a ordem da sociedade, sem necessidade da mediação de nenhum oráculo”.
Nos termos do art. 2º, nº 4, da Constituição da RDTL, o Estado reconhece e valoriza as normas e
os usos costumeiros de Timor-Leste que não contrariem a Constituição e a legislação que trate
especialmente do direito costumeiro.
Porém, o art. 2º, nº 1, da Lei nº 10/2003, de 10 de Dezembro, estabelece que a lei é única fonte
imediata de direito em Timor-Leste.31
acordos sobre as matérias mais importantes politicamente (art. 91º, nº 1), tendo também o Presidente da República
competências nesta área (art. 87º, al. c)). Os tratados precisam ainda da ratificação do Presidente da República (art.
85º, al. a)).
28
Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 254.
29
Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 141.
30
Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 264.
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Sendo o costume uma fonte imediata do direito, como se referiu, a questão que se coloca consiste
em saber como harmonizar o normativo constitucional com este último preceito.
A solução deve passar pelo preconizado no art. 2º do novo Código Civil, ou seja, os usos
costumeiros são juridicamente atendíveis apenas e na medida em que a lei o determine.
2.5. Jurisprudência e doutrina
Como já se referiu, a jurisprudência e a doutrina constituem fontes mediatas do direito.
Na medida em que constituem formas de interpretação do direito constituem fontes do mesmo
em dois sentidos: definem o sentido da lei (através da interpretação) e influenciam o legislador
mediante os estudos dos jurisconsultos.
A jurisprudência, a praxe jurídica constitui, em princípio, apenas uma fonte mediata do direito,
recebendo a sua autoridade das regras gerais e abstractas que lhe cumpre aplicar. A decisão
judicial é, porém, obrigatória na determinação do lícito e ilícito num caso concreto, é um modo
de revelação do direito quanto a esse caso concreto. Como se referiu supra, a ordenação geral
que as normas de direito estabelecem, visa a resolução dos casos individuais, para que se
conformem sempre com essas regras gerais, para que se verifique igualdade nos direitos e
deveres de todos.32
31
32
No mesmo sentido o art. 1º do projecto do novo Código Civil.
Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 162. Veja-se igualmente o art. 516º do CPC.
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A jurisprudência pode, porém, fixar a interpretação das normas através dos recursos para fixação
de jurisprudência, o que aproxima bastante a jurisprudência das fontes imediatas do direito.33
Por outro lado, a doutrina procura a compreensão e sistematização das regras jurídicas, na sua
finalidade e relacionação, que por isso é também fonte mediata do direito.
3.1. Hierarquia das leis
A Constituição:
A Constituição é uma lei hierarquicamente superior (a lei fundamental, a lei básica), que se
encontra no vértice da ordem jurídica, à qual todas as leis e normas jurídicas em geral têm de
submeter-se.34
A organização jurídica da sociedade é, nos Estados modernos, fundamentalmente constante de
direito escrito. E este emana de diplomas legislativos da competência de órgãos do Estado. Esta
competência, por sua vez, é indicada numa lei fundamental: a Constituição.
A Constituição não se limita a definir os órgãos do poder político, pois que também indica os
princípios ou bases fundamentais do sistema jurídico no país.
Assim, a Constituição define a competência legislativa dos órgãos do Estado, e também a forma
de produção legislativa, pelo que as leis do Parlamento Nacional e os decretos do Governo não
podem contrariar os preceitos da Constituição, relativos a tal (sob pena de inconstitucionalidade
33
34
Vejam-se os arts. 322º, nº 3, do CPP, e 498º, nº 1, do CPC.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 57.
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formal ou orgânica), nem podem contrariar as matérias reguladas na constituição (sob pena de
inconstitucionalidade material).35
A inconstitucionalidade formal vicia as leis, cujo processo de formação não obedece aos
requisitos impostos pela Constituição; a inconstitucionalidade orgânica vicia as leis que emanam
de órgão incompetente para legislar; e a inconstitucionalidade material respeita às contradições
entre o conteúdo da lei e as disposições constitucionais que regulam a mesma matéria.
O Direito Internacional:
Nos termos do art. 9º, nº 3, da Constituição da RDTL, são inválidas todas as normas das leis
contrárias às disposições das convenções, tratados e acordos internacionais recebidos na ordem
jurídica interna timorense.
Daqui resulta que as normas de direito convencional prevalecem sobre as leis ordinárias.
Relativamente ao direito internacional geral ou comum a supremacia das suas normas resulta já
da sua natureza (direito consuetudinário universal, ou princípios universais de direito), podendo
dizer-se que os mesmos prevalecem inclusivamente sobre a Constituição, o que só não ocorre na
prática porque a Constituição já reflecte estes princípios.36
Quanto ao direito internacional convencional, a disposição procura assegurar a vigência interna
dos acordos, convenções ou tratados recebidos na ordem interna, sob pena de o Estado se
encontrar vinculado internacionalmente mas podendo não aplicar as normas internamente, o que
35
Arts. 149 º a 153º da Constituição da RDTL. Veja-se o já mencionado acórdão do Tribunal de Recurso de 27-102008, proferido no âmbito do processo nº 4/2008, relator Ivo Rosa, publicado no Jornal da República nº 44, Série I,
de 26-11-200.
36
A este propósito, referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., pág. 260), “de facto, não poderia reclamar
legitimidade em termos de Estado de direito democrático uma norma que admitisse, por exemplo, o «apartheid» ou a
depuração étnica, ou a tortura ou a gerra de agressão”.
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necessariamente implicaria sanções internacionais, por incumprimento do direito internacional
convencionado.
As “leis”:
Tomada a expressão lei no seu sentido material, e abrangendo, portanto, as disposições supra
referidas, há entre eles uma hierarquia. As leis em sentido formal são as que foram aprovadas
pelo Parlamento Nacional e promulgadas pelo Presidente da República.
A essas leis em sentido formal são equiparados os diplomas legislativos do Governo (DecretosLei).
Mas os regulamentos já devem subordinar-se às Leis e Decretos-Lei, que não podem contrariar.
O vício da inconstitucionalidade das Leis e Decretos-Lei pode, no entanto, ter diversa natureza:
inconstitucionalidade formal, orgânica e material, como já se referiu.
Porém, existem leis que, pela sua natureza de leis quadro, devem ter preponderância sobre as
demais leis.37 Será, por exemplo, a lei do orçamento geral do Estado, que prevalecerá sobre
qualquer outra lei que a contrarie.38
37
“A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a
norma inferior” (Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 586, citando Kelsen).
38
O OGE só pode ser alterado por uma nova lei com a mesmo dignidade, uma lei de rectificação do OGE. “Deste
modo, quer se assente o traço característico das “leis com valor reforçado” na posição de proeminência de natureza
funcional traduzida numa específica força formal, ou se parta da ideia de que se está perante leis conformadoras da
produção de outras leis ou constitutivas dos seus limites, tais leis, para além de certas exigências procedimentais na
sua aprovação, dispõem de uma “superioridade relativa” em face de outros actos legislativos, derivada do seu
conteúdo que é condicionante material da normação a estabelecer pelos diplomas a publicar na sua directa
dependência” (acórdão do Tribunal de Recurso de 27-10-2008, já referido).
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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3.2.1. Actos normativos
Uma regra ou norma jurídica é, em princípio, caracterizada por dois elementos que podem
formalmente encontrar-se ou distintos ou confundidos no mesmo texto: o preceito primário
(comando ou proibição) e o preceito secundário, que prescreve as consequências do
cumprimento ou não cumprimento daquele.
Para Luís da Costa Diogo e Rui Januário,39 a norma jurídica compõe-se de previsão (a situação
futura que se pode apresentar ao cidadão), estatuição (o dever ou obrigação de conduta do
cidadão perante tal situação) e sanção (as consequências da violação do ver de conduta imposto
pela norma).
A previsão, ou hipótese, consiste no facto, ou na factualidade (evento, conduta, relação ou
situação), que uma vez verificado desencadeia uma estatuição. A estatuição consiste no resultado
da implicação que o Direito impõe em face da verificação da previsão (a estatuição tem que ser
geral e abstracta. A sanção é a reacção Cominada ao incumprimento da estatuição.40
Por exemplo, em direito penal, as normas apresentam, em geral, sempre na mesma disposição, o
preceito primário (aquilo que a lei ordena ou proíbe) e a consequência ou sanção penal, que vem
como consequência da violação do preceito primário (“quem matar outra pessoa é punido pena
de prisão de 8 a 20 anos” – art. 138º do CP).
Mas há normas imperfeitas, normas que não têm sanção, como sucede com as obrigações
naturais (obrigações cujo cumprimento não pode ser coercivamente pedido). E também se dizem
imperfeitas as que estão desprovidas de todos os elementos que constituem a norma jurídica.
39
40
Ob. cit., pág. 177-178.
Manuel Neves Pereira, ob. cit., págs. 22-23.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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Assim, em direito penal existem as chamadas normas penais em branco, em que o conteúdo do
comando ou proibição não é directamente definido na norma penal, e antes se remete para uma
ordem emanada da autoridade, para uma indicação que consta ou virá a constar da resolução
duma instância oficial, etc. (por exemplo o art. 315º do CP).41
3.2.2. Classificações das regras jurídicas
a) Regras jurídicas preceptivas e proibitivas:
O Direito ordena e dirige a actividade do homem na sociedade. Ora, o homem pode agir na vida
social intervindo nesta quer de maneira positiva, praticando uma acção, quer de maneira
negativa, omitindo o que devia fazer. As regras que impõem um dever de acção são normas
preceptivas; as que impõem um dever de omissão, de não fazer, são regras proibitivas.
b) Regras autónomas e não autónomas:
Embora seja característica das regras jurídicas a sua imperatividade, embora elas se traduzam
normalmente em comandos e proibições, esta característica refere-se à ordem jurídica em geral.
A sistematização das regras de direito, a sua ordenação lógica em sistema, implica que muitas
disposições legais venham simplesmente completar, esclarecer, delimitar ou amplificar outras
disposições legais. Normas autónomas são então, as que, por si revestem as características de
comando ou proibição, a função valorativa e imperativa inerente às normas. Pelo contrário,
normas não autónomas são as que se reduzem a explicar, limitar, ampliar ou modificar outras
41
Sobre os caracteres da norma jurídica veja-se Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., págs. 178-181.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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normas que, desse modo completam. Normas não autónomas são, por exemplo, as que contêm
definições de conceitos utilizados por normas autónomas; as que explicam ou interpretam estas,
ou que estabelecem os critérios de interpretação; ou as que delimitam negativamente normas
autónomas; ou as que regulam a sua esfera de aplicação no tempo e no espaço.
c) Normas de direito público e de direito privado:
Quanto à matéria ou critério substancial, as regras jurídicas dizem-se de direito público ou de
direito privado.42
4. Sistemas jurídicos
4.1. Sistema jurídico civilista
A principal característica diferenciadora dos sistemas civilistas é a do primado da lei. De um
modo geral, nos países desta família, considera-se que a melhor maneira de chegar às soluções
de justiça, que o direito impõe, consiste, para os juristas, em procurar apoio nas disposições da
lei.43
O fundamento do sistema assenta no direito escrito, proveniente do poder legislativo ou da
administração, que os juristas interpretam e aplicam assim solucionando as situações concretas,
de forma hierarquizada.
42
Para outras classificações Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., págs. 181-189.
René David, in “Os Grandes Sistemas do Direito Contenporâneo”, Martins Fontes, São Paulo, 3ª Ed., 1998, pág.
93.
43
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Daí que todos os sistemas civilistas possuam constituições escritas.
Por outro lado, o sistema assenta ainda na codificação. Esta constitui formas estáveis de regular
matérias em função da sua específica natureza das mesmas.44
O papel do costume como fonte imediata do direito é assim subalternizado, em favor da lei.45
4.2. Sistema da “common law”
A base da common law, formou-se e é uma regra que tem como objectivo a solução
circunstanciada, a solução para determinado caso e/ou processo, e não uma regra que emoldure e
determine a conduta para o futuro.46
O sistema ainda assenta, essencialmente, no direito inglês.
Contrariamente ao que acontece no sistema civilista, o direito da common law a lei desempenha
aqui uma função secundária.
O sistema assenta na jurisprudência (é um direito jurisprudencial). “Tendo sido menor na
Inglaterra do que no continente a influência das universidades e da doutrina, e nunca tendo sido
efectuada pelo legislador através da técnica da codificação uma reforma geral, o direito inglês
44
Por exemplo, o CCI, em vigor em Timor-Leste, já tem mais de um século.
O que não significa que o costume esteja arredado como fonte de direito, conforme se referiu supra a propósito do
sistema nacional (veja-se Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 423, e Oliveira Ascensão, ob. cit., pág.
155).
46
Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 437.
45
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conservou, no que respeita às suas fontes tal com o à sua estrutura os seus traços originários. Ele
é, de forma típica, um direito jurisprudencial (case law)”.47
Assim, as decisões dos tribunais sobre determinada matéria nova devem ser seguidas a partir
dessa altura sempre que questões semelhantes sejam colocadas ao tribunal (trata-se da chamada
regra do precedente). Na sua pureza, o precedente só funciona perante as decisões de tribunais
superiores: os órgãos inferiores estão vinculados pelas decisões daqueles.48
As decisões dos Tribunais Superiores são obrigatórias.
Importa referir que o direito da common law não é baseado no costume. Trata-se, como se viu, de
um direito desenvolvido nos tribunais, mas que não assenta no costume, embora o costume e a
lei também sejam considerados fontes de direito, a par obviamente da jurisprudência, aqui com
papel predominante.49
4.3. Os sistemas mistos
Com excepção de alguns casos mais puros, como seja a Inglaterra para a common law, ou a
França, para o sistema civilista, a generalidade dos sistemas acaba por receber regras próprias de
ambos os sistemas.
47
René David, ob. cit., pág. 331.
Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 157.
49
René David, ob. cit., pág. 351. No mesmo sentido Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 451-455.
48
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Assim, nos Estados Unidos da América, para além de uma cada vez maior profusão de leis, o
próprio sistema assenta numa Constituição escrita, que enforma todo o ordenamento jurídico (o
que não acontece em Inglaterra).
Por outro lado, nos sistemas civilistas, é cada vez maior o papel que se atribui à jurisprudência
enquanto forma “criadora” de normas jurídicas, como é o exemplo de Timor-Leste, onde, para
além do importante papel dos Tribunais (com especial relevância do Supremo Tribunal de
Justiça) na apreciação da constitucionalidade e mesmo legalidade das normas emanadas do poder
legislativo,50 também existe a possibilidade do Tribunal Superior estabelecer, com força
obrigatória, a interpretação das normas jurídicas.51
Os melhores exemplos de sistemas mistos encontram-se nos países nórdicos, especialmente na
Suécia e Finlândia, onde as próprias leis são precedidas de regras gerais que permitem aos juízes
encontrar soluções para as situações concretas que o legislador não previu especialmente nas
normas escritas, permitindo inclusivamente que o juiz deixe de aplicar leis que considere injustas
ou injustificadas para o caso concreto em análise.52
5. Vigência e eficácia da lei
5.1. Início da vigência da lei.
50
Arts. 149 º a 153º da Constituição da RDTL (veja-se o já mencionado acórdão do Tribunal de Recurso de 27-102008).
51
Vejam-se os já referidos arts. 322º, nº 3, do CPP, e 498º, nº 1, do CPC (nestes casos, as decisões jurisprudenciais
têm verdadeira função normativa, isto é, valor e alcance semelhantes às leis, enquanto regras jurídicas, gerais e
abstractas, de aplicação geral e não apenas ao caso submetido a julgamento).
52
René David, ob. cit., pág. 105-106.
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Como a vida humana, a lei tem vida própria que é a sua vigência: ela nasce, existe, morre (ou
seja, o início da vigência, a continuidade de sua vigência e a cessação da vigência) 53
Após a promulgação da lei ela é considerada autenticada e perfeita, mas somente será
considerada uma ordem geral após a sua publicação, quando se presume conhecida de todos.
A sua vigência está sujeita a regras especiais. Poderá haver, ou não, coincidência entre a data da
publicação e o momento em que se inicia o seu vigor.
- a fixação do início da vigência de uma lei deve ser buscada nela própria: “esta lei entra em
vigor na data da sua publicação” - não ocorrendo qualquer tempo entre a data da publicação e a
sua vigência.
- às vezes fica estabelecido uma data especial para o momento inicial de sua eficácia, deve-se,
então aguardar a chegada do dies a quo para a sua vigência.
- na falta de disposição especial vigora o princípio que reconhece a necessidade de decurso de
um lapso de tempo entre a data da publicação e o termo inicial da obrigatoriedade.
Artigo 4º do Código Civil
(Começo da vigência da lei)
1. A lei só se torna obrigatória depois de publicada no jornal oficial.
2. Entre a publicação e a vigência da lei decorrerá o tempo que a própria lei fixar ou, na falta de
53
“O Direito não é uma ordem estática e acabada. É antes dinâmica, porque necessariamente se manifesta na acção”
(José de Oliveira Ascensão, in “o Direito”, 13ª ed. Refundida, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 14).
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fixação, o que for determinado em legislação especial.
No termos do artigo 16º, nº 1, da Lei nº 1/2002, de 7 de Agosto, que regula a publicação dos
actos normativos, os actos normativos entram em vigor no dia neles fixado, não podendo o
início da vigência verificar-se no próprio dia da publicação.
- o tempo intermédio entre a data da publicação e o início de vigência denomina-se vacatio legis.
- contagem da vacatio legis = dias corridos: exclui-se o do começo e inclui-se o do final,
computados domingos e feriados, de tal maneira que, no termo certo, inicia a sua
obrigatoriedade, sem interrupção ou suspensão.
O prazo geral de vacatio legis é de dez dias úteis, conforme estipulado no nº 2, do referido artigo
16º da referida Lei nº 1/2002.
5.1.2. Princípio da não retroactividade das leis.
ARTIGO 11º
(Aplicação das leis no tempo. Princípio geral)
1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que
ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos
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ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas,quando
dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que
lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange aspróprias relações já constituídas, que
subsistam à data da sua entrada em vigor.
A lei não deveria aplicar-se a factos passados antes da sua entrada em vigor, sob pena de
retroactividade, só se aplicando a factos futuros e seus efeitos.
À constituíção das situações jurídicas (requisitos de validade, substancial e formal, factos
constitutivos) aplica-se a lei do momento em que essa constituíção se verifica.
Ao conteúdo das situações jurídicas que subsistam à data da entrada em vigor da lei nova,
aplica-se imediatamente esta lei, pelo que respeita ao regime futuro deste conteúdo e seus
efeitos
ARTIGO 12º
(Aplicação das leis no tempo. Leis interpretativas)
1. A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já
produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção,
ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza.
2. A desistência e a confissão não homologadas pelo tribunal podem ser revogadas pelo
desistente ou confitente a quem a lei interpretativa for favorável.
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5.1.3. Princípio da obrigatoriedade das leis.
A lei em vigor é ordem geral para todos. É obrigatória para todos, sem distinção de categoria
social, nível cultural, grau de instrução = esta força impositiva recebe o nome de princípio da
obrigatoriedade da lei.
A publicação da lei tem por finalidade torná-la conhecida de todos. Publicada a lei ela é
obrigatória “porque o ordenamento jurídico se desenvolve como se fosse o direito plenamente
conhecido”.
A lei é obrigatória, a lei tem de ser obedecida para que seja possível a convivência social.
Artigo 5º do Código Civil
(Ignorância ou má interpretação da lei)
A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as
pessoas das sanções nela estabelecidas.
5.1.4. Princípio da continuidade das lei.
A lei é uma ordem permanente mas não eterna. A lei em vigor permanece vigente até que uma
força contrária lhe retire a eficácia.
Uma lei não cessa a sua vigência pelo desuso. A não aplicação da lei, por maior que seja o tempo
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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de desuso, jamais deverá ser considerado exclusão do ordenamento jurídico. Cessa a
obrigatoriedade da lei somente através da revogação.
A lei, enquanto não revogada, é eficaz e passível de aplicação. Esta permanência no
ordenamento jurídica é o princípio da continuidade, que a sustenta até o surgimento de outra lei.
5.2.1. Cessação da eficácia das lei: revogação, derrogação, ab-rogação.
ARTIGO 6º
(Cessação da vigência da lei)
1. Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por
outra lei.
2. A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas
disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei
anterior.
3. A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.
4. A revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei que esta revogara.
Segundo o princípio da continuidade, a lei somente perde a eficácia em razão de uma força
contrária à sua vigência. Essa força é a revogação.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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A revogação é o acto pelo qual se retira a eficiência, a validade de acto anterior. “Acto que retira
a eficácia, a vigência de uma lei” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).
A revogação pode ser total ou parcial, se atingir a totalidade ou apenas uma parte de seus
dispositivos.
- revogação total = ab-rogação: cessa a eficácia completa da lei anterior.
- revogação parcial = derrogação: atinge a eficácia de uma parte da lei, enquanto permanecem
íntegras as disposições não alcançadas.
A cessação da eficácia da lei é a revogação, sua causa normal e frequente, mas não é a única.
Uma lei poderá perder a sua eficácia independentemente da existência de lei posterior que a
venha substituir.
Algumas leis trazem no seu corpo o germe da sua extinção: são as leis temporárias. Essas leis
começam a vigorar com o estabelecimento de um prazo para a sua vigência, e força obrigatória a
termo certo, e assim, não precisam da votação de outra lei para que percam a sua força.
- ex.: leis do orçamento (fixam a despesa e orçam a receita nacional pelo período preestabelecido
(um ano), destinando-se a ter plena força dentro do prazo, para desaparecerem ao fim do tempo
durante o qual são naturalmente aplicáveis).
As leis temporárias não podem ultrapassar o seu termo final, salvo se houver prorrogação.
A prorrogação de uma lei temporária pode ser tácita ou expressa:
- prorrogação tácita = ex.: as leis ficam prorrogadas se o novo orçamento não for aprovado;
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- prorrogação expressa = quando outra lei é votada estendendo o prazo de duração, podendo até
ser por prazo indeterminado.
Uma circunstância especial de cessação da eficácia da lei é a resultante da declaração judicial de
sua inconstitucionalidade.
5.2.2. Revogação: expressa e tácita.
A revogação segundo a sua atuação pode ser expressa ou tácita.
Revogação expressa, ou directa, consiste na declaração inserta na lei, pela qual o legislador
revoga a lei anterior, para cessar sua eficácia total ou parcial.
Geralmente, a cessação da eficácia de uma lei dá-se no momento em que a lei revogadora entra
em vigor. Às vezes, a lei revogadora determina um prazo para a cessação da eficácia da lei ou
dos dispositivos revogados. Sendo atingido o termo, automaticamente se extingue a lei ou os
dispositivos.
Revogação tácita, ou indireta:
O legislador, com a finalidade de afastar as dúvidas que possam existir diante da revogação
tácita, fixou regras, sob forma normativa e obrigatória, que norteiam o intérprete quando estiver
diante de uma lei nova, que sem mencionar expressamente, revogou lei anterior, ou seja, quando
o intérprete deve averiguar se a lei nova teve o propósito de abolir disposição legal anterior ou se
existe a intenção de conservá-la coexistente.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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Regra básica para afastar as dúvidas é o princípio da incompatibilidade. Diante da
impossibilidade da existência simultânea de normas incompatíveis, toda a matéria da revogação
tácita sujeita-se ao princípio segundo o qual prevalece a mais recente (“lex posterior derogat
priori”).
A incompatibilidade pode ser total, quando a lei nova passa a regular inteiramente a matéria
tratada na lei anterior.
Poderá ser parcial a incompatibilidade, quando a lei nova disciplinar diferentemente, apenas
parte da matéria regulada na lei anterior, ocorrendo contradição parcial. As disposições não
podem coexistir, a incompatibilidade de alguns dispositivos impõe a revogação dos mais antigos.
Do mesmo modo a lei nova revoga a lei anterior se regular toda a matéria da lei anterior.
A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador
5.2.3. Lei repristinatória.
A lei revogadora de uma outra lei revogadora tem o efeito de restaurar automaticamente a
primeira lei revogada?
A lei revogadora de outra lei revogadora NÃO TEM o efeito repristinatório, de pleno direito,
sobre a velha lei abolida, senão quando por disposição explícita lhe é atribuído.
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5.3.1 Aplicação da Lei no Espaço
Em timor-Leste adota-se o sistema sincrónico/simultâneo, nos termos do qual a lei entra em
vigor na mesma data e em todo território nacional.
Princípios:
1) Territorialidade - em regra, a norma tem aplicação no território em razão da soberania
nacional;
2) Extraterritorialidade moderada – excepcionalmente a norma pode ser aplicada no estrangeiro,
tais como:
- embaixadas e consulados;
- as embarcações e aeronaves de natureza pública ou ao serviço do governo ou em serviço militar
ou oficial onde quer que se encontrem;
- as aeronaves e as embarcações mercantes ou de propriedade privada matriculados em TimorLeste, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ao alto-mar ou em altomar.
ARTIGO 23º
(Actos realizados a bordo)
1. Aos actos realizados a bordo de navios ou aeronaves, fora dos portos ou aeródromos, é
aplicável a lei do lugar da respectiva matrícula, sempre que for competente a lei territorial.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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2. Os navios e aeronaves militares consideram-se como parte do território do Estado a que
pertencem.
Excepcionalmente a norma estrangeira pode ser aplicada em Timor-Leste, tais como:
- tratados internacionais;
- estatuto pessoal – lei do domicílio – a lei do país em que a pessoa for domiciliada é que
determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome a capacidade e os direitos
de família – artigo 24º do Código Civil.
6. Interpretação e integração da lei
6.1.1. A interpretação das leis
Interpretar as leis é determinar o seu sentido e alcance, definindo a matéria a que elas são
aplicáveis, e o critério de regulamentação que delas consta.
Orientações quanto ao modo de interpretar as leis:
- orientação subjectiva e
- orientação objectiva.
Na orientação subjectiva, interpretar a lei consistirá em procurar a vontade do legislador.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
34
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Na orientação objectiva, a lei, embora formulada pelo legislador, dele se separa, alcançando
firme significado próprios, de modo que a interpretação procurará descobrir o pensamento
legislativo, a razão ou fim da própria lei.
O Código Civil (art. 8º) aceitou uma orientação objectiva.
1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir de textos o
pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as
circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na
letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as
soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".
6.1.2. Formas de interpretação
a) quanto à qualidade do intérprete, isto é, quanto ao sujeito da interpretação;
b) quanto aos meios utilizáveis para proceder à interpretação;
c) quanto aos resultados obtidos pela interpretação;
d) quanto ao sujeito.
a) quanto à qualidade do intérprete, isto é, quanto ao sujeito da interpretação
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
35
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Interpretação autêntica – interpretação a que pode proceder o próprio órgão legislativo de que
emanou a lei. A interpretação duma lei, feita em outra lei, denomina- se interpretação legislativa.
E a lei que interpreta outra lei denomina-se lei interpretativa.
Interpretação jurisprudencial – interpretação das leis que é feita pelos tribunais, quando aplicam
as leis aos casos concretos.
Interpretação doutrinária – interpretação elaborada pelos juristas, quando estudam as leis no seu
conjunto.
b) quanto aos meios utilizáveis para proceder à interpretação;
Interpretação literal ou gramatical
Interpretação lógica ou teleológica: elemento racional; elemento sistemático; elemento histórico.
Elemento racional é a razão de ser da lei, do fim que se propõe.
Elemento sistemático, visa desvendar o alcance de um preceito legislativo no seu enquadramento
no sistema jurídico.
Elemento histórico, as circunstâncias que explicaram o aparecimento do preceito.
c) quanto aos resultados obtidos pela interpretação
Interpretação declarativa – quando do texto da lei resulta que gramaticalmente este exprimiu
devidamente o que efectivamente corresponde aos fins da lei.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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Interpretação restritiva – quando, por deficiência de expressão, os termos utilizados pela lei vão
além daquilo que a lei pretendia ordenar.
Interpretação extensiva – quando a letra da lei não diz tudo aquilo que, em função do fim que se
propunha, queria dizer.
As normas incriminadoras, que definem os crimes, não comportam o alargamento, não é lícito
interpretá-la de modo a que se obtenha uma extensão do seu conteúdo, para além do teor literal
da lei.
6.2.1. Integração das lacunas da lei
Art. 9º do Código Civil:
1º - os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.
2º - Resolução mediante formulação de norma que o legislador criaria em conformidade com o
sistema geral da ordem jurídica vigente.
6.2.2. Inexistência de lacunas nas normas penais e de direito excepcional
Não se admitem lacunas da lei na incriminação de factos criminosos. Só há os crimes que a lei
expressamente define.
Do mesmo modo, não contêm lacunas todas as normas que fazem excepção, a normas de
aplicação comum ou geral (art. 10º do Código Civil).
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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Capítulo II – Noções Gerais de Direito
1. Relações jurídicas
Relação jurídica é a relação da vida social regulada pelo Direito, contrapondo direito subjectivo
de uma pessoa a dever jurídico ou sujeição de outra pessoa na relação. 54 Assim, por exemplo, no
contrato de arrendamento o inquilino tem o direito de uso do imóvel arrendado e o senhorio o
dever de facultar tal uso.
54
Manuel Neves Pereira, ob. cit., pág. 135.
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Podemos considerar a expressão relação jurídica com referência a um modelo contido na lei. Por
exemplo a relação pela qual o inquilino paga a renda ao senhorio. Trata-se aqui de uma relação
jurídica abstracta.
Ou podemos considerar a relação relativamente a uma realidade que concretamente envolve duas
pessoas. António pode exigir de José o pagamento da renda de US$ 100.00, na sequência de
contrato que celebrou com este. Trata-se aqui de uma relação jurídica concreta.55
O instituto jurídico é o conjunto de normas legais que estabelecem a disciplina de uma série de
relações jurídicas em sentido abstracto. Por exemplo, o instituto da compra e venda, o instituto
da adopção, o instituto da posse.
A relação jurídica é a matéria sobre que incide a regulamentação e o instituto o conjunto de
normas que a regulamenta.56
Estrutura da relação jurídica:
A relação jurídica é composta por quatro elementos que compõem a sua estrutura:
a) sujeitos;
b) objecto;
c) facto jurídico; e
d) garantia.
55
56
Veja-se Mota Pinto, ob. cit., pág. 167.
Mota Pinto, ob. cit., pág. 168.
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Direito subjectivo e direito potestativo:
O direito subjectivo é o poder, tutelado juridicamente, de uma pessoa exigir ou pretender de
outra um comportamento positivo (acção) ou negativo (omissão, não fazer, abstenção), ou de
produzir determinados efeitos jurídicos que inevitavelmente afectam outras pessoas (contra parte
ou adversário.57
Face a esta definição, não são direitos subjectivos os chamados poderes-deveres, ou poderes
funcionais ou de ofício, ou seja os poderes que são vinculados, que não podem ser ou não
livremente exercidos pelo titular. Como exemplo temos os poderes integrados no poder paternal
ou na tutela, que não podem ser exercidos como o titular pretenda, mas apenas nos termos
exigidos pela função do direito, sob pena de violação de uma obrigação com as inerentes
sanções.
Também não são direitos subjectivos os poderes jurídicos stricto sensu ou faculdades, como
sejam a faculdade de contratar ou de ocupar uma terra. Nestes casos não existe ainda nenhuma
relação jurídica.
Ou seja, o direito subjectivo pressupõe a existência de uma outra pessoa na relação a quem se
possa exigir determinado comportamento, ou a sujeição à manifestação de vontade do seu titular.
O direito subjectivo consiste no poder de exigir ou pretender de outra pessoa, no sentido de que
se o seu direito não for atendido, o titular pode solicitar a sua realização coactiva através dos
meios públicos.
57
Manuel Neves Pereira, ob. cit., pág. 136, e Mota Pinto, ob. cit., pág. 169.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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Os direitos potestativos são poderes jurídicos de, por um acto livre de vontade, só por si ou de
acordo com uma decisão judicial, produzir efeitos jurídicos que se impõem à outra parte.58
Enquanto nos direitos subjectivos o titular tinha direito a uma prestação de outra pessoa, nos
direitos potestativos a outra pessoa apenas se sujeita, independentemente da sua vontade, à
produção de efeitos jurídicos na sua esfera jurídica, apenas como resultado da vontade do titular.
Os direitos potestativos podem ser constitutivos, modificativos ou extintivos.
Os direitos potestativos constitutivos produzem a constituição de uma nova relação jurídica,
sempre por acto unilateral do seu titular.59 Por exemplo, na constituição de uma servidão de
passagem a favor de prédio encravado (arts. 1433º do C. Civil e 674º do CCI), a qual é
constituída apenas por acção do dono do prédio beneficiário (ou dominante), independentemente
da vontade do dono do prédio serviente. Também a comunhão forçada dos muros de meação
(arts. 1290º do C. Civil e 630º(a) e 639º do CCI), nos quais se pode adquirir direito de
compropriedade, independentemente da vontade de quem erigiu o muro.
Os direitos potestativos modificativos produzem a modificação de uma relação jurídica já
existente, a qual continuará a existir mas modificada (sempre, mais uma vez, independentemente
da vontade da contraparte). Por exemplo, a mudança da servidão para outro sítio, por acção do
dono do prédio serviente, que se verificará independentemente da vontade do dono do prédio
dominante (arts. 1458º, nº 1, do C. Civil,60 e 692º do CCI).
58
Mota Pinto, ob. cit., pág. 174.
Como se viu característica própria do direito potestativo.
60
O oposto também pode ocorrer, procedendo à mudança o dono do prédio dominante, nos termos do art. 1458º, nº
2, do projecto.
59
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Os direitos potestativos extintivos são os que produzem a extinção de uma relação jurídica
existente (de novo, independentemente da vontade da contraparte). Por exemplo, o direito de
extinção da servidão por desnecessidade (arts. 1459º, nº 2 e 3, do C. Civil).61
Os direitos subjectivos podem ser relativos (quando se opõem no lado passivo a pessoas
concretas ou determinadas) ou podem ser absolutos (quando se impõem a todas as pessoas
genericamente – quando do lado passivo existe uma obrigação passiva universal).
A relação jurídica pode ser simples ou singular (quando existe um único direito do titular activo
a que corresponde um único dever do titular passivo) ou pode ser complexas (quando existem
vários direitos e deveres recíprocos que se entrecruzam).
1.1 Pessoa singular
Os sujeitos de direito são os entes que podem ser titulares de direitos e obrigações, ou seja, de
serem titulares de relações jurídicas.
Sujeitos de relações jurídicas tanto podem ser as pessoas singulares como as pessoas colectivas.
As pessoas singulares são os seres humanos (as pessoas físicas). As pessoas singulares têm
personalidade jurídica. A personalidade jurídica adquire-se no momento do nascimento completo
61
Não existe disposição semelhante no CCI, mas é também um direito potestativo extintivo o previsto no art. 689º
do CCI.
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e com vida62 (art. 63º, nº 1, do C. Civil) e só cessa com a morte (arts. 65º, nº 1, C. Civil). O CCI
não contém normas semelhantes mas o mesmo sentido pode ser extraído os arts. 1º a 3º. A
ninguém pode ser retirada a personalidade jurídica (art. 3º do CCI).
A personalidade jurídica consiste na possibilidade de se ser titular de relações jurídicas. Esta
aptidão é nas pessoas singulares uma exigência do direito ao respeito e da dignidade que se deve
reconhecer a todos os seres humanos.63 Veja-se o art. 6º da Declaração Universal dos Direitos do
Homem.64
A capacidade jurídica (também chamada de capacidade de exercício de direitos e capacidade de
agir)65 consiste na possibilidade de actuar juridicamente, quer exercendo direitos, quer
assumindo e cumprindo deveres, por acto próprio.
A pessoa dotada de capacidade jurídica actua no exercício dos direitos (ou cumprimento de
deveres) pessoalmente, não precisando de ter representante legal, e actua autonomamente, ou
seja, sem precisar de autorização de outra pessoa.
A capacidade jurídica para as pessoas singulares surge com a maioridade ou a antecipação. A
maioridade alcança-se aos vinte e um anos e a emancipação através do casamento se este ocorrer
62
Entende-se por nascimento a separação do filho do corpo materno, pelo que a aquisição da personalidade jurídica
se dá no momento dessa separação, com vida e de modo completo, sem qualquer outro requisito (Mota Pinto, ob.
cit., pág. 191).
63
Mota Pinto, ob. cit., pág. 191.
64
“Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade jurídica”.
65
Veja-se sobre a terminologia Mota Pinto, ob. cit., pág. 193.
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antes de o nubente atingir tal idade (arts. 330º do CCI).66 O C. Civil antecipa a maioridade para
os dezassete anos (art. 126º), ocorrendo a emancipação igualmente pelo casamento (art. 128º).67
1.2. Pessoa colectiva
As pessoas colectivas são organizações constituídas por uma colectividade de pessoas ou por
uma massa de bens, dirigida à realização de interesses comuns ou colectivos, às quais a ordem
jurídica atribui personalidade jurídica.68
Pessoa colectiva é um organismo social destinado a um fim lícito a que o Direito atribui a
possibilidade de ser titular de direitos e de vinculações, ou seja, a possibilidade de ser sujeito de
relações jurídicas.69
Quanto à personalidade jurídica das pessoas colectivas, tudo se passa como se estivéssemos
perante pessoas singulares. “A personalidade colectiva consiste na aplicação do conceito
normativo de pessoa jurídica a agregados humanos ou de interesses humanos”.70
66
Nos termos do art. 29º do CCI, o homem só pode casar depois de completar dezoito anos e a mulher depois de
completar quinze anos. Esta disposição coloca o problema de constitucionalidade resultante do art. 17º da Lei
Fundamental. A solução será considerar que homens e mulheres podem agora casar, com o consentimento dos pais
obviamente (art. 35º do CCI), a partir dos quinze anos de idade. Por se tratar de um direito de personalidade, e um
direito fundamental (art. 39º, nº 2, da Constituição), a interpretação deve permitir o alargamento do direito em vez
da sua restrição.
67
Nos termos do art. 1490º, al. a), do C. Civil, podem casar (assim obtendo a emancipação) as pessoas que tenham
mais de dezasseis anos. O casamento de menores será sempre precedido de autorização dos respectivos pais (art.
1500º, nº 1, do C. Civil).
68
Mota Pinto, ob. cit., 267.
69
Carvalho Fernandes, in “Direito Civil (Teoria Geral)”, ed. policopiada da FDUL, vol. I, tomo II, 1980, págs. 1011.
70
Ibidem.
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Relativamente às sociedades comerciais a personalidade jurídica adquire-se com o registo do seu
acto constitutivo (art. 4º da Lei sobre Sociedades Comerciais, Lei nº 4/2004, de 21 de Abril).71
As associações civis gozam de personalidade jurídica após a sua constituição (art. 1653º do
CCI). Vejam-se os arts. 150º, nº 1, e 159º do C. Civil.72
As fundações carecem de reconhecimento da autoridade administrativa (art. 1653º do CCI e art.
150º, nº 2, do C. Civil).
Não se analisa aqui a questão da capacidade das pessoas colectivas no sentido de terem ou não,
ou seja, se elas próprias podem exercer os seus direitos e assumir obrigações, ou se o fazem
mediantes representantes73.
O que interessa reter é que
A capacidade jurídica das pessoas colectivas é uma capacidade jurídica específica.74 Esta
capacidade está limitada pelos fins sociais, pelo seu objecto. Fora dos fins prosseguidos pela
sociedade a mesma já não dispõe de capacidade jurídica.
2.1. Objecto da relação jurídica
71
Contrariamente ao que sucedia no anterior regime (art. 1624º do C. Civil Indonésio).
Trata-de de um reconhecimento normative condicionado (art. 160º, nº 2, do C. Civil).
73
Para Mota Pinto as pessoas colectivas têm capacidade jurídica, uma vez que a relação das pessoas colectivas com
as pessoas colectivas que constituem os seus órgãos sociais é uma relação orgânica, pelo que há uma verdadeira
identificação entre ambos (ob. cit., págs. 313-314). Porém, o CPC, ao falar na capacidade judiciária das pessoas
colectivas fala em “representação” (art. 24º, nº 1).
74
Manuel Neves Pereira, ob. cit., págs. 186-190, e Mota Pinto, ob. cit., págs. 316-328.
72
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O objecto da relação jurídica é a realidade (a coisa, a prestação, etc.) sobre que incidem os
poderes e faculdades constituintes do direito subjectivo de cada relação jurídica.75
Nos termos do art. 271º do C. Civil, objecto da relação jurídica tem que ser física ou legalmente
possível, determinável, e não pode ser contrário à lei, à ordem pública, ou ofensivo dos bons
costumes.76
Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas.77
Consideram-se fora do comércio jurídico todas as coisas que não podem ser objecto de direitos
privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza,
insusceptíveis de apropriação individual (art. 193º, nº 2, do Código Civil). Vejam-se os arts. 519º
a 526º do CCI.
As coisas são imóveis ou móveis, simples ou compostas, fungíveis ou não fungíveis,
consumíveis ou não consumíveis, divisíveis ou indivisíveis, principais ou acessórias, presentes
ou futuras (art. 194º do Código Civil).78
São coisas imóveis os prédios rústicos e urbanos, as águas, as árvores, os arbustos e os frutos
naturais, enquanto estiverem ligados ao solo, os direitos inerentes aos imóveis e as partes
integrantes dos prédios rústicos e urbanos (art. 195º, nº 1, do Código Civil).79
75
Manuel Neves Pereira, ob. cit., pág. 192.
Vejam-se os arts. 1325º, nº 3 e 4, e 1335º do CCI.
77
Art. 193º, nº 1, do C. Civil. Para o CCI são coisas os bens ou direitos que podem ser objecto de propriedade (art.
499º). Vejam-se igualmente os arts. 527º e 528º do CCI.
78
Para o CCI as coisas são tangíveis ou não tangíveis (art. 503º) e móveis ou imóveis (art. 504º). Os bens móveis
podem ainda dividir-se em consumíveis e não consumíveis, definindo-se os consumíveis como aqueles que
desaparecem devido ao uso (art. 505º).
76
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Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que
não tenham autonomia económica.80
São partes componentes dos prédios rústicos as construções que não tenham autonomia
económica, tais como as adegas, os celeiros, as construções destinadas às alfaias agrícolas.
O prédio rústico abrange também o espaço aéreo e o subsolo correspondentes. Nos termos do art
1266º, nº 1, do Código Civil, a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à
superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do
domínio por lei ou negócio jurídico. Igual é a redacção do art. 571º do CCI e, de forma ainda
mais impressiva, o art. 4º, nº 2, da Lei Agrária Indonésia.81
Entende-se por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo com os terrenos que lhe
sirvam de logradouro (art. 195º, nº 2, do projecto do novo Código Civil). Edifício incorporado é
79
Vejam-se os arts. 500º e 506º a 508º do CCI. Particularmente significativa é a descrição constante dos arts. 506º e
507º do CCI, da qual resulta evidente, por um lado, o princípio da ligação ao solo como distintivo da classificação
do bem como imóvel, por outro lado, o princípio da universalidade de certas coisas, como sejam as fábricas, que,
por serem imóveis (devido ao facto de estarem instaladas em construções permanentemente fixadas no solo)
transmitem tal qualidade de bem imóvel aos bens móveis que as equipam.
80
Art. 195º, nº 2, do projecto do novo Código Civil. O CCI não estabelece a distinção entre prédios rústicos e
prédios urbanos.
81
“Hak-hak atas tanah yang dimaksud dalam ayat (1) pasal ini member wewenang untuk mempergunakan tanah
yang bersangkutan, demikian pula tubuh bumi dan air serta ruang yang ada diatasnya, sekedar diperlukan untuk
kepentingan yang langsung berhubungan dengan penggunaan tanah itu dalam batas-batas menurut Undang-undang
ini dan peraturan-peraturan hukum lain yang lebih tinggi” (na versão em inglês, “The land rights referred to in
paragraph (1) of this article confers authority to use the land in question as well as the mass of the earth and the
water existing under its surface and the space above it to a point which is essentially required to allow for the
fulfillment of the interests that are directly related to the use of the land in question, such a point being within the
limits imposed by this Act and by other legislation of higher levels”).
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aquele que se encontra unido ou ligado ao solo, fixado nele com carácter de permanência por
alicerces, colunas, estacas ou qualquer outro meio82. Uma casa desmontável não é prédio urbano.
Integram o prédio urbano os pátios ou os quintais dos edifícios.83
É parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de
permanência.84 São partes integrantes dos prédios rústicos os muros de vedação ou os engenhos
para tirar água. São partes integrantes dos prédios urbanos as instalações eléctricas ou os páraraios e os elevadores.
Para o Código Civil (art. 196º, nº 1) são móveis todas as restantes coisas, ou seja, a definição de
coisa móvel acha-se por exclusão de partes. Serão móveis as coisas que não sejam caracterizadas
pela lei como imóveis. Por exemplo, a energia eléctrica é coisa móvel e, como tal, a sua
subtracção fraudulenta integra o crime de furto.
Nos termos do CCI, são coisas móveis aquelas que são movíveis ou podem ser movidas (art.
509º CCI)85. A base da distinção entre coisas móveis e imóveis é a circunstância de poderem ou
não ser transportadas de um para outro lugar sem se deteriorarem.
Importa aqui fazer uma breve referência às benfeitorias, incluídas no mesmo subtítulo II do
Código Civil, que trata “das coisas” e que aqui temos estado a analisar.
82
Henrique Mesquita, in “Direitos Reais”, Coimbra, 1984, pág. 23.
Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Português Anotado”, vol. III, Coimbra, 2006, pág. 131.
84
Art. 195º, nº 3, do Código Civil e 500º do CCI.
85
Nos arts. 509º a 518º do CCI encontramos depois a descrição de várias coisas concretas que o Código considera
como móveis. Esta descrição não deve, porém, ser considerada taxativa, podendo obviamente existir inúmeras
outras coisas móveis, para além das descritas nas referidas disposições legais.
83
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O CCI não contém uma definição legal de benfeitorias, nem as caracteriza, sendo certo, porém,
que se refere às mesmas em várias situações relativas aos direitos reais sobre imóveis. Assim, o
direito do possuidor, quer se encontre de boa-fé ou de má-fé, a indemnização por benfeitorias
necessárias realizadas no imóvel que possuía no caso de ter de o entregar ao seu proprietário
(arts. 575º e 579º do CCI)86.
Para o Código Civil consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou
melhorar a coisa (art. 207º, nº 1). Assim, constituem benfeitorias não só as obras necessárias à
conservação da coisa, como pintar, substituir telhado danificado, substituir janelas quebradas,
mas também todas as obras que melhorem o prédio, como a construção de casas de banho em
casas onde não existiam, ou a construção de uma piscina.
As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias (art. 207º, nº 2, do Código Civil).
São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da
coisa (art. 207º, nº 3, do C. Civil). Assim, por exemplo: a substituição de um telhado que tenha
as telhas partidas (se o telhado não for substituído não só não se pode usar devidamente a casa,
como a entrada da água das chuvas vai estragar todo o imóvel); a substituição de janelas com a
madeira apodrecida ou vidros partidos, a reconstrução de uma parede que, pela acção do tempo
ameaça ruir.
São benfeitorias úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam,
todavia, o valor (art. 207º, nº 3, do Código Civil). Assim, por exemplo: a construção de casa de
banho numa casa que não tinha (trata-se de um melhoramento que beneficia o uso da casa e,
86
Na versão em inglês “expenditures necessary for the maintenance and benefit of the assets”. O CCI apenas exclui
o direito a indemnização por benfeitorias necessárias ao possuidor que tenha adquirido a posse por meios violentos
(art. 580º).
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consequentemente, aumenta o seu valor); a colocação de um sistema central de ar condicionado;
etc.. Já se podem colocar dúvidas relativamente à construção de uma piscina (porém, se da
mesma resultar um aumento considerável do valor do imóvel pode a mesma considerar-se
benfeitoria útil).
São benfeitorias voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe
aumentando o valor, servem apenas para o recreio do benfeitoriante (art. 207º, nº 3, do Código
Civil). Será o caso de alguém que gosta de ter peixes em casa e constrói um lago para ter peixes
no logradouro da casa, da colocação de estátuas dispendiosas num jardim, etc..
Como já se referiu o CCI não contém o mesmo tipo de definição expresso de benfeitorias.
Porém, pode surpreender-se claramente a distinção entre as reparações necessárias à manutenção
do imóvel87 (benfeitorias necessárias) (art. 578º), reparações no interesse do imóvel88 (art. 578º)
e reparações para utilidade e melhoramento da aparência do imóvel89 (art. 581º do CCI).90
Por outro lado o CCI estabelece ainda uma distinção entre reparações para o fim de manutenção
e as reparações maiores no art. 793º e estas últimas estão exemplificadas no art. 794º, ambos do
CCI.91
87
Na versão em inglês “expenses for the maintenance of the assets”.
Na versão em inglês “expenses for the interest of the assets”.
89
Na versão em inglês “expenses in respect of utility and improvement in appearance”.
90
Importa considerar, contudo, que as reparações para melhorar a utilidade do imóvel podem integrar o conceito de
benfeitorias úteis do projecto do novo Código Civil.
91
Na versão em inglês “Major repairs include the following: repairs to big walls and arched roofs; repairs to beams
and entire roofs; the total repair of dikes, wharf's, plastered waterworks, including supporting and boundary walls.
All other repairs shall be regarded as regular maintenance”.
88
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2.2. Acto jurídico e negócio jurídico
Facto jurídico ou facto gerador de relações é todo o facto (seja acto humano ou evento natural)
gerador de efeitos jurídicos (criação, modificação ou extinção de relações jurídicas).92
Os factos jurídicos podem ser voluntários ou involuntários, actos lícitos ou ilícitos, actos
jurídicos ou negócios jurídicos.
Os factos jurídicos involuntários são aqueles que são puramente naturais, sem qualquer
intervenção da vontade humana.93
Os factos jurídicos voluntários são os que resultam de uma acção humana voluntária, e tidos pela
ordem jurídica como manifestações relevantes de vontade.94
Os actos ilícitos são os que são contrários à ordem jurídica e por ela reprovados, pelo que
implicam a aplicação de uma sanção ao seu autor.95
Actos lícitos são todos aqueles que estão em conformidade com a ordem jurídica e,
consequentemente, são por ela consentidos.
Negócios jurídicos são factos jurídicos voluntários constituídos essencialmente por declarações
de vontade (uma ou mais) a que a ordem jurídica atribui efeitos jurídicos de acordo com tais
declarações de vontade das partes, tal como percebidas exteriormente.96
92
Manuel Neves Pereira, ob. cit., pág. 203. No mesmo sentido Mota Pinto, ob. cit., pág. 353.
Constituem exemplo, o decurso do tempo, a destruição de uma coisa por acção da natureza, a acessão natural.
94
Mota Pinto, ob. cit., pág. 354.
95
É fácil encontrar exemplos de actos ilícitos. Desde logo os actos qualificados pela lei como crime. Os actos
negligentes que causem danos a terceiros, como acidentes de viação, ou actos voluntários que igualmente causem
lesões a outra pessoa, como seja uma difamação.
93
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Os actos jurídicos stricto sensu são actos jurídicos voluntários que não produzem
necessariamente efeitos jurídicos pretendidos, ou que produzem efeitos independentemente de
serem ou não pretendidos aquando da prática do acto.97
2.3. Conteúdo do negócio jurídico
Constituem elementos essenciais do negócio jurídico as realidades necessárias à própria
existência do negócio. Assim, são elementos do negócio jurídico a declaração, os sujeitos e o
conteúdo. Mas considera-se igualmente necessária a validade do negócio jurídico, pelo que
também são elementos todas as condições gerais de validade do mesmo.98
Os elementos naturais do negócio jurídico são os que derivam das normas legais supletivas. Toda
a regulamentação legal supletiva.
Elementos acidentais do negócio jurídico são as cláusulas acessórias do negócio, como, por
exemplo a estipulação dos juros.
Elementos essenciais:
Capacidade e legitimidade. No domínio dos negócios jurídicos fala-se de capacidade negocial de
gozo para referir a possibilidade de se ser titular de direitos e obrigações derivados de negócios
jurídicos. A capacidade negocial de exercício é a possibilidade de se celebrarem negócios
96
Mota Pinto, ob. cit., pág. 355. Veja-se o art. 1313º do CCI.
Constituem exemplos a interpelação do devedor para pagar, a fixação de domicílio voluntário, a ocupação de
animais bravios, ou de coisas móveis perdidas.
98
Mota Pinto, ob. cit., pág. 383-384.
97
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jurídicos, exercendo ou adquirindo direitos, cumprindo ou assumindo obrigações, por actividade
própria (ou através de representante voluntário).
A legitimidade relaciona o sujeito com o objecto do negócio.
O negócio jurídico é, por definição, um encontro de vontades.
A declaração de vontade não pode ser viciada, isto é, não pode sofrer deturpação ou
desvirtuamento, seja na sua formação, seja na sua manifestação.
O negócio jurídico inexistente é aquele a que falta um pressuposto material de constituição, ou
seja, falta o agente, ou falta o objeto, ou não foi emitida a declaração de vontade. 99 O acto
inexistente não chega a formar-se, porque lhe falta requisito indispensável à sua existência
jurídica100.
Assim, no caso de falta de declaração de vontade o negócio jurídico é inexistente. Também o
negócio que tem um objecto que não pode ser objecto de negócio.101
A declaração negocial pode ser expressa ou tácita (art. 208º do Código Civil).
A declaração negocial não tem que revestir nenhuma forma especial, excepto nos casos em tal
seja expressamente determinado por lei (art. 210º do Código Civil).102
99
Veja-se o art. 1335º do CCI.
Veja-se no Código Civil o contrato de casamento inexistente (arts. 1517º e 1518º),
101
Art. 1332º do CCI.
102
Contudo, a declaração negocial que não siga a forma legalmente exigida é nula (art. 211º do projecto). Sobre as
matérias da lebredade negocial e da liberdade de forma e consequências, o CCI não contém normas gerais como as
referidas no projecto.
100
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A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é
dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada. É
também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele
oportunamente recebida. A declaração recebida pelo destinatário em condições de, sem culpa
sua, não poder ser conhecida é ineficaz (art. 215º do Código Civil).103
2.4. Elementos acidentais do negócio jurídico
Sob o ângulo da eficácia dos negócios jurídicos, que se constituem em elementos acidentais, isto
é, que podem aparecer, acidentalmente na constituição do negócio, há que se mencionar:
A condição.
A condição constitui um evento futuro e incerto.
A condição deve dizer respeito a facto futuro. Facto passado não pode constituir-se em condição.
Se o facto ocorreu, o negócio deixou de ser condicional, tornando-se puro e simples. Se o facto
deixou de ocorrer definitivamente, a estipulação tornou-se ineficaz, pois não houve implemento
da condição. Imagine a hipótese de uma pessoa prometer quantia a outra pessoa se determinado
cavalo ganhar uma corrida. Se o cavalo ganhou, a obrigação a que se comprometeu é simples e
não condicional; se o cavalo não ganhou, a estipulação tornou-se ineficaz, por ter falhado o
implemento da condição.
103
Sobre a matéria da perfeição da declaração negocial vejam-se os arts. 215º a 226º do Código Civil.
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54
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Por outro lado, a condição deve relacionar-se com facto incerto. Se o fato avençado for certo,
como, por exemplo, a morte de uma pessoa, não haverá condição, mas termo. A cláusula
condicional deve depender exclusivamente da vontade das partes. O evento falível é externo ao
negócio, mas a condição é elemento da vontade e somente opera porque os interessados no
negócio jurídico assim o desejaram.
Enquanto não realizada a condição, o acto não pode ser exigido. Assim, a promessa de pagar
quantia a alguém, se concluir curso superior, não pode ser exigida enquanto não ocorrer o
evento.
Nos termos do art. 261º do Código Civil, as partes podem subordinar a um acontecimento futuro
e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz-se
suspensiva a condição; no segundo, resolutiva. Vejam-se os art. 1253º e 1265º do CCI.
Condição suspensiva: produção dos efeitos do negócio jurídico depende da verificação do facto
(art. 261º do Código Civil o e 1253º do CCI).
Condição resolutiva: a resolução do negócio jurídico depende da sua verificação (art. 261º do
Código Civil e1265º do CCI.
O termo pode definir-se como o evento futuro certo (arts. 269º do Código Civil e 1268º do CCI).
O termo é o limite, quer inicial, quer final, aposto ao prazo. É o tempo que decorre entre o acto
jurídico e o início do exercício ou o fim do direito que dele resulta.
2.5.1. Ineficácia, inexistência, nulidade e anulabilidade do negócio jurídico)
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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A ineficácia do negócio jurídico pode se absoluta ou relativa.
Há ineficácia absoluta do negócio jurídico quando a mesma actua automaticamente, podendo ser
invocada por qualquer interessado, Por exemplo, há ineficácia absoluta quando no negócio sob
condição suspensiva a condição não se chega a verificar.
Na eficácia relativa, a mesma só opera em relação a certas pessoas (inoponibilidade), só por elas
podendo ser invocada (o negócio produz efeitos em relação aos contraentes, mas não pode ser
oponível a certas pessoas interessadas no mesmo). Por exemplo, os actos sujeitos a registo são
plenamente válidos entre as partes, mas não são oponíveis a terceiros.
Os negócios relativamente ineficazes produzem efeitos relativamente às partes, mas não são
dotados de eficácia relativamente a certas pessoas neles interessadas.
Inexistente são os negócios que nenhum efeito produzem, não têm qualquer relevância jurídica.
No projecto podemos encontrar a inexistência jurídica nos arts. 1517º e 1518º do Código Civil
relativamente ao contrato de casamento. Não se encontra esta sanção no CCI.
2.5.2. Nulidade e anulabilidade do negócio jurídico:
Quando faltam, nos termos que a lei define, os requisitos ou elementos essenciais dos negócios
jurídicos (gerais ou especiais de cada negócio), o negócio é nulo ou anulável.
O acto diz-se nulo quando não produz quaisquer efeitos jurídicos. Não tem valor, é como que
não tivesse existido para a ordem jurídica.
Por isso que se não processou em conformidade com a lei, a lei não lhe concede qualquer
relevância; não pode produzir os efeitos a que se destinava.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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A nulidade afecta o negócio desde sempre; não são os efeitos que são destruídos por uma
intervenção ou sanção posterior à lei; é o próprio negócio que desde o princípio é inidóneo para
produzir efeitos.
A lei, porém, pode estabelecer gradações no modo de anulação do negócio. Ao lado da nulidade
a que nos referimos admite a anulabilidade.
O negócio jurídico diz-se anulável quando a sua anulação depende da vontade de um ou mais
interessados.
O acto nulo é nulo independentemente do desejo da sua anulação pelas partes interessadas.
O negócio anulável só não produz efeitos jurídicos, se a causa da nulidade for arguida por quem
a possa invocar.
Donde resulta que o negócio nulo nasce morto; o negócio anulável permanecerá válido e eficaz
se não for pedida judicialmente a sua anulação.
Não obstante o acto anulável ser válido até que sobrevenha a sua anulação, o efeito desta, isto é,
a destruição dos efeitos do negócio opera retroactivamente: destrói desde o início o próprio
negócio jurídico.
Consoante, pois, a sanção atinge o acto por força de lei independentemente da arguição de
qualquer interesse particular em a invocar, assim se verificará a nulidade ou anulabilidade dos
negócios jurídicos.
Consequência do regime próprio da anulabilidade é a possibilidade da sanção ou confirmação do
negócio. A pessoa que possa invocar a nulidade, isto é, de cuja vontade dependa a anulabilidade
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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do acto, pode saná-lo ou confirmá-lo, revalidando-o, desde que tenha cessado o vício que dava
origem à anulabilidade e o autor tenha conhecimento quer do vício, quer do direito à anulação.
No Código Civil o regime da nulidade e da anulabilidade encontram-se previstos nos arts. 276º a
285º.
No CCI o regime encontra-se previsto nos arts. 1320º a 1337º e 1446º a 1456º.
Relativamente aos negócios usurários (particularmente importantes pela sua frequência em
Timor-Leste) vejam-se as notas ao 1456º CCI (em particular a Lei nº S.38-524, de 1938, que
entrou em vigor a 9 de Setembro de 1938).
2.6. O tempo e a sua repercussão nas relações jurídicas
Os institutos da caducidade e da prescrição são consagrados por razões atinentes aos valores da
certeza e de segurança.
Ainda que a lei não tenha formulado um critério geral para distinguir tais figuras, as mesmas não
se confundem, assumindo um regime jurídico diferenciado.
2.6.1. Caducidade
Caducidade é a extinção não retroactiva de efeitos jurídicos em virtude da verificação de um
facto jurídico stricto sensu, isto é, independentemente de qualquer manifestação de vontade.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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Como forma extintiva dos direitos, a caducidade opera quando o direito não é exercido dentro de
um dado prazo fixado por lei ou convenção.104
O fundamento específico da caducidade é o da necessidade de certeza jurídica. Certos direitos
devem ser exercidos durante certo prazo, para que, no fim desse tempo fique inalteravelmente
definida a situação jurídica das partes.105
No que respeita ao seu objecto imediato e ao decurso do respectivo prazo, enquanto a prescrição
se reporta, pelo menos directa e imediatamente, ao pedido, a caducidade refere-se à acção.
A caducidade assenta em puras razões objectivas, em termos de segurança jurídica e estabilidade
das relações, e não como forma de sancionar a inércia do titular do direito.
A caducidade é por vezes estabelecida no interesse público, de modo a não poderem as partes
dispor do direito a que ele se refere, podendo ser estabelecida no interesse privado, em matéria
sujeita à disponibilidade das partes.
Caducidade é um instituto próprio dos direitos potestativos.
O prazo de propositura de acções é um prazo de caducidade e não de prescrição.106
A caducidade não tem regulamentação própria no actual CCI, encontrando-se o instituto previsto
e regulado nos arts. 287º a 290º e 319º a 324º do Código Civil.
104
Ana Prata, ob. cit., pág 179.
Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Coimbra Editora, 1997, pág. 464.
106
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit, vol. I, pág. 252.
105
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A caducidade é de conhecimento oficioso se estabelecida em matéria indiponível (art. 324º do
Código Civil).
Se se tratar de caducidade estabelecida em relação a matéria na disponibilidade das partes, a
mesma tem que ser invocada pela parte que dela pretenda beneficiar.
Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo
prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à
prescrição (art. 289º, nº 2, do Código Civil).
Afigura-se que, não existindo norma semelhante no CCI, nem se regulando de forma autónoma a
caducidade, entendendo-se que a mesma é estabelecida por razões de segurança jurídica o ordem
pública, será sempre de conhecimento oficioso (veja-se, a título de exemplo, o disposto no art.
565º do CCI.
Prazos de caducidade:
Art. 218º do CCI: acção de divórcio por abandono (segunda vez), caduca em seis meses contados
da data do abandono do lar pelo outro cônjuge.
Art. 219º do CCI: acção de divórcio na sequência de decisão criminal, caduca em seis meses a
contar da decisão do processo criminal.
Art. 558º do CCI: acção de manutenção de posse caduca em um ano (tem que ver com o art. 545º
- perda da posse a favor de quem detenha há mais de um ano).
Art. 565º do CCI: acção de restituição de posse caduca em um ano (tem que ver com o art. 545º perda da posse a favor de quem detenha há mais de um ano).
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Art. 1115º do CCI: caduca em três anos o prazo para anulação de divisão de coisa comum
Art. 1124º do CCI: acção de impugnação de testamento violador de legítima, caduca em três
anos a contar da morte do testador.
Art. 1380º do CCI: acção de indemnização por facto ilícito de difamação caduca no prazo de um
ano a contar da data da prática do facto ou do seu conhecimento pelo titular do direito.
Art. 1454º do CCI: acção de anulação de contratos caduca em cinco anos, excepto se outro prazo
for estipulado para situações em concreto.
Art. 1489º do CCI: caduca em um ano o prazo para anulação do contrato de compra e venda,
redução do preço ou indemnização por anulação.
Art. 1512º do CCI: a acção por defeito de coisa vendida deve ser intentada logo que possível, de
acordo com a natureza do bem em questão e os costumes do local da venda.
Art. 1602º-S do CCI: acção relativa a direitos resultantes de contratos de trabalho referidos no
artigo caduca em cinco anos, a contar do último dia do ano.
Art. 1603º-T do CCI: acção relativa a despedimento caduca em um ano.
Art. 1692º do CCI: acção de restituição de bens doados em consequência da anulação da doação
caduca em um ano.
A caducidade opera com o simples instaurar da acção (art. 322º, nº 1, do Código Civil).
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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O prazo de caducidade atinente ao processo, não se suspende nem se interrompe senão nos casos
em que a lei que regula cada situação concreta o admite (art. 319º do Código Civil).
O prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o
direito puder legalmente ser exercido (art. 322º, nº 1, do Código Civil).
No caso de um facto continuado, o prazo só se inicia a partir do momento em que cessa esse
facto.
O facto persiste no tempo, traduzindo-se em sucessiva renovação da conduta violadora do
contrato, pelo que o prazo do exercício do direito vai renascendo.
A lei não fixa prazos ordinários e gerais de caducidade, estabelecendo prazos de caducidade para
concretas e especiais situações ou relações jurídicas por ela reguladas.
Assim, existem inúmeras situações em que a lei não prevê qualquer prazo de caducidade do
exercício do direito, pelo que este apenas prevalecerá nos termos gerais.
São válidos os negócios pelos quais se criem casos especiais de caducidade, se modifique o
regime legal desta ou se renuncie a ela, contanto que não se trate de matéria subtraída à
disponibilidade das partes ou de fraude às regras legais da prescrição (art. 321º, nº 1, do Código
Civil).
Quando se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível,
impede a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser
exercido (art. 322º, nº 2, do Código Civil).
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Os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície e servidão não
prescrevem, mas podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei,
sendo aplicáveis nesses casos, na falta de disposição em contrário, as regras da caducidade (art.
289º, nº 3, do Código Civil).
Assim:
Art. 669º do CCI: caduca no prazo ordinário de trinta anos o direito de servidão de passagem por
não uso.
Art. 708º do CCI: caduca no prazo ordinário de trinta anos o direito de servidão por
impossibilidade de uso do terreno dominante.
Art. 709º do CCI: caducam no prazo ordinário de trinta anos os demais direitos de servidão por
não uso.
2.6.2. Prescrição
O instituto da prescrição está directamente relacionado com o decurso do tempo ou por outras
palavras com o efeito do tempo nas relações jurídicas. Assim é que podemos desde logo
encontrar dois tipos de prescrição a aquisitiva, e a extintiva, ambas directamente relacionadas ao
tempo.
A prescrição aquisitiva acontece quando alguém incorpora no seu património determinado
direito do qual desfruta há um longo tempo, trata-se da usucapião.
A prescrição extintiva acontece sempre que o titular do direito não o reclama durante certo prazo
de tempo; perdendo a possibilidade exigir tal direito.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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O elemento presente na existência destas duas figuras jurídicas é o tempo, seja para conceder um
direito, seja para extingui-lo.
2.6.3. Prescrição extintiva
A prescrição consiste no não exercício do direito durante o lapso de tempo estabelecido na lei
que consente ao devedor invocar a excepção, dando-se o direito por extinto.
A prescrição não é verdadeiramente uma causa de extinção das obrigações mas apenas um meio,
para além das causas de extinção propriamente ditas, de se livrar de obrigações.107
No que respeita ao seu objecto imediato e ao decurso do respectivo prazo a prescrição reporta-se,
pelo menos directa e imediatamente, ao pedido.
Ou seja, completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da
prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (art. 295º do
Código Civil).
Certo é que, o que prescreve é possibilidade de se propor uma acção que garanta o direito de que
se é titular; não o próprio direito; este pode subsistir não será é reclamável.
Existem dois requisitos elementares na ocorrência da prescrição: a inércia do titular do direito e o
decurso do tempo.
107
Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, pág. 133.
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Quando alguém é titular de um direito e não o reclama, deixa de propor a acção, revelando assim
seu desinteresse, não merece a protecção do direito, pois se ele próprio titular do direito deixou
de reclamá-lo.
Vários são os fundamentos para a prescrição, presunção de cumprimento (prescrições
presuntivas); sanção àquele que fica na inércia, sendo comum a todas as ordens jurídicas que
como a nossa contemplam tal instituto o que consiste, porém, na protecção do interesse social em
estabelecer harmonia e justiça, segurança, dando fim a litígios e evitando que estes fiquem por
tempo indefinido a disposição de alguém, se lhe fosse permitido muitos anos depois vir reclamar
um direito seu que se perdeu no tempo, com a consequente dificuldade de reconstituição das
provas que até poderão terão deixado de existir.
O tribunal não conhece oficiosamente a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser
invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou,
tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público (art. 294º do Código Civil e art. 1950º do CCI).
A prescrição aproveita a todos os que dela possam tirar benefício, sem excepção dos incapazes
(art. 1986º do CCI e art. 291º do Código Civil).
A prescrição é invocável pelos credores e por terceiros com legítimo interesse na sua declaração,
ainda que o devedor a ela tenha renunciado (art. 1952º do CCI e art. 296º do Código Civil).
2.6.4. Prazos de prescrição
Prazo ordinário de prescrição: trinta anos (art. 1967º do CCI). Tal prazo é de vinte anos no
Código Civil (art. 300º).
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Prescrevem no prazo de cinco anos:
a) As anuidades de rendas perpétuas ou vitalícias;
b) As rendas e alugueres devidos pelo locatário, ainda que pagos por uma só vez;
c) Os foros;
d) Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades;
e) As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros;
f) As pensões alimentícias vencidas;
g) Quaisquer outras prestações periodicamente renováveis (art. 301º do Código Civil).
Prescrevem no prazo de cinco anos as rendas perpétuas e anuidades, as rendas por arrendamento
de imóveis, os juros por empréstimos, e as prestações pagas anualmente ou por prazos mais
curtos acordados entre as partes (art. 1975º do CCI).
Não se trata, neste caso, de prescrições presuntivas, mas de prescrições de curto prazo,
destinadas essencialmente a evitar que o credor retarde demasiado a exigência de créditos
periodicamente renováveis, tornando excessivamente pesada a prestação a cargo do devedor108.
2.6.5. Prazos especiais de prescrição:
108
Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I cit., pág. 280.
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Art. 547º do CCI: prescreve no prazo de um ano o direito de posse sobre bens intangíveis, após a
posse pacífica exercida por outra pessoa.
Art. 570º do CCI: prescreve no prazo de um ano o direito a rendas perpétuas de um décimo por
venda de imóveis.
Art. 570º do CCI: prescrevem no prazo de cinco anos os demais direitos a rendas perpétuas por
venda de imóveis.
Art. 599º do CCI: prescreve no prazo de três anos o direito de reivindicação de coisa no caso de
acessão mobiliária de terras.
Art. 610º do CCI: prescrição aquisitiva como forma de aquisição do direito de propriedade.
Art. 695º do CCI: prescrição aquisitiva de servidão (prazo ordinário de trinta anos).
Art. 718º do CCI: prescreve no prazo ordinário de trinta anos o direito de superfície, se o terreno
continuar a ser utilizado pelo proprietário do terreno.
Art. 719º do CCI: prescreve no prazo ordinário de trinta anos o direito de superfície, por não uso
do beneficiário.
Art. 736º do CCI: prescreve no prazo ordinário de trinta anos o direito de emparcelamento.
Art. 750º do CCI: prescreve no prazo de um ano o direito às rendas perpétuas em dívida.
Art. 754º, nº 4, do CCI: prescreve no prazo ordinário de trinta anos o direito de rendas perpétuas,
a contar da data em que as mesmas dixaram de ser pagas.
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Art. 807º, nº 5, do CCI: prescreve no prazo ordinário de trinta anos o direito de usufruto.
Art. 835º do CCI: prescreve no prazo de trinta anos o direito de reinvindição da herança, a contar
da data da disposição da mesma.
Art. 1110º do CCI: prescreve no prazo de três anos o direito de separação dos bens recebidos em
herança para satisfação de dívidas do autor da herança.
O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido (art. 297º do Código
Civil).
Tratando-se de renda perpétua ou vitalícia ou de outras prestações periódicas análogas, a
prescrição do direito unitário do credor corre desde a exigibilidade da primeira prestação que não
for paga (art. 298º do Código Civil).
2.6.6. Suspensão da prescrição
Podem ocorrer alguns casos em que a lei determine que o prazo prescricional não se inicie, ou, se
já iniciado, seja suspenso; em resultado de circunstâncias especiais ou em protecção de
determinadas pessoas ou interesses juridicamente relevantes.
A prescrição não começa nem corre:
a) Entre os cônjuges, ainda que separados judicialmente de pessoas e bens (art. 1987º do CCI e
art. 309º, al. a), do Código Civil);
b) Entre quem exerça o poder paternal e as pessoas a ele sujeitas, entre o tutor e o tutelado ou
entre o curador e o curatelado (art. 309º, al. b), do Código Civil);
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
68
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c) Entre as pessoas cujos bens estejam sujeitos, por lei ou por determinação judicial ou de
terceiro, à administração de outrem e aquelas que exercem a administração, até serem aprovadas
as contas finais (art. 309º, al. c), do Código Civil);
d) Entre as pessoas colectivas e os respectivos administradores, relativamente à responsabilidade
destes pelo exercício dos seus cargos, enquanto neles se mantiverem (art. 309º, al. d), do Código
Civil);
e) Entre quem presta o trabalho doméstico e o respectivo patrão, enquanto o contrato durar (art.
309º, al. e), do Código Civil);
f) Enquanto o devedor for usufrutuário do crédito ou tiver direito de penhor sobre ele (art. 309º,
al. f), do Código Civil).
A precrição não corre em relação a um herdeiro que aceitou a herança a benefício de inventário
(arts. 1991º e 1992º do CCI).
A prescrição não começa nem corre contra militares em serviço, durante o tempo de guerra ou
mobilização, dentro ou fora do País, ou contra as pessoas que estejam, por motivo de serviço,
adstritas às forças militares (art. 310º do Código Civil).
A prescrição não começa nem corre contra menores enquanto não tiverem quem os represente ou
administre seus bens (art. 311º, nº 1, do Código Civil).
O CCI vai mais longe ao estipular que a prescrição não corre contra menores, ou qualquer pessoa
sob poder parental ou tutela, a menos que de outra forma seja estipulado por lei (art. 1987º).
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A prescrição suspende-se durante o tempo em que o titular estiver impedido de fazer valer o seu
direito, por motivo de força maior, no decurso dos últimos três meses do prazo (art. 312º, nº 1, do
Código Civil).
2.6.7. Interrupção da prescrição
A interrupção envolve a iniciativa, um comportamento activo do credor, a demonstrar que o
mesmo não está inerte.
A diferença entre suspensão e interrupção da prescrição consiste no facto de a suspensão ocorrer
por força de lei, independentemente da vontade do credor, enquanto na interrupção impõe-se
uma conduta deste destinada a tal fim.109
A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima,
directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto
pertence e ainda que o tribunal seja incompetente (arts. 1979º e 1980º do CCI e art. 314º, nº 1, do
Código Civil).
Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por
causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os
cinco dias (art. 314º, nº 2, do Código Civil).
A anulação da citação ou notificação não impede o efeito interruptivo previsto nos números
anteriores (art. 314º, nº 3, do Código Civil). Contrariamente o art. 1981º do CCI, retira os efeitos
interruptivos à interpelação ou citação declarada inválida ou anulada.
109
Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Coimbra Editora, 1997, pág. 455.
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As causas interruptivas da prescrição são de dois tipos: a) consistem num acto do titular do
direito; b) consistem num acto da pessoa a favor de quem está a correr o prazo.
O que interrompe a prescrição não é a propositura da acção mas a citação do réu.
A prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o
respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido. O reconhecimento tácito só
é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam (art. 316º do Código
Civil).
O reconhecimento é um simples acto jurídico, consistente numa mera declaração de ciência
(conhecimento do direito do titular) e não é de exigir que o seu autor a faça com a intenção de
interromper a prescrição pois, se reconhece o direito da parte contrária, é legítimo entender que
deseja cumprir a obrigação.110
Não é relevante o reconhecimento tácito que não se baseie em facto que inequivocamente o
exprima.111
Na verdade, para haver reconhecimento com eficácia de interrupção da prescrição, é necessário
que haja, ao menos, através de factos, afirmações pessoais, comportamentos ou atitudes, o
propósito de reconhecer o direito da parte contrária.
A prescrição interrompe-se pela confissão do devedor (arts. 1982º a 1983º do CCI).
110
111
Vaz Serra, in B.M.J. nº 106, Lisboa, pág. 917.
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. cit., pág. 292.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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O reconhecimento do direito, para efeito de interrupção da prescrição, traduz-se na confissão ou
declaração da sua existência, desde que praticado pelo devedor perante o titular do crédito.
A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a
correr novo prazo a partir do acto interruptivo (art. 317º, nº 1, do Código Civil).
Se a interrupção resultar de citação, notificação ou acto equiparado, ou de compromisso arbitral,
o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que
puser termo ao processo (art. 318º, nº 1, do Código Civil).
Quando, porém, se verifique a desistência ou a absolvição da instância, ou esta seja considerada
deserta, ou fique sem efeito o compromisso arbitral, o novo prazo prescricional começa a correr
logo após o acto interruptivo (art. 318º, nº 2, do Código Civil).
Se, por motivo processual não imputável ao titular do direito, o réu for absolvido da instância ou
ficar sem efeito o compromisso arbitral, e o prazo da prescrição tiver entretanto terminado ou
terminar nos dois meses imediatos ao trânsito em julgado da decisão ou da verificação do facto
que torna ineficaz o compromisso, não se considera completada a prescrição antes de findarem
estes dois meses (art. 318º, nº 3, do Código Civil).
O meio normal de expressão directa da intenção de exercício do direito é a propositura de acção
em que se pede a condenação do devedor no pagamento da prestação ou no reconhecimento do
direito ou a formulação do pedido por via reconvencional, e, como meios indirectos, têm sido
indicados os de pedido de intervenção do devedor na causa, de chamamento de garantes, de
reclamação de créditos em execução ou falência, de exercício da compensação no processo, de
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
72
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dedução de acusação em processo criminal ou de intervenção nesse processo como assistente,
pois esses actos são praticados também com a intenção de exercer o respectivo direito.112
São requisitos cumulativos deste meio de interrupção da prescrição a prática de “acto”, num
processo de qualquer natureza; ser esse acto adequado a exprimir a intenção de exercício do
direito pelo seu titular, e a comunicação ao devedor do mesmo acto por citação ou notificação
judicial.
Importa ainda considerar o disposto no art. 241º, nº 2, do CPC, nos termos do qual, sem prejuízo
do disposto na lei civil relativamente à prescrição e à caducidade dos direitos, os efeitos civis
derivados da proposição da primeira causa e da citação do réu mantêm-se, quando seja possível,
se a nova acção for intentada ou o réu for citado para ela dentro de trinta dias, a contar do
trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância.
Tal preceito inculca a ideia que se o autor vier com novo processo dentro de trinta dias a contar
do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância a interrupção derivada da citação
para a primeira causa mantém-se e a prescrição não se terá consumado mesmo que o novo
processo já venha fora do prazo prescricional , mas para que tal aconteça torna-se necessário que
a nova acção seja intentada ou o réu seja citado para ela no prazo de trinta dias após o transito da
sentença.113
Portanto dois requisitos para que o credor possa aproveitar a acção e citação anteriores: 1º Que
tenha havido citação do réu na acção anterior; 2º Que a nova acção seja proposta no prazo de
112
113
Vaz Serra, in “Revista de Legislação e de Jurisprudência”, Coimbra, ano 103º, pág. 415, e ano 112.º, pág. 290.
Manuel de Andrade, ob. cit., vol II, pág. 460.
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trinta dias e o réu seja citado em tal prazo contado a partir do transito da sentença que não
decidiu de mérito.
São nulos os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais da prescrição ou a
facilitar ou dificultar por outro modo as condições em que a prescrição opera os seus efeitos (art.
291º do Código Civil).
A renúncia da prescrição só é admitida depois de haver decorrido o prazo prescricional (art.
1947º do CCI e art. 293º, nº 1, do Código Civil).
A renúncia pode ser tácita e não necessita ser aceita pelo beneficiário (art. 1948º do CCI e art.
293º, nº 2, do Código Civil).
Só tem legitimidade para renunciar à prescrição quem puder dispor do benefício que a prescrição
tenha criado (art. 1949º do CCI e art. 293º, nº 3, do Código Civil). Não é admissível a renúncia
antecipada à prescrição.
2.6.8. As prescrições presuntivas
Prescrevem no prazo de seis meses os créditos de estabelecimentos de alojamento, comidas ou
bebidas, pelo alojamento, comidas ou bebidas que forneçam (art. 307º do Código Civil).
Prescrevem no prazo de dois anos: a) Os créditos dos estabelecimentos que forneçam
alojamento, ou alojamento e alimentação, a estudantes, bem como os créditos dos
estabelecimentos de ensino, educação, assistência ou tratamento, relativamente aos serviços
prestados; b) Os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante
ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam
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profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de
trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que
a prestação se destine ao exercício industrial do devedor; c) Os créditos pelos serviços prestados
no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes (art. 308º do
Código Civil).
Prescrevem no prazo de um ano: a) os créditos dos professores ou estabelecimentos de ensino,
por curso com duração até um mês; b) os créditos dos estabelecimentos que forneçam alojamento
ou alimentação; c) os créditos de trabalhadores por salários trimestrais (art. 1968º do CCI).
Prescrevem no prazo de dois anos: a) os créditos de médicos por serviços de saúde prestados; b)
os créditos por honorários a quem preste serviços jurídicos, não sendo advogado; c) os créditos
de tutores; d) os créditos de trabalhadores por salários não trimestrais (art. 1969º do CCI).
Prescrevem no prazo de dois anos: a) os créditos de honorários a advogados, pelos serviços
prestados; b) os créditos dos notários (art. 1970º do CCI).
Prescrevem no prazo de cinco anos: a) os créditos de industriais por serviços ou venda de bens
da sua indústria; b) os créditos dos comerciantes por bens vendidos a pessoas que não sejam
comerciantes (art. 1971º do CCI).
As prescrições presuntivas fundam-se na presunção de cumprimento (art. 303º do Código Civil).
Assim, nos termos do art. 304º, nº 1, do Código Civil, a presunção de cumprimento pelo decurso
do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor (conforme os arts. 1972º e 1973º do CCI).
Por outro lado, considera-se confessada a dívida se o devedor praticar em juízo actos
incompatíveis com a presunção de cumprimento (art. 305º do Código Civil).
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As prescrições presuntivas fundam-se na presunção de cumprimento, por se presumir que as
dívidas a que respeitam costumam ser pagas em prazo bastante curto, a débitos marcados pela
oralidade ou próprios do dia-a-dia, e de não se exigir, por via de regra, quitação, ou, quando
menos, não se conservar por muito tempo essa quitação. Decorrido o prazo legal, presume-se que
o pagamento foi efectuado. Daí o seu regime específico: findo o prazo prescricional o direito não
se extingue, como é próprio das verdadeiras prescrições, constituindo-se unicamente em
benefício do devedor uma presunção juris tantum de ter efectuado a prestação a seu cargo. Esta
presunção é, contudo, muito forte, pois que o credor, contra o que resultaria das regras gerais das
presunções juris tantum, não pode ilidir a presunção, provando que afinal o devedor não pagou.
Tal presunção só pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida
tiver sido transmitida. Confissão esta que pode ser judicial ou extrajudicial. É admitida também a
confissão tácita.
Daí que se entenda que o réu, para poder beneficiar da aludida prescrição, tenha,
necessariamente, que invocar o pagamento. Assim, não pode o réu invocar factos incompatíveis
com tal presunção, nomeadamente que a dívida não existe ou existe mas por outro valor.
Neste tipo de prescrições, ao contrário do que acontece nas prescrições extintivas, o decurso do
prazo legal não extingue a obrigação, apenas fazendo presumir o pagamento, desta forma
libertando o devedor do ónus da prova que pagou. Isto é, o verdadeiro escopo das prescrições
presuntivas é libertar o devedor da prova do cumprimento. Mas não o liberta do ónus de alegar
que pagou.
São incompatíveis com a presunção de incumprimento, por exemplo, a negação originária da
existência do débito, a discussão do seu montante, ou a remissão da sua fixação para o tribunal, a
invocação de uma causa de nulidade ou anulabilidade do contrato donde emerja a dívida, a
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contestação da solidariedade da dívida, a reinvindicação do benefício da divisão, a alegação de
pagamento de importância inferior à reclamada, pretextando que ele corresponde à liquidação
integral do débito (o que vale como um reconhecimento de não ter pago a diferença); a
invocação da gratuitidade dos serviços, etc..
2.6.9. Aplicação das regras sobre caducidade e prescrição no tempo
A lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é
também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da
entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo
se completar (art. 288º, nº 1, do Código Civil).
A lei que fixar um prazo mais longo é igualmente aplicável aos prazos que já estejam em curso,
mas computar-se-á neles todo o tempo decorrido desde o seu momento inicial (art. 288º, nº 2, do
Código Civil).
A prescrição é sempre um instituto de direito substantivo, não podendo ter aplicação uma norma
que fixa prazo de prescrição mais reduzido aos casos que antecedem a sua entrada em vigor (art.
11º do Código Civil). Não pode a parte ser surpreendida por uma norma nova que venha reduzir
o prazo de prescrição por forma a não mais poder exercer o seu direito.
Se a lei considerar de caducidade um prazo que a lei anterior tratava como prescricional, ou se,
ao contrário, considerar como prazo de prescrição o que a lei antiga tratava como caso de
caducidade, a nova qualificação é também aplicável aos prazos em curso (art. 290º, nº 1, do
Código Civil).
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No primeiro caso, porém, se a prescrição estiver suspensa ou tiver sido interrompida no domínio
da lei antiga, nem a suspensão nem a interrupção serão atingidas pela aplicação da nova lei; no
segundo, o prazo passa a ser susceptível de suspensão e interrupção nos termos gerais da
prescrição (art. 290º, nº 2, do Código Civil).
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CAPÍTULO III – Noções Gerais de Obrigações
1.1. Conceito de obrigação
Obrigação é a relação jurídica estabelecida entre devedor e credor e cujo objecto consiste em
prestação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa.
O direito das obrigações regula directamente relações sociais, na perspectiva das relações
estabelecidas directamente ente indivíduos.114
A forma de cooperação a que diz respeito o direito das obrigações pressupõe uma relação entre
sujeitos autónomos, independentes; e tem por objecto já não directamente uma coisa, mas uma
“prestação”, isto é, um comportamento de um dos sujeitos (o devedor) no interesse ou para
satisfação de um interesse do outro sujeito (o credor).
Por exemplo, num contrato de compra e venda a coisa que é objecto do contrato não constitui o
objecto imediato da relação jurídica, mas apenas o seu sujeito mediato, objecto da prestação do
devedor. Esta prestação é que se constitui como objecto imediato da relação.
1.2. Elementos essenciais das obrigações
A relação de obrigação é, na sua essência, o vínculo que liga o sujeito passivo ao sujeito activo, e
que tem por objecto a prestação, que consistirá em dever fazer alguma coisa, numa prestação de
facto, ou na prestação de uma coisa, prestação que o credor tem o direito de exigir.
114
Diferentemente, nos direitos reais a relação estabelece-se com a comunidade em geral, só surgindo relações
pessoais directas entre as pessoas no caso de ser contestado o direito real do titular do bem.
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2. Fontes das obrigações
As obrigações provém dos contratos, das declarações unilaterais de vontade e dos actos ilícitos.
Contrato é a convenção estabelecida entre duas ou mais pessoas, em virtude do qual uma delas
obriga a outra a dar, fazer, ou abster-se de algo. São também denominados convenção, ajuste,
pacto, etc.. Em princípio, os particulares têm a faculdade de contratar da maneira que bem
entendem, o limite dessa liberdade é a ordem pública, a moral e o direito.
Declarações unilaterais de vontade são obrigações emanadas de manifestações de vontade de
uma parte e não discriminam desde logo a pessoa do credor, que só surgirá após a constituição da
obrigação.
Actos ilícitos são actos geradores de responsabilidade civil.
3. Modalidades das obrigações
a) Obrigações de sujeito determinado e de sujeito indeterminado
O sujeito activo das obrigações (o credor) pode ficar determinado no momento em que a
obrigação é constituída, ou pode ficar indeterminado, não se sabendo desde logo quem será.
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Porém, no momento do cumprimento, o credor tem que ser determinado. E por isso esta
modalidade de obrigações implica que o credor seja determinável, sob pena de ser nulo o
negócio jurídico de que a obrigação resultaria (art. 445º do Código Civil).115
b) Obrigações conjuntas e obrigações solidárias
Do mesmo facto jurídico podem originar-se obrigações plurais, isto é, em que há vários credores
ou vários devedores.
Se a cada devedor compete apenas uma fracção do débito comum e a cada credor uma fracção do
crédito comum, as obrigações dizem-se conjuntas. Cada devedor só é obrigado à sua quota da
prestação e é essa que constitui a sua prestação. A elas se contrapõem as obrigações solidárias
(art. 512º do Código Civil e art. 1278º do CCI).
As obrigações plurais são, em regra, conjuntas, só sendo solidárias quando tal resulte da lei ou da
vontade das partes (art. 447º do Código Civil e art. 1278º do CCI).
A obrigação diz-se solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e
esta a todos libera (solidariedade passiva, isto é, entre devedores) ou quando cada um dos
credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para
com todos eles (solidariedade activa, isto é, entre os credores) (art. 446º, nº 1, do Código Civil e
arts. 1278º e 1280º do CCI).
Há pluralidade de vínculos, mas unidade de prestação, quanto a todos os devedores ou credores.
115
Não existe disposição semelhante no CCI. Porém, devem considerar-se este contratos como admissíveis à luz dos
arts. 1317º e 1338º.
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c) Obrigações divisíveis e indivisíveis
Quando a prestação numa obrigação, quer por natureza, quer por lei, quer por convenção, não
possa dividir-se, ou seja, não possa ser cumprida só em parte, a obrigação diz-se indivisível, caso
contrário será divisível (arts. 468º e 469º do Código Civil e 1296º e 1297º do CCI).
Quando a prestação seja indivisível e sejam vários os devedores, não obstante se tratar de
obrigação conjunta, o credor só pode exigir de todos os obrigados o cumprimento da prestação
(art. 449º, nº 1, do Código Civil e art. 1301º do CCI).
d) Obrigações genéricas
São obrigações genéricas aquelas cujo objecto for determinado apenas quanto ao género (art.
473º do Código Civil). Disposição semelhante encontramos no 1333º do CCI.116
Se o objecto da prestação é indicado pelo seu género, número ou quantidade, sem
individualização concreta do mesmo objecto, a obrigação é genérica. Por exemplo, a venda de
uma certa quantidade de arroz, ou de ferro para construção. A escolha pertence ao devedor, salvo
estipulação em contrário.
e) Obrigações alternativas
São alternativas as obrigações em que a prestação não é única na sua definição, mas é única para
os efeitos do cumprimento (art. 447º, nº 1, do Código Civil e art. 1272º do CCI). Ou seja, o
devedor compromete-se a cumprir uma ou outra prestação, nunca todas as prestações estipuladas
116
O art. 1334º do CCI admite ainda a existência de obrigações futuras.
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em alternativa. Salvo acordo em contrário a escolha fica pertence ao devedor (art. 447º, nº 2, do
Código Civil e art. 1273º do CCI).
d) Obrigações pecuniárias
São obrigações pecuniárias aquelas em que a prestação consiste em dinheiro (por isso as
obrigações pecuniárias são uma espécie de obrigações genéricas) (art. 484º do Código Civil).117
A obrigação pecuniária tem por objecto da prestação, dinheiro, ou seja moeda, e moeda será
aquela que tem curso legal no país em que for efectuado o pagamento.
Obrigações pecuniárias são também as obrigações de juros (art. 493º do Código Civil e art. 1250º
do CCI).
4.1. Extinção das obrigações
Nos termos do art. 1381º do CCI, são causas de extinção das obrigações:
a) o pagamento (arts. 1382º e seguintes);
b) a oferta de pagamento imediato, seguida de consignação em depósito (arts. 1404º e seguintes);
c) a novação (arts. 1413º e seguintes);
d) a compensação (arts. 1425º e seguintes);
117
O CCI não prevê genéricamente este tipo de obrigações, mas inclui as mesmas no capítulo das compensações por
custos e perdas e juros devidos a incumprimento de uma obrigação (arts. 1243º e seguintes).
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e) a confusão (arts. 1436º e seguintes);
f) a remissão (arts. 1438º e seguintes);
g) a destruição dos bens (arts. 1444º e seguintes);
h) a declaração de nulidade ou anulação do contrato (arts. 1446º e seguintes);
i) a verificação de condição resolutiva (art. 1265º); e
j) a prescrição (arts. 1265º, 1268º e seguintes, 1338º, 1646º, 1963º, 1967º).
4.1.1. Pagamento
O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (art. 696º, nº 1,
do Código Civil).118
O devedor deve cumprir a prestação a que está obrigado nos precisos termos em que a obrigação
foi constituída, e o credor e devedor devem proceder com honestidade e lealdade recíprocas, ou
seja, com boa fé (art. 696º, nº2, do Código Civil).119
A prestação deve ser realizada integralmente e não por partes 120 e deve ser feita no lugar e tempo
devidos.
118
Conforme salient Manuel Neves Pereira, ob. cit., pág. 187, o pagamento é sinónimo de cumprimento da
obrigação, embora não seja a expressão mais correcta, uma vez que a obrigação nem sempre é pecuniária.
119
Art. 1338º, parte final, do CCI (os contratos devem ser executados de boa fé).
120
Art. 697º, nº 1, do Código Civil e art. 1390º do CCI.
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O lugar é em geral o do domicílio do devedor, na falta de estipulação em contrário;121 mas nas
obrigações pecuniárias o lugar é, salvo estipulação em contrário, o do domicílio do credor, como
no caso de a obrigação ter por objecto coisa móvel será o lugar onde se encontrava a coisa à data
da conclusão do negócio.122 Sobre o lugar do pagamento os arts. 1393º e 1394º do CCI.
Há outras regras especiais para determinação do lugar em que é devido o cumprimento.123 Mas,
embora a lei, em função da natureza das obrigações, possa determinar directamente qual seja
esse lugar, geralmente as partes podem convencionar livremente o lugar do cumprimento e a lei
estabelece apenas em termos supletivos para a sua determinação na falta de estipulação das
partes.
Ou seja, a obrigação deve ser cumprida em função do acordo das partes: deve ser cumprida no
prazo ou data convencionados.
Quando as obrigações são para cumprir em certo prazo têm uma data de vencimento. O prazo é
em princípio estabelecido a favor do devedor, quando se não mostre que o tenha sido a favor do
credor (art. 713º do Código Civil). Desde que estabelecido a favor do devedor, pode este pagar a
antes do prazo sem que o credor se possa opor.
Quando não haja prazo para cumprimento, o credor tem o direito de exigi-lo a todo o tempo (art.
711º, nº 1, do Código Civil), como o devedor pagará a todo o tempo; para exigir o pagamento, o
credor deverá apenas “interpretá-lo”, isto é, exigir-lhe o pagamento (art. 1243º do CCI).
121
Art. 706º, nº 1, do Código Civil.
Art. 708º do Código Civil.
123
Arts. 706º a 710º do Código Civil.
122
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A prestação pode ser efectuada tanto directamente por quem a ela é obrigado, isto é, pelo
devedor, como por qualquer terceiro, se se não trata de obrigações de natureza pessoal (art. 701º,
n.º 1, do Código Civil e art. 1382º do CCI). A obrigação fica extinta entre o credor e o devedor; o
que pode surgir é a sub-rogação do que pagou na posição de credor, se era interessado no
pagamento.124
Nos demais casos só tomará o terceiro a posição do credor, se tal for convencionado (por cessão
ou sub- rogação convencionais de crédito); de todo o modo a obrigação do devedor extinguiu-se
relativamente ao primitivo credor.125
O cumprimento da obrigação é o modo natural e normal da extinção das obrigações. As
obrigações são relações jurídicas normalmente transitórias, destinadas a extinguir-se,
característica que as opõe às relações de direitos reais.
4.1.2. Dação em pagamento:
A dação em pagamento consiste na possibilidade de o devedor prestar coisa diversa daquela que
for devida, se o credor der para tanto o seu assentimento (art. 771º do Código Civil e art. 1389º
do CCI). Como o princípio da liberdade das partes domina a maior parte das obrigações, o
acordo de credor e devedor permitirá que se extinga a obrigação, mediante forma de
cumprimento diversa da anteriormente estabelecida.126
4.1.3. Consignação em depósito:
124
Assim acontece relativamente ao fiador ou ao avalista, por exemplo.
Art. 1382º do CCI, última parte.
126
Por exemplo, numa obrigação pecuniária o devedor procede ao pagamento através da entrega de bens, que se
considerará terem valor igual ao da dívida.
125
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Quando o devedor não puder efectuar a prestação, por qualquer motivo relativo à pessoa do
credor ou por mora do credor, tem o devedor o direito de depositar judicialmente a coisa devida
para ficar à disposição do credor extinguindo-se a sua obrigação, com esse depósito (art. 775º do
Código Civil e art. 1404º do CCI).
O pagamento por consignação ou consignação em pagamento é o meio pelo qual o devedor
extinguirá a sua obrigação perante o credor, no caso de este recusar-se a receber o pagamento.127
4.1.4. Novação:
Dá-se a novação quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição
da antiga (arts. 791º e 792º do Código Civil e arts. 1413º e seguintes do CCI). O crédito antigo
extinguiu-se para dar lugar a novo crédito, embora este tenha a mesma prestação que o anterior.
Surge como um novo crédito por acordo das partes, com novo prazo, porventura com novo
credor ou novo devedor. A novação tem de ser expressamente manifestada.128 É usual a novação
em obrigações comerciais.129
A novação é forma indireta de solvência de uma obrigação e produz o mesmo efeito do
pagamento, embora para o sujeito passivo deste vínculo não tenha ocorrido a redução real de seu
passivo. Novação é, em verdade, a criação de um novo vínculo obrigacional entre os sujeitos,
com a finalidade de extinguir um anterior. Pode-se, neste intento, mudar o objeto da prestação
127
Pablo Stolze Gagliano, Novo Curso de Direito Civil: Obrigações, 6ª.ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 2006, pág. 151.
Veja-se o art. 1415º do CCI.
129
Habitualmente, quando duas pessoas mantêm relações comerciais é costume poder-se alterar a dívida,
renegociando-se a mesma, em função da própria evolução das relações comerciais entre ambos.
128
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(novação objetiva), ou, ainda, substituir o credor ou o devedor por terceiro estranho a relação
(novação subjetiva).130
4.1.5. Compensação:
Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da
sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor (art. 781º do Código
Civil e art. 1425º do CCI). É indispensável, porém, que as obrigações recíprocas sejam ambas
exigíveis judicialmente, isto é, sejam válidas e vencidas, e ainda que se trate de obrigações que
tenham por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.131 Par que se extingam total
ou parcialmente as obrigações basta que o devedor declare à outra parte querer a compensação.
A compensação terá sobretudo lugar em obrigações pecuniárias.132
4.1.6. Confusão:
Ocorre a confusão quando se reúnem na mesma pessoa as qualidades de credor e devedor da
mesma obrigação. Nessa altura extinguem-se o crédito e a dívida133 (art. 802º do Código Civil e
o art. 1436º do CCI).134
4.1.7. Remissão:
Entende-se por remissão a possibilidade de o credor abdicar do seu crédito a favor do devedor. O
credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor. A remissão resulta de um contrato
130
Sílvio Rodrigues, in “Direito Civil: Parte Geral das Obrigações”, 28ª ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 2000, pág. 199.
Arts. 781º, nº 1, al. b), do Código Civil e 1427º do CCI.
132
Art. 782º, nº 1, do Código Civil. Já para o CCI (art. 1426º) a compensação é automática, não carecendo da
declaração nesse sentido de qualquer das partes.
133
O credor não pode ser credor de si próprio.
134
Pablo Stolze Gagliano, ob. cit., pág. 261.
131
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oneroso ou gratuito entre as partes. É ainda o corolário do domínio da vontade das partes sobre a
obrigação (art. 797º do Código Civil e art. 1438º do CCI).
As restantes formas de extinção das obrigações já foram anteriormente analisadas.
4.2. Objecto e prova do pagamento
O pagamento é um meio de extinguir a obrigação que há entre credor e devedor, pressupondo a
existência de um vínculo obrigacional devendo ser cumprida a sua prestação.
Como já se referiu, o pagamento significa o desempenho voluntário por parte do devedor.135
Porém, o adimplemento ou cumprimento é a realização, pelo devedor, da prestação
concretamente devida, satisfatoriamente, ambas as partes tendo observado os deveres derivados
da boa fé que se fizeram instrumentalmente necessários para o atendimento do escopo da
relação, em acordo ao seu fim e as suas circunstâncias.136
A sub-rogação é um instituto autónomo. Pode não extinguir a obrigação. Se quem cumpre a
obrigação é um terceiro, como vimos, a obrigação subsiste na pessoa do terceiro. Em vez de se
extinguir o crédito, este transfere-se para o terceiro por vontade das partes ou por força da lei. A
135
Sílvio Rodrigues, ob. cit., pág. 199.
Judith Martins Costa, in “Comentários ao novo Código Civil, volume V, tomo I: do direito das obrigações, do
adimplemento e da extinção das obrigações”, 2ª ed., Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2005, pág. 113.
136
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própria relação jurídica sobrevive com a mudança do sujeito ativo. Tratando-se de uma forma de
facilitar o adimplemento, é incentivada pela lei.137
No pagamento com sub-rogação, um terceiro, e não o primitivo devedor, efetua o pagamento.
Esse terceiro substitui o credor originário da obrigação, de forma que passa a dispor de todos os
direitos, ações e garantias que tinha o primeiro.
O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa
(art. 1389º do CCI).
O pagamento deve compreender, como objeto, aquilo que foi acordado. Nem mais, nem menos.
Recebendo o credor o objeto da prestação, seu pagamento, estará a obrigação extinta. Já vimos
que o credor não pode ser obrigado a receber outra coisa, ainda que mais valiosa.138
E ainda que a prestação seja divisível, não pode ser o credor obrigado a receber por partes, se
assim não foi convencionado. Só existira solução da divida com a entrega do objeto da prestação.
Se a prestação é complexa, constante de vários itens, não se cumprirá a obrigação enquanto não
atendidos todos (art. 1390º do CCI).
A prova de pagamento é a demonstração material, palpável de um fato, ato ou negocio jurídico.
É a manifestação externa de um acontecimento. A prova do pagamento é a quitação, consistindo
em um escrito no qual o credor, reconhecendo ter recebido o que lhe era devido, libera o
devedor, do que foi pago.139 O objeto do pagamento deverá ser aquele que foi proposto no
137
Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, 6ª ed., Ed. Atlas,
São Paulo, 2006, págs. 248-249.
138
Sílvio de Salvo Venosa, ob. cit., pág. 188.
139
A entrega voluntária, feita pelo credor ao devedor, do título original do crédito faz presumir a liberação do
devedor (art. 720º, nº 3, do Código Civil).
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contrato, nem mais, nem menos, mas poderá o credor aceitá-lo se for de seu agrado. Em regra se
paga com a prestação, mas é possível que o credor aceite receber outra coisa no lugar (dação em
pagamento), tratando-se de uma substituição de uma coisa para outra.
5.1. Inadimplemento absoluto e mora
Verifica-se o não cumprimento (incumprimento) da obrigação quando esta deixou de ser
cumprida fielmente, isto é, nos termos em que o devia ser, ou quando é realizada em termos que
não correspondam à adequada satisfação do interesse do credor.
O não cumprimento pode ter carácter definitivo ou consistir no retardamento da prestação. Na
primeira hipótese trata-se do caso de não cumprimento em sentido estrito, e no segundo caso do
não cumprimento que recebe a denominação de “mora” no cumprimento da obrigação. O
devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação,
ainda possível, não foi efectuada no tempo devido (art. 738º, nº 2, do Código Civil).140
E pode ainda verificar-se, por motivo diverso da mora no cumprimento, um cumprimento
imperfeito ou defeituoso.
Em todos estes casos, à falta de cumprimento, o cumprimento imperfeito, a mora no
cumprimento da obrigação, podem ser ou não ser imputáveis ao devedor. É imputável o não
cumprimento da obrigação quando o devedor falta culposamente a esse cumprimento. A
inexecução da obrigação é um facto ilícito, que quando deriva da culpa do devedor acarreta a sua
140
Para ocorrer uma situação de mora, é necessário que ainda seja possível realizar a prestação em data futura. Por
esse motivo, em certo tipo de obrigações não se admite a ocorrência de mora, levando a violação do vínculo
obrigacional directamente ao incumprimento definitivo.
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responsabilidade pelos prejuízos que causa. Trata-se da forma da responsabilidade civil
denominada responsabilidade obrigacional (art. 732º do Código Civil e art. 1243º do CCI).
A falta de cumprimento não acarreta responsabilidade, quer nos casos em que se verificam
causas legítimas de não cumprimento, isto é, em que é lícito não cumprir, quer nos casos em que
não deva legalmente atribuir-se ao devedor culpa pelo não cumprimento.141
Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for
realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os
efeitos não cumprida a obrigação (art. 742º, nº 1, do Código Civil).142
Excepção de não cumprimento e direito de retenção:
A excepção do não cumprimento do contrato e direito de retenção consistem na possibilidade de
uma das partes, nos contratos de que resultam obrigações negociais para ambas as partes, não
cumprir a sua obrigação correlativa enquanto a outra parte não cumprir a sua.143
Também o devedor não é responsável pelo não cumprimento quando goza do direito de retenção,
que consiste precisamente em recusar a entrega de uma coisa, que em princípio devia entregar, e
que a lei autoriza que fique na sua posse, a garantir o cumprimento dessa obrigação do credor
para com o devedor a quem é concedida essa garantia especial.
5.2. Mora (espécies)
141
Veja-se os arts. 1244º e 1245º do CCI.
a perda de interesse no negócio tem de ser apreciada objectivamente, não bastando a mera afirmação por quem o
invoca de que já não está interessado no cumprimento da obrigação por parte do outro contraente (art. 742º, nº 1, do
Código Civil).
143
Por exemplo, o comprador não é obrigado a pagar o preço se não lhe tiver sido entregue a coisa vendida pelo
vendedor.
142
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5.2.1. Mora do devedor:
A mora do devedor depende, por outro lado, de a prestação não ter sido realizada a tempo
devido. Teremos, assim, que recorrer às normas de determinação do tempo do cumprimento,
para averiguar se o devedor esta ou não em situação de mora.
A regra é a de que as obrigações são puras, ou seja, que não têm prazo certo estipulado. Nesse
tipo de obrigações, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou
extrajudicialmente interpelado para cumprir (art. 739º, nº 1, do Código Civil e art. 1243º do
CCI).
A interpelação consiste precisamente na comunicação pelo credor ao devedor da sua decisão de
lhe exigir o cumprimento da obrigação a qual, de acordo com as regras gerais, pode ser expressa
ou tácita. A lei admite que essa comunicação possa ser feita por via judicial ou extrajudicial,
tendo como efeito constituir o devedor em mora, a partir da sua recepção.
Há, porém, casos em que a mora do devedor depende apenas de factores objectivos, tornando-se
irrelevante a existência ou não de interpelação pelo credor.144
As consequências da mora do devedor são as seguintes: obrigação de indemnizar os danos
causados pelo credor e a inversão do risco pela perda ou deterioração da coisa devida.145 Tem
que haver um nexo de causalidade entre a mora e os danos sofridos. A concessão de uma
144
145
Art. 739º, nº 1, do Código Civil.
Arts. 738º, nº 1, e 741º, nº 1, do Código Civil e 1243º do CCI.
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indemnização moratória depende da demonstração de que a não realização da prestação no
tempo devido causou prejuízos ao credor.146
Tratando-se de obrigações pecuniárias, a lei fixa legalmente uma indemnização por considerar o
dano como necessariamente equivalente à perda da renumeração habitual do capital durante esse
período, ou seja, o juro (art. 740º, nº 1, do Código Civil e art. 1250º do CCI). A indemnização
corresponde aos juros desde a data da constituição em mora (juros moratórios), não se
permitindo ao credor a exigência de qualquer outra indemnização, e dispensando-o da prova dos
requisitos do dano e do nexo de causalidade entre o facto e o dano.147
5.2.2. Mora do credor
O credor incorre em mora, sempre que, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é
oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação
(art. 747º do Código Civil e art. 1404º do CCI). A mora tem assim os seguintes pressupostos: a
recusa ou a não realização pelo credor da colaboração necessária para o cumprimento e a
ausência de motivo justificado para essa recusa ou omissão.
A mora do credor tem os seguintes efeitos: obrigação de indemnização por parte do credor,
atenuação da responsabilidade do devedor e inversão do risco pela perda ou deterioração da coisa
(art. 748º do Código Civil).
146
Estes danos poderão consistir, por exemplo, em despesas, que o credor teve que suportar durante o período da
mora para satisfazer as suas utilidades que lhe seriam proporcionadas pela prestação.
147
Veja-se o § 2º do art. 1250º do CCI.
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Capítulo IV – Responsabilidade Civil
1.1. Conceito de responsabilidade civil.
A responsabilidade civil corresponde ao dever de determinado sujeito de reparar o prejuízo
sofrido por outrem, em razão de um acordo anteriormente firmado, ou por imposição de lei148.
A responsabilidade civil consiste na necessidade imposta pela lei a quem causa prejuízos a
outrem de colocar o ofendido na situação em que estaria sem a lesão149.
1.2. Responsabilidade civil contratual e responsabilidade civil extracontratual
Basicamente, a sé divide em duas grandes espécies: a responsabilidade e a extracontratual.
A responsabilidade civil contratual corresponde à imposição da reparação dos danos resultantes
da violação de um acordo prévio entre as partes. Não tem necessariamente que se tratar de um
contrato, podendo resultar de um acto jurídico unilateral. Por exemplo, no caso de gestão de
negócios150, o gestor pode ser obrigado a indemnizar a pessoa em nome da qual negociou se a
148
O CCI integrou a responsabilidade civil extracontratual precisamente num capítulo que mereceu a tradução para
inglês de “contratos resultantes da lei” (capítulo III do Livro III, Contracts arising by force of law. Ou seja, relações
geradoras de obrigações emergentes da própria lei, por contraposição às que resultam de contratos.
149
Carlos Alberto da Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed. Actualizada, Coimbra Editora, 1999, pág.
114.
150
A gestão de negócios consiste na direcção de negócio alheio no interesse e por conta do respectivo dono, sem que
tenha existido qualquer mandato nesse sentido (art. 339º do projecto e art. 1357º do CCI). Ou seja, uma pessoa
celebra um negócio em nome de outra, ou administra os bens de outra, como se fosse representante desta, mas sem
que tenha recebido dela poderes para o efeito, por entender que este seria o que a mesma pretenderia. Por exemplo,
se um amigo meu tem um imóvel desocupado e eu sei que o mesmo pretende arrendar o mesmo, quando este está do
estrangeiro, em férias, surgindo um interessado em tomar o imóvel de arrendamento, por uma valor de renda que
acho muito bom, embora não tenha procuração para o efeito, procedo ao arrendamento em nome do proprietário,
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gestão causou prejuízos a esta e o gestor agiu com negligência, ou se interrompeu a gestão sem
causa justificativa (arts. 401º, nº 1, do projecto e 1356º do CCI)151.
No entanto, a situação mais comum de responsabilidade civil contratual é da violação de um
contrato. Por exemplo, numa contrato de compra e venda o comprador recebe o bem mas não
paga o preço. Ou o comprador recebe o preço da mercadoria mas não entrega esta. Num contrato
de arrendamento o arrendatário (inquilino) não paga a renda, ou o senhorio Não faz as obras
necessárias à reparação do imóvel por forma a que o inquilino possa usufruir do imóvel.
No caso de incumprimento contratual, a parte inadimplete (a parte que deixa de cumprir o
contrato, fica obrigada a indemnizar a outra parte pelos prejuízos resultantes do seu
incumprimento (arts. 732º do projecto e 1241º do CCI). O contrato passa a valer como
verdadeira lei entre as partes e o seu incumprimento por qualquer delas faz surgir o direito a
indemnização por aquele que se tornou lesado ante este inadimplemento. É nisto que consiste a
responsabilidade civil contratual, conforme a definição expressa supra (a necessidade/obrigação
imposta pela lei de o causador dos prejuízos reparar os mesmos).
A responsabilidade civil extracontratual, também chamada de responsabilidade aquiliana, tem
origem num acto ilícito não contratual, causador de prejuízo. Enquanto na responsabilidade
contratual há um vínculo anterior entre o credor e o devedor, na responsabilidade delitual (ou
extracontratual) tal vínculo poderá não existir.
ficando depois obrigado a transmitir a este a posição contratual e prestar-lhe contas (arts. 400º e 404º do projecto e
arts. 1354º a 1357º do CCI).
151
Daí que Mota Pinto, ob. cit., pág. 123, questione a definição de responsabilidade civil contratual. Esta é, porém, a
definição mais comum.
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Assim, no caso mais comum do acidente de viação, nenhum vínculo existia antes de tal evento
entre as partes envolvidas. A relação jurídica é constituida (nasce) com o facto ilícito.
1.3. Responsabilidade civil extracontratual e responsabilidade penal
Na responsabilidade penal o delinquente infringe uma norma de direito público, ocorrendo uma
reação do ordenamento jurídico, pois o interesse lesado é da sociedade. E o delinquente responde
pela privação da liberdade.
Na responsabilidade civil o interesse diretamente lesado é do interesse privado, a
responsabilidade civil é patrimonial, o património do devedor é quem responde por suas
obrigações. O interesse é da vítima, se esta permanecer inerte ou resignar a seu direito nenhuma
consequência haverá para o causador do dano.
A responsabilidade penal consiste na obrigação do seu autor se submeter a certas penas que são a
reparação do dano causado na ordem moral da sociedade. É de natureza extritamente pessoal e é
intransmissível152, contratriamente à responsabilidade civil, que pode passar para os herdeiros do
responsável153. É indiferente que exista um particular ou uma entidade colectiva lesada.
A responsabilidade civil tem carácter essencialmente patrimonial e por isso a obrigação de
indemnização que é seu conteúdo transmite-se aos herdeiros e pode igualmente ser cumprida por
terceiros que não o infractor. Não tem assim natureza estritamente pessoal; o que importa é
assegurar a reparação do dano causado
152
153
Art. 32º, nº 3, da Constituição e art. 12º, nº 1, do CP.
Veja-se o art. 1379º do CCI, para os casos de injúrias ou difamação e o art. 68º do Código Civil.
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Embora a responsabilidade civil possa existir sem responsabilidade penal, uma vez que nem
todos os factos ilícitos são puníveis criminalmente (princípio da intervenção subsidiária, como
ultima ratio, do direito penal), os ilícitos criminais que tenham um lesado particular (por vezes o
próprio Estado), geram igualmente responsabilidade civil extracontratual.
Nos termos dos arts. 72º e 284º do CPP e 104º do CP, o responsável por ilícito criminal deverá
ser igualmente condenado pela inerente civil, ainda que se conclua que apenas esta se verifica,
inexistindo qualquer responsabilidade criminal154.
O art. 104º do CP estipula expressamente no seu nº 2 que a indemnização civil resultante dos
danos causados por ilícito criminal é apurada nos termos da responsabilidade civil
extracontratual.
2. Elementos da responsabilidade civil extracontratual
Nos termos do art. 417º, nº 1, do CCI, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o
direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica
obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Disposição semelhante
encontramos no art. 1365º do CCI155, o qual se aplica apenas aos actos dolosos, ou voluntários,
154
Importa aqui referir que a responsabilidade civil pode existir sem culpa (como se verá infra), contrariamente à
responsabilidade criminal que pressupõe sempre a existência de culpa. Mais, por vezes a responsabilidade criminal
exige o dolo, ao passo que a responsabilidade civil se conforma com a mera culpa (ou negligência). Veja-se o crime
de dano, que tem que ser doloso (art. 258º, nº 1, do CP), enquanto o dano negligente é sempre gerador de
responsabilidade civil extracontratual.
155
Na versão em inglês “A party who commits an illegal act which causes damage to another party shall be obliged
to compensate therefor”.
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mas que é extensivo os actos cometidos por negligência pelo art. 1366º156. Apenas pode haver
responsabilidade pelo risco, ou seja, independentemente de culpa, quando a lei expressamente o
determinar157.
A responsabilidade civil extra contratual, radica em quatro pressupostos essenciais: o facto
ilícito, o nexo de imputação subjectiva, o dano e o nexo de causalidade.
O facto ilícito traduz-se no evento, na acção ou omissão, enquanto ocorrência resultante da acção
humana lesiva de bens jurídicos pessoais e patrimoniais.
O nexo de imputação subjectiva exprime a ligação psicológica do agente com a produção do
acidente e traduz o grau de censurabilidade que a conduta merece.
O dano representa o desvalor infligido aos bens alheios por acção do facto ilícito.
Finalmente o nexo de causalidade revela-se no juízo de imputação objectiva do dano ao facto
que o produz.
O facto ilícito:
O primeiro requisito para que se verifique responsabilidade é a existência de um facto humano
voluntário. Assim, não será facto relevante para este efeito o evento natural onde não intervenha
156
Na versão em inglês “An individual shall be responsible, not only for the damage which he has caused by his act,
but also for that which was caused by his negligence or carelessness”.
157
Art. 417º, nº 2, do Código Civil, e 1367º a 1369º do CCI.
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a vontade humana minimamente determinante158. Por exemplo, uma inundação que cause danos
na habitação de uma pessoa não é facto para efeitos de responsabilidade civil extracontratual.
Para além de um facto humano tem que ser um facto do lesante, podendo consistir numa acção
ou numa omissão159.
O facto tem ainda que ser ilícito.
A ilicitude pode resultar da violação de um direito subjectivo absoluto ou da violação de normas
que visam a protecção de interesses alheios.
A violação de um direito subjectivo absoluto verifica-se, por exemplo o caso injúrias e
difamação previsto nos arts. 1372º a 1380º do CCI160. Trata-se de um direito de personalidade
com consagração constitucional (art. 36º da Constituição), também previsto nos arts. 67º e 418º
do projecto.
Os direitos reais também são direitos absolutos, pelo que a sua violação confere direito a
indemnização, conforme se pode verificar, por exemplo, pelos arts. 563º do CCI (para o caso de
esbulho violento da posse) e 1204º do projecto.
A segunda situação referida engloba a violação de qualquer norma que vise a protecção de
interesses alheios. O caso mais comum de responsabilidade civil extracontratual por violação de
158
Manuel Neves Pereira, in “Introdução ao Estudo do Direito e às Obrigações”, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2001,
pág. 264.
159
A acção lesiva será por exemplo uma agressão (ofensa corporal) praticada pelo lesante no corpo do lesado, e a
omissão será, por exemplo, a conduta do médico que, estando obrigado a tratar o lesado se recusa a fazê-lo.
160
A injúria e difamação, são factos ilícitos expressamente previstos e regulados de forma exaustiva no CCI como
geradores de responsabilidade civil extracontratual, embora com a aprovação do novo CP tenham deixado de
integrar o elenco dos ilícitos penais.
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normas que visam a protecção de interesses alheios são os acidentes de viação. No caso de um
acidente de viação existirá, em princípio161, a violação de uma norma do Código da Estrada162
pelo menos por parte de um dos intervenientes. Efectivamente, ao regular a forma como os
condutores se devem comportar ao conduzirem na via pública, pretende-se assegurar o interesse
de todos os cidadãos (e de cada um em particular) a que possam circular em segurança, seja em
veículos seja a pé, nas vias públicas nacionais.
Os requisitos para que se preencha este segundo tipo de ilicitude são: (a) que a lesão os interesses
do particular se verifique através da violação de uma norma legal; (b) que a norma violada tutele
directamente interesses particulares e não que os interesses particulares sejam protegidos porque
tal resulta da protecção de interesses colectivos; e (c) que o dano verificado seja daqueles que a
norma visa ao tutelar interesses privados163.
Constituem ilícitos especialmente previstos na lei:
No projecto, (a) a ofensa do crédito ou do bom nome (art. 418º); (b) prestação de conselhos,
recomendações ou informações (art. 419º); e (c) simples omissões (art. 420º).
No CCI, (a) homicídio doloso ou negligente (art. 1370º); (b) ofensas à integridade física dolosa
ou negligente (art. 1371º); e (c) a injúria ou difamação (arts. 1372º a 1380º).
161
Se não existir, não existirá igualmente responsabilidade civil extracontratual subjectiva, embora possa existir
responsabilidade civil extracontratual objectiva ou pelo risco (o CCI, não prevê, contudo, este tipo de
responsabilidade para os acidentes de viação).
162
O Código da Estrada foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 6/2003, de 3 de Abril.
163
Manuel Neves Pereira, in “Introdução ao Estudo do Direito e às Obrigações”, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2001,
pág. 265.
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São causas de exclusão da ilicitude164: (a) o exercício de um direito ou cumprimento de um dever
(prevalece o interesse mais relevante) (art. 326º do projecto); (b) a acção directa (art. 327º do
projecto); (c) a legítima defesa (art. 328º do projecto); (d) o estado de necessidade (art. 330º do
projecto); e (e) o consentimento do lesado (art. 331º do projecto).
O nexo de imputação subjectiva (culpa):
Culpa em sentido lato é a imputação de um acto ilícito ao seu autor, traduzido num juízo segundo
o qual este devia ter-se abstido desse acto165. A culpa, para a responsabilização civil, é entendida
no sentido lato, abrangendo tanto o dolo como a negligência, ou seja, todas as espécies de
comportamentos contrários ao direito, sejam intencionais ou não, mas sempre imputáveis ao
causador do dano.
Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou
censura do direito: o lesante, pela capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação,
podia e devia ter agido de outro modo166.
O comportamento causador do prejuízo é ilícito objectivamente desde que viole a diligência
objectiva que, relativamente aos interesses de terceiros, tutelados pela ordem jurídica, se impõe.
A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em
face das circunstâncias de cada caso (art. 421º, nº 2, do projecto).
164
O CCI não prevê expressamente esta matéria.
Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 7ª ed., Coimbra Editora, 1997, pág. 324.
166
Pires de Lima e Antunes Varela, no “C. Civil Anotado”, 4ª ed., vol. 1º, Coimbra Editora, 2010, pág. 474.
165
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Ou seja, a culpa é apreciada em abstracto, em face das circunstâncias de cada caso, pela
diligência de um homem médio em abstracto167.
Nos termos do art. 421º, nº 1, do projecto, é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da
lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
Porém, a jurisprudência portuguesa, para norma semelhante168 vem entendendo que a culpa será
de presumir quando houver inobservância de normas jurídicas, dispensando-se a sua prova em
concreto, desde que, o evento causador da lesão seja um daqueles que a lei pretende evitar
quando impôs a disciplina traduzida na norma regra violada.
Como já se referiu, a culpa pode consistir numa acção dolosa, em qualquer das suas
modalidades: dolo directo, necessário ou eventual, ou em mera culpa (culpa stricto sensu ou
negligência).
O dano
Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se
tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 497º do projecto)169. O cálculo efectua-se,
assim, pela chamada teoria da diferença.
Tal reconstituição é possível de alcançar através de reconstituição natural ou mediante o
pagamento de uma indemnização em dinheiro, quando aquela não é possível (art. 501º do
projecto).
167
Almeida e Costa, “Direito das Obrigações”, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1979, pág. 388.
Art. 487º do Código Civil Português de 1966.
169
Não existe norma semelhante no CCI.
168
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No entanto na responsabilidade civil, a indemnização nunca poderá exceder o montante dos
prejuízos que é a regra comum ou critério geral para fixação do montante da indemnização, quer
seja fundada em dolo como em culpa.
O dano ou prejuízo é sempre a ofensa ou lesão dum interesse. Consoante a natureza patrimonial
ou moral do interesse lesado, assim o dano poderá ser um dano patrimonial (avaliável em
dinheiro) ou moral (não avaliável em dinheiro).
Tanto os danos patrimoniais como os danos morais beneficiam de tutela legal; e a sua ofensa
pode acarretar sanções jurídicas civis (os danos morais são também ressarcíveis, como determina
o art. 430º, nº 1, do projecto)170.
Os danos causados pelo acto ilícito podem, em outra perspectiva, distinguir-se em danos
emergentes, se determinam uma diminuição efectiva do património preexistente, e lucros
cessantes, quando consistam na frustração de um ganho, duma expectativa legítima de aumento
de património (art. 499º do projecto).
O dano emergente compreende a redução do património do lesado, o que existia à data da lesão.
O lucro cessante compreende o acréscimo patrimonial que em virtude do dano deixará de
ocorrer171172.
170
O CCI não contém norma semelhante a esta mas é óbvio que a obrigação de indemnização abrange tanto os
danos patrimoniais como os danos morais. Este entendimento extrai-se com segurança da análise dos arts. 1365º a
1367º do CCI, que claramente incluem entre os danos indemnizáveis danos que não têm natureza patrimonial, como
sejam a “mutilação” resultante de ofensas à integridade física (art. 1371º) e a ofensa à honra ou bom nome de uma
pessoa (arts. 1372º e 1377º).
171
Manuel Neves Pereira, in “Introdução ao Estudo do Direito e às Obrigações”, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2001,
pág. 265.
172
Por exemplo, é indemnizável a expectativa que o lesado tinha de vir a auferir um determinado salário como
mecânico numa plataforma de exploração petrolífera, trabalho para o qual tinha já sido contratado, se, em virtude
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O art. 499º, nº 2, do projecto, prevê ainda a indemnização por danos futuros. Os danos futuros
são aqueles que no momento é previsível que venham a verificar-se173.
Nexo de causalidade
Nos termos do art. 498º do projecto, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos
que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Consagra-se a chamada teoria da causalidade adequada. O facto tem que ser causal do dano.
É a relação necessária entre o evento danoso e ação que o produziu. Não pode existir
responsabilidade civil sem a relação de causalidade entre o dano e a ação que o provocou.
3. Responsabilidade civil extracontratual pelo risco (ou objectiva)
A responsabilidade civil pelo risco consiste na reparação do dano, de modo a reconstituir a
situação alterada pela verificação do mesmo dano, a lesão de um interesse legítimo baseada não
na culpa mas no risco resultante de certas situações ou actividades, e que outrem vai assumir.
Trata-se de domínios em que o homem tira partido de actividades que, potenciando as suas
possibilidades de lucro, importam um aumento de risco para os outros174.
acidente de viação da responsabilidade do lesante, ou de agressão corporal, vier a perder um braço e, por esse
motivo, não poder mais ser contratado para tal trabalho.
173
O melhor exemplo é o da vítima de acidente de viação, que ainda precisa de realizar intervenções cirúrgicas para
recuperar dos danos corporais sofridos.
174
Carlos Alberto da Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed. Actualizada, Coimbra Editora, 1999, pág.
119.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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Dum ponto de vista positivo, a obrigação de indemnizar, na responsabilidade por risco, baseia-se
na justiça da imputação da obrigação de indemnizar o lesado àquele que beneficia da actividade
que produziu o dano.
Isso tanto pode suceder quando o dano seja produzido por facto ilícito e por culpa de terceiros
cuja actividade esteja directamente ao serviço daquele a quem a lei impõe também o dever de
indemnizar, como quando o risco de lesão de interesses de outrem resulta de actividades do
próprio agente, que com essas actividades lucra, ou que as organiza, embora não exista culpa na
sua forma de actuação.
O princípio da responsabilidade pelo risco tem vindo a sofrer grande incremento, como forma de
responsabilização dos promotores de certas actividades lucrativas, com especial incidências nas
novas áreas de intervenção dos direitos subjectivos, como sejam o direito do ambiente e o direito
do consumidor.
No que respeita à legislação vigente temos essencialmente:
A responsabilidade do comitente, prevista no art. 434º do Código Civil e no art. 1367º do CCI.
Para que se verifique a responsabilidade do comitente é necessário que exista uma relação de
comissão, ou seja, uma relação que tenha por conteúdo uma prestação realizada por conta e sob a
direcção do comitente175. Mais é necessária a culpa do comissário, ou seja, que o comissário
tenha actuado de tal forma que se tenha preenchido os referidos elementos da responsabilidade
civil subjectiva. O projecto prevê uma situação especial de responsabilidade do comitente para o
caso do uso de veículos, no art. 437º. Assim, se o acidente resultar de culpa do comissário (por
175
A situação mais comum será a da relação de trabalho.
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exemplo o condutor do veículo pertencente a uma sociedade comercial), o comitente (no
exemplo dado a própria sociedade comercial) também responde pelos danos causados.
Responsabilidade por danos causados por animais, prevista no art. 436º do projecto e no art.
1368º do CCI. A responsabilidade por danos causados por animais pode resultar de culpa do
dono ou da pessoa que usa o animal (pode mesmo haver dolo, e inerente responsabilidade
criminal, se o dono do animal ou quem o utiliza o incitar a atacar outra pessoa). Será o caso de o
dono do animal ou a pessoa que o utiliza não cuidar de o prender176. A responsabilidade pelo
risco existirá, pois, apenas para os casos em que o dono do animal ou a pessoa que tem a
obrigação de o guardar não age com culpa177. Ainda assim, existe obrigação de indemnização.
Responsabilidade por acidentes causados por veículos, prevista no art. 440º do projecto178. O
projecto parte do princípio que a circulação de veículos automóveis constitui uma actividade
perigosa, para concluir pela existência de responsabilidade objectiva pelos danos que de tal
circulação possam resultar, ainda que não se prove culpa de nenhum dos condutores dos
mesmos179. Mais, pode acontecer que apenas um veículo automóvel esteja envolvido e não se
176
O dono do animal ou quem o utiliza tem a obrigação de garantir que o mesmo não cause danos a terceiro. Por
exemplo, se o dono de um cão sabe que este é um animal perigoso e que habitualmente ataca as pessoas com quem
se cruza, se sair com o cão à rua, tem obrigação de açaimar o mesmo e prendê-lo, como forma de garantir que tal
não se verifica. Se não tomar esse cuidado age com culpa.
177
Por exemplo, pode acontecer que o animal fique solto por causa não imputável ao seu dono (uma derrocada que
faça desmoronar o muro do local onde o animal estava preso).
178
O CCI não prevê este tipo de responsabilidade.
179
Por exemplo, normalmente considera-se que a responsabilidade objectiva pela circulação é maior num veículo
pesado que num veículo ligeiro. Assim, se ocorrer um acidente entre um veículo pesado e um ligeiro, a medida da
obrigação de indemnizar será maior para o veículo pesado (importa, porém, considerar que, nos termos do nº 2 do
art. 440º se presume igual a medida da contribuição dos veículos na produção do acidente).
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
107
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prove a culpa do seu condutor180. Ainda aqui o mesmo estará obrigado a indemnizar nos termos
da responsabilidade objectiva prevista no art. 440º, nº 1.
Responsabilidade pelos danos causados por instalações de energia eléctrica ou gás (art. 443º do
projecto). Neste caso, porém, a responsabilidade objectiva é delimitada, não só pelos casos de
força maior, como ainda quando a instalação se encontrar em boas condições técnicas ao tempo
do acidente. É sempre objectiva a responsabilidade se o dano foi causado na condução ou entrega
de electricidade ou gás.
A responsabilidade pelo risco tem limites fixados nos arts. 442º e 444º do projecto 181. A
responsabilidade pelo risco, porque não se baseia na culpa do responsável, tem limites que
podem ser inferiores e até muito inferiores ao montante dos prejuízos.
4. Responsabilidade civil do Estado e outras pessoas colectivas de Direito Público
O art. 157º do projecto, refere-se às pessoas colectivas de Direito Privado, o art. 435º do
projecto, aplica o mesmo regime ao Estado e às pessoas colectivas de Direito Público, pelos
actos dos seus órgãos, agentes ou representantes no exercício de actividades de “gestão privada”.
A responsabilidade de Estado ou pessoas colectivas de Direito Público por actos ou funções
públicas dos seus órgãos ou funcionários rege-se por princípios diversos não contidos no Código
180
Por exemplo, se uma indivíduo tem um carro novo, que legitimamente supõe que está em perfeito estado de
funcionamento, e atropela uma pessoa que se encontrava na berma da estrada porque os travões deixaram de
funcionar por defeito de fabrico do veículo, ele não cometeu nenhum facto culposo, mas não deixa de se considerar
objectivamente responsável por indemnizar a vítima do acidente pelas lesões por esta sofridas.
181
Não existem no CCI.
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108
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Civil. É que então a responsabilidade do Estado ou outras pessoas colectivas de Direito Público
(na gestão pública) é mais ampla; não se limitando aos casos em que o funcionário tenha agido
ilicitamente e por culpa. Esta responsabilidade deve, pois, ser regulada por legislação especifica,
conforme previsto no art. 137º, nº 3, da Constituição.
Sucede, porém, que não existe ainda legislação emanada dos órgãos legislativos nacionais que
determine a medida da responsabilidade civil do Estado182. Nesta área encontra-se, por exemplo,
a responsabilidade decorrente da de condenação injusta em processo penal (art. 31º, nº 6, da
Constituição).
Os princípios da responsabilidade administrativa do Estado são mais amplos. Não importa
averiguar da culpa do agente, ou da culpa do próprio serviço. Não se questiona se houve um mau
funcionamento da atividade administrativa. Basta estabelecer a relação de causalidade entre o
dano sofrido pelo particular e a acção do agente ou do órgão público. Se o funcionamento do
serviço público (bom ou mau não importa) causou um dano, este deve ser reparado.
Analisa-se agora a responsabilidade civil do Estado, decorrente de actos de gestão privada.
Em relação a esta a situação é a mesma da responsabilidade do comitente. Havendo
responsabilidade subjectiva dos agentes do Estado, administrativos ou políticos, haverá sempre
responsabilidade objectiva do Estado (arts. 435º do projecto e 1367º do CCI).
182
Desconhece-se legislação sobre o assunto que vigorasse no território nacional à data de 25 de Outubro de 1999
(art. 1º da Lei nº 10/2003, de 10 de Dezembro) e que, portanto, ainda vigore em Timor-Leste. Em último caso deverá
aplicar-se o regime previsto para a responsabilidade civil por actos de gestão privada, por analogia.
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Em concreto pode ver-se o disposto no art. 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº 8/2003, de 18 de Junho
(Regulamento de Atribuição e Uso dos Carros do Estado)183. Porém, no nº 2 do mesmo preceito
estipulou-se que “são excluídos do parágrafo anterior os casos em que o acidente resulte, directa
ou indirectamente, de uma contraordenação grave ou muito grave cometida pelo agente do
Estado envolvido, nos termos dos artigos 140.º e 141.º do Código da Estrada”. Esta norma só
pode ser interpretada no sentido de o Estado poder exercer o direito de regresso contra o seu
funcionário (ou agente), o que significa que não o poderá exercer nos restantes casos.
Efectivamente, não poderá o Estado eximir-se à responsabilidade civil objectiva presviata no
CCI. Ou no projecto.
No mais deve considerar-se o que se expôs supra relativamente à responsabilidade civil do
comitente.
183
O Estado assume a responsabilidade dos seus agentes pelos danos pessoais e/ou materiais resultantes acidentes ou
incidentes que envolvam veículo do Estado, quando o respectivo condutor esteja a utilizar o veículo de forma
legítima.
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CAPÍTULO V – Noções Gerais de Contratos
1. O contrato
Contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios
da função social e da boa-fé objectiva, auto-disciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem
atingir, segundo a autonomia das suas próprias vontades184.
O contrato pressupõe necessariamente intervenção de duas ou mais pessoas que se põem de
acordo a respeito de determinada coisa. Sem o concurso de duas pessoas, pelo menos, impossível
surgir o contrato, não se podendo admitir que alguém seja ao mesmo tempo, credor e devedor de
si mesmo, o que viria a constituir verdadeiro contradictio in adjectis. Vejam-se os arts. 1233º e
1313º do CCI.
Elementos dos contratos:
a) A capacidade dos contratantes é o primeiro requisito para a validade dos contratos. Qualquer
pessoa pode contratar, desde que não seja absolutamente incapaz (arts. 1329º e 1330º do CCI e
64º e 248º do projecto).
b) Objeto lícito é o segundo elemento, como sendo a operação que os contraentes visaram a
realizar, o interesse que o ato jurídico tem por fim regular (arts. 271º do projecto e 1320º do
CCI).
184
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, in “Novo curso de direito civil - Obrigações”, vol. IV, Saraiva,
São Paulo, 2005, pág. 12.
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111
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c) O objeto do contrato, como o da obrigação, tem de ser possível, lícito e suscetível de operação
económica. Além disso, não só as coisas presentes como igualmente as futuras podem ser usadas
pelos contraentes. O objeto do contrato deve ser certo, ou, no mínimo, determinável.
d) O último requisito para a validade dos contratos é respeitante à sua forma, que deve ser legal:
a forma dá ser às coisas.
Principais princípios dos contratos:
a) Autonomia da vontade.
O contrato nasce de uma liberdade de contratar, liberdade esta que é denominada autonomia de
vontade, ou autonomia privada185.
É no princípio da autonomia da vontade que se funda o princípio da liberdade contratual, e este
consiste no poder de estipular livremente mediante acordo de vontades, a disciplina de seus
interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica186.
A autonomia de vontade e consequente liberdade contratual devem ser vistas sob dois aspectos, o
da liberdade de contratar propriamente dita, onde as partes de comum acordo estabelecem o
conteúdo do contrato e a liberdade de contratar, que é a faculdade de realizar ou não determinado
contrato, esta, mais utilizada ao se referir aos contratos de adesão.
185
Fernando Noronha, in “O direito do contrato e seus princípios fundamentais”, Saraiva, São Paulo, 1994, pág. 113.
Maria Helena Diniz, in “Curso de direito civil brasileiro.Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais”,
vol. 3, Saraiva, São Paulo, 2002, pág 32.
186
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112
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A regra geral é que, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o
conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes
as cláusulas que lhes aprouver (art. 340º do projecto).
b) Consensualismo. Basta o acordo de duas ou mais vontades para gerar um contrato válido.
c) Obrigatoriedade da convenção.
O princípio da obrigatoriedade da convenção ou do contrato consagra a ideia de que o contrato,
uma vez cumpridos os requisitos legais, torna-se obrigatório entre as partes, que dele não se
podem desligar senão por outro acordo187. O contrato constitui uma espécie de lei entre as partes,
pacta sunt servanda188.
Este princípio não é, porém, absoluto, podendo o tribunal modificar as cláusulas contratuais em
certas circunstâncias, por forma a equilibrar situações de manifesto desequilíbrio das posição
contratual das partes (princípio da equivalência das prestações).
d) Relatividade dos efeitos do contrato.
O contrato vincula apenas as partes que o celebram, não podendo ser oposto a pessoa que nele
não teve participação.
Pelo princípio da relatividade dos efeitos do negócio jurídico, o contrato não prejudica e nem
aproveita a terceiros, vinculando exclusivamente as partes que nele intervieram, pois o ato
negocial deriva do acordo de vontade das partes, sendo lógico que apenas as vincule, não tendo
187
Neste sentido o art. 341º, nº 1, do projecto e o art. 1338º do CCI.
Silvio Rodrigues, in “Direito civil - Dos contratos e das declarações unilaterais da vontade”, vol. 3, Saraiva, São
Paulo, 2002, pág. 15.
188
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113
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normalmente eficácia em relação a terceiros189.
Veja-se o art. 1315º do CCI, que claramente expressa este princípio. No mesmo sentido o art.
341º, nº 2, do projecto.
e) Princípio da boa-fé.
Em sentido objectivo, que é aquele que aqui interessa, a boa-fé constitui um princípio geral de
direito, um princípio normativo que implica a valoração da conduta das partes como honesta,
correcta e leal; é um princípio norteador de conduta, um padrão objectivo de comportamento, um
critério normativo de valoração190.
A boa-fé objectiva é o dever de agir de acordo com determinados padrões em função da situação
das contrapartes, uma vez que é necessário ponderar, casuisticamente, se estão reunidas as
condições suficientes para criar na contraparte um estado de confiança no negócio celebrado,
para poder a expectativa ser tutelada191.
A boa-fé é princípio fundamental dos contratos, quer na sua génese, ou seja, na fase de
celebração, quer na sua execução. Vejam-se os arts. 1338º do CCI e 218º e 696º, nº 2, do
projecto.
f) Ordem pública.
189
Maria Helena Diniz, ob. cit., pág 39.
Stela Marcos de Almeida Neves Barbas, in “Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ”, ano II, tomo 2º,
Casa do Juiz, Coimbra, 1994, pág. 13
191
Fernando Noronha, ob. cit., pág. 138.
190
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A ordem pública e os bons costumes, prevalece sobre o princípio da liberdade contratual,
cedendo esta quando as cláusulas contratuais contrariem aqueles princípios (arts. 271º do
projecto e 1339º do CCI).
A ideia de ordem publica e constituída por aquele conjunto de interesses jurídicos e morais que
incumbe a sociedade preservar, os quais não podem ser alterados por convenção entre
particulares.
2. Formação do contrato
Para sua formação, os contratos requerem a convergência de, no mínimo, duas vontades
coincidentes; ou consentimento; proposta (declaração que parte do proponente) e aceitação (que
parte do aceitante).
Negociações preliminares são prévias à formação dos contratos.Oo contrato não é obrigatório,
até porque ainda não existe enquanto tal. No entanto, pode surgir responsabilidade para os
participantes dessas negociações: responsabilidade pré-contratual (art. 218º do projecto)192.
Proposta é a firme declaração receptícia de vontade dirigida à pessoa com a qual pretendem
alguém celebrar um contrato, ou ao público (arts. 215º e 216º do projecto).
A proposta há de ser séria, inequívoca, precisa e completa. O conteúdo da proposta deve denotar
a intenção de celebrar o contrato.
192
O CCI não regula expressamente esta matéria.
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115
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Uma vez formulada (ressalvadas as exceções previstas em Lei), a proposta vincula o proponente
e, portanto, obriga a realização do contrato, caso haja aceitação eficaz (isto é, tempestiva,
incondicional e não seguida de retratação)193.
Aceitação é a concordância com a proposta (como o próprio nome indica, a aceitação). Pode
exteriorizar-se por declaração ou pela prática de actos (p. ex., pelo início do cumprimento ou por
actos de apropriação, como quem recebe um livro que não encomendou e inicia sua leitura ou se
comporta como seu dono), ou, até mesmo, pelo silêncio (silêncio conclusivo)194.
Se a aceitação contém modificações, restrições ou adições em relação ao que foi proposto, é de
se entender que houve contraproposta195.
O contrato não fica concluído enquanto as partes não houverem acordado em todas as cláusulas
sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo196.
3. Forma e prova dos contratos
A regra é a forma livre. Esta é constituida por qualquer meio de manifestação da vontade no
negócio jurídico, desde que não previsto em lei (art. 210º do projecto).
Porém, quando a lei exige forma especial, esta tem que ser observada, sob pena de nulidade do
contrato (art. 211º do projecto)197.
193
Art. 221º do projecto.
Art. 209º do projecto.
195
Art. 224º do projecto.
196
Art. 223º do projecto.
194
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116
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Quando a lei não exigir forma especial para o contrato, este pode ser provado por qualquer meio
legalmente admissível (art. 502º do CPC).
Mas, quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado
ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que
não seja de força probatória superior (art. 578º, nº 1, do CPC).
Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da
declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contando que,
neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório (art.
578º, nº 1, do CPC).
No primeiro caso trata-se daquilo a que se chama formalidade ad substantiam e no segundo
formalidade ad probationem.
Está-se em presença de uma formalidade ad substantiam, quando a lei se limita a exigir certo
documento como forma de declaração negocial, sem dizer mais nada198.
4. Interpretação dos contratos
Os artigos 227º a 229º do projecto do Código Civil se determinam as regras de interpretação das
declarações negociais, no artigo 230º do mesmo projecto prevê-se a ocorrência de questões
197
Embora não exista norma semelhante no CCI, as normas que prevêm formalidades especiais para os contratos
sancionam com a nulidade a sua inobservância.
198
Pinto Furtado, in “Manuel de Arrendamento Urbano”, vol. I, 4ª ed. actualizada, Almedina, Coimbra, 2007, págs.
450-455.
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117
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relacionadas com o objecto do contrato, que poderiam ter sido, mas não foram, regulamentadas
pelos contraentes e, consequentemente, os meios de integração da declaração negocial.
Tais meios integrativos são, em primeira linha, o recurso às normas supletivas, na medida em
que o normativo legal a que recorremos começa por referir que a sua doutrina só se aplica na
falta de disposição especial.
Em segundo lugar, apelar-se-á à vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto
omisso, ou seja, à sua vontade hipotética ou conjectural.
Por fim, se este critério integrativo se não mostrar operativo, por não haver coincidência entre as
vontades hipotéticas dos contraentes ou, havendo tal coincidência, o resultado apurado ser
injusto, adoptar-se-á a solução mais compatível com os ditames da boa fé.
Sobre esta matéria regulam os artigos 1347º, 1350º e 1351º.
Assim, para integrar os casos de omissão, prevê-se, para além do recurso aos costumes, será
considerado o elemento sistemático, as estipulações expressamente previstas e finalmente as
estipulações da lei.
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118
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DIREITOS REAIS
CAPÍTULO I – DEFINIÇÕES E CARACTERÍSTICAS
I. Definição
Direito real é o poder que se exerce sobre uma coisa e que se traduz na possibilidade de exigir de
todos os outros indivíduos o respeito do exercício desses poderes sobre a coisa199.
No plano interno o direito real caracteriza-se pelo tipo de poderes que podem ser exercidos sobre
a coisa. Por exemplo, direitos reais de gozo ou de garantia.
No plano externo o direito real caracteriza-se pelo poder de exigir dos outros a obrigação passiva
universal, o respeito pelo direito em concreto. Nomeadamente, os direitos de propriedade, de
usufruto, de servidão, de aforamento. Os direitos reais têm eficácia erga omnes. Ou seja, os
direitos reais individuais são impostos a todos os indivíduos, que têm que os respeitar200.
199
José de Oliveira Ascensão, in “Direito Civil – Reais”, Coimbra Editora (Coimbra), 5ª ed. (2000), pág. 15, a
propósito da origem histórica da expressão refere que a mesma deriva da figura actio in rem que se dirigia contra
uma coisa, por contraposição à actio in persona que se dirigia contra uma pessoa.
200
Dispenso-me da análise das várias teorias sobre a natureza dos direitos reais (nomeadamente as teorias clássica
ou realista e moderna ou personalista) e recomendo sobre o assunto a leitura da monografia de Diana Gomes
Carvalhinho, “Direitos Reais: Noções Gerais”, in “Revista Jus Navigandi”, ano 10, nº 739, Teresina (Brasil), 14 Julho
2005 (igualmente acessível em www.juspodivm.com.br). “Existem, pelo menos, duas formas radicalmente opostas
de conceber os direitos reais e de contrapô-los aos direitos pessoais: a teoria clássica ou realista e a teoria
moderna ou personalista. Em síntese, para a teoria clássica ou realista, os direitos reais devem ser vistos como um
poder direto e imediato sobre a coisa, enquanto os direitos pessoais traduzem uma relação entre pessoas, tendo
por objeto uma prestação. Por outro lado, os defensores da teoria moderna ou personalista sustentam,
basicamente, que o direito real não reflete relação entre uma pessoa e uma coisa, mas, sim, relação entre uma
pessoa e todas as demais”.
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119
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II. Princípios característicos dos direitos reais
São características fundamentais dos direitos reais: eficácia absoluta, inerência, sequela,
preferência, tipicidade, transmissibilidade, elasticidade, publicidade, e consensualidade.
a) Princípio da eficácia absoluta
Como resulta da própria definição do direito de propriedade, a principal característica dos
direitos reais é a sua eficácia absoluta201.
Quer isto dizer que os direitos reais são oponíveis erga omnes, atribuindo a seu titular o poder de
exercê-los em face de quem quer que seja e, em contrapartida, impondo a todas as pessoas,
indistintamente consideradas, o dever de respeitar o seu exercício202.
Os direitos reais são absolutos não porque não sofram quaisquer restrições, mas porque obrigam
toda a sociedade a um dever de abstenção, o dever de não perturbar o seu exercício por parte do
sujeito activo (o titular do direito).
Sobre esta matéria estabelece o art. 572º do CCI que presume-se que a propriedade está livre de
qualquer reclamação. Um indivíduo que reclame algum direito sobre os bens de outro indivíduo,
será obrigado a provar o direito que invoca203.
201
Este não é contudo entendimento unânime, conforme Menezes Cordeiro, in “Direitos Reais”, Lisboa: Lex
Edições Jurídicas, 1993, págs. 302 a 311.
202
Álvaro Moreira e Carlos Fraga, in “Direitos Reais: segundo as prelecções do Prof. Doutor C.A. da Mota Pinto ao
4º ano jurídico de 1970-71”, Almedina (Coimbra), 1971, pág. 44.
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120
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Por sua vez, estabelece o art. 1227º do projecto do Código Civil de TL que “O proprietário goza
de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe
pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.
b) Princípio da inerência
A inerência é uma consequência da eficácia absoluta dos direitos reais, e traduz-se na aderência
do direito real à coisa que constitui seu objecto, justificando, em última análise, a oponibilidade
erga omnes. Ou seja, a coisa continua a ser objecto do mesmo direito real, ainda que se verifique
a transmissão da mesma, independentemente do número que vezes que ocorra.
Por exemplo, o titular do direito de superfície sobre um imóvel, mantém o seu direito inalterado,
mesmo que se verifiquem várias transmissões do direito de propriedade sobre o imóvel objecto
do seu direito.
c) Princípio da sequela (Direito de sequela ou de seguimento)
A sequela é uma prerrogativa, característica ou faculdade dos direitos reais, igualmente
resultante do seu carácter absoluto.
203
Da versão em inglês, “Article 572. Each property shall be presumed to be free of any claim. An individual who
claims any right to another individual's assets, shall be obliged to prove that right”.
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121
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O direito segue a coisa, persegue-a, acompanha-a, podendo fazer-se valer seja qual for a situação
em que a coisa se encontre. Ou seja, ainda que outra pessoa se aproprie da coisa, o titular do
direito real pode sempre exercer sobre a coisa os poderes correspondentes ao seu direito204.
d) Princípio da preferência (Direito de preferência ou de prevalência)
Traduz-se na circunstância de os direitos reais constituídos sobre uma coisa prevalecerem sobre
os direitos de crédito incidentes sobre essa coisa e sobre os direitos reais posteriormente
constituídos sobre a mesma coisa, que se revelem total ou parcialmente incompatíveis com o
inicial205. Trata-se igualmente de característica resultante do carácter absoluto dos direitos reais.
e) Princípio da tipicidade
Os direitos reais estão sujeitos ao princípio da tipicidade ou do “numerus clausus”. Ou seja, não
podem existir outros direitos reais para além daqueles que estão tipificados na lei, nem podem
ser criados pelos particulares direitos reais com conteúdo diferente dos que estão legalmente
regulados.
Dessa forma, percebemos que um direito real é um direito tipificado normativamente, isto é, para
que um direito se qualifique como real, antes de tudo ele tem que estar elencado na lei,
delimitado legalmente.
204
A este propósito veja-se o art. 621º do CCI (na versão em ingles “Any individual may have his property title to
immovable assets, which he owns, acknowledged by the court of justice, within whose legal jurisdiction the assets
are located”). Veja-se igualmente o art. 1234º, nº 1, do projecto “O proprietário pode exigir judicialmente de
qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade”.
205
Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 62.
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O princípio da tipicidade está expressamente consagrado no artigo 1228º do projecto do novo C.
Civil206.
Já o CCI207208, à semelhança da generalidade dos sistemas jurídicos da altura não consagra
expressamente este princípio, sendo seguro, porém, que se regula de forma expressa todos os
direitos reais que considera admissíveis pelo ordenamento jurídico209. Esta preocupação é ainda
mais evidente na Lei Agrária de 1960210, conforme se pode ver da redacção dada ao artigo 16º, nº
1211.
f) Princípio da especialidade
206
Artigo 1228º («Numerus clausus») 1. Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito
de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante
de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional.
207
Forma como se referirá sempre o Código Civil Indonésio recebido como legislação nacional timorense nos
termos das disposições conjugadas dos arts. 165º da Constituição da RDTL, 3º, nº 1, do Regulamento da Untaet nº
1/1999, e 1º da Lei nº 2/2002, este com a interpretação expressa pelo art. 1º da Lei nº 10/2003, de 10 de
Dezembro. O regime jurídico indonésio iniciou a sua vigência no território nacional como consequência natural da
integração naquele país, operada por declaração do Presidente da República da Indonésia de 17-7-1976.
208
Toda a restante legislação indonésia a que se faça referência neste texto é legislação recebida internamente nos
termos das disposições legais referidas na nota anterior.
209
Veja-se o art. 528º do CCI.
210
Lei nº 5 de 1960 (UUPA) (Undang Undang No. 5 Tahun 1960 Tentang: Peraturan Dasar Pokok-pokok Agraria)
211
Hak-hak atas tanah sebagai yang dimaksud dalam pasal 4 ayat (1) ialah … (Na versão inglesa “The rights on land
as meant in paragraph (1) of Article 4 are as follows …”).
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
123
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Os direitos reais devem ter por objecto coisas individualizadas, coisas certas e determinadas.
Acrescenta o artigo 1224º do projecto do novo Código Civil, que só as coisas corpóreas, móveis
ou imóveis, podem ser objecto do direito de propriedade regulado neste código212.
Por outro lado, o direito real que incide sobre uma coisa é diferente do direito real, ainda que
porventura igual, que incida sobre outra coisa.
O facto de o direito dever incidir sobre uma coisa determinada não impede que, por exemplo,
possa incidir sobre uma universalidade213214.
g) Princípio da transmissibilidade
Como qualquer direito patrimonial o direito real é transmissível. Significa isto que a ligação
entre o direito e o seu titular é cindível, pode ser quebrada por vontade do titular ou por outra
causa. Esta característica traduz no fundo a alienabilidade e a hereditabilidade dos direitos
reais215.
Esta característica encontra-se particularmente acentuada no CCI que inclui as normas relativas
às sucessões por morte no seu Livro Dois216, que tem por título “Coisas”, e que regula apenas a
matéria respeitante aos direitos reais e as sucessões217.
212
No mesmo sentido o artigo 519º do CCI.
A definição das coisas compostas será efectuada infra a propósito da distinção das coisas.
214
“Está visto que as coisas colectivas, revistam elas a fisionomia de coisas compostas ou de universalidade de
facto, são compatíveis como objecto de direitos reais, com a ideia de que estes têm de ter como objecto uma coisa
certa e determinada. Isto, porque a universalidade ou a coisa composta são – elas próprias – uma forma de
determinação ou de individualização” (Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 100).
215
Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., págs. 103 e 104.
216
Capítulos XII a XVIII, arts. 830º a 1130º.
213
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
124
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c) Princípio da elasticidade
No caso dos direitos reais onerados ou limitados (por exemplo por usufruto, servidão, hipoteca),
a extinção do direito real menor faz expandir o direito real principal, reconstituindo-se a
propriedade plena do direito. “Sempre que estamos perante um direito real limitado, concorrem
dois direitos sobre o mesmo objecto: o direito de propriedade e o direito real limitado a certas
utilidades da coisa”, há uma concorrência de direitos. Assim, se o direito real menor se extinguir,
há uma imediata restauração da propriedade plena do direito de propriedade218219.
h) Princípio da publicidade
A constituição ou transferência de um direito real deve ser efectuada de forma pública, de modo
a ser conhecida de todas as pessoas220.
Esta necessidade de publicidade implica a obrigação do uso de forma especial (a escritura
pública) para a celebração dos contratos que impliquem a constituição ou disposição de direitos
217
A este propósito veja-se ainda o art. 20º, nº 2, da Lei Agrária Indonésia (UUPA) (“Hak milik dapat beralih dan
dialihkan kepada pihak lain”, na versão em inglês “A Hak milik can change hands and be transferred to other
parties”).
218
Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., págs. 113 e 114.
219
Veja-se o art. 20º, nº 1, da Lei Agrária Indonésia (UUPA) (“Hak milik adalah hak turun-menurun, terkuat dan
terpenuh yang dapat dipunyai orang atas tanah”, na versão em inglês “A Hak milik (right of ownership) is the
inheritable right, the strongest and fullest right on land which one can hold”.
220
Embora a questão dos registos das situação jurídica e das transmissões dos bens se tenha colocado
essencialmente relativamente aos bens imóveis, existem bens móveis, nomeadamente, ou por ora
essencialmente, os veículos automóveis, relativamente aos quais a questão da necessidade do registo se tem
colocado.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
125
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sobre imóveis, nomeadamente a sua alienação (art. 617º do CCI221 e art. 808º do projecto do
novo Código Civil222).
Relativamente ao registo dos actos de oneração ou disposição sobre bens imóveis o projecto do
novo Código Civil não lhe atribui efeito constitutivo, pelo que os actos efectuados com
observância do formalismo legal produzem imediatamente efeitos jurídicos223. Ou seja, o
adquirente passa a ser proprietário do imóvel, independentemente da entrega do imóvel ou do
registo224.
O CCI impõe um regime de efeito constitutivo do registo ao determinar que a transferência do
direito efectuada por escritura pública só se efectiva com o registo da mesma225.
Mais exige que a prova da venda só possa ser efectuada mediante certidão do registo 226, assim se
reforçando o princípio da publicidade do acto227.
221
Na versão em ingles “All deeds, by virtue of which immovable assets are disposed of, bequeathed, distributed,
encumbered, or transferred, shall be rendered invalid unless drawn up in an authentic form”.
222
“O contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública”.
Importa contudo ter presente que, normalmente, a precedência do registo pode ter consequências jurídicas
importantes, devido ao princípio da protecção de terceiros de boa fé, no caso de nova alienação de imóvel por
quem já havia alienado o mesmo alienado anteriormente a outrem.
224
Princípio da consensualidade (a constituição e transmissão dos direitos reais resultam do contrato, não sendo
exigida a tradição da coisa).
225
Art. 616º (“The delivery or order of immovable assets shall be effected by publication of the deed, in the
manner stipulated in article 620”).
223
226
“Evidence of the sale of the assets shall be in the form of excerpts from the roll or registers of the auction
department in the customary format effected with the assistance of the aforementioned department” (art. 617º);
“the public notification shall take place:- by submitting to the office of the registrar of the mortgages within whose
area the immovable assets to be delivered or ordered are located, an authentic and complete copy of the
authentic deed or of the judgment, and by the recording of the copy in the register designated thereto” (art. 620º).
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
126
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A mesma preocupação de publicidade resulta ainda do disposto no art. 19º da Lei Agrária
Indonésia228. Porém, por se tratar de uma norma programática dirigida ao próprio Governo da
República da Indonésia, não se afigura que a mesma tenha aplicação na RDTL.
Já a nova proposta de lei de Regime Especial Para a Definição da Titularidade dos Bens Imóveis
(mais conhecida como Nova Lei das Terras), manifesta iguais preocupações de publicidade
(além da própria atribuição de direitos)229.
III. O registo
O registo predial é forma de expressão máxima do princípio da publicidade supra referido.
O registo permite conhecer a situação exacta dos bens imóveis, nomeadamente a titularidade do
direito e propriedade e encargos que possam onerar o direito, por forma a que o potencial
adquirente do bem tenha conhecimento exacto de todos. Ou seja, o fim do registo é manifestar o
estado jurídico da propriedade230.
Relativamente ao registo, o problema que se tem colocado em Timor-Leste consiste em
determinar a solução a dar aos casos das transacções jurídicas tendo por objecto bens imóveis
227
O mesmo se aplica aos casos previstos nos arts. 617º a 619º ainda do CCI.
“Untuk menjamin kepastian hukum oleh Pemerintah diadakan pendaftaran tanah diseluruh wilayah”, na versão
em inglês “To guarantee legal certainty, the Government is to implement land registration throughout the whole
territory …”.
228
229
“A presente lei estabelece o regime especial para a definição da titularidade imobiliária por meio do
reconhecimento e da atribuição de primeiros direitos de propriedade de bens imóveis da República
Democrática de Timor-Leste” (art. 1º, nº 1).
230
José Dias Ferreira, in “Codigo Civil Portuguez Anotado”, vol. II, Lisboa, 1870, pág. 442.
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127
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durante o período em que não havia notários nacionais e tendo em consideração a inexistência de
registo predial.
Uma das soluções mais frequente foi a celebração de contratos escritos com a chancela de um ou
mais advogados, que assim procuravam dar alguma certeza jurídica ao acto de transmissão do
direito sobre bens imóveis. Mas também se verificaram muitas transmissões de imóveis por mero
escrito particular ou por acordo verbal.
Com respeito por entendimento diverso, afigura-se não se poder atribuir a tais actos a eficácia
jurídica pretendida, ou seja, a virtualidade de operarem a transmissão do direito sobre o bem
imóvel, ou a constituição de qualquer ónus sobre o mesmo. De facto, não se afigura que a
situação excepcional própria da construção, ou reconstrução das infra-estruturas jurídicas
nacionais possa permitir a omissão de formalidades consideradas essenciais pela generalidade
dos ordenamentos jurídicos.
Por outro lado, não se pode ignorar a reafirmação da obrigação da celebração mediante escritura
pública dos actos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão
ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície ou de
servidão sobre coisas imóveis, consagrada no art. 37º, nº 2, al. a), do Regime Jurídico do
Notariado (Decreto-Lei nº 3/2004, de 4 de Fevereiro)231, que está em vigor em todo o território
nacional. Ou seja, o próprio legislador entendeu não atribuir relevância jurídica à aludida
situação.
231
Este diploma entrou em vigor no dia 7 de Março de 2004 (art. 79º).
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
128
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O que não quer dizer que tais contratos não possam produzir efeitos jurídicos, seja como meio de
transmissão da posse sobre os imóveis, nos termos do art. 543º do CCI232233, seja como facto
gerador de obrigações entre as partes contratantes.
Relativamente aos actos praticados no período da colonização portuguesa ou ocupação indonésia
a questão não se coloca, sendo obrigatória a formalidade da escritura pública234.
Quanto ao registo, nos termos do art. 949º do Código Civil Português de 1867, entre outros,
estavam sujeitos a registo “as transmissões de propriedade immovel, por titulo gratuito ou
oneroso” (§ 4º)235.
O registo, tal como se veio a manter posteriormente (enquanto vigorou a legislação portuguesa),
visava apenas dar publicidade ao acto e não tinha natureza constitutiva. Assim, se António
adquirisse por contrato de compra e venda um prédio a Bernardo, ainda que não registasse tal
aquisição do direito, podia sempre impor o mesmo contrato ao Bernardo, uma vez que este se
encontrava vinculado pelo contrato celebrado, não podendo opor-se o Bernardo invocando o
facto de no registo estar ainda inscrito como titular do direito de propriedade.
232
Situação que se analisará infra aquando do estudo da posse. No projecto veja-se o art. 1178º (“Aquele que
houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do
antecessor”).
233
Veja-se o acórdão do TR de 8 de Junho de 2010, processo nº 05/Agravo/Cível/2009/TR, relator Rui Penha.
234
Art. 875º do Código Civil Português de 1966, e o art. 617º do CCI. No âmbito do Código Civil Português de 1867,
a compra e venda e a doação de bens imóveis teria que ser realizada mediante escritura pública, ou, pelo menos,
mediante escrito particular, no caso de imóveis com valor inferior a cinquenta mil réis (para a compra e venda o
art. 1590º e para as coações o art. 1459).
235
O Código Civil Português de 1867 (conhecido por Código Civil de Seabra) vigorava em todo o território de
Portugal, incluindo as chamadas províncias ultramarinas, onde se incluía Timor-Leste, desde 18 de Novembro de
1869, conforme o art. 1º do Decreto de 18 de Novembro de 1869, que determinou a sua aplicação imediata a todo
o território ultramarino, independentemente da sua publicação nos Boletins Oficiais dos diversos territórios (art.
2º).
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
129
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Porém, se o Bernardo vendesse de novo o mesmo o mesmo prédio a Carlos, procedendo este ao
registo da sua aquisição, sem que o António o fizesse antes, então o Carlos poderia opor ao
António o registo para ficar ele com o prédio. É que, quando adquiriu o prédio, por imposição do
princípio da publicidade, tudo se passou como se o Bernardo fosse o dono do mesmo. Resta a
António exigir uma indemnização a Bernardo por ter alienado o prédio que lhe havia vendido a
ele.
Ou seja, relativamente a terceiros os títulos sujeitos a registo só produzem efeitos desde que são
efectivamente registados (art. 951º do Código Civil de Seabra)236.
Este regime manteve-se inalterado após a entrada em vigor do Código Civil Português de 1966237
(que veio substituir o Código de Seabra), conforme resulta dos arts. 2º. 7º, nº 1, e 9º, nº 1, do
Código de Registo Predial Português de 1967, aprovado pelo Decreto-Lei nº 47.611, de 28-31967238.
Os terceiros de boa fé, com o título de aquisição do seu direito devidamente registado,
beneficiavam ainda de protecção no caso de declaração de nulidade ou anulação do negócio
jurídico respeitante ao bem imóvel por si adquirido e registado, celebrado antes da sua aquisição,
nos termos do art. 291º, nº 1, do Código Civil Português de 1966 239. Por exemplo, se Bernardo
236
Veja-se José Dias Ferreira, in “Codigo Civil Portuguez Anotado”, vol. II, Lisboa, 1870, pág. 388. O art. 1549º do
mesmo Código Civil de Seabra determinava igualmente, a propósito da compra e venda, que “em relação a
terceiro, a venda, sendo de bens immobiliarios, só produzirá effeito, desde que for registada”.
237
Aprovado pelo Decreto-Lei nº 47 344, de 25 de Novembro de 1966, e tornado aplicável nas então províncias
ultramarinas (designadamente em Timor-Leste), a partir de 1 de Janeiro de 1968, conforme o art. 2º, nº 1, da
Portaria do Ministério do Ultramar nº 22.869, de 4-9-1967.
238
Alterado pelo Decreto-Lei nº 49.053, de 12-6-1969.
239
Artigo 291º (Inoponibilidade da nulidade e da anulação) “1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio
jurídico que respeite a bens imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre
os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
130
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viesse invocar a nulidade de contrato, ou anulação de contrato de compra e venda que celebrara
com António, se este já tivesse vendido a Carlos, que desconhecia o alegado vício, tendo
adquirido o bem com case no que constava do registo, a declaração de nulidade ou a anulação do
primeiro negócio não prejudicaria o seu direito, sem prejuízo do disposto no nº 2 do referido
artigo.
Nos termos do art. 8º do aludido Código de Registo Predial Português de 1967, o registo
definitivo constituía presunção de que o direito definitivamente registado pertencia à pessoa em
nome da qual estava registado.
O CCI, como já se viu, vai ainda mais longe, impondo o efeito constitutivo do registo e exigindo
certidão do registo da venda ou outro tipo de transmissão ou constituição de ónus ou encargos
sobre imóveis, para prova dos mesmos (art. 617º)240.
Conforme disposto do art. 23º, nº 1, da Lei Agrária Indonésia, o direito de propriedade (hak
milik), toda e qualquer transferência afectando tal direito, a anulação (ou declaração de nulidade)
do mesmo a constituição de ónus sobre o direito tem que ser registado241.
de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio. 2. Os direitos de
terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à
conclusão do negócio. 3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição
desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável”.
240
Nos termos do art. 578º, nº 1, do CPC, “Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento
autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro
documento que não seja de força probatória superior”.
241
“Hak milik, demikian pula setiap peralihan, hapusnya dan pembebanannya dengan hak-hak lain harus
didaftarkan menurut ketentuan-ketentuan yang dimaksud dalam pasal 19” (na versão em ingles, “A hak milik,
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
131
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A Lei Agrária Indonésia sem referir a presunção, vem dizer que o registo serve como “forte meio
(ou ‘instrument’) de prova” (art. 23º, nº 2)242.
De acordo com o estabelecido no art. 2º, als. g) e h), do Decreto Lei nº 12/2008, de 30 de Abril
(Estatuto Orgânico do Ministério da Justiça), são atribuições do Ministério da Justiça: organizar
e prestar serviços de administração e cadastro de bens imóveis em todo o território nacional e
promover as medidas de implementação necessárias à gestão do património imobiliano do
Estado e estabelecer e garantir os serviços de registo e de notariado243.
IV. Função social (questão da nacionalidade)
Nos termos do art. 54º, nº 2, da Constituição da RDTL, a propriedade privada não deve ser usada
em prejuízo da sua função social.
A este propósito refere-se no preâmbulo da Lei nº 1/2003, de 10 de Março (Regime Jurídico dos
Bens Imóveis) “a Constituição da República Democrática de Timor-Leste estabelece, no seu
every transfer affecting a hak milik, the nullification of a hak milik, and the encumbering of a hak milik with other
rights must be registered in accordance with the provisions referred to in Article 19”).
242
“Pendaftaran termaksud dalam ayat (1) merupakan alat pembuktian yang kuat mengenai hapusnya hak milik
serta sahnya peralihan dan pembebanan hak tersebut” (na versão em ingles, “The registration referred to in
paragraph (1) shall serve as a strong instrument of evidence concerning the nullification of a hak milik and
concerning the validity of the transfers and encumbrances affecting the said right”).
243
Sobre a situação actual veja-se o Relatório da missão de trabalho em timor-leste de equipa técnica do Instituto
dos Registos e do Notariado do Ministério da Justiça de Portugal, elaborado no âmbito do Acordo Bilateral de
cooperacão entre os Ministérios da Justiça de Timor-Leste e de Portugal.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
132
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artigo 54°, os princípios gerais relativos à propriedade privada, reconhecendo inequivocamente
esse direito e referindo que ela deve ter uma função social e que só cidadãos nacionais têm
direito à propriedade privada da terra.
Embora no CCI não se encontre igualmente norma expressando claramente a função social dos
direitos reais, esta encontra-se fortemente vincada na Lei Agrária Indonésia de 1960, que lhe
atribui carácter verdadeiramente “sagrado”244. Assim, encontra-se expressamente consagrado no
art. 6º da Lei a função social dos direitos sobre a terra245.
Manifestação desta função social do direito de propriedade encontra-se no nº 4 do mencionado
art. 54º da Constituição, ao preceituar que só os cidadãos nacionais têm direito à propriedade
privada da terra.
A questão da exigência da nacionalidade para a titularidade do direito de propriedade plena
vigorava já no território nacional, por aplicação dos arts. 9º, nº 1, e 21º, nº 1, da Lei Agrária
Indonésia, devidamente adaptada à RDTL246247248.
244
Art. 1º, nº 2 (“Seluruh bumi, air dan ruang angkasa, termasuk kekayaan alam yang terkandung didalamnya
dalam wilayah Republik Indonesia, sebagai karunia Tuhan Yang Maha Esa adalah bumi, air dan ruang angkasa
bangsa Indonesia dan merupakan kekayaan nasional”, ou, na versão em ingles, “All the earth, water, and airspace,
including the natural resources contained therein, which exist within the territory of the Republic of Indonesia as
gifts from the Only One God, are the Indonesian nation’s earth, water, and airspace and constitute the nation’s
wealth”).
245
“Semua hak atas tanah mempunyai fungsi social” (“All land rights have a social function”).
Os expatriados podem apenas ser titulares do direito de uso, conforme Elucidation of Act No. 5 of 1960 Re
Basic Provisions Concerning The Fundamentals of Agrarian Affairs, ponto II (5) (Orang-orang asing dapat
mempunyai tanah dengan hak pakai yang luasnya terbatas) (“Expatriates can only have a hak pakai (right of use) to
land of limited dimensions”).
246
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
133
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Como consequência, encontram-se os Tribunais impedidos de julgar acções judiciais no sentido
de ser reconhecido o direito de propriedade a um cidadão estrangeiro.
O Tribunal de Recurso tem entendido que não se trata de saber se quem invoca o direito de
propriedade possui ou não documento de identificação emitido pelas autoridades de Timor-Leste,
o que apenas será necessário para a nacionalidade adquirida, mas apenas se preenche os
requisitos legais para poder invocar a nacionalidade originária, conforme disposto nos arts. 3º, nº
2 e nº 3, da Constituição, e no art. 8º, nº 1 e 2, da Lei da Nacionalidade (Lei nº 9/2002)249.
A questão da nacionalidade de quem invoca o direito de propriedade é considerada condição para
a procedência da pretensão, e não um pressuposto processual250251.
No acórdão de 2-2-2010, processo nº 07/2009, o Tribunal de Recurso concluiu ser possível a
titularidade do direito de propriedade sobre um imóvel a cidadãos estrangeiros desde que casados
com um nacional timorense, na condição de tal imóvel estar abrangido pela comunhão de bens
resultante do casamento252253.
247
Assim, a questão coloca-se hoje relativamente aos cidadãos indonésios (os quais podiam ser proprietários de
bens imóveis no território de Timor-Leste antes da independência nacional e deixaram agora de ter tal
possibilidade).
248
Com relevância sobre este assunto veja-se ainda o Regulamento da UNATET nº 2000/27, sobre a proibição
temporária de transacções de terras em Timor-Leste por cidadãos indonésios não habitualmente residentes em
Timor-Leste e por empresas indonésias.
249
Acórdãos do TR de 10-3-2010, processo nº 23/2001, e processo nº 12/2009, relator José Luís da Goia.
Acórdãos do TR de 10-3-2010, processo nº 23/2001, e processo nº 12/2009, relator José Luís da Goia.
251
Tratando-se de condição para a procedência da pretensão, e não mero facto impeditivo do direito, o respectivo
ónus de prova impende sobre quem invoca o direito e não sobre a parte contrária (art. 510º, nº 1, do CPC).
252
Escreveu-se em tal acórdão (relator José Luís da Goia) “embora o autor não possa ele mesmo ser titular do
direito de propriedade sobre o terreno dos autos, nada obsta a que se considere o direito adquirido pela sua
mulher através do casamento com o autor. É certo que o autor beneficia indirectamente de tal direito da cidadã
250
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No acórdão de 16-6-2009, processo nº 06/2003254, o Tribunal de Recurso decidiu que “o art. 54º,
nº 4, da CRDTL (…) dispõe sobre a propriedade privada da terra e não quanto à posse ou
propriedade do prédio nela incorporado”, o que permite a conclusão que a aludida proibição não
tem aplicação aos casos de prédios urbanos. Com todo o respeito discordo de tal posição, embora
possa parecer ser esse o entendimento que resulta ainda da Lei Agrária Indonésia.
Efectivamente, a construção ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência
constitui parte integrante do imóvel255.
Sendo assim, quer a construção, quer o solo onde a mesma é implantada perdem a sua
individualidade e passa a ser coisa única. Daí que se conclua que o prédio ainda está abrangido
pela proibição da norma constitucional, uma vez que ele inclui o terreno onde foi implantado.
Por outro lado, como se verá, se os cidadãos estrangeiros não podem ser titulares do direito de
superfície, sobre prédios urbanos, ou seja edifícios256, por maioria da razão, não podem ser
titulares do direito de propriedade sobre o mesmo tipo de bens.
Relativamente às pessoas colectivas, nomeadamente sociedades comerciais, resulta do art. 21º, nº
2, que a possibilidade de aquisição do direito de propriedade, ainda que para sociedades
constituídas
exclusivamente
por
pessoas
singulares
nacionais,
está
dependente
de
nacional sua mulher, por força do mesmo regime. Porém, o direito passa a pertencer a esta, pelo que nunca o
autor poderá beneficiar do direito de propriedade, por exemplo, em caso de divórcio”.
253
Contrariamente ao que se escreveu, por manifesto lapso, em tal acórdão, nos termos do art. 35º da Lei
Indonésia nº 1/74, o regime supletivo de bens no casamento é o regime de comunhão de adquiridos, pelo que,
salvo convenção antenupcial que estabeleça outro regime, só pode haver comunhão (e a doutrina exposta no
acórdão só é válida) para os casos em que os bens são adquiridos durante o casamento.
254
Relator José Luís da Goia.
255
Vejam-se os arts. 195º, nº 3, do projecto do novo C. Civil e 500º do CCI.
256
Art. 36º, nº 1, da Lei Agrária de 1960 (UUPA).
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135
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regulamentação governamental, de determinação do governo ou de acto administrativo (art. 22º,
nº 2)257258.
Importa ainda considerar que, nos termos do art, 1º, al a), do Regulamento nº 2000/27 da
UNTAET, qualquer contrato ou acordo celebrado por um cidadão da Indonésia que
habitualmente não resida em Timor Leste para vender qualquer interesse ou direito relativo a
terra no território de Timor Leste, não produz qualquer efeito.
“A ‘ratio legis’ do Regulamento em questão afigura-se evidente. Tratava-se então de impedir que
257
Conforme Elucidation of Act No. 5 of 1960 Re Basic Provisions Concerning The Fundamentals of Agrarian Affairs,
ponto II (5) (Demikian juga pada dasarnya badan-badan hukum tidak dapat mempunyai hak milik (pasal 21 ayat 2).
Adapun pertimbangan untuk (pada dasarnya) melarang badan-badan hukum mempunyai hak milik atas tanah,
ialah karena badan-badan hukum tidak perlu mempunyai hak milik tetapi cukup hak-hak lainnya, asal saja ada
jaminan-jaminan yang cukup bagi keperluan-keperluannya yang khusus (hak guna-usaha, hak gunabangunan, hak
pakai menurut pasal 28, 35 dan 41) (“corporate bodies basically cannot have a right of ownership [Article 21(2)] on
the consideration that that corporate bodies do not need to have a right of ownership but another right will do for
them as long as it is equipped with an adequate guarantee for the fulfillment of their specific requirements (e.g.
hak guna-usaha, hak guna-bangunan, or hak pakai according to Articles 28, 35, and 41)”).
258
Contra parece pronunciar-se o Relatório Sobre os Resultados de Pesquisa, Recomendações Políticas
para a Lei Sobre os Direitos de Terra e Restituição de Título, Programa de Legislação de Terras Apoiado
pelo USAID, Julho 2004, embora entenda ser desejável clarificação legislativa, nos termos do qual “o
artigo 54, parágrafo 4 do Constituição não excluiria pessoas jurídicas ou sociedades comerciais de
Timor-Leste. Este ponto de vista é compartilhado por aqueles oficiais seniores do governo e membros do
parlamento que foram consultados pelo LLP, assim como os participantes na mesa redonda do dia 30 de
Junho de 2004 sobre direitos de terras. Praticamente todos os grupos de trabalho na mesa redonda
concordaram que as entidades legais de Timor-Leste devem ser intituladas a propriedade perfeita. As
seguintes sugestões foram feitas nesta consideração: As sociedades comerciais Timorenses e outras
pessoas jurídicas devem ter direito a possuir terra. A Lei deve esclarecer a definição de `nacionais´ e
`cidadãos´. A nacionalidade de Timor-Leste numa sociedade comercial deve ser determinada por um
capital mínimo (de 50-60%) empreendido por pessoas de Timor-Leste. Isto permitiria a participação de
investidores estrangeiros em sociedades comerciais de Timor-Leste. Se uma sociedade comercial
declara falência, toda a terra que for possuída por ela deve reverter para o estado”. Afigura-se, porém,
como vem sendo comum, que este entendimento ignora o sistema jurídico existente no momento em
Timor-Leste, como seja a aludida Lei Agrária (que é legislação nacional timorense), e que regula de
forma que se afigura clara esta matéria.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
136
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nacionais indonésios, sem qualquer ligação a Timor Leste, pudessem beneficiar da situação de
ocupação do território que se verificava antes da independência. A referência a cidadãos da
Indonésia não habitualmente residentes em Timor Leste tem precisamente esse significado.
Assim, a venda de imóveis por cidadãos da Indonésia que habitualmente residissem em Timor
Leste já não se encontra abrangida pela cominação prevista no referido art. 1º do Regulamento
em causa” (acórdão do Tribunal de Recurso de 10-3-2010, processo nº 12/2009, relator José Luís
da Goia)259.
A Lei Agrária Indonésia (UUPA), como já se viu, vai ainda mais longe, ao impedir a aquisição
(ou titularidade) do direito de superfície, quer sobre terreno agrícola, quer sobre prédio urbano a
pessoas singulares que não sejam nacionais, ou mesmo a pessoas colectivas (nomeadamente
sociedades comerciais) que não estejam reconhecidas segundo a legislação nacional, ou
domiciliadas em território nacional260.
A questão que se coloca consiste em saber se esta condição também terá aplicação na RDTL,
face à redacção menos restritiva da própria Constituição. Ou seja, se a legislação ordinária
indonésia, recebida no sistema jurídico nacional, pode estabelecer restrições à titularidade de
direitos ainda mais amplas que aquela que resulta do texto constitucional.
259
Decidiu-se ainda no mesmo acórdão que “tratando-se de facto impeditivo do direito invocado pelo autor,
impende sobre o réu o ónus de prova da verificação dos requisitos constantes do referido Regulamento, nos
termos do art. 510º, nº 2, do CPC”.
260
Arts. 30º, nº 1, (Yang dapat mempunyai hak guna-usaha ialah. a. warga-negara Indonesia; b. badan hukum yang
didirikan menurut hukum Indonesia dan berkedudukan di Indonesia) e 36º, nº 1 (Yang dapat mempunyai hak gunabangunan ialah a. warga-negara Indonesia; b. badan hukum yang didirikan menurut hukum Indonesia dan
berkedudukan di Indonesia) (na versão em inglês “Those eligible for a hak guna … are as follows: a. Indonesian
citizens, and b. bodies corporate incorporated under Indonesian law and domiciled in Indonesia”).
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
137
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CENTRO DE FORMAÇÃO JURÍDICA
Afigura-se que a resposta terá que ser positiva. Efectivamente, a Constituição estabelece
expressamente que “Todo o indivíduo tem direito a propriedade privada, podendo transmiti-la
em vida e por morte, nos termos da lei”261. Sendo assim, a Lei Fundamental acolhe as restrições
constantes da Lei ordinária relativas à limitação da titularidade do direito de propriedade,
nomeadamente da lei que já existia anteriormente e que a Constituição acolheu 262, como a
aludida Lei Agrária Indonésia (UUPA).
Ora, se o titular do direito de propriedade só pode dele dispor nos termos da lei, então a
disposição dos direitos reais menores sobre os imóveis, como seja o direito de superfície,
também não podem ser constituídos contra a disposição legal supra referida, pelo que os
cidadãos estrangeiros e as pessoas colectivas (nomeadamente sociedades comerciais) que não
estejam reconhecidas segundo a legislação nacional, ou domiciliadas em território nacional não
podem sequer ser titulares daquele direito263264.
Com esta questão está ainda relacionada a do direito de propriedade, uso e posse útil das terras,
que, nos termos do art. 141º da Constituição serão regulados por lei.
261
Art. 54º, nº 1.
Art. 165º.
263
O que pode ter sérias reprecurssões ao nível do investimento estrangeiro, tão necessário no estado actual de
construção do novo país da RDTL. Efectivamente, fica vedado o uso do mecanismo legal mais adequado para a
hipótese de alguém construir nomeadamente infraestruturas turisticas ou de outra natureza, uma vez que os
restantes mecanismos jurídicos não asseguram de forma tão eficaz a possibilildade de uso das mesmas pelo
período mínimo necessário à recuperação do investimento feito.
264
Porém, o art. 55º, nº 2, da Lei Agrária (UUPA), prevê a possibilidade de, excepcionalmente, o Estado poder
conceder o direito de superfície sobre bens do seu domínio a empresas estrangeiras, que não preencham os
requisitos dos aludisos arts. 30º, nº 1, e 36º, nº 1, desde que tal seja considerado necessário no acto que o autoriza
(Hak guna-usaha dan hak guna-bangunan hanya terbuka kemungkinannya untuk diberikan kepada badan-badan
hukum yang untuk sebagian atau seluruhnya bermodal asing, jika hal itu diperlukan oleh Undang-undang yang
mengatur pembangunan nasional semesta berencana) (na versão em inglês, “The possibility for the granting of a
hak guna-usaha and hak guna-bangunan to corporate bodies whose capital is partly or wholly foreign is open only
in the case where it is deemed necessary to grant such rights to such corporate bodies in the light of an act which
regulates pembangunan nasional semesta berencana (well-planned total, national development)”).
262
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
138
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V. As coisas
Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas265.
Consideram-se fora do comércio jurídico todas as coisas que não podem ser objecto de direitos
privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza,
insusceptíveis de apropriação individual (art. 193º, nº 2, do projecto do novo Código Civil).
Vejam-se os arts. 519º a 526º do CCI.
As coisas são imóveis ou móveis, simples ou compostas, fungíveis ou não fungíveis,
consumíveis ou não consumíveis, divisíveis ou indivisíveis, principais ou acessórias, presentes
ou futuras (art. 194º do projecto do novo Código Civil)266.
São coisas imóveis os prédios rústicos e urbanos, as águas, as árvores, os arbustos e os frutos
naturais, enquanto estiverem ligados ao solo, os direitos inerentes aos imóveis e as partes
integrantes dos prédios rústicos e urbanos (art. 195º, nº 1, do projecto do novo Código Civil)267.
265
Art. 193º, nº 1, do projecto do novo C. Civil. Para o CCI são coisas os bens ou direitos que podem ser objecto de
propriedade (art. 499º). Vejam-se igualmente os arts. 527º e 528º do CCI.
266
Para o CCI as coisas são tangíveis ou não tangíveis (art. 503º) e móveis ou imóveis (art. 504º). Os bens móveis
podem ainda dividir-se em consumíveis e não consumíveis, definindo-se os consumíveis como aqueles que
desaparecem devido ao uso (art. 505º).
267
Vejam-se os arts. 500º e 506º a 508º do CCI. Particularmente significativa é a descrição constante dos arts. 506º
e 507º do CCI, da qual resulta evidente, por um lado, o princípio da ligação ao solo como distintivo da classificação
do bem como imóvel, por outro lado, o princípio da universalidade de certas coisas, como sejam as fábricas, que,
por serem imóveis (devido ao facto de estarem instaladas em construções permanentemente fixadas no solo)
transmitem tal qualidade de bem imóvel aos bens móveis que as equipam.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
139
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Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que
não tenham autonomia económica268269.
São partes componentes dos prédios rústicos as construções que não tenham autonomia
económica, tais como as adegas, os celeiros, as construções destinadas às alfaias agrícolas.
O prédio rústico abrange também o espaço aéreo e o subsolo correspondentes. Nos termos do art
1266º, nº 1, do projecto do novo Código Civil, a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo
correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja
desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico. Igual é a redacção do art. 571º do CCI e, de
forma ainda mais impressiva, o art. 4º, nº 2, da Lei Agrária Indonésia270.
Entende-se por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo com os terrenos que lhe
sirvam de logradouro (art. 195º, nº 2, do projecto do novo Código Civil). Edifício incorporado é
aquele que se encontra unido ou ligado ao solo, fixado nele com carácter de permanência por
alicerces, colunas, estacas ou qualquer outro meio271. Uma casa desmontável não é prédio
urbano.
268
Art. 195º, nº 2, do projecto do novo Código Civil.
O CCI não estabelece a distinção entre prédios rústicos e prédios urbanos.
270
“Hak-hak atas tanah yang dimaksud dalam ayat (1) pasal ini member wewenang untuk mempergunakan tanah
yang bersangkutan, demikian pula tubuh bumi dan air serta ruang yang ada diatasnya, sekedar diperlukan untuk
kepentingan yang langsung berhubungan dengan penggunaan tanah itu dalam batas-batas menurut Undangundang ini dan peraturan-peraturan hukum lain yang lebih tinggi” (na versão em inglês, “The land rights referred
to in paragraph (1) of this article confers authority to use the land in question as well as the mass of the earth and
the water existing under its surface and the space above it to a point which is essentially required to allow for the
fulfillment of the interests that are directly related to the use of the land in question, such a point being within the
limits imposed by this Act and by other legislation of higher levels”.
269
271
Henrique Mesquita, in “Direitos Reais”, Coimbra, 1984, pág. 23.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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Integram o prédio urbano os pátios ou os quintais dos edifícios272.
É parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de
permanência273. São partes integrantes dos prédios rústicos os muros de vedação ou os engenhos
para tirar água. São partes integrantes dos prédios urbanos as instalações eléctricas ou os páraraios e os elevadores.
Para o projecto do novo Código Civil (art. 196º, nº 1) são móveis todas as restantes coisas, ou
seja, a definição de coisa móvel acha-se por exclusão de partes. Serão móveis as coisas que não
sejam caracterizadas pela lei como imóveis. Por exemplo, a energia eléctrica é coisa móvel e,
como tal, a sua subtracção fraudulenta integra o crime de furto.
Nos termos do CCI, são coisas móveis aquelas que são movíveis ou podem ser movidas (art.
509º CCI)274. A base da distinção entre coisas móveis e imóveis é a circunstância de poderem ou
não ser transportadas de um para outro lugar sem se deteriorarem.
Importa aqui fazer uma breve referência às benfeitorias, incluídas no mesmo subtítulo II do
anteprojecto do novo Código Civil, que trata “das coisas” e que aqui temos estado a analisar.
O CCI não contém uma definição legal de benfeitorias, nem as caracteriza, sendo certo, porém,
que se refere às mesmas em várias situações relativas aos direitos reais sobre imóveis. Assim, o
direito do possuidor, quer se encontre de boa-fé ou de má-fé, a indemnização por benfeitorias
272
Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. cit., pág. 131.
Art. 195º, nº 3, do projecto do novo Código Civil e 500º do CCI.
274
Nos arts. 509º a 518º do CCI encontramos depois a descrição de várias coisas concretas que o Código considera
como móveis. Esta descrição não deve, porém, ser considerada taxativa, podendo obviamente existir inúmeras
outras coisas móveis, para além das descritas nas referidas disposições legais.
273
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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necessárias realizadas no imóvel que possuía no caso de ter de o entregar ao seu proprietário
(arts. 575º e 579º do CCI)275276.
Para o do projecto do novo Código Civil consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para
conservar ou melhorar a coisa (art. 207º, nº 1). Assim, constituem benfeitorias não só as obras
necessárias à conservação da coisa, como pintar, substituir telhado danificado, substituir janelas
quebradas, mas também todas as obras que melhorem o prédio, como a construção de casas de
banho em casas onde não existiam, ou a construção de uma piscina.
As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias (art. 207º, nº 2, do projecto do novo Código
Civil).
São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da
coisa (art. 207º, nº 3, do projecto do novo C. Civil). Assim, por exemplo: a substituição de um
telhado que tenha as telhas partidas (se o telhado não for substituído não só não se pode usar
devidamente a casa, como a entrada da água das chuvas vai estragar todo o imóvel); a
substituição de janelas com a madeira apodrecida ou vidros partidos, a reconstrução de uma
parede que, pela acção do tempo ameaça ruir.
São benfeitorias úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam,
todavia, o valor (art. 207º, nº 3, do projecto do novo Código Civil). Assim, por exemplo: a
construção de casa de banho numa casa que não tinha (trata-se de um melhoramento que
beneficia o uso da casa e, consequentemente, aumenta o seu valor); a colocação de um sistema
central de ar condicionado; etc.. Já se podem colocar dúvidas relativamente à construção de uma
275
Na versão em inglês “expenditures necessary for the maintenance and benefit of the assets”.
O CCI apenas exclui o direito a indemnização por benfeitorias necessárias ao possuidor que tenha adquirido a
posse por meios violentos (art. 580º).
276
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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piscina (porém, se da mesma resultar um aumento considerável do valor do imóvel pode a
mesma considerar-se benfeitoria útil).
São benfeitorias voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe
aumentando o valor, servem apenas para o recreio do benfeitoriante (art. 207º, nº 3, do projecto
do novo Código Civil). Será o caso de alguém que gosta de ter peixes em casa e constrói um lago
para ter peixes no logradouro da casa, da colocação de estátuas dispendiosas num jardim, etc..
Como já se referiu o CCI não contém o mesmo tipo de definição expresso de benfeitorias.
Porém, pode surpreender-se claramente a distinção entre as reparações necessárias à manutenção
do imóvel277 (benfeitorias necessárias) (art. 578º), reparações no interesse do imóvel278 (art.
578º) e reparações para utilidade e melhoramento da aparência do imóvel279 (art. 581º do
CCI)280.
Por outro lado o CCI estabelece ainda uma distinção entre reparações para o fim de manutenção
e as reparações maiores no art. 793º e estas últimas estão exemplificadas no art. 794º, ambos do
CCI281.
277
Na versão em inglês “expenses for the maintenance of the assets”.
Na versão em inglês “expenses for the interest of the assets”.
279
Na versão em inglês “expenses in respect of utility and improvement in appearance”.
280
Importa considerar, contudo, que as reparações para melhorar a utilidade do imóvel podem integrar o conceito
de benfeitorias úteis do projecto do novo Código Civil.
281
Na versão em inglês “Major repairs include the following: repairs to big walls and arched roofs; repairs to beams
and entire roofs; the total repair of dikes, wharf's, plastered waterworks, including supporting and boundary walls.
All other repairs shall be regarded as regular maintenance”.
278
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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CAPÍTULO II – POSSE
I. Definição
Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do
direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1171º do projecto do novo Código Civil)282283,
ou seja, a posse é interpretada como a detenção ou uso de bens que um indivíduo, por si ou
através de outra pessoa, tem em seu poder, como se tivesse o correspondente direito (art. 529º do
CCI)284285.
A posse pode coincidir com o direito respectivo (posse causal). Por exemplo, o proprietário de
uma casa que nela reside é simultaneamente possuidor e proprietário. Igualmente no caso de o
proprietário ter a casa arrendada e receber as rendas correspondentes, é proprietário e possuidor,
uma vez que o arrendatário é mero detentor, o proprietário exerce a posse por intermédio deste.
Porém, a posse pode não coincidir com o direito respectivo (posse formal). Por exemplo, um
lavrador que começa a cultivar o terreno vizinho, fazendo-o de forma reiterada, sem qualquer
autorização do respectivo proprietário, afirmando a sua intenção e se comportar como dono do
282
Trata-se de redacção identica há do art. 1251º do C. Civil Português de 1966, que vigorou em Timor Leste até à
implementação do regime jurídico indonésio.
283
No mesmo sentido o art. 6º, nº 2, da Lei nº 1/2003, de 10 de Março (posse é o poder que se manifesta quando
alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de qualquer outro direito real).
284
“Yang dimaksudkan kedudukan Berkuasa ialah, kedudukan seseorang suatu kebendaan, baik dengan diri
sendiri, maupun dengan perantaraan orang lain, dan yang mempertahankan atau menikmatinya selaku orang yang
memiliki kebendaan itu” (na versão em inglês, “Possession is interpreted as the holding or enjoyment of assets,
which an individual, either in person or through another person, has within his power, as if he has actual title
thereto”).
285
Já o Código Civil de Seabra continha uma concepção mais abrangente, incluindo na sua definição aqueles que se
passaram a considerar-se meros detentores, conforme art. 474º (“diz-se posse a retenção ou fruição de qualquer
cousa ou direito”). Porém, logo acrescenta no seu § 1º que “os actos facultativos ou de mera tolerância não
constituem posse”. Também o CCI parace refletir a possibilidade de definição da mera detenção como posse
(posse imediata), no seu art. 1959º.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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terreno, colhendo os frutos, o direito de propriedade continua a ser do dono, mas a posse passou
a ser exercida pelo aludido vizinho. Da mesma forma, alguém que tenha furtado ou achado um
objecto que pertença a outra pessoa passa a exercer a posse sobre tal objecto, que continua a
pertencer a outro. Ainda no caso de alguém adquirir por contrato um prédio de uma pessoa que
não é seu proprietário e passa a ocupar o mesmo, em consequência de tal contrato, passa a
exercer a posse, mas o prédio continua a pertencer a outra pessoa.
Os bens de domínio público não podem ser objecto de posse, uma vez que se encontram
excluídos do comércio jurídico (art. 193º, nº 2, do projecto de C. Civil)286. Vejam-se os arts. 537º
e 520º a 525º do CCI.
II. Elementos da posse
a) Considerações gerais
A posse é caracterizada por dois elementos, o “corpus” ou domínio de facto sobre a coisa,
traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela ou a possibilidade física desse
exercício, e o “animus”, consubstanciado na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular,
o direito real correspondente àquele domínio287.
Elemento material – “corpus” – que se traduz nos actos materiais praticados sobre a coisa, com o
exercício de certos poderes sobre a coisa (art. 529º do CCI).
286
Contra, para as situações em que “um sujeito exerce uma actuação correspondente a um direito que englobe
poderes de facto sobre uma coisa e a lei não exclua essa consequência”, José de Oliveira Ascensão, ob. cit., págs.
70-71.
287
Art. 1173º do projecto do novo C. Civil.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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Elemento psicológico – “animus” – que se traduz na intenção de o exercente se comportar como
titular do direito real correspondente aos actos que pratica (art. 538º do CCI)288.
A relação possessória é relação material permanente e duradoura e daí que os factos que a
integram tenham que ser exercidos de forma a poder concluir-se que aquele que os pratica
pretende exercer sobre a coisa um poder permanente.
Porém, a posse mantém-se enquanto haja a possibilidade de continuar a actuação correspondente
ao exercício do direito, a relação da pessoa com a coisa legalmente exigida para o efeito não
implica necessariamente que ela se traduza em actos materiais (art. 1179º, nº 1, do projecto de C.
Civil e art. 542º do CCI).
b) Posse pessoal ou por intermédio de outrem
A posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem (art. 1172º, nº 1,
do projecto do novo C. Civil e arts. 529º e 540º do CCI)289.
Em caso de dúvida presume-se que a posse é daquele que exerce o poder de facto (art. 1172º, nº
2, do projecto do novo C. Civil e art. 534º do CCI).
A “presunção” do art. 1172º, nº 2, do projecto do novo C. Civil só funciona em caso de dúvida e
não quando se trate de uma situação definida, que exclui a titularidade do direito invocado. Já o
art. 534º do CCI contém uma verdadeira presunção que deve ser afastada por prova do contrário
288
José de Oliveira Ascensão, ob. cit., págs. 84 e 85.
Ainda no mesmo sentido o art. 6º, nº 2, da Lei nº 1/2003, de 10 de Março (posse é o poder que se manifesta
quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de qualquer outro
direito real, podendo a posse ser exercida pelo titular do direito ou por intermédio de outrem).
289
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(art. 518º, nº 1 e 2, do CPC)290.
A posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao direito ou a possibilidade de a
continuar (art. 1177º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e art. 1957º do CCI).
Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou (art. 1177º, nº 2, do projecto do
novo C. Civil e art. 535º do CCI). Ou seja, no caso de um possuidor consentir o uso da coisa por
outra pessoa, ainda se entende que é o primeiro o possuidor da coisa.
Para além de se presumir que a posse continua em nome de quem a começou, ela mantém-se
enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a
continuar.
c) Sucessão e acessão na posse
Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte,
independentemente da apreensão material da coisa (art. 1176º do projecto do novo C. Civil e art.
541º do CCI).
O projecto do novo C. Civil, não enquadra a sucessão da posse nos meios de aquisição de posse
(art. 1183º do projecto do novo C. Civil). Estamos perante uma demonstração do princípio de
que a posse não depende da apreensão material da coisa. “Os herdeiros têm posse
independentemente do conhecimento da morte do “de cujus”, ou do facto designativo, ou até da
existência do bem. Quer dizer que aqui, mesmo sem “corpus” nem “animus”, a lei atribui aos
290
Veja-se ainda o disposto no art. 1174º do projecto do novo C. Civil (arts. 529º e 540º do CCI).
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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herdeiros a protecção possessória”291.
A posse do sucessor forma um todo com a do “de cujus”, havendo só alteração subjectiva292.
Aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode
juntar à sua a posse do antecessor (art. 1177º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e arts. 543º e
1958º do CCI).
Se, porém, a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só se
dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito (art. 1177º, nº 2, do projecto do novo C.
Civil). Assim, por exemplo, se a posse do antecessor for de má fé, o sucessor só poderá invocar a
acessão da posse, ou seja, a posse desde o início por parte daquele, com as mesmas
características de má fé. Se o sucessor passou a usufruir o bem de boa fé, então só poderá invocar
tal característica da posse a partir do momento em que suceder na mesma.
Ao distinguir a sucessão por morte da acessão na posse por transmissão entre vivos,
considerando que na primeira o sucessor passa a ocupar o lugar do de cujus mantendo a posse
exactamente as mesmas características, o legislador terá querido retirar esta possibilidade ao
sucessor. Ou seja, se a posse do de cujus era de má fé, esta característica mantém-se após a
transmissão, não podendo o sucessor invocar a sua ignorância de violação do direito de outrem (a
boa fé)293.
d) Posse precária
291
José de Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 78.
Henrique Mesquita, in “Direitos Reais”, Coimbra, 1984, pág. 103.
293
Aliás, como se viu, a sucessão opera automaticamente, não precisando o sucessor sequer de invocar a posse do
de cujus que se mantém na mesma.
292
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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São havidos como meros detentores ou possuidores precários:
- os que exercem o poder de facto sobre a coisa, mas sem intenção de agir como beneficiários do
direito;
- os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;
- os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em
nome de outrem (art. 1173º do projecto do novo C. Civil e art. 1959º do CCI). Veja-se ainda o
art. 556º do CCI.
Na simples detenção ou posse precária, o sujeito exerce os poderes correspondentes ao direito
(“corpus”) mas não os exerce como se fora titular dele (“animus”) e, por isso, este estado de
coisas, por mais tempo que dure, não pode conduzir à aquisição do direito, de que o interessado
não se apresenta como beneficiário294.
Actos de mera tolerância: trata-se de actos praticados com o consentimento, expresso ou tácito,
do titular do direito real mas sem que este pretenda atribuir um direito ao beneficiário. Com a sua
tolerância o titular do direito apenas quer significar que não fará oposição, que não reagirá contra
os actos incompatíveis ou contrastantes do seu direito. Mas não quer limitar este: o seu direito
conserva toda a licitude de onde deriva que o autor da tolerância se reserva a faculdade de, em
qualquer momento, pôr fim à actividade tolerada295.
294
295
Galvão Telles, in “O Direito”, ano 121, Coimbra, 1989 (Janeiro-Março), pág. 650.
Henrique Mesquita, ob. cit., pág. 70.
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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III. Caracteres da posse
A posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou
oculta – art. 1178º do projecto do novo C. Civil. A posse pode ser de boa fé ou de má fé (art.
541º do CCI).
a) Posse titulada e posse não titulada
Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer
do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico (art. 1179º, nº 1, do
projecto do novo C. Civil e art. 1964º do CCI). A existência do título pressupõe a transmissão da
posse, pelo que só pode ocorrer posse titulada nos casos de aquisição derivada da mesma.
O título não se presume, devendo a sua existência ser provada por aquele que o invoca (art.
1179º, nº 2, do projecto do novo C. Civil)296.
Contrariamente ao que acontece com os vícios de natureza substantiva, nomeadamente a falta do
direito de quem declarou transmitir o mesmo, ou vícios substanciais do negócio, os vícios
formais, nomeadamente a falta de escritura pública, quando a mesma é exigida, conduzem à falta
de título297.
O número um do artigo 1179º do projecto do novo C. Civil esclarece que nem a falta do direito
do transmitente, nem a falta de validade substancial do negócio jurídico excluem o título. “A
contrario”, temos de admitir que a falta de validade formal impede que se fale de título298. Isto é
296
Art. 510º, nº 1, do CPC.
Art. 1964º do CCI.
298
Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 96.
297
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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o que resulta expressamente do disposto no art. 1964º do CCI.
Assim, a posse titulada relativa ao direito de propriedade, ou qualquer outro direito enunciado no
617º do CCI, só pode ser provada mediante a apresentação de certidão de escritura pública da
qual resulte a mesma, uma vez que só por esta forma o direito se poderia adquirir299. Se a posse
só é titulada se for adquirida mediante título formalmente válido, quem não apresentar certidão
da escritura pública não pode invocar a posse titulada.
Ou seja, a posse relativa a um direito de propriedade resultante da “aquisição” por mero escrito
particular (que não escritura pública), é posse não titulada.
Mas a posse resultante da “aquisição” por escritura pública, ainda que possa ser anulada por
incapacidade, erro, dolo, ou coação, ou mesmo por a coisa pertencer a outra pessoa diversa do
“vendedor”, é posse titulada300.
b) Posse de boa fé e posse de má fé
A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de
outrem (art. 1180º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e art. 531º do CCI).
A posse titulada presume-se de boa fé, e a não titulada, de má fé (art. 1180º, nº 2, do projecto do
novo C. Civil).
Já para o CCI a posse presume-se sempre de boa fé, impendendo o ónus de prova da má fé sobre
299
300
Art. 578º, nº 1, do CPC.
Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 199.
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quem a alega (arts. 533º e 1965º)301. Será suficiente se a boa fé existir aquando da aquisição da
posse (art. 1966º do CCI).
A posse adquirida por violência é sempre considerada de má fé, mesmo quando seja titulada (art.
1180º, nº 3, do projecto do novo C. Civil)302.
A posse é de má fé se o possuidor estava consciente que os bens na sua posse pertenciam a
outrem (art. 532º do CCI).
c) Posse pacífica e posse violenta
Posse pacífica é a que foi adquirida sem violência (art. 1181º, nº 1, do projecto do novo C. Civil).
Considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de
coacção moral nos termos do artigo 246º (art. 1181º, nº 2, do projecto do novo C. Civil)303.
A violência tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre a própria coisa, nomeadamente
quando adquirida por meio de arrombamento.
A posse que começou violenta será violenta para sempre, mas já não é violenta a posse que
começou sem coacção (física ou moral), muito embora a sua subsistência resulte de violência
301
Conforme os arts. 512º, nº 1, e 518º, nº 1 e 2, do CPC.
Embora o CCI não o diga expressamente, é evidente que também considera tal posse como de má fé, sendo
certo que penalisa severamente o possuidor que tenha obtido a posse com violência, não lhe reconhecendo
sequer os direitos que reconheceu ao possuidor de má fé, conforme resulta dos arts. 557º, 563º, 568º e 580º do
CCI.
303
Como já se referiu, o CCI não define a posse violenta, mas refere-se a ela em vários dos seus preceitos,
retirando ao possuir todos os eventuais direitos resultantes da posse. Afigura-se que têm plena aplicação as
considerações doutrinárias expostas a própsito do regime no âmbito do projecto do novo C. Civil.
302
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153
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repetida (veja-se o art. 536º do CCI)304. Ou seja, se o possuidor começou a usufruir da coisa de
forma pacífica, sem usar de violência contra ninguém, mas depois se opõe de forma “violenta” a
que o anterior possuidor reassuma os poderes sobre a coisa, a posse não é violenta. Pelo
contrário, se o possuidor ocupou o imóvel de forma violenta, conforme definido supra, mas
depois passa a fruir o bem sem oposição do anterior possuidor, ainda assim a posse é violenta.
d) Posse pública e posse oculta
Posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1182º do
projecto do novo C. Civil).
A publicidade derivada da posse limita-se a noticiar, a dar a conhecer ao público, a existência de
um direito real305.
Posse oculta é definida tendo em atenção, não o momento constitutivo, mas os próprio exercício.
A posse oculta é verdadeira posse, mas é preterida pela melhor posse do possuidor esbulhado 306.
Isto é, aquele que esconde a posse não pode opor a mesma ao possuidor esbulhado ou ao
proprietário, mas já a pode opor a outra pessoa que pretenda impedir a sua posse.
IV. Aquisição da posse
A posse adquire-se:
304
Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 100.
Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 406.
306
Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 101.
305
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a) Pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do
direito (art. 1183º, al. a), do projecto do novo C. Civil e art. 538º do CCI);
b) Pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor (art. 1183º, al.
b), do projecto do novo C. Civil e art. 543º do CCI);
c) Por constituto possessório (art. 1183º, al. c), do projecto do novo C. Civil e art. 574º do CCI);
d) Por inversão do título da posse (art. 1183º, al. d), do projecto do novo C. Civil e art. 535º do
CCI).
a) Empossamento
Entre outros meios, a posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade dos actos
materiais correspondentes ao exercício do direito. Por outro lado, a aquisição da posse pode ser
originária ou derivada, no primeiro caso por apossamento ou inversão do título e, no segundo,
por tradição, sucessão ou constituto possessório. O apossamento traduz-se na aquisição unilateral
da posse por via do exercício de um poder de facto, ou seja, pela prática reiterada, com
publicidade, de actos materiais correspondentes ao exercício do direito, conforme o referido art.
1183º, al. a), do projecto do C. Civil. Trata-se de uma forma de aquisição originária da posse,
porquanto a mesma não deriva da posse anterior de outra pessoa.
b) Tradição da coisa
A “traditio” consubstancia-se, por seu turno, na transferência voluntária da posse entre vivos, em
regra quando a transmissão da situação jurídica e da situação de facto coincidem, o que ocorre
quando há entrega da coisa. Trata-se da forma específica de transferência voluntária da posse
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155
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entre vivos307.
c) Constituto possessório
Se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa
de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele
continue a deter a coisa (art. 1184º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e arts. 543º e 574º do
CCI).
Se o detentor da coisa, à data do negócio translativo do direito, for um terceiro, não deixa de
considerar-se igualmente transferida a posse, ainda que essa detenção haja de continuar (art.
1184º, nº 2, do projecto do novo C. Civil). Por exemplo, no caso de o proprietário de um prédio
arrendado o transmitir por contrato de compra e venda a outra pessoa, esta não deixa de passar a
ser possuidora do mesmo, se bem que se mantenha o contrato de arrendamento e
consequentemente a detenção do imóvel pelo arrendatário308.
d) Inversão do título de posse
A inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em
cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse (art. 1185º do projecto do
novo C. Civil e arts. 1960º e 1961º do CCI). Vejam-se ainda os arts. 535º, 536º e 1959º do CCI.
Qualquer detentor pode adquirir a posse opondo-se ao titular do direito sobre a coisa detida, seja
307
José de Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 114 (“Aí, a transmissão da situação jurídica acompanha a transferência
da situação de facto: o antigo possuidor demite-se da sua situação, em que ingressa o novo possuidor. Há então
uma entrega”).
308
Conforme art. 988º do projecto do novo C. Civil e art. do CCI.
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qual for a razão da existência da mera detenção309. A detenção da coisa está condicionada pelo
título que lhe deu origem. Daí a necessidade de inversão do título.
V. Perda da posse
O possuidor perde a posse:
a) Pelo abandono (art. 1187º, nº 1, al. a) do projecto do novo C. Civil e art. 544º do CCI);
b) Pela perda ou destruição material da coisa ou por esta ser posta fora do comércio (art. 1187º,
nº 1, al. b), do projecto do novo C. Civil e art. 545º, nº 2, e 546º do CCI);
c) Pela cedência (art. 1187º, nº 1, al. c), do projecto do novo C. Civil e art. 543º do CCI);
d) Pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver
durado por mais de um ano (art. 1187º, nº 1, al. d), do projecto do novo C. Civil e arts. 545º, nº 1,
e 1978º do CCI).
VI. Efeitos da posse
a) Presunção da titularidade do direito
O possuidor goza da presunção da titularidade do direito excepto se existir, a favor de outrem,
309
Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 667.
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presunção fundada em registo anterior ao início da posse (art. 1188º, nº 1, do projecto do novo C.
Civil e arts. 548º, nº 1, e 549º, nº 1, do CCI).
Esta presunção vale igualmente para a posse de boa fé como para a posse de má fé (arts. 548º, nº
1, e 549º, nº 1, do CCI). Importa aqui lembrar que a posse não titulada se presume de má fé (art.
1180º, nº 2, do projecto de C. Civil).
b) Responsabilidade do possuidor
O possuidor de boa fé só responde pela perda ou deterioração da coisa se tiver procedido com
culpa (art. 1189º do projecto do novo C. Civil e art. 574º do CCI).
O possuidor de má fé responde pela perda ou deterioração da coisa nos termos da
responsabilidade pelo risco por mora do devedor (art. 741º do projecto do novo C. Civil)310. Ou
seja, o possuidor de má fé é responsável pela perda ou deterioração da coisa, mesmo que estes
factos lhe não sejam imputáveis, a menos que demonstre que os danos sempre teriam ocorrido se
não existisse a sua posse (art. 579º, nº 2, do CCI).
c) Frutos
O possuidor de boa fé faz seus os frutos naturais percebidos até ao dia em que souber que está a
lesar com a sua posse o direito de outrem, e os frutos civis correspondentes ao mesmo período
(art. 1190º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e art. 548º, nº 3, do CCI). Veja-se ainda o art. 575º
do CCI.
310
1. Pelo facto de estar em mora, o devedor torna-se responsável pelo prejuízo que o credor tiver em
consequência da perda ou deterioração daquilo que deveria entregar, mesmo que estes factos lhe não sejam
imputáveis. 2. Fica, porém, salva ao devedor a possibilidade de provar que o credor teria sofrido igualmente os
danos se a obrigação tivesse sido cumprida em tempo.
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Se ao tempo em que cessa a boa fé estiverem pendentes frutos naturais, é o titular obrigado a
indemnizar o possuidor das despesas de cultura, sementes ou matérias-primas e, em geral, de
todas as despesas de produção, desde que não sejam superiores ao valor dos frutos que vierem a
ser colhidos (art. 1190º, nº 2, do projecto do novo C. Civil e art. 576º do CCI) 311. Uma vez que o
possuidor de boa fé tem que restituir os frutos após cessar a boa fé, tendo ele pago as despesas
relativas às plantações ou obras, das quais resultam os aludidos frutos, seja com sementes, obras
(que não sejam enquadráveis na definição de benfeitorias), aquisição de água para rega, etc., e
estando na altura de tal investimento de boa fé, deve deduzir tais encargos na restituição dos
frutos resultantes do investimento feito. Caso este seja superior ao valor dos frutos, não pode,
porém, exigir a diferença, mas nada terá que pagar.
Se o possuidor tiver alienado frutos antes da colheita e antes de cessar a boa fé, a alienação
subsiste mas o produto da colheita pertence ao titular do direito, deduzida a indemnização a que
o número anterior se refere (art. 1190º, nº 3, do projecto do novo C. Civil)312. A justificação do
preceito resulta do facto de a alienação dos frutos ser anterior à verificação dos mesmos.
O possuidor de má fé deve restituir os frutos que a coisa produziu até ao termo da posse e
responde, além disso, pelo valor daqueles que um proprietário diligente poderia ter obtido (art.
1191º do projecto do novo C. Civil e art. 549º, nº 2, do CCI). Vejam-se ainda os arts. 559º e
579º, nº 1, do CCI. O possuidor de má fé comete um acto ilícito que obriga a indemnizar,
designadamente a restituir os frutos que a coisa produziu, ou podia produzir.
311
Cessa a boa fé com a citação do possuidor em acção de restituição de posse ou de reivindicação contra o
possuidor actual, conforme art. 361º, al. a), do CPC (no mesmo sentido o art. 532º do CCI e o art. 1190º, nº 2, do
projecto do novo C. Civil). Como se viu, a posse é de boa fé quando quem a exerce ignora que lesa o direito de
outra pessoa. Assim, se o autor vem invocar algum direito sobre o bem possuído, após a citação o possuidor não
pode mais ignorar que outra pessoa se arroga direitos sobre o mesmo bem. Daí que cesse a boa fé do possuidor.
312
O mesmo resulta do disposto no art. 576º do CCI.
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d) Encargos
Os encargos com a coisa são pagos pelo titular do direito e pelo possuidor, na medida dos
direitos de cada um deles sobre os frutos no período a que respeitam os encargos (art. 1192º do
projecto do novo C. Civil e arts. 575º e 579º, nº 1, do CCI)313. Daqui resulta que os encargos
serão suportados pelo possuidor, até à interposição da acção por quem pede a entrega do imóvel.
Aliás, o pagamento dos encargos constitui manifestação da posse, do uso do imóvel como titular
do direito.
e) Benfeitorias
Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias
necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa,
desde que o possam fazer sem detrimento dela (art. 1193º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e
arts. 575º e 579º, nº 1, do CCI). Exceptua-se no CCI o caso da posse adquirida por violência (art.
580º).
Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias,
satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do
enriquecimento sem causa (art. 1193º, nº 2, do projecto do novo C. Civil).
O possuidor goza do direito de retenção sobre a coisa pelo valor das benfeitorias necessárias
efectuadas (art. 688º do projecto do novo C. Civil e art. 575º, 2ª parte, do CCI)314.
O direito de indemnização por benfeitorias pressupõe e exige a posse em nome próprio.
313
314
Conforme referido no ponto anterior.
Porém, o CCI refere apenas o possuidor de boa fé.
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O possuidor de boa fé tem direito a levantar as benfeitorias voluptuárias, não se dando
detrimento da coisa; no caso contrário, não pode levantá-las nem haver o valor delas (art. 1195º,
nº 1, do projecto do novo C. Civil e art. 581º do CCI). Para José de Oliveira Ascensão parece
dever entender-se que o possuidor de boa fé poderá sempre levantar as benfeitorias voluptuárias,
desde que repare as deteriorações causadas na coisa315.
O possuidor de má fé perde, em qualquer caso, as benfeitorias voluptuárias que haja feito (art.
1195º, nº 2, do projecto do novo C. Civil).
A obrigação de indemnização por benfeitorias é susceptível de compensação com a
responsabilidade do possuidor por deteriorações (art. 1194º do projecto do novo C. Civil).
f) Usucapião
A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de
tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo
exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião, ou prescrição aquisitiva (art.
1207º do projecto do novo C. Civil e arts. 548º, nº 2, 1946º e 1955º do CCI).
Conforme já se referiu, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo,
mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a
aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião, ou
prescrição aquisitiva ou positiva (art. 1207º do projecto do novo C. Civil316 e arts. 548º, nº 2,
315
316
Ob. cit., pág. 109.
Igual o art. 1287º do C. Civil Português de 1966.
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1946º e 1955º do CCI) 317318319320.
A verificação da usucapião depende de dois elementos: da posse e do decurso de certo período
de tempo variável, conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa, ou a característica da posse,
ou consoante o regime jurídico aplicável. Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir
sempre duas características: pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má-fé, titulada,
etc.) influem apenas no prazo.
Importa salientar, contudo, que no CCI a posse de má fé não confere direito à aquisição por
usucapião ou, como se diz naquele código, por prescrição aquisitiva. Assim, no âmbito do CCI,
para além de pública e pacífica, a posse tem de ser de boa fé.
Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1208º do
projecto do novo C. Civil e art. 1957º do CCI)321. É como se o direito existisse desde o início da
posse. Como se houvesse coincidência inicial.
A usucapião aproveita a todos os que podem adquirir (art. 1209º, nº 1, do projecto do novo C.
Civil e arts. 538º do CCI)322. Assim, os incapazes podem adquirir por usucapião, tanto por si
como por intermédio das pessoas que legalmente os representam (art. 1209º, nº 2, do projecto do
317
O CCI denomina este instituto como de prescrição aquisitiva (designação frequente na doutrina internacional) e
regula o mesmo precisamente no capítulo relativo à prescrição (Capítulo VII, do Livro IV, Secção 2), embora
também se lhe refira no capítulo que aborda a posse (Capítulo II, do Livro II).
318
No mesmo sentido o C. Civil Portguês de 1867, que designa a situação de prescrição positiva no seu art. 505º.
319
Por contraponto à precrição extintiva, ou negativa, que extingue o direito do credor, aqui a prescrição cria, ou
faz nascer um direito novo na esfera do seu beneficiário.
320
Henrique Mesquita, ob. cit., pág. 112.
321
Art. 1288º do C. Civil Português de 1966.
322
Art. 1289º do C. Civil Português de 1966 e art. 510º do C. Civil Português de 1867.
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novo C. Civil e arts. 539º do CCI)323.
Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito
possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário
para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título, conforme referido supra (art.
1210º do projecto do novo C. Civil e art. 1959º do CCI)324. Vejam-se os arts. 1173º, 1183º, al. d),
e 1185º do projecto do novo C. Civil e o arts. 535º, 536º e 556º do CCI.
A usucapião por um compossuidor relativamente ao objecto da posse comum aproveita
igualmente aos demais compossuidores (art. 1211º do projecto do novo C. Civil).
São aplicáveis à usucapião, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à suspensão e
interrupção da prescrição, bem como o preceituado nos artigos 291º, 293º, 294º e 296º do
projecto (art. 1212º do projecto do novo C. Civil e art. 1946º do CCI). Como já se referiu,
estamos no âmbito da prescrição aquisitiva, que não deixa de ser uma caso de prescrição.
g) Usucapião de imóveis
Não podem adquirir-se por usucapião: a) As servidões prediais não aparentes; b) Os direitos de
uso e de habitação (art. 1213º do projecto do novo C. Civil e arts. 552º e 556º do CCI)325.
Conforme se viu supra, a posse para poder conduzir à aquisição do direito por usucapião tem de
323
Porém, só podem adquirir por si os bens susceptíveis de aquisição por ocupação, isto é, bens móveis. “Em vista
da letra do Codigo póde sustentar-se que para adquirir a posse são competentes até os menores, comtanto que
tenha uso de rasão, ao passo que para adquiri a propriedade pela prescripção são incompetentes os menores,
ainda que tenham uso de rasão” (José Dias Ferreira, ob. e vol. cit., pág. 15), mas podem adquirir por intermédios
dos seus representantes legais (art. 507º do C. Civil Português de 1867.
324
Art. 1290º do C. Civil Português de 1966 e art. 480º do C. Civil Português de 1867.
325
Não existe disposição expressa de propibição da aquisição por usucapião do direito de uso e ocupação, mas ela
parece resultar evidente do regime prevsito nos seus arts. 818º a 829º, em especial do art. 827º.
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ser pública e pacífica, pelo que as servidões não aparente estão excluídas, desconhecendo-se o
exercício dos actos materiais de posse não se pode atribuir relevância jurídica aos mesmos (vejase igualmente o art. 1438º, nº 1, do projecto de C. Civil e o art. 699º do CCI) 326327. Quanto ao
direito de uso e habitação esta impossibilidade está relacionada com a sua natureza. O direito de
habitação tem a natureza de afectação de satisfação de necessidades pessoais. O direito de
habitação abrange o “usus” e o “fructus”, mas apenas na medida das necessidades pessoais do
seu titular e da sua família. Este direito tem de se entender somente como abrangendo o morador
usuário, tem de se pautar pelas suas necessidades pessoais, contrariamente ao usufruto em que a
fruição e o uso são ilimitados328.
A usucapião, como qualquer outra situação de prescrição, não é de conhecimento oficioso, pelo
que tem necessariamente que ser invocada pela pessoa a quem aproveita (art. 294º do projecto do
novo C. Civil329, aqui aplicável por remissão do art. 1212º, e art. 1950º do CCI330).
A questão que se coloca neste caso é a de saber se o direito de propriedade, adquirido por
usucapião, pode ser invocado por quem já não é possuidor, mas foi possuidor do imóvel durante
o prazo necessário para a sua verificação, tendo entretando sido esbulhado pelo possuidor actual.
Afigura-se que não, salvo o caso do esbulho violento.
326
Art. 678º do CCI (na versão em ingles “Visible servitudes are those that are physically apparent such as a door, a
window, a water pipe and other such similar objects. Invisible servitudes are those whose existence is
imperceptible, such as the prohibition against building on a plot of land, or against building above a certain height,
the right to graze cattle and other matters that require human involvement”).
327
Art. 1438º, nº 2, do projecto do novo C. Civil, “Consideram-se não aparentes as servidões que não se revelam
por sinais visíveis e permanentes”.
328
Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 420.
329
O tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou
extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo
Ministério Público.
330
Na versão em inglês, “The judge may not, officially, apply the means of prescription”.
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Isto é o que resulta expressamente dos arts. 1955º e 1978º do CCI331. Mas é também o que resulta
do art. 1207º do projecto do novo C. Civil.
Para o projecto do novo C. Civil, se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada
ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a
posse se torne pública (art. 1217º do projecto). O que significa que o possuidor esbulhado ainda
pode invocar a usucapião (judicial ou extrajudicialmente) até um ano após ter cessado a
violência, ainda que não exerça poder de facto sobre o imóvel332.
No âmbito do CCI, porém, no caso de o possuidor ter sido esbulhado com violência a sua posse
mantém-se sem limite de prazo, ainda que cesse a violência, pelo que pode a todo o tempo
invocar a prescrição, enquanto se mentiver a posse do esbulhador com violência333.
A prescrição pode ser invocada mesmo em sede de recurso (art. 1951º do CCI). Importa, porém,
ter presente que a citação do réu possuidor para acção de reivindicação da propriedade do imóvel
que ele possui interrompe o prazo prescricional (art. 314º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e
arts. 1980º do CCI).
h) Prazos de usucapião
331
Na versão em inglês, “To acquire ownership of property by means of prescription, an individual must have
continuous, uninterrupted, open and unequivocal possession” (art. 1955º) e “Prescription shall be precluded if the
owner, within a period of more than one year, has been denied the enjoyment of a matter, either by the previous
owner, or by a third party” (art. 1978º). Lembre-se que a posse se perde através da posse de outrem por período
superior a um ano (art. 545º, nº 1, do CCI).
332
333
Conforme o art. 1187º, nº 1, al. d), do projecto.
Arts. 568º e 536º do CCI.
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165
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No CCI o possuidor de má fé não pode adquirir por usucapião (art. 549º do CCI) 334. Por maioria
de razão, não se permite a aquisição do direito no caso da posse constituída com violência, ainda
que a mesma violência venha a cessar (arts. 536º e 568º do CCI).
Os prazos de prescrição são os seguintes (art. 1963º do CCI):
Vinte anos para o possuidor e boa fé que tenha um título legítimo de aquisição;
Trinta anos para os restantes possuidores de boa fé.
Também será de trinta anos o prazo de prescrição para a posse titulada, no caso de o título ser
formalmente inválido (art. 1964º do CCI).
Como já se referiu, presume-se a existência de boa fé na posse (art. 1965º do CCI), sendo ainda
suficiente que a boa fé exista aquando da aquisição da posse (art. 1966º do CCI), pelo que pode
haver má fé posterior (no sentido de se vir a tomar conhecimento da violação do direito de
outrem) sem que seja afectado o direito de prescrição.
O CCI não prevê a hipótese de registo da mera posse. Mas, como é óbvio, pode haver registo do
título que confere a posse. Como já se referiu, sendo o título formalmente válido, em princípio,
salvo ocorrendo violação do trato sucessivo do registo335, nada obstará a que se proceda ao
registo do mesmo.
O CCI, porém, não dá qualquer tipo de privilégio ao registo desta posse titulada, mantendo-se o
prazo de vinte anos, independentemente do registo.
334
A a boa fé se traduz na ignorância de violar direito de outra pessoa (art. 531º do CCI)
Por exemplo a pessoa que consta como vendedora na escritura píbulica de compra e venda não ser a que
consta como titular do direito de propriedade no registo.
335
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
166
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Para o projecto do novo C. Civil, havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem
lugar: a) Quando a posse, sendo de boa fé, tiver durado por dez anos, contados desde a data do
registo; b) Quando a posse, ainda que de má fé, houver durado quinze anos, contados da mesma
data (art. 1214º do projecto do novo C. Civil)336. O título, relembra-se, tem que ser formalmente
válido (ou seja, no caso dos imóveis, tem de se tratar de uma escritura pública), embora possa ser
substancialmente inválido (art. 1181º do projecto).
Não havendo registo do título de aquisição, mas registo da mera posse, a usucapião tem lugar: a)
Se a posse tiver continuado por cinco anos, contados desde a data do registo, e for de boa fé; b)
Se a posse tiver continuado por dez anos, a contar da mesma data, ainda que não seja de boa fé
(art. 1215º, nº 1, do projecto do novo C. Civil). Conforme se referiu para os outros casos em que
se previa o registo da mera posse, esta só pode ocorrer em vista de sentença passada em julgado,
na qual se reconheça que o possuidor tem possuído pacífica e publicamente por tempo não
inferior a cinco anos (art. 1215º, nº 2, do projecto do novo C. Civil)337.
Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze
anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé (art. 1216º do projecto do novo C.
Civil).
Se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião
só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública (art. 1217º do
projecto do novo C. Civil).
336
337
Também aqui a boa fé se traduz na ignorância de violar direito de outra pessoa (art. 1182º, nº 1).
Valem aqui as considerações tecidas anteriormente sobre a matéria.
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VII. Defesa da posse
a) Acções possessórias
Existem os seguintes meios de defesa judicial da posse, previstos nos arts. 1196º a 1206º do
projecto: acção de prevenção, acção de manutenção, acção de restituição, acção de restituição no
caso de esbulho violento e embargos de terceiro. Para além destes meios, existem ainda os meios
de defesa da posse de carácter extrajudicial, como sejam a acção directa e a legítima defesa,
previstos nos arts. 327º e 328º do projecto do novo C. Civil.
b) Acção de manutenção da posse
Se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da
ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de
multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar (art. 1196º do projecto do novo Código
Civil)338.
Para a aplicação da acção de prevenção é necessário, além de uma situação de posse, que esta
não tenha sido lesada e que tenham ocorrido factos de que seja legítimo inferir estar o possuidor
sob ameaça séria de ser perturbado ou esbulhado (trata-se pois de uma acção antecipatória). A
expressão “justo receio” destina-se a inculcar a ideia de que não basta um receio mais ou menos
vago, os actos atribuídos ao réu hão-de ter o carácter de ameaças positivas e capazes de se
traduzir em vias de facto339.
O meio adequado para a acção de prevenção será a providência cautelar não especificada dos
338
339
Não existe disposição semelhante no CCI.
Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 835.
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arts. 305º a 316º do CPC. Efectivamente, se a ameaça é séria, como exige o artigo, então o
recurso ao processo declarativo comum não acautela o direito do possuidor ameaçado, devido à
natural demora do mesmo. Isto não invalida, obviamente, que o possuidor tenha que intentar
posteriormente acção declarativa, nos termos dos arts. 307º, nº 1, e 313º, nº 1, al. a), do CPC.
c) Restituição de posse
O possuidor que for perturbado ou esbulhado pode manter-se ou restituir-se por sua própria força
e autoridade, nos termos do artigo 327º, ou recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou
restitua a posse (art. 1197º do projecto do novo C. Civil e arts. 550º, 551º e 566º do CCI).
O recuso à acção directa e à legítima defesa (arts. 327º e 328º do projecto) pressupõe a
verificação dos seguintes requisitos: a) impossibilidade de recurso, em tempo útil, aos meios
coersivos normais, nomeadamente aos tribunais; b) violação efectiva ou eminente do direito; c)
racionalidade dos meios utilizados.
Se o possuidor recorrer ao tribunal, não se verificando nenhuma situação de esbulho violento,
pode recorrer à providência cautelar de embargo de obra nova, se, por exemplo, o esbulhador
construir um muro que impeça a posse, ou usar dos meios cautelares comuns ou da acção
declarativa comum.
No caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído
enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito (art. 1198º, nº 1, do projecto
do novo C. Civil e arts. 561º e 562º do CCI).
d) Restituição provisória de posse
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O possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à
sua posse, sem audiência do esbulhador (art. 1199º do projecto do novo C. Civil). Veja-se o art.
563º do CCI.
No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua
posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência (art. 317º do CPC e art.
563º do CCI). Providência cautelar de restituição provisória de posse.
Os requisitos desta providência cautelar são (gerais):
- a séria probabilidade de existência do direito;
- o fundado receio de que outrem, antes de proferida decisão de mérito, cause lesão grave ou
dificilmente reparável;
- que não seja manifestamente inferior ao prejuízo dela derivado para o requerido.
E, para além destes requisitos gerais, são ainda requisitos específicos da providência:
Esbulho - retirada total ou parcial da posse de um bem;
Violência - Com utilização de força, isto é, o acto de retirar a posse ao requerente é não
consentido. A violência poderá ser contra a pessoa ou contra a coisa. Exemplo de violência
contra a coisa: arrombar a porta, a fechadura, substituir a fechadura, destruição de obstáculos etc.
d) A acção de manutenção ou de restituição da posse
A acção de manutenção da posse pode ser intentada pelo perturbado ou pelos seus herdeiros, mas
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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apenas contra o perturbador, salva a acção de indemnização contra os herdeiros deste (art. 1201º,
nº 1, do projecto do novo C. Civil).
A acção de restituição de posse pode ser intentada pelo esbulhado ou pelos seus herdeiros, não só
contra o esbulhador ou seus herdeiros, mas ainda contra quem esteja na posse da coisa e tenha
conhecimento do esbulho (art. 1201º, nº 2, do projecto do novo C. Civil).
O que ressalta deste artigo é que a acção de restituição não pode ser intentada contra quem esteja
na posse da coisa de boa fé.
A acção de manutenção, bem como as de restituição da posse, caducam, se não forem intentadas
dentro do ano subsequente ao facto da turbação ou do esbulho, ou ao conhecimento dele quando
tenha sido praticado a ocultas (art. 1202º do projecto do novo C. Civil e arts. 558º e 565º do
CCI).
Trata-se de um prazo de caducidade.
É havido como nunca perturbado ou esbulhado o que foi mantido na sua posse ou a ela foi
restituído judicialmente (art. 1203º do projecto do novo C. Civil e art. 560º do CCI).
É assim indiferente a posse do esbulhador, uma vez que sobre a mesma coisa não podem haver
duas posses plenas.
O possuidor mantido ou restituído tem direito a ser indemnizado do prejuízo que haja sofrido em
consequência da turbação ou do esbulho (art. 1204º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e arts.
568º e 576º a 581º do CCI).
A restituição da posse é feita à custa do esbulhador e no lugar do esbulho (art. 1204º, nº 2, do
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
171
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projecto do novo C. Civil).
Só depois de mantido ou restituído pode o possuidor exigir ao turbador ou esbulhador que o
indemnize.
e) Embargos de terceiro
O possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a sua
posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo (art. 1205º do
projecto do novo C. Civil).
Nos termos do disposto no artigo 286º do CPC, se qualquer acto judicialmente ordenado de
apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização
ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo
valer, deduzindo embargos de terceiro.
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CAPÍTULO III – DIREITO DE PROPRIEDADE
I. Definição e conteúdo
Propriedade é o direito de ter livre aproveitamento da coisa e dispor dela de modo absoluto,
desde que um indivíduo não viole as leis e ordens públicas emanadas das autoridades, no uso de
tais bens, e desde que não interfira com os direitos dos outros indivíduos (art. 570º do CCI)340.
O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das
coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela
impostas (art. 1225º do anteprojecto do novo C. Civil).
Por seu lado a Constituição da RDTL estipula que todo o indivíduo tem direito à propriedade
privada, podendo transmiti-la em vida e por morte, nos termos da lei, embora só os cidadãos
nacionais tenham direito à propriedade privada da terra (art. 54º, nº 1 e 4, da Constituição).
O direito de propriedade é um direito absoluto do qual resulta a exclusividade reconhecida ao
proprietário341. A propriedade é comummente qualificada como o direito real máximo, o modelo
de todos os outros direitos reais342.
340
Na versão em inglês “Ownership is the right to have free enjoyment of property and to dispose thereof
absolutely, provided that an individual does not violate the laws of the public ordinances stipulated by those who
have been granted authority to do so, in the course of using such assets, and provided that an individual does not
interfere with other individuals rights”.
341
Esta é a definição resultante do art. 20º, nº 1, da Lei Agrária Indonésia de 1960 (na versão em inglês “A Hak
milik (right of ownership) is the inheritable right, the strongest and fullest right on land which one can hold”).
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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Dá-se o nome de fruição ao aproveitamento dos frutos e produtos de uma coisa, seja dos frutos
materiais, seja dos frutos jurídicos (rendas ou juros ou outro tipo de rendimento).
Entende-se por disposição a forma de exercício dum direito que implica a sua alteração ou perda,
absoluta ou relativa.
Há duas classificações possíveis do conceito de disposição: disposição total e disposição parcial;
disposição material e disposição jurídica343.
Para José de Oliveira Ascensão “a propriedade é o direito real que outorga a universalidade dos
poderes que à coisa se podem referir344.
A propriedade tem, porém, igualmente uma função social, que frequentemente determina a
limitação daquele direito absoluto (art. 54º, nº 2, da Constituição da RDTL). Vejam-se os citados
arts. 570º do CCI, 1225º do anteprojecto do novo C. Civil.
O direito de propriedade deve ser exercido dentro dos limites impostos, por um lado, pela boa fé,
pelos bons costumes e pelo fim social e económico e, por outro lado, pelas restrições, quer de
interesse privado, quer de interesse público que a lei expressamente consagra345346.
Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de
figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei (art. 1226º do anteprojecto do
novo C. Civil). Trata-se de um dos princípios gerais dos direitos reais (o “numerus clausus”, ou
342
Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 441. “O direito de propriedade é o molde jurídico onde se vaza o poder humano
de usar, de gozar, ou de dispor dos bens de forma plena” (Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 217).
343
Castro Mendes, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Lisboa, 1978, vol. II, pág. 40
344
Ob. cit., pág. 448.
345
José Osvaldo Gomes, “Comentário ao Novo Regime de Licenciamento de Obras”, Lisboa, 1971, pág. 22.
346
Sobre a função social do direito de propriedade veja-se o escrito supra (Título I, Capítulo IV).
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
174
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princípio da tipicidade). A lei não permite que sejam constituídos direitos reais que ela própria
não preveja347.
Ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos
fixados na lei, sendo sempre devida indemnização adequada ao proprietário ou aos titulares dos
outros direitos reais afectados (arts. 1229º e 1231º do projecto do novo C. Civil). No mesmo
sentido o art. 570º do CCI e art. 54º da Constituição da RDTL348. O que se prevê aqui é a
possibilidade de intervenção do Estado no direito de propriedade privada, por meio de privação
forçada da propriedade, nomeadamente por expropriação por utilidade pública349. Veja-se o art.
18º da Lei Agrária Indonésia de 1960350.
II. Conteúdo do direito de propriedade (propriedade de imóveis)
A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o
subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio
jurídico (art. 1264º, nº 1, do projecto do novo C. Civil). Veja-se o art. 571º do CCI.
O proprietário não pode, todavia, proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a
que têm lugar, não haja interesse em impedir (art. 1264º, nº 2, do projecto). Sobre o assunto os
347
Veja-se o Título I, Capítulo II, e).
Sobre a vertente constitucional do direito de propriedade veja-se Gomes Canotilho e Vital Moreira, in
“Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, Coimbra Editora, 4ª ed. Revista, 2007, págs. 799-805.
349
Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., págs. 805-810.
350
Na versão em inglês “In the interests of the public as well as of the nation and of the state and in the collective
interests of the people, land rights can be revoked by providing appropriate compensation and in accordance with
the procedure which is to be stipulated by way of an Act”.
348
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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arts. 1º, nº 4 a 6, e 2º da Lei Agrária Indonésia de 1960.
2.1. Limitações ao direito de propriedade:
O fundamento das limitações encontra-se no primado do interesse coletivo ou público sobre o
individual e na função social da propriedade, visando proteger o interesse público social e o
interesse privado, considerado em relação à necessidade social de coexistência pacífica; sua
natureza é de obrigação propter rem, porque tanto o devedor como o credor são titulares de um
direito real, pois ambos os direitos incidem sobre a mesma coisa, só que não são oponíveis erga
omnes nem interessam a terceiros351.
As obrigações de direito público são normalmente encontradas em legislação autónoma (não no
Código Civil) e visam salvaguardar essencialmente o interesse público 352. Estes limites são
gerais porque são comuns a todos os imóveis, todos estão sujeitos a suportar os limites imposto
pela administração em defesa do interesse público.
As limitações ao domínio baseadas no interesse privado inspiram-se no propósito de coexistência
harmónica e pacífica de direitos, fundando-se no próprio interesse do titular do bem ou de
terceiro, a quem este pretende beneficiar, não afetando, dessa forma, a extensão do exercício do
direito de propriedade; caracteriza-se por sua bilateralidade ante o vínculo recíproco que
351
Veja-se supra o Capítulo IV do Título I.
Contam-se entre estas as restrições à construção constantes de planos directores (ordenamento do território),
que visam harmonizar a possibilidade de construção pelos privados, por forma a evitar a ocupação irracional e
irreversível da terra, designadamente criando zonas habitacionais e zonas de serviços ou industriais diferenciadas,
estipulando limites de construção, por exemplo em altura, bem como as chamadas servidões públicas (ou
servidões administrativas), como seja a proibição de se poder construir demasiado perto da estrada, por forma a
poder no futuro proceder ao alargamento da mesma. Trata-se de restrições ainda não existente na legislação
nacional e que urge implementar, sob pena de se tornar irreversível a ocupação caótica e indisciplinada do
território.
352
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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estabelece.
Aqui se inclui o direito de vizinhança, limitações impostas por normas jurídicas às propriedades
individuais com o escopo de conciliar interesses de proprietários vizinhos, reduzindo os poderes
inerentes ao domínio e de modo a regular a convivência social (art. 625º do CCI). Por haver
contiguidade entre prédios, o proprietário não é livre de fazer tudo aquilo que se compreenderia
num ilimitado ‘jus utendi, abutendi e fruendi’, têm de estabelecer-se restrições rerivadas da
necessidade de coexistência353.
Assim:
a) O proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros,
calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes,
provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o
uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam (art. 1266º do
projecto do novo C. Civil). No mesmo sentido, veja-se o art. 655º do CCI354.
A Constituição concede maior protecção aos direitos, liberdades e garantias de que aos direitos
económicas, sociais e culturais e há uma ordem decrescente de consistência, de protecção
353
Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 204.
Na versão em inglês, “An individual, who, within the area surrounding a communal or non-communal wall, has
had a well, sewer, or outhouse dug, intends to install a chimney, a fireplace, an oven or furnace, intends to build a
stable or fertilizer container, or build a salt storehouse or warehouse, or install a storage place of corrosive
material, or intends to build other harmful or dangerous constructions, shall be required to leave or create space
in the manner described in the special ordinances or customs in that regard, or to carry out constructions as
required by the regulations and customs, in order to prevent any damage which may be caused to the neighboring
plots of land”.
354
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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jurídica, de densidade subjectiva daqueles para estes355. Assim, no caso de colisão ou conflito de
direitos fundamentais devem prevalecer os direitos de personalidade (art. 326º do projecto C.
Civil).
O direito de oposição subsiste mesmo que a actividade de onde resultam as emissões haja sido
autorizada por entidade pública356.
No entender de Álvaro Moreira e Carlos Fraga, este preceito aplica-se a quaisquer vizinhos e não
apenas ao vizinho contíguo357.
b) O proprietário não pode construir nem manter no seu prédio quaisquer obras, instalações ou
depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas, se for de recear que possam ter sobre o
prédio vizinho efeitos nocivos não permitidos por lei (art. 1267º, nº 1, do projecto do novo C.
Civil)358. Veja-se de novo o art. 655º do CCI.
Se as obras, instalações ou depósitos tiverem sido autorizados por entidade pública competente,
ou tiverem sido observadas as condições especiais prescritas na lei para a construção ou
manutenção deles, a sua inutilização só é admitida a partir do momento em que o prejuízo se
torne efectivo (art. 1267º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil). É devida, em qualquer dos
355
Veja-se os J.J. Canotilho, in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 125º, Coimbra Editora, 1992, pág. 293,
Jorge Miranda, in “Manual de Direito Constitucional”, vol. IV, Coimbra Editora, 1996, pág. 135, Vaz Serra, in
“Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 103º, Coimbra Editora, 1970, pág. 378, Fernando Augusto Cunha Sá,
in “Abuso do Direito”, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 528, e Fernando Pessoa Jorge, “Ensaio Sobre os Pressupostos
da Responsabilidade Civil”, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 201.
356
Hernrique Mesquita, ob. cit., pág. 142.
357
Ob. cit., pág. 244, nota 53.
358
Trata-se de norma preventiva. Não tem que se já verificar um dano efectivo, mas apenas a sua possibilidade
(Menezes Cordeiro, in “Direitos Reais, Lex Editora, Lisboa, 1993, pág. 597).
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casos, indemnização pelo prejuízo sofrido (art. 1267º, nº 3, do anteprojecto do novo C. Civil)359.
c) O proprietário tem a faculdade de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer escavações,
desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos
ou deslocações de terra (art. 1268º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil).
O direito de construir constitui prerrogativa inerente da propriedade o direito que possui o seu
titular de construir em seu terreno o que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os
regulamentos administrativos360.
Logo que venham a padecer danos com as obras feitas, os proprietários vizinhos serão
indemnizados pelo autor delas, mesmo que tenham sido tomadas as precauções julgadas
necessárias (art. 1268º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil e art. 1369º do CCI)361.
Se qualquer edifício ou outra obra oferecer perigo de ruir, no todo ou em parte, e do
desmoronamento puderem resultar danos para o prédio vizinho, é lícito ao dono deste exigir da
pessoa responsável362 pelos danos as providências necessárias para eliminar o perigo (art. 1270º
do anteprojecto do novo C. Civil e art. 654º do CCI)363.
d) Passagem forçada momentânea:
Se, para reparar algum edifício ou construção, for indispensável levantar andaime, colocar
359
Trata-se de uma hipótese de responsabilidade pelo risco, pelo que a obrigação de indemnização se verifica
independentemente de culpa do proprietário (arts. 433º a 444º do projecto).
360
Talvez por isso o CCI não o refira expressamente.
361
Mais uma vez, a obrigação de indemnizar existe independentemente de culpa (nota 296).
362
A pessoa responsável é o proprietário ou possuidor do edifício (art. 426º do projecto).
363
Se o perigo de ruína ou desmoronamento resultar de obra nova pode-se recorrer ao procedimento cautelar de
embargo de obra nova, dos arts. 334º a 339º do CPC.
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objectos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros actos
análogos, é o dono do prédio obrigado a consentir nesses actos (art. 1269º, nº 1, do anteprojecto
do novo C. Civil, igual o art. 651º do CCI)364.
No caso de recursa, o direito pode ser exercido através da providência cautelar não especificada
prevista nos arts. 305º a 316º do CPC. Ou seja, se o titular do direito for impedido de aceder ao
prédio vizinho, pode intentar procedimento cautelar não especificado por forma a poder exercer
o mesmo. Trata-se de um caso em que o procedimento cautelar não é dependente de uma acção
judicial posterior, uma vez garantido o acesso, o seu interesse encontra-se satisfeito, pelo que não
terá o titular do direito interesse em intentar a acção correspondente.
É igualmente permitido o acesso a prédio alheio a quem pretenda apoderar-se de coisas suas que
acidentalmente nele se encontrem; o proprietário pode impedir o acesso, entregando a coisa ao
seu dono (art. 1269º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil)365.
Em qualquer dos casos previstos neste artigo, o proprietário tem direito a ser indemnizado do
prejuízo sofrido (art. 1269º, nº 3, do anteprojecto do novo C. Civil).
e) Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do
homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na
sua corrente (art. 1271º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil, conforme também o art. 626º do
CCI).
364
Note-se que não se está aqui perante qualquer servidão. Não é uma servidão que se constitui, mas somente
uma passagem momentânea, embora forçada (Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 245).
365
Por exemplo, o proprietário tem que tolerar a passagem momentânea de alguém que precise ir buscar uma
coisa sua que acidentalmente se encontre na propriedade daquele, como um animal que para lá fugiu, ou uma
coisa que para lá caiu (Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 245).
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Quando exista um terreno inclinado, o proprietário da parte inferior não pode instalar um dique
contra o qual a água de torrente natural ou da chuva fique retida, uma vez que isso prejudicaria o
proprietário do terreno superior e constituiria assim uma limitação do direito deste366.
Nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do
prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição da
servidão legal de escoamento, nos casos em que é admitida (art. 1271º, nº 2, do anteprojecto do
novo C. Civil. e o art. 626º do CCI). Deve permitir-se que os terrenos recebam ou escoem as
águas naturalmente, sem que as mesmas sejam retidas. Porém, pode o proprietário do terreno
fazer obra que dirija as águas de forma menos prejudicial para o seu terreno367.
O dono do prédio onde existam obras defensivas para conter as águas, ou onde, pela variação do
curso das águas, seja necessário construir novas obras, é obrigado a fazer reparos precisos, ou a
tolerar que os façam, sem prejuízo dele, os donos dos prédios que padeçam danos ou estejam
expostos a danos iminentes (art. 1272º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil)368. O disposto no
número anterior é aplicável, sempre que seja necessário despojar algum prédio de materiais cuja
acumulação ou queda estorve o curso das águas com prejuízo ou risco de terceiro (art. 1272º, nº
2, do anteprojecto do novo C. Civil). Todos os proprietários que participam do benefício das
obras são obrigados a contribuir para as despesas delas, em proporção do seu interesse, sem
prejuízo da responsabilidade que recaia sobre o autor dos danos (art. 1272º, nº 3, do anteprojecto
do novo C. Civil).
366
Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 246.
Acórdão da Relação de Lisboa de 9-11-1979, in “Colectânea de Jurisprudência”, ano IV, tomo 5º, Casa do Juiz,
Coimbra, 1979, pág. 1597, citado por Abílio Neto, ob. cit., pág. 897.
368
O proprietário só está obrigado a tolerar que os proprietários dos prédio vizinhos façam as obras na sua
propriedade se não as fizer ele mesmo.
367
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2.2. Direito de demarcação
O proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação
das estremas entre o seu prédio e os deles – art. 1273º do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se
o art. 630º-A do CCI.
O direito de demarcação é imprescritível, sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião –
art. 1275º do anteprojecto do novo C. Civil.
2.3. Direito da tapagem
A todo o tempo o proprietário pode murar, valar, rodear de sebes o seu prédio, ou tapá-lo de
qualquer modo – art. 1276º do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 631º do CCI.
No que se refere ao direito de tapagem, o proprietário tem direito a cercar, murar, valar ou tapar
de qualquer modo o seu prédio urbano ou rural, para que possa proteger, dentro dos seus limites,
a exclusividade de seu domínio, desde que observe as disposições regulamentares e não cause
dano ao vizinho.
2.4. Construções e edificações
O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas
ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das
obras o intervalo de metro e meio – art. 1280º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil. Vejam-se
os arts. 647º a 650º do CCI.
Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam
servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela –
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art. 1280º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 647º do CCI.
Se os dois prédios forem oblíquos entre si, a distância de metro e meio conta-se
perpendicularmente do prédio para onde deitam as vistas até à construção ou edifício novamente
levantado; mas, se a obliquidade for além de quarenta e cinco graus, não tem aplicação a
restrição imposta ao proprietário – art. 1280º, nº 3, do anteprojecto do novo C. Civil.
As restrições do artigo precedente não são aplicáveis a prédios separados entre si por estrada,
caminho, rua, travessa ou outra passagem por terreno do domínio público – art. 1281º do
anteprojecto do novo C. Civil.
Janelas são as aberturas que, não sendo portas e estando niveladas com as paredes
(contrariamente às varandas que se projectam para a frente delas), tem em qualquer das suas
dimensões mais de quinze centímetros e por função, além de assegurar a entrada de luz e ar,
facultar vistas.
A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em
contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de
vistas por usucapião – art. 1282º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.
Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é
permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo
edifício ou construção e as obras mencionadas no nº 1 o espaço mínimo de metro e meio,
correspondente à extensão destas obras – art. 1282º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.
Não se consideram abrangidos pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar,
podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais
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aberturas – art. 1283º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 645º do CCI.
As frestas, seteiras ou óculos para luz e ar devem, todavia, situar-se pelo menos a um metro e
oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas
dimensões, mais de quinze centímetros; a altura de um metro e oitenta centímetros respeita a
ambos os lados da parede ou muro onde essas aberturas se encontram – art. 1283º, nº 2, do
anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 646º do CCI.
O proprietário deve edificar de modo que a beira do telhado ou outra cobertura não goteje sobre
o prédio vizinho, deixando um intervalo mínimo de cinco decímetros entre o prédio e a beira, se
de outro modo não puder evitá-lo – art. 1285º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o
art. 652º do CCI.
Constituída por qualquer título a servidão de estilicídio, o proprietário do prédio serviente não
pode levantar edifício ou construção que impeça o escoamento das águas, devendo realizar as
obras necessárias para que o escoamento se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o prédio
dominante – art. 1285º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.
2.5. Plantação de árvores e arbustos
É lícita a plantação de árvores e arbustos até à linha divisória dos prédios; mas ao dono do prédio
vizinho é permitido arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou
ramos que sobre ele propenderem, se o dono da árvore, sendo rogado judicialmente ou
extrajudicialmente, o não fizer dentro de três dias – art. 1286º, nº 1, do anteprojecto do novo C.
Civil. Veja-se o art. 666º do CCI.
Não é adquirível por prescrição (usucapião) o direito de deitar ramos, tronco ou raízes sobre o
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prédio vizinho.
O proprietário de árvore ou arbusto contíguo a prédio de outrem ou com ele confinante pode
exigir que o dono do prédio lhe permita fazer a apanha dos frutos, que não seja possível fazer do
seu lado; mas é responsável pelo prejuízo que com a apanha vier a causar – art. 1287º do
anteprojecto do novo C. Civil.
2.6. Paredes e muros de meação
O proprietário de prédio confinante com parede ou muro alheio pode adquirir nele comunhão, no
todo ou em parte, quer quanto à sua extensão, quer quanto à sua altura, pagando metade do seu
valor e metade do valor do solo sobre que estiver construído – art. 1290º, nº 1, do anteprojecto do
novo C. Civil. O CCI prevê, em contrário, que nenhum muro se possa tornar comum sem o
consentimento do seu proprietário – art. 640º do CCI.
A parede ou muro divisório entre dois edifícios presume-se comum em toda a sua altura, sendo
os edifícios iguais, e até à altura do inferior, se o não forem – art. 1291º, nº 1, do anteprojecto do
novo C. Civil. Veja-se o art. 633º do CCI.
Os muros entre prédios rústicos, ou entre pátios e quintais de prédios urbanos, presumem-se
igualmente comuns, não havendo sinal em contrário – art. 1291º, nº 2, do anteprojecto do novo
C. Civil.
São sinais que excluem a presunção de comunhão:
a) A existência de espigão em ladeira só para um lado;
b) Haver no muro, só de um lado, cachorros de pedra salientes encravados em toda a largura
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dele;
c) Não estar o prédio contíguo igualmente murado pelos outros lados – art. 1291º, nº 3, do
anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 634º do CCI.
No caso da alínea a) do número anterior, presume-se que o muro pertence ao prédio para cujo
lado se inclina a ladeira; nos outros casos, àquele de cujo lado se encontrem as construções ou
sinais mencionados – art. 1291º, nº 4, do anteprojecto do novo C. Civil.
Se o muro sustentar em toda a sua largura qualquer construção que esteja só de um dos lados,
presume-se do mesmo modo que ele pertence exclusivamente ao dono da construção – art.
1291º, nº 5, do anteprojecto do novo C. Civil.
O proprietário a quem pertença em comum alguma parede ou muro não pode abrir nele janelas
ou frestas, nem fazer outra alteração, sem consentimento do seu consorte – art. 1286º, nº 1, do
anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 644º do CCI.
Qualquer dos consortes tem, no entanto, a faculdade de edificar sobre a parede ou muro comum e
de introduzir nele traves ou barrotes, contanto que não ultrapasse o meio da parede ou do muro –
art. 1293º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil. No mesmo sentido o art. 636º do CCI.
Veja-se ainda o art. 641º do CCI – nenhum consorte pode abrir buracos ou construir contra o
muro comum, sem consentimento do outro.
Tendo a parede ou muro espessura inferior a cinco decímetros, não tem lugar a restrição do art.
1293º, nº 1, do projecto – art. 1286º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.
A qualquer dos consortes é permitido alterar a parede ou muro comum, contanto que o faça à sua
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custa, ficando a seu cargo todas as despesas de conservação da parte alterada – art. 1294º, nº 1,
do anteprojecto do novo C. Civil (art. 637º, primeira parte, do CCI).
Se a parede ou muro não estiver em estado de aguentar o alçamento, o consorte que pretender
levantá-lo tem de reconstruí-lo por inteiro à sua custa e, se quiser aumentar-lhe a espessura, é o
espaço para isso necessário tomado do seu lado – art. 1294º, nº 2, do anteprojecto do novo C.
Civil (art. 637º, segunda parte, do CCI).
O consorte que não tiver contribuído para o alçamento pode adquirir comunhão na parte
aumentada, pagando metade do valor dessa parte e, no caso de aumento de espessura, também
metade do valor do solo correspondente a esse aumento – art. 1294º, nº 3, do anteprojecto do
novo C. Civil (art. 639º do CCI).
A reparação ou reconstrução da parede ou muro comum é feita por conta dos consortes, em
proporção das suas partes – art. 1295º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil (art. 635º do CCI).
Se o muro for simplesmente de vedação, a despesa é dividida pelos consortes em partes iguais –
art. 1295º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.
Se, além da vedação, um dos consortes tirar do muro proveito que não seja comum ao outro, a
despesa é rateada entre eles em proporção do proveito que cada um tirar – art. 1295º, nº 3, do
anteprojecto do novo C. Civil.
Se a ruína do muro provier de facto do qual só um dos consortes tire proveito, só o beneficiário é
obrigado a reconstruí-lo ou repará-lo – art. 1295º, nº 4, do anteprojecto do novo C. Civil (art.
641º do CCI).
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É sempre facultado ao consorte eximir-se dos encargos de reparação ou reconstrução da parede
ou muro, renunciando ao seu direito nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 1331º – art. 1295º, nº 5,
do anteprojecto do novo C. Civil (art. 635º do CCI).
III. Defesa da propriedade
O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o
reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence –
art. 1232º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil (art. 574º do CCI).
Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos
previstos na lei – art. 1232º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.
«A causa de pedir nas acções de reivindicação, ou seja, o facto jurídico de que deriva o direito
real só pode ser constituído pela alegação de uma das formas de adquirir» - acórdão da Relação
de Lisboa de 19 de Março de 1975, sumariado no B.M.J. nº 244, Liaboa, 1975, pág. 177.
Sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião, a acção de reivindicação não prescreve pelo
decurso do tempo – art. 1234º do anteprojecto do novo C. Civil.
É admitida a defesa da propriedade por meio de acção directa, nos termos do artigo 327º – art.
1235º do anteprojecto do novo C. Civil.
O recuso à acção directa e à legítima defesa (arts. 327º e 328º do anteprojecto) pressupõe a
verificação dos seguintes requisitos: a) impossibilidade de recurso, em tempo útil, aos meios
coersivos normais, nomeadamente aos tribunais; b) violação efectiva ou eminente do direito; c)
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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racionalidade dos meios utilizados.
Quanto ao segundo requisito, há acção directa quando existe uma agressão do interesse do titular
já finda ou consumada e existe legítima defesa quando essa agressão é actual, portanto já iniciada
mas ainda não consumada.
IV. Aquisição da propriedade
O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação,
acessão e demais modos previstos na lei – art. 1237º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil (art.
584º do CCI).
Não se trata de enumeração taxativa, pelo que podem existir outros meio de aquisição da
propriedade.
a) Ocupação
Podem ser adquiridos por ocupação os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono,
ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvas as restrições dos
artigos seguintes – art. 1239º do anteprojecto do novo C. Civil (art. 574º do CCI). Vejam-se os
arts. 1240º a 1244º do anteprojecto e 585º a 587º do CCI.
Os bens móveis do domínio privado do Estado, que forem abandonados, podem ser adquiridos
por ocupação.
b) Acessão
Dá-se a acessão, quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa
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que lhe não pertencia – art. 1245º do anteprojecto do novo C. Civil (art. 588º do CCI).
A acessão diz-se natural, quando resulta exclusivamente das forças da natureza; dá-se a acessão
industrial, quando, por facto do homem, se confundem objectos pertencentes a diversos donos,
ou quando alguém aplica o trabalho próprio a matéria pertencente a outrem, confundindo o
resultado desse trabalho com propriedade alheia – art. 1246º, nº 1, do anteprojecto do novo C.
Civil.
A acessão industrial é mobiliária ou imobiliária, conforme a natureza das coisas – art. 1246º, nº
2, do anteprojecto do novo C. Civil.
Constitui benfeitoria o melhoramento de obra ou plantação já existente e acessão a obra ou
plantação nova, incluindo a acrescentada.
Se num terreno existe alguma construção, ela pode ser objecto de benfeitoria. Porém, se não
existia lá qualquer edifício, o que se construir constitui acessão e não benfeitoria.
A acessão dá-se pela mera união das coisas. Assim, o momento de aquisição por acessão é o da
união das coisas.
Porém, a aquisição por acessão não é automática, dependendo da manifestação de vontade do
beneficiário nesse sentido.
c) Acessão natural
Pertence ao dono da coisa tudo o que a esta acrescer por efeito da natureza – art. 1247º do
anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se no mesmo sentido o art. 588º do CCI.
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Pertence aos donos dos prédios confinantes com quaisquer correntes de água tudo o que, por
acção das águas, se lhes unir ou neles for depositado, sucessiva e imperceptivelmente – art.
1248º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.
É aplicável o disposto no número anterior ao terreno que insensivelmente se for deslocando, por
acção das águas, de uma das margens para outra, ou de um prédio superior para outro inferior,
sem que o proprietário do terreno perdido possa invocar direitos sobre ele – art. 1248º, nº 2, do
anteprojecto do novo C. Civil. Vejam-se os arts. 595º a 598º do CCI, que precisamente diversas
situações de aluvião.
Se, por acção natural e violenta, a corrente arrancar quaisquer plantas ou levar qualquer objecto
ou porção conhecida de terreno, e arrojar essas coisas sobre prédio alheio, o dono delas tem o
direito de exigir que lhe sejam entregues, contanto que o faça dentro de seis meses, se antes não
foi notificado para fazer a remoção no prazo judicialmente assinado – art. 1249º, nº 1, do
anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 599º do CCI que para a situação de avulsão
estabelece o mesmo regime, mas fixa o prazo de três anos para que o dono das terras, plantas ou
outros objectos deslocados os exija do dono do terreno que os recebeu.
Não se fazendo a remoção nos prazos designados, é aplicável o disposto no artigo anterior (ou
seja, no art. 1249º, nº 1, do anteprojecto) – art. 1249º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil. No
mesmo sentido a segunda parte do art. 599º do CCI.
Se a corrente mudar de direcção, abandonando o leito antigo, os proprietários deste conservam o
direito que tinham sobre ele, e o dono do prédio invadido conserva igualmente a propriedade do
terreno ocupado de novo pela corrente – art. 1250º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.
Contrariamente, nos termos do art. 592º do CCI, os donos dos terrenos que passaram a ser
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ocupados pelo leito do rio têm direito a ocupar os terrenos deixados pelo mesmo, na mesma
proporção dos terrenos que tinham, como forma de indemnização. Porém, a inundação
temporária não confere quaisquer direitos – art. 593º do CCI. Veja-se ainda o art. 594º do CCI.
Se a corrente se dividir em dois ramos ou braços, sem que o leito antigo seja abandonado, é ainda
aplicável o disposto no número anterior – art. 1250º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.
As ilhas ou mouchões que se formem nas correntes de água pertencem ao dono da parte do leito
ocupado – art. 1251º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 590º do CCI.
Se, porém, as ilhas ou mouchões se formarem por avulsão, o proprietário do terreno onde a
diminuição haja ocorrido goza do direito de remoção nas condições prescritas pelo artigo 1249º –
art. 1251º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.
As disposições dos artigos antecedentes são aplicáveis aos lagos e lagoas, quando aí ocorrerem
factos análogos – art. 1252º do anteprojecto do novo C. Civil.
d) Acessão industrial mobiliária
Se alguém, de boa fé, unir ou confundir objecto seu com objecto alheio, de modo que a
separação deles não seja possível ou, sendo-o, dela resulte prejuízo para alguma das partes, faz
seu o objecto adjunto o dono daquele que for de maior valor, contanto que indemnize o dono do
outro ou lhe entregue coisa equivalente – art. 1253º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.
Se ambas as coisas forem de igual valor e os donos não acordarem sobre qual haja de ficar com
ela, abrir-se-á entre eles licitação, adjudicando-se o objecto licitado àquele que maior valor
oferecer por ele; verificada a soma que no valor oferecido deve pertencer ao outro, é o
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adjudicatário obrigado a pagar-lha – art. 1253º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.
Se os interessados não quiserem licitar, será vendida a coisa e cada um deles haverá no produto
da venda a parte que deva tocar-lhe – art. 1253º, nº 3, do anteprojecto do novo C. Civil.
Em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, o autor da confusão é obrigado a ficar
com a coisa adjunta, ainda que seja de maior valor, se o dono dela preferir a respectiva
indemnização – art. 1253º, nº 4, do anteprojecto do novo C. Civil.
O autor da união fica sempre com o resultado da adjunção, independentemente do valor das
coisas, se a outra parte preferir a indemnização.
O CCI prevê a acessão industrial mobiliária no art. 606º, estipulando que a coisa passa a
pertencer a quem procede à incorporação, independentemente do valor, desde que pague os
materiais utilizados e indemnize o primitivo dono da coisa. Veja-se ainda o art. 608º do CCI.
Se a união ou confusão tiver sido feita de má fé e a coisa alheia puder ser separada sem padecer
detrimento, será esta restituída a seu dono, sem prejuízo do direito que este tem de ser
indemnizado do dano sofrido – art. 1254º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art.
609º do CCI, o qual tem aplicação também nos casos de acessão de boa fé.
Se, porém, a coisa não puder ser separada sem padecer detrimento, deve o autor da união ou
confusão restituir o valor da coisa e indemnizar o seu dono, quando este não prefira ficar com
ambas as coisas adjuntas e pagar ao autor da união ou confusão o valor que for calculado
segundo as regras do enriquecimento sem causa – art. 1254º, nº 2, do anteprojecto do novo C.
Civil.
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Se a adjunção ou confusão se operar casualmente e as coisas adjuntas ou confundidas não
puderem separar-se sem detrimento de alguma delas, ficam pertencendo ao dono da mais valiosa,
que pagará o justo valor da outra; se, porém, este não quiser fazê-lo, assiste idêntico direito ao
dono da menos valiosa – art. 1255º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.
Se nenhum deles quiser ficar com a coisa, será esta vendida, e cada um deles haverá a parte do
preço que lhe pertencer – art. 1255º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.
Se ambas as coisas forem de igual valor, observar-se-á o disposto nos números 2 e 3 do artigo
1253º – art. 1255º, nº 3, do anteprojecto do novo C. Civil.
Nos termos do disposto no art. 607º do CCI, se a adjunção ou confusão se operar casualmente e
as coisas adjuntas ou confundidas não puderem separar-se sem detrimento de alguma delas, fica
o novo objecto pertencendo em conjunto a todos os donos dos materiais, na proporção do valor
do material de cada um.
Quem de boa fé der nova forma, por seu trabalho, a coisa móvel pertencente a outrem faz sua a
coisa transformada, se ela não puder ser restituída à primitiva forma ou não puder sê-lo sem
perda do valor criado pela especificação; neste último caso, porém, tem o dono da matéria o
direito de ficar com a coisa, se o valor da especificação não exceder o da matéria – art. 1256º, nº
1, do anteprojecto do novo C. Civil.
Em ambos os casos previstos no número anterior, o que ficar com a coisa é obrigado a
indemnizar o outro do valor que lhe pertencer – art. 1256º, nº 2, do anteprojecto do novo C.
Civil.
Dá-se especificação quando alguém, pelo seu trabalho, dá nova forma a coisa móvel pertencente
Rui Penha (Juiz Formador CFJ)
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a outrem, de tal modo que ela não poderá ser restituída à forma primitiva, ou não o pode ser sem
perda do seu valor pela especificação – Prof. Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, pág. 435.
Se a especificação tiver sido feita de má fé, será a coisa especificada restituída a seu dono no
estado em que se encontrar, com indemnização dos danos, sem que o dono seja obrigado a
indemnizar o especificador, se o valor da especificação não tiver aumentado em mais de um
terço o valor da coisa especificada; se o aumento for superior, deve o dono da coisa repor o que
exceder o dito terço – art. 1257º do anteprojecto do novo C. Civil.
Constituem casos de especificação a escrita, a pintura, o desenho, a fotografia, a impressão, a
gravura e outros actos semelhantes, feitos com utilização de materiais alheios – art. 1258º do
anteprojecto do novo C. Civil.
e) Acessão industrial imobiliária
Aquele que em terreno seu construir obra ou fizer sementeira ou plantação com materiais,
sementes ou plantas alheias adquire os materiais, sementes ou plantas que utilizou, pagando o
respectivo valor, além da indemnização a que haja lugar – art. 1259º do anteprojecto do novo C.
Civil. Disposição semelhante à do art. 602º do CCI, o qual acrescenta que o dono dos materiais
utilizados pelo dono do terreno não pode pedir a remoção dos materiais.
A acessão industrial imobiliária constitui uma forma de aquisição da propriedade sobre um
imóvel.
São elementos constitutivos da acessão: a construção de uma obra, a sua implantação em terreno
alheio, a formação de um todo único entre o terreno e a obra, o valor de um e outro e a boa fé na
conduta do autor da obra.
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Há acessão quando se altera substancialmente a coisa, quando há uma transformação, e
benfeitoria quando se verifica um simples melhoramento de uma edificação já existente.
Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o
valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do
que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o
valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações – art. 1260º, nº 1, do
anteprojecto do novo C. Civil.
Se o valor acrescentado for igual, haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação,
pela forma estabelecida no nº 2 do artigo 1253º – art. 1260º, nº 2, do anteprojecto do novo C.
Civil.
Se o valor acrescentado for menor, as obras, sementeiras ou plantações pertencem ao dono do
terreno, com obrigação de indemnizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da
incorporação – art. 1260º, nº 3, do anteprojecto do novo C. Civil.
Entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o
terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno – art. 1260º, nº 4, do
anteprojecto do novo C. Civil.
Se alguém erigir construção usando os seus próprios materiais em terreno pertencente a outro
indivíduo o dono do terreno pode ficar com a construção para si – art. 603º do CCI.
Ou seja, só há acessão se houver boa fé.
Se quem erigiu a construção estava de boa fé o dono do terreno pode optar entre reembolsar
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quem construiu o valor dos materiais de construção e salários pagos, ou pagar uma soma
monetária equivalente ao acréscimo do valor introduzido pela construção no terreno – art. 604º
do CCI.
Conforme resulta evidente do disposto nestes artigos e nos arts. 600º e 601º do CCI, quem
procede à implantação de imóveis ou culturas em terreno alheio nunca pode por essa via adquirir
o direito de propriedade sobre o terreno.
Se a obra, sementeira ou plantação for feita de má fé, tem o dono do terreno o direito de exigir
que seja desfeita e que o terreno seja restituído ao seu primitivo estado à custa do autor dela, ou,
se o preferir, o direito de ficar com a obra, sementeira ou plantação pelo valor que for fixado
segundo as regras do enriquecimento sem causa – art. 1261º do anteprojecto do novo C. Civil.
Se alguém erigir construção usando os seus próprios materiais em terreno pertencente a outro
indivíduo, agindo de má fé, o dono do terreno pode ficar com a construção para si, ou exigir que
esta seja removida por quem procedeu à construção, a expensas deste, o qual ainda terá que
indemnizar o dono do terreno por eventuais outros prejuízos resultantes da construção – art. 603º
do CCI.
Se o dono do terreno optar por ficar com a construção ou as culturas, terá que compensar os
custos dos materiais empregues e dos salários pagos, sem poder optar pelo valor acrestado do
terreno – art. 603º do CCI.
Quando as obras, sementeiras ou plantações sejam feitas em terreno alheio com materiais,
sementes ou plantas alheias, ao dono dos materiais, sementes ou plantas cabem os direitos
conferidos no artigo 1260º ao autor da incorporação, quer este esteja de boa, quer de má fé – art.
1262º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.
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Se, porém, o dono dos materiais, sementes ou plantas tiver culpa, é-lhe aplicável o disposto no
artigo antecedente em relação ao autor da incorporação; neste caso, se o autor da incorporação
estiver de má fé, é solidária a responsabilidade de ambos, e a divisão do enriquecimento é feita
em proporção do valor dos materiais, sementes ou plantas e da mão-de-obra – art. 1262º, nº 2, do
anteprojecto do novo C. Civil.
Quando na construção de um edifício em terreno próprio se ocupe, de boa fé, uma parcela de
terreno alheio, o construtor pode adquirir a propriedade do terreno ocupado, se tiverem decorrido
três meses a contar do início da ocupação, sem oposição do proprietário, pagando o valor do
terreno e reparando o prejuízo causado, designadamente o resultante da depreciação eventual do
terreno restante – art. 1263º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.
É aplicável o disposto no número anterior relativamente a qualquer direito real de terceiro sobre
o terreno ocupado – art. 1263º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.
IV. Transmissão do direito de propriedade sobre imóveis
A transmissão do direito de propriedade sobre imóveis, bem como a constituição, transmissão ou
alteração de qualquer outro direito real sobre imóveis, tem que ser efectuada por escritura
pública – arts. 617º e 613º do CCI e art. 809º do anteprojecto do novo C. Civil.
A falta de observância da forma determina a nulidade do contrato – art. 617º do CCI e art. 211º
do anteprojecto do novo C. Civil.
Contrariamente ao que ocorre no projecto, o CCI precreve a natureza constitutiva do registo dos
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actos de transmissão, constituição ou alteração de direitos reais – arts. 616º, 618º e 620º do CCI.
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