7 - Cadernos de Estudos Sociais e Políticos

Transcrição

7 - Cadernos de Estudos Sociais e Políticos
IUPERJ
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
Cadernos de Sociologia
e Política
7
Agosto de 2004
rosto.pm6
1
27/09/04, 15:46
Sumário
APRESENTAÇÃO
5
ANDREA RODRIGUES C ARNEIRO
Migração Partidária na Câmara dos Deputados
(1999-2003)
7
BRUNO SCIBERRAS DE C ARVALHO
Da Transcendência ao Telos Político da Filosofia
da História: Hobbes “à luz” de Descartes
21
CORENTIN HECQUET, PIERRE CAUSSIN E J ÉRÔME DE
CUYPER
L’Amour comme Illustration de Monter du
Juridique
35
CRISTINA BUARQUE DE HOLLANDA
Considerações sobre História e Soberania em
Behemoth, de Thomas Hobbes
49
JULIANO BORGES
Poder e Multiplicidade em Lyotard, Deleuze e
Foucault
59
MAURÍCIO SANTORO
Do Fim da História à Guerra Preventiva
75
sumario.pm6
1
27/09/04, 15:47
PEDRO H ERMÍLIO VILLAS BÔAS CASTELO B RANCO
Resenha do livro, The Broken Covenant:
American Civil Religion in Time of Trial, de
Robert N. Bellah, 1975
91
ROGERIO DULTRA DOS SANTOS
Carl Schmitt, Direito e Juízo
99
VINICIUS BOGÉA-CÂMARA
Exercício da Cidadania Política e Capital Social:
Apontamentos para o Caso Brasileiro
111
sumario.pm6
2
27/09/04, 15:47
Apresentação
A
produção bibliográfica é um imperativo da carreira acadêmica,
ainda mais desafiador em contextos de crise.
Com este volume dos Cadernos de Sociologia e Política, a pós-graduação
do IUPERJ apresenta alguns resultados de estudos teóricos e empíricos
desenvolvidos no âmbito do mestrado e do doutorado. Comemoramos
um avanço em relação aos números anteriores: todos os artigos aqui
reunidos foram submetidos a pareceristas, cuja colaboração atesta a
qualidade desta publicação.
O leitor tem em mãos a oportunidade de compartilhar discussões
teóricas, resenhas e análises empíricas em sociologia, ciência política e
também em outras áreas conexas, como a história, a filosofia e o direito.
A variedade dos temas abordados, das perspectivas teóricas e
metodológicas adotadas e das disciplinas a que se dirigem essas
contribuições reflete a riqueza de um ambiente intelectual que deve ser
preservado.
Agradecemos a todos aqueles que submeteram seus trabalhos à revista,
aos pareceristas, à equipe de publicações e à direção do IUPERJ .
Comissão Editorial
Gabriela Tarouco
Lauro Stocco II
Teresa Cristina Vale
Fórum dos Alunos do I UPERJ
5
Migração Partidária na
Câmara dos Deputados (1999-2003)*
ANDREA RODRIGUES CARNEIRO* *
Resumo
Este artigo resgata textos produzidos por outros estudiosos do tema das
migrações partidárias, buscando testar a validade de suas conclusões para a
última legislatura. Para tanto, foram tomadas como referência as migrações
partidárias ocorridas durante a 51ª legislatura da Câmara dos Deputados (1/
2/1999 a 31/1/2003). Os resultados indicam que o fenômeno da migração
partidária, que não é mais uma novidade no cenário político brasileiro, é
bastante expressivo − cerca de 30% dos deputados federais migraram de
partido nesse período, porém, a maioria migrou uma única vez. As trocas são
mais intensas no 1º e no 3º anos da legislatura e existe alguma consistência
ideológica nelas.
Palavras-chave: migração partidária; partidos políticos; Câmara dos Deputados
Este artigo é uma versão revisada do trabalho final da disciplina “Política
Comparada: Metodologia e Análise”, ministrada pelo prof. Jairo Nicolau
no IUPERJ, no 1º semestre de 2003.
**
Bacharel em ciências sociais pela UERJ, aluna do curso de mestrado em
ciência política do I UPERJ e bolsista do CNPq. E-mail: [email protected].
*
Fórum dos Alunos do I UPERJ
7
A
pós a abolição do instituto da fidelidade partidária pela Emenda
Constitucional nº 25, de maio de 1985, o sistema partidário brasileiro
adquiriu uma instigante peculiaridade: a intensa troca de legendas por
parte dos parlamentares. O objetivo deste trabalho é dar prosseguimento
às pesquisas existentes sobre o assunto.
Com o intuito de testar a validade das conclusões obtidas por Nicolau
(1996a) e Melo (2000) para legislaturas anteriores, foram analisadas as
migrações partidárias ocorridas durante a 51ª legislatura da Câmara
dos Deputados, que se estendeu de 1/2/1999 a 31/1/2003.
A base de dados, obtida junto à Secretaria Geral da Mesa da Câmara
dos Deputados, lista todas as mudanças de partido, citando o nome do
parlamentar, sua situação (titular, suplente ou ex-suplente1 ), a unidade
da Federação que representa, os partidos de origem e destino, e a data
da troca. Adotando a metodologia desenvolvida por Nicolau (1996a),
os suplentes e ex-suplentes foram excluídos da análise, sendo
considerados apenas os deputados titulares eleitos em 1998.
Uma dificuldade trazida pela base de dados foi a existência da opção
“Sem Partido” para origem e destino, gerando dúvidas em três situações.
As soluções propostas para essas situações são mostradas no Quadro 1.
Quadro 1
Critério Adotado
Situações
Partido A Æ Sem Partido
Sem Partido Æ Partido B
Partido A Æ Sem Partido
Sem Partido Æ Partido A
Partido A Æ Sem Partido
Solução
Partido A Æ Partido B
(uma migração)
Afastamento temporário
(não houve migração)
Defecção
(não houve migração)
A primeira situação ocorre quando o deputado deixa o partido e não se
filia imediatamente a outro, mas sim posteriormente. Aqui, as duas
mudanças foram computadas como se fossem uma única migração
ocorrida na data em que o deputado deixou o partido. A segunda é a do
8
Cadernos de Sociologia e Política
deputado que sai do partido, passa um certo tempo sem partido e termina
por regressar ao partido original. Nesse caso, as duas mudanças foram
consideradas como afastamento temporário, ou seja, não foram
computadas como migrações. Por fim, a terceira situação acontece
quando o deputado abandona o partido e não se filia a nenhum outro
até o fim do mandato, sendo exemplos os deputados Hildebrando
Pascoal (PFL/AC) e Fernando Zuppo (PSDC/SP), cujos abandonos não
foram computados como migrações, mas como defecções.
Neste trabalho, portanto, considero que uma defecção ocorre quando
um deputado deixa o partido pelo qual foi eleito e permanece na
Câmara, filiando-se ou não a outro partido. Se um deputado se afasta
da Câmara para exercer um outro cargo, tal como o de ministro ou
secretário estadual, não há defecção, pois ele não está mudando de
partido. Da mesma forma, só se configura uma adesão quando um
deputado que realizou uma defecção se filia a um outro partido. Dessa
forma, como as variações apresentadas nas bancadas dos partidos não
se devem somente às migrações partidárias, apenas a bancada eleita
será considerada neste estudo.
Na legislatura 1999-2003, dos 513 deputados eleitos, 153 (29,82%)
migraram. Tal porcentagem vem corroborar a constatação de Melo
(2000) de que, desde 1982, em média, 30% dos deputados eleitos
migram ao menos uma vez durante o mandato. Apesar de ser a minoria,
trata-se de um índice bastante alto se comparado ao de outros países.
De acordo com a Tabela 1, houve deputados que migraram mais de
uma vez durante a legislatura considerada, chegando-se ao total de 223
migrações. O campeão de migrações foi o deputado alagoano João
Caldas, que, em menos de dois anos, mudou sete vezes de partido.
Eleito pelo PMN, ele chegou a entrar e sair três vezes do PL, antes de
se filiar em definitivo a esse partido.
Verifica-se, no entanto, que a maioria (cerca de 70%) dos deputados
migrantes troca de partido apenas uma vez, e que, ao contrário do que
o senso comum supõe e da imagem negativa enfatizada pela imprensa,
a migração partidária não é um fenômeno majoritário entre a classe
política.
Fórum dos Alunos do I UPERJ 9
Tabela 1
Número de Deputados Migrantes e Número de Migrações
(1999-2003)
Nº de vezes
que migrou
1
2
3
4
5
6
7
Total
Nº de
deputados
% do nº de
deputados
Nº de
migrações
107
33
9
1
2
1
153
69,93
21,57
5,88
0,65
1,31
0,65
100,00
107
66
27
4
12
7
223
Analisando as migrações por ano da legislatura, ilustradas na Tabela 2,
percebe-se uma grande oscilação no período: no 1º e no 3º anos, as
migrações são muito mais freqüentes do que no 2º e 4º.
Tabela 2
Migrações por Ano da Legislatura
(1999-2003)
Ano da legislatura
Nº de migrações % das migrações
1º (1/2/99 a 31/1/00)
98
43,95
2 º (1/2/00 a 31/1/01)
26
11,66
3 º (1/2/01 a 31/1/02)
81
36,32
4º (1/2/02 a 31/1/03)
18
8,07
Total
223
100,00
Segundo Melo (idem), as migrações ocorridas no 1º ano são
conseqüência de uma reacomodoção dos deputados em face do resultado
estadual ou nacional das eleições e da busca por uma legenda mais
favorável visando às eleições municipais. Já as migrações ocorridas no
3º ano são motivadas pela iminente renovação da própria Câmara. Os
resultados aqui encontrados confirmam a previsão de Melo (idem) de
que as migrações no 1º ano da 51ª legislatura iriam superar o total de
83 migrações registrado em 1995 (1º ano da legislatura anterior), bem
como a tendência de migrações mais intensas no 1º e 3º anos do
mandato.
10
Cadernos de Sociologia e Política
As migrações por estado também foram pesquisadas. A Tabela 3 mostra
como se distribuem as defecções dos deputados eleitos em 1998 por
estado.
Tabela 3
Defecções de Deputados Eleitos por Estado
(1999-2003)
Estados
Nº de
Nº de
% de
deputados
defecções
defecções
eleitos
Roraima
8
7
87,50
Acre
8
5
62,50
Paraíba
12
7
58,33
Mato Grosso
8
4
50,00
Rondônia
8
4
50,00
Alagoas
9
4
44,44
Rio de Janeiro
46
20
43,48
Amazonas
8
3
37,50
Amapá
8
3
37,50
Mato Grosso do Sul
8
3
37,50
Sergipe
8
3
37,50
Tocantins
8
3
37,50
Pernambuco
25
9
36,00
Paraná
30
10
33,33
Espírito Santo
10
3
30,00
Goiás
17
5
29,41
Maranhão
18
5
27,78
São Paulo
70
19
27,14
Bahia
39
10
25,64
Rio Grande do Norte
8
2
25,00
Ceará
22
5
22,73
Minas Gerais
53
12
22,64
Piauí
10
2
20,00
Rio Grande do Sul
31
4
12,90
Pará
17
2
11,76
Distrito Federal
8
Santa Catarina
16
Total
513
154 (*)
(*) Foi incluído o deputado Hildebrando Pascoal, que abandonou o
PFL e ficou sem partido até ser cassado.
Fórum dos Alunos do IUPERJ 11
Comparando os resultados acima com os das legislaturas anteriores
exibidos em Melo (1999), não se verifica uma tendência clara nas
defecções por estado. Aqueles que apresentaram as maiores porcentagens
de defecção nas últimas legislaturas foram Roraima, Acre e Rondônia;
os estados com menor porcentagem de migração foram Rio Grande do
Sul, Santa Catarina e Distrito Federal.
O estado com o maior número de deputados migrantes foi o Rio de
Janeiro (20). Levando-se em conta os deputados que migraram mais de
uma vez, conclui-se que o estado, sozinho, respondeu por 44 das 223
migrações (19,73%).
Quanto às migrações por partido, a Tabela 4 fornece os seguintes dados:
Tabela 4
Defecções de Deputados Eleitos por Partido
(1999-2003)
Partido
Nº de
Nº de
% de
deputados
defecções
defecções
eleitos
PRONA
1
1
100,00
PV
1
1
100,00
PST
1
1
100,00
PSC
2
2
100,00
PMN
2
2
100,00
PSD
3
3
100,00
PL
12
10
83,33
PDT
25
10
40,00
PTB
31
12
38,71
PPB
60
22
36,67
PFL
105
31
29,52
PSDB
99
29
29,29
PMDB
83
24
28,92
PSB
19
5
26,32
PT
58
1
1,72
PSL
1
PPS
3
PC do B
7
Total
513
154 (*)
(*) Foi incluído o deputado Hildebrando Pascoal, que
abandonou o PFL e ficou sem partido até ser cassado.
12
Cadernos de Sociologia e Política
Verifica-se que seis partidos pequenos 2 , perderam todos os seus
deputados, que buscaram partidos maiores; por outro lado, três legendas
não perderam nenhum deputado. Também se confirma a tradicional
fidelidade partidária do PT, do PPS (antigo PCB) e do PC do B. As
cinco defecções do PSB ocorreram em Pernambuco (reduto político de
Miguel Arraes), provavelmente, por questões relativas à entrada de
Anthony Garotinho (então governador do Rio de Janeiro) no partido.
Os dados da tabela de defecções por partido permitem verificar,
igualmente, as tendências ideológicas das migrações. Nesse sentido, o
que se constata é que os partidos que compõem o espectro ideológico
de esquerda (PC do B, PPS e PT), à exceção do PDT – cujo índice de
defecção é bastante elevado, apresentam níveis de defecção irrelevantes
(ver Tabela 5).
Tabela 5
Defecções e Adesões Totais por Partido
(1999-2003)
Partido3
PPB
PFL
PTB
Pequenos de Direita
Total/Direita
PMDB
PSDB
Total/Centro
PDT
PT
Pequenos de Esquerda
Total/Esquerda
Total
Nº de
defecções
26
38
16
46
126
33
40
73
11
1
12
24
223
% de
defecções
11,66
17,04
7,17
20,63
56,50
14,80
17,94
32,74
4,93
0,45
5,38
10,76
100,00
Nº de
adesões
15
27
26
62
130
33
33
66
1
3
23
27
223
% de
adesões
6,73
12,11
11,66
27,80
58,30
14,80
14,80
29,60
0,45
1,35
10,31
12,11
100,00
Estendendo esta análise para os deputados que migraram mais de uma
vez, verifica-se que o partido que mais se beneficiou com as migrações
foi o PTB, que aumentou sua bancada em 10 deputados ao longo da
legislatura, correspondendo a um crescimento de 32,26%. Já a maior
Fórum dos Alunos do IUPERJ
13
redução de bancada foi sofrida pelo PDT (40%), com saldo negativo de
10 deputados. Já o PPB reduziu 18,33% e o PFL, 10,48% (11 deputados
cada).
Resta observar a direção das migrações, isto é, os partidos e blocos
ideológicos de origem e de destino das trocas de legenda (ver Tabelas 6
e 7).
Tabela 6
Partidos de Origem e de Destino das Migrações
(1999-2003)
Origem →
PPB
PFL
PTB
PMDB
PSDB
PDT
PT
Destino ↓
PPB
PFL
PTB
Peq. Dir.
PMDB
PSDB
PDT
PT
Peq. Esq.
Peq.
Dir.
Peq.
Esq.
3
4
3
11
2
3
5
7
6
7
8
5
4
6
4
1
1
2
5
4
24
3
7
1
2
4
4
7
12
4
6
6
6
10
6
1
1
4
3
3
1
1
3
1
-
2
3
1
2
2
2
Tabela 7
Blocos Ideológicos de Origem e de Destino das Migrações
Origem 
Direita
Centro
Esquerda
Total
Destino 
Direita
Centro
Esquerda
Total
73 (32,73%)
43 (19,28%)
10 (4,48%)
126 (56,50%)
45 (20,18%)
18 (8,07%)
10 (4,48%)
73 (32,73%)
12 (5,38%)
5 (2,24%)
7 (3,14%)
24 (10,76%)
130 (58,30%)
66 (29,60%)
27 (12,11%)
223 (100,00%)
Observando-se os dados, constata-se a natureza ideológica das migrações
partidárias. A direita é o campo ideológico que mais recebe adesões
(58,30%), bem como o que mais sofre defecções (56,50%), corroborando
a afirmação de Nicolau (1996a), Melo (2000) e Santos (2001) de que a
14
Cadernos de Sociologia e Política
direita conhece uma taxa maior de migração partidária do que o centro
e a esquerda.
Das 126 migrações oriundas dos partidos de direita, 73 (57,93%)
encaminharam-se para a própria direita e 43 (34,13%) para o centro,
campo ideologicamente próximo. Apenas 10 (7,94%) se destinaram à
esquerda, ou seja, foram poucos os deputados que cruzaram de um
extremo a outro do espectro político.
Das 73 migrações dos partidos de centro, 45 (61,64%) tiveram como
destino os partidos de direita. Isto é, a direita foi o principal destino
das migrações de centro.
Os deputados de esquerda foram os que menos migraram, sendo
responsáveis por apenas 10,76% do total de migrações. Contudo, suas
migrações foram as mais incoerentes, pois na metade dos casos elas
tiveram como destino partidos de direita. Cabe destacar que a
incoerência das trocas originadas na esquerda se deve às exceções que
o PDT e o PSB representam dentro desse campo ideológico: dos onze
deputados que deixaram o PDT, seis foram para partidos de direita,
dois para partidos de centro e apenas três para partidos de esquerda;
das sete migrações do PSB, três destinaram-se a partidos de centro,
dois a partidos de direita e dois a partidos da própria esquerda.
Os altos índices de migração encontrados para o PDT e para o PSB,
que perfazem 18 das 24 migrações efetuadas pela esquerda, revelam
um grau de heterogeneidade em suas bancadas muito superior ao
verificado entre os demais partidos de esquerda.
Em suma, os dados aqui apresentados para a legislatura de 1999 a 2003
repetem os padrões do fenômeno da migração partidária já encontrados
por Nicolau (1996a), Melo (2000) e Santos (2001): cerca de 30% dos
deputados eleitos migraram; a maioria migrou uma única vez; as trocas
de legenda foram mais intensas no 1º e no 3º anos da legislatura; os
deputados de direita foram os que mais migraram, todavia mais
coerentemente; e a esquerda migrou menos, mas sua migração foi mais
incoerente.
Fórum dos Alunos do I UPERJ
15
Conclui-se que a alteração da Câmara, ou seja, do sistema partidário
parlamentar, afasta-se, à revelia do eleitor, do sistema partidário eleitoral,
ou seja, do resultado das urnas. Isto é, caso o voto do eleitor tenha sido
conferido a um candidato em conseqüência de sua filiação partidária
na época das eleições, trata-se de uma distorção de sua vontade a alteração
do perfil partidário da Câmara resultante das trocas individuais de
legenda. Esta observação é feita por Olavo Brasil de Lima Junior:
“[...] o conjunto de preferências manifestadas pelo eleitorado não se
constitui no principal determinante da composição partidária do
Congresso. Mecanismos outros se expressaram com tal intensidade
que levaram o sistema partidário parlamentar a se afastar do sistema
partidário eleitoral. Tais mecanismos incluem a criação de partidos
no Congresso, por razões as mais diversas, sem que tivessem passado
previamente pela aprovação das urnas, e a migração individual de
parlamentares para partidos assim criados e para outros, que
previamente se submeteram ao processo eleitoral” (1993:17).
As trocas de partido durante o mandato já foram ressaltadas por vários
autores, dentre eles Nicolau (1996a), Schmitt (1999), Santos (2001) e
Melo (1999; 2000). De acordo com Nicolau,
“[...] o que existe de singular na experiência brasileira do período
1985-1994 é a intensidade e a permanência destas mudanças, [...] e a
existência de uma norma legal liberalizante não obriga os atores a se
comportarem de maneira liberal. Essa proposição [...] sugeriria o
seguinte raciocínio: uma legislação que faculta a livre troca de partidos
poderia simplesmente ser ignorada pela elite política. Como vimos,
tal não ocorreu” (1996b:65, 69-70).
Resta, pois, descobrir os motivos para esse fenômeno, que já pode ser
considerado persistente. Entre as respostas possíveis levantadas por
estudiosos do tema, estão a busca do sucesso político e de um melhor
posicionamento na Câmara; o fato de as regras do sistema partidário e
eleitoral facilitarem as migrações; e a não-punição por parte dos eleitores
nas urnas. Estes fatores são tidos como incentivos para a ação individual
do parlamentar que troca de legenda sempre que necessário.
Schmitt (1999) analisa na Câmara dos Deputados a relação existente
entre migração partidária e as taxas de reapresentação e reeleição,
16
Cadernos de Sociologia e Política
concluindo que as chances de um deputado concorrer à eleição seguinte
aumentam se ele tiver migrado, mas o sucesso eleitoral, ou seja, as
chances de reeleição diminuem para os deputados infiéis aos seus
partidos de origem, existindo, então, um custo para a migração. Para
ele, as evidências reforçam as interpretações que justificam
“[...] a migração como uma estratégia do deputado para maximizar o
seu espaço político, proporcionando-lhe a oportunidade de disputar
um novo mandato em melhores condições. Por outro lado, a eficácia
desta estratégia é comprometida pelas preferências dos eleitores e
pelas regras do sistema eleitoral, de tal modo que os resultados eleitorais
acabam por punir preferencialmente os deputados migrantes, não
lhes concedendo um novo mandato, e favorecendo os que
permaneceram fiéis aos seus partidos” (idem:145).
Enfim, é necessário um estudo mais aprofundado do tema para se poder
entender a extensão dos incentivos que, aparentemente, as regras
eleitorais4 fornecem ao fenômeno da migração, já que os deputados
poderiam simplesmente ignorá-las e continuar em suas legendas, bem
como as razões dessa movimentação que parece não estar recuando, ao
contrário, mantém uma margem de 30% nas últimas cinco legislaturas,
tornando-se mais uma alternativa para a classe política, além de um
sinal de fragilidade dos partidos enquanto instituição.
(Recebido para publicação em outubro de 2003)
Fórum dos Alunos do IUPERJ
17
Notas
1. Deputado ex-suplente é o que substituiu um deputado que se afastou
do cargo.
2. Entende-se aqui como partidos pequenos aqueles que obtiveram menos
de 5% de representação na Câmara.
3. A classificação de alguns partidos pequenos é problemática, porém
o resultado das tabelas é pouco influenciado por essa incerteza. Os
partidos foram agregados em blocos da seguinte forma:
- Direita: PPB, PFL e PTB
- Pequenos de direita: PHDBS, PL, P RONA, PRTB, PSC, PSD,
PSDC, PSL, PST e PTN
- Centro: PMDB e PSDB
- Esquerda: PDT e PT
- Pequenos de esquerda: PC do B, PMN, PPS, PSB e PV.
4. “Para a literatura especializada, a combinação entre migração
partidária, listas abertas e coligações eleitorais configura um cenário
desfavorável à consolidação de partidos, pois oferece incentivos para
o individualismo e dificultaria a coordenação partidária da ação
parlamentar” (Schmitt, 1999:128).
18
Cadernos de Sociologia e Política
Referências Bibliográficas
LIMA JUNIOR, Olavo Brasil de. (1993), Democracia e Instituições
Políticas no Brasil dos Anos 80. São Paulo, Edições Loyola.
MELO, Carlos Ranulfo Felix de. (1999), Retirando as Cadeiras do Lugar:
Migração Partidária na Câmara dos Deputados (1985-1998). Tese de
Doutorado, UFMG, Belo Horizonte.
___. (2000), “Partidos e Migração Partidária na Câmara dos Deputados”.
Dados, vol. 43, nº 2.
NICOLAU, Jairo Marconi. (1996a), “A Migração Partidária na Câmara
dos Deputados (1991-1996)”. Monitor Público, ano 3, nº 10, Rio de
Janeiro.
___. (1996b). Multipartidarismo e Democracia: Um Estudo sobre o
Sistema Partidário Brasileiro (1985-94). Rio de Janeiro, Fundação
Getulio Vargas Editora.
SANTOS, André Marenco dos. (2001), “Sedimentação de Lealdades
Partidárias no Brasil: Tendências e Descompassos”. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, vol. 16, nº 45.
SCHMITT, Rogério. (1999), “Migração Partidária e Reeleição na
Câmara dos Deputados”. Novos Estudos CEBRAP, nº 54.
Para a elaboração do banco de dados utilizado neste trabalho, foram
consultadas as seguintes fontes:
NICOLAU, Jairo Marconi. (2002), “Eleições 1998: Número de Cadeiras
Obtidas pelos Partidos”. Dados Eleitorais do Brasil (1982-2002). Rio
de Janeiro, IUPERJ.
SECRETARIA GERAL DA CÂMARA. (2003), Quadro de Mudanças
de Partido para a 51ª Legislatura. Brasília.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. (1998), Deputados Federais
Eleitos em 1998. Brasília.
Fórum dos Alunos do I UPERJ
19
Glossário
PC do B - Partido Comunista do Brasil
PDT - Partido Democrático Trabalhista
PFL - Partido da Frente Liberal
PHDBS - Partido Humanista Democrático Brasil Solidariedade
PL - Partido Liberal
PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PMN - Partido da Mobilização Nacional
PPB - Partido Progressista Brasileiro
PPS - Partido Popular Socialista
PRONA - Partido de Reedificação da Ordem Nacional
PRTB - Partido Renovador Trabalhista Brasileiro
PSB - Partido Socialista Brasileiro
PSC - Partido Social Cristão
PSD - Partido Social Democrático
PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira
PSDC - Partido Social Democrata Cristão
PSL - Partido Social Liberal
PST - Partido Social Trabalhista
PT - Partido dos Trabalhadores
PTB - Partido Trabalhista Brasileiro
PTN - Partido Trabalhista Nacional
PV - Partido Verde
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Cadernos de Sociologia e Política
Da Transcendência ao Telos Político
da Filosofia da História:
Hobbes “à luz” de Descartes
BRUNO SCIBERRAS
DE
CARVALHO*
Resumo
O artigo sugere que a fundamentação epistemológica hobbesiana não é
perfeitamente compreensível sem o referencial teórico cartesiano. O texto
apresenta uma exposição concisa dos argumentos centrais de Descartes,
procurando focalizar a distinção entre a dimensão racional e os sentidos.
Além disso, busca demonstrar as conseqüências de tal epistemologia sobre o
pensamento de Hobbes, assim como os problemas apresentados por este nos
campos do pensamento e da prática política. Por fim, é sugerido que resulta
da filosofia de ambos os autores uma filosofia da história que tende a definir
um sentido temporal proclamado como racional, o que acarreta fortes
conseqüências à política.
Palavras-chave: teoria política; racionalismo; filosofia da história
* Doutorando em ciência política no IUPERJ. E-mail: [email protected].
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Dentre as diversas características expostas pela história da presunção
da racionalidade humana, a definição de “verdades”, contrariando
disputas e conflitos filosóficos, constitui o fato fundamental. Para o
pensamento moderno, a elaboração teórica do racionalismo do século
XVII representa um paradigma essencial desta presunção, o que acarreta
fortes conseqüências ao campo da política. No caminho teórico seguido
por Descartes à descoberta de suas “idéias claras e distintas”, transparece
um conhecimento fundado na conjunção das dimensões epistemológica
e metafísica, em que o objetivo primordial é a descoberta de um método
purificado das instâncias ordinárias. Da mesma forma, a teoria
hobbesiana pressupõe forte ênfase nas qualidades racionais humanas,
sustentando demonstrações tomadas como verdades inadiáveis. Em uma
época em que o ceticismo e o relativismo alcançavam grande influência,
o racionalismo de ambos os autores circunscrevia o campo político em
torno de um modelo que tinha a ordem e a previsibilidade como
dimensões mais valorizadas.
O argumento aqui exposto sugere que a fundamentação epistemológica
cartesiana fornece os subsídios para a justificação da ontologia política
definida por Hobbes, ou melhor, que a objetividade e a filosofia da
história hobbesiana não são perfeitamente compreensíveis sem o
referencial da racionalidade cartesiana. A fim de apresentar tal
argumento, parto da configuração da epistemologia exposta no
raciocínio cartesiano, procurando focalizar a construção do paradigma
essencial que distingue a dimensão racional dos sentidos. Posteriormente,
por meio de uma análise da filosofia de Hobbes, delineio as
conseqüências efetivamente políticas de tal epistemologia, demonstrando
as dificuldades que a utopia hobbesiana enfrenta em face de um mundo
complexo. Por fim, concluo que o referencial político resultante da
filosofia de ambos os autores é baseado em uma desqualificação da
ação humana em função de uma filosofia da história que define a priori
um sentido temporal proclamado como natural e racional.
Solipsismo e Verdade Cartesiana: A Experiência Ordinária
enquanto Ilusão
Descartes assumiu como principal objetivo de seu projeto filosófico a
crítica da transposição dos problemas que a Reforma havia colocado
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no terreno da religião para a esfera da ciência, o que reduzia qualquer
pensamento à mera opinião. Defendendo o solipsismo como caminho
para distinguir o mundo fenomênico de uma ontologia objetiva,
Descartes declara como ponto de partida filosófico tomar todos os
argumentos elaborados até então como falsos, “resolvendo-me a não
mais procurar outra ciência, além daquela que se poderia achar em
mim próprio [...] e assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos erros
que podem ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de
ouvir a razão” (1973a:41).
O paradigma estaria localizado nas ciências matemáticas, pois, “entre
todos os que precedentemente buscaram a verdade nas ciências, só os
matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas
razões certas e evidentes [...]” (idem:47). A idéia de método foi
fundamental para a sistematização da ciência cartesiana, que desenvolvia
uma abordagem singular que relacionava a metodologia a qualidades
de eficiência e economia de esforço mental. O método aparecia como
um atalho, possibilitando um caminho sem erros que alcançava, em
seu limite, a verdade transcendente. Descartes procurava contrapor-se
diretamente à argumentação escolástica, tentando demonstrar que sua
fundamentação em torno de quatro princípios simples era “mais natural”
que os postulados estabelecidos anteriormente a partir de meras
probabilidades. O primeiro princípio defendia o acolhimento restrito
de coisas verdadeiras que não possibilitassem nenhuma dúvida, ou seja,
que fossem claras e evidentes. O segundo sustentava o parcelamento de
todas as dificuldades. O terceiro, a organização dos pensamentos,
partindo dos mais simples até alcançar os “pensamentos compostos”.
Finalmente, o quarto princípio estaria fundado nas revisões de todo o
quadro do pensamento.
Um ponto fundamental é que a verificação da verdade estaria
metodologicamente articulada à dúvida. Como lembra Popkin
(1979:177), o método cartesiano de certificação de certezas apresentase como um esforço sistemático de aplicação de dúvidas, que procurava
desenvolver ortodoxamente, em um primeiro momento, todos os
caracteres analíticos do ceticismo. O argumento central de Descartes
sobre a desconfiança para com o mundo ordinário funda-se no raciocínio
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cético sobre as ilusões dos sentidos. A postulação de que toda
experiência pudesse ser parte de um sonho, ou mesmo o sonho ser a
realidade efetiva, possibilitava a Descartes duvidar de todos os objetos
concretos e das sensações derivadas. No mesmo sentido, a incorporação
do problema do malin génie (deus enganador), que enganaria os homens
e distorceria os fatos sistematicamente, revela a argumentação cética
levada ao seu limite.
Contudo, a idéia do deus enganador é apenas um esforço metodológico
provisório para a destituição das opiniões ordinárias 1. O ponto
fundamental que distingue a metodologia cartesiana da cética é sua
orientação a um solipsismo contemplativo, em vez de uma “entrega” à
vida comum. Contrariando o pressuposto cético de que todas as
afirmações devem ser tomadas apenas como “crenças”, Descartes tem
como objetivo encontrar algum fato que seja indubitável. A oposição
entre a experiência e a racionalidade surge quando o argumento do
cogito postula, mesmo na hipótese de um deus enganador, que a
contestação de todas as opiniões pressupõe, necessariamente, a verdade
irrefutável da existência de um ser e seu pensamento. Assim, seria
impossível negar a realidade de um espírito, mesmo sem a evidência
concreta da presença de algum corpo no mundo, pois o homem cartesiano
é, efetivamente, “uma substância cuja essência ou natureza consiste
apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem
depende de qualquer coisa material” (Descartes, 1973a:55). A afirmação
“penso, logo existo” possibilitava a Descartes o princípio medular para
a negação da argumentação cética e o alicerce de uma verdade essencial
que certifica o homem da possibilidade, eminentemente política, de se
“tornar como que senhores e possuidores da natureza” (idem:71). A
distinção entre corpo e alma viabilizava, sobretudo, a elaboração de
uma oposição entre aparência e essência. A percepção reflexiva, nesse
caso, não seria
“[...] uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação [...], mas somente
uma inspeção do espírito, que pode ser imperfeita e confusa, como
era antes, ou clara e distinta, como é presentemente, conforme minha
atenção se dirija mais ou menos às coisas que existem nela e das quais
é composta” (idem, 1973b:105).
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O único limite ao conhecimento racional seria a possibilidade do erro,
pois a compreensão seria finita e limitada pela linguagem comum.
Beyssade (1991:45-46) chama a atenção para a distinção que Descartes
propõe entre vontade e compreensão: enquanto a primeira aparece fora
do contexto das idéias claras e distintas, a última requer um
entendimento penoso. O erro apresentaria um caráter irrevogável, pois
seria impossível a separação da alma do corpo que a mantém, assim
como uma independência da alma diante das paixões. Esta ligação
fundamentaria as exigências das paixões sobre os nossos espíritos,
negando o advento espontâneo das idéias claras e distintas.
É fundamental perceber que o argumento cartesiano da separação entre
alma e corpo depende de um postulado teológico. A alma pressupõe
alguma dimensão de imortalidade e um ser portador de perfeição, em
oposição ao caráter perecível e finito das instâncias materiais das quais
o corpo humano depende. As idéias sobre “substâncias” apresentariam
mais realidade objetiva que as idéias que representam sensorialmente
coisas materiais, prescrevendo um caminho de perfeição (ou realidade
objetiva) que alcança Deus em seus limites. Assim, o homem cartesiano
aparece, enquanto finito e dotado de carência, entre a perfeição e o
nada, pois
“[...] quando penso apenas em Deus, não descubro em mim nenhuma
causa de erro ou de falsidade; mas em seguida, retornando a mim, a
experiência me ensina que estou, não obstante, sujeito a uma
infinidade de erros e, ao procurar de mais perto a causa deles, noto
[...] uma certa idéia negativa do nada [...]” (Descartes, 1973b:124).
Por outro lado, a verdade aparece como “sementes [...] que existem
naturalmente em nossas almas” (idem, 1973a:72), de forma que ela
não deve ser produzida mas descoberta, pois “É certo que não encontro
menos [...] a idéia de um ser soberanamente perfeito, do que a idéia de
qualquer figura ou de qualquer número que seja” (idem, 1973b:132).
Aqui, cabe notar que a argumentação cartesiana propõe uma refutação
do fideísmo tão influente em sua época, cujos postulados relacionavam
a dúvida ao encontro de um conhecimento verdadeiro provindo de
Deus por intermédio da graça. Descartes, diferentemente, procura
alguma dignidade no conhecimento humano, articulando a busca da
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verdade a razões especificamente filosóficas, pois a graça divina não
ocorreria misteriosamente em um tempo e espaço restritos, mas seria
alcançada por um esforço lógico em perceber as idéias inatas e
verdadeiras inscritas em todos os homens.
A sistematização da oposição cartesiana entre uma essência racional e
uma aparência fundada nos sentidos transparece também na
epistemologia hobbesiana. Contudo, a certificação cartesiana de uma
verdade contraposta ao mundo fenomênico aparece em Hobbes como
um fato não problematizado, tanto é que ele não reproduz o debate
com o ceticismo. A contraposição entre sentido e razão é elaborada
diretamente, de maneira que um conhecimento exato sobre os fatos
deveria rejeitar as imaginações espontâneas e a memória. Para Hobbes,
a sensação “nada mais é do que a ilusão originária, causada (como
disse) pela pressão, isto é, pelo movimento das coisas exteriores nos
nossos olhos, ouvidos e outros órgãos a isso determinados” (1997:32).
Hobbes e a Política: Os “Problemas” da Razão vis-à-vis o Mundo
Ordinário
Da mesma forma que Descartes, Hobbes enfatizava a necessidade de se
dirigir à descoberta dos elementos mais simples e gerais articulados em
torno de princípios primários. A finalidade científica seria a certificação
de regularidades naturais, observáveis empiricamente a partir de uma
teoria da causalidade. Hobbes argumenta que a própria linguagem
ordinária já possibilitaria naturalmente a verificação de causalidades
pela imposição de nomes, que registram relações de causa e efeito
entre os fatos. O problema seriam os abusos a que este vocabulário
estaria exposto, pois seus conceitos se baseariam em significações
inconstantes, ou seja, em metáforas qualificadas a partir da memória.
Cabe lembrar que Hobbes sustenta que a falibilidade da linguagem
humana foi iniciada na Torre de Babel, quando os homens rejeitaram o
idioma enviado por Deus, sendo punidos com um sistema de expressão
que obedecia somente aos diferenciados sentidos humanos. Dada a
impossibilidade de uma correspondência perfeita entre objeto e
linguagem ordinária, Hobbes defende que seria essencial a criação de
uma nova base lingüística dirigida novamente à essência universal dos
fatos.
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Para sistematizar um conhecimento verdadeiro, o método hobbesiano
teria, cartesianamente, a matemática como paradigma. A razão “nada
mais é do que cálculo (isto é, adição e subtração) das conseqüências de
nomes gerais estabelecidos para marcar e significar nossos pensamentos”
(idem:51-52). A partir de uma teoria e metodologia da causalidade,
Hobbes defende que a finalidade da razão seria estabelecer a verdade
sobre as conseqüências de todos os nomes até o estabelecimento de
regras gerais, os teoremas. A razão não nasceria espontaneamente nos
homens, como a sensação e a memória, mas poderia ser adquirida com
esforço, primeiramente
“[...] através de uma adequada imposição de nomes, e em segundo
lugar através de um método bom e ordenado de passar dos elementos,
que são nomes, a asserções feitas por conexão de um deles com o
outro [...] até chegarmos a um conhecimento de todas as conseqüências
de nomes referentes ao assunto em questão, e é a isto que os homens
chamam ciência” (idem:54).
É importante perceber que a ciência possui aqui uma proposta
claramente técnica, que refuta a sensação e a memória em prol de um
conhecimento que estabelece uma cadeia irrefutável entre meios e fins,
“porque quando vemos como qualquer coisa acontece, devido a que
causas, e por que maneira, quando causas semelhantes vierem ao nosso
poder, sabemos como fazê-las produzir os mesmos efeitos” (ibidem).
Entretanto, a partir desse momento, Hobbes inicia uma argumentação
prudente em que os postulados técnicos da sua racionalidade se
contrapõem à complexidade dos assuntos humanos. Assim, transparece
em sua análise, ainda que de forma particular, os mesmos problemas
detectados por Descartes na relação entre razão e prática. A diferença
entre os autores restringe-se ao tratamento exclusivamente epistemológico
de Descartes em lugar da análise eminentemente política de Hobbes.
Admitindo o caráter irrevogável do erro, Descartes (1973b:124) declara
que a condição humana é naturalmente imperfeita, fundada entre o
“nada” da vida ordinária e a perfeição de Deus. Nesse sentido, Descartes
afirma que durante o trabalho no novo “método” as antigas opiniões
não deveriam ser abandonadas, uma vez que os indivíduos não poderiam
ficar irresolutos em suas ações mesmo que a razão os obrigasse a uma
análise prolongada. Assim, Descartes defendia uma “moralidade
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provisória” que, baseada na obediência às leis civis e às opiniões mais
moderadas, garantisse uma vida desvinculada de uma análise penosa e
politicamente perigosa. Como Beyssade (1991:57-64) expõe, a filosofia
cartesiana parece se render à complexidade humana. A ligação da alma
aos corpos torna a moral um outro objeto de saber, distinto de um
conhecimento exato. Por outro lado, enfatizando a utopia de um arranjo
social em que a ciência reformasse metodicamente as instituições
ordinárias, as verdades não poderiam ser mantidas “ocultas sem pecar
grandemente contra a lei que nos obriga a procurar, no que depende de
nós, o bem geral de todos os homens” (Descartes, 1973a:71).
Os mesmos problemas representados na contradição entre a razão e a
complexidade do mundo ordinário transparecem em Hobbes, de forma
que a necessidade política premente era a imposição de nomes, vulgares
ou não, que restringissem a liberdade de opiniões sobre assuntos
públicos. Cabe lembrar que, para Hobbes, a causa fundamental dos
distúrbios na Inglaterra de seu tempo estava diretamente relacionada à
desestruturação simbólica que o puritanismo acarretou. Em Behemoth,
Hobbes (2001) demonstra como o puritanismo originou profunda crise
da autoridade centralizada quando defendia a instância do juízo privado
em contraposição à soberania constituída. O pecado original dos homens
teria sido a presunção de julgar, com pretensão pública, o bem e o mal.
O estado de natureza hobbesiano consistiria exatamente na confusão
de nomes, em que todos os homens tentariam defini-los de acordo com
sua concepção particular. No entender de Hobbes, uma sociedade de
indivíduos que não possuíssem e não almejassem ciência teria melhores
condições que uma baseada em racionalidade incorreta e composta de
regras absurdas. A fim de eliminar o quadro social em que a confusão
de nomes imperava, haveria necessidade de uma instância política
soberana e centralizadora que definisse e socializasse objetivamente os
parâmetros morais. Assim, ainda que em um plano idealizado Hobbes
defendesse a manutenção de uma comunidade política por meio de
regras científicas, o problema fundamental seria a diferença entre as
instâncias da filosofia e da prática política ordinária, pois a verdade
“[...] tem estado até o presente coberta e guardada sob uma nuvem de
adversários, a qual nenhuma reputação pessoal é capaz de dissipar
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sem a autoridade das universidades. No entanto, todos esses
pregadores que disseram o contrário provieram das universidades, as
quais são para esta nação o que o cavalo de madeira foi para os
troianos” (idem:78).
Dada a inviabilidade, em um primeiro momento, de impor a ciência
verdadeira sobre todos os homens, a virtude dos súditos deveria restringirse à obediência às leis da república, assim como a virtude do soberano
nada mais seria que a manutenção da paz doméstica. Isto porque a
prescrição fundamental da racionalidade política – a relação inexorável
de causa e efeito entre pluralidade simbólica e desordem social –
necessitava ser plenamente assegurada, ainda que outros requisitos
propostos pela razão não pudessem ser institucionalizados. O próprio
conceito de justiça se definiria pela obediência primária às leis concretas,
sem referência direta ao conteúdo das leis civis, pois, “inversamente,
nada mais é injustiça e iniqüidade, senão o que é contrário à lei”
(idem:83). Como lembra Watkins (1973:113-114), ao contrário do
contrato lockeano posterior, a teoria hobbesiana exclui a possibilidade
da definição moral de uma lei civil a partir de sua qualidade justa ou
injusta, pois sua definição de soberania pressupõe a sistematização de
um campo simbólico que exclui qualificações morais dentro do espaço
público. A virtude das ações deveria ser avaliada exclusivamente de
acordo com sua utilidade à República.
Admitindo a falibilidade de seus “personagens” em satisfazer o método
de conhecimento da verdade que defendiam, a unidade do campo
simbólico ordinário passa a ser o aspecto fundamental de uma ordem
política estável, ainda que a generalização de uma racionalidade
transcendente aos homens fosse verdadeiramente a utopia hobbesiana e
cartesiana. Por outro lado, ambos os autores instituíram os germes
epistemológicos que outorgavam aos homens o sonho de um
conhecimento universal. O que permanece é uma filosofia política
baseada em relações explícitas entre um certo saber e o poder. Nesse
sentido, os dois autores passam a definir um paradigma reflexivo que
influenciará fortemente o pensamento moderno, referenciado
principalmente no pressuposto que utiliza a história e a política como
campo da experimentação de uma razão natural.
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Conclusão: A Política como História ou Filosofia da História?
Ao mesmo tempo que tanto a filosofia de Hobbes quanto a de Descartes
valorizam politicamente a utopia de uma dimensão exterior ao mundo
fenomênico, ambas tendem a postular um sentido para a história,
denotando uma teleologia que verifica a direção ou não dos homens
aos caminhos prescritos pela razão. Mais propriamente, a história é
transformada em filosofia da história, de forma que o movimento
temporal é traduzido em procedimentos científicos articulados aos
proclamados fatores propostos pela natureza.
A confusão ontológica entre história e natureza é demonstrada por
Hannah Arendt (1972:69-126), que define o momento fundador da
história racionalizada quando o mundo cristão inverteu os padrões
ontológicos gregos que afirmavam o caráter cíclico do mundo.
Exemplificada claramente nos trabalhos de Descartes e Hobbes, o homem
passa a ser visto como prisioneiro de seus sentidos, e somente um
exame minucioso dos movimentos históricos, tomados como
experimentos científicos, poderia assegurar ao homem um caminho
certo e racional. Quando transposto a uma dimensão temporal, o
racionalismo de Descartes articula-se diretamente à concepção histórica
de Hobbes, em que o interesse fundamental não são os registros do
passado, mas a sistematização de meios que expliquem uma determinada
direção (ver Lessa, s/d)2 . Nesse sentido, é significativa a forma de relato
histórico que Hobbes apresenta em Behemoth, em que um personagem
mais velho estrutura as conexões causais a um personagem mais jovem,
enfatizando a distinção entre a confusão histórica e a racionalidade
filosófica. O essencial era se contrapor a uma narrativa histórica plural
que, fundada no sentimento da memória, se baseava na especificidade
dos fatos sem referência a uma continuidade temporal.
O importante é perceber como a dimensão temporal que se funda a
partir do racionalismo de Descartes e Hobbes pressupõe uma concepção
de processo que renega a historiografia ideográfica, de forma que
nenhum evento é significativo em sua especificidade se não estiver
articulado à direção demarcada cientificamente. Como lembra Arendt
(idem), no momento em que renega a particularidade dos eventos e
refuta a experiência ordinária, a filosofia da história pressupõe uma
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forte alienação política. Recusando sistematicamente os sentidos,
Descartes e Hobbes problematizam a relação direta e simples entre o
homem e o mundo, limitando-a em torno de paradigmas que refutam a
experiência mundana como fonte digna de conhecimento. O
racionalismo do século XVII articulou-se a uma concepção da história
que dignificava somente o tipo de ação secularizada que estivesse de
acordo com os ditames que a razão definia como progresso, valorizando
o ideal de um processo temporal.
A transposição dos postulados de racionalidade para o campo da história
e da política é o fundamento das conseqüências que a filosofia de
Descartes e Hobbes prescreveu à teoria social contemporânea. Na medida
em que pressupõem uma dimensão circunscrita de verdade, os
racionalismos cartesiano e hobbesiano nutrem-se de uma concepção
que tende a transformar a ciência em técnica. Como exposto por Wolin
(1969:1.064), a ênfase no método racional projeta a intenção de que o
mundo seja configurado de maneira que a técnica seja efetiva em
estabelecer regularidades prescritas a priori. Como apontado por
Koselleck (2000)3 , o que se sugere aqui é a apresentação da hipocrisia
e do perigo de teorias que se propõem a resolver a complexidade do
âmbito social a partir de pressupostos naturais e indubitáveis baseados
em elaborações não evidentes que partem de uma razão anterior ao
mundo fenomênico.
Em contraposição a essa direção, enfatizo a possibilidade de uma
racionalidade polêmica contrapondo-se à razão técnica que as ontologias
cartesiana e hobbesiana potencialmente prescrevem. Nesse sentido,
talvez fosse melhor focalizar os problemas expostos por ambos os
autores sobre a complexidade do mundo ordinário, em detrimento de
suas utopias racionalizantes. A conseqüência principal é definir a
dimensão histórica como campo aberto à reflexividade e à ação política,
problematizando qualquer filosofia da história que tenda a retirar do
homem a capacidade de se movimentar em direção a uma escolha
autônoma. Fundamentalmente, a crítica ao racionalismo técnico deve
sistematizar a filosofia como política, impossibilitando a identificação
da filosofia como história.
(Recebido para publicação em outubro de 2003)
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Notas
1. Descartes refuta posteriormente este argumento sem grandes
dificuldades. Chega mesmo a falar de um auto-engano momentâneo
(ver Descartes, 1973b:96).
2. Ver Lessa. Além da referência ao ceticismo, o autor lembra as
diferenças efetivas entre a história hobbesiana e a recomendação de
Maquiavel em ter a história acidental, baseada na fortuna, como
grande paradigma cognitivo.
3. O argumento central de Koselleck demonstra como a definição de
uma filosofia da história no século XVIII assumiu uma poderosa
função histórica que legitimava a crítica dos agentes burgueses —
fundada “privadamente” sob o véu de uma instância despolitizada
— ao antigo sistema absolutista.
Referências Bibliográficas
ARENDT, Hannah. (1972), Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Ed.
Perspectiva.
BEYSSADE, Michelle. (1991), Descartes. Lisboa, Edições 70.
DESCARTES, René. (1973a), Discurso do Método. São Paulo, Abril
Cultural, Coleção Os Pensadores.
___. (1973b), Meditações. São Paulo, Abril Cultural, Coleção Os
Pensadores.
HOBBES, Thomas. (1997), Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um
Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo, Nova Cultural.
___. (2001), Behemoth ou o Longo Parlamento. Belo Horizonte, Editora
UFMG.
KOSELLECK, Reinhart. (2000), Crítica e Crise: Contribuição à
Sociogênese da Sociedade Burguesa. Rio de Janeiro, Contraponto/
Eduerj.
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LESSA, Renato. (s/d), Uma História Hobbesiana. Manuscrito.
POPKIN, Richard. (1979), The History of Scepticism from Erasmus to
Spinoza. Berkeley, University of California Press.
WATKINS, J. W. N. (1973), Hobbes’s System of Ideas. London,
Hutchinson University Library.
WOLIN, Sheldon. (1969), “Political Theory as a Vocation”. The American Political Science Review, vol. LXIII, nº 4, pp. 1.062-1.082.
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L’Amour comme Illustration de
Monter du Juridique* CORENTIN HECQUET**
PIERRE CAUSSIN
JÉRÔME DE C UYPER
Resumo
O livro Amor como Paixão: Codificação da Intimidade, de Niklas Luhmann,
permite (re)pensar o amor hoje. Para podermos fazer isso, devemos
reformular a quarta etapa de N. Luhmann, o que possibilita uma reflexão
mais ampla sobre a democracia − particularmente na Europa. Para tal, nos
apoiamos na tese do desencantamento do mundo desenvolvido, de Marcel
Gauchet, nos focalizando na passagem da homogeneização à autonomização
das esferas e sua articulação. Defendemos a tese da juridificação da sociedade.
Esse desvio pela democracia possibilita a volta à questão do impacto do
fenômeno de autonomização e juridificação sobre a esfera do amor.
Palavras-chave: Niklas Luhmann; amor; juridificação
* Este artigo é uma adaptação do nosso trabalho apresentado no curso de
Sociologia da Família ministrado pelo prof. Jacques Marquet na Universidade Católica de Louvain (UCL), Bélgica.
** Corentin Hecquet é mestrando em sociologia no IUPERJ . E-mail:
[email protected]; Pierre Caussin é sociólogo, especialista em administração de eventos culturais e Jérôme De Cuyper é mestrando em arte moderna
e contemporânea no Centro de Cultura Casa Lamm, México.
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Introduction
Le choix de traiter de Niklas Luhmann provient principalement de
l’intérêt que nous portons tous trois aux thèses de Jean-Marie Lacrosse1.
Ce dernier fait usage des études de N. Luhmann pour appliquer la
théorie principale de Marcel Gauchet2: le désenchantement du monde.
L’amour est un domaine qui, comme beaucoup d’autres, s’est
progressivement émancipé de la tradition pour finalement ne plus faire
référence qu’à lui-même.
Le livre de N. Luhmann (1927-1998) dont nous partons se nomme
L’Amour comme Passion: De la Codification de l’Intimité. Sous ce titre
se cache la volonté de comprendre les mécanismes qui régulent les
sensations et les comportements amoureux. Ceux-ci s’expriment à travers
la sémantique, qui constitue un code. L’approche de l’amour proposée
par N. Luhmann est double: d’une part déceler les codes amoureux;
d’autre part les saisir dans leur évolution et spécificité historique.
Notre parcours consite á comprendre l’évolution du code amoureux
selon N. Luhmann. Par la suite, nous proposerons une alternative à
l’analyse contemporaine de l’amour que propose N. Luhmann, l’élément
central de notre propre interprétation est la non prise en compte de
l’évincement de la religion comme modèle régulateur de la société.
Pour expliciter cette “erreur” et développer notre propre description
contemporaine, nous recourrons à des auteurs épars et divers que
nous essayerons d’agencer dans un ordre que nous jugeons pertinent.
Cette alternative s’est établie autour de trois questions: la question de
l’amour, la question du mariage et celle de l’autonomie.
L’Évolution de l’Amour
N. Luhmann opère un découpage de la vie sociale en différentes sphères
d’activités, dans le cadre de ce systémisme, il définit l’amour comme le
code de la sphère intime. Sur base des constats et considérations qu’il
pose sur notre présent, il analyse les causes de cette situation en proposant
une analyse sémantique des codes, des mots qui depuis le Haut MoyenAge servent à exprimer l’amour. L’amour courtois est le point de départ
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Cadernos de Sociologia e Política
de son analyse. La métaphore qui rend le mieux compte de cette période
est le jeu d’amour unissant le chevalier à sa noble Dame. Celle-ci est
l’objet d’une forte idéalisation et le fidèle serviteur n’est en mesure de
prendre part à cette passion passive qui lui est offerte que par la raison.
Le rapport de l’amour idéal à la morale est évident. Cette étape rend
compte de la forte religiosité chrétienne dont le Moyen-Age était encore
imbibé.
Cependant, suite au processus d’aristocratisation, l’amour se transforme
en amour galant. L’amour est transposé dans le registre de l’imagination,
il commence doucement à prendre ses distances vis à vis de la morale
et se caractérise par l’excès, la déraison. La passion devient active et
des problèmes se posent: la relation amour/plaisir, amour/amitié, amour/
raison. La perdifférenciation à débuté.
Dans un troisième moment, l’auteur introduit l’amour romantique,
symbole de l’intégration du mariage dans la sphère intime. Le 18ème
siècle inaugure l’achèvement du processus de perdifférenciation, la
sphère de l’intimité est maintenant autonome, auto-référentielle et
réflexive.
L’auteur termine en cherchant à comprendre la crise actuelle que traverse
la sphère intime, totalement perdifférenciée et autonome. La
complexification et l’individualisation rendent beaucoup plus difficile
la constitution d’un code sémantique stable. Les individus recherchent,
selon N. Luhmann, au travers de leurs relations intimes, à confirmer la
vision de leur vision du monde. L’individu cherche une validation de la
présentation de soi-même, et ce rapport amoureux serait constitutif de
notre identité. L’auteur évoque à cette fin le concept d’interpénétration
inter-humaines, où les individus face à la complexité du monde
environnant choisissent d’approfondir ou pas certaines relations sociales.
Notre société est alors caractérisée par une impersonnalisation forte,
mais aussi par des possibilités d’hyper-personnalisation.
Le trame générale de cet ouvrage nous permet d’entrevoir, d’un point
de vue global, la progressive distanciation de la sphère intime vis à vis
de la morale, représentée par la présence tout aussi décroissante de la
Fórum dos Alunos do I UPERJ
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religion chrétienne. L’amour, au départ enchaîné aux sphères religieuses
et politiques, se constitue progressivement comme fin en soi. Voilà ce
que nous permet de comprendre le processus de perdifférenciation
intégré dans le cadre d’une systématisation de la réalité sociale en
différentes sphères d’activités.
Toutefois, la richesse méthodologique et conceptuelle déployée par
l’auteur souffre parfois d’une relative complexité, ce qui entraîne le
lecteur à ne plus percevoir la clarté des analyses proposées. Par ailleurs,
la trame générale ainsi évoquée et analysée, nous semble parfois se
contenter d’une facile perspective évolutionniste.
De plus, la quatrième étape analysée par l’auteur nous semble
incomplète, N. Luhmann n’intègre pas, pensons-nous, certains éléments
de réflexions qui seraient à même de mieux appréhender la complexe
réalité sociale actuelle. C’est pourquoi nous souhaiterions argumenter
notre démarche dans le cadre d’une re-formulation de la situation
actuelle. Ceci constitue l’objet de notre prochain point.
La Quatrième Étape Revisitée
Nous avons décidé de suivre deux axes de réflexion critique. D’une
part, selon nous, la partie sur la période contemporaine (la quatrième
étape) est incomplète. L’époque pendant laquelle cet ouvrage (1982) a
été élaboré n’avait peut-être pas encore dévoilé pleinement les “nouvelles”
composantes de l’amour. Nous tenterons de mettre en évidence les
divers points faibles de la lecture proposée par N. Luhmann en
comparant ses hypothèses avec des éléments contemporains de la réalité
amoureuse. D’autre part, le parcours que N. Luhmann propose de la
construction de la modernité occidentale est développée à l’aide du
concept de différentiation des systèmes. La situation de perdifférentiation
à laquelle aboutit notre époque n’est pas pleinement convaincante. Si
la situation de désarticulation actuelle décrite par N. Luhmann ne nous
suffit pas c’est qu’il “oublie” d’approfondir un élément pourtant
constitutif de l’Occident: la religion. Nous utiliserons pour ce faire les
hypothèses proposées par Marcel Gauchet et Jean-Marie Lacrosse. Ces
auteurs travaillent sur la société contemporaine à l’aide du concept de
désenchantement du monde.
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Cadernos de Sociologia e Política
Compléments sur l’époque actuelle
La lecture du roman Les Particules Élémentaires de Michel Houellebecq
(1998) nous permet de comparer les diverses hypothèses avancées par
N. Luhmann sur la réalité amoureuse à l’époque contemporaine.
L’auteur développe la thèse de la libération des mœurs et de l’envie
générale de profiter des plaisirs du sexe. En outre, cet ouvrage nous
permet de dénoncer la difficulté de vivre dans une société où les sphères
d’activités sociales sont différenciées.
Toutefois, la lecture du texte de Paul Yonnet (2000:206) nous permet
de réfuter cette hypothèse, une corrélation entre une plus grande présence
du sexe et une plus large pratique sexuelle ne peut-être établit. L’auteur
parle d’érotisation compulsive des mœurs (idem:211). Pour ce faire, il
utilise deux enquêtes: d’une part, le “R apport Simon sur le
Comportement Sexuel des Français” de 1970 et d’autre part l’ “Analyse
des Comportements Sexuels des Français” de 1991-1992 (ibidem). La
comparaison de celles-ci lui permet de conclure que la pratique sexuelle
a diminué en France. En fin de compte, une atmosphère d’érotisation
compulsive des mœurs n’a pas eu lieu: “[…] dans la liberté sexuelle,
l’individu moderne se libère bien de quelque chose, mais c’est du sexe,
non de la morale” (Yonnet, 2000:215).
La quatrième étape revisitée
Il nous semble que, la quatrième étape est celle du sentiment.
Actuellement, l’amour ça se vit, ça ne se dit pas. Du fait que nous ne
pouvons pas en parler de manière directe, nous l’abordons par le
sentiment. Etre amoureux, c’est partager une partie de soi avec un
autre individu. Mais qu’advient-il de l’amour, de ce partage une fois
que l’acte sexuel s’autonomise? Qu’en est-il une fois que les médias
utilise cette intimité pour séduire, pour vendre? A notre époque, deux
éléments semblent pouvoir être distingués: l’amour romantique et
l’amour comme mode de vie à deux.
Dans son ouvrage sur l’amour passion Francesco Alberoni (1998) traite
d’un amour fusion qui permet à un homme et une femme “de partir à
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deux et de finir à deux”. Dans une telle perspective, la durabilité du
couple se teste facilement: si le couple se maintient, cela prouve qu’il
s’agit d’un véritable amour. Ce modèle d’interprétation ne semble pas
pouvoir lire la réalité amoureuse actuelle. Toutefois, l’amour
romantique, comme nous l’avons fait remarquer, semble encore être
un modèle de représentation dominant. L’amour fusion est selon nous
un idéal encore dominant en Occident.
Le second élément que nous voudrions mettre en évidence correspond
plus à la réalité amoureuse contemporaine et rejoint ainsi en partie les
hypothèses développées par N. Luhmann et décrite par M. Houellebecq.
Cette deuxième composante a été travaillée par Anthony Giddens (1993)
et Serge Chaumier (1999). Leur approche remet en question celle de F.
Alberoni sur deux plans différents. Pour A. Giddens, les êtres cherchent
avant tout à être heureux ensemble. La difficulté actuelle, soulignée
par N. Luhmann, est d’être satisfait de sa relation avec l’autre. Etant
donné que les individus sont réflexifs, ils prennent dès lors beaucoup
de temps pour réfléchir sur leurs relations intimes. Pour S. Chaumier,
l’idée de durabilité de F. Alberoni que A. Giddens réfute ne doit pas
être exclue mais repensée. Selon ce dernier, les exigences de la société
(dans le sens d’un idéal) sont trop lourdes et amènent beaucoup de
relations intimes à se défaire. Si nous nous résumons, en terme d’idéal,
la théorie de F. Alberoni va encore perdurer longtemps, mais en termes
pratiques, la théorie de A. Giddens et de S. Chaumier sont très proches
de la réalité.
La question du mariage
Une fois que l’amour est établi entre deux êtres, comment est-il
contractualisé? Plusieurs formules sont envisageables à l’heure actuelle:
mariage, cohabitation, rencontres fréquentes. Au fil des années, la
passion que contenait l’amour a permis, d’une part de scinder la question
de l’amour de la question du mariage et d’autre part la transition du
mariage de raison au mariage d’amour. Comment cette institution
perdure-t-elle aujourd’hui?
Le mariage est encore présent, mais le divorce est apparu, est entré en
scène lors de la phase d’autonomisation de la sphère amoureuse. Le
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Cadernos de Sociologia e Política
divorce a défait l’idée que le mariage scellait des liens entre des êtres à
vie. Libérant ainsi de la contrainte sociale. Cette émancipation permet
aux partenaires de se choisir, mais également d’arrêter leur choix et
donc leur contrat. Ce phénomène a-t-il eu des répercutions sur
l’imaginaire des individus par rapport au mariage? Ces réflexions nous
conduisent aux théories d’Irène Théry (1996). Pour elle, une
transformation fondamentale a eu lien dans le divorce, nous sommes
passé du “divorce-rupture” au “divorce-réorganisation”. Dans les
divorces, comme le dit Marie-Blanche Tahon et Geneviève de Pesloüan
(1997) en parlant de la théorie de I. Théry: “la place de l’intérêt de
l’enfant suppose un effacement du parent non-gardien au profit du
partenaire du parent gardien. Le parent ‘social’ prend le pas sur le
parent ‘biologique’. Donc l’identification de la famille repose désormais
sur l’enfant et non plus sur le couple” (idem:553). Nous percevons à
nouveau cette volonté de se défaire d’une tradition mais du même coup
aussi des réponses que proposait la tradition aux problèmes de tous les
jours.
La question de l’autonomie
Dans cette partie, nous nous appuyons sur la théorie initiée par M.
Gauchet et appliquée par J.-M. Lacrosse. La question de l’autonomie
telle que décrite et analysée par M. Gauchet est contenue dans les deux
expressions: le désenchantement du monde et le christianisme en tant
que religion de la sortie de la religion. Que pouvons nous déduire de
cela?
M. Gauchet (1998) opère, en fait, une ambitieuse relecture du monde
moderne en associant à la fois les conséquences et impacts du
christianisme et ceux de la modernité. Il propose une nouvelle approche
permettant de comprendre la contribution propre du christianisme à
l’avènement de la modernité démocratique, tout en soulignant les liens
conflictuels qui unissent ces deux catégories.
Il dégage deux phases de son analyse:
1. La phase de l’hétéronomie, celle des sociétés pré-démocratiques, le
premier âge du christianisme. Dans ces sociétés, le monde commun
Fórum dos Alunos do IUPERJ
41
et la vie sociale sont régis et organisés par la religion, en conformité
avec les commandements divins. Dieu donne les tables de lois aux
hommes, la loi est donc reçue de l’extérieur. Le monde est caractérisé
par la tradition et la répétition immuable des mêmes comportements,
l’action de l’individu est soumise à un ordre qui le dépasse et vient
du ciel.
2. Lors de la phase de l’autonomie, second moment historique, nous
assistons à l’élaboration d’une loi purement humaine. C’est le second
âge de la religion, celui au cours duquel elle renonce à l’organisation
politique du monde humain. Peu à peu, au cours du Moyen Age se
mettent en place les structures de l’Etat moderne; l’autonomie du
politique ouvre la voie à l’âge démocratique. La vie des sociétés
n’est plus l’éternelle répétition du passé, l’individu n’a plus les yeux
rivés vers le ciel, mais est bien orientée en direction de l’ici-bas. Les
être humains ne s’en remettent plus qu’à eux-mêmes. Le monde est
en mutation, il devient moderne et désenchanté.
Mais M. Gauchet prévient, ne confondons pas religion instituée et la
foi. Si l’avènement de la modernité marque bien la mort de la religion
comme fondement de l’organisation politique des sociétés, elle ne la
condamne assurément pas comme source de sens. La quête d’un audelà, le besoin subjectif de croire, demeurent pleinement présents au
cœur de la modernité la plus contemporaine.
Ces étapes se trouvent synthétisées par les schémas suivants:
42
Cadernos de Sociologia e Política
Hétéronomie:
Religieux
Rapport hiérarchique entre sphères
politique
économique
amour
....
Autonomie:
Amour
Politique
Economie
Religion
Fórum dos Alunos do I UPERJ
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Actuellement, si nous nous référons aux théories de M. Gauchet, notre
époque contemporaine symbolise la fin du processus de l’autonomie.
Nous sommes arrivés au terme de la deuxième phase, grâce au
christianisme – religion de la sortie de la religion. Nous sommes face à
une nouveauté qu’il nous faut décrire. Auparavant, la démocratie puisait
une partie de son énergie chez son ennemie, maintenant sa nouvelle
omnipotence correspond en même temps à sa crise. Toutefois, selon
M. Gauchet et ses pairs, la démocratie est à son début, elle se cherche
encore. Maintenant que cette théorie est explicitée, nous souhaiterions
l’intégrer dans le cadre de nos réflexions.
Comme nous avons précédemment proposé une interprétation du
sentiment amoureux, nous pouvons nous interroger sur la
perdifférenciation et les problèmes qu’amène le fait de son autonomie.
La question est: comment une fois l’autonomisation accomplie les
différentes sphère peuvent-elles se (ré)articuler? Quand nous parlons
des différentes sphères, nous pensons à l’économie, la religion, la
politique et l’amour. Ces sphères, au cours des siècles, ont poursuivi
un processus de perdifférenciation qui les a rendues autonomes les
unes par rapport aux autres (Gauchet, 1998). Comment des entités
autonomes peuvent-elles être liées? Quels sont les liens entre le
démariage (Théry, 1996) et l’autonomisation de la sphère de l’amour?
Comment les individus vivent-ils les interactions entre sphères?
Le livre Libres Ensemble de François de Singly donné quelques pistes,
ce qui importe dans notre société est de pouvoir à la fois “être avec” et
“être seul”. Pour nous, l’individu doit vivre avec lui-même et avec l’autre
tout en vivant également avec des sphères autonomes qui parfois se
complètent et d’autre fois se contredisent. Comment fait-il pour gérer
cela? Une des pistes relèverait plutôt de la multiplicité de rôles sociaux
que nous sommes amenés à jouer tous les jours. Nous faisons ici référence
à la multiplicité des cadres de références, notion introduite par E.
Goffman (1975). C’est l’individu qui gère maintenant ces nombreuses
interactions, elles ne sont plus imposées par un Dieu ou une force
surnaturelle, il prend en charge les rapport de concordances et de
contradictions entre les sphères. Nous voyons là un élément de réponse
au positionnement des acteurs face aux différentes sphères d’activités
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Cadernos de Sociologia e Política
sociales autonomisées. Une double interaction est présente, à la fois
entre les sphères elles-mêmes et entre les individus et ces différentes
sphères. Quant à la question de l’agencement de ces sphères précitées,
l’élément de réponse que nous avançons se construit à partir des
réflexions de M. Gauchet et de J.-M. Lacrosse. Nous sommes passé de
l’hétéronomie à l’autonomie et qu’une articulation de ces sphères par
le juridique a fait son apparition. Avant le religieux chapeautait
l’ensemble, par la suite chaque sphère est devenu autonome. Les liens
existants entre elles ne se sont pas perdus, ils ont changé de nature, il
n’y a plus une domination religieuse du lien social. Le droit semble
avoir évincé le politique, de par la crise de la représentation que traverse
la démocratie, et paraît être la sphère qui domine et régule les autres.
Le recours au juridique est de plus en plus présent et cela amènerait
celui-ci à jouer le rôle de médiateur, d’ordonnateur entre les sphères.
Le droit serait le nouveau dieu humain intra-mondain et servirait de
construction humaine afin de répondre à l’articulation entre les sphères,
tout comme le politique avant lui.
Voici un schéma proposant cette articulation contemporaine:
Amour
Economie
JURIDIQUE
Politique
Religion
Fórum dos Alunos do IUPERJ
45
A partir des ces éléments de réflexions, nous pouvons rendre comptes
des impacts du centrage de la sphère juridique au sein de notre société
perdifférenciée. Quel est l’impact de ceci sur la sphère de l’amour?
La première idée que nous souhaiterions aborder, celle qui nous semble
la plus évidente, est le phénomène du démariage mis en exergue par la
sociologue française I. Théry, l’augmentation des divorces ces dernières
décennies montre à quel point le droit est amené à régler les affaires de
vie privée, une incursion de la loi a lieu dans le domaine de l’intimité.
Et comme un éclatement des modèles traditionnels s’est produit, ce
sont les experts qui sont amenés à se prononcer sur ce qui est bon pour
chacun. Cette considération est susceptible d’éclairer d’autres
problématiques contemporaines: la diminution du nombre mariage ainsi
que de l’âge moyen ou celui est contracté. En effet, pourquoi se lancer
corps et âmes trop précipitamment dans une aventure dont nous n’aurons
peut être même plus souvenir dans dix ou quinze ans? A l’inverse, il
serait utile d’analyser si ce double recul, de l’âge moyen lors du mariage
et du nombre de mariage en tant que tel, n’aura pas une influence
positive sur la stabilité de ceux-ci dans les années à venir. Ce même
phénomène est peut être aussi à mettre en relation avec la difficile
articulation entre la spontanéité de l’amour et la rationalité des choix
de vie qui sont les nôtres actuellement dans notre société.
Nous avons effectué un succinct rappel de l’impact de la religion
chrétienne, du moins de sa sortie hors de la société, sur la sphère de
l’amour aussi souhaiterions nous terminer en soumettant une
interrogation: Dans cette société du risque, des rôles sociaux multiples,
de l’autonomie et du démariage, l’amour ne serait-il qu’un pari
émotionnel, un parti pris sur l’avenir, un risque calculé?
(Recebido para publicação em outubro de 2003)
46
Cadernos de Sociologia e Política
Notes
1. Jean-Marie Lacrosse est chargé de cours à l’Université Catholique de
Louvain (UCL à Louvain-la-Neuve).
2. Marcel Gauchet est chargé de cours à la Haute École en Science
Sociale (HESS).
Références Bibliographiques
ALBERONI, Francesco. (1998), Je T’aime: Tout sur la Passion
Amoureuse. Paris, Éditions Plon.
CHAUMIER, Serge. (1999), La Déliaison Amoureuse: De la Fusion au
Désir d’Indépendance. Paris, Colin Paris.
GAUCHET, Marcel. (1998), La Religion dans la Démocratie. Parcours
de la Laïcité. Paris, Gallimard.
GIDDENS, Anthony. (1993), The Transformation of Intimacy: Sexuality,
Love and Erotism in Modern Societies. Cambridge, Polity Press.
GOFFMAN, Erwin. (1975), Frame Analysis. Harmondsworth, Penguin
Books.
HOUELLEBECQ, Michel. (1998), Les Particules Élémentaires. Paris,
Éditions J’ai Lu.
LUHMANN, Niklas. (1982), L’Amour comme Passion: De la
Codification de l’Intimité. Paris, Éditions Aubier.
MARTUCCELLI, Danilo. (1999), Sociologies de la Modernité:
ème
L’Itinéraire du XX Siècle. Paris, Éditions Gallimard.
TAHON, Marie-Blanche et de Pesloüan, Geneviève. (1997), “Sociologie
de la Famille”, in J.-P. Durand et R. Weil (coords.), Sociologie
Contemporaine. Paris, Éditions Vigot, pp. 540-537.
Fórum dos Alunos do I UPERJ
47
THÉRY, Irène. (1996), Le Démariage: Justice et Vie Privée. Paris, Éditions
Odile Jacob.
YONNET, Paul. (2000), “Libérer le Sexe pour se Libérer du Sexe”.
Le Débat, Histoire, Politique, Société, nº 112, Paris.
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Cadernos de Sociologia e Política
Considerações sobre História e
Soberania em Behemoth,
de Thomas Hobbes
CRISTINA BUARQUE
DE
HOLLANDA*
Resumo
O artigo expõe os temas da história e da soberania na obra Behemoth, de
Thomas Hobbes. Neste texto, Hobbes narra o episódio da Revolução Inglesa
e o movimento de dissipação da soberania por meio da multiplicação de
enunciados com pretensão de poder e verdade. A história é reconhecida
como forma de conhecimento, o que não corresponde, entretanto, à suposição
de infalibilidade cognitiva. Dada a possibilidade do equívoco, o paradigma
histórico não se localiza no campo da ciência. A cena inglesa a partir da
perspectiva narrativa hobbesiana possibilita o aprofundamento de questões
que aparecem com menos clareza em outros momentos da obra do autor.
Palavras-chave: soberania; história; ciência; Hobbes
* Doutoranda em ciência política no IUPERJ. E-mail: [email protected].
Fórum dos Alunos do IUPERJ
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E
m Behemoth, Thomas Hobbes dedica-se à elaboração de uma
narrativa histórica. Alguns temas centrais em sua obra são ali enfocados
a partir da lente de uma experiência circunscrita no tempo e no espaço.
O episódio da Revolução Inglesa é esmiuçado; a seqüência de eventos
e o conjunto de atores que a compõem são descritos em detalhes.
Diante desse olhar fundamentalmente empírico, ao leitor do Leviathan
cabe uma dúvida essencial: como conceber uma tal concessão à história
em um autor cuja aspiração central reside na transformação, pelo cânone
demonstrativo, das teorias moral e política em disciplina científica? O
recurso à experiência não seria metodologicamente antagônico às
derivações da razão que compõem o campo da ciência?
Essa aparente contradição ou incompatibilidade metodológica é esvaziada
quando a história é apenas reconhecida como forma possível de
conhecimento, o que não autoriza a suposição de infalibilidade cognitiva.
Muito pelo contrário, a heterogeneidade dos eventos que compõem o
campo de observação do historiador impede qualquer projeção futura
que se pretenda pautada em critérios de verdade. Mesmo em um
ambiente de regularidade, de aparente sincronicidade entre causa e
efeito, o risco de proposições equivocadas é permanente; a história não
possibilita a produção de postulados verdadeiros; pode apenas apontar
em sua direção ou corroborá-los.
Em Behemoth, por diversas vezes, o diálogo entre dois personagens, A
e B, explicita essa limitação do olhar humano para o reino dos
acontecimentos, caracterizado pela diversidade e, sobretudo, pela
possibilidade do inesperado. Diante do espírito inquieto de B, mais
jovem e afoito por formulações assertivas, A se vê obrigado a lembrá-lo
do obscurantismo constitutivo do campo das motivações humanas. A
observação do mundo da vida restringe-se ao aparente, ao fenomênico,
e quaisquer proposições que escapem de seu âmbito estarão imbuídas
no reino da falibilidade, da incerteza. A lição que daí deriva é a de que
o historiador não deve especular motivos, uma vez que estes não são
passíveis de conhecimento por derivação da natureza.
50
cristina.pm6
Cadernos de Sociologia e Política
2
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Ao distinguir as formas de conhecimento, Hobbes aponta o
conhecimento dos fatos, associado aos sentidos e à memória, e o
conhecimento das conseqüências de uma afirmação para a outra, que
corresponde à ciência e é essencialmente condicional. Atribui ao primeiro
a condição de absoluto e o equipara à história; ao segundo, confere a
possibilidade de produção de ciência, o que consiste, em última instância,
no conhecimento antecipado das conseqüências. A previsibilidade surge,
portanto, como principal elemento distintivo entre história e ciência.
Mas dessas avaliações se pode derivar uma concepção essencialmente
negativa da história em Hobbes? Certamente que não. Embora o
conhecimento histórico não possa, com segurança, nos ensinar sobre
as causas – pois estas demandam a mencionada especulação sobre os
motivos –, seu mérito reside, essencialmente, na geração de prudência.
Conforme discorre Tucidides, autor traduzido por Hobbes, “[...] the
principal and proper work of history is to instruct and enable men, by
the knowledge of actions past, to bear themselves prudently in the
present and providently towards the future” (apud Johnston, 1989:15).
Com base nessa consideração, David Johnston diz ser possível acessar
às qualidades hobbesianas da história a partir de duas perspectivas
distintas: a primeira refere-se a uma forma de inquisição/investigação,
uma maneira de apurar o conhecimento de uma verdade; a segunda diz
respeito a um tipo de pedagogia, a um meio de difusão e transmissão
do conhecimento para outros. Assim sendo, a história aparece
mobilizada seja como prova, de uma perspectiva inquisitorial, seja como
elemento de valor instrutivo, associado à sua capacidade de
convencimento e persuasão, e não à possibilidade de construção ou
acesso à verdade. Isto demandaria a identificação de regras gerais e
universais para a condução da vida humana.
Ao fazer a defesa de Tucidides contra seu principal crítico na época,
Dionysius Halicarnassius, Hobbes diz ser aquele o primeiro autor fiel
aos propósitos da narrativa histórica, ao passo que Dionysius estaria
mais voltado para “deliciar os ouvidos com narrativas fabulosas, do
que para satisfazer a mente com verdade” (idem:6). Essa prática retórica,
que mobiliza as paixões e obscurece o acesso ao conhecimento
verdadeiro, é repudiada por Hobbes. Nela reside o descompasso de
Fórum dos Alunos do IUPERJ
cristina.pm6
3
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significação entre palavras e coisas e a conseqüente reprodução de uma
linguagem imprecisa e sem valia para fins científicos.
A produção da scientia civilis almejada por Hobbes faz-se possível
somente na medida em que os ruídos de comunicação sejam abolidos
em favor de uma linguagem fundada em termos de significação clara e
distinta. A precisão lingüística constitui condição sine qua non para a
elaboração de uma ciência moral e política que se pretende fundada
nos mesmos parâmetros de conduta das ciências da natureza, em que,
por exemplo, a correspondência entre números e natureza é perfeita e
auto-evidente.
Ao apontar os usos possíveis da razão – a priori limitada por sua condição
de falibilidade –, Hobbes distingue a capacidade humana de calcular e
inferir regras gerais da capacidade do absurdo, pautada justamente no
“discurso sem sentido” (apud Johnston, 1989:15) mencionado acima.
Segundo o autor, “as palavras com as quais nada mais concebemos
senão o som são as que denominamos absurdas, insignificantes, e sem
sentido” (ibidem). O apreço pela sonoridade e por uma certa estética
lingüística, apoiada no uso de metáforas e em outras figuras de retórica,
apesar de possuir forte potencial persuasivo, implica um vazio de
significados, palavras destituídas de sentido, e não propriamente erro.
Essa deturpação daquele que seria o uso nobre da linguagem – voltado
para a produção de um conhecimento verdadeiro e seguro – se deve,
primordialmente, à ausência de método, de definição prévia dos
significados das palavras, além do já mencionado recurso à ambigüidade.
Lançando mão da matemática para tornar essa intuição mais evidente,
Hobbes equipara o equívoco dessa imprecisão lingüística à
impossibilidade de contarmos, sem “conhecer o valor das palavras
numerais, um, dois, três” (Hobbes, 2001:33). Assim como as ciências
da natureza, a ciência política deve se pautar em denominações claras
e objetivas, sendo qualquer recurso de ambigüidade ineficaz e subversivo.
A metáfora e a confusão de significados constituem, portanto, um
elemento naturalmente desorganizador. A desordem simbólica traz em
si o espectro do estado de natureza, em que inexistem confluência de
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cristina.pm6
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signos e correlação entre causa e efeito. Esse caso-limite – que
corresponde a uma espécie de modelo do caos em Hobbes – se caracteriza
fundamentalmente pelo medo da morte violenta, angústia derivada da
diversidade e ausência de articulação tanto das forças como das
atribuições de sentido ao mundo.
A narrativa de Behemoth volta-se justamente para ilustrar o potencial
desagregador da heterogeneidade de signos que povoam o ambiente
político e social da Inglaterra nos anos da Revolução. A pluralidade de
unidades produtoras de significados é, no caso em questão, decorrente
da pulverização religiosa e traz consigo a ameaça de desordem.
Presbiterianos, papistas, anabatistas e outras denominações de menor
importância habitam o mesmo cenário político e disputam a primazia
em assuntos de religião. Essa proliferação simbólica se faz cada vez
mais evidente em claro prejuízo da uniformidade e clareza dos signos
que deveriam servir à mediação dos homens em sociedade. A polifonia
religiosa é em si desorganizadora. Ela opera em detrimento de um
modelo hobbesiano composto por padrões unívocos, devidamente
pautados no universo normativo da República.
Diante de um universo fragmentado, Hobbes concentra sua crítica nos
presbiterianos, cujos preceitos produzem desdobramentos efetivos na
vida prática de seus seguidores, além de incluírem a possibilidade de
auto-organização. Suas pregações, apoiadas amplamente em recursos
de retórica e práticas de ator, comporiam um reino dominado pela
argumentação, tal qual o mundo sofístico. O domínio e determinação
dos gestos e da impostação da voz, bem como a escolha precisa das
palavras, exerciam tamanho poder de convencimento que “alguém que
não estivesse familiarizado com essa arte jamais poderia suspeitar de
qualquer conspiração ambiciosa para suscitar a sedição contra o Estado,
tal como então tramavam” (Hobbes, 2001:57). Aos sermões improvisados
atribuíam a autoria de Deus. E muitos se deixavam seduzir por esta
idéia, seguindo-os como se seguissem Deus. A sintonia dessas pregações
com os anseios do povo também era decorrente da omissão da seita
diante daqueles que seriam os vícios humanos mais desprezíveis: o
desejo de lucro, “a dissimulação, a mentira, o engodo, a hipocrisia”
(idem:59), e assim por diante. Ao atacar com grande severidade os
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pecados da concupiscência e da blasfêmia, sugeriam ser os demais menos
importantes, chegando quase a desconsiderá-los.
A ameaça de infelicidade e castigo eterno da religião é apontada por
Hobbes como mais contundente e persuasiva do que o poder do rei,
limitado à jurisdição da vida terrena. O autor denomina de “usurpação”
a progressiva apropriação, por parte dos papas, de boa parte dos direitos
temporais dos príncipes ocidentais (idem:43). Outorgando-se uma
suposta delegação divina, os clérigos por diversas vezes teriam visado
sobrepor seus poderes, em casos de controvérsia, às ordens de seus
próprios reis, o que acabou por gerar o enfraquecimento do poder
civil. O sucesso dos que atribuem a si a compreensão dos desígnios
divinos implica, em casos extremos, a total desarticulação entre
governante e povo. Este, conforme discorre Hobbes, é, em geral, “tão
ignorante de seu dever” (idem:34) que, em caso de dúvida quanto à
conduta correta a ser seguida, confia na “pregação de um estranho e de
outros que, como ele, são súditos”, em vez de deixar-se guiar pela “voz
da lei” (idem:85).
O debate sobre a questão da soberania perpassa o texto de Behemoth e
está fundamentalmente alicerçado no tema da religião. A fragmentação
religiosa, por um lado, e os embates entre poder temporal e espiritual,
por outro, são os elementos que compõem a linha da argumentação
hobbesiana no que concerne a querelas e disputas pelo poder soberano.
Quanto ao primeiro aspecto, a proliferação das seitas é apontada como
um equívoco da livre interpretação das Escrituras. As traduções da
Bíblia para os diversos idiomas fez com que cada homem passasse a se
autocompreender como autônomo em relação à leitura do texto
religioso, rejeitando as formas de mediação que antigamente tornavam
as escrituras inteligíveis. De acordo com Hobbes, “todo homem se
tornou juiz da religião e intérprete das Escrituras para si próprio”
(ibidem), o que significa uma produção potencialmente infinita de
leituras particularizadas e pouco ou nada conciliáveis. Tal diversidade
interpretativa engendra uma relação necessária de causa e efeito em
que a desigualdade inicial de opiniões é sucedida pela emergência de
um ambiente litigioso e controverso que cede lugar à possibilidade de
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desobediência e, por fim, à rebelião. Uma vez configurada a condição
inicial em que figura a pluralidade de construções simbólicas, os
desdobramentos posteriores – que se desenvolvem em um movimento
crescente em direção ao estado-limite da guerra de todos contra todos
– parecem inevitáveis.
A constatação desse ambiente religioso fragmentado não significa,
entretanto, uma recusa hobbesiana da religião. Muito pelo contrário,
Hobbes afirma a necessidade de a religião ser proferida como lei e,
assim sendo, estar subordinada ao Estado. É esta instituição a única
capaz de garantir a coesão religiosa e todos os benefícios que daí derivam,
direta ou indiretamente, quais sejam: a paz social e, por conseguinte, a
extirpação do medo da morte violenta. Se os bens trazidos pela unidade
da religião repercutem na própria configuração da sociedade, os males
atribuídos à polifonia religiosa, igualmente, não se circunscrevem ao
âmbito religioso. Muito mais do que isto, constituem uma clara ameaça
à unidade do poder civil.
Hobbes inclui, então, a religião no hall das virtudes humanas, atrelandoa, ainda uma vez, à virtude da obediência às leis da República. Segundo
esta perspectiva, o cidadão virtuoso religiosamente seria também
necessariamente virtuoso no que tange ao seu desempenho na vida cívica.
A ênfase na subserviência inconteste às leis da nação – e, por intermédio
destas, e somente destas, às leis da religião – opera a partir de um
paradigma de homogeneidade interna, o que não significa a ausência
de reconhecimento da diversidade de opiniões e valores. As diferenças
decerto existem, mas somente em prejuízo de toda a nação poderão
aflorar e se desenvolver livremente. As mesmas ações poderão ser
consideradas virtuosas ou viciadas por cidadãos diversos. E, sendo
impossível decifrar de maneira inconteste os desígnios de Deus, e assim
estabelecer os parâmetros para suas ações, os homens terão que
concordar com uma ou outra autoridade humana. Dessa forma, serão
boas ou más as ações que estiverem ou não pautadas em conformidade
com as leis da República, e não aquelas que estiverem moldadas segundo
julgamentos individuais sobre o ordenamento divino.
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Daí decorre que todos aqueles que se opõem ao governo absoluto (seja
ele uma monarquia, aristocracia ou democracia), rotulando-o de
tirânico, incorrem em grave equívoco. Seja pela via religiosa, que propõe
uma autoridade espiritual dotada de direitos de intervenção temporal,
seja pela via mais objetivamente política, fundada na crença da eficácia
e legitimidade da divisão do poder em subpoderes, o questionamento
da unidade do poder é, em si, repudiável. A chamada mistarquia, da
qual muitos estariam enamorados, não passaria de uma condição
anárquica e, portanto, de uma deturpação do supremo poder, que sempre
deve ser absoluto. Em Behemoth, o autor recorre à história como prova
contundente do equívoco desta idéia. A partir de uma perspectiva não
empirista, o Leviathan (1973) também já apontara no mesmo sentido.
A unidade do poder e a obediência são de tal maneira apreciadas que
Hobbes atribui às universidades o papel de louvá-las. Em vez de
contribuir para sustentar a autoridade do papa com o argumento de
que seu poder espiritual constitui uma derivação direta de Cristo, e não
do próprio rei, as universidades deveriam proclamar o dever de
obediência dos homens às leis civis, que são também leis de Deus.
O amor à obediência é o mesmo que o amor ao público. E, na ausência
do rei, nada mais há de público. Enfocando o caso específico da guerra
civil inglesa, a atitude de questionamento da figura do rei (que mesmo
no contexto de monarquia mista ainda representava um elemento
simbólico de unidade) gerou a emergência de várias unidades que se
autodenominavam fontes legítimas de poder. O governo foi reduzido à
anarquia. O texto de Behemoth dedica-se justamente a narrar as minúcias
deste processo e mostrar a facilidade com que a soberania foi dissipada.
Diante do contexto de desordem, os autores da destruição encontrarão
extrema dificuldade em reerguer um ambiente de paz e extirpar a
universalização da desconfiança.
(Recebido para publicação em novembro de 2003)
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Referências Bibliográficas
HOBBES, Thomas. (1973), Leviathan. Rio de Janeiro, Editora Abril,
Coleção Os Pensadores.
___. (2001), Behemoth ou o Longo Parlamento. Belo Horizonte, Editora
UFMG.
JOHNSTON, David. (1989), The Rhetoric of Leviathan: Thomas
Hobbes and the Politics of Cultural Transformation. New Jersey,
Princeton University Press.
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Poder e Multiplicidade em Lyotard,
Deleuze e Foucault
JULIANO BORGES*
Resumo
Este artigo trata de aspectos relacionados às concepções de poder de Lyotard,
Deleuze e Foucault, todos vinculados ao pensamento pós-estruturalista. O
contexto de crise teórica experimentado por eles, no final da década de 70,
motivou-os a uma revisão das formas que estruturavam a filosofia política
até então, por via de um conjunto de proposições produzido como forma de
conduzir seus respectivos programas políticos. Lyotard, pela ruptura com o
marxismo e pelo uso do conceito de diferendo; Deleuze, pela preservação das
multiplicidades como meio de aprimoramento social; e Foucault pela ruptura,
visando à superação do sistema. Em todos eles, contudo, está presente a idéia
de abertura à diversidade dos discursos.
Palavras-chave: pós-moderno; Lyotard; Deleuze; Foucault
* Doutorando em ciência política no IUPERJ e bolsista da CAPES. E-mail:
[email protected].
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T
ratar o tema do poder em Lyotard, Deleuze e Foucault requer que
outros aspectos de suas obras sejam também considerados, seja por
estruturarem seus conceitos particulares, seja simplesmente por auxiliarnos a obter uma visão mais completa de suas idéias.
Pela preocupação com a questão da multiplicidade, por consideraremna fundamental como categoria de pensamento, os autores são forçados
a revisar a concepção hegeliana de história, criticando-a, com
conseqüências incontornáveis sobre seus respectivos programas políticos.
No caso de Lyotard (1992), o conceito de diferendo é crucial para a
compreensão de sua concepção a respeito da política. Na crítica que
produz a cânones marxistas, identifica uma perda de credibilidade de
suas narrativas históricas e de sua herança hegeliana. A história, como
progresso, teleologia e evolução, tenderia a congelar categorias e
universalizar conceitos. Em um momento em que o capitalismo se
mostra fortalecido, resistindo mesmo às suas crises endógenas mais
profundas, Lyotard, ao romper com o marxismo (como perspectiva
universalista da história em sua pretensão científica), rompe igualmente
com toda e qualquer filosofia da história; passo decisivo para a instituição
da idéia de pós-modernidade.
Para ele, à derrocada da perspectiva historicista, no entanto, não
corresponde a falência do poder de análise crítica do modelo capitalista
pelo marxismo. Lyotard, ambiguamente, renunciará ao traço historicista
e dialético do marxismo, reconstituindo um olhar sobre ele a partir do
conceito de diferendo. Isto é, a dialética só poderá ser pensada sem sua
função totalizante a partir da concepção de diversidade, sem a idéia de
oposição (o que, entretanto, descaracteriza o próprio sentido da dialética).
Para ele, a diferença não pode estar vinculada a opostos, em uma lógica
de identidades, levando à particularização, ao privilégio inevitável de
um dos lados envolvidos e à possibilidade de dominação de uns sobre
outros. A dialética, como tal, está sempre (re)constituindo uma
identidade – o que supõe um sujeito (Marx) ou espírito (Hegel) da
história.
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O problema dessa concepção das diferenças está em manter uma
permeabilidade em relação às demais, do contrário, torna-se possível
uma síntese, voltando-se novamente à dialética marxista. A preocupação
de Lyotard, portanto, é impedir manifestações totalitárias, garantindo
a heterogeneidade máxima dos discursos, a não-síntese, de modo a
proteger os particularismos.
Mesmo identificando o sistema de exploração (em que, nesse processo,
o marxismo manterá seu valor), o programa político de Lyotard tornase difuso pela própria existência do diferendo. Não há, então, um
normativismo político (como também não haverá em Deleuze e
Foucault). Dessa forma, o enfraquecimento da perspectiva histórica do
marxismo na atualidade, associado à sua força analítica, traz a
possibilidade da barbárie sem apontar um futuro evolutivo ou de
progresso. Trata-se, então, de uma teleologia analítica em lugar da
histórica.
O fim das narrativas históricas caracterizaria a pós-modernidade como
ponto culminante de um processo de crise da racionalidade (Lyotard,
1986). Se a razão se dá historicamente, em uma autoconsciência da
modernidade, mas se essa concepção filosófica da história já não pode
dar conta do que se passa no mundo fenomênico, então se desvela uma
crise das formas racionais, incapazes, empiricamente, de conferir aquele
progresso ou futuro evolutivo prometido pelo projeto da modernidade
(sendo o holocausto o símbolo máximo dessa involução para a barbárie).
Se o moderno é caracterizado pelas grandes narrativas, pelos relatos
universais que o legitimam, ele traz, em si, o germe de sua
desestruturação no momento de desmonte desses relatos.
Desse modo, a legitimação produzida pelas narrativas torna-se obsoleta.
Para Lyotard, o saber, na condição pós-moderna, não necessita mais,
como antes, ser uma verdade. Na pós-modernidade, o saber adquire
um fim em si mesmo, não submetido a nenhum outro valor que não a
reprodução do capital. Verdade, justiça ou, simplesmente, aquilo que é
bom já não possuem um valor idealístico na concepção humanística
consagrada pela modernidade. Nessa nova hierarquia de valores, o topo
passa a ser ocupado pelo melhor desempenho (performance) e já não
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há mais o encantamento da busca pela verdade última do mundo
exterior.
É a partir daí que Lyotard identifica a modernidade como projeto (pela
expectativa de organização do futuro). Acredita, porém, que se trata de
um projeto fracassado, em que nenhum traço constitutivo possa ser
aproveitado. Isto porque o capitalismo chega às sociedades
contemporâneas tendo abandonado seu aspecto humanista (moderno,
portanto), mas mantendo seus traços totalitários: a conversão da
pluralidade do saber – a multiplicidade de paradigmas – em favor de
um sistema de produção monopolizado. Indo de encontro a toda
racionalidade fundada ontologicamente ou na teoria da linguagem,
Lyotard reafirma sua oposição às narrativas universalizantes para ser
capaz de assegurar aquela multiplicidade de discursos. Há racionalidades
(já que a idéia de razão como unidade é negada), linguagens e, portanto,
discursos. Deve prevalecer, portanto, a pluralidade. E Lyotard acredita
defendê-la por via dos diferendos.
Apelando para o conceito wittgensteiniano de jogos de linguagem,
Lyotard encontrará um modo de afirmar a heterogeneidade dos
discursos. Segundo o autor, os diferendos referem-se àquilo que ainda
não existe como realidade constituída, pois estabelecer a realidade de
algo é torná-lo objeto de litígio, visto que, assim, se supõe a determinação
de uma forma de comunicação questionável. Daí a importância dada
por ele à instância política, foro de diálogo com os diferendos.
A finalidade das práticas cotidianas não seria, assim, o consenso, mas o
dissenso, adequado à emergência de diferendos, constantemente em
desacordo com o estado das coisas. Para Lyotard, sendo os discursos
heterogêneos, o consenso só poderia trabalhar pela hegemonia,
favorecendo o poder instituído. Se não há valores universalizantes, o
consenso tende a sufocar a pluralidade de discursos. Toda hegemonia
se inclina, então, para uma forma de injustiça. O que é consensual
coincide com a idéia de poder.
Ao analisar alguns fenômenos da pós-modernidade, Lyotard identifica
uma resposta de movimentos ao processo de estabelecimento de
hegemonização trazido pelo sistema. Os pluralismos da pós-modernidade
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têm o viés de formas político-culturais extremamente fechadas como
meio de proteção. Lyotard, contudo, condena esse autofechamento como
reacionarismo, já que este acaba por reproduzir, em seu interior, o
mesmo tipo de hegemonia.
Rejeitando as formas liberais tradicionais, as grandes narrativas filosóficas
e os radicalismos de movimentos autocentrados, Lyotard elege a política
como campo de diálogo com os diferendos. Desiludido com ideais de
emancipação, e criticando Foucault e Sartre pela manutenção desse
aspecto da modernidade, seu programa político, todavia, não admite a
possibilidade do reformismo. Se está certo que o capitalismo
monopolizador se opõe à heterogeneidade dos discursos, limitando-os,
o reformismo se traduziria, então, em desilusão e em um símbolo da
capitulação e do fracasso. Apostar em uma melhor distribuição dos
ganhos capitalistas e satisfazer-se com isso, para Lyotard, significa limitar
o dano gerado pela exploração capitalista, além de supor que os
detentores da riqueza simplesmente a cedam. Essa proposta lhe parece
absurda, já que ignora a própria lógica monopolista do capital,
concentradora por essência.
Sua filosofia política, desse modo, vai se autolimitando a ponto de não
ser capaz de estabelecer um projeto político. É certo que a política
deve converter-se de campo universalizante em uma forma que abrigue
e estimule o devir, isto é, aquilo que ainda não encontrou sua voz no
mundo e pode concretizar-se na realidade. No entanto, adotar um projeto
político seria ingressar no projeto moderno, por ele condenado. Lyotard
acredita que a melhor e mais elaborada forma de discurso terá sempre,
em seu interior ou em suas margens, diversas formas de diferendo.
Nosso autor é forçado, a partir dessa constatação, a abandonar qualquer
projeto universalizante, em uma espécie de niilismo ativo, de modo
que os diferendos possam ser os condutores do processo de
transformação e superação capitalista.
Não havendo a possibilidade de uma justiça universal, pois o julgamento
é feito sempre a partir de valores preestabelecidos, continuamente
haverá, então, a supressão de diferendos, já que não há como julgar o
que ainda não foi feito. O que resta questionar é a capacidade da política
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em não ser um projeto e em abrir mão de sua essência universalizante
e conflitiva em função dos diferendos.
Deleuze, por sua vez, tentará formular outras respostas ao problema da
multiplicidade no universo político. Sua idéia é alterar os modelos de
pensamento da multiplicidade, como plano de imanência unificador
das instâncias virtuais e atuais, recusando a unidade como seu mecanismo
de ordenação (Deleuze e Parnet, 1998a). Como Lyotard, Deleuze começa
por romper com a idéia hegeliana de processo histórico horizontal, em
que o atual produz outro atual, em um avanço progressivo. Deleuze
propõe ainda uma forma verticalizada, bastante próxima da genealogia
de Foucault, em que o virtual (produtor do devir) gera o atual (produto),
não podendo ser explicado, necessariamente, em termos de causa e
efeito. O devir, como tal, não é, portanto, histórico, embora possa ser
organizado (como passado) através da história.
Assim, não há objeto puramente atual, já que ele está sempre envolvido
com sua virtualidade e toda forma de atualização do virtual é uma
produção de singularidades. Combatendo a transcendência, Deleuze e
Parnet (idem) colocam-se contra a operação da multiplicidade a partir
da idéia de identidade. Em um mundo em que prevalecem as
multiplicidades não é possível a existência de identidades puras,
pertencimentos exclusivos, pois não existem indivíduos em seu sentido
absoluto. Há unidades abertas à multiplicidade, que nela estão
embutidas.
Dessa forma, Deleuze produz uma teoria da multiplicidade que
reivindica a negação da idéia de que toda realidade se reduz ao atual.
Haveria uma conexão absoluta entre o atual (instância não autônoma e
heterogênea em que a realidade não se esgota) e o virtual (potencialmente
atual) que interagiriam pela virtualização do atual (processo que responde
pelas transformações do mundo) e pela atualização do virtual (gênese
criativa de novas realidades). Daí que o que transforma o real (no
sentido mesmo hegeliano, já que supõe transformações) é o devir, e não
a história.
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É a partir de sua teoria da multiplicidade que Deleuze estruturará sua
filosofia política, mediante o conceito de linhas de segmentaridade
(processos de multiplicidade) (Deleuze e Parnet, 1998b). Segundo o
autor, essas linhas podem ser de tipo duro e de tipo flexível, além do
movimento de fuga ou ruptura, incapaz de produzir alguma
segmentaridade.
As linhas de segmentaridade dura (molar) responderiam às formações
da produção do atual e à tendência de autonomia (não sendo, no
entanto, autônomas). Elas organizariam as diferenças do coletivo a partir
de uma lógica binária e em um território específico, caracterizando
resultados, reconhecendo e reproduzindo constantemente valores e
conceitos socialmente compartilhados.
As linhas de segmentaridade flexível (molecular) são processos de desvio
e de transformação que ocorrem sobre o domínio da segmentaridade
dura. Não há, no entanto, uma designação psicológica. Ao contrário,
todos os processos dizem respeito aos campos coletivos. Essa linha,
todavia, associa-se à atualização do virtual mais do que ao atual em si,
como o primeiro processo. Ela caracteriza procedimentos, expectativas
e processos de individuação, correndo em um plano de imanência
(multiplicidade pura, plenamente desorganizada) diferente do de
organização.
Sendo assim, a atualização do virtual, motivada por linhas de
segmentaridade flexível, leva a uma realidade que pode vir a endurecer,
convertendo-se de linha flexível em linha dura (processo de
sobrecodificação). Esse novo atual tende a firmar-se, embora não possa
se tornar autônomo, já que sempre haverá linhas flexíveis pressionando
novas atualizações.
As sociedades oscilariam desse modo entre linhas extremas:
consolidação social
máxima (seg. dura)
seg. flexível
desestruturação
social (ruptura)
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Se a etnologia aponta para sociedades segmentarizadas e sociedades
unificadas, nas quais o Estado é a forma mais elaborada de instância
unificadora, Deleuze irá contrapor-se a essa visão afirmando que as
sociedades são sempre segmentarizadas, ou seja, mesmo havendo uma
instância de poder unificado, permanecem outras formas de poder
(Deleuze e Guattari, 1996:84). Assim, o Estado é entendido como uma
unidade organizadora de segmentaridade, não como seu corolário.
Há algumas semelhanças entre esse aspecto da filosofia deleuziana e o
pensamento de Foucault. Este último, como será observado adiante,
explora a segmentaridade das sociedades sem pressupor o poder como
algo identificado apenas na unidade do Estado. O poder, para ele, é
sempre uma realidade segmentarizada, mesmo quando unificada; há,
conseqüentemente, uma capilaridade constante em suas manifestações.
Deleuze, por sua vez, também acredita em uma segmentaridade constante
do poder, até porque sua aposta recai sempre sobre a multiplicidade de
suas manifestações, mesmo quando o poder se evidencia em uma
instância unificada.
Contudo, Deleuze, ao contrário de Foucault, não crê que linhas de
segmentaridade flexível ou movimentos de ruptura criem
necessariamente formas políticas, atribuindo às linhas de segmentaridade
dura a criação de formas macropolíticas. Para Foucault, toda
multiplicidade já envolve uma determinada forma de poder. Em
Deleuze, a heterogeneidade não tem como trazer formas de poder, já
que não está definida a priori uma unidade que o identifique. O poder
só poderia manifestar-se, então, em uma realidade territorializada.
Enquanto Foucault vê o poder como instância criadora, a concepção de
poder deleuziana é eminentemente negativa, dado que tem a capacidade
de impedir a multiplicidade (agenciamentos), tornando-a binária. A
macropolítica é o campo que responde apenas pelas transformações
circunstanciais. É no conjunto dos agenciamentos que escapam do
domínio político das decisões que se dão as transformações. Para
Deleuze, o poder envolve uma atualização e uma delimitação do campo
de ação, impedindo e abalizando o devir, já que é próprio do poder se
apropriar daquilo que dele foge (idem). O poder também está em
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movimento, atuando na multiplicidade, na divisa entre os segmentos e
as desterritorializações (fluxos) associadas aos movimentos de ruptura,
e definindo-se a partir dos movimentos de fuga.
PODER
formas constituídas
(segmentos)
multiplicidade
(agenciamentos)
formas que escapam
do controle (fluxos)
Se Lyotard abandona os projetos políticos universalizantes, tornando
sua ruptura com o marxismo exemplo disto, Deleuze não pode fazer o
mesmo. Lyotard aposta na pluralidade, imaginando o conceito de
diferendo, capaz de prover uma abertura à emergência da multiplicidade,
à transformação e à superação do regime capitalista. Já para Deleuze, a
sociedade transforma-se ao fugir, e não a partir do que já é. Não há
possibilidade de aperfeiçoamento de qualquer sistema. Não há, por
exemplo, como esperar uma revolução da classe trabalhadora – estando
já consolidado e configurado pelo poder, o proletariado não pode mais
ser um fluxo, já que está conformado pela esfera do poder. Deleuze
desqualifica a macropolítica, reduzindo-a a um sentido regulador –
que distribui o poder constituído e desqualifica os projetos utópicos –
dentro do jogo do poder. A micropolítica, no entanto, é capaz de compor
agenciamentos e contribuir para uma melhoria social.
Sendo assim, tanto mais eficaz será a macropolítica (as grandes formas
de organização do Estado) quanto mais ela for capaz de controlar a
micropolítica (instâncias inferiores), ou seja, absorver as linhas de fuga.
Visto que a macropolítica busca garantir sua própria segurança, enquanto
a micropolítica é entendida como fonte de instabilidades, não há,
entretanto, separação formal entre essas instâncias, e o Estado aparece
indiferenciável. Seu poder é limitado, e há movimentos que lhe escapam,
como os fluxos.
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Codificação
Sobrecodificação
Criada pela segmentaridade
Exerce uma atividade sobre todos os
segmentos. Endurecimento. Não-produção.
Não-movimento. Estabilização.
Em sua análise dos processos de virtualização e de sobrecodificação,
Deleuze associa-os ao Estado como instância sobrecodificadora que
desterritorializa para reterritorializar. Remetendo-se a uma gênese do
capitalismo, Deleuze mostra como o Estado se comporta em sua
tentativa permanente de sobrecodificação. Ele observa ainda que a
estruturação das formas capitalistas se dá quando os fluxos
descodificados transbordaram do Estado, constituindo agenciamentos
de produção e de consumo. Tendo o fluxo do trabalho se descodificado
com o fim da servidão, e, a riqueza se descodificado com a constituição
do capital, ambos se agenciam formando um novo sujeito, a produção,
e um novo objeto, a moeda, em um novo devir, o capitalismo. É o
capitalismo que traz, agora, a axiomática mundial da economia (nela
sustentando sua própria desterritorialização), fugindo ao controle do
Estado e sem depender do governo.
O Estado passa a ser, então, um modelo de realização do capital. O
capitalismo não anula o Estado, mas o submete, conferindo-lhe uma
função menor. Nesse embate, contudo, o Estado opõe resistência,
frenando os movimentos do capitalismo e gerando um foco de
permanente tensão.
Em sua crítica ao capitalismo, Deleuze chama a atenção para aquilo
que ele denomina “máquina abstrata”, isto é, o desenvolvimento do
mercado mundial, a potência das sociedades multinacionais, o esboço
de uma organização “planetária” e a extensão do capitalismo para todo
o corpo social, em uma antecipação do fenômeno que seria reconhecido
como globalização.
Há, aqui, uma semelhança entre as análises de Deleuze e Lyotard. Ao
tratar da pós-modernidade, Lyotard identifica um monopólio do saber
que se converte em um gênero econômico voltado para otimizar a força
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de produção do sistema. Seu totalitarismo viria justamente da codificação
de agenciamentos em função do sistema de produção monopolizado.
Já para Deleuze, os agenciamentos não exercem seu predomínio, mas
estão subjugados pela técnica. Para ele, a modernidade também
consagrará esse domínio e, ainda que o homem não se confunda com
a máquina, terá radicalizado sua submissão a ela. A automação
corresponde, enfim, ao último estágio de dependência. A máquina
substitui o homem, configurando uma nova codificação. A servidão
passa agora pela axiomática capitalista, alimentando uma exterioridade
humana. No entanto, ao mesmo tempo que se desenvolve, o homem
tem reduzida, cada vez mais, sua exterioridade. O capitalismo
informacional sujeita o homem à função de componente e o envolve no
fluxo cibernético apontado também por Lyotard.
Enquanto para Lyotard os diferendos trariam novas saídas criadoras,
para Deleuze, tudo é advindo das segmentaridades, sendo o poder uma
instância de contenção do devir. Para Michel Foucault, porém, o poder
não está reduzido aos meios repressivos. Se é certo que o poder impede
o devir, ele também é capaz de criar novos devires, por meio dos
movimentos de resistência que lhe são próprios.
Com uma postura filosófica mais pragmática que a de Deleuze, Foucault
parte do conceito nietzschiano de genealogia para, tal como Lyotard e
o próprio Deleuze, romper com a forma de história hegeliana, universal,
teleológica, dotada de continuidade e gênese linear. Para Foucault
(1979a), é preciso descobrir a essência dos fenômenos, que repousa
não em sua origem (linear), mas em seu começo (não-linear). A história
é o espaço dos desvios, em que eles se mostram e permanecem, mas
sua essência está sempre guardada. A genealogia deve valorizar o
essencial e não o acidental, reconhecendo que o que está oculto nas
descontinuidades da história não é nenhuma identidade autêntica, mas
justamente o fato de que tais descontinuidades não têm essência. O
genealogista deve investigar a dispersão, designando os elementos que,
em algum ponto, foram capazes de fazer com que surgissem outros
elementos, destrinchando uma rede de microacontecimentos que não
guardam necessariamente identidade com aquilo que se está
investigando, em um uso rigorosamente antiplatônico da história.
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A genealogia evita o finalismo porque não está preocupada em mostrar
que o presente está guardado no passado, isto é, o encadeamento da
causalidade necessária, que, no fundo, é a reprodução de uma identidade
(que já estava lá) ou mesmo a subjugação do passado no presente. O
sujeito será, para Foucault, como todos os objetos, ele mesmo gerado
por relações genealógicas e, por isso, requisitará uma genealogia própria.
Sua preocupação, nesse movimento, é desvelar as relações de dominação
ocultas pela identidade de antemão oferecida pela visão linear da
história. “A verdade é uma espécie de erro que tem a seu favor o fato de
não poder ser refutada, sem dúvida porque o longo cozimento da história
a tornou inalterável” (idem:19). Foucault quer, desse modo, preservar
as multiplicidades presentes antes do momento de sua sujeição ao poder.
O poder para ele, como para Nietzsche, é entendido como a relação de
forças que leva a uma relação de dominação que, por sua vez, estabelece
novas relações e valores. O poder é, assim, criador e, por isso, não
necessariamente negativo. Relacionando o conceito à sua causa final,
seria a partir da dominação que surgiria, por exemplo, a idéia de
liberdade, de justiça e de natureza das regras. É irônico que a iniciativa
otimista desse argumento, entretanto, acabe justamente confirmando
seu pessimismo intrínseco. Cabe contra-argumentar que, se a idéia de
liberdade surge da opressão produzida pelo poder, sua ausência, no
entanto, dispensaria o surgimento da própria idéia, pela evidência prática
de seu exercício pelos homens.
Deleuze e Lyotard compartilham a visão do poder como instância
opressora do devir, de uma verdade. Para Foucault, o poder é onipresente
a priori e traz, em si mesmo, o princípio da resistência. Poder é coerção
da liberdade, é repressão. Se há poder, há algo sendo reprimido, o que
denota um viés contrário: sem o poder, algo (o que estaria sendo
reprimido) desvela-se. O poder tem, portanto, uma realidade exterior
à natureza das coisas. Existe uma separação entre verdade e poder.
Resistir ao poder, para Foucault, é uma questão que não se coloca,
justamente porque o autor compreende a resistência como constitutiva
de suas relações.
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Dado que as relações de força impõem uma resistência ao poder, Foucault
voltará sua atenção ao Estado, buscando compreender seu
funcionamento para ser capaz de entender esse poder. Uma vez mais, a
instância econômica surge como elemento-chave atuante nas concepções
jurídica (o poder como esfera autônoma) e marxista do poder (reproduz
as dominações existentes entre as classes sociais). Para Foucault, essas
concepções acabam unidas no que qualifica como “isomorfismo” entre
a noção de “bem” e de “poder”. Foucault expõe, assim, a condição
insuficiente da associação produzida pela concepção jurídica quanto ao
Estado e quanto ao poder. A mediação entre Estado e poder caberia à
violência, entendida como o uso da força física sobre determinado
território. O Estado detém o direito de manter e defender seu espaço
com o uso da força. O poder político, portanto, define quem detém o
monopólio da violência. A legitimidade garantiria, por sua vez, o controle
desse poder político pelo princípio da soberania. Sendo um bem, o
poder seria uma atribuição intrínseca do indivíduo, legitimamente. A
legitimidade apresenta-se naturalizada, apenas externalizando seu traço
violento quando este é eventualmente mobilizado.
Em algumas tradições da história do pensamento político, como o
jusnaturalismo, por exemplo, a violência é pensada como algo superável
ou, ao menos, controlável. Desse modo, se os jusnaturalistas imaginam
a regra como oposição à violência, isto é, o Estado de direito eliminando
o Estado de natureza, Foucault (1997) não acredita que as regras sejam
um impedimento para a violência, mas uma estabilidade que garante,
justamente, seu funcionamento. Confirmando um traço marxista,
Foucault acredita que as regras são, todas elas, violentas, pois tornam
constante o exercício da violência, ocultando-a, muitas vezes, como
expressão muda de um sistema de forças.
A concepção foucaultiana do poder identifica em uma sociedade
pacificada o exercício constante da violência. Indissociáveis, o poder
será, portanto, violência e guerra. O choque com a teoria jurídica
pretende evidenciar a dominação pelo poder (pensado aqui como
unicidade – propriedade que alguns detêm e usam contra outros) a
partir de seu estudo genealógico nas extremidades de sua aparição, isto
é, nas instâncias plurais de manifestação (micropolítica, para Deleuze).
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Ao passo que a teoria jurídica aponta o poder como propriedade dos
estratos sociopolíticos superiores, Foucault voltará sua atenção para o
poder existente fora dessas instâncias, já que o entende como múltiplo,
plural, nunca uma entidade unificada. Enquanto para a teoria jurídica
o sujeito já está dado, Foucault considerará que este já está dado pelos
mecanismos de sujeição.
Na sociedade capitalista, disciplinar, o poder atua em um sujeito
individualizado, sem apelar para o discurso totalizador do soberano.
Para Foucault, a sujeição ressaltada por Deleuze será evidenciada no
corpo. Este será o ponto final dessa cadeia de sujeições, naquela escala
de dominação e poder, não atuando mais da mesma forma no exterior,
no todo, o poder busca uma forma interior e individualizada,
convertendo o tempo e docilizando o corpo para a produção.
O programa político foucaultiano propõe a continuidade da resistência
ao poder a partir de um método que desvele suas manifestações
insuspeitas (a genealogia). Tendo sido identificados os alvos, estabelecemse “métodos, lugares e instrumentos de luta” que tendem a fazer parte
de um processo de resistência maior (sendo o proletariado a vanguarda)
que atua onde a opressão se exerce. As lutas particulares inseridas no
complexo das multiplicidades sujeitadas (mulheres, prisioneiros,
soldados, doentes nos hospitais, homossexuais etc.) devem ter a
condição, no entanto, de serem radicais, não reformistas e “sem tentativa
de reorganizar o mesmo poder apenas com uma mudança de titular”
(Foucault, 1979b:78). Para Foucault, a generalidade da luta não se faz
pela totalização da verdade teórica de uns sobre outros, já que o que dá
generalidade à luta é o próprio sistema de poder e suas múltiplas formas
de exercício e aplicação.
O contexto de inoperância teórica vivido por esses autores, seja no
âmbito acadêmico seja na resposta da práxis política, a partir do final
da década de 70, motiva uma revisão das formas que estruturavam a
filosofia política até aquele momento. Em todos os casos, sendo para o
aprimoramento da vida social (Deleuze), sendo para a superação do
sistema, pela ruptura (Foucault), a saída encontrada é a retenção da
totalização pela abertura à diversidade dos discursos.
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Lyotard, em seu niilismo ativo, é capaz de identificar o centro da
totalização no poder do capital (ao que continuará a lançar mão do
modelo crítico marxista) e acreditará em sua superação a partir dos
diferendos, espaços das heterogeneidades emergentes, capaz da superação
política, mesmo sem a crença em um projeto utópico.
Deleuze, por sua vez, mostra-se descrente tanto nas utopias (como
representantes de um discurso universal) quanto no reformismo (por
simplesmente reconfigurar o poder e anteceder, assim, novas opressões
(Deleuze e Parnet, 1998b:72)). A política, como instância macro,
responderia apenas pelas mudanças circunstanciais. O conjunto dos
agenciamentos, porém, como instância micropolítica, por escapar do
domínio macropolítico das decisões, poderia proporcionar
transformações, sendo capaz de desenvolver novas formas de poder. O
poder, para Deleuze, parece mesmo insuperável.
Finalmente, Foucault, mesmo compartilhando de uma visão pessimista
do poder, aposta em uma superação pela ruptura. Em sua visão, seria
possível a cada parcela componente da multiplicidade enfrentar as
manifestações subjacentes ao poder, por meio de seu desvelamento pelo
método genealógico.
(Recebido para publicação em outubro de 2003)
Referências Bibliográficas
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. (1996), “Micropolítica e
Segmentaridade”. Mil Platôs (vol. 3). Rio de Janeiro, Editora 34.
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. (1998a), “O Atual e o Virtual”.
Diálogos. São Paulo, Escrita.
___. (1998b), “Políticas”. Diálogos. São Paulo, Escrita.
FOUCAULT, Michel. (1979a), “Nietzsche, a Genealogia e a História”.
Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal.
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73
___. (1979b), “Os Intelectuais e o Poder”. Microfísica do Poder. Rio de
Janeiro, Graal.
___. (1997), Em Defesa da Sociedade. Rio de Janeiro, Martins Fontes.
LYOTARD, Jean-François. (1986), O Pós-Moderno. Rio de Janeiro,
José Olympio.
___. (1992), “Un Memorial del Marxismo: Para Pierre Souyri”.
Peregrinaciones. Madrid, Cátedra.
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Do Fim da História à
Guerra Preventiva*
MAURÍCIO SANTORO* *
Resumo
Este artigo examina o desenvolvimento do pensamento estratégico nos EUA
no período que se estende entre o fim da URSS e os atentados de 11 de
setembro de 2001. A partir de documentos oficiais e dos debates político e
acadêmico, observa-se o surgimento da percepção de que a ordem mundial
é unipolar, regida pelos Estados Unidos, que devem utilizar todos os recursos
para manter tal situação – inclusive a guerra preventiva contra rivais em
potencial. Nesse sentido, os pressupostos que guiam a “Doutrina Bush” já
estavam presentes no ambiente intelectual norte-americano muito antes dos
ataques de Bin Laden.
Palavras-chave: EUA; unipolaridade; estratégia
*
Este texto corresponde ao primeiro capítulo de minha Dissertação de
Mestrado, “O 11 de Setembro e a Doutrina Bush”, escrito com financiamento
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES .
**
Jornalista, doutorando em ciência política pelo IUPERJ e pesquisador do
Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE.
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O Momento Unipolar e a Estratégia da Primazia
Entre 1989 e 1991, a História acabou, ou assim garantiu Fukuyama. A
queda dos regimes socialistas na Europa Oriental, seguida do colapso e
fragmentação da União Soviética, encerrou a Guerra Fria, com a vitória
dos Estados Unidos. Mas o momento do triunfo também foi, no
pensamento político norte-americano, marcado pela incerteza em
relação ao poder nacional e ao papel que os EUA desempenhariam na
nova ordem.
A partir de meados da década de 70, ganharam destaque as interpretações
do declínio da hegemonia norte-americana, como as de Paul Kennedy e
Immanuel Wallerstein, com base em fatos como a derrota no Vietnã, a
crise interna do Watergate, a ascensão de regimes hostis no Oriente
Médio e América Central, e as dificuldades econômicas internacionais,
como a quebra do padrão-ouro e o aumento da inflação e dos preços do
petróleo.
Nem mesmo o fim da URSS alterou essa percepção, na medida em que
países como o Japão e a Alemanha reunificada passaram a ser vistos
como rivais econômicos que, a curto prazo, desafiariam os EUA com
sucesso. A conclusão lógica, enunciada por Henry Kissinger (1999) em
Diplomacia, é que a ordem bipolar da Guerra Fria daria vez a um
sistema multipolar semelhante ao do século XIX, cujos elos principais
seriam formados pelos Estados Unidos, Europa, Japão, Rússia e por
potências em ascensão, como China e Índia.
Esse sentimento de incerteza foi agravado por uma breve recessão
econômica no início da década de 90, que culminou com a derrota de
Bush para Clinton na eleição presidencial de 1992. O slogan do candidato
democrata – “É a economia, estúpido!” – ecoava a opinião majoritária
de que, uma vez encerrada a ameaça comunista, os Estados Unidos
deveriam concentrar-se em seus problemas internos e trazer de volta
para casa boa parte das tropas aquarteladas no exterior, sobretudo na
Europa.
No entanto, nada disso ocorreu ao longo dos anos 90. As teses declinistas
e multipolares mostraram-se erradas, e o que predominou foi o que
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Charles Krauthammer (1991:23-24) chamou de “momento unipolar”,
uma situação em que “o centro da ordem mundial é a superpotência
sem desafiantes, os Estados Unidos, assistidos por seus aliados
ocidentais”. Um poder medido pela capacidade de os EUA serem “um
participante decisivo em qualquer conflito, em qualquer parte do mundo,
em que escolham se envolver”. Alguns dados ajudam a compreender a
extensão desse predomínio.
Tabela 1
Gastos Militares das Grandes Potências, 1992-2001
(em US$ bilhões e percentuais do PIB)
País/Ano
EUA
1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001
374,4 354,8 334,5 315,1 298 296,5 289,7 290,5 301,7 304,1
(4,8) (4,5) (4,1) (3,8) (3,5) (3,3) (3,1) (3,0) (3,1) (3,1)
Rússia
18,5 16,4 15,8
10
9,1
9,7
7,1
8,3
9,3
10,2
(5,5) (5,3) (5,9) (4,1) (3,8) (4,2) (3,1) (3,5) (3,6) (3,6)
Japão
43,3 43,8
44
44,4 45,3 45,5 45,4 45,5 45,8 46,3
(0,9) (0,9) (1,0) (0,9) (0,9) (0,9) (1,0) (1,0) (1,0) (1,0)
China
15,3 14,2 13,5 13,9 15,3 15,5 17,8 20,7
23
26,3
(2,7) (2,1) (1,9) (1,8) (1, 8) (1,7) (1,9) (2,1) (2,1) (2,3)
Alemanha
36
32,4 30,2 29,7 29,1
28
28,2 28,7 28,1 27,6
(2,1) (1,9) (1,7) (1,7) (1,6) (1,6) (1,5) (1,6) (1,5) (1,5)
França
37,7 37,2 37,4 35,6 34,7 34,9
34
34,2 33,8 33,7
(3,4) (3,3) (3,3) (3,1) (3,0) (2,9) (2,8) (2,7) (2, 6) (2,5)
Reino Unido
42,6 41,6 40,3 37,1 37,7 35,4 35,6 35,1 36,4
36
(3,8) (3,5) (3,3) (3,0) (2,9) (2,7) (2,6) (2,5) (2,5) (2,5)
Fonte: Stockholm International Peace Research Institute <http://www.sipri.se>.
Como se pode verificar, os Estados Unidos não apenas investem muito
mais em suas Forças Armadas do que todas as outras potências juntas,
mas mantêm essa superioridade a um custo relativamente baixo em
relação ao Produto Interno Bruto – PIB. Além disso, os números
apresentados na tabela não indicam outras vantagens norte-americanas,
como uma cadeia de bases em pontos estratégicos, ao redor do mundo,
e o acesso à tecnologia mais avançada do que a de seus rivais, como os
russos e os chineses.
Do ponto de vista econômico, os EUA concentram 25% da riqueza
produzida no mundo. Ao longo da década de 90, os temores da
estagnação foram superados: a economia norte-americana cresceu 27%
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entre 1990 e 1998, contra 15% da União Européia e apenas 9% de um
Japão em recessão e às voltas com uma séria crise no Sudeste Asiático
(apud Ikenberry, 2002, introdução).
Nesse mundo unipolar, o que os Estados Unidos deveriam fazer com o
seu poderio? A busca de uma “grande estratégia” que orientasse a política
externa foi constante ao longo dos 90. Barry Posen e Andrew Ross
(2001) identificaram quatro tipos ideais: o primeiro seria o “neoisolacionismo”, em que os norte-americanos se retirariam do cenário
internacional; o segundo e o terceiro foram chamados de “engajamento
seletivo” e “segurança cooperativa”, respectivamente, e concentram-se,
cada um a seu modo, na paz entre as grandes potências e na preservação
da estabilidade mundial.
Dos quatro tipos, porém, a “grande estratégia” que constitui a maior
inovação foi a que os autores batizaram de “primazia”. Seu principal
objetivo é a manutenção do momento unipolar, impedindo – pela via
militar, se necessário – o surgimento de uma superpotência rival. Neste
cenário, os EUA não seriam primus inter pares, mas primus solus.
Portanto, “a estratégia carrega a implicação lógica que os Estados Unidos
deveriam estar dispostos a conduzir uma guerra preventiva.” (idem:43)
A noção de guerra preventiva havia sido proposta por Paul Wolfowitz,
subsecretário de Defesa, e por seu assessor Lewis Libby, em 1992, no
governo de Bush pai, quando se tornou claro que Saddam Hussein não
seria deposto pelos iraquianos apesar da derrota no Kuwait. O conceito
foi elaborado em um documento secreto, o Guia de Planejamento do
Pentágono, que desenvolve o tema central da primazia:
“Nosso primeiro objetivo é evitar a reemergência de um novo rival,
tanto no território da antiga União Soviética quanto em qualquer
outro lugar [...] e requer que nos esforcemos para impedir qualquer
poder hostil de dominar uma região cujos recursos seriam, sob controle
consolidado, suficientes para gerar poder global” (apud O Globo, 20/
4/2003).
Todavia, conflitos dentro da administração levaram ao vazamento do
texto para a imprensa, que o atacou duramente. Como resultado, a
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Casa Branca afirmou por via do secretário de Defesa, Dick Cheney, que
a guerra preventiva não se tratava de política oficial, mas apenas da
opinião de um membro subalterno da administração.
De fato, a maioria da opinião pública defendia uma aplicação mais
moderada do poder norte-americano. Para Samuel Huntington, a
primazia é a garantia de realizar os objetivos do Estado sem precisar
recorrer à guerra. Mais que isso, seus benefícios seriam globais: “A
permanência da primazia internacional dos Estados Unidos é central
para o bem-estar e segurança dos norte-americanos e para o futuro da
liberdade, democracia, economias abertas e ordem internacional no
mundo” (1993:83).
A associação entre expansão do poder dos EUA e promoção de valores
universais é uma constante no discurso político norte-americano desde
o nascimento da nação no século XVIII e ajudou a justificar a marcha
sobre índios, espanhóis, mexicanos e outros povos no caminho da jovem
república. No pós-Guerra Fria, argumentos como os de Huntington
foram constantes tanto entre republicanos (Condoleezza Rice, Robert
Kagan) quanto entre democratas (Lawrence Summers, Madaleine
Albright).
Nessas visões, Washington atuaria como “xerife do equilíbrio”, “grande
facilitador”, “intermediário honesto”, “nação indispensável”, ou qualquer
que seja o termo utilizado, para garantir bens públicos como ordem e
estabilidade do sistema político (p. ex., mediando acordos de paz entre
Israel e os palestinos) e econômico (p. ex., empréstimos a países em
crise de balanço de pagamento, como México, Rússia ou Brasil). A
hegemonia norte-americana seria benigna para o resto do mundo,
portanto, não seria do interesse de ninguém vê-la desafiada pela ascensão
de um rival que só traria o caos inerente à disputa pelo poder global.
Desse modo, a primazia difere radicalmente da estratégia tradicional
do equilíbrio de poder, que via na disputa entre várias potências de
influências semelhantes a garantia da paz. A primazia é a teoria da
superpotência que derrotou seus rivais e busca legitimar seu predomínio,
bem como explicar por que ele se mantém sem que surja uma coalizão
de inimigos para enfrentá-lo.
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A primazia também envolve a atribuição de uma “supersoberania” aos
Estados Unidos, que deveriam liderar a comunidade internacional para
promover intervenções em países que desrespeitassem determinados
critérios legais:
“Quando um governo se prova incapaz ou sem vontade de garantir a
segurança de seus cidadãos [...] então, cabe à comunidade internacional
agir, seja diplomaticamente (utilizando persuasão, sanções ou ajuda)
ou através da força, sob a bandeira da intervenção humanitária”
(Haas, 1999:40).
Em seu estudo sobre os modelos de “grande estratégia”, Posen e Ross
(2001) afirmam que a política externa dos governos norte-americanos
nos anos 90 conteve elementos de todas estratégias, inclusive uma dose
substancial da primazia. Isto se explica, na análise de Cesar Guimarães
(2002), pela “afinidade eletiva” entre unipolaridade e primazia – não é
possível imaginar esta sem aquela. Embora suas versões mais militaristas
pertençam à linha-dura do Partido Republicano, a estratégia fez parte
da ação dos democratas:
“Clinton valeu-se da linguagem (e da ação) orientada pela primazia
quando lhe foi necessário: os aliados a ouviram, a periferia a sofreu,
com ou sem multilateralismo. Também é fato que soube temperá-la
com as artes do soft power – angariando consensos, particularmente
quando a ‘segurança cooperativa’ (e outras formas de cooperativos
empreendimentos) foi invocada” (idem:60).
A Fragmentação das Ameaças1
O fim da União Soviética deixou os Estados Unidos sem rivais. Mas
não sem inimigos. No mundo do pós-Guerra Fria, as ameaças tornaramse mais difusas e mais difíceis de controlar. As forças de fragmentação
destacam-se na cartografia geopolítica da nova ordem mundial esboçada
pelo historiador John Lewis Gaddis. Ele distingue, em primeiro lugar,
as forças de integração – a economia global, a revolução nas
comunicações e a segurança cooperativa (como na Guerra do Golfo).
É, em suma, a extensão do One World proposto por Roosevelt ao fim
da Segunda Guerra Mundial.
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A essa tendência se contrapõem as forças de fragmentação, como o
nacionalismo – e sua expressão econômica, o protecionismo – e o
fundamentalismo religioso. Gaddis prossegue afirmando que a
fragmentação também está presente nos EUA, na deterioração das
condições sociais. O pior, diz o historiador, é que a integração contém
em si o germe da fragmentação. A globalização econômica pode agravar
os problemas ecológicos. A integração de países como o Iraque ao
mercado mundial também lhes fornece armas modernas para, por
exemplo, invadir o Kuwait. A conclusão é pessimista:
“Logo, o fim da Guerra Fria não traz o fim das ameaças, mas antes
sua difusão [...]. A nova competição entre as forças de integração e
fragmentação nos apresenta escolhas difíceis, precisamente porque
não é de modo algum claro, como era durante a Guerra Fria, qual
tendência devemos querer que prevaleça” (Gaddis, 1991:113).
Samuel Huntington deu ao conceito abstrato de fragmentação a
roupagem culturalista de um “choque de civilizações”, título de seu
famoso livro. O pressuposto é que o mundo vivencia o surgimento de
uma ordem internacional de múltiplos níveis, que contém Estadosnação, cidades-Estado e entidades transnacionais como empresas, ONGs
e religiões. Os conflitos internacionais passariam a ser motivados,
sobretudo, por diferenças culturais. Os Bálcãs, onde o confronto
ideológico da Guerra Fria foi substituído pelo massacre étnico, seriam
um exemplo dos riscos que o mundo enfrenta.
Huntington compartilha com Gaddis a preocupação com o
fundamentalismo religioso, em especial o islâmico, chegando a afirmar
que o Islã tem “fronteiras sangrentas”, sendo propenso à violência. O
nacionalismo também é visto como ameaça, inclusive o nacionalismo
dos EUA, pois o autor ressalta que valores norte-americanos, como
individualismo e direitos humanos, não são universais, mas
profundamente subversivos e perturbadores para outras culturas.
Assim como Gaddis, Huntington manifesta receio quanto à fragmentação
interna dos Estados Unidos, por meio do crime, das drogas e do suposto
abandono dos valores ocidentais em prol do multiculturalismo e da
imigração de latinos, africanos e asiáticos, que o autor encara inclusive
como fonte potencial de espiões para países rivais dos EUA.
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O sentimento de fragmentação e ameaças difusas não ficou restrito ao
debate universitário, encontrando eco nos documentos oficiais. A
“doutrina Clinton” (Casa Branca, 1998) alarga a noção de riscos à
segurança nacional para incluir proliferação de armas de destruição em
massa, terrorismo, crime organizado, pirataria na internet e problemas
ecológicos.
Tanto a doutrina Clinton quanto os intelectuais citados acima,
freqüentemente, associam a fragmentação das ameaças a turbulências
na periferia mundial, fornecendo assim uma razão para intervenções
militares, como as praticadas na década de 90 no Haiti, na Somália e
nos Bálcãs.
Mas a principal força de fragmentação é representada pelos países que
os EUA chamam de “Estados bandidos” (rogue States) ou weapon States,
definidos pela doutrina Clinton como regimes autoritários, de
comportamento agressivo, desrespeitosos do direito internacional, que
auxiliam terroristas e aspiram à posse de armas de destruição em massa.
A lista varia, embora sempre inclua Iraque e Coréia do Norte,
estendendo-se ocasionalmente ao Irã, Cuba e, em nome dos velhos
tempos, Líbia.
Para lidar com esses países, são propostas sanções econômicas e regimes
que os impeçam de adquirir armamento, bem como o controle das
exportações norte-americanas, visando impor barreiras para a obtenção
de tecnologia avançada. Tais medidas podem ser implantadas por
organizações multilaterais, como a Organização das Nações Unidas —
ONU, ou por acordos como o Tratado de Não-Proliferação de Armas
Nucleares. No limite, o modo de tratar com os rogue States é a guerra,
como exemplificado pela Guerra do Golfo e, de certo modo, pelo
bombardeio à Sérvia em 1999.
Os Neoconservadores e a Crítica à Contenção e à Dissuasão
Durante a Guerra Fria, um dos principais pilares da política externa
norte-americana foi a contenção da superpotência rival, a União
Soviética, seja por meios econômicos, como o Plano Marshall, seja por
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meios militares, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte –
OTAN. A contenção mostrou-se bem-sucedida, resultando no colapso
soviético. Logo ganhou força uma estratégia para substituí-la, a primazia.
E com ela uma crítica intensa aos pressupostos da dissuasão nuclear.
A contenção obteve um grande consenso entre realistas e idealistas,
mas nunca foi unânime. Para intelectuais como Hans Morgenthau, ela
era por demais abstrata e indefinida, confundindo o interesse nacional
russo com a retórica ideológica do comunismo. O próprio pai da
estratégia, o diplomata George Kennan, lamentou que ela se tivesse
militarizado em excesso, em vez de investir em ações políticas e
econômicas. Também houve aqueles que, como o secretário de Estado
de Eisenhower, John Foster Dulles, a atacavam como passiva, defendendo
o rollback – a “descomunização” de territórios sob influência soviética,
o que na prática foi sepultado pelo resultado da Guerra da Coréia e
pela inação do Ocidente diante do fracasso da revolução húngara de
1956.
Com a derrota norte-americana no Vietnã, a corrente de intelectuais
neoconservadores formulou sua própria crítica da contenção, em especial
no aspecto da dissuasão nuclear, e aumentou sua influência nos anos 80
e 90, vindo a se tornar parte importante do debate sobre política externa
no governo de Bush filho, por intermédio de homens como Paul
Wolfowitz, Richard Perle, William Kristol e Robert Kagan.
Os neoconservadores defendiam o retorno aos valores ocidentais
clássicos, que eram questionados pelos movimentos sociais dos anos
60 e 70. Os EUA deveriam desempenhar um papel de destaque no
cenário internacional, promovendo a democracia e os direitos humanos
em sociedades onde eles não existissem, como nos países comunistas e
muçulmanos.
Como Foster Dulles, eles consideravam a contenção passiva. O
matemático e estrategista Albert Wohlstetter destacou-se por atacar a
doutrina da destruição mútua assegurada (MAD, em inglês), pela qual
a posse de arsenais nucleares por parte das superpotências garantiria a
paz, pois nenhuma enfrentaria a outra tendo certeza de que seria
destruída:
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“Para Wohlstetter e seus alunos, a MAD era ao mesmo tempo imoral
– pela destruição imposta aos civis – e ineficaz, pela neutralização
mútua dos arsenais. Nenhum estadista dotado de razão decidiria pelo
‘suicídio recíproco’. Wohlstetter propunha, ao contrário, uma
‘dissuasão gradativa’, ou seja, a aceitação de guerras limitadas,
eventualmente utilizando armas nucleares táticas, com armas
‘inteligentes’ de alta precisão, capazes de atacar os equipamentos
militares do inimigo” (Folha de S. Paulo, 4/5/2003).
O matemático formulou suas críticas durante a détente entre EUA e
URSS, quando as duas superpotências viveram um momento de relações
calmas e assinaram vários acordos de desarmamento e controle de
material nuclear. Os neoconservadores criticaram essas decisões. Alguns
deles serviram no chamado “time B” de analistas da Central Intelligence
Agency – CIA, durante o governo Ford. O então diretor da agência,
Bush pai, nomeou-os para ter uma segunda opinião sobre as avaliações
do serviço de inteligência a respeito da URSS, julgadas muito brandas:
“Em retrospecto, muito do relatório do time B era uma hipérbole do
pior cenário possível; creditou à União Soviética o desenvolvimento de
superarmas que ela nunca teve e ignorou os problemas de uma decadente
economia soviética” (Keller, 2002).
Muitos dos neoconservadores haviam sido militantes de esquerda nos
anos 60 e alguns fizeram carreira também no Partido Democrata, em
especial como assessores do senador Henry “Scoop” Jackson, um
opositor da détente e dos acordos de desarmamento. No entanto, é
com a eleição de Ronald Reagan, e com sua política de confrontação
ideológica com a URSS, que o grupo obtém uma vitória importante: o
projeto Iniciativa de Defesa Estratégica ou Guerra nas Estrelas. Embora
nunca tenha saído do papel, ele representava o triunfo da crítica à
dissuasão nuclear, na medida em que propunha criar um sistema que
neutralizaria o arsenal atômico soviético. O tema seria retomado no
debate sobre o escudo antimísseis, nos anos 90.
No governo Bush pai, os neoconservadores ocuparam cargos de segundo
escalão e tiveram resultados ambíguos. Fracassaram na tentativa de
depor Saddam Hussein e instalar um regime democrático no Iraque – a
Casa Branca preferiu limitar-se a expulsar o ditador do Kuwait e contê84
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lo por meio de embargos econômicos, regimes de inspeção de armas e
zonas de exclusão aérea.
No entanto, os neoconservadores foram mais bem-sucedidos na
formulação da doutrina da primazia. Embora atacados no início, na
prática várias de suas idéias foram implantadas, convertendo-se em
projetos consensuais, tanto entre republicanos quanto entre democratas.
A estratégia deixou de ser vista como militarista e ganhou
respeitabilidade, tornando-se nome de think-tanks como Projeto para o
Novo Século Americano.
O tema principal dos neoconservadores continuou a ser o Iraque. Ao
longo do governo Clinton, ocorreram várias crises com Saddam Hussein
que envolviam conflitos das autoridades de Bagdá com os inspetores da
ONU, que acabaram expulsos do país. Foi então que o governo norteamericano mencionou, pela primeira vez, a mudança de regime no
Iraque como um objetivo de política externa. Os neoconservadores
expressaram sua posição em uma carta aberta ao presidente Clinton,
destacando a questão das armas de destruição em massa:
“A posição do Iraque é inaceitável. Apesar de o Iraque não ser o único
país a possuir essas armas, somente ele as utilizou – não apenas contra
seus inimigos, mas contra seu próprio povo. Precisamos assumir que
Saddam está preparado para usá-las novamente. Isso coloca um risco
para nossos amigos, nossos aliados e para nossa nação.
Está claro que esse perigo não pode ser eliminado enquanto nosso
objetivo for simplesmente ‘contenção’, e os meios de alcançá-la
estiverem limitados a sanções e exortações. Como a crise das semanas
recentes demonstrou, essas políticas estáticas estão condenadas a
erodir, abrindo o caminho para um eventual retorno de Saddam a
uma posição de poder e influência na região. Somente um programa
determinado a mudar o regime em Bagdá irá levar a crise iraquiana a
uma conclusão satisfatória” (Solarz et alii, 1998).
A carta foi assinada por dezenas de intelectuais e políticos:
neoconservadores de prestígio, como Perle, Kagan, Kristol; acadêmicos
como Bernard Lewis; políticos como Donald Rumsfeld; e vários exmembros do alto escalão do Pentágono e do Departamento de Estado.
Além de tratar de temas caros aos neoconservadores – como a crítica à
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contenção e a pregação da democracia no Iraque, pela instalação do
grupo dissidente Congresso Nacional Iraquiano –, o documento
desenvolve as noções de ameaça fragmentada associada aos “Estados
bandidos” e de armas de destruição em massa, comuns aos principais
grupos políticos norte-americanos.
Os neoconservadores eram críticos da contenção durante a Guerra Fria.
Continuaram a condenar essa estratégia como modo de atuar contra os
“Estados bandidos”. Já no início dos 90, Paul Wolfowitz (1992)
propunha como solução o desenvolvimento de um escudo antimísseis,
que pudesse proteger os EUA tanto de ataques convencionais quanto de
uma ogiva contendo carga nuclear, química ou biológica, talvez em um
atentado terrorista.
O escudo antimísseis foi defendido por uma comissão bipartidária do
Congresso, presidida por Donald Rumsfeld. O presidente Clinton aceitou
as recomendações com cautela, procurando desenvolver um projeto
compatível com os tratados de desarmamento assinados com a Rússia.
Como isso não foi possível, o escudo foi abandonado. Mas não sem
antes conquistar o apoio de ninguém menos que Henry Kissinger. O
homem que, como um dos pais da détente com os soviéticos, havia
sido o arqui-rival dos neoconservadores via-se agora defendendo algumas
das mesmas posições. Ele escreveu que o MAD faz com que “a política
de defesa se volte contra si mesma; ao buscar garantir a total
vulnerabilidade da população, a doutrina de defesa se torna antidefensiva”
(2001:65).
Se os EUA se tornassem invulneráveis a um ataque nuclear, isso
forneceria um poderoso incentivo para que usassem seu próprio arsenal
atômico, pois não teriam que temer uma retaliação.
Em resumo, uma vez superadas as teses declinistas, diversas correntes
do pensamento estratégico norte-americano passaram a ver o mundo
pós-Guerra Fria como unipolar, em que a tarefa dos EUA seria preservar
a atual ordem internacional, impedindo o surgimento de um rival, se
necessário por via de uma guerra preventiva.
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Derrotado o comunismo, as ameaças fragmentaram-se em “Estados
bandidos” e problemas transnacionais, como terrorismo,
fundamentalismo religioso, crime organizado e degradação ambiental.
Nesse contexto, cresceram as críticas à contenção e à dissuasão nuclear,
formuladas em princípio pelos neoconservadores, conquistando aos
poucos adeptos de diversos campos ideológicos. O modo de lidar com
Estados hostis seria por meio da substituição de seus regimes e a
implantação de democracias baseadas nos valores ocidentais. Para evitar
um ataque desesperado com armas de destruição em massa, os EUA
precisavam construir um escudo antimísseis, mesmo correndo o risco
de romper os acordos de desarmamento com a Rússia.
Em 11 de setembro de 2001, quando Bin Laden atingiu as torres do
World Trade Center e o Pentágono, todos esses elementos afloraram
com nova força e constituíram a base da doutrina de segurança do
governo Bush.
(Recebido para publicação em outubro de 2003)
Nota
1. Reproduzo aqui parte de meu artigo “Em Busca do Inimigo: Os EUA
numa Era de Ameaças Difusas” (Santoro, 2003).
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W. Norton.
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Resenha do livro The Broken
Covenant: American Civil Religion
in Time of Trial, de Robert N.
Bellah, 1975
PEDRO HERMÍLIO VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO*
Resumo
Esta resenha mostra como Robert Bellah, ao buscar compreender os
fundamentos da construção da nação norte-americana, recorre a uma
abordagem cultural, cuja análise mitológica privilegia a moral e a religião
como categorias epistemológicas. Tal análise mitológica não se detém apenas
na descrição dos símbolos e imagens bíblicas que operaram no imaginário dos
indivíduos participantes da construção dos Estados Unidos. Bellah também
compreende o mito como uma fonte de significados, isto é, como uma potência
capaz de revelar, renovadamente, o telos dos papéis dos indivíduos e da
sociedade norte-americana desde a experiência de colonização até os dias de
hoje.
Palavras-chave: religião civil; mito; nação; secularização
* Doutorando em ciência política do IUPERJ. E-mail: [email protected].
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R
obert N. Bellah na introdução à segunda edição (1992) de seu The
Broken Covenant: American Civil Religion in Time of Trial, publicado
pela primeira vez em 1975, fornece ao leitor uma pista do significado
de seu controvertido conceito de religião civil. Durante conferências
proferidas pelo autor em universidades do Japão sobre a religião na
vida pública norte-americana, como exigência de bolsa concedida pela
Universidade de Harvard, percebera que japoneses se confundiam a
respeito da separação entre Igreja e Estado. Tal fato não foi trivial, já
que a confusão permitiu ao autor descortinar seguinte questão: a praxis
da vida pública norte-americana não coincidia com o conceito de
secularização que adotara, isto é, da separação entre Igreja e Estado.
Ao contrário do que proferira nas conferências, concluiu que a “muralha
da separação” – imagem utilizada nos discursos de Thomas Jefferson
para representar o divórcio entre Igreja e Estado –, nos Estados Unidos,
não era inescrutável, e que, portanto, a religião desempenhava um
importante papel na vida pública norte-americana.
A profícua confusão japonesa contribuiu para Bellah publicar, em 1967,
“Civil Religion in America”. O artigo ateou fogo na discussão sobre a
autocompreensão da identidade nacional norte-americana, sobretudo
em virtude de ter o autor introduzido o conceito supostamente novo de
religião civil, a fim de compreender como as imagens bíblicas não só
moldaram as interpretações, mas também orientaram as ações norteamericanas ao longo de sua experiência política. Isto se torna importante
na medida em que a segunda edição de The Broken Covenant contém
um posfácio redigido em 1978, em que o próprio autor diz ter feito um
“esforço desesperado para defender o termo religião civil”.
O conceito de religião civil corresponde ao argumento principal do
livro: como se explica o fato de nos rincões da América do Norte – no
“Novo Mundo” – ter sido criada uma comunidade nacional apoiada
em laços de solidariedade entre as colônias que, além de fazer uma
revolução e criar uma nação, funda uma República ancorada nos valores
da liberdade e da igualdade? Descrente na ciência, nos modelos
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econômicos, nos sistemas políticos técnico-racionais e no utilitarismo
como formas de explicação e construção da sociedade, Bellah recorre a
uma abordagem cultural, optando por responder à sua questão por via
de uma análise mitológica, que privilegia a moral e a religião como
categorias epistemológicas.
Partir de uma análise mitológica não significa apenas descrever os
símbolos e imagens bíblicas que operaram no imaginário dos indivíduos
que participaram da construção dos Estados Unidos, mas também encarar
o mito como uma fonte de significados, isto é, como uma potência
capaz de revelar, renovadamente, o telos dos papéis dos indivíduos e da
sociedade norte-americana da colonização aos dias de hoje. O trabalho
de Bellah, portanto, não deixa de revelar um traço normativo, pois,
além de buscar os fundamentos morais e religiosos na formação da
nação norte-americana, seu método reconstrutivo tem como proposta
reafirmar e reatualizar valores morais e religiosos que não só contêm
os apetites do liberalismo e do auto-interesse, mas têm o potencial de
juntar as peças rompidas do pacto republicano, de modo a atingir o
plano interno da consciência dos indivíduos. O resgate dos mitos da
tradição norte-americana faria com que os indivíduos internalizassem
os princípios e valores éticos de uma República moderna formada por
cidadãos participativos. Assim, poder-se-ia refazer o pacto republicano
por meio da adesão interna dos indivíduos motivada por valores morais
e religiosos.
O conceito de religião civil permeia todo o livro e é uma importante
chave para a compreensão do argumento principal mencionado acima.
Todavia, antes de esmiuçá-lo, deve-se salientar que a introdução do
termo religião civil corresponde à pretensão do autor de mostrar que a
explicação da criação da nação, da colonização, da revolução e da
fundação e manutenção do corpo político norte-americano está ancorada
na análise da moral e da religião. Bellah pretende focalizar, sobretudo,
a religião como um elemento que não foi varrido para fora da vida
política, mas como potência que explica, orienta e motiva a conduta
humana mesmo no âmbito das ações políticas. Mais do que isso, para
o autor, sem se fundamentar nos valores religiosos provenientes da
tradição, o Estado neutro, constituído pela ordem racional-legal, não
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existe, o pacto republicano configurado em uma democracia
constitucional não sai do papel. O pacto rompido corresponde àquele
que é apenas externo, isto é, tem somente caráter formal. Não se sustenta
sem um pacto interno, isto é, sem a adesão interna dos indivíduos
provida pela dimensão religiosa, que neles opera a crença em princípios
e valores transcendentes, sem os quais não existiriam as instituições
políticas. De acordo com Bellah, a idéia de República pressupõe a
idéia de liberdade; porém, quando o pacto é meramente externo, tal
liberdade é apenas negativa e só faz sentido para o liberalismo político.
De forma quase platônica, a República é fundada no princípio
transcendente do bem, portanto, presume a liberdade positiva, calcada
na idéia de uma participação efetiva do indivíduo na esfera pública.
Daí o autor identificar liberdade positiva com liberdade pública,
princípio sobre o qual se edifica a democracia constitucional.
The Broken Covenant: American Civil Religion in Time of Trial consiste
em uma investigação bem documentada que informa sobre os símbolos
e imagens que resultariam nos modelos arquetípicos da identidade
nacional norte-americana. Entre tais documentos se encontram passagens
bíblicas do Velho e do Novo Testamento e algumas de suas interpretações,
discursos de líderes religiosos e políticos que vão do século XVII ao
XX. Esse material permite ao autor pensar o mito de origem da América
como uma estrutura complexa, repleta de tensões internas. Tal mito
proveria o imaginário de toda sorte de europeus, entre outros indivíduos
que se lançaram rumo ao “Novo Mundo”, como os puritanos da Nova
Inglaterra e todos os heróis e desconhecidos que participaram da
revolução e fundação de um corpo político, como, por exemplo, os
notáveis foundingfathers. Bellah acredita que a estratégia de partir do
mito de origem revela a forma pela qual os personagens da trama norteamericana se autocompreendiam. O autor adverte que o entendimento
do mito de origem norte-americano deve ser enquadrado na história do
país, com especial atenção às ações e decisões relacionadas à Declaração
de Independência e instituição de um novo corpo político, isto é, a
Constituição dos Estados Unidos. O referido mito seria portador da
idéia de início e principium. Toda ação ou decisão reatualizaria um
começo, algo novo, extraordinário, singular. Todavia, citando Hannah
Arendt, Bellah indica que a idéia do iniciar, do começar do “nada”,
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seria uma arbitrariedade se não fosse resguardada pela crença de que
todo iniciar traz incluído em si um princípio; logo, a idéia de iniciar
seria coexistente à idéia de principium. O aspecto central do mito de
origem norte-americano implicaria a consciência do significado da
criação, o que conferiria consciência da responsabilidade de cada
indivíduo ou da sociedade como um todo no ato de suas decisões. A
referida noção de mito utilizada pelo autor tem a função de ser a base
do conceito de religião civil, pois o mito não descreve a realidade e
tampouco tem compromisso com a “verdade”; ao contrário, o mito
teria a finalidade de transfigurar a realidade de modo a fornecer um
telos aos indivíduos ou sociedades, em síntese, ser uma fonte de
significados capaz de converter o indivíduo em um portador de sentido.
A complexa estrutura do mito transformaria a realidade e revelaria
tensões internas que poderiam ser observadas nas formas assumidas
por ele, sem, no entanto, perder de vista seu traço central já mencionado.
Portanto, da perspectiva dos descobridores europeus, a América
representaria “o novo”, muito semelhante à noção do iniciar. A idéia
sagrada do novo seria transladada para a de um novo mundo. Conforme
Bellah, de acordo com Locke, no início do mundo somente havia a
América. Influenciadas pelo pensamento de Locke, as representações
dos europeus revelavam uma América primitiva, incólume do mundo e
dos homens desde os seus primórdios.
A visão do novo, portanto, não era apenas aquela dos descobridores e
exploradores europeus, mas também aquela recebida pelas mãos de
Deus. Posteriormente, o autor mostra como a imagem da América,
ancorada nas representações do estado de natureza de Hobbes e Locke,
aparecia, respectivamente, ora como selvagem, bruta, precária, ora como
um local de paz, assistência mútua e preservação. O imaginário da
América, proveniente da reforma protestante, também consistia na
representação do novo, pois a própria Reforma trazia em si a noção de
algo novo e a partir dela se projetaria na América seus ideais, como o
presságio do nascimento de um novo céu e de uma nova terra. Aliás,
em seu livro, Bellah aduz um documento emblemático do início da
história americana. Trata-se de um discurso religioso pregado em um
barco em 1630. Antes de desembarcar no “Novo Mundo”, John
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Whinthrop fez o sermão “Um Modelo de Caridade Cristã”, inspirado
na fórmula do Deuteronômio 30, estabelecendo um novo pacto entre
cada um dos puritanos ingleses da embarcação e Deus. O pacto pregado
no sermão fazia com que cada um assumisse obrigações entre si e todos
com Deus. De acordo com o sermão de Whinthrop, o pacto firmado
entre os colonos era fundado, sobretudo, em laços de solidariedade,
enquanto aquele firmado entre os homens e Deus seguia a fórmula do
Deuteronômio 30, que previa maldições e bênçãos. É interessante
observar que a América, no acordo firmado no barco entre os peregrinos
e Deus, era representada como anúncio da terra prometida, isto é,
como um prelúdio de “Nova Israel” ou de Canaã. Na interpretação de
Bellah, a América vista como Nova Israel simbolizaria para os puritanos
a possibilidade de instaurar uma comunidade política neste mundo.
A partir do sermão de 1630, seria possível vislumbrar princípios que
prenunciam a fundação de uma República. O sermão de Whinthrop
corresponde diretamente à idéia de religião civil, já que o primeiro
líder de Massachusetts, diferentemente de Santo Agostinho, não separava
a Civitas dei da Civitas hominis, isto é, a Igreja do Estado; ao contrário,
ambas as instituições estavam intimamente ligadas, de modo que a
esfera espiritual transferia princípios para a esfera secular. Refutando a
imagem da “muralha da separação” presente em algumas passagens dos
discursos de Jefferson citadas no livro, Bellah quer mostrar que sem o
conceito de religião civil não é possível compreender o traço peculiar
da experiência norte-americana, que não separa a religião da política.
Talvez este seja um dos pontos mais importantes para a compreensão
das idéias do autor, já que, à exceção de alguns poucos autores, a exemplo
de Carl Schmitt e Thomas Hobbes, se tornou lugar-comum ou quase
um dogma afirmar que a secularização é fenômeno típico da sociedade
ocidental moderna definido pela separação entre Igreja e Estado.
Do significado do mito de origem norte-americano que representa os
americanos como um povo eleito e a América como a terra prometida,
Bellah extrai muitas conclusões que revelam suas tensões internas. Os
índios e, posteriormente, os negros não faziam parte da formação da
nação norte-americana, e tampouco estavam incluídos no imaginário
bíblico da consciência individual dos peregrinos puritanos que forneceria
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princípios para a fundação da República. Não havia contrato entre os
índios, os negros e Deus. Como índios e negros não eram dotados de
direitos intrínsecos à natureza humana, o autor verifica que a figura do
puritano anglo-saxão era considerada como um modelo para os “outros”
da nação, pois monopolizava o uso das figuras e imagens bíblicas que
expressavam o significado da história norte-americana. Esse monopólio
teria justificado a prática de genocídio, a exploração de grupos étnicos
e até mesmo a apologia ao exercício de empreitadas imperialistas. A
despeito disso, o autor mostra a importante contribuição de intelectuais
dos séculos XIX e XX, como Henry James, e de grupos religiosos ao
longo da história, no sentido de retomar as culturas reprimidas dos
grupos étnicos com o intuito de incluí-los na idéia de uma comunidade
nacional. Vale esclarecer que o autor destaca o importante papel da
religião na luta pela emancipação dos negros, cujo zênite seria, após a
Guerra Civil, a adoção das emendas 13, 14 e 15 à Constituição, que
terminavam formalmente com a escravidão.
Outro ponto que poderia ser destacado no livro de Bellah se relaciona
com as idéias socialistas. Por que teriam tido influência tão restrita nos
Estados Unidos? Conforme o autor, o ateísmo e a burocracia centralizada
do Estado seriam obstáculos à aceitação dos ideais socialistas pelos
norte-americanos. E conclui que a inserção das mesmas só obteve algum
êxito na cultura norte-americana na medida em que foram incorporadas
por discursos religiosos. Para Bellah, o imaginário bíblico do povo
norte-americano jamais poderia renunciar à idéia de Deus e tampouco
à liberdade do indivíduo perante o poder estatal. A despeito disso, o
autor chama a atenção para as grandes corporações (empresas) que
criam empecilhos à liberdade. Se o Estado não inviabilizava o surgimento
de pequenas propriedades, as corporações impediam seu êxito e
expansão. Bellah critica o modelo econômico norte-americano que, ao
favorecer as grandes empresas privadas e corporações, contrapõe-se à
liberdade e virtude republicanas, impedindo uma democracia republicana
participativa.
O caráter normativo do livro de Bellah revela a necessidade de o norteamericano reconciliar-se com sua tradição, recuperando seus mitos com
seus símbolos e valores. O resgate da tradição significa a possibilidade
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de um estimulante renascimento ou reatualização dos mitos norteamericanos, o que poderia operar nos indivíduos a internalização de
certos princípios e valores necessários à idéia de uma liberdade positiva,
indispensável a uma democracia republicana participativa. A
reconciliação com a tradição seria a única forma de se estabelecer um
pacto interno e não apenas externo. Bellah sustenta que apesar de a
escravidão ter sido abolida e o voto da mulher garantido, se a tais
conquistas não houver uma adesão interna dos indivíduos, não haverá
uma participação efetiva dos mesmos na sua implementação. O pacto
externo necessita da adesão dos indivíduos. Por fim, poder-se-ia dizer
que Bellah atribui significado excessivo ao resgate da tradição por
acreditar que o indivíduo pode reconciliar-se com valores e princípios
que estariam em um plano transcendente aos homens. Bellah parece
esquecer-se do caráter arbitrário do agir no mundo.
(Recebido para publicação em novembro de 2003)
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Carl Schmitt,
Direito e Juízo∗
ROGERIO DULTRA
DOS
**
S ANTOS
Resumo
O presente trabalho objetiva identificar os elementos de crítica aos
fundamentos da decisão judicial em Direito e Juízo: Uma Investigação sobre o
Problema da Prática Jurídica, de Carl Schmitt (1912). A partir do cotejo com
sua obra do período da República de Weimar (1919-1933), tentar-se-á
perceber como o conceito maduro de decisionismo já se encontra latente em
sua análise sobre o fundamento normativo do conteúdo da decisão judicial e
de que forma esse decisionismo o faz romper com a oposição neokantiana
entre ser e dever ser, característica das abordagens correntes da época, em
especial da do jurista austríaco Hans Kelsen.
Palavras-chave: Carl Schmitt; decisionismo; sentença
* Este texto é um estudo preparatório que está sendo desenvolvido em
minha tese de Doutorado, realizada sob a orientação do prof. José Eisenberg.
** Bacharel em direito pela Universidade Católica de Salvador – UCSal;
mestre em teoria e filosofia do direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC; doutorando em ciência política no IUPERJ . Professor da
Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Agradeço o acesso à bibliografia
de Schmitt em alemão a Bernardo Ferreira da Silva.
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Introdução
Carl Schmitt (1888-1985) é um autor que renovou a crítica aos
fundamentos jurídicos do liberalismo a ponto de não se poder fazer
teoria jurídica sem que conceitos redefinidos por ele, como legalidade,
legitimidade, teoria da Constituição, decisionismo, estado de exceção,
o político, soberania, ditadura comissarial etc., sejam levados em conta.
Essa crítica ao direito foi especialmente original e profícua entre os
anos da República de Weimar (1919-1933), quando o autor ainda não
havia aderido temporariamente ao regime nazista. O programa teórico
de Schmitt define, em geral, até que ponto se pode prescindir da
legitimidade vinculada a práticas que respeitem integral e efetivamente
os fundamentos do próprio discurso e modelo político do liberalismo.
Não se deve, porém, perceber o esforço teórico de Schmitt como uma
tentativa de facilitar a destruição do liberalismo no período entreguerras,
mas como um esforço de identificar as fraquezas do regime democrático
de Weimar e clamar pela atividade política concreta capaz de sedimentar
o Estado democrático (ou o Estado social, em sua visão particular),
ameaçado pela ideologia e pelas instituições liberais (Galli, 2000:1.602).
O antiliberalismo e o antiformalismo jurídico de Schmitt – características
gerais de sua obra, de caráter conflitivo e natureza polêmica – não
aparecem exclusivamente por conta dos desafios desse período histórico
específico. Na verdade, uma extensa tradição católica reacionária pode
ser identificada como fonte intelectual de suas idéias (como Hamann,
De Maistre, De Bonald, Cortés, entre outros), e uma quantidade
representativa de intelectuais contemporâneos estabeleceram-se, de
formas diversas, como críticos ou descrentes do liberalismo (como
Mannheim, Smend, Tönnies e Thoma). Dessa forma, o estudo da obra
de Schmitt envolve questões que, se dialogam com seu contexto, não se
limitam exclusivamente a ele. Deve-se ressaltar, entretanto, que a direção
específica da ordem social que Schmitt imagina e configura nos anos
de Weimar é a de uma condução propriamente normativa da vida social,
não recaindo em uma percepção irracionalista ou naturalista, ou mesmo
identificando exclusivamente a violência ou as relações de força como
seus fundamentos1 .
100
Cadernos de Sociologia e Política
Essa chave para a interpretação de Schmitt é passível de reconhecimento
em todos seus escritos da fase anteriormente aludida e remonta, inclusive,
a momentos iniciais de seu pensamento. Esse é o caso da legitimidade
das decisões do Poder Judiciário. O presente trabalho tem como objetivo
identificar os elementos de sua crítica aos fundamentos da decisão judicial
no seu primeiro livro, Direito e Juízo: Uma Investigação sobre o
Problema da Prática Jurídica (1912), após sua tese de doutorado.
A partir de uma comparação com sua obra weimariana, tentar-se-á
mostrar como o conceito maduro de decisionismo – de base
existencialista – já se encontra latente em sua análise sobre a origem
normativa do conteúdo da decisão judicial, e de que forma esse
decisionismo o faz romper com a oposição neokantiana entre ser e
dever ser, característica das abordagens correntes na época, em especial
a do jurista austríaco Hans Kelsen, que um ano antes havia publicado
“Problemas Fundamentais da Doutrina do Direito Público” (1911), no
qual apontava a idéia de proposição jurídica – um juízo hipotético
realizado pela ciência jurídica – como caminho para classificar de forma
exclusivamente jurídico-normativa os atos executivos do Estado,
identificando-os com o próprio ordenamento jurídico.
Decisionismo, Direito e Política
É importante ressaltar que o decisionismo, em Schmitt, tem uma
dimensão mais ampla, caracterizando-se como uma forma de interpretar
e pensar o fenômeno jurídico, definindo-se a partir da relação entre
direito e política – entre ordem jurídica e Estado –, tal como transparece
no seu O Conceito do Político (1932). O conceito de Estado, portanto,
é a chave para a compreensão desse decisionismo da maturidade. Para
Schmitt, a ordem estatal só pode ser definida quando pressupõe a
instância do político, ou seja, o Estado é uma situação ou estado
(Zustand) que fornece a medida em caso de decisão (Schmitt, 1996c).
Dessa forma, é algo (instituição, organismo, máquina ou pessoa) que
compõe e se submete enquanto parte à política, mas com ela não se
confunde.
Dizer que o Estado é uma parte da política significa afirmar, em primeiro
lugar, que a dimensão do político transcende o Estado, regulando mesmo
Fórum dos Alunos do I UPERJ
101
a sua existência e o seu funcionamento e, em segundo lugar, sustentar
uma crítica ao discurso liberal do século XIX, que vê no Estado o
começo e o fim da política (idem:21-26). Identificar o espaço do político,
determinando seu âmbito e especificidade, depende, para Schmitt, do
estabelecimento de conceitos que diferenciem seu domínio dos da moral,
da estética e da economia. Com efeito, o político é definido como a
situação empírica limite em que forças sociais em oposição precisam
pôr fim ao conflito que as atingem, sendo elas, ao mesmo tempo,
discriminadas, reconhecidas e identificadas a partir da diferenciação
amigo/inimigo (idem:28 e ss.). Esta distinção é definitiva em toda a sua
obra. O Estado e suas instituições representam um retrato momentâneo
de um conflito existencial que só cessa à medida que se alcança
homogeneidade política substancial na comunidade, i.e., quando existe
unanimidade da vontade a partir da identidade entre representantes e
representados (Schmitt, 1996b:19-20).
Essa visão sociológica da política enquanto fenômeno definível por
intermédio da verificação empírica de uma situação de impasse sustenta
que o conflito só pode ser eliminado simbolicamente pela aniquilação
do discurso oposto, i.e., por uma ação hierarquicamente superior e
juridicamente decisiva que proporcione a vitória de uma determinada
verdade, facção ou força política sobre os rumos do “combate”. A questão
é que essa decisão resolutiva é sempre arbitrária, pois, em se tratando
de sua dimensão jurídica, a indeterminação do sentido da norma abstrata
quando aplicada a um caso concreto é resolvida mediante uma decisão
de caráter pessoal. É, também, necessária e profundamente autoritária,
pois se realizar negando o direito de existência do outro é o que permite
a sobrevivência do detentor do poder decisório.
O caminho intelectual que origina tal perspectiva pode ser recuperado
nos trabalhos de juventude de Schmitt, como no livro Direito e Juízo.
Neste, o autor identifica como problema nuclear da teoria jurídica
contemporânea a indeterminação legal, ou seja, o fato de normas jurídicas
gerais e abstratas estarem impossibilitadas de revelar um sentido preciso
no momento de sua aplicação judicial ao caso concreto. Esta percepção
opera em contraposição ao dogma positivista da completude do
ordenamento jurídico, segundo o qual a decisão judicial sobre um caso
102
Cadernos de Sociologia e Política
concreto deriva lógica e dedutivamente da lei (Hofmann, 1999). Para
Schmitt, o juiz que necessita especificar a legalidade de sua decisão não
tem na lei pura e simples um alicerce seguro para se apoiar2 . A questão
a ser colocada, então, é: “Quando uma decisão judicial é correta?”, ou
melhor, “Sobre qual princípio normativo está fundada a moderna prática
jurídica?” (Schmitt, 1912:1).
Normatividade e Homogeneidade da Decisão Judicial
Expressa a questão por esse ângulo, a prática jurídica não pode ser
limitada por um critério inócuo como a “conformidade com a lei”,
pois decisões que não atingem o sentido da lei – que, na aplicação, é
indeterminado – podem ocorrer e devem ser, por este exclusivo critério,
consideradas como pertencentes ao ordenamento jurídico, já que se
manifestam sob a forma legal. Este é o caso clássico, lembra Schmitt,
de uma concepção nova do direito que está apta a obter reconhecimento
utilizando o sentido literal da lei contra seu objetivo inicial, como
ocorre na peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare (idem:112)3 . Se
sentenças contra legem ou independentes da lei podem ocorrer, a única
forma de preservar o estatuto de autoridade da norma in concreto é
estabelecer a especificidade legal da mesma, ou seja, é necessária a
construção de um princípio metodológico hipotético que possa dar
fundamento jurídico autônomo – independente da pretensão de legalidade
estrita – à prática judicial. Tal princípio é manifesto na seguinte fórmula:
“Uma decisão judicial é correta hoje se se puder assumir que um outro
juiz já tiver decidido no mesmo sentido. ‘Um outro juiz’ refere-se aqui
ao tipo empírico do jurista moderno e legalmente culto” (idem:71).
Um outro juiz representa aqui a tradição da prática judicial. Assim,
para que uma decisão judicial seja válida juridicamente (seja “correta”)
– em um procedimento judicial corriqueiro, que não pretende resolver
os casos difíceis ou estabelecer princípios gerais destituídos de
significado normativo –, é preciso, qualquer que seja a direção da
sentença, que o juiz esteja sempre se reportando não necessariamente
ao sentido da lei, mas ao sentido das decisões que anteriormente foram
prolatadas. A tradição judicial, mais que o estatuto legal, passa a ser o
fundamento de sentido da prática do juiz e o seu âmbito de especificidade
legal.
Fórum dos Alunos do IUPERJ
103
O argumento de Schmitt não aponta, como se poderia inicialmente
pensar – dado o caráter eminentemente existencial da decisão política,
como a caracteriza em seus escritos posteriores –, para uma
discricionariedade livre, mas remete a um elemento personalista da
decisão, em contraposição, por exemplo, ao formalismo abstrato do
liberalismo jurídico de Kelsen, como Schmitt o percebe, que peca por
creditar a legitimidade da decisão judicial ao exclusivo fato de o juízo
ser normativamente competente para prolatá-la, reconhecendo uma esfera
limitada de discricionariedade dentro da qual o juiz é livre para
determinar o sentido da norma em concreto4 .
Para Kelsen, portanto, a elaboração da norma individual, no momento
em que se aplica a lei ao caso específico, é uma função da vontade,
contanto que se preencha com esta o limite da norma geral, ou seja, se
com a vontade a moldura formal estabelecida pela norma jurídica geral
é respeitada no momento da definição do conteúdo concreto da sentença,
a norma sendo compreendida aqui como um marco dentro do qual se
dão várias possibilidades de decisão (Kelsen, 1941:131-136). Desse
modo, a lei, quando aplicada a um caso concreto, não pode gerar uma
única decisão correta.
Esta percepção, que objetiva normatizar o conteúdo da decisão judicial,
externada, segundo Kelsen, pela teoria tradicional, seria uma tentativa
inócua de “desenvolver um método que autorize a preencher retamente
o marco verificado” (idem:132). Assim, a “cientificidade” em que se
apóia a prática da aplicação da lei tem, para esse autor, um caráter
absolutamente político-jurídico, pois nada que se realize para além do
demarcado pela norma jurídica pode ser considerado puramente
normativo. Esse ponto de vista torna o ato jurisdicional uma apreciação
livre da vontade daquele que está autorizado pelo próprio direito para
realizá-lo, ou seja, o juiz, ao aplicar a lei, decide politicamente, a partir
de limitações formais impostas pela norma, qual a norma individual,
dentre várias possíveis, a ser utilizada. A aplicação do direito é um ato
intelectual ao qual se soma sua vontade, que é competente para tanto
por uma autorização normativa do Estado, não existindo a possibilidade
de se evitar a pluralidade de alternativas, a não ser por uma decisão
política do juiz (ibidem).
104
Cadernos de Sociologia e Política
Já em Schmitt, dada sua pretensão de identificar o elemento normativo
da decisão judicial, a objetividade (normatividade) jurisprudencial existe
e é construída consensualmente entre iguais. Pode-se argumentar,
utilizando a terminologia existencialista posterior de Schmitt, que tal
igualdade se constitui a partir de uma elite que se estrutura
existencialmente por meio da manifestação reiterada de uma decisão
que garante a continuidade da realização do passado. Nesse sentido,
decidir, tanto política quanto juridicamente, significa a definição da
própria individualidade como pertença a uma unidade autêntica que
possui um destino ou um objetivo específico: a reafirmação da ordem.
Assim, a determinação da decisão judicial só se sustenta com a destruição
do pluralismo, com a homogeneidade espiritual que subjaz ao argumento
schmittiano de juventude e que se manifesta explicitamente em sua
maturidade.
Para Hasso Hofmann, Schmitt tenta afastar-se, sem sucesso, da
problemática kelseniana estabelecida em seu primeiro texto, por
intermédio da divisão metodológica entre as questões derivadas do estudo
da ciência do direito (subsunção da validade de uma norma jurídica
por outra norma jurídica em um determinado ordenamento) e da
aplicação prática do direito (método de interpretação da norma jurídica
com vistas à aplicação judicial). Quando Schmitt se pergunta sobre a
juridicidade da decisão judicial nada mais faz do que identificar a
aplicação do direito como sendo expressamente normativa, o que, se
elimina a ilusória delimitação de Kelsen, faz por reconhecer a decisão
judicial como problema da ciência do direito (Hofmann, 1999:66-67).
A asserção metafísica implícita em Schmitt nesse ponto é que o juiz, ao
suprimir as lacunas na aplicação da lei ao caso concreto, é a
“humanidade”, a “vida” do direito. É essa substância vital, expressa na
decisão do juiz no caso excepcional, que elimina o formalismo da
jurisprudência (McCormick, 1997:1.697-1.698). A questão política
subjacente é a necessidade de conter a arbitrariedade de um Estado que
consegue penetrar na esfera privada, implementando políticas públicas
fundadas em uma administração burocrática. Segundo McCormick, o
que Schmitt critica é o fato de que: “Ao reprimir o Estado, os formalistas
legais não somente não previnem o funcionamento arbitrário do Estado,
Fórum dos Alunos do IUPERJ
105
como permitem que sua atividade prolifere mais extensivamente e de
forma não detectável em um grau maior” (idem:1.698). A motivação
da decisão judicial deve ter como objetivo “institucional”, então, a
condução a um convencimento geral sobre a própria decisão (Schmitt,
1912:97). Assim, argumentará Schmitt, o que dá legitimidade à decisão
é o efeito de convencimento produzido por ela: “o que constitui a
justeza da decisão não é o fato de o juiz se comportar conforme um
comando, mas que este satisfaça o princípio da determinação jurídica”
(idem :98). A decisão judicial, para Schmitt, representa,
epistemologicamente, a tentativa de superar a antítese kantiana entre
ser e dever ser, entre fato e norma, mediante a justificação do ato, da
práxis judicial, por si mesma (Hofmann, 1999:72).
Para Schmitt, no desenvolvimento de sua obra, o caráter pessoal
(existencial) da decisão jurídica irá denunciar o caráter político do
direito. Nesse sentido, no seu livro Teologia Política I – Quatro Ensaios
sobre Soberania (1922), a decisão personalizada define a soberania dos
poderes em conflito no espaço político, pois a soberania é um conceitolimite e soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção (Schmitt,
1996a:13). A soberania também é, para além de seu caráter jurídico,
um status essencialmente político que tem a qualidade especial de
atribuir diferenciação entre vencidos e vencedores. Os próprios
elementos que compõem e fundamentam a decisão são indeterminados,
já que, por ela acontecer em um momento excepcional, “tanto as
condições como o conteúdo da competência são necessariamente
ilimitados” (ibidem). Conforme Schmitt, o problema das teorias da
soberania vinculadas a um modelo formal de direito e Estado é que
elas defendem uma objetividade segundo a qual “tudo que é pessoal
deve desaparecer do conceito de Estado”, por sustentar o argumento de
que “todas as idéias personalistas são conseqüências históricas da
monarquia absoluta” (idem:36). Schmitt recupera e mantém intacta,
aqui, a idéia de um decisionismo jurídico segundo o qual “Cada decisão
jurídica concreta contém um elemento indiferenciado de conteúdo,
porque a conclusão jurídica não emana em sua totalidade de suas
premissas e o fato de ser necessária, faz com que a decisão se conserve
como elemento determinante e autônomo” (ibidem).
106
Cadernos de Sociologia e Política
Assim, o pensamento jurídico é estruturado mediante uma decisão
concreta, de natureza política, porque consensual, estamental e
personalíssima. Obviamente, a resposta de Schmitt à questão – o juiz
deve se reportar à tradição, ao juiz “outro”, e daí retirar a medida
concreta da decisão – marca o caráter inalienavelmente político do
direito. Pode-se sustentar, portanto, que Schmitt reitera a visão
estabelecida, em 1912, no seu ensaio de juventude, segundo a qual a
regularidade jurídica deve ser preservada por meio da homogeneidade
dos juízes5 . O Schmitt do Defensor da Constituição (1931) remete-se
ao primeiro livro para afirmar o caráter substancial do decisionismo:
“em toda decisão, inclusive na de um tribunal que decide
processualmente, subsumindo conforme os fatos, existe um elemento
de pura decisão, que não pode ser derivado do conteúdo da norma.”
Essa decisão se realiza – continua –, “pela remoção autoritária da
dúvida”. Assim, se a “perspicácia logicista” dos argumentos trazidos ao
direito pode sempre suscitar dúvidas novas, o sentido e o objeto da
sentença – que é a decisão – é sempre eliminá-las de forma autêntica,
realizando a prestação jurisdicional (Schmitt, 1996d:37-38).
Considerações Finais
A importância da crítica antiliberal à indeterminação do direito é que,
por intermédio dela, se torna possível uma revisão de todo o sistema
jurídico-político liberal, na medida em que este é chamado a comprovar
as suas razões. Esta constatação tem, por outro lado, uma substancial
natureza dramática, já que a alternativa política ao ordenamento jurídico
não é necessariamente a emancipação do sistema capitalista, com a
conseqüente instauração da democracia substantiva, da igualdade e da
distribuição equânime de bens e oportunidades. Esse caminho não é
historicamente imperativo. E é aí que o exemplo histórico-político de
Carl Schmitt é esclarecedor: perceber a crise do direito e das instituições
liberais levou-o a escolher o caminho da determinação dos fundamentos
da decisão por meio da força concreta personalizada em uma liderança
carismática. Dessa forma, se o poder soberano absoluto não é alcançável
pela regra do direito, pelo fato de a decisão conseqüente ser de natureza
indeterminada, a solução mais simples pode ser recorrer, sob um viés
político, à liderança personalista e evitar as lacunas e antinomias que
Fórum dos Alunos do I UPERJ
107
impedem a decisão, reconhecendo, por exemplo, que o presidente do
Reich deve ser o “defensor” do direito; ou, por via de uma perspectiva
jurídica, estabelecer a precedência da homogeneidade de uma elite que
se constitui necessariamente como negação do pluralismo: ambas são
posições que se realizaram na história externando seu potencial de
perversidade. Na verdade, a crítica antiliberal não está necessariamente
vinculada a um projeto específico de ordem política, mas aparece muitas
vezes como pretexto para a sua realização.
É preciso dizer que efetivamente existe um discurso jurídico
antiformalista que tem como objetivo a refundação da ordem jurídica,
mas essa abordagem não se revelou capaz de promover as garantias
necessárias para a realização da própria ordem que pretendeu
implementar. Os dilemas da política ainda hoje apontam para a crítica
à desregulamentação, para o informalismo, e é claro que em uma
perspectiva um tanto diversa da schmittiana. É preciso, contudo, atentar
para as possibilidades perversas que a eliminação de alguns limites
jurídicos pode trazer, como, por exemplo, o resvalar para o autoritarismo
puro e simples. Não se pode deixar de perceber, contudo, que esse
discurso de natureza negativa (crítica) ajuda a compreender e identificar
com mais clareza os próprios limites da ordem jurídica, o que é
extremamente relevante nos dias de hoje.
(Recebido para publicação em novembro de 2003)
108
Cadernos de Sociologia e Política
Notas
1. Esta é a tese, p. ex., de Silva (2001).
2. Não há sustentação segura para a decisão judicial nem na lei, nem na
dedução lógica, nem em princípios de razão de conteúdo imutável
ou na opinião do povo, nem na boa fé, no uso, nas “normas de
cultura” ou mesmo na representação normativa do “direito livre” (cf.
Schmitt, 1912:5 e ss., 20 e ss.) e Hofmann (1999:68).
3. Quando Portia, travestida de advogado, impede a condenação de seu
amado, alegando a impossibilidade empírica da aplicação exata da
pena, já que seria impossível retirar tão-somente uma libra de carne
do lado esquerdo do peito, sem derramar uma gota de sangue a mais.
4. As diferenças entre o formalismo, o liberalismo, o realismo jurídico
e o decisionismo de Schmitt, no que diz respeito ao grau de
determinação das regras jurídicas prescritivas, podem ser assim
sumariadas (seguindo Scheuerman): 1) o antigo formalismo liberal
considera a exegese vinculada à “vontade do legislador” a única
possibilidade de aplicação correta do direito, estabelecendo a tese da
determinação estrita das normas jurídicas (Montesquieu); 2) o
liberalismo jurídico positivista declara uma esfera limitada de
discricionaridade da decisão judicial, na tese da indeterminação
limitada das normas (Kelsen e Hart); 3) o realismo e o liberalismo
jurídicos contemporâneos, reconhecendo que a lei somente serve de
guia mínimo para sua interpretação e aplicação – atividades que são
naturalmente muito mais abertas por se vincularem a casos concretos
–, endossam a tese da sobredeterminação das normas, indicando a
regularidade da decisão judicial tanto na sobreposição das regras do
mercado econômico livre (Posner) quanto na limitação realizada por
ideais liberais de eqüidade e justiça (Dworkin); 4) o decisionismo de
Schmitt sustenta que a norma jurídica não é princípio regulativo eficaz
da decisão, e abraça a tese da indeterminação do conteúdo da decisão,
cuja conseqüência é a necessidade de construir uma teoria normativa
diferenciada à da completude do ordenamento (cf. Scheuerman, 1999:8
e ss.; Kelsen, 1995:388-393; McCormick, 1997:206 e ss.; Hofmann,
1999:76).
5. Ver, nesse sentido, Scheuerman (1999:115).
Fórum dos Alunos do IUPERJ
109
Referências Bibliográficas
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and Historical Sources and its Philosophical Meaning”. Cardozo Law
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SILVA, Bernardo Medeiros Ferreira da. (2001), O Risco do Político: A
Crítica ao Liberalismo na Obra de Carl Schmitt entre 1919-1933.
Tese de Doutorado, IUPERJ.
110
Cadernos de Sociologia e Política
Exercício da Cidadania Política
e Capital Social: Apontamentos
para o Caso Brasileiro*
VINICIUS B OGÉA-CÂMARA**
Resumo
O presente artigo objetiva relacionar os entraves ao pleno exercício da
cidadania política no Brasil à contribuição da recente literatura sobre capital
social. Em linhas gerais, busco articular de que maneira, à luz da bibliografia
sobre tal conceito, o déficit de capital social pode subjazer ao chamado
hobbesianismo social brasileiro, ressemantizando as causas para o
constrangimento de uma cultura cívica não predatória.
Palavras-chave: capital social; cidadania política; hobbesianismo social
* Este artigo é uma versão revisada do trabalho final da disciplina “Cidadania Política e seu Exercício numa Perspectiva Histórica (Portugal e Brasil)”,
ministrada pelo prof. Manuel Villaverde Cabral no IUPERJ, no 1º semestre de
2003.
** Mestrando em sociologia no IUPERJ . Conta com bolsa-prêmio concedida
pela FAPERJ. E-mail: [email protected].
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No presente artigo, procurarei estabelecer uma conexão entre alguns
dos principais problemas referentes ao exercício da cidadania (sobretudo
em sua dimensão política) e a recente literatura concernente ao
multiabrangente conceito de capital social. Longe de representar um
esforço monográfico, este trabalho se restringe ao exame de alguns
pontos em que as teorias 1 do capital social tratam de questões tais
como a participação política, a confiança no regime, a boa (ou má)
avaliação institucional do regime etc. Mostrarei como algumas idéias –
próprias da atualização que o tema “capital social” vem sofrendo já há
duas décadas – podem iluminar o debate acerca da (in)disposição para
o exercício das prerrogativas inscritas no catálogo de uma cidadania
ativa, oferecendo o exemplo do hobbesianismo social brasileiro (ver
Santos, 1993). Nesse sentido, apresento a contribuição que alguns
teóricos do capital social têm dado ao tema, para o qual, até bem
pouco tempo, apenas haviam concorrido macrovisões formalistas,
mormente míopes para uma realidade cada dia mais fragmentada.
Acredito mesmo que o uso instrumental do conceito de capital social
na análise dos dilemas da cidadania/participação, por força de sua
necessária heterodoxia, desfaz alguns dos nós que os “grandes”
monolitos da teoria social e política não conseguiram desatar – donde
segue seu surpreendente rendimento analítico.
Uma das principais constatações a que a reflexão social contemporânea
chegou diz respeito ao desalinhamento empiricamente verificável dos
sujeitos em relação às teorias que os continham. Macrovisões
estruturantes da realidade geralmente buscavam – e ainda buscam –
incorporar em seus esquemas a perspectiva da sonâmbula aquiescência
dos sujeitos a partir de uma ordem dada, pressupondo-lhes uma
previsibilidade no plano comportamental, somente possível por conta
da injunção do tipo “se temos A, então necessariamente temos B”.
Explico. O suposto comportamento racional dos eleitores, por exemplo,
tem-se esfacelado diante da evidência, ao longo da história, de que suas
motivações, em geral, não coincidem com os fatores classicamente
considerados, como, e.g., a identificação com regimes de esquerda ou
de direita. O que se tem verificado é que a existência de precondições
institucionais para o bom funcionamento de um regime – e aqui me
refiro àqueles oito requisitos para a consecução da clássica poliarquia
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dahlsiana –, por si só, não garante uma disposição automática dos sujeitos
para o exercício da cidadania política. A descoberta de que o cidadãoeleitor, o cidadão real, não corresponde ao cidadão abstrato indica,
pois, que devemos contemplar a relação entre sociedade e Estado a
partir de um outro registro – menos formal porquanto mais
compreensivo.
Assim têm feito os teóricos do capital social. Embora sirva, diriam
alguns, para dar conta de uma enorme série de questões – desde as
networks que lhe garantem um bom emprego até a confidence que
confere credibilidade às instituições de um governo –, o capital social
tem conseguido cotejar, satisfatoriamente, as principais questões atinentes
à erosão da cultura cívica com o mérito de transferir a centralidade da
discussão teórico-política do campo do Estado para o da própria
sociedade.
Na primeira parte do artigo, sintetizarei os principais aspectos da
cidadania política, a começar pelo esquema clássico de T. H. Marshall,
para apresentar alguns constrangimentos ao seu exercício,
principalmente no Brasil. Para tanto utilizarei a idéia de hobbesianismo
social, de que Wanderley Guilherme dos Santos lançou mão para explicar
o malaise constitutivo de nossa democracia. A seguir, elucidarei o
conceito de capital social e alguns de seus principais empregos e
abordagens. Selecionarei, enfim, as principais noções que, inscritas no
temário do capital social, respondem aos problemas do hobbesianismo
social e do déficit democrático, matizando os pontos nos quais a teoria
encontra discrepâncias. Como ainda não dispomos de muitas informações
referentes ao capital social no Brasil, eventuais dados aqui dispostos
remeterão a países da Europa e aos EUA, sem prejuízo para o
entendimento do que se passa em nosso país.
Difícil não mencionar aqui o pensamento de T. H. Marshall. Direitos
civis, direitos políticos e direitos sociais – nesta ordem, de tempo e de
importância – empacotam-se em seu conceito de cidadania, que constitui
uma importante ferramenta analítica para quaisquer estudos nessa área.
Os direitos políticos, segundo Marshall, são o meio do caminho entre
os direitos consagrados pela Revolução Francesa – que repousam no
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duplo liberdade-igualdade – e aqueles próprios do État Providence –
contrapesos de um sistema tendencialmente perverso como o
capitalismo. Os direitos políticos, que para Marshall se consolidam no
século XIX, abrangem basicamente “o direito de participar no exercício
do poder político, como um membro de um organismo investido da
autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo”
(Marshall, 1967:63). Dessa forma, eles aparecem como responsáveis
(para lembrar o diagrama de Dahl), stricto sensu, pela articulação
vetorial entre inclusividade e contestação pública, e espelham, até certo
ponto, o grau de pluralismo de uma determinada sociedade (Dahl,
1997:30-31).
Todavia, o intuito de dispor os direitos – civil, político e social – em
seqüência histórica, desejavelmente estendida a todos os países, descuida
do fato de que essa linearidade talvez só possa ser aplicada ao prototípico
caso inglês. Sabemos que, ao longo da consolidação, historicamente
diferencial, dos modernos Estados da Europa Ocidental, a construção
da cidadania correspondeu, pari passu, aos avanços e retrocessos da
própria relação entre cada Estado-nação e sua sociedade (Bendix, 1996).
A maior ou menor extensão dos direitos, a ampla ou parca incorporação
dos indivíduos à malha (sobretudo eleitoral) do Estado, a curta ou longa
distância das pessoas à esfera pública estatal – todas estas variáveis,
sem falar ainda as da cultura cívica, se compuseram distintamente em
cada conjuntura nacional, razão pela qual dificilmente o desempenho
das instituições democráticas contemporâneas (e a confiança nelas
depositadas) apresenta-se igual em todos os países.
Apesar do desenvolvimento histórico diverso da cidadania, o exercício
de sua porção política tem requisitado algo mais do que o mero
cumprimento de secas prerrogativas legais. Isto porque os direitos de
votar e ser votado, não obstante ocuparem, basilares, o terreno da
cidadania política marshalliana, não esgotam a multiplicidade de
atributos e de requisitos concernentes à pletora da vida política nas
sociedades democrático-liberais. Estatuir o mero direito de participação
por via do sufrágio – amplo, liso e limitado apenas por certo piso de
idade –, embora tenha sido uma conquista fundamental para a
consolidação da democracia, não assegura o comprometimento do
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homem comum com aquele urdimento - em geral translúcido ao escopo
das normas –, de onde descem os fios invisíveis da cultura cívica. Como
bem afirma Manuel Villaverde Cabral (2003), o elemento político da
cidadania pressupõe uma mobilização essencial, algo inclusive de que
os direitos civil e social da cidadania podem até prescindir, visto que
estes, desde que devidamente garantidos, podem ser fruídos passivamente
pela população (idem:2-5). Isto aponta para o fato de que a diferenciação
qualitativa existente na forma de exercício de cada tipo de direito
determina, pois, distintos vínculos entre cidadãos e governo, necessários
para a efetividade de cada um daqueles direitos. As garantias sociais da
era Vargas, por exemplo, dadas em troca da subtração de boa parte dos
direitos políticos, não supuseram senão relações clientelistas entre o
governo e os distintos agentes da sociedade, rendendo-nos a chamada
cidadania regulada (Santos, 1998).
Os constrangimentos relativos ao exercício ativo da cidadania no Brasil
têm sugerido uma possível retroalimentação existente entre a sonegação
dos direitos políticos, por parte do Estado, e o engessamento do
associativismo e da participação por parte da sociedade. O esfacelamento
da confiança, o descrédito no governo, o isolamento familista – causas
e/ou conseqüências daquele engessamento – são alguns dos problemas
que, segundo os teóricos do capital social, têm afetado não só os EUA
e a Europa, mas praticamente todas as democracias contemporâneas,
inclusive o Brasil. Antes de mostrar em que medida esses teóricos
colaboram para tal discussão, apresento algumas questões contra cujo
núcleo o capital social voltará seus elementos – principalmente, como
veremos, o elemento confiança.
É rica a discussão acerca dos motivos pelos quais o Brasil “não dá
certo”, e mesmo aqueles que tentam esquivar-se a atribuir mérito a um
ou a outro caminho não o fazem sem localizar na falta, no hiato ou no
desvio o cerne dos problemas brasileiros. E são várias as pautas: o
diagnóstico do processo de inclusão do Brasil no cenário do capitalismo
internacional, bem como o problema de uma (inexistente) revolução
burguesa em âmbito nacional; o exame das formas autoritárias de governo
aqui praticadas e sua relação com modelos de democracia representativa
de sucesso; o dilema entre tradição e modernidade a partir das óticas
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americanista e iberista; o conteúdo edênico do imaginário políticosocial brasileiro. Exemplos de temas que, ao longo de dois séculos,
vêm inspirando algumas dezenas de autores na busca de explicar o
Brasil.
Wanderley Guilherme dos Santos, no intuito de investigar a subterrânea
corrosão das bases para o pleno exercício da cidadania ativa, constrói o
conceito de hobbesianismo social, a partir do qual trabalharei, no sentido
de fixar um ponto sobre o qual melhor incida o contributo do capital
social. Nesse sentido, esta é apenas uma das inúmeras relações
conceituais possíveis de existir entre a doutrina do capital social e os
dilemas da sociedade. Aproveito para frisar que, se ainda não apresentei
a referida doutrina, é porque desejo começar a abordá-la justamente
por intermédio daquilo que ela explica. Sendo assim, começo.
Examinando as “fronteiras do Estado mínimo” (Santos, 1993:77-115)
– também título do capítulo no qual se insere a idéia de hobbesianismo
social –, Santos identifica uma situação paradoxal no Brasil: a
coexistência de elementos pertencentes a uma ordem poliárquica2 com
outros próprios de um estado de natureza. Diante dessa constatação, o
autor, recorrendo ao modelo de análise de Dahl, passa a enumerar os
requisitos para a consecução de uma poliarquia, entrevendo, pouco a
pouco, a existência de praticamente todos eles em nossa sociedade. No
entanto, o autor imediatamente chama a atenção para o fato de que
existem, por vezes ocultos, elementos discrepantes que constrangem o
pleno aproveitamento das vantagens de uma poliarquia.
Para efeitos de melhor compreensão do conceito de hobbesianismo
social, optei por reduzir o uso que Santos faz da noção de estado de
natureza à idéia genérica de desordem. Embora possa prejudicar sutilezas
escondidas no texto, não é errado pensar que quanto maior for o grau
de entropia da sociedade, mais esta tenderá ao estado de natureza.
Assim, o estado de natureza, enquanto continente da desordem, da
barbárie e do oriente político 3, instala-se como um dos pólos da
discussão. O outro, a morfologia poliárquica da sociedade brasileira,
abordarei enquanto deslindo o conceito de Santos. Identificados os pólos,
resta agora a longitude do problema.
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Em 1991, durante a crise de governabilidade do governo de Fernando
Collor – crise que, como sabemos, o defenestrou do poder no ano
seguinte –, veio à tona, irresistível, aquilo que Santos denominou
“híbrido institucional brasileiro” (idem:77-79). O país, saído havia
menos de dez anos do regime militar, dava sinais de debilidade
institucional, revelando os efeitos colaterais de longo prazo dos anos
de engessamento da vida associativa, contados a partir da Revolução de
1964. O longo período de orfandade participativa, durante o qual foram
bloqueadas as vias tradicionais de expressão da vontade popular, tais
como os partidos políticos ou os sindicatos, foi, inclusive, um dos
responsáveis pelo incremento no chamado déficit democrático. Com o
degelo “lento, seguro e gradual” do regime autoritário, surgimos
legatários, segundo Santos, de uma cultura cívica estéril, descrente das
instituições do Estado, própria de indivíduos que preferem “negar o
conflito a admitir que sejam vítimas dele” (idem:80).
Para o autor, ainda que tendo acumulado os requisitos fundamentais a
uma poliarquia, o Brasil cultiva, intestinamente, a pusilanimidade cívica,
uma cultura que discrepa totalmente das bases em que se encontram as
poliarquias que já atingiram, digamos, níveis ótimos, tanto de
desempenho institucional, quanto de confiança no sistema. A questão
que se coloca, pois, é de equacionar forma e conteúdo, a fim de se
alcançar efetividade, em graus cada vez mais refinados, no intermitente
diálogo entre Estado e sociedade. Apesar de desejável, o próprio Dahl
reconhece que aquela equação admite respostas, no mínimo,
incongruentes com o que seria formalmente esperado:
“[...] alguns críticos recentes da democratização incompleta em
poliarquias argumentam ainda que, embora as poliarquias possam ser
competitivas em nível nacional, muitas das organizações subnacionais,
particularmente as associações privadas, são hegemônicas ou
oligárquicas.” (1997:34)
Atualizando a constatação inicial de Santos: o que existe no Brasil é
um híbrido institucional. Mas que espécie de híbrido? Trata-se de um
fenômeno que associa “uma morfologia poliárquica, excessivamente
legisladora e regulatória, a um hobbesianismo social pré-participatório
e estatofóbico.” (Santos, 1993:78)
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Separemos os termos da sentença: por “morfologia poliárquica” entendese a posse daqueles requisitos formais necessários à obtenção de uma
poliarquia; o primeiro senão é que essa morfologia é logo predicada
negativamente, pois ela é “excessivamente legisladora e regulatória”.
Aqui, a remissão semi-automática é ao papel do Estado, especialmente
do Poder Executivo, na administração da sociedade, durante a vigência
e crise do Welfare State. Overload do Legislativo4, Estado máximo, até
Ministério da Desburocratização tivemos. A herança do Estado tutelar
ainda pesa muito e deixa marcas na composição dos elementos
poliárquicos, inspirando desde o início a canibalização de seus principais
pressupostos5.
A outra parte da sentença traz um “hobbesianismo social préparticipatório e estatofóbico”. É exatamente o resultado da radiografia
da sociedade brasileira, em sua disposição para a cidadania. Segundo
Santos, estamos todos permeados pelo estado de natureza, que, na sua
versão, é vivenciado pelos atores na radicalidade de se encontrar
cotidianamente sob governos múltiplos e soberanias concorrentes
(idem:80). O que ele chama de hobbesianismo social é um compósito
formado pela refração à participação política (idem:94-98), desconfiança
generalizada nas agências governamentais (idem:99-104), erosão das
normas de convivência social (idem:109) e uma tendência ao escapismo
na reclusão familiar (ibidem). Esses comportamentos, amalgamados,
oferecem a denúncia do conteúdo edênico presente no imaginário do
brasileiro (ver Carvalho, 1999), desenganando as formas pretensamente
dóceis sob as quais estariam organizadas as relações entre os membros
da sociedade e entre estes e o Estado. Afirma Santos que
“[...] não obstante [o hobbesianismo social], a sociedade brasileira,
tal como retratada em seu próprio depoimento, encontrar-se-ia entre
as mais pacíficas do planeta. Isto porque o indivíduo isolado, nãopoliárquico, pobre em laços de congraçamento social, prefere negar o
conflito a admitir que seja vítima dele.” (1993:80)
Após a confirmação de que o Brasil, nos últimos cinqüenta anos, se
preparou com sucesso para se transformar em uma poliarquia, portadora
daquela série de requisitos, Santos percebe que o arcabouço sobre o
qual se alicerçou tal poliarquia carece de maior robustez para suportar
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crises e enfrentar riscos. O autor atesta que, de fato, o país experimentou
significativo crescimento econômico desde 1940; que, em decorrência
do incremento na economia, o país viu a taxa de urbanização subir
exponencialmente6; que o volume do associativismo aumentou
sobremaneira (basicamente associações de classe); e que também o
número de partidos políticos e sindicatos cresceu, ao mesmo tempo
que, durante o período de 1945 a 1964, a quantidade de eleitores sofreu
acréscimo substancial. Tudo isso aconteceu. O problema é que a resposta
da sociedade só fez confirmar aquela tendência – já há muito identificada
por outros pensadores – para o insulamento refratário à participação,
em seus mais diversos níveis, na esfera público-institucional.
Analisando a relação entre eleitores e políticos e entre nível de
sindicalização, renda e escolaridade, Santos descobre então a afonia
das respostas da sociedade. Ele verifica que existe muito pouco contato
entre eleitores e políticos e que isto acontece mesmo entre aqueles com
maior rendimento mensal; que, apesar do número considerável de
associações, como, por exemplo, os sindicatos, o nível de sindicalização
ainda é considerado baixo em todas as faixas de renda, o mesmo
ocorrendo com o que diz respeito à filiação partidária; e que em todas
essas relações o grau de escolaridade pouco ou nada influenciou. Santos
também procurou saber quais são os principais conflitos vivenciados
pelos brasileiros e, o mais importante, até que ponto eles são levados a
se resolver pela Justiça. Por via desses exemplos, podemos ter ao menos
uma idéia acerca do ainda incipiente nível de capital social existente
no país.
Reproduzo aqui este último exemplo, que, embora não se refira
diretamente ao problema do exercício da cidadania política, é
emblemático da distância em relação ao aparelho administrativo estatal.
Estabelecidos os principais conflitos por que passaram os brasileiros,
maiores de 18 anos, de outubro de 1983 a setembro de 1988 (“Questão
Trabalhista”, 18,7%; “Separação Judicial”, 18,0%; “Problema
Criminal”, 17,2%; “Herança”, 10,3%; “Conflito de Vizinhança”, 10,2%)
(idem:99), Santos capta o tipo de reação que o contingente de pessoas
envolvidas em algum tipo de conflito teve, no período compreendido
entre 1985 e 1988, e chega ao seguinte resultado:
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Quadro 1
Negação do Conflito
Ações
Participantes em conflitos que não buscaram justiça
Participantes que resolveram por conta própria
Participantes que temeram represálias
Participantes descrentes da Justiça; não quiseram
envolvê-la; custava menos ser indiferente ao conflito
Recorreram a outras pessoas ou entidades
Brasil (%)
67,0
43,0
1,5
28,7
6,0
Fonte: Santos, 1993:102.
Como podemos perceber, os resultados verificados não reportam uma
grande proximidade do homem comum com as instâncias públicas. O
hobbesianismo social – esta lassidão da vontade cívica – pode ser
explicado pelo relativo déficit no nível de capital social no interior da
sociedade contemporânea, especialmente pela crise da confiança. Embora
o Brasil, para alguns autores, esteja hoje em franco processo de
acumulação de capital social7, ele tem manifestado alguns dos principais
sintomas de decréscimo no capital social que têm afligido as democracias
avançadas. Vejamos agora no que consiste o conceito de capital social.
Como mencionei no início deste trabalho, o conceito de capital é
multiabrangente. Inspirado, até certa medida, na idéia genérica de capital
– capital entendido como algo que, por excelência, gera valor –, o
conceito de capital social possui hoje uma amplitude explicativa
impressionante: da administração à ciência política, da economia à
sociologia, passando inclusive pelos estudos sobre psicologia
comportamental. Especialmente a partir da década de 80, os estudos
sobre capital social começaram a compor uma vastíssima literatura, da
qual somente há pouco se teve notícia no Brasil. E esta literatura, dada
sua transdisciplinaridade fundamental, tem nos fornecido diferentes
conceptualizações acerca do que é o capital social8, instruindo-nos seus
usos, atributos, critérios e externalidades principais. Dessa forma, pelo
menos em tese, parece difícil enfeixar conceitualmente abordagens tão
díspares quanto numerosas; no entanto, a mais recente onda de escritos
sobre a função do capital social nas democracias contemporâneas
conseguiu sistematizar um conceito que, embora passível de utilizações
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distintas, se mostra suficientemente coeso na organização interna de
seus pressupostos.
Segundo atual consenso existente entre os principais teóricos acerca do
capital social, é possível defini-lo como o conjunto ou estoque de relações
sociais reciprocamente orientadas, estabelecidas sob bases de confiança
mútua e regidas por normas amplamente aceitas, donde surgem
freqüentemente vínculos que tendem a agregar valor ao objeto de interesse
dos atores envolvidos – motivo pelo qual geralmente o (aumento de)
capital social tem sido entendido como desejável para a realização da
democracia. Isto posto, apresento agora algumas idéias sobre o capital
social, as quais têm contemplado os principais dilemas da democracia
participativa, como, por exemplo, o caso do nosso hobbesianismo social.
Robert Putnam (2000), em seu consagrado Bowling Alone9, busca
traduzir a pífia evolução do quadro associativo-participatório dos EUA
como resultado do decréscimo generalizado do capital social naquele
país. Herdeiro do faro tocquevilliano, Putnam descobre, na erosão cívica
(idem:277-284) que vem acometendo a sociedade norte-americana, a
perda daquela característica primordial que Tocqueville identificou em
seu A Democracia na América:
“Os americanos de todas as idades, condições e mentalidades unemse constantemente. Não só possuem associações comerciais e
industriais [...], mas ainda outras de mil espécies diferentes: religiosas,
morais, graves ou fúteis, extremamente gerais ou muito particulares,
imensas ou mínimas; os americanos se associam para dar festas, fundar
seminários, construir albergues, erigir igrejas, difundir livros, enviar
missionários aos antípodas. [...] Encontrei, nos Estados Unidos,
espécies de associações, de que confesso nunca ter tido idéia e,
freqüentemente, admirei a arte infinita com que os habitantes da
América conseguiam estabelecer um objetivo comum para os esforços
de um grande número de homens e deixá-los agir livremente.”
(Tocqueville, 1979:287).
Ao operar no mesmo registro que Tocqueville, Putnam ressalta a
importância da permanência de componentes que, visto estarem
reinantes ab ovo na composição da sociedade política norte-americana,
comporiam o núcleo duro da própria democracia. O libelo tocquevilliano
do associativismo é atualizado por Putnam como o elogio da conduta
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gregária10 sobre a tendência – também entrevista pelo autor francês –
ao individualismo grosseiro e familista. Assim, trabalhar em um projeto
comunitário, jogar bridge com os amigos ou escrever cartas para a
redação de um jornal (Putnam, 2000:98) seria de extrema relevância,
não só para a saúde da american community, como também para o
fortalecimento indireto do próprio regime democrático. Para Putnam,
o capital social - desde que de boa qualidade (veremos a distinção logo
adiante) - dirigiria a sociedade rumo a uma espiral positiva de
participação clarividente, ainda que por meio da proliferação de grupos
aparentemente triviais.
Há uma variação quanto à qualidade do capital social, indicativa da
finalidade (explícita ou velada) com que determinados grupos se
organizam. Putnam salienta a ocorrência de dois tipos fundamentais de
capital social: o inclusivo (bridging) e o exclusivo (bonding). Segundo
essa distinção, existem grupos que, munidos de capital social inclusivo,
constroem verdadeiras pontes entre as pessoas, ligando-as por intermédio
de objetivos comuns, grupos que, freqüentemente, ultrapassam as
fronteiras rígidas de um propósito muito específico. São exemplos de
bridging social capital (idem:22) os movimentos por direitos civis, as
associações cristãs de moços e as organizações religiosas ecumênicas.
Por outro lado, existem grupos que, movidos por capital social exclusivo,
servem para agregar as pessoas em torno de uma identidade comum
(reforçando-a) e que, em geral, não aceitam ninguém que não possua as
características necessárias para o pertencimento ao grupo. São exemplos
de bonding social capital (ibidem) as fraternidades de cunho étnico e os
clubes para milionários. Apesar de tal distinção, Putnam reconhece
que, na realidade, às vezes existem agrupamentos dotados, ao mesmo
tempo, de capital social inclusivo e exclusivo, e que a capacidade de
serem verdadeiramente gregários e holistas é que servirá para distinguilos como vetores do bom ou mau capital social.
Outra variação no conceito de capital social, abordada por diversos
autores, diz respeito ao fato de que ele engendra tanto bens públicos
quanto bens privados e, algumas vezes, as duas espécies ao mesmo
tempo. Isto aponta para um desdobramento necessário do conceito em
duas porções, uma micro e outra macroorientada. A microorientação
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do conceito de capital social contempla tudo quanto é instruído
exclusivamente: a) por ações entre sujeitos particulares com vistas à
consecução de bens privados; ou b) por outras que, embora não visem
a um fim específico, contribuem indiretamente como elementos mínimos
para o fortalecimento da cultura cívica. Nesta acepção, a posse de maior
ou menor nível relativo de capital social determina a maior ou menor
probabilidade de êxito na realização de objetivos que, em geral, são
pouco referentes às questões públicas (embora muito indiretamente
possam nelas interferir). Exemplos, os mais diversos: a garantia de um
bom emprego (Granovetter, 1973:1.360-1.380); a relação (de segredos
de ofício) entre aprendizes e mestres nas oficinas à época da Revolução
Industrial (Rotberg, 2001:97-119); o lugar da (des)confiança na máfia
italiana (Gambetta, 1990:158-175); o papel da amizade para os
imigrantes (idem:176-193). Nestes exemplos, e em muitos outros, a
presença do capital social tem sido, pois, um diferencial para a efetivação
de bens privados, embora sua interpretação deva sempre vir
acompanhada de um exame das bases históricas que, em cada cultura,
têm servido como bons ou maus propulsores da cultura cívica11.
A macroorientação do conceito de capital social concerne,
especialmente no que interessa ao exercício da cidadania política, ao
conjunto de ações, costumes e grupos que, alguns sem parentesco a
priori com qualquer ação politicamente orientada, fomentam, de forma
agregada, bens públicos, confiança na esfera estatal, afluência cívicoparticipativa, enfim, o fortalecimento da própria democracia. Visto
dessa perspectiva, o capital social sobreleva-se a um plano tal que se
lhe alarga a tessitura explicativa sem nenhum estrangulamento teórico;
ou seja, para alguns autores12, explicando o comportamento cívicopolítico, o conceito de capital social confere, de maneira cumulativa,
relevância a toda ação considerada capaz de abrigar um mínimo quantum
de capital social, desde a mais microorientada até a mais politicamente
interessada – pelo que, no limite, toda forma de capital social se comporta
para a construção da cultura democrática tal como um pixel em relação
ao écran colorido que forma.
Assim, ao alcançar o debate acerca do malaise da democracia
contemporânea, a teoria do capital social se organiza em vários elementos
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e fornece um sem-fim de variáveis que, coordenadas, são postas a
diagnosticar o estado da cultura cívica de determinada sociedade. O
entendimento básico de alguns autores é o de que um incremento no
capital social acarreta o aumento na efetividade do exercício da cidadania
política ou, como tem sido um dos exemplos mais freqüentes, o aumento
da confiança nas instituições do governo. Entretanto, críticas a essa
visão têm buscado relativizar essa causalidade, frisando que, primeiro,
não necessariamente o capital social aumenta o nível agregado de
confiança – porque o contrário também seria plausível13 – e que, segundo,
a um maior exercício da cidadania política, suposto decorrente do
acréscimo de capital social, não corresponde mecanicamente maior
dose de confiança no regime – já que, por força de um maior
esclarecimento, os indivíduos tenderiam a se tornar mais críticos14 com
relação a qualquer instância do governo.
A fim de responder aos principais sintomas de crise nas democracias
contemporâneas15, inúmeras pesquisas, mesmo que não organizadas
para testar a teoria do capital social, têm sido feitas sob a inspiração de
alguns de seus elementos, sendo o mais notável aquele que se refere à
confiança. As perguntas sobre o nível de confiança abundam nas recentes
pesquisas e a amplitude de seu uso varia desde perguntas sobre a
possibilidade de se confiar no próximo até inquéritos sobre a opinião a
respeito da democracia como o melhor dos regimes. Em geral, os
resultados não são dos melhores, embora estejam diferencialmente
distribuídos de acordo com o alvo das enquetes16. Não obstante a
possibilidade de não corresponderem fidedignamente à realidade17, tais
pesquisas têm tido o mérito de acusar, não só em que estado se encontra
o apoio à democracia em diversos países, mas, indiretamente, em que
nível se encontra o agregado de capital social de cada sociedade.
Antes de trazer de volta a questão do hobbesianismo social – com o
propósito de antepô-la ao significado da confiança para a cidadania
política –, cabe-me agora elucidar os diferentes usos do termo
“confiança”, sem o que não será possível definir seu horizonte
axiológico.
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Apelo aqui para a distinção sugerida por Luhmann (apud Gambetta,
1990:94-107). Para ele, existe uma diferença – não factível em idioma
português, pois neste só existe a palavra “confiança” – essencial entre
os termos confidence e trust. Confidence diz respeito à confiança
depositada inconscientemente em coisas sobre as quais o indivíduo
nem chega a aventar a hipótese de desconfiança – posto que são fatos
trivialmente críveis ou esperáveis. Como nos diz Luhmann, se você é
confiante (confident),
“Você é confiante no fato de que suas expectativas não serão
desapontadas: no fato de que os políticos tentarão evitar a guerra, os
carros não vão enguiçar ou sair da pista atingindo-o durante sua
caminhada de domingo à noite. Ninguém consegue viver sem formar
expectativas com relação a eventos contingentes, bem como todos
devem descartar, em maior ou menor grau, aquela possibilidade de
desapontamento.” (idem:97, tradução do autor)
Já trust se refere à confiança depositada deliberadamente em coisas que
envolvam alguma parcela de risco e requer um comprometimento prévio
do indivíduo. Supondo a existência de escolhas racionais, Luhmann
continua: “confiança (trust) somente é requerida se uma externalidade
negativa faça você lamentar a sua ação.” (idem:98, tradução do autor)
Podemos sintetizar essa distinção afirmando que, enquanto confidence
repousa sobre bases relativamente seguras de convívio social – inscritas
em uma economia de reciprocidade e confiança generalizadas -, trust,
admitindo-se a imperfectibilidade humana, jaz sobre a possibilidade de
erro ou engano que os indivíduos devem considerar – o que o leva a ser
um componente importante para o exercício da cidadania política.
Incorporemos essa distinção ao conjunto já exposto do capital social e
voltemos – já é hora – ao hobbesianismo brasileiro.
Wanderley Guilherme dos Santos (2001:232-250) afirma que um dos
maiores problemas do Brasil tem sido os altos custos do fracasso da
ação coletiva, principalmente entre as classes mais desfavorecidas. Para
ele, a diferença estrutural do cálculo da ação coletiva no Brasil reside,
primeiro, no fato de que nosso país não conta com uma rede de proteção
social tão ampla quanto a dos países mais desenvolvidos – o que
garantiria, no caso de fracasso da ação coletiva, “a subsistência com
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tolerável resquício de dignidade” (idem:248); segundo, a diferença
refere-se ao fato de que aqui a ação coletiva não é um jogo de soma
zero, pois – para ser bem direto – o que é ruim sempre pode ficar pior.
Assim, se juntarmos hobbesianismo social e o medo ante os custos do
fracasso da ação coletiva, teremos uma sociedade que, mesmo em franco
processo de acumulação de capital social (pelo conceito de Putnam),
terminará refém de sua própria incapacidade de gerar a mínima confiança
interpessoal e institucional (confidence) e de construir as bases para
que os indivíduos possam arriscar-se (trust) sem tanto medo.
Vimos como o hobbesianismo social tem sido um dos responsáveis
pela indisposição para o exercício ativo das prerrogativas da cidadania.
No Brasil, há muito existe um distanciamento entre a esfera pública
estatal e o conjunto da sociedade que, isolado pela distância ao poder,
geralmente não confia às instâncias governamentais a resolução de seus
conflitos ou a implementação de suas demandas, corroborando modelos
mafiosos de subgerenciamento dos bens públicos escassos (Santos,
1993:112-114). No Brasil, o triunfo de um Estado administrativo
máximo, excessivamente regulador, sobre uma sociedade desarticulada
e pobre de recursos – financeiros, sociais, políticos etc. – denuncia o
vazio comunicacional entre Estado e sociedade. Apesar de estarmos
em um período de plena acumulação de capital social (como já foi
dito), alguns de seus elementos – como a confiança – não parecem
presentes na relação entre sociedade e Estado, e nem no interior da
própria sociedade.
Dessa forma, em um país onde os riscos são potencialmente maiores
que os resultados, onde “o custo do fracasso da ação coletiva [...] inclui
a possibilidade de retorno a uma situação ainda pior do que a anterior”
(Santos, 2001:248), o trust não chega mesmo a se ossificar na sociedade,
desmancha-se com medo dos “bad outcomes”, encapsulando-se apenas
em ações espasmódicas. Em um modelo que não oferece as condições
para o estabelecimento de confidence, ou seja, em um mundo onde
absolutamente tudo pode acontecer – daí o hobbesianismo –, faltam as
bases não só para a realização de ações coletivas, mas para a própria
crença na efetividade das instituições democráticas. Sob este ponto de
vista, sem o capital social, o lugar da confiança dentro da composição
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da cultura cívica brasileira é ocupado pelo medo – clássico elemento
em Hobbes; e a celebração do contrato – para ficar ainda em território
hobbesiano –, postergada sine die em favor do estado de natureza.
(Recebido para publicação em novembro de 2003)
Notas
1. Teorias, no plural mesmo. Como tratarei de mostrar, o conceito de
capital social tem um sem-fim de cultores, cada qual a frisar um ou
outro dos pontos do referido conceito, donde surgem abordagens às
vezes muito distintas entre si.
2. Vale a pena explicitar quais são, de acordo com Dahl, os requisitos
para a existência de uma poliarquia: liberdade de formar organizações
e aderir a elas; liberdade de expressão; direito de voto; elegibilidade
para cargos públicos; direito de líderes políticos disputarem apoio;
direito de líderes políticos disputarem votos; fontes alternativas de
informação; eleições livres e idôneas; instituições para fazer com
que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras
manifestações de preferência.
3. Sobre o “oriente político”, ver Werneck Vianna (1997:133).
4. Sobre o problema da sobrecarga do Poder Legislativo, em contextos
próprios ao Welfare State, ver Cappelletti (1993:43-ss.).
5. Refiro-me basicamente ao voto e aos partidos políticos (ao
associativismo como um todo). A história destes dois elementos no
Brasil prova o claudicante desenvolvimento que tiveram, muitas vezes
incorporando itens estranhos a um regime competitivo e liberal,
estes freqüentemente tratados no ementário político e social
brasileiro: o voto de cabresto, o mandonismo, o comando estatal
dos sindicatos, os senadores “biônicos”, a cassação de políticos, a
proibição de determinados partidos etc.
6. Embora hoje existam dúvidas quanto a isto, pelo menos do ponto de
vista qualitativo.
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7. Pelo menos é o que pensa Wanderley Guilherme dos Santos em
artigo recentemente publicado (Santos, 2001).
8. Robert Putnam a este respeito nos informa que, ao longo dos últimos
sessenta anos, pelo menos seis concepções distintas do capital social
foram trazidas à lume, cada qual reportando-se a um conjunto
específico de aspectos da sociedade (cf. Putnam, 2002:5).
9. A julgar pelo sucesso das vendas, este talvez tenha sido o livro que
catapultou o conceito de capital social para o domínio do público
não especializado.
10. O próprio Putnam, no site em que promove as idéias de seu livro
Bowling Alone, indica um link sugestivo: www.bettertogether.com
11. Pelo menos foi o que fez Putnam (2000a) ao analisar as bases da
cultura cívica no sul da Itália.
12. Autores como o próprio Putnam. Em seu Bowling Alone, em várias
passagens, ele equipara jogar baralho a ir ao cinema ou escrever
cartas a ações relativas à participação em sindicatos ou associações
profissionais, por exemplo – fato que lhe tem granjeado críticas de
diversas partes.
13. Trata-se do velho tema referente a saber quem veio primeiro, se o
ovo ou a galinha. Mesmo isolando um dos sentidos da causalidade,
não se deve perder de vista que o sistema em questão é, por
excelência, de retroalimentação. Visto por um ângulo, o estoque
de capital social determina uma ação política mais intensa; por
outro, ele é encarado como o produto de um exercício mais ativo
da cidadania em sua esfera política.
14. É o que identifica Pippa Norris. Matizando os níveis de apoio
(political support) à democracia, a autora defende idéia segundo a
qual um exercício mais ativo da cidadania, em geral, acompanha o
surgimento de cidadãos críticos – portanto, não necessariamente
mais confiantes no governo (cf. Norris, 1999).
15. Rubricas da crise: descrédito na política (political distrust), malaise
democrático (disaffected democracies), desalinhamento partidário
(party dealignment) etc.
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16. Pippa Norris, p. ex., diferencia os resultados conforme mudam as
instâncias referidas: para ela, o pertencimento à comunidade política
nacional (political community) e os princípios do regime democrático
(regime principles) têm conseguido altos níveis de apoio; a
performance governamental (regime performance), satisfação
variada; enquanto as instituições do regime (regime institutions) e
os atores políticos (political actors), níveis declinantes de confiança
e apoio (cf. Norris, 1999:10).
17. Segundo Wanderley Guilherme dos Santos: “o narcisismo ou
masoquismo da opinião pública é uma coisa, o que de fato acontece
pode ser muito diferente” (Santos, 2001:241).
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