7 - Cadernos de Estudos Sociais e Políticos
Transcrição
7 - Cadernos de Estudos Sociais e Políticos
IUPERJ Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Cadernos de Sociologia e Política 7 Agosto de 2004 rosto.pm6 1 27/09/04, 15:46 Sumário APRESENTAÇÃO 5 ANDREA RODRIGUES C ARNEIRO Migração Partidária na Câmara dos Deputados (1999-2003) 7 BRUNO SCIBERRAS DE C ARVALHO Da Transcendência ao Telos Político da Filosofia da História: Hobbes “à luz” de Descartes 21 CORENTIN HECQUET, PIERRE CAUSSIN E J ÉRÔME DE CUYPER L’Amour comme Illustration de Monter du Juridique 35 CRISTINA BUARQUE DE HOLLANDA Considerações sobre História e Soberania em Behemoth, de Thomas Hobbes 49 JULIANO BORGES Poder e Multiplicidade em Lyotard, Deleuze e Foucault 59 MAURÍCIO SANTORO Do Fim da História à Guerra Preventiva 75 sumario.pm6 1 27/09/04, 15:47 PEDRO H ERMÍLIO VILLAS BÔAS CASTELO B RANCO Resenha do livro, The Broken Covenant: American Civil Religion in Time of Trial, de Robert N. Bellah, 1975 91 ROGERIO DULTRA DOS SANTOS Carl Schmitt, Direito e Juízo 99 VINICIUS BOGÉA-CÂMARA Exercício da Cidadania Política e Capital Social: Apontamentos para o Caso Brasileiro 111 sumario.pm6 2 27/09/04, 15:47 Apresentação A produção bibliográfica é um imperativo da carreira acadêmica, ainda mais desafiador em contextos de crise. Com este volume dos Cadernos de Sociologia e Política, a pós-graduação do IUPERJ apresenta alguns resultados de estudos teóricos e empíricos desenvolvidos no âmbito do mestrado e do doutorado. Comemoramos um avanço em relação aos números anteriores: todos os artigos aqui reunidos foram submetidos a pareceristas, cuja colaboração atesta a qualidade desta publicação. O leitor tem em mãos a oportunidade de compartilhar discussões teóricas, resenhas e análises empíricas em sociologia, ciência política e também em outras áreas conexas, como a história, a filosofia e o direito. A variedade dos temas abordados, das perspectivas teóricas e metodológicas adotadas e das disciplinas a que se dirigem essas contribuições reflete a riqueza de um ambiente intelectual que deve ser preservado. Agradecemos a todos aqueles que submeteram seus trabalhos à revista, aos pareceristas, à equipe de publicações e à direção do IUPERJ . Comissão Editorial Gabriela Tarouco Lauro Stocco II Teresa Cristina Vale Fórum dos Alunos do I UPERJ 5 Migração Partidária na Câmara dos Deputados (1999-2003)* ANDREA RODRIGUES CARNEIRO* * Resumo Este artigo resgata textos produzidos por outros estudiosos do tema das migrações partidárias, buscando testar a validade de suas conclusões para a última legislatura. Para tanto, foram tomadas como referência as migrações partidárias ocorridas durante a 51ª legislatura da Câmara dos Deputados (1/ 2/1999 a 31/1/2003). Os resultados indicam que o fenômeno da migração partidária, que não é mais uma novidade no cenário político brasileiro, é bastante expressivo − cerca de 30% dos deputados federais migraram de partido nesse período, porém, a maioria migrou uma única vez. As trocas são mais intensas no 1º e no 3º anos da legislatura e existe alguma consistência ideológica nelas. Palavras-chave: migração partidária; partidos políticos; Câmara dos Deputados Este artigo é uma versão revisada do trabalho final da disciplina “Política Comparada: Metodologia e Análise”, ministrada pelo prof. Jairo Nicolau no IUPERJ, no 1º semestre de 2003. ** Bacharel em ciências sociais pela UERJ, aluna do curso de mestrado em ciência política do I UPERJ e bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]. * Fórum dos Alunos do I UPERJ 7 A pós a abolição do instituto da fidelidade partidária pela Emenda Constitucional nº 25, de maio de 1985, o sistema partidário brasileiro adquiriu uma instigante peculiaridade: a intensa troca de legendas por parte dos parlamentares. O objetivo deste trabalho é dar prosseguimento às pesquisas existentes sobre o assunto. Com o intuito de testar a validade das conclusões obtidas por Nicolau (1996a) e Melo (2000) para legislaturas anteriores, foram analisadas as migrações partidárias ocorridas durante a 51ª legislatura da Câmara dos Deputados, que se estendeu de 1/2/1999 a 31/1/2003. A base de dados, obtida junto à Secretaria Geral da Mesa da Câmara dos Deputados, lista todas as mudanças de partido, citando o nome do parlamentar, sua situação (titular, suplente ou ex-suplente1 ), a unidade da Federação que representa, os partidos de origem e destino, e a data da troca. Adotando a metodologia desenvolvida por Nicolau (1996a), os suplentes e ex-suplentes foram excluídos da análise, sendo considerados apenas os deputados titulares eleitos em 1998. Uma dificuldade trazida pela base de dados foi a existência da opção “Sem Partido” para origem e destino, gerando dúvidas em três situações. As soluções propostas para essas situações são mostradas no Quadro 1. Quadro 1 Critério Adotado Situações Partido A Æ Sem Partido Sem Partido Æ Partido B Partido A Æ Sem Partido Sem Partido Æ Partido A Partido A Æ Sem Partido Solução Partido A Æ Partido B (uma migração) Afastamento temporário (não houve migração) Defecção (não houve migração) A primeira situação ocorre quando o deputado deixa o partido e não se filia imediatamente a outro, mas sim posteriormente. Aqui, as duas mudanças foram computadas como se fossem uma única migração ocorrida na data em que o deputado deixou o partido. A segunda é a do 8 Cadernos de Sociologia e Política deputado que sai do partido, passa um certo tempo sem partido e termina por regressar ao partido original. Nesse caso, as duas mudanças foram consideradas como afastamento temporário, ou seja, não foram computadas como migrações. Por fim, a terceira situação acontece quando o deputado abandona o partido e não se filia a nenhum outro até o fim do mandato, sendo exemplos os deputados Hildebrando Pascoal (PFL/AC) e Fernando Zuppo (PSDC/SP), cujos abandonos não foram computados como migrações, mas como defecções. Neste trabalho, portanto, considero que uma defecção ocorre quando um deputado deixa o partido pelo qual foi eleito e permanece na Câmara, filiando-se ou não a outro partido. Se um deputado se afasta da Câmara para exercer um outro cargo, tal como o de ministro ou secretário estadual, não há defecção, pois ele não está mudando de partido. Da mesma forma, só se configura uma adesão quando um deputado que realizou uma defecção se filia a um outro partido. Dessa forma, como as variações apresentadas nas bancadas dos partidos não se devem somente às migrações partidárias, apenas a bancada eleita será considerada neste estudo. Na legislatura 1999-2003, dos 513 deputados eleitos, 153 (29,82%) migraram. Tal porcentagem vem corroborar a constatação de Melo (2000) de que, desde 1982, em média, 30% dos deputados eleitos migram ao menos uma vez durante o mandato. Apesar de ser a minoria, trata-se de um índice bastante alto se comparado ao de outros países. De acordo com a Tabela 1, houve deputados que migraram mais de uma vez durante a legislatura considerada, chegando-se ao total de 223 migrações. O campeão de migrações foi o deputado alagoano João Caldas, que, em menos de dois anos, mudou sete vezes de partido. Eleito pelo PMN, ele chegou a entrar e sair três vezes do PL, antes de se filiar em definitivo a esse partido. Verifica-se, no entanto, que a maioria (cerca de 70%) dos deputados migrantes troca de partido apenas uma vez, e que, ao contrário do que o senso comum supõe e da imagem negativa enfatizada pela imprensa, a migração partidária não é um fenômeno majoritário entre a classe política. Fórum dos Alunos do I UPERJ 9 Tabela 1 Número de Deputados Migrantes e Número de Migrações (1999-2003) Nº de vezes que migrou 1 2 3 4 5 6 7 Total Nº de deputados % do nº de deputados Nº de migrações 107 33 9 1 2 1 153 69,93 21,57 5,88 0,65 1,31 0,65 100,00 107 66 27 4 12 7 223 Analisando as migrações por ano da legislatura, ilustradas na Tabela 2, percebe-se uma grande oscilação no período: no 1º e no 3º anos, as migrações são muito mais freqüentes do que no 2º e 4º. Tabela 2 Migrações por Ano da Legislatura (1999-2003) Ano da legislatura Nº de migrações % das migrações 1º (1/2/99 a 31/1/00) 98 43,95 2 º (1/2/00 a 31/1/01) 26 11,66 3 º (1/2/01 a 31/1/02) 81 36,32 4º (1/2/02 a 31/1/03) 18 8,07 Total 223 100,00 Segundo Melo (idem), as migrações ocorridas no 1º ano são conseqüência de uma reacomodoção dos deputados em face do resultado estadual ou nacional das eleições e da busca por uma legenda mais favorável visando às eleições municipais. Já as migrações ocorridas no 3º ano são motivadas pela iminente renovação da própria Câmara. Os resultados aqui encontrados confirmam a previsão de Melo (idem) de que as migrações no 1º ano da 51ª legislatura iriam superar o total de 83 migrações registrado em 1995 (1º ano da legislatura anterior), bem como a tendência de migrações mais intensas no 1º e 3º anos do mandato. 10 Cadernos de Sociologia e Política As migrações por estado também foram pesquisadas. A Tabela 3 mostra como se distribuem as defecções dos deputados eleitos em 1998 por estado. Tabela 3 Defecções de Deputados Eleitos por Estado (1999-2003) Estados Nº de Nº de % de deputados defecções defecções eleitos Roraima 8 7 87,50 Acre 8 5 62,50 Paraíba 12 7 58,33 Mato Grosso 8 4 50,00 Rondônia 8 4 50,00 Alagoas 9 4 44,44 Rio de Janeiro 46 20 43,48 Amazonas 8 3 37,50 Amapá 8 3 37,50 Mato Grosso do Sul 8 3 37,50 Sergipe 8 3 37,50 Tocantins 8 3 37,50 Pernambuco 25 9 36,00 Paraná 30 10 33,33 Espírito Santo 10 3 30,00 Goiás 17 5 29,41 Maranhão 18 5 27,78 São Paulo 70 19 27,14 Bahia 39 10 25,64 Rio Grande do Norte 8 2 25,00 Ceará 22 5 22,73 Minas Gerais 53 12 22,64 Piauí 10 2 20,00 Rio Grande do Sul 31 4 12,90 Pará 17 2 11,76 Distrito Federal 8 Santa Catarina 16 Total 513 154 (*) (*) Foi incluído o deputado Hildebrando Pascoal, que abandonou o PFL e ficou sem partido até ser cassado. Fórum dos Alunos do IUPERJ 11 Comparando os resultados acima com os das legislaturas anteriores exibidos em Melo (1999), não se verifica uma tendência clara nas defecções por estado. Aqueles que apresentaram as maiores porcentagens de defecção nas últimas legislaturas foram Roraima, Acre e Rondônia; os estados com menor porcentagem de migração foram Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Distrito Federal. O estado com o maior número de deputados migrantes foi o Rio de Janeiro (20). Levando-se em conta os deputados que migraram mais de uma vez, conclui-se que o estado, sozinho, respondeu por 44 das 223 migrações (19,73%). Quanto às migrações por partido, a Tabela 4 fornece os seguintes dados: Tabela 4 Defecções de Deputados Eleitos por Partido (1999-2003) Partido Nº de Nº de % de deputados defecções defecções eleitos PRONA 1 1 100,00 PV 1 1 100,00 PST 1 1 100,00 PSC 2 2 100,00 PMN 2 2 100,00 PSD 3 3 100,00 PL 12 10 83,33 PDT 25 10 40,00 PTB 31 12 38,71 PPB 60 22 36,67 PFL 105 31 29,52 PSDB 99 29 29,29 PMDB 83 24 28,92 PSB 19 5 26,32 PT 58 1 1,72 PSL 1 PPS 3 PC do B 7 Total 513 154 (*) (*) Foi incluído o deputado Hildebrando Pascoal, que abandonou o PFL e ficou sem partido até ser cassado. 12 Cadernos de Sociologia e Política Verifica-se que seis partidos pequenos 2 , perderam todos os seus deputados, que buscaram partidos maiores; por outro lado, três legendas não perderam nenhum deputado. Também se confirma a tradicional fidelidade partidária do PT, do PPS (antigo PCB) e do PC do B. As cinco defecções do PSB ocorreram em Pernambuco (reduto político de Miguel Arraes), provavelmente, por questões relativas à entrada de Anthony Garotinho (então governador do Rio de Janeiro) no partido. Os dados da tabela de defecções por partido permitem verificar, igualmente, as tendências ideológicas das migrações. Nesse sentido, o que se constata é que os partidos que compõem o espectro ideológico de esquerda (PC do B, PPS e PT), à exceção do PDT – cujo índice de defecção é bastante elevado, apresentam níveis de defecção irrelevantes (ver Tabela 5). Tabela 5 Defecções e Adesões Totais por Partido (1999-2003) Partido3 PPB PFL PTB Pequenos de Direita Total/Direita PMDB PSDB Total/Centro PDT PT Pequenos de Esquerda Total/Esquerda Total Nº de defecções 26 38 16 46 126 33 40 73 11 1 12 24 223 % de defecções 11,66 17,04 7,17 20,63 56,50 14,80 17,94 32,74 4,93 0,45 5,38 10,76 100,00 Nº de adesões 15 27 26 62 130 33 33 66 1 3 23 27 223 % de adesões 6,73 12,11 11,66 27,80 58,30 14,80 14,80 29,60 0,45 1,35 10,31 12,11 100,00 Estendendo esta análise para os deputados que migraram mais de uma vez, verifica-se que o partido que mais se beneficiou com as migrações foi o PTB, que aumentou sua bancada em 10 deputados ao longo da legislatura, correspondendo a um crescimento de 32,26%. Já a maior Fórum dos Alunos do IUPERJ 13 redução de bancada foi sofrida pelo PDT (40%), com saldo negativo de 10 deputados. Já o PPB reduziu 18,33% e o PFL, 10,48% (11 deputados cada). Resta observar a direção das migrações, isto é, os partidos e blocos ideológicos de origem e de destino das trocas de legenda (ver Tabelas 6 e 7). Tabela 6 Partidos de Origem e de Destino das Migrações (1999-2003) Origem → PPB PFL PTB PMDB PSDB PDT PT Destino ↓ PPB PFL PTB Peq. Dir. PMDB PSDB PDT PT Peq. Esq. Peq. Dir. Peq. Esq. 3 4 3 11 2 3 5 7 6 7 8 5 4 6 4 1 1 2 5 4 24 3 7 1 2 4 4 7 12 4 6 6 6 10 6 1 1 4 3 3 1 1 3 1 - 2 3 1 2 2 2 Tabela 7 Blocos Ideológicos de Origem e de Destino das Migrações Origem Direita Centro Esquerda Total Destino Direita Centro Esquerda Total 73 (32,73%) 43 (19,28%) 10 (4,48%) 126 (56,50%) 45 (20,18%) 18 (8,07%) 10 (4,48%) 73 (32,73%) 12 (5,38%) 5 (2,24%) 7 (3,14%) 24 (10,76%) 130 (58,30%) 66 (29,60%) 27 (12,11%) 223 (100,00%) Observando-se os dados, constata-se a natureza ideológica das migrações partidárias. A direita é o campo ideológico que mais recebe adesões (58,30%), bem como o que mais sofre defecções (56,50%), corroborando a afirmação de Nicolau (1996a), Melo (2000) e Santos (2001) de que a 14 Cadernos de Sociologia e Política direita conhece uma taxa maior de migração partidária do que o centro e a esquerda. Das 126 migrações oriundas dos partidos de direita, 73 (57,93%) encaminharam-se para a própria direita e 43 (34,13%) para o centro, campo ideologicamente próximo. Apenas 10 (7,94%) se destinaram à esquerda, ou seja, foram poucos os deputados que cruzaram de um extremo a outro do espectro político. Das 73 migrações dos partidos de centro, 45 (61,64%) tiveram como destino os partidos de direita. Isto é, a direita foi o principal destino das migrações de centro. Os deputados de esquerda foram os que menos migraram, sendo responsáveis por apenas 10,76% do total de migrações. Contudo, suas migrações foram as mais incoerentes, pois na metade dos casos elas tiveram como destino partidos de direita. Cabe destacar que a incoerência das trocas originadas na esquerda se deve às exceções que o PDT e o PSB representam dentro desse campo ideológico: dos onze deputados que deixaram o PDT, seis foram para partidos de direita, dois para partidos de centro e apenas três para partidos de esquerda; das sete migrações do PSB, três destinaram-se a partidos de centro, dois a partidos de direita e dois a partidos da própria esquerda. Os altos índices de migração encontrados para o PDT e para o PSB, que perfazem 18 das 24 migrações efetuadas pela esquerda, revelam um grau de heterogeneidade em suas bancadas muito superior ao verificado entre os demais partidos de esquerda. Em suma, os dados aqui apresentados para a legislatura de 1999 a 2003 repetem os padrões do fenômeno da migração partidária já encontrados por Nicolau (1996a), Melo (2000) e Santos (2001): cerca de 30% dos deputados eleitos migraram; a maioria migrou uma única vez; as trocas de legenda foram mais intensas no 1º e no 3º anos da legislatura; os deputados de direita foram os que mais migraram, todavia mais coerentemente; e a esquerda migrou menos, mas sua migração foi mais incoerente. Fórum dos Alunos do I UPERJ 15 Conclui-se que a alteração da Câmara, ou seja, do sistema partidário parlamentar, afasta-se, à revelia do eleitor, do sistema partidário eleitoral, ou seja, do resultado das urnas. Isto é, caso o voto do eleitor tenha sido conferido a um candidato em conseqüência de sua filiação partidária na época das eleições, trata-se de uma distorção de sua vontade a alteração do perfil partidário da Câmara resultante das trocas individuais de legenda. Esta observação é feita por Olavo Brasil de Lima Junior: “[...] o conjunto de preferências manifestadas pelo eleitorado não se constitui no principal determinante da composição partidária do Congresso. Mecanismos outros se expressaram com tal intensidade que levaram o sistema partidário parlamentar a se afastar do sistema partidário eleitoral. Tais mecanismos incluem a criação de partidos no Congresso, por razões as mais diversas, sem que tivessem passado previamente pela aprovação das urnas, e a migração individual de parlamentares para partidos assim criados e para outros, que previamente se submeteram ao processo eleitoral” (1993:17). As trocas de partido durante o mandato já foram ressaltadas por vários autores, dentre eles Nicolau (1996a), Schmitt (1999), Santos (2001) e Melo (1999; 2000). De acordo com Nicolau, “[...] o que existe de singular na experiência brasileira do período 1985-1994 é a intensidade e a permanência destas mudanças, [...] e a existência de uma norma legal liberalizante não obriga os atores a se comportarem de maneira liberal. Essa proposição [...] sugeriria o seguinte raciocínio: uma legislação que faculta a livre troca de partidos poderia simplesmente ser ignorada pela elite política. Como vimos, tal não ocorreu” (1996b:65, 69-70). Resta, pois, descobrir os motivos para esse fenômeno, que já pode ser considerado persistente. Entre as respostas possíveis levantadas por estudiosos do tema, estão a busca do sucesso político e de um melhor posicionamento na Câmara; o fato de as regras do sistema partidário e eleitoral facilitarem as migrações; e a não-punição por parte dos eleitores nas urnas. Estes fatores são tidos como incentivos para a ação individual do parlamentar que troca de legenda sempre que necessário. Schmitt (1999) analisa na Câmara dos Deputados a relação existente entre migração partidária e as taxas de reapresentação e reeleição, 16 Cadernos de Sociologia e Política concluindo que as chances de um deputado concorrer à eleição seguinte aumentam se ele tiver migrado, mas o sucesso eleitoral, ou seja, as chances de reeleição diminuem para os deputados infiéis aos seus partidos de origem, existindo, então, um custo para a migração. Para ele, as evidências reforçam as interpretações que justificam “[...] a migração como uma estratégia do deputado para maximizar o seu espaço político, proporcionando-lhe a oportunidade de disputar um novo mandato em melhores condições. Por outro lado, a eficácia desta estratégia é comprometida pelas preferências dos eleitores e pelas regras do sistema eleitoral, de tal modo que os resultados eleitorais acabam por punir preferencialmente os deputados migrantes, não lhes concedendo um novo mandato, e favorecendo os que permaneceram fiéis aos seus partidos” (idem:145). Enfim, é necessário um estudo mais aprofundado do tema para se poder entender a extensão dos incentivos que, aparentemente, as regras eleitorais4 fornecem ao fenômeno da migração, já que os deputados poderiam simplesmente ignorá-las e continuar em suas legendas, bem como as razões dessa movimentação que parece não estar recuando, ao contrário, mantém uma margem de 30% nas últimas cinco legislaturas, tornando-se mais uma alternativa para a classe política, além de um sinal de fragilidade dos partidos enquanto instituição. (Recebido para publicação em outubro de 2003) Fórum dos Alunos do IUPERJ 17 Notas 1. Deputado ex-suplente é o que substituiu um deputado que se afastou do cargo. 2. Entende-se aqui como partidos pequenos aqueles que obtiveram menos de 5% de representação na Câmara. 3. A classificação de alguns partidos pequenos é problemática, porém o resultado das tabelas é pouco influenciado por essa incerteza. Os partidos foram agregados em blocos da seguinte forma: - Direita: PPB, PFL e PTB - Pequenos de direita: PHDBS, PL, P RONA, PRTB, PSC, PSD, PSDC, PSL, PST e PTN - Centro: PMDB e PSDB - Esquerda: PDT e PT - Pequenos de esquerda: PC do B, PMN, PPS, PSB e PV. 4. “Para a literatura especializada, a combinação entre migração partidária, listas abertas e coligações eleitorais configura um cenário desfavorável à consolidação de partidos, pois oferece incentivos para o individualismo e dificultaria a coordenação partidária da ação parlamentar” (Schmitt, 1999:128). 18 Cadernos de Sociologia e Política Referências Bibliográficas LIMA JUNIOR, Olavo Brasil de. (1993), Democracia e Instituições Políticas no Brasil dos Anos 80. São Paulo, Edições Loyola. MELO, Carlos Ranulfo Felix de. (1999), Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados (1985-1998). Tese de Doutorado, UFMG, Belo Horizonte. ___. (2000), “Partidos e Migração Partidária na Câmara dos Deputados”. Dados, vol. 43, nº 2. NICOLAU, Jairo Marconi. (1996a), “A Migração Partidária na Câmara dos Deputados (1991-1996)”. Monitor Público, ano 3, nº 10, Rio de Janeiro. ___. (1996b). Multipartidarismo e Democracia: Um Estudo sobre o Sistema Partidário Brasileiro (1985-94). Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas Editora. SANTOS, André Marenco dos. (2001), “Sedimentação de Lealdades Partidárias no Brasil: Tendências e Descompassos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, nº 45. SCHMITT, Rogério. (1999), “Migração Partidária e Reeleição na Câmara dos Deputados”. Novos Estudos CEBRAP, nº 54. Para a elaboração do banco de dados utilizado neste trabalho, foram consultadas as seguintes fontes: NICOLAU, Jairo Marconi. (2002), “Eleições 1998: Número de Cadeiras Obtidas pelos Partidos”. Dados Eleitorais do Brasil (1982-2002). Rio de Janeiro, IUPERJ. SECRETARIA GERAL DA CÂMARA. (2003), Quadro de Mudanças de Partido para a 51ª Legislatura. Brasília. TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. (1998), Deputados Federais Eleitos em 1998. Brasília. Fórum dos Alunos do I UPERJ 19 Glossário PC do B - Partido Comunista do Brasil PDT - Partido Democrático Trabalhista PFL - Partido da Frente Liberal PHDBS - Partido Humanista Democrático Brasil Solidariedade PL - Partido Liberal PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro PMN - Partido da Mobilização Nacional PPB - Partido Progressista Brasileiro PPS - Partido Popular Socialista PRONA - Partido de Reedificação da Ordem Nacional PRTB - Partido Renovador Trabalhista Brasileiro PSB - Partido Socialista Brasileiro PSC - Partido Social Cristão PSD - Partido Social Democrático PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira PSDC - Partido Social Democrata Cristão PSL - Partido Social Liberal PST - Partido Social Trabalhista PT - Partido dos Trabalhadores PTB - Partido Trabalhista Brasileiro PTN - Partido Trabalhista Nacional PV - Partido Verde 20 Cadernos de Sociologia e Política Da Transcendência ao Telos Político da Filosofia da História: Hobbes “à luz” de Descartes BRUNO SCIBERRAS DE CARVALHO* Resumo O artigo sugere que a fundamentação epistemológica hobbesiana não é perfeitamente compreensível sem o referencial teórico cartesiano. O texto apresenta uma exposição concisa dos argumentos centrais de Descartes, procurando focalizar a distinção entre a dimensão racional e os sentidos. Além disso, busca demonstrar as conseqüências de tal epistemologia sobre o pensamento de Hobbes, assim como os problemas apresentados por este nos campos do pensamento e da prática política. Por fim, é sugerido que resulta da filosofia de ambos os autores uma filosofia da história que tende a definir um sentido temporal proclamado como racional, o que acarreta fortes conseqüências à política. Palavras-chave: teoria política; racionalismo; filosofia da história * Doutorando em ciência política no IUPERJ. E-mail: [email protected]. Fórum dos Alunos do I UPERJ Bruno.pm6 1 27/09/04, 15:40 21 Dentre as diversas características expostas pela história da presunção da racionalidade humana, a definição de “verdades”, contrariando disputas e conflitos filosóficos, constitui o fato fundamental. Para o pensamento moderno, a elaboração teórica do racionalismo do século XVII representa um paradigma essencial desta presunção, o que acarreta fortes conseqüências ao campo da política. No caminho teórico seguido por Descartes à descoberta de suas “idéias claras e distintas”, transparece um conhecimento fundado na conjunção das dimensões epistemológica e metafísica, em que o objetivo primordial é a descoberta de um método purificado das instâncias ordinárias. Da mesma forma, a teoria hobbesiana pressupõe forte ênfase nas qualidades racionais humanas, sustentando demonstrações tomadas como verdades inadiáveis. Em uma época em que o ceticismo e o relativismo alcançavam grande influência, o racionalismo de ambos os autores circunscrevia o campo político em torno de um modelo que tinha a ordem e a previsibilidade como dimensões mais valorizadas. O argumento aqui exposto sugere que a fundamentação epistemológica cartesiana fornece os subsídios para a justificação da ontologia política definida por Hobbes, ou melhor, que a objetividade e a filosofia da história hobbesiana não são perfeitamente compreensíveis sem o referencial da racionalidade cartesiana. A fim de apresentar tal argumento, parto da configuração da epistemologia exposta no raciocínio cartesiano, procurando focalizar a construção do paradigma essencial que distingue a dimensão racional dos sentidos. Posteriormente, por meio de uma análise da filosofia de Hobbes, delineio as conseqüências efetivamente políticas de tal epistemologia, demonstrando as dificuldades que a utopia hobbesiana enfrenta em face de um mundo complexo. Por fim, concluo que o referencial político resultante da filosofia de ambos os autores é baseado em uma desqualificação da ação humana em função de uma filosofia da história que define a priori um sentido temporal proclamado como natural e racional. Solipsismo e Verdade Cartesiana: A Experiência Ordinária enquanto Ilusão Descartes assumiu como principal objetivo de seu projeto filosófico a crítica da transposição dos problemas que a Reforma havia colocado 22 Bruno.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 2 27/09/04, 15:40 no terreno da religião para a esfera da ciência, o que reduzia qualquer pensamento à mera opinião. Defendendo o solipsismo como caminho para distinguir o mundo fenomênico de uma ontologia objetiva, Descartes declara como ponto de partida filosófico tomar todos os argumentos elaborados até então como falsos, “resolvendo-me a não mais procurar outra ciência, além daquela que se poderia achar em mim próprio [...] e assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos erros que podem ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão” (1973a:41). O paradigma estaria localizado nas ciências matemáticas, pois, “entre todos os que precedentemente buscaram a verdade nas ciências, só os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas razões certas e evidentes [...]” (idem:47). A idéia de método foi fundamental para a sistematização da ciência cartesiana, que desenvolvia uma abordagem singular que relacionava a metodologia a qualidades de eficiência e economia de esforço mental. O método aparecia como um atalho, possibilitando um caminho sem erros que alcançava, em seu limite, a verdade transcendente. Descartes procurava contrapor-se diretamente à argumentação escolástica, tentando demonstrar que sua fundamentação em torno de quatro princípios simples era “mais natural” que os postulados estabelecidos anteriormente a partir de meras probabilidades. O primeiro princípio defendia o acolhimento restrito de coisas verdadeiras que não possibilitassem nenhuma dúvida, ou seja, que fossem claras e evidentes. O segundo sustentava o parcelamento de todas as dificuldades. O terceiro, a organização dos pensamentos, partindo dos mais simples até alcançar os “pensamentos compostos”. Finalmente, o quarto princípio estaria fundado nas revisões de todo o quadro do pensamento. Um ponto fundamental é que a verificação da verdade estaria metodologicamente articulada à dúvida. Como lembra Popkin (1979:177), o método cartesiano de certificação de certezas apresentase como um esforço sistemático de aplicação de dúvidas, que procurava desenvolver ortodoxamente, em um primeiro momento, todos os caracteres analíticos do ceticismo. O argumento central de Descartes sobre a desconfiança para com o mundo ordinário funda-se no raciocínio Fórum dos Alunos do IUPERJ Bruno.pm6 3 27/09/04, 15:40 23 cético sobre as ilusões dos sentidos. A postulação de que toda experiência pudesse ser parte de um sonho, ou mesmo o sonho ser a realidade efetiva, possibilitava a Descartes duvidar de todos os objetos concretos e das sensações derivadas. No mesmo sentido, a incorporação do problema do malin génie (deus enganador), que enganaria os homens e distorceria os fatos sistematicamente, revela a argumentação cética levada ao seu limite. Contudo, a idéia do deus enganador é apenas um esforço metodológico provisório para a destituição das opiniões ordinárias 1. O ponto fundamental que distingue a metodologia cartesiana da cética é sua orientação a um solipsismo contemplativo, em vez de uma “entrega” à vida comum. Contrariando o pressuposto cético de que todas as afirmações devem ser tomadas apenas como “crenças”, Descartes tem como objetivo encontrar algum fato que seja indubitável. A oposição entre a experiência e a racionalidade surge quando o argumento do cogito postula, mesmo na hipótese de um deus enganador, que a contestação de todas as opiniões pressupõe, necessariamente, a verdade irrefutável da existência de um ser e seu pensamento. Assim, seria impossível negar a realidade de um espírito, mesmo sem a evidência concreta da presença de algum corpo no mundo, pois o homem cartesiano é, efetivamente, “uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material” (Descartes, 1973a:55). A afirmação “penso, logo existo” possibilitava a Descartes o princípio medular para a negação da argumentação cética e o alicerce de uma verdade essencial que certifica o homem da possibilidade, eminentemente política, de se “tornar como que senhores e possuidores da natureza” (idem:71). A distinção entre corpo e alma viabilizava, sobretudo, a elaboração de uma oposição entre aparência e essência. A percepção reflexiva, nesse caso, não seria “[...] uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação [...], mas somente uma inspeção do espírito, que pode ser imperfeita e confusa, como era antes, ou clara e distinta, como é presentemente, conforme minha atenção se dirija mais ou menos às coisas que existem nela e das quais é composta” (idem, 1973b:105). 24 Bruno.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 4 27/09/04, 15:40 O único limite ao conhecimento racional seria a possibilidade do erro, pois a compreensão seria finita e limitada pela linguagem comum. Beyssade (1991:45-46) chama a atenção para a distinção que Descartes propõe entre vontade e compreensão: enquanto a primeira aparece fora do contexto das idéias claras e distintas, a última requer um entendimento penoso. O erro apresentaria um caráter irrevogável, pois seria impossível a separação da alma do corpo que a mantém, assim como uma independência da alma diante das paixões. Esta ligação fundamentaria as exigências das paixões sobre os nossos espíritos, negando o advento espontâneo das idéias claras e distintas. É fundamental perceber que o argumento cartesiano da separação entre alma e corpo depende de um postulado teológico. A alma pressupõe alguma dimensão de imortalidade e um ser portador de perfeição, em oposição ao caráter perecível e finito das instâncias materiais das quais o corpo humano depende. As idéias sobre “substâncias” apresentariam mais realidade objetiva que as idéias que representam sensorialmente coisas materiais, prescrevendo um caminho de perfeição (ou realidade objetiva) que alcança Deus em seus limites. Assim, o homem cartesiano aparece, enquanto finito e dotado de carência, entre a perfeição e o nada, pois “[...] quando penso apenas em Deus, não descubro em mim nenhuma causa de erro ou de falsidade; mas em seguida, retornando a mim, a experiência me ensina que estou, não obstante, sujeito a uma infinidade de erros e, ao procurar de mais perto a causa deles, noto [...] uma certa idéia negativa do nada [...]” (Descartes, 1973b:124). Por outro lado, a verdade aparece como “sementes [...] que existem naturalmente em nossas almas” (idem, 1973a:72), de forma que ela não deve ser produzida mas descoberta, pois “É certo que não encontro menos [...] a idéia de um ser soberanamente perfeito, do que a idéia de qualquer figura ou de qualquer número que seja” (idem, 1973b:132). Aqui, cabe notar que a argumentação cartesiana propõe uma refutação do fideísmo tão influente em sua época, cujos postulados relacionavam a dúvida ao encontro de um conhecimento verdadeiro provindo de Deus por intermédio da graça. Descartes, diferentemente, procura alguma dignidade no conhecimento humano, articulando a busca da Fórum dos Alunos do IUPERJ Bruno.pm6 5 27/09/04, 15:40 25 verdade a razões especificamente filosóficas, pois a graça divina não ocorreria misteriosamente em um tempo e espaço restritos, mas seria alcançada por um esforço lógico em perceber as idéias inatas e verdadeiras inscritas em todos os homens. A sistematização da oposição cartesiana entre uma essência racional e uma aparência fundada nos sentidos transparece também na epistemologia hobbesiana. Contudo, a certificação cartesiana de uma verdade contraposta ao mundo fenomênico aparece em Hobbes como um fato não problematizado, tanto é que ele não reproduz o debate com o ceticismo. A contraposição entre sentido e razão é elaborada diretamente, de maneira que um conhecimento exato sobre os fatos deveria rejeitar as imaginações espontâneas e a memória. Para Hobbes, a sensação “nada mais é do que a ilusão originária, causada (como disse) pela pressão, isto é, pelo movimento das coisas exteriores nos nossos olhos, ouvidos e outros órgãos a isso determinados” (1997:32). Hobbes e a Política: Os “Problemas” da Razão vis-à-vis o Mundo Ordinário Da mesma forma que Descartes, Hobbes enfatizava a necessidade de se dirigir à descoberta dos elementos mais simples e gerais articulados em torno de princípios primários. A finalidade científica seria a certificação de regularidades naturais, observáveis empiricamente a partir de uma teoria da causalidade. Hobbes argumenta que a própria linguagem ordinária já possibilitaria naturalmente a verificação de causalidades pela imposição de nomes, que registram relações de causa e efeito entre os fatos. O problema seriam os abusos a que este vocabulário estaria exposto, pois seus conceitos se baseariam em significações inconstantes, ou seja, em metáforas qualificadas a partir da memória. Cabe lembrar que Hobbes sustenta que a falibilidade da linguagem humana foi iniciada na Torre de Babel, quando os homens rejeitaram o idioma enviado por Deus, sendo punidos com um sistema de expressão que obedecia somente aos diferenciados sentidos humanos. Dada a impossibilidade de uma correspondência perfeita entre objeto e linguagem ordinária, Hobbes defende que seria essencial a criação de uma nova base lingüística dirigida novamente à essência universal dos fatos. 26 Bruno.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 6 27/09/04, 15:40 Para sistematizar um conhecimento verdadeiro, o método hobbesiano teria, cartesianamente, a matemática como paradigma. A razão “nada mais é do que cálculo (isto é, adição e subtração) das conseqüências de nomes gerais estabelecidos para marcar e significar nossos pensamentos” (idem:51-52). A partir de uma teoria e metodologia da causalidade, Hobbes defende que a finalidade da razão seria estabelecer a verdade sobre as conseqüências de todos os nomes até o estabelecimento de regras gerais, os teoremas. A razão não nasceria espontaneamente nos homens, como a sensação e a memória, mas poderia ser adquirida com esforço, primeiramente “[...] através de uma adequada imposição de nomes, e em segundo lugar através de um método bom e ordenado de passar dos elementos, que são nomes, a asserções feitas por conexão de um deles com o outro [...] até chegarmos a um conhecimento de todas as conseqüências de nomes referentes ao assunto em questão, e é a isto que os homens chamam ciência” (idem:54). É importante perceber que a ciência possui aqui uma proposta claramente técnica, que refuta a sensação e a memória em prol de um conhecimento que estabelece uma cadeia irrefutável entre meios e fins, “porque quando vemos como qualquer coisa acontece, devido a que causas, e por que maneira, quando causas semelhantes vierem ao nosso poder, sabemos como fazê-las produzir os mesmos efeitos” (ibidem). Entretanto, a partir desse momento, Hobbes inicia uma argumentação prudente em que os postulados técnicos da sua racionalidade se contrapõem à complexidade dos assuntos humanos. Assim, transparece em sua análise, ainda que de forma particular, os mesmos problemas detectados por Descartes na relação entre razão e prática. A diferença entre os autores restringe-se ao tratamento exclusivamente epistemológico de Descartes em lugar da análise eminentemente política de Hobbes. Admitindo o caráter irrevogável do erro, Descartes (1973b:124) declara que a condição humana é naturalmente imperfeita, fundada entre o “nada” da vida ordinária e a perfeição de Deus. Nesse sentido, Descartes afirma que durante o trabalho no novo “método” as antigas opiniões não deveriam ser abandonadas, uma vez que os indivíduos não poderiam ficar irresolutos em suas ações mesmo que a razão os obrigasse a uma análise prolongada. Assim, Descartes defendia uma “moralidade Fórum dos Alunos do IUPERJ Bruno.pm6 7 27/09/04, 15:40 27 provisória” que, baseada na obediência às leis civis e às opiniões mais moderadas, garantisse uma vida desvinculada de uma análise penosa e politicamente perigosa. Como Beyssade (1991:57-64) expõe, a filosofia cartesiana parece se render à complexidade humana. A ligação da alma aos corpos torna a moral um outro objeto de saber, distinto de um conhecimento exato. Por outro lado, enfatizando a utopia de um arranjo social em que a ciência reformasse metodicamente as instituições ordinárias, as verdades não poderiam ser mantidas “ocultas sem pecar grandemente contra a lei que nos obriga a procurar, no que depende de nós, o bem geral de todos os homens” (Descartes, 1973a:71). Os mesmos problemas representados na contradição entre a razão e a complexidade do mundo ordinário transparecem em Hobbes, de forma que a necessidade política premente era a imposição de nomes, vulgares ou não, que restringissem a liberdade de opiniões sobre assuntos públicos. Cabe lembrar que, para Hobbes, a causa fundamental dos distúrbios na Inglaterra de seu tempo estava diretamente relacionada à desestruturação simbólica que o puritanismo acarretou. Em Behemoth, Hobbes (2001) demonstra como o puritanismo originou profunda crise da autoridade centralizada quando defendia a instância do juízo privado em contraposição à soberania constituída. O pecado original dos homens teria sido a presunção de julgar, com pretensão pública, o bem e o mal. O estado de natureza hobbesiano consistiria exatamente na confusão de nomes, em que todos os homens tentariam defini-los de acordo com sua concepção particular. No entender de Hobbes, uma sociedade de indivíduos que não possuíssem e não almejassem ciência teria melhores condições que uma baseada em racionalidade incorreta e composta de regras absurdas. A fim de eliminar o quadro social em que a confusão de nomes imperava, haveria necessidade de uma instância política soberana e centralizadora que definisse e socializasse objetivamente os parâmetros morais. Assim, ainda que em um plano idealizado Hobbes defendesse a manutenção de uma comunidade política por meio de regras científicas, o problema fundamental seria a diferença entre as instâncias da filosofia e da prática política ordinária, pois a verdade “[...] tem estado até o presente coberta e guardada sob uma nuvem de adversários, a qual nenhuma reputação pessoal é capaz de dissipar 28 Bruno.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 8 27/09/04, 15:40 sem a autoridade das universidades. No entanto, todos esses pregadores que disseram o contrário provieram das universidades, as quais são para esta nação o que o cavalo de madeira foi para os troianos” (idem:78). Dada a inviabilidade, em um primeiro momento, de impor a ciência verdadeira sobre todos os homens, a virtude dos súditos deveria restringirse à obediência às leis da república, assim como a virtude do soberano nada mais seria que a manutenção da paz doméstica. Isto porque a prescrição fundamental da racionalidade política – a relação inexorável de causa e efeito entre pluralidade simbólica e desordem social – necessitava ser plenamente assegurada, ainda que outros requisitos propostos pela razão não pudessem ser institucionalizados. O próprio conceito de justiça se definiria pela obediência primária às leis concretas, sem referência direta ao conteúdo das leis civis, pois, “inversamente, nada mais é injustiça e iniqüidade, senão o que é contrário à lei” (idem:83). Como lembra Watkins (1973:113-114), ao contrário do contrato lockeano posterior, a teoria hobbesiana exclui a possibilidade da definição moral de uma lei civil a partir de sua qualidade justa ou injusta, pois sua definição de soberania pressupõe a sistematização de um campo simbólico que exclui qualificações morais dentro do espaço público. A virtude das ações deveria ser avaliada exclusivamente de acordo com sua utilidade à República. Admitindo a falibilidade de seus “personagens” em satisfazer o método de conhecimento da verdade que defendiam, a unidade do campo simbólico ordinário passa a ser o aspecto fundamental de uma ordem política estável, ainda que a generalização de uma racionalidade transcendente aos homens fosse verdadeiramente a utopia hobbesiana e cartesiana. Por outro lado, ambos os autores instituíram os germes epistemológicos que outorgavam aos homens o sonho de um conhecimento universal. O que permanece é uma filosofia política baseada em relações explícitas entre um certo saber e o poder. Nesse sentido, os dois autores passam a definir um paradigma reflexivo que influenciará fortemente o pensamento moderno, referenciado principalmente no pressuposto que utiliza a história e a política como campo da experimentação de uma razão natural. Fórum dos Alunos do IUPERJ Bruno.pm6 9 27/09/04, 15:40 29 Conclusão: A Política como História ou Filosofia da História? Ao mesmo tempo que tanto a filosofia de Hobbes quanto a de Descartes valorizam politicamente a utopia de uma dimensão exterior ao mundo fenomênico, ambas tendem a postular um sentido para a história, denotando uma teleologia que verifica a direção ou não dos homens aos caminhos prescritos pela razão. Mais propriamente, a história é transformada em filosofia da história, de forma que o movimento temporal é traduzido em procedimentos científicos articulados aos proclamados fatores propostos pela natureza. A confusão ontológica entre história e natureza é demonstrada por Hannah Arendt (1972:69-126), que define o momento fundador da história racionalizada quando o mundo cristão inverteu os padrões ontológicos gregos que afirmavam o caráter cíclico do mundo. Exemplificada claramente nos trabalhos de Descartes e Hobbes, o homem passa a ser visto como prisioneiro de seus sentidos, e somente um exame minucioso dos movimentos históricos, tomados como experimentos científicos, poderia assegurar ao homem um caminho certo e racional. Quando transposto a uma dimensão temporal, o racionalismo de Descartes articula-se diretamente à concepção histórica de Hobbes, em que o interesse fundamental não são os registros do passado, mas a sistematização de meios que expliquem uma determinada direção (ver Lessa, s/d)2 . Nesse sentido, é significativa a forma de relato histórico que Hobbes apresenta em Behemoth, em que um personagem mais velho estrutura as conexões causais a um personagem mais jovem, enfatizando a distinção entre a confusão histórica e a racionalidade filosófica. O essencial era se contrapor a uma narrativa histórica plural que, fundada no sentimento da memória, se baseava na especificidade dos fatos sem referência a uma continuidade temporal. O importante é perceber como a dimensão temporal que se funda a partir do racionalismo de Descartes e Hobbes pressupõe uma concepção de processo que renega a historiografia ideográfica, de forma que nenhum evento é significativo em sua especificidade se não estiver articulado à direção demarcada cientificamente. Como lembra Arendt (idem), no momento em que renega a particularidade dos eventos e refuta a experiência ordinária, a filosofia da história pressupõe uma 30 Bruno.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 10 27/09/04, 15:40 forte alienação política. Recusando sistematicamente os sentidos, Descartes e Hobbes problematizam a relação direta e simples entre o homem e o mundo, limitando-a em torno de paradigmas que refutam a experiência mundana como fonte digna de conhecimento. O racionalismo do século XVII articulou-se a uma concepção da história que dignificava somente o tipo de ação secularizada que estivesse de acordo com os ditames que a razão definia como progresso, valorizando o ideal de um processo temporal. A transposição dos postulados de racionalidade para o campo da história e da política é o fundamento das conseqüências que a filosofia de Descartes e Hobbes prescreveu à teoria social contemporânea. Na medida em que pressupõem uma dimensão circunscrita de verdade, os racionalismos cartesiano e hobbesiano nutrem-se de uma concepção que tende a transformar a ciência em técnica. Como exposto por Wolin (1969:1.064), a ênfase no método racional projeta a intenção de que o mundo seja configurado de maneira que a técnica seja efetiva em estabelecer regularidades prescritas a priori. Como apontado por Koselleck (2000)3 , o que se sugere aqui é a apresentação da hipocrisia e do perigo de teorias que se propõem a resolver a complexidade do âmbito social a partir de pressupostos naturais e indubitáveis baseados em elaborações não evidentes que partem de uma razão anterior ao mundo fenomênico. Em contraposição a essa direção, enfatizo a possibilidade de uma racionalidade polêmica contrapondo-se à razão técnica que as ontologias cartesiana e hobbesiana potencialmente prescrevem. Nesse sentido, talvez fosse melhor focalizar os problemas expostos por ambos os autores sobre a complexidade do mundo ordinário, em detrimento de suas utopias racionalizantes. A conseqüência principal é definir a dimensão histórica como campo aberto à reflexividade e à ação política, problematizando qualquer filosofia da história que tenda a retirar do homem a capacidade de se movimentar em direção a uma escolha autônoma. Fundamentalmente, a crítica ao racionalismo técnico deve sistematizar a filosofia como política, impossibilitando a identificação da filosofia como história. (Recebido para publicação em outubro de 2003) Fórum dos Alunos do IUPERJ Bruno.pm6 11 27/09/04, 15:40 31 Notas 1. Descartes refuta posteriormente este argumento sem grandes dificuldades. Chega mesmo a falar de um auto-engano momentâneo (ver Descartes, 1973b:96). 2. Ver Lessa. Além da referência ao ceticismo, o autor lembra as diferenças efetivas entre a história hobbesiana e a recomendação de Maquiavel em ter a história acidental, baseada na fortuna, como grande paradigma cognitivo. 3. O argumento central de Koselleck demonstra como a definição de uma filosofia da história no século XVIII assumiu uma poderosa função histórica que legitimava a crítica dos agentes burgueses — fundada “privadamente” sob o véu de uma instância despolitizada — ao antigo sistema absolutista. Referências Bibliográficas ARENDT, Hannah. (1972), Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Ed. Perspectiva. BEYSSADE, Michelle. (1991), Descartes. Lisboa, Edições 70. DESCARTES, René. (1973a), Discurso do Método. São Paulo, Abril Cultural, Coleção Os Pensadores. ___. (1973b), Meditações. São Paulo, Abril Cultural, Coleção Os Pensadores. HOBBES, Thomas. (1997), Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo, Nova Cultural. ___. (2001), Behemoth ou o Longo Parlamento. Belo Horizonte, Editora UFMG. KOSELLECK, Reinhart. (2000), Crítica e Crise: Contribuição à Sociogênese da Sociedade Burguesa. Rio de Janeiro, Contraponto/ Eduerj. 32 Bruno.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 12 27/09/04, 15:40 LESSA, Renato. (s/d), Uma História Hobbesiana. Manuscrito. POPKIN, Richard. (1979), The History of Scepticism from Erasmus to Spinoza. Berkeley, University of California Press. WATKINS, J. W. N. (1973), Hobbes’s System of Ideas. London, Hutchinson University Library. WOLIN, Sheldon. (1969), “Political Theory as a Vocation”. The American Political Science Review, vol. LXIII, nº 4, pp. 1.062-1.082. Fórum dos Alunos do IUPERJ Bruno.pm6 13 27/09/04, 15:40 33 LAmour comme Illustration de Monter du Juridique* CORENTIN HECQUET** PIERRE CAUSSIN JÉRÔME DE C UYPER Resumo O livro Amor como Paixão: Codificação da Intimidade, de Niklas Luhmann, permite (re)pensar o amor hoje. Para podermos fazer isso, devemos reformular a quarta etapa de N. Luhmann, o que possibilita uma reflexão mais ampla sobre a democracia − particularmente na Europa. Para tal, nos apoiamos na tese do desencantamento do mundo desenvolvido, de Marcel Gauchet, nos focalizando na passagem da homogeneização à autonomização das esferas e sua articulação. Defendemos a tese da juridificação da sociedade. Esse desvio pela democracia possibilita a volta à questão do impacto do fenômeno de autonomização e juridificação sobre a esfera do amor. Palavras-chave: Niklas Luhmann; amor; juridificação * Este artigo é uma adaptação do nosso trabalho apresentado no curso de Sociologia da Família ministrado pelo prof. Jacques Marquet na Universidade Católica de Louvain (UCL), Bélgica. ** Corentin Hecquet é mestrando em sociologia no IUPERJ . E-mail: [email protected]; Pierre Caussin é sociólogo, especialista em administração de eventos culturais e Jérôme De Cuyper é mestrando em arte moderna e contemporânea no Centro de Cultura Casa Lamm, México. Fórum dos Alunos do I UPERJ 35 Introduction Le choix de traiter de Niklas Luhmann provient principalement de lintérêt que nous portons tous trois aux thèses de Jean-Marie Lacrosse1. Ce dernier fait usage des études de N. Luhmann pour appliquer la théorie principale de Marcel Gauchet2: le désenchantement du monde. Lamour est un domaine qui, comme beaucoup dautres, sest progressivement émancipé de la tradition pour finalement ne plus faire référence quà lui-même. Le livre de N. Luhmann (1927-1998) dont nous partons se nomme LAmour comme Passion: De la Codification de lIntimité. Sous ce titre se cache la volonté de comprendre les mécanismes qui régulent les sensations et les comportements amoureux. Ceux-ci sexpriment à travers la sémantique, qui constitue un code. Lapproche de lamour proposée par N. Luhmann est double: dune part déceler les codes amoureux; dautre part les saisir dans leur évolution et spécificité historique. Notre parcours consite á comprendre lévolution du code amoureux selon N. Luhmann. Par la suite, nous proposerons une alternative à lanalyse contemporaine de lamour que propose N. Luhmann, lélément central de notre propre interprétation est la non prise en compte de lévincement de la religion comme modèle régulateur de la société. Pour expliciter cette erreur et développer notre propre description contemporaine, nous recourrons à des auteurs épars et divers que nous essayerons dagencer dans un ordre que nous jugeons pertinent. Cette alternative sest établie autour de trois questions: la question de lamour, la question du mariage et celle de lautonomie. LÉvolution de lAmour N. Luhmann opère un découpage de la vie sociale en différentes sphères dactivités, dans le cadre de ce systémisme, il définit lamour comme le code de la sphère intime. Sur base des constats et considérations quil pose sur notre présent, il analyse les causes de cette situation en proposant une analyse sémantique des codes, des mots qui depuis le Haut MoyenAge servent à exprimer lamour. Lamour courtois est le point de départ 36 Cadernos de Sociologia e Política de son analyse. La métaphore qui rend le mieux compte de cette période est le jeu damour unissant le chevalier à sa noble Dame. Celle-ci est lobjet dune forte idéalisation et le fidèle serviteur nest en mesure de prendre part à cette passion passive qui lui est offerte que par la raison. Le rapport de lamour idéal à la morale est évident. Cette étape rend compte de la forte religiosité chrétienne dont le Moyen-Age était encore imbibé. Cependant, suite au processus daristocratisation, lamour se transforme en amour galant. Lamour est transposé dans le registre de limagination, il commence doucement à prendre ses distances vis à vis de la morale et se caractérise par lexcès, la déraison. La passion devient active et des problèmes se posent: la relation amour/plaisir, amour/amitié, amour/ raison. La perdifférenciation à débuté. Dans un troisième moment, lauteur introduit lamour romantique, symbole de lintégration du mariage dans la sphère intime. Le 18ème siècle inaugure lachèvement du processus de perdifférenciation, la sphère de lintimité est maintenant autonome, auto-référentielle et réflexive. Lauteur termine en cherchant à comprendre la crise actuelle que traverse la sphère intime, totalement perdifférenciée et autonome. La complexification et lindividualisation rendent beaucoup plus difficile la constitution dun code sémantique stable. Les individus recherchent, selon N. Luhmann, au travers de leurs relations intimes, à confirmer la vision de leur vision du monde. Lindividu cherche une validation de la présentation de soi-même, et ce rapport amoureux serait constitutif de notre identité. Lauteur évoque à cette fin le concept dinterpénétration inter-humaines, où les individus face à la complexité du monde environnant choisissent dapprofondir ou pas certaines relations sociales. Notre société est alors caractérisée par une impersonnalisation forte, mais aussi par des possibilités dhyper-personnalisation. Le trame générale de cet ouvrage nous permet dentrevoir, dun point de vue global, la progressive distanciation de la sphère intime vis à vis de la morale, représentée par la présence tout aussi décroissante de la Fórum dos Alunos do I UPERJ 37 religion chrétienne. Lamour, au départ enchaîné aux sphères religieuses et politiques, se constitue progressivement comme fin en soi. Voilà ce que nous permet de comprendre le processus de perdifférenciation intégré dans le cadre dune systématisation de la réalité sociale en différentes sphères dactivités. Toutefois, la richesse méthodologique et conceptuelle déployée par lauteur souffre parfois dune relative complexité, ce qui entraîne le lecteur à ne plus percevoir la clarté des analyses proposées. Par ailleurs, la trame générale ainsi évoquée et analysée, nous semble parfois se contenter dune facile perspective évolutionniste. De plus, la quatrième étape analysée par lauteur nous semble incomplète, N. Luhmann nintègre pas, pensons-nous, certains éléments de réflexions qui seraient à même de mieux appréhender la complexe réalité sociale actuelle. Cest pourquoi nous souhaiterions argumenter notre démarche dans le cadre dune re-formulation de la situation actuelle. Ceci constitue lobjet de notre prochain point. La Quatrième Étape Revisitée Nous avons décidé de suivre deux axes de réflexion critique. Dune part, selon nous, la partie sur la période contemporaine (la quatrième étape) est incomplète. Lépoque pendant laquelle cet ouvrage (1982) a été élaboré navait peut-être pas encore dévoilé pleinement les nouvelles composantes de lamour. Nous tenterons de mettre en évidence les divers points faibles de la lecture proposée par N. Luhmann en comparant ses hypothèses avec des éléments contemporains de la réalité amoureuse. Dautre part, le parcours que N. Luhmann propose de la construction de la modernité occidentale est développée à laide du concept de différentiation des systèmes. La situation de perdifférentiation à laquelle aboutit notre époque nest pas pleinement convaincante. Si la situation de désarticulation actuelle décrite par N. Luhmann ne nous suffit pas cest quil oublie dapprofondir un élément pourtant constitutif de lOccident: la religion. Nous utiliserons pour ce faire les hypothèses proposées par Marcel Gauchet et Jean-Marie Lacrosse. Ces auteurs travaillent sur la société contemporaine à laide du concept de désenchantement du monde. 38 Cadernos de Sociologia e Política Compléments sur lépoque actuelle La lecture du roman Les Particules Élémentaires de Michel Houellebecq (1998) nous permet de comparer les diverses hypothèses avancées par N. Luhmann sur la réalité amoureuse à lépoque contemporaine. Lauteur développe la thèse de la libération des murs et de lenvie générale de profiter des plaisirs du sexe. En outre, cet ouvrage nous permet de dénoncer la difficulté de vivre dans une société où les sphères dactivités sociales sont différenciées. Toutefois, la lecture du texte de Paul Yonnet (2000:206) nous permet de réfuter cette hypothèse, une corrélation entre une plus grande présence du sexe et une plus large pratique sexuelle ne peut-être établit. Lauteur parle dérotisation compulsive des murs (idem:211). Pour ce faire, il utilise deux enquêtes: dune part, le R apport Simon sur le Comportement Sexuel des Français de 1970 et dautre part l Analyse des Comportements Sexuels des Français de 1991-1992 (ibidem). La comparaison de celles-ci lui permet de conclure que la pratique sexuelle a diminué en France. En fin de compte, une atmosphère dérotisation compulsive des murs na pas eu lieu: [ ] dans la liberté sexuelle, lindividu moderne se libère bien de quelque chose, mais cest du sexe, non de la morale (Yonnet, 2000:215). La quatrième étape revisitée Il nous semble que, la quatrième étape est celle du sentiment. Actuellement, lamour ça se vit, ça ne se dit pas. Du fait que nous ne pouvons pas en parler de manière directe, nous labordons par le sentiment. Etre amoureux, cest partager une partie de soi avec un autre individu. Mais quadvient-il de lamour, de ce partage une fois que lacte sexuel sautonomise? Quen est-il une fois que les médias utilise cette intimité pour séduire, pour vendre? A notre époque, deux éléments semblent pouvoir être distingués: lamour romantique et lamour comme mode de vie à deux. Dans son ouvrage sur lamour passion Francesco Alberoni (1998) traite dun amour fusion qui permet à un homme et une femme de partir à Fórum dos Alunos do IUPERJ 39 deux et de finir à deux. Dans une telle perspective, la durabilité du couple se teste facilement: si le couple se maintient, cela prouve quil sagit dun véritable amour. Ce modèle dinterprétation ne semble pas pouvoir lire la réalité amoureuse actuelle. Toutefois, lamour romantique, comme nous lavons fait remarquer, semble encore être un modèle de représentation dominant. Lamour fusion est selon nous un idéal encore dominant en Occident. Le second élément que nous voudrions mettre en évidence correspond plus à la réalité amoureuse contemporaine et rejoint ainsi en partie les hypothèses développées par N. Luhmann et décrite par M. Houellebecq. Cette deuxième composante a été travaillée par Anthony Giddens (1993) et Serge Chaumier (1999). Leur approche remet en question celle de F. Alberoni sur deux plans différents. Pour A. Giddens, les êtres cherchent avant tout à être heureux ensemble. La difficulté actuelle, soulignée par N. Luhmann, est dêtre satisfait de sa relation avec lautre. Etant donné que les individus sont réflexifs, ils prennent dès lors beaucoup de temps pour réfléchir sur leurs relations intimes. Pour S. Chaumier, lidée de durabilité de F. Alberoni que A. Giddens réfute ne doit pas être exclue mais repensée. Selon ce dernier, les exigences de la société (dans le sens dun idéal) sont trop lourdes et amènent beaucoup de relations intimes à se défaire. Si nous nous résumons, en terme didéal, la théorie de F. Alberoni va encore perdurer longtemps, mais en termes pratiques, la théorie de A. Giddens et de S. Chaumier sont très proches de la réalité. La question du mariage Une fois que lamour est établi entre deux êtres, comment est-il contractualisé? Plusieurs formules sont envisageables à lheure actuelle: mariage, cohabitation, rencontres fréquentes. Au fil des années, la passion que contenait lamour a permis, dune part de scinder la question de lamour de la question du mariage et dautre part la transition du mariage de raison au mariage damour. Comment cette institution perdure-t-elle aujourdhui? Le mariage est encore présent, mais le divorce est apparu, est entré en scène lors de la phase dautonomisation de la sphère amoureuse. Le 40 Cadernos de Sociologia e Política divorce a défait lidée que le mariage scellait des liens entre des êtres à vie. Libérant ainsi de la contrainte sociale. Cette émancipation permet aux partenaires de se choisir, mais également darrêter leur choix et donc leur contrat. Ce phénomène a-t-il eu des répercutions sur limaginaire des individus par rapport au mariage? Ces réflexions nous conduisent aux théories dIrène Théry (1996). Pour elle, une transformation fondamentale a eu lien dans le divorce, nous sommes passé du divorce-rupture au divorce-réorganisation. Dans les divorces, comme le dit Marie-Blanche Tahon et Geneviève de Pesloüan (1997) en parlant de la théorie de I. Théry: la place de lintérêt de lenfant suppose un effacement du parent non-gardien au profit du partenaire du parent gardien. Le parent social prend le pas sur le parent biologique. Donc lidentification de la famille repose désormais sur lenfant et non plus sur le couple (idem:553). Nous percevons à nouveau cette volonté de se défaire dune tradition mais du même coup aussi des réponses que proposait la tradition aux problèmes de tous les jours. La question de lautonomie Dans cette partie, nous nous appuyons sur la théorie initiée par M. Gauchet et appliquée par J.-M. Lacrosse. La question de lautonomie telle que décrite et analysée par M. Gauchet est contenue dans les deux expressions: le désenchantement du monde et le christianisme en tant que religion de la sortie de la religion. Que pouvons nous déduire de cela? M. Gauchet (1998) opère, en fait, une ambitieuse relecture du monde moderne en associant à la fois les conséquences et impacts du christianisme et ceux de la modernité. Il propose une nouvelle approche permettant de comprendre la contribution propre du christianisme à lavènement de la modernité démocratique, tout en soulignant les liens conflictuels qui unissent ces deux catégories. Il dégage deux phases de son analyse: 1. La phase de lhétéronomie, celle des sociétés pré-démocratiques, le premier âge du christianisme. Dans ces sociétés, le monde commun Fórum dos Alunos do IUPERJ 41 et la vie sociale sont régis et organisés par la religion, en conformité avec les commandements divins. Dieu donne les tables de lois aux hommes, la loi est donc reçue de lextérieur. Le monde est caractérisé par la tradition et la répétition immuable des mêmes comportements, laction de lindividu est soumise à un ordre qui le dépasse et vient du ciel. 2. Lors de la phase de lautonomie, second moment historique, nous assistons à lélaboration dune loi purement humaine. Cest le second âge de la religion, celui au cours duquel elle renonce à lorganisation politique du monde humain. Peu à peu, au cours du Moyen Age se mettent en place les structures de lEtat moderne; lautonomie du politique ouvre la voie à lâge démocratique. La vie des sociétés nest plus léternelle répétition du passé, lindividu na plus les yeux rivés vers le ciel, mais est bien orientée en direction de lici-bas. Les être humains ne sen remettent plus quà eux-mêmes. Le monde est en mutation, il devient moderne et désenchanté. Mais M. Gauchet prévient, ne confondons pas religion instituée et la foi. Si lavènement de la modernité marque bien la mort de la religion comme fondement de lorganisation politique des sociétés, elle ne la condamne assurément pas comme source de sens. La quête dun audelà, le besoin subjectif de croire, demeurent pleinement présents au cur de la modernité la plus contemporaine. Ces étapes se trouvent synthétisées par les schémas suivants: 42 Cadernos de Sociologia e Política Hétéronomie: Religieux Rapport hiérarchique entre sphères politique économique amour .... Autonomie: Amour Politique Economie Religion Fórum dos Alunos do I UPERJ 43 Actuellement, si nous nous référons aux théories de M. Gauchet, notre époque contemporaine symbolise la fin du processus de lautonomie. Nous sommes arrivés au terme de la deuxième phase, grâce au christianisme religion de la sortie de la religion. Nous sommes face à une nouveauté quil nous faut décrire. Auparavant, la démocratie puisait une partie de son énergie chez son ennemie, maintenant sa nouvelle omnipotence correspond en même temps à sa crise. Toutefois, selon M. Gauchet et ses pairs, la démocratie est à son début, elle se cherche encore. Maintenant que cette théorie est explicitée, nous souhaiterions lintégrer dans le cadre de nos réflexions. Comme nous avons précédemment proposé une interprétation du sentiment amoureux, nous pouvons nous interroger sur la perdifférenciation et les problèmes quamène le fait de son autonomie. La question est: comment une fois lautonomisation accomplie les différentes sphère peuvent-elles se (ré)articuler? Quand nous parlons des différentes sphères, nous pensons à léconomie, la religion, la politique et lamour. Ces sphères, au cours des siècles, ont poursuivi un processus de perdifférenciation qui les a rendues autonomes les unes par rapport aux autres (Gauchet, 1998). Comment des entités autonomes peuvent-elles être liées? Quels sont les liens entre le démariage (Théry, 1996) et lautonomisation de la sphère de lamour? Comment les individus vivent-ils les interactions entre sphères? Le livre Libres Ensemble de François de Singly donné quelques pistes, ce qui importe dans notre société est de pouvoir à la fois être avec et être seul. Pour nous, lindividu doit vivre avec lui-même et avec lautre tout en vivant également avec des sphères autonomes qui parfois se complètent et dautre fois se contredisent. Comment fait-il pour gérer cela? Une des pistes relèverait plutôt de la multiplicité de rôles sociaux que nous sommes amenés à jouer tous les jours. Nous faisons ici référence à la multiplicité des cadres de références, notion introduite par E. Goffman (1975). Cest lindividu qui gère maintenant ces nombreuses interactions, elles ne sont plus imposées par un Dieu ou une force surnaturelle, il prend en charge les rapport de concordances et de contradictions entre les sphères. Nous voyons là un élément de réponse au positionnement des acteurs face aux différentes sphères dactivités 44 Cadernos de Sociologia e Política sociales autonomisées. Une double interaction est présente, à la fois entre les sphères elles-mêmes et entre les individus et ces différentes sphères. Quant à la question de lagencement de ces sphères précitées, lélément de réponse que nous avançons se construit à partir des réflexions de M. Gauchet et de J.-M. Lacrosse. Nous sommes passé de lhétéronomie à lautonomie et quune articulation de ces sphères par le juridique a fait son apparition. Avant le religieux chapeautait lensemble, par la suite chaque sphère est devenu autonome. Les liens existants entre elles ne se sont pas perdus, ils ont changé de nature, il ny a plus une domination religieuse du lien social. Le droit semble avoir évincé le politique, de par la crise de la représentation que traverse la démocratie, et paraît être la sphère qui domine et régule les autres. Le recours au juridique est de plus en plus présent et cela amènerait celui-ci à jouer le rôle de médiateur, dordonnateur entre les sphères. Le droit serait le nouveau dieu humain intra-mondain et servirait de construction humaine afin de répondre à larticulation entre les sphères, tout comme le politique avant lui. Voici un schéma proposant cette articulation contemporaine: Amour Economie JURIDIQUE Politique Religion Fórum dos Alunos do IUPERJ 45 A partir des ces éléments de réflexions, nous pouvons rendre comptes des impacts du centrage de la sphère juridique au sein de notre société perdifférenciée. Quel est limpact de ceci sur la sphère de lamour? La première idée que nous souhaiterions aborder, celle qui nous semble la plus évidente, est le phénomène du démariage mis en exergue par la sociologue française I. Théry, laugmentation des divorces ces dernières décennies montre à quel point le droit est amené à régler les affaires de vie privée, une incursion de la loi a lieu dans le domaine de lintimité. Et comme un éclatement des modèles traditionnels sest produit, ce sont les experts qui sont amenés à se prononcer sur ce qui est bon pour chacun. Cette considération est susceptible déclairer dautres problématiques contemporaines: la diminution du nombre mariage ainsi que de lâge moyen ou celui est contracté. En effet, pourquoi se lancer corps et âmes trop précipitamment dans une aventure dont nous naurons peut être même plus souvenir dans dix ou quinze ans? A linverse, il serait utile danalyser si ce double recul, de lâge moyen lors du mariage et du nombre de mariage en tant que tel, naura pas une influence positive sur la stabilité de ceux-ci dans les années à venir. Ce même phénomène est peut être aussi à mettre en relation avec la difficile articulation entre la spontanéité de lamour et la rationalité des choix de vie qui sont les nôtres actuellement dans notre société. Nous avons effectué un succinct rappel de limpact de la religion chrétienne, du moins de sa sortie hors de la société, sur la sphère de lamour aussi souhaiterions nous terminer en soumettant une interrogation: Dans cette société du risque, des rôles sociaux multiples, de lautonomie et du démariage, lamour ne serait-il quun pari émotionnel, un parti pris sur lavenir, un risque calculé? (Recebido para publicação em outubro de 2003) 46 Cadernos de Sociologia e Política Notes 1. Jean-Marie Lacrosse est chargé de cours à lUniversité Catholique de Louvain (UCL à Louvain-la-Neuve). 2. Marcel Gauchet est chargé de cours à la Haute École en Science Sociale (HESS). Références Bibliographiques ALBERONI, Francesco. (1998), Je Taime: Tout sur la Passion Amoureuse. Paris, Éditions Plon. CHAUMIER, Serge. (1999), La Déliaison Amoureuse: De la Fusion au Désir dIndépendance. Paris, Colin Paris. GAUCHET, Marcel. (1998), La Religion dans la Démocratie. Parcours de la Laïcité. Paris, Gallimard. GIDDENS, Anthony. (1993), The Transformation of Intimacy: Sexuality, Love and Erotism in Modern Societies. Cambridge, Polity Press. GOFFMAN, Erwin. (1975), Frame Analysis. Harmondsworth, Penguin Books. HOUELLEBECQ, Michel. (1998), Les Particules Élémentaires. Paris, Éditions Jai Lu. LUHMANN, Niklas. (1982), LAmour comme Passion: De la Codification de lIntimité. Paris, Éditions Aubier. MARTUCCELLI, Danilo. (1999), Sociologies de la Modernité: ème LItinéraire du XX Siècle. Paris, Éditions Gallimard. TAHON, Marie-Blanche et de Pesloüan, Geneviève. (1997), Sociologie de la Famille, in J.-P. Durand et R. Weil (coords.), Sociologie Contemporaine. Paris, Éditions Vigot, pp. 540-537. Fórum dos Alunos do I UPERJ 47 THÉRY, Irène. (1996), Le Démariage: Justice et Vie Privée. Paris, Éditions Odile Jacob. YONNET, Paul. (2000), Libérer le Sexe pour se Libérer du Sexe. Le Débat, Histoire, Politique, Société, nº 112, Paris. 48 Cadernos de Sociologia e Política Considerações sobre História e Soberania em Behemoth, de Thomas Hobbes CRISTINA BUARQUE DE HOLLANDA* Resumo O artigo expõe os temas da história e da soberania na obra Behemoth, de Thomas Hobbes. Neste texto, Hobbes narra o episódio da Revolução Inglesa e o movimento de dissipação da soberania por meio da multiplicação de enunciados com pretensão de poder e verdade. A história é reconhecida como forma de conhecimento, o que não corresponde, entretanto, à suposição de infalibilidade cognitiva. Dada a possibilidade do equívoco, o paradigma histórico não se localiza no campo da ciência. A cena inglesa a partir da perspectiva narrativa hobbesiana possibilita o aprofundamento de questões que aparecem com menos clareza em outros momentos da obra do autor. Palavras-chave: soberania; história; ciência; Hobbes * Doutoranda em ciência política no IUPERJ. E-mail: [email protected]. Fórum dos Alunos do IUPERJ cristina.pm6 1 27/09/04, 15:41 49 E m Behemoth, Thomas Hobbes dedica-se à elaboração de uma narrativa histórica. Alguns temas centrais em sua obra são ali enfocados a partir da lente de uma experiência circunscrita no tempo e no espaço. O episódio da Revolução Inglesa é esmiuçado; a seqüência de eventos e o conjunto de atores que a compõem são descritos em detalhes. Diante desse olhar fundamentalmente empírico, ao leitor do Leviathan cabe uma dúvida essencial: como conceber uma tal concessão à história em um autor cuja aspiração central reside na transformação, pelo cânone demonstrativo, das teorias moral e política em disciplina científica? O recurso à experiência não seria metodologicamente antagônico às derivações da razão que compõem o campo da ciência? Essa aparente contradição ou incompatibilidade metodológica é esvaziada quando a história é apenas reconhecida como forma possível de conhecimento, o que não autoriza a suposição de infalibilidade cognitiva. Muito pelo contrário, a heterogeneidade dos eventos que compõem o campo de observação do historiador impede qualquer projeção futura que se pretenda pautada em critérios de verdade. Mesmo em um ambiente de regularidade, de aparente sincronicidade entre causa e efeito, o risco de proposições equivocadas é permanente; a história não possibilita a produção de postulados verdadeiros; pode apenas apontar em sua direção ou corroborá-los. Em Behemoth, por diversas vezes, o diálogo entre dois personagens, A e B, explicita essa limitação do olhar humano para o reino dos acontecimentos, caracterizado pela diversidade e, sobretudo, pela possibilidade do inesperado. Diante do espírito inquieto de B, mais jovem e afoito por formulações assertivas, A se vê obrigado a lembrá-lo do obscurantismo constitutivo do campo das motivações humanas. A observação do mundo da vida restringe-se ao aparente, ao fenomênico, e quaisquer proposições que escapem de seu âmbito estarão imbuídas no reino da falibilidade, da incerteza. A lição que daí deriva é a de que o historiador não deve especular motivos, uma vez que estes não são passíveis de conhecimento por derivação da natureza. 50 cristina.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 2 27/09/04, 15:41 Ao distinguir as formas de conhecimento, Hobbes aponta o conhecimento dos fatos, associado aos sentidos e à memória, e o conhecimento das conseqüências de uma afirmação para a outra, que corresponde à ciência e é essencialmente condicional. Atribui ao primeiro a condição de absoluto e o equipara à história; ao segundo, confere a possibilidade de produção de ciência, o que consiste, em última instância, no conhecimento antecipado das conseqüências. A previsibilidade surge, portanto, como principal elemento distintivo entre história e ciência. Mas dessas avaliações se pode derivar uma concepção essencialmente negativa da história em Hobbes? Certamente que não. Embora o conhecimento histórico não possa, com segurança, nos ensinar sobre as causas – pois estas demandam a mencionada especulação sobre os motivos –, seu mérito reside, essencialmente, na geração de prudência. Conforme discorre Tucidides, autor traduzido por Hobbes, “[...] the principal and proper work of history is to instruct and enable men, by the knowledge of actions past, to bear themselves prudently in the present and providently towards the future” (apud Johnston, 1989:15). Com base nessa consideração, David Johnston diz ser possível acessar às qualidades hobbesianas da história a partir de duas perspectivas distintas: a primeira refere-se a uma forma de inquisição/investigação, uma maneira de apurar o conhecimento de uma verdade; a segunda diz respeito a um tipo de pedagogia, a um meio de difusão e transmissão do conhecimento para outros. Assim sendo, a história aparece mobilizada seja como prova, de uma perspectiva inquisitorial, seja como elemento de valor instrutivo, associado à sua capacidade de convencimento e persuasão, e não à possibilidade de construção ou acesso à verdade. Isto demandaria a identificação de regras gerais e universais para a condução da vida humana. Ao fazer a defesa de Tucidides contra seu principal crítico na época, Dionysius Halicarnassius, Hobbes diz ser aquele o primeiro autor fiel aos propósitos da narrativa histórica, ao passo que Dionysius estaria mais voltado para “deliciar os ouvidos com narrativas fabulosas, do que para satisfazer a mente com verdade” (idem:6). Essa prática retórica, que mobiliza as paixões e obscurece o acesso ao conhecimento verdadeiro, é repudiada por Hobbes. Nela reside o descompasso de Fórum dos Alunos do IUPERJ cristina.pm6 3 27/09/04, 15:41 51 significação entre palavras e coisas e a conseqüente reprodução de uma linguagem imprecisa e sem valia para fins científicos. A produção da scientia civilis almejada por Hobbes faz-se possível somente na medida em que os ruídos de comunicação sejam abolidos em favor de uma linguagem fundada em termos de significação clara e distinta. A precisão lingüística constitui condição sine qua non para a elaboração de uma ciência moral e política que se pretende fundada nos mesmos parâmetros de conduta das ciências da natureza, em que, por exemplo, a correspondência entre números e natureza é perfeita e auto-evidente. Ao apontar os usos possíveis da razão – a priori limitada por sua condição de falibilidade –, Hobbes distingue a capacidade humana de calcular e inferir regras gerais da capacidade do absurdo, pautada justamente no “discurso sem sentido” (apud Johnston, 1989:15) mencionado acima. Segundo o autor, “as palavras com as quais nada mais concebemos senão o som são as que denominamos absurdas, insignificantes, e sem sentido” (ibidem). O apreço pela sonoridade e por uma certa estética lingüística, apoiada no uso de metáforas e em outras figuras de retórica, apesar de possuir forte potencial persuasivo, implica um vazio de significados, palavras destituídas de sentido, e não propriamente erro. Essa deturpação daquele que seria o uso nobre da linguagem – voltado para a produção de um conhecimento verdadeiro e seguro – se deve, primordialmente, à ausência de método, de definição prévia dos significados das palavras, além do já mencionado recurso à ambigüidade. Lançando mão da matemática para tornar essa intuição mais evidente, Hobbes equipara o equívoco dessa imprecisão lingüística à impossibilidade de contarmos, sem “conhecer o valor das palavras numerais, um, dois, três” (Hobbes, 2001:33). Assim como as ciências da natureza, a ciência política deve se pautar em denominações claras e objetivas, sendo qualquer recurso de ambigüidade ineficaz e subversivo. A metáfora e a confusão de significados constituem, portanto, um elemento naturalmente desorganizador. A desordem simbólica traz em si o espectro do estado de natureza, em que inexistem confluência de 52 cristina.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 4 27/09/04, 15:41 signos e correlação entre causa e efeito. Esse caso-limite – que corresponde a uma espécie de modelo do caos em Hobbes – se caracteriza fundamentalmente pelo medo da morte violenta, angústia derivada da diversidade e ausência de articulação tanto das forças como das atribuições de sentido ao mundo. A narrativa de Behemoth volta-se justamente para ilustrar o potencial desagregador da heterogeneidade de signos que povoam o ambiente político e social da Inglaterra nos anos da Revolução. A pluralidade de unidades produtoras de significados é, no caso em questão, decorrente da pulverização religiosa e traz consigo a ameaça de desordem. Presbiterianos, papistas, anabatistas e outras denominações de menor importância habitam o mesmo cenário político e disputam a primazia em assuntos de religião. Essa proliferação simbólica se faz cada vez mais evidente em claro prejuízo da uniformidade e clareza dos signos que deveriam servir à mediação dos homens em sociedade. A polifonia religiosa é em si desorganizadora. Ela opera em detrimento de um modelo hobbesiano composto por padrões unívocos, devidamente pautados no universo normativo da República. Diante de um universo fragmentado, Hobbes concentra sua crítica nos presbiterianos, cujos preceitos produzem desdobramentos efetivos na vida prática de seus seguidores, além de incluírem a possibilidade de auto-organização. Suas pregações, apoiadas amplamente em recursos de retórica e práticas de ator, comporiam um reino dominado pela argumentação, tal qual o mundo sofístico. O domínio e determinação dos gestos e da impostação da voz, bem como a escolha precisa das palavras, exerciam tamanho poder de convencimento que “alguém que não estivesse familiarizado com essa arte jamais poderia suspeitar de qualquer conspiração ambiciosa para suscitar a sedição contra o Estado, tal como então tramavam” (Hobbes, 2001:57). Aos sermões improvisados atribuíam a autoria de Deus. E muitos se deixavam seduzir por esta idéia, seguindo-os como se seguissem Deus. A sintonia dessas pregações com os anseios do povo também era decorrente da omissão da seita diante daqueles que seriam os vícios humanos mais desprezíveis: o desejo de lucro, “a dissimulação, a mentira, o engodo, a hipocrisia” (idem:59), e assim por diante. Ao atacar com grande severidade os Fórum dos Alunos do IUPERJ cristina.pm6 5 27/09/04, 15:41 53 pecados da concupiscência e da blasfêmia, sugeriam ser os demais menos importantes, chegando quase a desconsiderá-los. A ameaça de infelicidade e castigo eterno da religião é apontada por Hobbes como mais contundente e persuasiva do que o poder do rei, limitado à jurisdição da vida terrena. O autor denomina de “usurpação” a progressiva apropriação, por parte dos papas, de boa parte dos direitos temporais dos príncipes ocidentais (idem:43). Outorgando-se uma suposta delegação divina, os clérigos por diversas vezes teriam visado sobrepor seus poderes, em casos de controvérsia, às ordens de seus próprios reis, o que acabou por gerar o enfraquecimento do poder civil. O sucesso dos que atribuem a si a compreensão dos desígnios divinos implica, em casos extremos, a total desarticulação entre governante e povo. Este, conforme discorre Hobbes, é, em geral, “tão ignorante de seu dever” (idem:34) que, em caso de dúvida quanto à conduta correta a ser seguida, confia na “pregação de um estranho e de outros que, como ele, são súditos”, em vez de deixar-se guiar pela “voz da lei” (idem:85). O debate sobre a questão da soberania perpassa o texto de Behemoth e está fundamentalmente alicerçado no tema da religião. A fragmentação religiosa, por um lado, e os embates entre poder temporal e espiritual, por outro, são os elementos que compõem a linha da argumentação hobbesiana no que concerne a querelas e disputas pelo poder soberano. Quanto ao primeiro aspecto, a proliferação das seitas é apontada como um equívoco da livre interpretação das Escrituras. As traduções da Bíblia para os diversos idiomas fez com que cada homem passasse a se autocompreender como autônomo em relação à leitura do texto religioso, rejeitando as formas de mediação que antigamente tornavam as escrituras inteligíveis. De acordo com Hobbes, “todo homem se tornou juiz da religião e intérprete das Escrituras para si próprio” (ibidem), o que significa uma produção potencialmente infinita de leituras particularizadas e pouco ou nada conciliáveis. Tal diversidade interpretativa engendra uma relação necessária de causa e efeito em que a desigualdade inicial de opiniões é sucedida pela emergência de um ambiente litigioso e controverso que cede lugar à possibilidade de 54 cristina.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 6 27/09/04, 15:41 desobediência e, por fim, à rebelião. Uma vez configurada a condição inicial em que figura a pluralidade de construções simbólicas, os desdobramentos posteriores – que se desenvolvem em um movimento crescente em direção ao estado-limite da guerra de todos contra todos – parecem inevitáveis. A constatação desse ambiente religioso fragmentado não significa, entretanto, uma recusa hobbesiana da religião. Muito pelo contrário, Hobbes afirma a necessidade de a religião ser proferida como lei e, assim sendo, estar subordinada ao Estado. É esta instituição a única capaz de garantir a coesão religiosa e todos os benefícios que daí derivam, direta ou indiretamente, quais sejam: a paz social e, por conseguinte, a extirpação do medo da morte violenta. Se os bens trazidos pela unidade da religião repercutem na própria configuração da sociedade, os males atribuídos à polifonia religiosa, igualmente, não se circunscrevem ao âmbito religioso. Muito mais do que isto, constituem uma clara ameaça à unidade do poder civil. Hobbes inclui, então, a religião no hall das virtudes humanas, atrelandoa, ainda uma vez, à virtude da obediência às leis da República. Segundo esta perspectiva, o cidadão virtuoso religiosamente seria também necessariamente virtuoso no que tange ao seu desempenho na vida cívica. A ênfase na subserviência inconteste às leis da nação – e, por intermédio destas, e somente destas, às leis da religião – opera a partir de um paradigma de homogeneidade interna, o que não significa a ausência de reconhecimento da diversidade de opiniões e valores. As diferenças decerto existem, mas somente em prejuízo de toda a nação poderão aflorar e se desenvolver livremente. As mesmas ações poderão ser consideradas virtuosas ou viciadas por cidadãos diversos. E, sendo impossível decifrar de maneira inconteste os desígnios de Deus, e assim estabelecer os parâmetros para suas ações, os homens terão que concordar com uma ou outra autoridade humana. Dessa forma, serão boas ou más as ações que estiverem ou não pautadas em conformidade com as leis da República, e não aquelas que estiverem moldadas segundo julgamentos individuais sobre o ordenamento divino. Fórum dos Alunos do IUPERJ cristina.pm6 7 27/09/04, 15:41 55 Daí decorre que todos aqueles que se opõem ao governo absoluto (seja ele uma monarquia, aristocracia ou democracia), rotulando-o de tirânico, incorrem em grave equívoco. Seja pela via religiosa, que propõe uma autoridade espiritual dotada de direitos de intervenção temporal, seja pela via mais objetivamente política, fundada na crença da eficácia e legitimidade da divisão do poder em subpoderes, o questionamento da unidade do poder é, em si, repudiável. A chamada mistarquia, da qual muitos estariam enamorados, não passaria de uma condição anárquica e, portanto, de uma deturpação do supremo poder, que sempre deve ser absoluto. Em Behemoth, o autor recorre à história como prova contundente do equívoco desta idéia. A partir de uma perspectiva não empirista, o Leviathan (1973) também já apontara no mesmo sentido. A unidade do poder e a obediência são de tal maneira apreciadas que Hobbes atribui às universidades o papel de louvá-las. Em vez de contribuir para sustentar a autoridade do papa com o argumento de que seu poder espiritual constitui uma derivação direta de Cristo, e não do próprio rei, as universidades deveriam proclamar o dever de obediência dos homens às leis civis, que são também leis de Deus. O amor à obediência é o mesmo que o amor ao público. E, na ausência do rei, nada mais há de público. Enfocando o caso específico da guerra civil inglesa, a atitude de questionamento da figura do rei (que mesmo no contexto de monarquia mista ainda representava um elemento simbólico de unidade) gerou a emergência de várias unidades que se autodenominavam fontes legítimas de poder. O governo foi reduzido à anarquia. O texto de Behemoth dedica-se justamente a narrar as minúcias deste processo e mostrar a facilidade com que a soberania foi dissipada. Diante do contexto de desordem, os autores da destruição encontrarão extrema dificuldade em reerguer um ambiente de paz e extirpar a universalização da desconfiança. (Recebido para publicação em novembro de 2003) 56 cristina.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 8 27/09/04, 15:41 Referências Bibliográficas HOBBES, Thomas. (1973), Leviathan. Rio de Janeiro, Editora Abril, Coleção Os Pensadores. ___. (2001), Behemoth ou o Longo Parlamento. Belo Horizonte, Editora UFMG. JOHNSTON, David. (1989), The Rhetoric of Leviathan: Thomas Hobbes and the Politics of Cultural Transformation. New Jersey, Princeton University Press. Fórum dos Alunos do IUPERJ cristina.pm6 9 27/09/04, 15:41 57 Poder e Multiplicidade em Lyotard, Deleuze e Foucault JULIANO BORGES* Resumo Este artigo trata de aspectos relacionados às concepções de poder de Lyotard, Deleuze e Foucault, todos vinculados ao pensamento pós-estruturalista. O contexto de crise teórica experimentado por eles, no final da década de 70, motivou-os a uma revisão das formas que estruturavam a filosofia política até então, por via de um conjunto de proposições produzido como forma de conduzir seus respectivos programas políticos. Lyotard, pela ruptura com o marxismo e pelo uso do conceito de diferendo; Deleuze, pela preservação das multiplicidades como meio de aprimoramento social; e Foucault pela ruptura, visando à superação do sistema. Em todos eles, contudo, está presente a idéia de abertura à diversidade dos discursos. Palavras-chave: pós-moderno; Lyotard; Deleuze; Foucault * Doutorando em ciência política no IUPERJ e bolsista da CAPES. E-mail: [email protected]. Fórum dos Alunos do IUPERJ juliano.pm6 1 27/09/04, 15:43 59 T ratar o tema do poder em Lyotard, Deleuze e Foucault requer que outros aspectos de suas obras sejam também considerados, seja por estruturarem seus conceitos particulares, seja simplesmente por auxiliarnos a obter uma visão mais completa de suas idéias. Pela preocupação com a questão da multiplicidade, por consideraremna fundamental como categoria de pensamento, os autores são forçados a revisar a concepção hegeliana de história, criticando-a, com conseqüências incontornáveis sobre seus respectivos programas políticos. No caso de Lyotard (1992), o conceito de diferendo é crucial para a compreensão de sua concepção a respeito da política. Na crítica que produz a cânones marxistas, identifica uma perda de credibilidade de suas narrativas históricas e de sua herança hegeliana. A história, como progresso, teleologia e evolução, tenderia a congelar categorias e universalizar conceitos. Em um momento em que o capitalismo se mostra fortalecido, resistindo mesmo às suas crises endógenas mais profundas, Lyotard, ao romper com o marxismo (como perspectiva universalista da história em sua pretensão científica), rompe igualmente com toda e qualquer filosofia da história; passo decisivo para a instituição da idéia de pós-modernidade. Para ele, à derrocada da perspectiva historicista, no entanto, não corresponde a falência do poder de análise crítica do modelo capitalista pelo marxismo. Lyotard, ambiguamente, renunciará ao traço historicista e dialético do marxismo, reconstituindo um olhar sobre ele a partir do conceito de diferendo. Isto é, a dialética só poderá ser pensada sem sua função totalizante a partir da concepção de diversidade, sem a idéia de oposição (o que, entretanto, descaracteriza o próprio sentido da dialética). Para ele, a diferença não pode estar vinculada a opostos, em uma lógica de identidades, levando à particularização, ao privilégio inevitável de um dos lados envolvidos e à possibilidade de dominação de uns sobre outros. A dialética, como tal, está sempre (re)constituindo uma identidade – o que supõe um sujeito (Marx) ou espírito (Hegel) da história. 60 juliano.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 2 27/09/04, 15:43 O problema dessa concepção das diferenças está em manter uma permeabilidade em relação às demais, do contrário, torna-se possível uma síntese, voltando-se novamente à dialética marxista. A preocupação de Lyotard, portanto, é impedir manifestações totalitárias, garantindo a heterogeneidade máxima dos discursos, a não-síntese, de modo a proteger os particularismos. Mesmo identificando o sistema de exploração (em que, nesse processo, o marxismo manterá seu valor), o programa político de Lyotard tornase difuso pela própria existência do diferendo. Não há, então, um normativismo político (como também não haverá em Deleuze e Foucault). Dessa forma, o enfraquecimento da perspectiva histórica do marxismo na atualidade, associado à sua força analítica, traz a possibilidade da barbárie sem apontar um futuro evolutivo ou de progresso. Trata-se, então, de uma teleologia analítica em lugar da histórica. O fim das narrativas históricas caracterizaria a pós-modernidade como ponto culminante de um processo de crise da racionalidade (Lyotard, 1986). Se a razão se dá historicamente, em uma autoconsciência da modernidade, mas se essa concepção filosófica da história já não pode dar conta do que se passa no mundo fenomênico, então se desvela uma crise das formas racionais, incapazes, empiricamente, de conferir aquele progresso ou futuro evolutivo prometido pelo projeto da modernidade (sendo o holocausto o símbolo máximo dessa involução para a barbárie). Se o moderno é caracterizado pelas grandes narrativas, pelos relatos universais que o legitimam, ele traz, em si, o germe de sua desestruturação no momento de desmonte desses relatos. Desse modo, a legitimação produzida pelas narrativas torna-se obsoleta. Para Lyotard, o saber, na condição pós-moderna, não necessita mais, como antes, ser uma verdade. Na pós-modernidade, o saber adquire um fim em si mesmo, não submetido a nenhum outro valor que não a reprodução do capital. Verdade, justiça ou, simplesmente, aquilo que é bom já não possuem um valor idealístico na concepção humanística consagrada pela modernidade. Nessa nova hierarquia de valores, o topo passa a ser ocupado pelo melhor desempenho (performance) e já não Fórum dos Alunos do IUPERJ 61 juliano.pm6 3 27/09/04, 15:43 há mais o encantamento da busca pela verdade última do mundo exterior. É a partir daí que Lyotard identifica a modernidade como projeto (pela expectativa de organização do futuro). Acredita, porém, que se trata de um projeto fracassado, em que nenhum traço constitutivo possa ser aproveitado. Isto porque o capitalismo chega às sociedades contemporâneas tendo abandonado seu aspecto humanista (moderno, portanto), mas mantendo seus traços totalitários: a conversão da pluralidade do saber – a multiplicidade de paradigmas – em favor de um sistema de produção monopolizado. Indo de encontro a toda racionalidade fundada ontologicamente ou na teoria da linguagem, Lyotard reafirma sua oposição às narrativas universalizantes para ser capaz de assegurar aquela multiplicidade de discursos. Há racionalidades (já que a idéia de razão como unidade é negada), linguagens e, portanto, discursos. Deve prevalecer, portanto, a pluralidade. E Lyotard acredita defendê-la por via dos diferendos. Apelando para o conceito wittgensteiniano de jogos de linguagem, Lyotard encontrará um modo de afirmar a heterogeneidade dos discursos. Segundo o autor, os diferendos referem-se àquilo que ainda não existe como realidade constituída, pois estabelecer a realidade de algo é torná-lo objeto de litígio, visto que, assim, se supõe a determinação de uma forma de comunicação questionável. Daí a importância dada por ele à instância política, foro de diálogo com os diferendos. A finalidade das práticas cotidianas não seria, assim, o consenso, mas o dissenso, adequado à emergência de diferendos, constantemente em desacordo com o estado das coisas. Para Lyotard, sendo os discursos heterogêneos, o consenso só poderia trabalhar pela hegemonia, favorecendo o poder instituído. Se não há valores universalizantes, o consenso tende a sufocar a pluralidade de discursos. Toda hegemonia se inclina, então, para uma forma de injustiça. O que é consensual coincide com a idéia de poder. Ao analisar alguns fenômenos da pós-modernidade, Lyotard identifica uma resposta de movimentos ao processo de estabelecimento de hegemonização trazido pelo sistema. Os pluralismos da pós-modernidade 62 juliano.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 4 27/09/04, 15:43 têm o viés de formas político-culturais extremamente fechadas como meio de proteção. Lyotard, contudo, condena esse autofechamento como reacionarismo, já que este acaba por reproduzir, em seu interior, o mesmo tipo de hegemonia. Rejeitando as formas liberais tradicionais, as grandes narrativas filosóficas e os radicalismos de movimentos autocentrados, Lyotard elege a política como campo de diálogo com os diferendos. Desiludido com ideais de emancipação, e criticando Foucault e Sartre pela manutenção desse aspecto da modernidade, seu programa político, todavia, não admite a possibilidade do reformismo. Se está certo que o capitalismo monopolizador se opõe à heterogeneidade dos discursos, limitando-os, o reformismo se traduziria, então, em desilusão e em um símbolo da capitulação e do fracasso. Apostar em uma melhor distribuição dos ganhos capitalistas e satisfazer-se com isso, para Lyotard, significa limitar o dano gerado pela exploração capitalista, além de supor que os detentores da riqueza simplesmente a cedam. Essa proposta lhe parece absurda, já que ignora a própria lógica monopolista do capital, concentradora por essência. Sua filosofia política, desse modo, vai se autolimitando a ponto de não ser capaz de estabelecer um projeto político. É certo que a política deve converter-se de campo universalizante em uma forma que abrigue e estimule o devir, isto é, aquilo que ainda não encontrou sua voz no mundo e pode concretizar-se na realidade. No entanto, adotar um projeto político seria ingressar no projeto moderno, por ele condenado. Lyotard acredita que a melhor e mais elaborada forma de discurso terá sempre, em seu interior ou em suas margens, diversas formas de diferendo. Nosso autor é forçado, a partir dessa constatação, a abandonar qualquer projeto universalizante, em uma espécie de niilismo ativo, de modo que os diferendos possam ser os condutores do processo de transformação e superação capitalista. Não havendo a possibilidade de uma justiça universal, pois o julgamento é feito sempre a partir de valores preestabelecidos, continuamente haverá, então, a supressão de diferendos, já que não há como julgar o que ainda não foi feito. O que resta questionar é a capacidade da política Fórum dos Alunos do IUPERJ 63 juliano.pm6 5 27/09/04, 15:43 em não ser um projeto e em abrir mão de sua essência universalizante e conflitiva em função dos diferendos. Deleuze, por sua vez, tentará formular outras respostas ao problema da multiplicidade no universo político. Sua idéia é alterar os modelos de pensamento da multiplicidade, como plano de imanência unificador das instâncias virtuais e atuais, recusando a unidade como seu mecanismo de ordenação (Deleuze e Parnet, 1998a). Como Lyotard, Deleuze começa por romper com a idéia hegeliana de processo histórico horizontal, em que o atual produz outro atual, em um avanço progressivo. Deleuze propõe ainda uma forma verticalizada, bastante próxima da genealogia de Foucault, em que o virtual (produtor do devir) gera o atual (produto), não podendo ser explicado, necessariamente, em termos de causa e efeito. O devir, como tal, não é, portanto, histórico, embora possa ser organizado (como passado) através da história. Assim, não há objeto puramente atual, já que ele está sempre envolvido com sua virtualidade e toda forma de atualização do virtual é uma produção de singularidades. Combatendo a transcendência, Deleuze e Parnet (idem) colocam-se contra a operação da multiplicidade a partir da idéia de identidade. Em um mundo em que prevalecem as multiplicidades não é possível a existência de identidades puras, pertencimentos exclusivos, pois não existem indivíduos em seu sentido absoluto. Há unidades abertas à multiplicidade, que nela estão embutidas. Dessa forma, Deleuze produz uma teoria da multiplicidade que reivindica a negação da idéia de que toda realidade se reduz ao atual. Haveria uma conexão absoluta entre o atual (instância não autônoma e heterogênea em que a realidade não se esgota) e o virtual (potencialmente atual) que interagiriam pela virtualização do atual (processo que responde pelas transformações do mundo) e pela atualização do virtual (gênese criativa de novas realidades). Daí que o que transforma o real (no sentido mesmo hegeliano, já que supõe transformações) é o devir, e não a história. 64 juliano.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 6 27/09/04, 15:43 É a partir de sua teoria da multiplicidade que Deleuze estruturará sua filosofia política, mediante o conceito de linhas de segmentaridade (processos de multiplicidade) (Deleuze e Parnet, 1998b). Segundo o autor, essas linhas podem ser de tipo duro e de tipo flexível, além do movimento de fuga ou ruptura, incapaz de produzir alguma segmentaridade. As linhas de segmentaridade dura (molar) responderiam às formações da produção do atual e à tendência de autonomia (não sendo, no entanto, autônomas). Elas organizariam as diferenças do coletivo a partir de uma lógica binária e em um território específico, caracterizando resultados, reconhecendo e reproduzindo constantemente valores e conceitos socialmente compartilhados. As linhas de segmentaridade flexível (molecular) são processos de desvio e de transformação que ocorrem sobre o domínio da segmentaridade dura. Não há, no entanto, uma designação psicológica. Ao contrário, todos os processos dizem respeito aos campos coletivos. Essa linha, todavia, associa-se à atualização do virtual mais do que ao atual em si, como o primeiro processo. Ela caracteriza procedimentos, expectativas e processos de individuação, correndo em um plano de imanência (multiplicidade pura, plenamente desorganizada) diferente do de organização. Sendo assim, a atualização do virtual, motivada por linhas de segmentaridade flexível, leva a uma realidade que pode vir a endurecer, convertendo-se de linha flexível em linha dura (processo de sobrecodificação). Esse novo atual tende a firmar-se, embora não possa se tornar autônomo, já que sempre haverá linhas flexíveis pressionando novas atualizações. As sociedades oscilariam desse modo entre linhas extremas: consolidação social máxima (seg. dura) seg. flexível desestruturação social (ruptura) Cadernos de Sociologia e Política juliano.pm6 7 27/09/04, 15:43 65 Se a etnologia aponta para sociedades segmentarizadas e sociedades unificadas, nas quais o Estado é a forma mais elaborada de instância unificadora, Deleuze irá contrapor-se a essa visão afirmando que as sociedades são sempre segmentarizadas, ou seja, mesmo havendo uma instância de poder unificado, permanecem outras formas de poder (Deleuze e Guattari, 1996:84). Assim, o Estado é entendido como uma unidade organizadora de segmentaridade, não como seu corolário. Há algumas semelhanças entre esse aspecto da filosofia deleuziana e o pensamento de Foucault. Este último, como será observado adiante, explora a segmentaridade das sociedades sem pressupor o poder como algo identificado apenas na unidade do Estado. O poder, para ele, é sempre uma realidade segmentarizada, mesmo quando unificada; há, conseqüentemente, uma capilaridade constante em suas manifestações. Deleuze, por sua vez, também acredita em uma segmentaridade constante do poder, até porque sua aposta recai sempre sobre a multiplicidade de suas manifestações, mesmo quando o poder se evidencia em uma instância unificada. Contudo, Deleuze, ao contrário de Foucault, não crê que linhas de segmentaridade flexível ou movimentos de ruptura criem necessariamente formas políticas, atribuindo às linhas de segmentaridade dura a criação de formas macropolíticas. Para Foucault, toda multiplicidade já envolve uma determinada forma de poder. Em Deleuze, a heterogeneidade não tem como trazer formas de poder, já que não está definida a priori uma unidade que o identifique. O poder só poderia manifestar-se, então, em uma realidade territorializada. Enquanto Foucault vê o poder como instância criadora, a concepção de poder deleuziana é eminentemente negativa, dado que tem a capacidade de impedir a multiplicidade (agenciamentos), tornando-a binária. A macropolítica é o campo que responde apenas pelas transformações circunstanciais. É no conjunto dos agenciamentos que escapam do domínio político das decisões que se dão as transformações. Para Deleuze, o poder envolve uma atualização e uma delimitação do campo de ação, impedindo e abalizando o devir, já que é próprio do poder se apropriar daquilo que dele foge (idem). O poder também está em 66 juliano.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 8 27/09/04, 15:43 movimento, atuando na multiplicidade, na divisa entre os segmentos e as desterritorializações (fluxos) associadas aos movimentos de ruptura, e definindo-se a partir dos movimentos de fuga. PODER formas constituídas (segmentos) multiplicidade (agenciamentos) formas que escapam do controle (fluxos) Se Lyotard abandona os projetos políticos universalizantes, tornando sua ruptura com o marxismo exemplo disto, Deleuze não pode fazer o mesmo. Lyotard aposta na pluralidade, imaginando o conceito de diferendo, capaz de prover uma abertura à emergência da multiplicidade, à transformação e à superação do regime capitalista. Já para Deleuze, a sociedade transforma-se ao fugir, e não a partir do que já é. Não há possibilidade de aperfeiçoamento de qualquer sistema. Não há, por exemplo, como esperar uma revolução da classe trabalhadora – estando já consolidado e configurado pelo poder, o proletariado não pode mais ser um fluxo, já que está conformado pela esfera do poder. Deleuze desqualifica a macropolítica, reduzindo-a a um sentido regulador – que distribui o poder constituído e desqualifica os projetos utópicos – dentro do jogo do poder. A micropolítica, no entanto, é capaz de compor agenciamentos e contribuir para uma melhoria social. Sendo assim, tanto mais eficaz será a macropolítica (as grandes formas de organização do Estado) quanto mais ela for capaz de controlar a micropolítica (instâncias inferiores), ou seja, absorver as linhas de fuga. Visto que a macropolítica busca garantir sua própria segurança, enquanto a micropolítica é entendida como fonte de instabilidades, não há, entretanto, separação formal entre essas instâncias, e o Estado aparece indiferenciável. Seu poder é limitado, e há movimentos que lhe escapam, como os fluxos. Fórum dos Alunos do IUPERJ juliano.pm6 9 27/09/04, 15:43 67 Codificação Sobrecodificação Criada pela segmentaridade Exerce uma atividade sobre todos os segmentos. Endurecimento. Não-produção. Não-movimento. Estabilização. Em sua análise dos processos de virtualização e de sobrecodificação, Deleuze associa-os ao Estado como instância sobrecodificadora que desterritorializa para reterritorializar. Remetendo-se a uma gênese do capitalismo, Deleuze mostra como o Estado se comporta em sua tentativa permanente de sobrecodificação. Ele observa ainda que a estruturação das formas capitalistas se dá quando os fluxos descodificados transbordaram do Estado, constituindo agenciamentos de produção e de consumo. Tendo o fluxo do trabalho se descodificado com o fim da servidão, e, a riqueza se descodificado com a constituição do capital, ambos se agenciam formando um novo sujeito, a produção, e um novo objeto, a moeda, em um novo devir, o capitalismo. É o capitalismo que traz, agora, a axiomática mundial da economia (nela sustentando sua própria desterritorialização), fugindo ao controle do Estado e sem depender do governo. O Estado passa a ser, então, um modelo de realização do capital. O capitalismo não anula o Estado, mas o submete, conferindo-lhe uma função menor. Nesse embate, contudo, o Estado opõe resistência, frenando os movimentos do capitalismo e gerando um foco de permanente tensão. Em sua crítica ao capitalismo, Deleuze chama a atenção para aquilo que ele denomina “máquina abstrata”, isto é, o desenvolvimento do mercado mundial, a potência das sociedades multinacionais, o esboço de uma organização “planetária” e a extensão do capitalismo para todo o corpo social, em uma antecipação do fenômeno que seria reconhecido como globalização. Há, aqui, uma semelhança entre as análises de Deleuze e Lyotard. Ao tratar da pós-modernidade, Lyotard identifica um monopólio do saber que se converte em um gênero econômico voltado para otimizar a força 68 juliano.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 10 27/09/04, 15:43 de produção do sistema. Seu totalitarismo viria justamente da codificação de agenciamentos em função do sistema de produção monopolizado. Já para Deleuze, os agenciamentos não exercem seu predomínio, mas estão subjugados pela técnica. Para ele, a modernidade também consagrará esse domínio e, ainda que o homem não se confunda com a máquina, terá radicalizado sua submissão a ela. A automação corresponde, enfim, ao último estágio de dependência. A máquina substitui o homem, configurando uma nova codificação. A servidão passa agora pela axiomática capitalista, alimentando uma exterioridade humana. No entanto, ao mesmo tempo que se desenvolve, o homem tem reduzida, cada vez mais, sua exterioridade. O capitalismo informacional sujeita o homem à função de componente e o envolve no fluxo cibernético apontado também por Lyotard. Enquanto para Lyotard os diferendos trariam novas saídas criadoras, para Deleuze, tudo é advindo das segmentaridades, sendo o poder uma instância de contenção do devir. Para Michel Foucault, porém, o poder não está reduzido aos meios repressivos. Se é certo que o poder impede o devir, ele também é capaz de criar novos devires, por meio dos movimentos de resistência que lhe são próprios. Com uma postura filosófica mais pragmática que a de Deleuze, Foucault parte do conceito nietzschiano de genealogia para, tal como Lyotard e o próprio Deleuze, romper com a forma de história hegeliana, universal, teleológica, dotada de continuidade e gênese linear. Para Foucault (1979a), é preciso descobrir a essência dos fenômenos, que repousa não em sua origem (linear), mas em seu começo (não-linear). A história é o espaço dos desvios, em que eles se mostram e permanecem, mas sua essência está sempre guardada. A genealogia deve valorizar o essencial e não o acidental, reconhecendo que o que está oculto nas descontinuidades da história não é nenhuma identidade autêntica, mas justamente o fato de que tais descontinuidades não têm essência. O genealogista deve investigar a dispersão, designando os elementos que, em algum ponto, foram capazes de fazer com que surgissem outros elementos, destrinchando uma rede de microacontecimentos que não guardam necessariamente identidade com aquilo que se está investigando, em um uso rigorosamente antiplatônico da história. Fórum dos Alunos do I UPERJ juliano.pm6 11 27/09/04, 15:43 69 A genealogia evita o finalismo porque não está preocupada em mostrar que o presente está guardado no passado, isto é, o encadeamento da causalidade necessária, que, no fundo, é a reprodução de uma identidade (que já estava lá) ou mesmo a subjugação do passado no presente. O sujeito será, para Foucault, como todos os objetos, ele mesmo gerado por relações genealógicas e, por isso, requisitará uma genealogia própria. Sua preocupação, nesse movimento, é desvelar as relações de dominação ocultas pela identidade de antemão oferecida pela visão linear da história. “A verdade é uma espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutada, sem dúvida porque o longo cozimento da história a tornou inalterável” (idem:19). Foucault quer, desse modo, preservar as multiplicidades presentes antes do momento de sua sujeição ao poder. O poder para ele, como para Nietzsche, é entendido como a relação de forças que leva a uma relação de dominação que, por sua vez, estabelece novas relações e valores. O poder é, assim, criador e, por isso, não necessariamente negativo. Relacionando o conceito à sua causa final, seria a partir da dominação que surgiria, por exemplo, a idéia de liberdade, de justiça e de natureza das regras. É irônico que a iniciativa otimista desse argumento, entretanto, acabe justamente confirmando seu pessimismo intrínseco. Cabe contra-argumentar que, se a idéia de liberdade surge da opressão produzida pelo poder, sua ausência, no entanto, dispensaria o surgimento da própria idéia, pela evidência prática de seu exercício pelos homens. Deleuze e Lyotard compartilham a visão do poder como instância opressora do devir, de uma verdade. Para Foucault, o poder é onipresente a priori e traz, em si mesmo, o princípio da resistência. Poder é coerção da liberdade, é repressão. Se há poder, há algo sendo reprimido, o que denota um viés contrário: sem o poder, algo (o que estaria sendo reprimido) desvela-se. O poder tem, portanto, uma realidade exterior à natureza das coisas. Existe uma separação entre verdade e poder. Resistir ao poder, para Foucault, é uma questão que não se coloca, justamente porque o autor compreende a resistência como constitutiva de suas relações. 70 juliano.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 12 27/09/04, 15:43 Dado que as relações de força impõem uma resistência ao poder, Foucault voltará sua atenção ao Estado, buscando compreender seu funcionamento para ser capaz de entender esse poder. Uma vez mais, a instância econômica surge como elemento-chave atuante nas concepções jurídica (o poder como esfera autônoma) e marxista do poder (reproduz as dominações existentes entre as classes sociais). Para Foucault, essas concepções acabam unidas no que qualifica como “isomorfismo” entre a noção de “bem” e de “poder”. Foucault expõe, assim, a condição insuficiente da associação produzida pela concepção jurídica quanto ao Estado e quanto ao poder. A mediação entre Estado e poder caberia à violência, entendida como o uso da força física sobre determinado território. O Estado detém o direito de manter e defender seu espaço com o uso da força. O poder político, portanto, define quem detém o monopólio da violência. A legitimidade garantiria, por sua vez, o controle desse poder político pelo princípio da soberania. Sendo um bem, o poder seria uma atribuição intrínseca do indivíduo, legitimamente. A legitimidade apresenta-se naturalizada, apenas externalizando seu traço violento quando este é eventualmente mobilizado. Em algumas tradições da história do pensamento político, como o jusnaturalismo, por exemplo, a violência é pensada como algo superável ou, ao menos, controlável. Desse modo, se os jusnaturalistas imaginam a regra como oposição à violência, isto é, o Estado de direito eliminando o Estado de natureza, Foucault (1997) não acredita que as regras sejam um impedimento para a violência, mas uma estabilidade que garante, justamente, seu funcionamento. Confirmando um traço marxista, Foucault acredita que as regras são, todas elas, violentas, pois tornam constante o exercício da violência, ocultando-a, muitas vezes, como expressão muda de um sistema de forças. A concepção foucaultiana do poder identifica em uma sociedade pacificada o exercício constante da violência. Indissociáveis, o poder será, portanto, violência e guerra. O choque com a teoria jurídica pretende evidenciar a dominação pelo poder (pensado aqui como unicidade – propriedade que alguns detêm e usam contra outros) a partir de seu estudo genealógico nas extremidades de sua aparição, isto é, nas instâncias plurais de manifestação (micropolítica, para Deleuze). Fórum dos Alunos do IUPERJ juliano.pm6 13 27/09/04, 15:43 71 Ao passo que a teoria jurídica aponta o poder como propriedade dos estratos sociopolíticos superiores, Foucault voltará sua atenção para o poder existente fora dessas instâncias, já que o entende como múltiplo, plural, nunca uma entidade unificada. Enquanto para a teoria jurídica o sujeito já está dado, Foucault considerará que este já está dado pelos mecanismos de sujeição. Na sociedade capitalista, disciplinar, o poder atua em um sujeito individualizado, sem apelar para o discurso totalizador do soberano. Para Foucault, a sujeição ressaltada por Deleuze será evidenciada no corpo. Este será o ponto final dessa cadeia de sujeições, naquela escala de dominação e poder, não atuando mais da mesma forma no exterior, no todo, o poder busca uma forma interior e individualizada, convertendo o tempo e docilizando o corpo para a produção. O programa político foucaultiano propõe a continuidade da resistência ao poder a partir de um método que desvele suas manifestações insuspeitas (a genealogia). Tendo sido identificados os alvos, estabelecemse “métodos, lugares e instrumentos de luta” que tendem a fazer parte de um processo de resistência maior (sendo o proletariado a vanguarda) que atua onde a opressão se exerce. As lutas particulares inseridas no complexo das multiplicidades sujeitadas (mulheres, prisioneiros, soldados, doentes nos hospitais, homossexuais etc.) devem ter a condição, no entanto, de serem radicais, não reformistas e “sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma mudança de titular” (Foucault, 1979b:78). Para Foucault, a generalidade da luta não se faz pela totalização da verdade teórica de uns sobre outros, já que o que dá generalidade à luta é o próprio sistema de poder e suas múltiplas formas de exercício e aplicação. O contexto de inoperância teórica vivido por esses autores, seja no âmbito acadêmico seja na resposta da práxis política, a partir do final da década de 70, motiva uma revisão das formas que estruturavam a filosofia política até aquele momento. Em todos os casos, sendo para o aprimoramento da vida social (Deleuze), sendo para a superação do sistema, pela ruptura (Foucault), a saída encontrada é a retenção da totalização pela abertura à diversidade dos discursos. 72 juliano.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 14 27/09/04, 15:43 Lyotard, em seu niilismo ativo, é capaz de identificar o centro da totalização no poder do capital (ao que continuará a lançar mão do modelo crítico marxista) e acreditará em sua superação a partir dos diferendos, espaços das heterogeneidades emergentes, capaz da superação política, mesmo sem a crença em um projeto utópico. Deleuze, por sua vez, mostra-se descrente tanto nas utopias (como representantes de um discurso universal) quanto no reformismo (por simplesmente reconfigurar o poder e anteceder, assim, novas opressões (Deleuze e Parnet, 1998b:72)). A política, como instância macro, responderia apenas pelas mudanças circunstanciais. O conjunto dos agenciamentos, porém, como instância micropolítica, por escapar do domínio macropolítico das decisões, poderia proporcionar transformações, sendo capaz de desenvolver novas formas de poder. O poder, para Deleuze, parece mesmo insuperável. Finalmente, Foucault, mesmo compartilhando de uma visão pessimista do poder, aposta em uma superação pela ruptura. Em sua visão, seria possível a cada parcela componente da multiplicidade enfrentar as manifestações subjacentes ao poder, por meio de seu desvelamento pelo método genealógico. (Recebido para publicação em outubro de 2003) Referências Bibliográficas DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. (1996), “Micropolítica e Segmentaridade”. Mil Platôs (vol. 3). Rio de Janeiro, Editora 34. DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. (1998a), “O Atual e o Virtual”. Diálogos. São Paulo, Escrita. ___. (1998b), “Políticas”. Diálogos. São Paulo, Escrita. FOUCAULT, Michel. (1979a), “Nietzsche, a Genealogia e a História”. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal. Fórum dos Alunos do IUPERJ juliano.pm6 15 27/09/04, 15:43 73 ___. (1979b), “Os Intelectuais e o Poder”. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal. ___. (1997), Em Defesa da Sociedade. Rio de Janeiro, Martins Fontes. LYOTARD, Jean-François. (1986), O Pós-Moderno. Rio de Janeiro, José Olympio. ___. (1992), “Un Memorial del Marxismo: Para Pierre Souyri”. Peregrinaciones. Madrid, Cátedra. 74 juliano.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 16 27/09/04, 15:43 Do Fim da História à Guerra Preventiva* MAURÍCIO SANTORO* * Resumo Este artigo examina o desenvolvimento do pensamento estratégico nos EUA no período que se estende entre o fim da URSS e os atentados de 11 de setembro de 2001. A partir de documentos oficiais e dos debates político e acadêmico, observa-se o surgimento da percepção de que a ordem mundial é unipolar, regida pelos Estados Unidos, que devem utilizar todos os recursos para manter tal situação – inclusive a guerra preventiva contra rivais em potencial. Nesse sentido, os pressupostos que guiam a “Doutrina Bush” já estavam presentes no ambiente intelectual norte-americano muito antes dos ataques de Bin Laden. Palavras-chave: EUA; unipolaridade; estratégia * Este texto corresponde ao primeiro capítulo de minha Dissertação de Mestrado, “O 11 de Setembro e a Doutrina Bush”, escrito com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES . ** Jornalista, doutorando em ciência política pelo IUPERJ e pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE. Fórum dos Alunos do IUPERJ mauricio.pm6 1 27/09/04, 15:44 75 O Momento Unipolar e a Estratégia da Primazia Entre 1989 e 1991, a História acabou, ou assim garantiu Fukuyama. A queda dos regimes socialistas na Europa Oriental, seguida do colapso e fragmentação da União Soviética, encerrou a Guerra Fria, com a vitória dos Estados Unidos. Mas o momento do triunfo também foi, no pensamento político norte-americano, marcado pela incerteza em relação ao poder nacional e ao papel que os EUA desempenhariam na nova ordem. A partir de meados da década de 70, ganharam destaque as interpretações do declínio da hegemonia norte-americana, como as de Paul Kennedy e Immanuel Wallerstein, com base em fatos como a derrota no Vietnã, a crise interna do Watergate, a ascensão de regimes hostis no Oriente Médio e América Central, e as dificuldades econômicas internacionais, como a quebra do padrão-ouro e o aumento da inflação e dos preços do petróleo. Nem mesmo o fim da URSS alterou essa percepção, na medida em que países como o Japão e a Alemanha reunificada passaram a ser vistos como rivais econômicos que, a curto prazo, desafiariam os EUA com sucesso. A conclusão lógica, enunciada por Henry Kissinger (1999) em Diplomacia, é que a ordem bipolar da Guerra Fria daria vez a um sistema multipolar semelhante ao do século XIX, cujos elos principais seriam formados pelos Estados Unidos, Europa, Japão, Rússia e por potências em ascensão, como China e Índia. Esse sentimento de incerteza foi agravado por uma breve recessão econômica no início da década de 90, que culminou com a derrota de Bush para Clinton na eleição presidencial de 1992. O slogan do candidato democrata – “É a economia, estúpido!” – ecoava a opinião majoritária de que, uma vez encerrada a ameaça comunista, os Estados Unidos deveriam concentrar-se em seus problemas internos e trazer de volta para casa boa parte das tropas aquarteladas no exterior, sobretudo na Europa. No entanto, nada disso ocorreu ao longo dos anos 90. As teses declinistas e multipolares mostraram-se erradas, e o que predominou foi o que 76 mauricio.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 2 27/09/04, 15:44 Charles Krauthammer (1991:23-24) chamou de “momento unipolar”, uma situação em que “o centro da ordem mundial é a superpotência sem desafiantes, os Estados Unidos, assistidos por seus aliados ocidentais”. Um poder medido pela capacidade de os EUA serem “um participante decisivo em qualquer conflito, em qualquer parte do mundo, em que escolham se envolver”. Alguns dados ajudam a compreender a extensão desse predomínio. Tabela 1 Gastos Militares das Grandes Potências, 1992-2001 (em US$ bilhões e percentuais do PIB) País/Ano EUA 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 374,4 354,8 334,5 315,1 298 296,5 289,7 290,5 301,7 304,1 (4,8) (4,5) (4,1) (3,8) (3,5) (3,3) (3,1) (3,0) (3,1) (3,1) Rússia 18,5 16,4 15,8 10 9,1 9,7 7,1 8,3 9,3 10,2 (5,5) (5,3) (5,9) (4,1) (3,8) (4,2) (3,1) (3,5) (3,6) (3,6) Japão 43,3 43,8 44 44,4 45,3 45,5 45,4 45,5 45,8 46,3 (0,9) (0,9) (1,0) (0,9) (0,9) (0,9) (1,0) (1,0) (1,0) (1,0) China 15,3 14,2 13,5 13,9 15,3 15,5 17,8 20,7 23 26,3 (2,7) (2,1) (1,9) (1,8) (1, 8) (1,7) (1,9) (2,1) (2,1) (2,3) Alemanha 36 32,4 30,2 29,7 29,1 28 28,2 28,7 28,1 27,6 (2,1) (1,9) (1,7) (1,7) (1,6) (1,6) (1,5) (1,6) (1,5) (1,5) França 37,7 37,2 37,4 35,6 34,7 34,9 34 34,2 33,8 33,7 (3,4) (3,3) (3,3) (3,1) (3,0) (2,9) (2,8) (2,7) (2, 6) (2,5) Reino Unido 42,6 41,6 40,3 37,1 37,7 35,4 35,6 35,1 36,4 36 (3,8) (3,5) (3,3) (3,0) (2,9) (2,7) (2,6) (2,5) (2,5) (2,5) Fonte: Stockholm International Peace Research Institute <http://www.sipri.se>. Como se pode verificar, os Estados Unidos não apenas investem muito mais em suas Forças Armadas do que todas as outras potências juntas, mas mantêm essa superioridade a um custo relativamente baixo em relação ao Produto Interno Bruto – PIB. Além disso, os números apresentados na tabela não indicam outras vantagens norte-americanas, como uma cadeia de bases em pontos estratégicos, ao redor do mundo, e o acesso à tecnologia mais avançada do que a de seus rivais, como os russos e os chineses. Do ponto de vista econômico, os EUA concentram 25% da riqueza produzida no mundo. Ao longo da década de 90, os temores da estagnação foram superados: a economia norte-americana cresceu 27% Fórum dos Alunos do IUPERJ mauricio.pm6 3 27/09/04, 15:44 77 entre 1990 e 1998, contra 15% da União Européia e apenas 9% de um Japão em recessão e às voltas com uma séria crise no Sudeste Asiático (apud Ikenberry, 2002, introdução). Nesse mundo unipolar, o que os Estados Unidos deveriam fazer com o seu poderio? A busca de uma “grande estratégia” que orientasse a política externa foi constante ao longo dos 90. Barry Posen e Andrew Ross (2001) identificaram quatro tipos ideais: o primeiro seria o “neoisolacionismo”, em que os norte-americanos se retirariam do cenário internacional; o segundo e o terceiro foram chamados de “engajamento seletivo” e “segurança cooperativa”, respectivamente, e concentram-se, cada um a seu modo, na paz entre as grandes potências e na preservação da estabilidade mundial. Dos quatro tipos, porém, a “grande estratégia” que constitui a maior inovação foi a que os autores batizaram de “primazia”. Seu principal objetivo é a manutenção do momento unipolar, impedindo – pela via militar, se necessário – o surgimento de uma superpotência rival. Neste cenário, os EUA não seriam primus inter pares, mas primus solus. Portanto, “a estratégia carrega a implicação lógica que os Estados Unidos deveriam estar dispostos a conduzir uma guerra preventiva.” (idem:43) A noção de guerra preventiva havia sido proposta por Paul Wolfowitz, subsecretário de Defesa, e por seu assessor Lewis Libby, em 1992, no governo de Bush pai, quando se tornou claro que Saddam Hussein não seria deposto pelos iraquianos apesar da derrota no Kuwait. O conceito foi elaborado em um documento secreto, o Guia de Planejamento do Pentágono, que desenvolve o tema central da primazia: “Nosso primeiro objetivo é evitar a reemergência de um novo rival, tanto no território da antiga União Soviética quanto em qualquer outro lugar [...] e requer que nos esforcemos para impedir qualquer poder hostil de dominar uma região cujos recursos seriam, sob controle consolidado, suficientes para gerar poder global” (apud O Globo, 20/ 4/2003). Todavia, conflitos dentro da administração levaram ao vazamento do texto para a imprensa, que o atacou duramente. Como resultado, a 78 mauricio.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 4 27/09/04, 15:44 Casa Branca afirmou por via do secretário de Defesa, Dick Cheney, que a guerra preventiva não se tratava de política oficial, mas apenas da opinião de um membro subalterno da administração. De fato, a maioria da opinião pública defendia uma aplicação mais moderada do poder norte-americano. Para Samuel Huntington, a primazia é a garantia de realizar os objetivos do Estado sem precisar recorrer à guerra. Mais que isso, seus benefícios seriam globais: “A permanência da primazia internacional dos Estados Unidos é central para o bem-estar e segurança dos norte-americanos e para o futuro da liberdade, democracia, economias abertas e ordem internacional no mundo” (1993:83). A associação entre expansão do poder dos EUA e promoção de valores universais é uma constante no discurso político norte-americano desde o nascimento da nação no século XVIII e ajudou a justificar a marcha sobre índios, espanhóis, mexicanos e outros povos no caminho da jovem república. No pós-Guerra Fria, argumentos como os de Huntington foram constantes tanto entre republicanos (Condoleezza Rice, Robert Kagan) quanto entre democratas (Lawrence Summers, Madaleine Albright). Nessas visões, Washington atuaria como “xerife do equilíbrio”, “grande facilitador”, “intermediário honesto”, “nação indispensável”, ou qualquer que seja o termo utilizado, para garantir bens públicos como ordem e estabilidade do sistema político (p. ex., mediando acordos de paz entre Israel e os palestinos) e econômico (p. ex., empréstimos a países em crise de balanço de pagamento, como México, Rússia ou Brasil). A hegemonia norte-americana seria benigna para o resto do mundo, portanto, não seria do interesse de ninguém vê-la desafiada pela ascensão de um rival que só traria o caos inerente à disputa pelo poder global. Desse modo, a primazia difere radicalmente da estratégia tradicional do equilíbrio de poder, que via na disputa entre várias potências de influências semelhantes a garantia da paz. A primazia é a teoria da superpotência que derrotou seus rivais e busca legitimar seu predomínio, bem como explicar por que ele se mantém sem que surja uma coalizão de inimigos para enfrentá-lo. Fórum dos Alunos do IUPERJ mauricio.pm6 5 27/09/04, 15:44 79 A primazia também envolve a atribuição de uma “supersoberania” aos Estados Unidos, que deveriam liderar a comunidade internacional para promover intervenções em países que desrespeitassem determinados critérios legais: “Quando um governo se prova incapaz ou sem vontade de garantir a segurança de seus cidadãos [...] então, cabe à comunidade internacional agir, seja diplomaticamente (utilizando persuasão, sanções ou ajuda) ou através da força, sob a bandeira da intervenção humanitária” (Haas, 1999:40). Em seu estudo sobre os modelos de “grande estratégia”, Posen e Ross (2001) afirmam que a política externa dos governos norte-americanos nos anos 90 conteve elementos de todas estratégias, inclusive uma dose substancial da primazia. Isto se explica, na análise de Cesar Guimarães (2002), pela “afinidade eletiva” entre unipolaridade e primazia – não é possível imaginar esta sem aquela. Embora suas versões mais militaristas pertençam à linha-dura do Partido Republicano, a estratégia fez parte da ação dos democratas: “Clinton valeu-se da linguagem (e da ação) orientada pela primazia quando lhe foi necessário: os aliados a ouviram, a periferia a sofreu, com ou sem multilateralismo. Também é fato que soube temperá-la com as artes do soft power – angariando consensos, particularmente quando a ‘segurança cooperativa’ (e outras formas de cooperativos empreendimentos) foi invocada” (idem:60). A Fragmentação das Ameaças1 O fim da União Soviética deixou os Estados Unidos sem rivais. Mas não sem inimigos. No mundo do pós-Guerra Fria, as ameaças tornaramse mais difusas e mais difíceis de controlar. As forças de fragmentação destacam-se na cartografia geopolítica da nova ordem mundial esboçada pelo historiador John Lewis Gaddis. Ele distingue, em primeiro lugar, as forças de integração – a economia global, a revolução nas comunicações e a segurança cooperativa (como na Guerra do Golfo). É, em suma, a extensão do One World proposto por Roosevelt ao fim da Segunda Guerra Mundial. 80 mauricio.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 6 27/09/04, 15:44 A essa tendência se contrapõem as forças de fragmentação, como o nacionalismo – e sua expressão econômica, o protecionismo – e o fundamentalismo religioso. Gaddis prossegue afirmando que a fragmentação também está presente nos EUA, na deterioração das condições sociais. O pior, diz o historiador, é que a integração contém em si o germe da fragmentação. A globalização econômica pode agravar os problemas ecológicos. A integração de países como o Iraque ao mercado mundial também lhes fornece armas modernas para, por exemplo, invadir o Kuwait. A conclusão é pessimista: “Logo, o fim da Guerra Fria não traz o fim das ameaças, mas antes sua difusão [...]. A nova competição entre as forças de integração e fragmentação nos apresenta escolhas difíceis, precisamente porque não é de modo algum claro, como era durante a Guerra Fria, qual tendência devemos querer que prevaleça” (Gaddis, 1991:113). Samuel Huntington deu ao conceito abstrato de fragmentação a roupagem culturalista de um “choque de civilizações”, título de seu famoso livro. O pressuposto é que o mundo vivencia o surgimento de uma ordem internacional de múltiplos níveis, que contém Estadosnação, cidades-Estado e entidades transnacionais como empresas, ONGs e religiões. Os conflitos internacionais passariam a ser motivados, sobretudo, por diferenças culturais. Os Bálcãs, onde o confronto ideológico da Guerra Fria foi substituído pelo massacre étnico, seriam um exemplo dos riscos que o mundo enfrenta. Huntington compartilha com Gaddis a preocupação com o fundamentalismo religioso, em especial o islâmico, chegando a afirmar que o Islã tem “fronteiras sangrentas”, sendo propenso à violência. O nacionalismo também é visto como ameaça, inclusive o nacionalismo dos EUA, pois o autor ressalta que valores norte-americanos, como individualismo e direitos humanos, não são universais, mas profundamente subversivos e perturbadores para outras culturas. Assim como Gaddis, Huntington manifesta receio quanto à fragmentação interna dos Estados Unidos, por meio do crime, das drogas e do suposto abandono dos valores ocidentais em prol do multiculturalismo e da imigração de latinos, africanos e asiáticos, que o autor encara inclusive como fonte potencial de espiões para países rivais dos EUA. Fórum dos Alunos do IUPERJ mauricio.pm6 7 27/09/04, 15:44 81 O sentimento de fragmentação e ameaças difusas não ficou restrito ao debate universitário, encontrando eco nos documentos oficiais. A “doutrina Clinton” (Casa Branca, 1998) alarga a noção de riscos à segurança nacional para incluir proliferação de armas de destruição em massa, terrorismo, crime organizado, pirataria na internet e problemas ecológicos. Tanto a doutrina Clinton quanto os intelectuais citados acima, freqüentemente, associam a fragmentação das ameaças a turbulências na periferia mundial, fornecendo assim uma razão para intervenções militares, como as praticadas na década de 90 no Haiti, na Somália e nos Bálcãs. Mas a principal força de fragmentação é representada pelos países que os EUA chamam de “Estados bandidos” (rogue States) ou weapon States, definidos pela doutrina Clinton como regimes autoritários, de comportamento agressivo, desrespeitosos do direito internacional, que auxiliam terroristas e aspiram à posse de armas de destruição em massa. A lista varia, embora sempre inclua Iraque e Coréia do Norte, estendendo-se ocasionalmente ao Irã, Cuba e, em nome dos velhos tempos, Líbia. Para lidar com esses países, são propostas sanções econômicas e regimes que os impeçam de adquirir armamento, bem como o controle das exportações norte-americanas, visando impor barreiras para a obtenção de tecnologia avançada. Tais medidas podem ser implantadas por organizações multilaterais, como a Organização das Nações Unidas — ONU, ou por acordos como o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares. No limite, o modo de tratar com os rogue States é a guerra, como exemplificado pela Guerra do Golfo e, de certo modo, pelo bombardeio à Sérvia em 1999. Os Neoconservadores e a Crítica à Contenção e à Dissuasão Durante a Guerra Fria, um dos principais pilares da política externa norte-americana foi a contenção da superpotência rival, a União Soviética, seja por meios econômicos, como o Plano Marshall, seja por 82 mauricio.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 8 27/09/04, 15:44 meios militares, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN. A contenção mostrou-se bem-sucedida, resultando no colapso soviético. Logo ganhou força uma estratégia para substituí-la, a primazia. E com ela uma crítica intensa aos pressupostos da dissuasão nuclear. A contenção obteve um grande consenso entre realistas e idealistas, mas nunca foi unânime. Para intelectuais como Hans Morgenthau, ela era por demais abstrata e indefinida, confundindo o interesse nacional russo com a retórica ideológica do comunismo. O próprio pai da estratégia, o diplomata George Kennan, lamentou que ela se tivesse militarizado em excesso, em vez de investir em ações políticas e econômicas. Também houve aqueles que, como o secretário de Estado de Eisenhower, John Foster Dulles, a atacavam como passiva, defendendo o rollback – a “descomunização” de territórios sob influência soviética, o que na prática foi sepultado pelo resultado da Guerra da Coréia e pela inação do Ocidente diante do fracasso da revolução húngara de 1956. Com a derrota norte-americana no Vietnã, a corrente de intelectuais neoconservadores formulou sua própria crítica da contenção, em especial no aspecto da dissuasão nuclear, e aumentou sua influência nos anos 80 e 90, vindo a se tornar parte importante do debate sobre política externa no governo de Bush filho, por intermédio de homens como Paul Wolfowitz, Richard Perle, William Kristol e Robert Kagan. Os neoconservadores defendiam o retorno aos valores ocidentais clássicos, que eram questionados pelos movimentos sociais dos anos 60 e 70. Os EUA deveriam desempenhar um papel de destaque no cenário internacional, promovendo a democracia e os direitos humanos em sociedades onde eles não existissem, como nos países comunistas e muçulmanos. Como Foster Dulles, eles consideravam a contenção passiva. O matemático e estrategista Albert Wohlstetter destacou-se por atacar a doutrina da destruição mútua assegurada (MAD, em inglês), pela qual a posse de arsenais nucleares por parte das superpotências garantiria a paz, pois nenhuma enfrentaria a outra tendo certeza de que seria destruída: Fórum dos Alunos do IUPERJ mauricio.pm6 9 27/09/04, 15:44 83 “Para Wohlstetter e seus alunos, a MAD era ao mesmo tempo imoral – pela destruição imposta aos civis – e ineficaz, pela neutralização mútua dos arsenais. Nenhum estadista dotado de razão decidiria pelo ‘suicídio recíproco’. Wohlstetter propunha, ao contrário, uma ‘dissuasão gradativa’, ou seja, a aceitação de guerras limitadas, eventualmente utilizando armas nucleares táticas, com armas ‘inteligentes’ de alta precisão, capazes de atacar os equipamentos militares do inimigo” (Folha de S. Paulo, 4/5/2003). O matemático formulou suas críticas durante a détente entre EUA e URSS, quando as duas superpotências viveram um momento de relações calmas e assinaram vários acordos de desarmamento e controle de material nuclear. Os neoconservadores criticaram essas decisões. Alguns deles serviram no chamado “time B” de analistas da Central Intelligence Agency – CIA, durante o governo Ford. O então diretor da agência, Bush pai, nomeou-os para ter uma segunda opinião sobre as avaliações do serviço de inteligência a respeito da URSS, julgadas muito brandas: “Em retrospecto, muito do relatório do time B era uma hipérbole do pior cenário possível; creditou à União Soviética o desenvolvimento de superarmas que ela nunca teve e ignorou os problemas de uma decadente economia soviética” (Keller, 2002). Muitos dos neoconservadores haviam sido militantes de esquerda nos anos 60 e alguns fizeram carreira também no Partido Democrata, em especial como assessores do senador Henry “Scoop” Jackson, um opositor da détente e dos acordos de desarmamento. No entanto, é com a eleição de Ronald Reagan, e com sua política de confrontação ideológica com a URSS, que o grupo obtém uma vitória importante: o projeto Iniciativa de Defesa Estratégica ou Guerra nas Estrelas. Embora nunca tenha saído do papel, ele representava o triunfo da crítica à dissuasão nuclear, na medida em que propunha criar um sistema que neutralizaria o arsenal atômico soviético. O tema seria retomado no debate sobre o escudo antimísseis, nos anos 90. No governo Bush pai, os neoconservadores ocuparam cargos de segundo escalão e tiveram resultados ambíguos. Fracassaram na tentativa de depor Saddam Hussein e instalar um regime democrático no Iraque – a Casa Branca preferiu limitar-se a expulsar o ditador do Kuwait e contê84 mauricio.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 10 27/09/04, 15:44 lo por meio de embargos econômicos, regimes de inspeção de armas e zonas de exclusão aérea. No entanto, os neoconservadores foram mais bem-sucedidos na formulação da doutrina da primazia. Embora atacados no início, na prática várias de suas idéias foram implantadas, convertendo-se em projetos consensuais, tanto entre republicanos quanto entre democratas. A estratégia deixou de ser vista como militarista e ganhou respeitabilidade, tornando-se nome de think-tanks como Projeto para o Novo Século Americano. O tema principal dos neoconservadores continuou a ser o Iraque. Ao longo do governo Clinton, ocorreram várias crises com Saddam Hussein que envolviam conflitos das autoridades de Bagdá com os inspetores da ONU, que acabaram expulsos do país. Foi então que o governo norteamericano mencionou, pela primeira vez, a mudança de regime no Iraque como um objetivo de política externa. Os neoconservadores expressaram sua posição em uma carta aberta ao presidente Clinton, destacando a questão das armas de destruição em massa: “A posição do Iraque é inaceitável. Apesar de o Iraque não ser o único país a possuir essas armas, somente ele as utilizou – não apenas contra seus inimigos, mas contra seu próprio povo. Precisamos assumir que Saddam está preparado para usá-las novamente. Isso coloca um risco para nossos amigos, nossos aliados e para nossa nação. Está claro que esse perigo não pode ser eliminado enquanto nosso objetivo for simplesmente ‘contenção’, e os meios de alcançá-la estiverem limitados a sanções e exortações. Como a crise das semanas recentes demonstrou, essas políticas estáticas estão condenadas a erodir, abrindo o caminho para um eventual retorno de Saddam a uma posição de poder e influência na região. Somente um programa determinado a mudar o regime em Bagdá irá levar a crise iraquiana a uma conclusão satisfatória” (Solarz et alii, 1998). A carta foi assinada por dezenas de intelectuais e políticos: neoconservadores de prestígio, como Perle, Kagan, Kristol; acadêmicos como Bernard Lewis; políticos como Donald Rumsfeld; e vários exmembros do alto escalão do Pentágono e do Departamento de Estado. Além de tratar de temas caros aos neoconservadores – como a crítica à Fórum dos Alunos do IUPERJ mauricio.pm6 11 27/09/04, 15:44 85 contenção e a pregação da democracia no Iraque, pela instalação do grupo dissidente Congresso Nacional Iraquiano –, o documento desenvolve as noções de ameaça fragmentada associada aos “Estados bandidos” e de armas de destruição em massa, comuns aos principais grupos políticos norte-americanos. Os neoconservadores eram críticos da contenção durante a Guerra Fria. Continuaram a condenar essa estratégia como modo de atuar contra os “Estados bandidos”. Já no início dos 90, Paul Wolfowitz (1992) propunha como solução o desenvolvimento de um escudo antimísseis, que pudesse proteger os EUA tanto de ataques convencionais quanto de uma ogiva contendo carga nuclear, química ou biológica, talvez em um atentado terrorista. O escudo antimísseis foi defendido por uma comissão bipartidária do Congresso, presidida por Donald Rumsfeld. O presidente Clinton aceitou as recomendações com cautela, procurando desenvolver um projeto compatível com os tratados de desarmamento assinados com a Rússia. Como isso não foi possível, o escudo foi abandonado. Mas não sem antes conquistar o apoio de ninguém menos que Henry Kissinger. O homem que, como um dos pais da détente com os soviéticos, havia sido o arqui-rival dos neoconservadores via-se agora defendendo algumas das mesmas posições. Ele escreveu que o MAD faz com que “a política de defesa se volte contra si mesma; ao buscar garantir a total vulnerabilidade da população, a doutrina de defesa se torna antidefensiva” (2001:65). Se os EUA se tornassem invulneráveis a um ataque nuclear, isso forneceria um poderoso incentivo para que usassem seu próprio arsenal atômico, pois não teriam que temer uma retaliação. Em resumo, uma vez superadas as teses declinistas, diversas correntes do pensamento estratégico norte-americano passaram a ver o mundo pós-Guerra Fria como unipolar, em que a tarefa dos EUA seria preservar a atual ordem internacional, impedindo o surgimento de um rival, se necessário por via de uma guerra preventiva. 86 mauricio.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 12 27/09/04, 15:44 Derrotado o comunismo, as ameaças fragmentaram-se em “Estados bandidos” e problemas transnacionais, como terrorismo, fundamentalismo religioso, crime organizado e degradação ambiental. Nesse contexto, cresceram as críticas à contenção e à dissuasão nuclear, formuladas em princípio pelos neoconservadores, conquistando aos poucos adeptos de diversos campos ideológicos. O modo de lidar com Estados hostis seria por meio da substituição de seus regimes e a implantação de democracias baseadas nos valores ocidentais. Para evitar um ataque desesperado com armas de destruição em massa, os EUA precisavam construir um escudo antimísseis, mesmo correndo o risco de romper os acordos de desarmamento com a Rússia. Em 11 de setembro de 2001, quando Bin Laden atingiu as torres do World Trade Center e o Pentágono, todos esses elementos afloraram com nova força e constituíram a base da doutrina de segurança do governo Bush. (Recebido para publicação em outubro de 2003) Nota 1. Reproduzo aqui parte de meu artigo “Em Busca do Inimigo: Os EUA numa Era de Ameaças Difusas” (Santoro, 2003). Fórum dos Alunos do IUPERJ mauricio.pm6 13 27/09/04, 15:44 87 Referências Bibliográficas CASA BRANCA. (1998), A National Security Strategy for a New Century. GADDIS, John Lewis. (1991), “Toward the Post-Cold War World”. Foreign Affairs, vol. 70, nº 2. GUIMARÃES, Cesar. (2002), “A Política Externa Americana: Da Primazia ao Extremismo”. Estudos Avançados, nº 46. HAAS, Richard. (1999), “What to Do with American Primacy?”. Foreign Affairs, vol.78, nº 5. HUNTINGTON, Samuel. (1993), “Why International Primacy Matters”. International Security, vol. 17, nº 4. IKENBERRY, G. John (org.). (2002), American Foreign Policy: Theoretical Essays. New York, Longman. KELLER, Bill. (2002), “The Sunshine Warrior”. New York Times Sunday Magazine, 22 de setembro. KISSINGER, Henry. (1999), Diplomacia. Rio de Janeiro, Francisco Alves. ___. (2001), Does America Need a Foreign Policy? New York, Simon & Schuster. KRAUTHAMMER, Charles. (1991), “The Unipolar Moment”. Foreign Affairs, vol. 70, nº 1. POSEN, Barry e ROSS, Andrew. (2001), “Competing Visions for US Grand Strategy”, in M. E. Brown (org.), America’s Strategic Choices. Cambridge, MIT Press. SANTORO, Maurício. (2003), “Em Busca do Inimigo: Os EUA numa Era de Ameaças Difusas”, in T. Domingues et alii (orgs.), Relações Internacionais: Temas Contemporâneos. Florianópolis, Feneri. 88 mauricio.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 14 27/09/04, 15:44 SOLARZ, Stephen et alii. (1998), “Open Letter to the President”. 19 de fevereiro (disponível no site http://www.newamericancentury.org). WOLFOWITZ, Paul. (1992), “The New Defense Strategy”, in G. Allison e G. Treventon (orgs.), Rethinking America’s Security. New York, W. W. Norton. Fórum dos Alunos do IUPERJ mauricio.pm6 15 27/09/04, 15:44 89 Resenha do livro The Broken Covenant: American Civil Religion in Time of Trial, de Robert N. Bellah, 1975 PEDRO HERMÍLIO VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO* Resumo Esta resenha mostra como Robert Bellah, ao buscar compreender os fundamentos da construção da nação norte-americana, recorre a uma abordagem cultural, cuja análise mitológica privilegia a moral e a religião como categorias epistemológicas. Tal análise mitológica não se detém apenas na descrição dos símbolos e imagens bíblicas que operaram no imaginário dos indivíduos participantes da construção dos Estados Unidos. Bellah também compreende o mito como uma fonte de significados, isto é, como uma potência capaz de revelar, renovadamente, o telos dos papéis dos indivíduos e da sociedade norte-americana desde a experiência de colonização até os dias de hoje. Palavras-chave: religião civil; mito; nação; secularização * Doutorando em ciência política do IUPERJ. E-mail: [email protected]. Fórum dos Alunos do IUPERJ Pedro.pm6 1 27/09/04, 15:45 91 R obert N. Bellah na introdução à segunda edição (1992) de seu The Broken Covenant: American Civil Religion in Time of Trial, publicado pela primeira vez em 1975, fornece ao leitor uma pista do significado de seu controvertido conceito de religião civil. Durante conferências proferidas pelo autor em universidades do Japão sobre a religião na vida pública norte-americana, como exigência de bolsa concedida pela Universidade de Harvard, percebera que japoneses se confundiam a respeito da separação entre Igreja e Estado. Tal fato não foi trivial, já que a confusão permitiu ao autor descortinar seguinte questão: a praxis da vida pública norte-americana não coincidia com o conceito de secularização que adotara, isto é, da separação entre Igreja e Estado. Ao contrário do que proferira nas conferências, concluiu que a “muralha da separação” – imagem utilizada nos discursos de Thomas Jefferson para representar o divórcio entre Igreja e Estado –, nos Estados Unidos, não era inescrutável, e que, portanto, a religião desempenhava um importante papel na vida pública norte-americana. A profícua confusão japonesa contribuiu para Bellah publicar, em 1967, “Civil Religion in America”. O artigo ateou fogo na discussão sobre a autocompreensão da identidade nacional norte-americana, sobretudo em virtude de ter o autor introduzido o conceito supostamente novo de religião civil, a fim de compreender como as imagens bíblicas não só moldaram as interpretações, mas também orientaram as ações norteamericanas ao longo de sua experiência política. Isto se torna importante na medida em que a segunda edição de The Broken Covenant contém um posfácio redigido em 1978, em que o próprio autor diz ter feito um “esforço desesperado para defender o termo religião civil”. O conceito de religião civil corresponde ao argumento principal do livro: como se explica o fato de nos rincões da América do Norte – no “Novo Mundo” – ter sido criada uma comunidade nacional apoiada em laços de solidariedade entre as colônias que, além de fazer uma revolução e criar uma nação, funda uma República ancorada nos valores da liberdade e da igualdade? Descrente na ciência, nos modelos 92 Pedro.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 2 27/09/04, 15:45 econômicos, nos sistemas políticos técnico-racionais e no utilitarismo como formas de explicação e construção da sociedade, Bellah recorre a uma abordagem cultural, optando por responder à sua questão por via de uma análise mitológica, que privilegia a moral e a religião como categorias epistemológicas. Partir de uma análise mitológica não significa apenas descrever os símbolos e imagens bíblicas que operaram no imaginário dos indivíduos que participaram da construção dos Estados Unidos, mas também encarar o mito como uma fonte de significados, isto é, como uma potência capaz de revelar, renovadamente, o telos dos papéis dos indivíduos e da sociedade norte-americana da colonização aos dias de hoje. O trabalho de Bellah, portanto, não deixa de revelar um traço normativo, pois, além de buscar os fundamentos morais e religiosos na formação da nação norte-americana, seu método reconstrutivo tem como proposta reafirmar e reatualizar valores morais e religiosos que não só contêm os apetites do liberalismo e do auto-interesse, mas têm o potencial de juntar as peças rompidas do pacto republicano, de modo a atingir o plano interno da consciência dos indivíduos. O resgate dos mitos da tradição norte-americana faria com que os indivíduos internalizassem os princípios e valores éticos de uma República moderna formada por cidadãos participativos. Assim, poder-se-ia refazer o pacto republicano por meio da adesão interna dos indivíduos motivada por valores morais e religiosos. O conceito de religião civil permeia todo o livro e é uma importante chave para a compreensão do argumento principal mencionado acima. Todavia, antes de esmiuçá-lo, deve-se salientar que a introdução do termo religião civil corresponde à pretensão do autor de mostrar que a explicação da criação da nação, da colonização, da revolução e da fundação e manutenção do corpo político norte-americano está ancorada na análise da moral e da religião. Bellah pretende focalizar, sobretudo, a religião como um elemento que não foi varrido para fora da vida política, mas como potência que explica, orienta e motiva a conduta humana mesmo no âmbito das ações políticas. Mais do que isso, para o autor, sem se fundamentar nos valores religiosos provenientes da tradição, o Estado neutro, constituído pela ordem racional-legal, não Fórum dos Alunos do IUPERJ 93 Pedro.pm6 3 27/09/04, 15:45 existe, o pacto republicano configurado em uma democracia constitucional não sai do papel. O pacto rompido corresponde àquele que é apenas externo, isto é, tem somente caráter formal. Não se sustenta sem um pacto interno, isto é, sem a adesão interna dos indivíduos provida pela dimensão religiosa, que neles opera a crença em princípios e valores transcendentes, sem os quais não existiriam as instituições políticas. De acordo com Bellah, a idéia de República pressupõe a idéia de liberdade; porém, quando o pacto é meramente externo, tal liberdade é apenas negativa e só faz sentido para o liberalismo político. De forma quase platônica, a República é fundada no princípio transcendente do bem, portanto, presume a liberdade positiva, calcada na idéia de uma participação efetiva do indivíduo na esfera pública. Daí o autor identificar liberdade positiva com liberdade pública, princípio sobre o qual se edifica a democracia constitucional. The Broken Covenant: American Civil Religion in Time of Trial consiste em uma investigação bem documentada que informa sobre os símbolos e imagens que resultariam nos modelos arquetípicos da identidade nacional norte-americana. Entre tais documentos se encontram passagens bíblicas do Velho e do Novo Testamento e algumas de suas interpretações, discursos de líderes religiosos e políticos que vão do século XVII ao XX. Esse material permite ao autor pensar o mito de origem da América como uma estrutura complexa, repleta de tensões internas. Tal mito proveria o imaginário de toda sorte de europeus, entre outros indivíduos que se lançaram rumo ao “Novo Mundo”, como os puritanos da Nova Inglaterra e todos os heróis e desconhecidos que participaram da revolução e fundação de um corpo político, como, por exemplo, os notáveis foundingfathers. Bellah acredita que a estratégia de partir do mito de origem revela a forma pela qual os personagens da trama norteamericana se autocompreendiam. O autor adverte que o entendimento do mito de origem norte-americano deve ser enquadrado na história do país, com especial atenção às ações e decisões relacionadas à Declaração de Independência e instituição de um novo corpo político, isto é, a Constituição dos Estados Unidos. O referido mito seria portador da idéia de início e principium. Toda ação ou decisão reatualizaria um começo, algo novo, extraordinário, singular. Todavia, citando Hannah Arendt, Bellah indica que a idéia do iniciar, do começar do “nada”, 94 Pedro.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 4 27/09/04, 15:45 seria uma arbitrariedade se não fosse resguardada pela crença de que todo iniciar traz incluído em si um princípio; logo, a idéia de iniciar seria coexistente à idéia de principium. O aspecto central do mito de origem norte-americano implicaria a consciência do significado da criação, o que conferiria consciência da responsabilidade de cada indivíduo ou da sociedade como um todo no ato de suas decisões. A referida noção de mito utilizada pelo autor tem a função de ser a base do conceito de religião civil, pois o mito não descreve a realidade e tampouco tem compromisso com a “verdade”; ao contrário, o mito teria a finalidade de transfigurar a realidade de modo a fornecer um telos aos indivíduos ou sociedades, em síntese, ser uma fonte de significados capaz de converter o indivíduo em um portador de sentido. A complexa estrutura do mito transformaria a realidade e revelaria tensões internas que poderiam ser observadas nas formas assumidas por ele, sem, no entanto, perder de vista seu traço central já mencionado. Portanto, da perspectiva dos descobridores europeus, a América representaria “o novo”, muito semelhante à noção do iniciar. A idéia sagrada do novo seria transladada para a de um novo mundo. Conforme Bellah, de acordo com Locke, no início do mundo somente havia a América. Influenciadas pelo pensamento de Locke, as representações dos europeus revelavam uma América primitiva, incólume do mundo e dos homens desde os seus primórdios. A visão do novo, portanto, não era apenas aquela dos descobridores e exploradores europeus, mas também aquela recebida pelas mãos de Deus. Posteriormente, o autor mostra como a imagem da América, ancorada nas representações do estado de natureza de Hobbes e Locke, aparecia, respectivamente, ora como selvagem, bruta, precária, ora como um local de paz, assistência mútua e preservação. O imaginário da América, proveniente da reforma protestante, também consistia na representação do novo, pois a própria Reforma trazia em si a noção de algo novo e a partir dela se projetaria na América seus ideais, como o presságio do nascimento de um novo céu e de uma nova terra. Aliás, em seu livro, Bellah aduz um documento emblemático do início da história americana. Trata-se de um discurso religioso pregado em um barco em 1630. Antes de desembarcar no “Novo Mundo”, John Fórum dos Alunos do IUPERJ 95 Pedro.pm6 5 27/09/04, 15:45 Whinthrop fez o sermão “Um Modelo de Caridade Cristã”, inspirado na fórmula do Deuteronômio 30, estabelecendo um novo pacto entre cada um dos puritanos ingleses da embarcação e Deus. O pacto pregado no sermão fazia com que cada um assumisse obrigações entre si e todos com Deus. De acordo com o sermão de Whinthrop, o pacto firmado entre os colonos era fundado, sobretudo, em laços de solidariedade, enquanto aquele firmado entre os homens e Deus seguia a fórmula do Deuteronômio 30, que previa maldições e bênçãos. É interessante observar que a América, no acordo firmado no barco entre os peregrinos e Deus, era representada como anúncio da terra prometida, isto é, como um prelúdio de “Nova Israel” ou de Canaã. Na interpretação de Bellah, a América vista como Nova Israel simbolizaria para os puritanos a possibilidade de instaurar uma comunidade política neste mundo. A partir do sermão de 1630, seria possível vislumbrar princípios que prenunciam a fundação de uma República. O sermão de Whinthrop corresponde diretamente à idéia de religião civil, já que o primeiro líder de Massachusetts, diferentemente de Santo Agostinho, não separava a Civitas dei da Civitas hominis, isto é, a Igreja do Estado; ao contrário, ambas as instituições estavam intimamente ligadas, de modo que a esfera espiritual transferia princípios para a esfera secular. Refutando a imagem da “muralha da separação” presente em algumas passagens dos discursos de Jefferson citadas no livro, Bellah quer mostrar que sem o conceito de religião civil não é possível compreender o traço peculiar da experiência norte-americana, que não separa a religião da política. Talvez este seja um dos pontos mais importantes para a compreensão das idéias do autor, já que, à exceção de alguns poucos autores, a exemplo de Carl Schmitt e Thomas Hobbes, se tornou lugar-comum ou quase um dogma afirmar que a secularização é fenômeno típico da sociedade ocidental moderna definido pela separação entre Igreja e Estado. Do significado do mito de origem norte-americano que representa os americanos como um povo eleito e a América como a terra prometida, Bellah extrai muitas conclusões que revelam suas tensões internas. Os índios e, posteriormente, os negros não faziam parte da formação da nação norte-americana, e tampouco estavam incluídos no imaginário bíblico da consciência individual dos peregrinos puritanos que forneceria 96 Pedro.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 6 27/09/04, 15:45 princípios para a fundação da República. Não havia contrato entre os índios, os negros e Deus. Como índios e negros não eram dotados de direitos intrínsecos à natureza humana, o autor verifica que a figura do puritano anglo-saxão era considerada como um modelo para os “outros” da nação, pois monopolizava o uso das figuras e imagens bíblicas que expressavam o significado da história norte-americana. Esse monopólio teria justificado a prática de genocídio, a exploração de grupos étnicos e até mesmo a apologia ao exercício de empreitadas imperialistas. A despeito disso, o autor mostra a importante contribuição de intelectuais dos séculos XIX e XX, como Henry James, e de grupos religiosos ao longo da história, no sentido de retomar as culturas reprimidas dos grupos étnicos com o intuito de incluí-los na idéia de uma comunidade nacional. Vale esclarecer que o autor destaca o importante papel da religião na luta pela emancipação dos negros, cujo zênite seria, após a Guerra Civil, a adoção das emendas 13, 14 e 15 à Constituição, que terminavam formalmente com a escravidão. Outro ponto que poderia ser destacado no livro de Bellah se relaciona com as idéias socialistas. Por que teriam tido influência tão restrita nos Estados Unidos? Conforme o autor, o ateísmo e a burocracia centralizada do Estado seriam obstáculos à aceitação dos ideais socialistas pelos norte-americanos. E conclui que a inserção das mesmas só obteve algum êxito na cultura norte-americana na medida em que foram incorporadas por discursos religiosos. Para Bellah, o imaginário bíblico do povo norte-americano jamais poderia renunciar à idéia de Deus e tampouco à liberdade do indivíduo perante o poder estatal. A despeito disso, o autor chama a atenção para as grandes corporações (empresas) que criam empecilhos à liberdade. Se o Estado não inviabilizava o surgimento de pequenas propriedades, as corporações impediam seu êxito e expansão. Bellah critica o modelo econômico norte-americano que, ao favorecer as grandes empresas privadas e corporações, contrapõe-se à liberdade e virtude republicanas, impedindo uma democracia republicana participativa. O caráter normativo do livro de Bellah revela a necessidade de o norteamericano reconciliar-se com sua tradição, recuperando seus mitos com seus símbolos e valores. O resgate da tradição significa a possibilidade Fórum dos Alunos do IUPERJ Pedro.pm6 7 27/09/04, 15:45 97 de um estimulante renascimento ou reatualização dos mitos norteamericanos, o que poderia operar nos indivíduos a internalização de certos princípios e valores necessários à idéia de uma liberdade positiva, indispensável a uma democracia republicana participativa. A reconciliação com a tradição seria a única forma de se estabelecer um pacto interno e não apenas externo. Bellah sustenta que apesar de a escravidão ter sido abolida e o voto da mulher garantido, se a tais conquistas não houver uma adesão interna dos indivíduos, não haverá uma participação efetiva dos mesmos na sua implementação. O pacto externo necessita da adesão dos indivíduos. Por fim, poder-se-ia dizer que Bellah atribui significado excessivo ao resgate da tradição por acreditar que o indivíduo pode reconciliar-se com valores e princípios que estariam em um plano transcendente aos homens. Bellah parece esquecer-se do caráter arbitrário do agir no mundo. (Recebido para publicação em novembro de 2003) 98 Pedro.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 8 27/09/04, 15:45 Carl Schmitt, Direito e Juízo∗ ROGERIO DULTRA DOS ** S ANTOS Resumo O presente trabalho objetiva identificar os elementos de crítica aos fundamentos da decisão judicial em Direito e Juízo: Uma Investigação sobre o Problema da Prática Jurídica, de Carl Schmitt (1912). A partir do cotejo com sua obra do período da República de Weimar (1919-1933), tentar-se-á perceber como o conceito maduro de decisionismo já se encontra latente em sua análise sobre o fundamento normativo do conteúdo da decisão judicial e de que forma esse decisionismo o faz romper com a oposição neokantiana entre ser e dever ser, característica das abordagens correntes da época, em especial da do jurista austríaco Hans Kelsen. Palavras-chave: Carl Schmitt; decisionismo; sentença * Este texto é um estudo preparatório que está sendo desenvolvido em minha tese de Doutorado, realizada sob a orientação do prof. José Eisenberg. ** Bacharel em direito pela Universidade Católica de Salvador UCSal; mestre em teoria e filosofia do direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC; doutorando em ciência política no IUPERJ . Professor da Universidade do Vale do Itajaí UNIVALI. Agradeço o acesso à bibliografia de Schmitt em alemão a Bernardo Ferreira da Silva. Fórum dos Alunos do IUPERJ 99 Introdução Carl Schmitt (1888-1985) é um autor que renovou a crítica aos fundamentos jurídicos do liberalismo a ponto de não se poder fazer teoria jurídica sem que conceitos redefinidos por ele, como legalidade, legitimidade, teoria da Constituição, decisionismo, estado de exceção, o político, soberania, ditadura comissarial etc., sejam levados em conta. Essa crítica ao direito foi especialmente original e profícua entre os anos da República de Weimar (1919-1933), quando o autor ainda não havia aderido temporariamente ao regime nazista. O programa teórico de Schmitt define, em geral, até que ponto se pode prescindir da legitimidade vinculada a práticas que respeitem integral e efetivamente os fundamentos do próprio discurso e modelo político do liberalismo. Não se deve, porém, perceber o esforço teórico de Schmitt como uma tentativa de facilitar a destruição do liberalismo no período entreguerras, mas como um esforço de identificar as fraquezas do regime democrático de Weimar e clamar pela atividade política concreta capaz de sedimentar o Estado democrático (ou o Estado social, em sua visão particular), ameaçado pela ideologia e pelas instituições liberais (Galli, 2000:1.602). O antiliberalismo e o antiformalismo jurídico de Schmitt características gerais de sua obra, de caráter conflitivo e natureza polêmica não aparecem exclusivamente por conta dos desafios desse período histórico específico. Na verdade, uma extensa tradição católica reacionária pode ser identificada como fonte intelectual de suas idéias (como Hamann, De Maistre, De Bonald, Cortés, entre outros), e uma quantidade representativa de intelectuais contemporâneos estabeleceram-se, de formas diversas, como críticos ou descrentes do liberalismo (como Mannheim, Smend, Tönnies e Thoma). Dessa forma, o estudo da obra de Schmitt envolve questões que, se dialogam com seu contexto, não se limitam exclusivamente a ele. Deve-se ressaltar, entretanto, que a direção específica da ordem social que Schmitt imagina e configura nos anos de Weimar é a de uma condução propriamente normativa da vida social, não recaindo em uma percepção irracionalista ou naturalista, ou mesmo identificando exclusivamente a violência ou as relações de força como seus fundamentos1 . 100 Cadernos de Sociologia e Política Essa chave para a interpretação de Schmitt é passível de reconhecimento em todos seus escritos da fase anteriormente aludida e remonta, inclusive, a momentos iniciais de seu pensamento. Esse é o caso da legitimidade das decisões do Poder Judiciário. O presente trabalho tem como objetivo identificar os elementos de sua crítica aos fundamentos da decisão judicial no seu primeiro livro, Direito e Juízo: Uma Investigação sobre o Problema da Prática Jurídica (1912), após sua tese de doutorado. A partir de uma comparação com sua obra weimariana, tentar-se-á mostrar como o conceito maduro de decisionismo de base existencialista já se encontra latente em sua análise sobre a origem normativa do conteúdo da decisão judicial, e de que forma esse decisionismo o faz romper com a oposição neokantiana entre ser e dever ser, característica das abordagens correntes na época, em especial a do jurista austríaco Hans Kelsen, que um ano antes havia publicado Problemas Fundamentais da Doutrina do Direito Público (1911), no qual apontava a idéia de proposição jurídica um juízo hipotético realizado pela ciência jurídica como caminho para classificar de forma exclusivamente jurídico-normativa os atos executivos do Estado, identificando-os com o próprio ordenamento jurídico. Decisionismo, Direito e Política É importante ressaltar que o decisionismo, em Schmitt, tem uma dimensão mais ampla, caracterizando-se como uma forma de interpretar e pensar o fenômeno jurídico, definindo-se a partir da relação entre direito e política entre ordem jurídica e Estado , tal como transparece no seu O Conceito do Político (1932). O conceito de Estado, portanto, é a chave para a compreensão desse decisionismo da maturidade. Para Schmitt, a ordem estatal só pode ser definida quando pressupõe a instância do político, ou seja, o Estado é uma situação ou estado (Zustand) que fornece a medida em caso de decisão (Schmitt, 1996c). Dessa forma, é algo (instituição, organismo, máquina ou pessoa) que compõe e se submete enquanto parte à política, mas com ela não se confunde. Dizer que o Estado é uma parte da política significa afirmar, em primeiro lugar, que a dimensão do político transcende o Estado, regulando mesmo Fórum dos Alunos do I UPERJ 101 a sua existência e o seu funcionamento e, em segundo lugar, sustentar uma crítica ao discurso liberal do século XIX, que vê no Estado o começo e o fim da política (idem:21-26). Identificar o espaço do político, determinando seu âmbito e especificidade, depende, para Schmitt, do estabelecimento de conceitos que diferenciem seu domínio dos da moral, da estética e da economia. Com efeito, o político é definido como a situação empírica limite em que forças sociais em oposição precisam pôr fim ao conflito que as atingem, sendo elas, ao mesmo tempo, discriminadas, reconhecidas e identificadas a partir da diferenciação amigo/inimigo (idem:28 e ss.). Esta distinção é definitiva em toda a sua obra. O Estado e suas instituições representam um retrato momentâneo de um conflito existencial que só cessa à medida que se alcança homogeneidade política substancial na comunidade, i.e., quando existe unanimidade da vontade a partir da identidade entre representantes e representados (Schmitt, 1996b:19-20). Essa visão sociológica da política enquanto fenômeno definível por intermédio da verificação empírica de uma situação de impasse sustenta que o conflito só pode ser eliminado simbolicamente pela aniquilação do discurso oposto, i.e., por uma ação hierarquicamente superior e juridicamente decisiva que proporcione a vitória de uma determinada verdade, facção ou força política sobre os rumos do combate. A questão é que essa decisão resolutiva é sempre arbitrária, pois, em se tratando de sua dimensão jurídica, a indeterminação do sentido da norma abstrata quando aplicada a um caso concreto é resolvida mediante uma decisão de caráter pessoal. É, também, necessária e profundamente autoritária, pois se realizar negando o direito de existência do outro é o que permite a sobrevivência do detentor do poder decisório. O caminho intelectual que origina tal perspectiva pode ser recuperado nos trabalhos de juventude de Schmitt, como no livro Direito e Juízo. Neste, o autor identifica como problema nuclear da teoria jurídica contemporânea a indeterminação legal, ou seja, o fato de normas jurídicas gerais e abstratas estarem impossibilitadas de revelar um sentido preciso no momento de sua aplicação judicial ao caso concreto. Esta percepção opera em contraposição ao dogma positivista da completude do ordenamento jurídico, segundo o qual a decisão judicial sobre um caso 102 Cadernos de Sociologia e Política concreto deriva lógica e dedutivamente da lei (Hofmann, 1999). Para Schmitt, o juiz que necessita especificar a legalidade de sua decisão não tem na lei pura e simples um alicerce seguro para se apoiar2 . A questão a ser colocada, então, é: Quando uma decisão judicial é correta?, ou melhor, Sobre qual princípio normativo está fundada a moderna prática jurídica? (Schmitt, 1912:1). Normatividade e Homogeneidade da Decisão Judicial Expressa a questão por esse ângulo, a prática jurídica não pode ser limitada por um critério inócuo como a conformidade com a lei, pois decisões que não atingem o sentido da lei que, na aplicação, é indeterminado podem ocorrer e devem ser, por este exclusivo critério, consideradas como pertencentes ao ordenamento jurídico, já que se manifestam sob a forma legal. Este é o caso clássico, lembra Schmitt, de uma concepção nova do direito que está apta a obter reconhecimento utilizando o sentido literal da lei contra seu objetivo inicial, como ocorre na peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare (idem:112)3 . Se sentenças contra legem ou independentes da lei podem ocorrer, a única forma de preservar o estatuto de autoridade da norma in concreto é estabelecer a especificidade legal da mesma, ou seja, é necessária a construção de um princípio metodológico hipotético que possa dar fundamento jurídico autônomo independente da pretensão de legalidade estrita à prática judicial. Tal princípio é manifesto na seguinte fórmula: Uma decisão judicial é correta hoje se se puder assumir que um outro juiz já tiver decidido no mesmo sentido. Um outro juiz refere-se aqui ao tipo empírico do jurista moderno e legalmente culto (idem:71). Um outro juiz representa aqui a tradição da prática judicial. Assim, para que uma decisão judicial seja válida juridicamente (seja correta) em um procedimento judicial corriqueiro, que não pretende resolver os casos difíceis ou estabelecer princípios gerais destituídos de significado normativo , é preciso, qualquer que seja a direção da sentença, que o juiz esteja sempre se reportando não necessariamente ao sentido da lei, mas ao sentido das decisões que anteriormente foram prolatadas. A tradição judicial, mais que o estatuto legal, passa a ser o fundamento de sentido da prática do juiz e o seu âmbito de especificidade legal. Fórum dos Alunos do IUPERJ 103 O argumento de Schmitt não aponta, como se poderia inicialmente pensar dado o caráter eminentemente existencial da decisão política, como a caracteriza em seus escritos posteriores , para uma discricionariedade livre, mas remete a um elemento personalista da decisão, em contraposição, por exemplo, ao formalismo abstrato do liberalismo jurídico de Kelsen, como Schmitt o percebe, que peca por creditar a legitimidade da decisão judicial ao exclusivo fato de o juízo ser normativamente competente para prolatá-la, reconhecendo uma esfera limitada de discricionariedade dentro da qual o juiz é livre para determinar o sentido da norma em concreto4 . Para Kelsen, portanto, a elaboração da norma individual, no momento em que se aplica a lei ao caso específico, é uma função da vontade, contanto que se preencha com esta o limite da norma geral, ou seja, se com a vontade a moldura formal estabelecida pela norma jurídica geral é respeitada no momento da definição do conteúdo concreto da sentença, a norma sendo compreendida aqui como um marco dentro do qual se dão várias possibilidades de decisão (Kelsen, 1941:131-136). Desse modo, a lei, quando aplicada a um caso concreto, não pode gerar uma única decisão correta. Esta percepção, que objetiva normatizar o conteúdo da decisão judicial, externada, segundo Kelsen, pela teoria tradicional, seria uma tentativa inócua de desenvolver um método que autorize a preencher retamente o marco verificado (idem:132). Assim, a cientificidade em que se apóia a prática da aplicação da lei tem, para esse autor, um caráter absolutamente político-jurídico, pois nada que se realize para além do demarcado pela norma jurídica pode ser considerado puramente normativo. Esse ponto de vista torna o ato jurisdicional uma apreciação livre da vontade daquele que está autorizado pelo próprio direito para realizá-lo, ou seja, o juiz, ao aplicar a lei, decide politicamente, a partir de limitações formais impostas pela norma, qual a norma individual, dentre várias possíveis, a ser utilizada. A aplicação do direito é um ato intelectual ao qual se soma sua vontade, que é competente para tanto por uma autorização normativa do Estado, não existindo a possibilidade de se evitar a pluralidade de alternativas, a não ser por uma decisão política do juiz (ibidem). 104 Cadernos de Sociologia e Política Já em Schmitt, dada sua pretensão de identificar o elemento normativo da decisão judicial, a objetividade (normatividade) jurisprudencial existe e é construída consensualmente entre iguais. Pode-se argumentar, utilizando a terminologia existencialista posterior de Schmitt, que tal igualdade se constitui a partir de uma elite que se estrutura existencialmente por meio da manifestação reiterada de uma decisão que garante a continuidade da realização do passado. Nesse sentido, decidir, tanto política quanto juridicamente, significa a definição da própria individualidade como pertença a uma unidade autêntica que possui um destino ou um objetivo específico: a reafirmação da ordem. Assim, a determinação da decisão judicial só se sustenta com a destruição do pluralismo, com a homogeneidade espiritual que subjaz ao argumento schmittiano de juventude e que se manifesta explicitamente em sua maturidade. Para Hasso Hofmann, Schmitt tenta afastar-se, sem sucesso, da problemática kelseniana estabelecida em seu primeiro texto, por intermédio da divisão metodológica entre as questões derivadas do estudo da ciência do direito (subsunção da validade de uma norma jurídica por outra norma jurídica em um determinado ordenamento) e da aplicação prática do direito (método de interpretação da norma jurídica com vistas à aplicação judicial). Quando Schmitt se pergunta sobre a juridicidade da decisão judicial nada mais faz do que identificar a aplicação do direito como sendo expressamente normativa, o que, se elimina a ilusória delimitação de Kelsen, faz por reconhecer a decisão judicial como problema da ciência do direito (Hofmann, 1999:66-67). A asserção metafísica implícita em Schmitt nesse ponto é que o juiz, ao suprimir as lacunas na aplicação da lei ao caso concreto, é a humanidade, a vida do direito. É essa substância vital, expressa na decisão do juiz no caso excepcional, que elimina o formalismo da jurisprudência (McCormick, 1997:1.697-1.698). A questão política subjacente é a necessidade de conter a arbitrariedade de um Estado que consegue penetrar na esfera privada, implementando políticas públicas fundadas em uma administração burocrática. Segundo McCormick, o que Schmitt critica é o fato de que: Ao reprimir o Estado, os formalistas legais não somente não previnem o funcionamento arbitrário do Estado, Fórum dos Alunos do IUPERJ 105 como permitem que sua atividade prolifere mais extensivamente e de forma não detectável em um grau maior (idem:1.698). A motivação da decisão judicial deve ter como objetivo institucional, então, a condução a um convencimento geral sobre a própria decisão (Schmitt, 1912:97). Assim, argumentará Schmitt, o que dá legitimidade à decisão é o efeito de convencimento produzido por ela: o que constitui a justeza da decisão não é o fato de o juiz se comportar conforme um comando, mas que este satisfaça o princípio da determinação jurídica (idem :98). A decisão judicial, para Schmitt, representa, epistemologicamente, a tentativa de superar a antítese kantiana entre ser e dever ser, entre fato e norma, mediante a justificação do ato, da práxis judicial, por si mesma (Hofmann, 1999:72). Para Schmitt, no desenvolvimento de sua obra, o caráter pessoal (existencial) da decisão jurídica irá denunciar o caráter político do direito. Nesse sentido, no seu livro Teologia Política I Quatro Ensaios sobre Soberania (1922), a decisão personalizada define a soberania dos poderes em conflito no espaço político, pois a soberania é um conceitolimite e soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção (Schmitt, 1996a:13). A soberania também é, para além de seu caráter jurídico, um status essencialmente político que tem a qualidade especial de atribuir diferenciação entre vencidos e vencedores. Os próprios elementos que compõem e fundamentam a decisão são indeterminados, já que, por ela acontecer em um momento excepcional, tanto as condições como o conteúdo da competência são necessariamente ilimitados (ibidem). Conforme Schmitt, o problema das teorias da soberania vinculadas a um modelo formal de direito e Estado é que elas defendem uma objetividade segundo a qual tudo que é pessoal deve desaparecer do conceito de Estado, por sustentar o argumento de que todas as idéias personalistas são conseqüências históricas da monarquia absoluta (idem:36). Schmitt recupera e mantém intacta, aqui, a idéia de um decisionismo jurídico segundo o qual Cada decisão jurídica concreta contém um elemento indiferenciado de conteúdo, porque a conclusão jurídica não emana em sua totalidade de suas premissas e o fato de ser necessária, faz com que a decisão se conserve como elemento determinante e autônomo (ibidem). 106 Cadernos de Sociologia e Política Assim, o pensamento jurídico é estruturado mediante uma decisão concreta, de natureza política, porque consensual, estamental e personalíssima. Obviamente, a resposta de Schmitt à questão o juiz deve se reportar à tradição, ao juiz outro, e daí retirar a medida concreta da decisão marca o caráter inalienavelmente político do direito. Pode-se sustentar, portanto, que Schmitt reitera a visão estabelecida, em 1912, no seu ensaio de juventude, segundo a qual a regularidade jurídica deve ser preservada por meio da homogeneidade dos juízes5 . O Schmitt do Defensor da Constituição (1931) remete-se ao primeiro livro para afirmar o caráter substancial do decisionismo: em toda decisão, inclusive na de um tribunal que decide processualmente, subsumindo conforme os fatos, existe um elemento de pura decisão, que não pode ser derivado do conteúdo da norma. Essa decisão se realiza continua , pela remoção autoritária da dúvida. Assim, se a perspicácia logicista dos argumentos trazidos ao direito pode sempre suscitar dúvidas novas, o sentido e o objeto da sentença que é a decisão é sempre eliminá-las de forma autêntica, realizando a prestação jurisdicional (Schmitt, 1996d:37-38). Considerações Finais A importância da crítica antiliberal à indeterminação do direito é que, por intermédio dela, se torna possível uma revisão de todo o sistema jurídico-político liberal, na medida em que este é chamado a comprovar as suas razões. Esta constatação tem, por outro lado, uma substancial natureza dramática, já que a alternativa política ao ordenamento jurídico não é necessariamente a emancipação do sistema capitalista, com a conseqüente instauração da democracia substantiva, da igualdade e da distribuição equânime de bens e oportunidades. Esse caminho não é historicamente imperativo. E é aí que o exemplo histórico-político de Carl Schmitt é esclarecedor: perceber a crise do direito e das instituições liberais levou-o a escolher o caminho da determinação dos fundamentos da decisão por meio da força concreta personalizada em uma liderança carismática. Dessa forma, se o poder soberano absoluto não é alcançável pela regra do direito, pelo fato de a decisão conseqüente ser de natureza indeterminada, a solução mais simples pode ser recorrer, sob um viés político, à liderança personalista e evitar as lacunas e antinomias que Fórum dos Alunos do I UPERJ 107 impedem a decisão, reconhecendo, por exemplo, que o presidente do Reich deve ser o defensor do direito; ou, por via de uma perspectiva jurídica, estabelecer a precedência da homogeneidade de uma elite que se constitui necessariamente como negação do pluralismo: ambas são posições que se realizaram na história externando seu potencial de perversidade. Na verdade, a crítica antiliberal não está necessariamente vinculada a um projeto específico de ordem política, mas aparece muitas vezes como pretexto para a sua realização. É preciso dizer que efetivamente existe um discurso jurídico antiformalista que tem como objetivo a refundação da ordem jurídica, mas essa abordagem não se revelou capaz de promover as garantias necessárias para a realização da própria ordem que pretendeu implementar. Os dilemas da política ainda hoje apontam para a crítica à desregulamentação, para o informalismo, e é claro que em uma perspectiva um tanto diversa da schmittiana. É preciso, contudo, atentar para as possibilidades perversas que a eliminação de alguns limites jurídicos pode trazer, como, por exemplo, o resvalar para o autoritarismo puro e simples. Não se pode deixar de perceber, contudo, que esse discurso de natureza negativa (crítica) ajuda a compreender e identificar com mais clareza os próprios limites da ordem jurídica, o que é extremamente relevante nos dias de hoje. (Recebido para publicação em novembro de 2003) 108 Cadernos de Sociologia e Política Notas 1. Esta é a tese, p. ex., de Silva (2001). 2. Não há sustentação segura para a decisão judicial nem na lei, nem na dedução lógica, nem em princípios de razão de conteúdo imutável ou na opinião do povo, nem na boa fé, no uso, nas normas de cultura ou mesmo na representação normativa do direito livre (cf. Schmitt, 1912:5 e ss., 20 e ss.) e Hofmann (1999:68). 3. Quando Portia, travestida de advogado, impede a condenação de seu amado, alegando a impossibilidade empírica da aplicação exata da pena, já que seria impossível retirar tão-somente uma libra de carne do lado esquerdo do peito, sem derramar uma gota de sangue a mais. 4. As diferenças entre o formalismo, o liberalismo, o realismo jurídico e o decisionismo de Schmitt, no que diz respeito ao grau de determinação das regras jurídicas prescritivas, podem ser assim sumariadas (seguindo Scheuerman): 1) o antigo formalismo liberal considera a exegese vinculada à vontade do legislador a única possibilidade de aplicação correta do direito, estabelecendo a tese da determinação estrita das normas jurídicas (Montesquieu); 2) o liberalismo jurídico positivista declara uma esfera limitada de discricionaridade da decisão judicial, na tese da indeterminação limitada das normas (Kelsen e Hart); 3) o realismo e o liberalismo jurídicos contemporâneos, reconhecendo que a lei somente serve de guia mínimo para sua interpretação e aplicação atividades que são naturalmente muito mais abertas por se vincularem a casos concretos , endossam a tese da sobredeterminação das normas, indicando a regularidade da decisão judicial tanto na sobreposição das regras do mercado econômico livre (Posner) quanto na limitação realizada por ideais liberais de eqüidade e justiça (Dworkin); 4) o decisionismo de Schmitt sustenta que a norma jurídica não é princípio regulativo eficaz da decisão, e abraça a tese da indeterminação do conteúdo da decisão, cuja conseqüência é a necessidade de construir uma teoria normativa diferenciada à da completude do ordenamento (cf. Scheuerman, 1999:8 e ss.; Kelsen, 1995:388-393; McCormick, 1997:206 e ss.; Hofmann, 1999:76). 5. Ver, nesse sentido, Scheuerman (1999:115). Fórum dos Alunos do IUPERJ 109 Referências Bibliográficas GALLI, Carlo. (2000), Carl Schmitts Antiliberalism: Its Theoretical and Historical Sources and its Philosophical Meaning. Cardozo Law Review Carl Schmitt: Legacy and Prospects A International Conference in New York City, vol. 21, nº 5 e 6, Yeshiva University, pp. 1.597-1.618. HOFMANN, Hasso. (1999), Legitimità contro Legalità: La Filosofia Política di Carl Schmitt. Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane. KELSEN, Hans. (1941) [1934], La Teoría Pura del Derecho: Introducción a la Problemática Científica del Derecho (tradução de Jorge G. Tejerina). Buenos Aires, Losada. ___. (1995), Teoria Pura do Direito (2ª ed.) (tradução de João Baptista Machado). São Paulo, Martins Fontes. MCCORMICK, John P. (1997), Carl Schmitts Critique of Liberalism: Against Politics as Technology. Cambridge, Cambridge University Press. SCHEUERMAN, William. (1999), Carl Schmitt: The End of Law. Lanham, Maryland, Rowman & Littlefield Publishers, Inc. SCHMITT, Carl. (1912). Gesetz und Urteil: Eine Untersuchung zum Problem der Rechtspraxis. Berlin, Otto Liebmann. ___. (1996a) [1922], Politische Theologie: vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. Berlin, Duncker & Humblot. ___. (1996b) [1923], Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus. Berlin, Duncker & Humblot. ___. (1996c) [1932], Der Begriff des Politischen. (Text von 1932 mit einem Vortwort und drei Corollarien). Berlin, Duncker & Humblot. ___. (1996d) [1931], Der Hüter der Verfassung. Berlin, Duncker & Humblot. SILVA, Bernardo Medeiros Ferreira da. (2001), O Risco do Político: A Crítica ao Liberalismo na Obra de Carl Schmitt entre 1919-1933. Tese de Doutorado, IUPERJ. 110 Cadernos de Sociologia e Política Exercício da Cidadania Política e Capital Social: Apontamentos para o Caso Brasileiro* VINICIUS B OGÉA-CÂMARA** Resumo O presente artigo objetiva relacionar os entraves ao pleno exercício da cidadania política no Brasil à contribuição da recente literatura sobre capital social. Em linhas gerais, busco articular de que maneira, à luz da bibliografia sobre tal conceito, o déficit de capital social pode subjazer ao chamado hobbesianismo social brasileiro, ressemantizando as causas para o constrangimento de uma cultura cívica não predatória. Palavras-chave: capital social; cidadania política; hobbesianismo social * Este artigo é uma versão revisada do trabalho final da disciplina “Cidadania Política e seu Exercício numa Perspectiva Histórica (Portugal e Brasil)”, ministrada pelo prof. Manuel Villaverde Cabral no IUPERJ, no 1º semestre de 2003. ** Mestrando em sociologia no IUPERJ . Conta com bolsa-prêmio concedida pela FAPERJ. E-mail: [email protected]. Fórum dos Alunos do IUPERJ vinicius.pm6 1 27/09/04, 15:48 111 No presente artigo, procurarei estabelecer uma conexão entre alguns dos principais problemas referentes ao exercício da cidadania (sobretudo em sua dimensão política) e a recente literatura concernente ao multiabrangente conceito de capital social. Longe de representar um esforço monográfico, este trabalho se restringe ao exame de alguns pontos em que as teorias 1 do capital social tratam de questões tais como a participação política, a confiança no regime, a boa (ou má) avaliação institucional do regime etc. Mostrarei como algumas idéias – próprias da atualização que o tema “capital social” vem sofrendo já há duas décadas – podem iluminar o debate acerca da (in)disposição para o exercício das prerrogativas inscritas no catálogo de uma cidadania ativa, oferecendo o exemplo do hobbesianismo social brasileiro (ver Santos, 1993). Nesse sentido, apresento a contribuição que alguns teóricos do capital social têm dado ao tema, para o qual, até bem pouco tempo, apenas haviam concorrido macrovisões formalistas, mormente míopes para uma realidade cada dia mais fragmentada. Acredito mesmo que o uso instrumental do conceito de capital social na análise dos dilemas da cidadania/participação, por força de sua necessária heterodoxia, desfaz alguns dos nós que os “grandes” monolitos da teoria social e política não conseguiram desatar – donde segue seu surpreendente rendimento analítico. Uma das principais constatações a que a reflexão social contemporânea chegou diz respeito ao desalinhamento empiricamente verificável dos sujeitos em relação às teorias que os continham. Macrovisões estruturantes da realidade geralmente buscavam – e ainda buscam – incorporar em seus esquemas a perspectiva da sonâmbula aquiescência dos sujeitos a partir de uma ordem dada, pressupondo-lhes uma previsibilidade no plano comportamental, somente possível por conta da injunção do tipo “se temos A, então necessariamente temos B”. Explico. O suposto comportamento racional dos eleitores, por exemplo, tem-se esfacelado diante da evidência, ao longo da história, de que suas motivações, em geral, não coincidem com os fatores classicamente considerados, como, e.g., a identificação com regimes de esquerda ou de direita. O que se tem verificado é que a existência de precondições institucionais para o bom funcionamento de um regime – e aqui me refiro àqueles oito requisitos para a consecução da clássica poliarquia 112 vinicius.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 2 27/09/04, 15:48 dahlsiana –, por si só, não garante uma disposição automática dos sujeitos para o exercício da cidadania política. A descoberta de que o cidadãoeleitor, o cidadão real, não corresponde ao cidadão abstrato indica, pois, que devemos contemplar a relação entre sociedade e Estado a partir de um outro registro – menos formal porquanto mais compreensivo. Assim têm feito os teóricos do capital social. Embora sirva, diriam alguns, para dar conta de uma enorme série de questões – desde as networks que lhe garantem um bom emprego até a confidence que confere credibilidade às instituições de um governo –, o capital social tem conseguido cotejar, satisfatoriamente, as principais questões atinentes à erosão da cultura cívica com o mérito de transferir a centralidade da discussão teórico-política do campo do Estado para o da própria sociedade. Na primeira parte do artigo, sintetizarei os principais aspectos da cidadania política, a começar pelo esquema clássico de T. H. Marshall, para apresentar alguns constrangimentos ao seu exercício, principalmente no Brasil. Para tanto utilizarei a idéia de hobbesianismo social, de que Wanderley Guilherme dos Santos lançou mão para explicar o malaise constitutivo de nossa democracia. A seguir, elucidarei o conceito de capital social e alguns de seus principais empregos e abordagens. Selecionarei, enfim, as principais noções que, inscritas no temário do capital social, respondem aos problemas do hobbesianismo social e do déficit democrático, matizando os pontos nos quais a teoria encontra discrepâncias. Como ainda não dispomos de muitas informações referentes ao capital social no Brasil, eventuais dados aqui dispostos remeterão a países da Europa e aos EUA, sem prejuízo para o entendimento do que se passa em nosso país. Difícil não mencionar aqui o pensamento de T. H. Marshall. Direitos civis, direitos políticos e direitos sociais – nesta ordem, de tempo e de importância – empacotam-se em seu conceito de cidadania, que constitui uma importante ferramenta analítica para quaisquer estudos nessa área. Os direitos políticos, segundo Marshall, são o meio do caminho entre os direitos consagrados pela Revolução Francesa – que repousam no Fórum dos Alunos do IUPERJ vinicius.pm6 3 27/09/04, 15:48 113 duplo liberdade-igualdade – e aqueles próprios do État Providence – contrapesos de um sistema tendencialmente perverso como o capitalismo. Os direitos políticos, que para Marshall se consolidam no século XIX, abrangem basicamente “o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo” (Marshall, 1967:63). Dessa forma, eles aparecem como responsáveis (para lembrar o diagrama de Dahl), stricto sensu, pela articulação vetorial entre inclusividade e contestação pública, e espelham, até certo ponto, o grau de pluralismo de uma determinada sociedade (Dahl, 1997:30-31). Todavia, o intuito de dispor os direitos – civil, político e social – em seqüência histórica, desejavelmente estendida a todos os países, descuida do fato de que essa linearidade talvez só possa ser aplicada ao prototípico caso inglês. Sabemos que, ao longo da consolidação, historicamente diferencial, dos modernos Estados da Europa Ocidental, a construção da cidadania correspondeu, pari passu, aos avanços e retrocessos da própria relação entre cada Estado-nação e sua sociedade (Bendix, 1996). A maior ou menor extensão dos direitos, a ampla ou parca incorporação dos indivíduos à malha (sobretudo eleitoral) do Estado, a curta ou longa distância das pessoas à esfera pública estatal – todas estas variáveis, sem falar ainda as da cultura cívica, se compuseram distintamente em cada conjuntura nacional, razão pela qual dificilmente o desempenho das instituições democráticas contemporâneas (e a confiança nelas depositadas) apresenta-se igual em todos os países. Apesar do desenvolvimento histórico diverso da cidadania, o exercício de sua porção política tem requisitado algo mais do que o mero cumprimento de secas prerrogativas legais. Isto porque os direitos de votar e ser votado, não obstante ocuparem, basilares, o terreno da cidadania política marshalliana, não esgotam a multiplicidade de atributos e de requisitos concernentes à pletora da vida política nas sociedades democrático-liberais. Estatuir o mero direito de participação por via do sufrágio – amplo, liso e limitado apenas por certo piso de idade –, embora tenha sido uma conquista fundamental para a consolidação da democracia, não assegura o comprometimento do 114 vinicius.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 4 27/09/04, 15:48 homem comum com aquele urdimento - em geral translúcido ao escopo das normas –, de onde descem os fios invisíveis da cultura cívica. Como bem afirma Manuel Villaverde Cabral (2003), o elemento político da cidadania pressupõe uma mobilização essencial, algo inclusive de que os direitos civil e social da cidadania podem até prescindir, visto que estes, desde que devidamente garantidos, podem ser fruídos passivamente pela população (idem:2-5). Isto aponta para o fato de que a diferenciação qualitativa existente na forma de exercício de cada tipo de direito determina, pois, distintos vínculos entre cidadãos e governo, necessários para a efetividade de cada um daqueles direitos. As garantias sociais da era Vargas, por exemplo, dadas em troca da subtração de boa parte dos direitos políticos, não supuseram senão relações clientelistas entre o governo e os distintos agentes da sociedade, rendendo-nos a chamada cidadania regulada (Santos, 1998). Os constrangimentos relativos ao exercício ativo da cidadania no Brasil têm sugerido uma possível retroalimentação existente entre a sonegação dos direitos políticos, por parte do Estado, e o engessamento do associativismo e da participação por parte da sociedade. O esfacelamento da confiança, o descrédito no governo, o isolamento familista – causas e/ou conseqüências daquele engessamento – são alguns dos problemas que, segundo os teóricos do capital social, têm afetado não só os EUA e a Europa, mas praticamente todas as democracias contemporâneas, inclusive o Brasil. Antes de mostrar em que medida esses teóricos colaboram para tal discussão, apresento algumas questões contra cujo núcleo o capital social voltará seus elementos – principalmente, como veremos, o elemento confiança. É rica a discussão acerca dos motivos pelos quais o Brasil “não dá certo”, e mesmo aqueles que tentam esquivar-se a atribuir mérito a um ou a outro caminho não o fazem sem localizar na falta, no hiato ou no desvio o cerne dos problemas brasileiros. E são várias as pautas: o diagnóstico do processo de inclusão do Brasil no cenário do capitalismo internacional, bem como o problema de uma (inexistente) revolução burguesa em âmbito nacional; o exame das formas autoritárias de governo aqui praticadas e sua relação com modelos de democracia representativa de sucesso; o dilema entre tradição e modernidade a partir das óticas Fórum dos Alunos do IUPERJ vinicius.pm6 5 27/09/04, 15:48 115 americanista e iberista; o conteúdo edênico do imaginário políticosocial brasileiro. Exemplos de temas que, ao longo de dois séculos, vêm inspirando algumas dezenas de autores na busca de explicar o Brasil. Wanderley Guilherme dos Santos, no intuito de investigar a subterrânea corrosão das bases para o pleno exercício da cidadania ativa, constrói o conceito de hobbesianismo social, a partir do qual trabalharei, no sentido de fixar um ponto sobre o qual melhor incida o contributo do capital social. Nesse sentido, esta é apenas uma das inúmeras relações conceituais possíveis de existir entre a doutrina do capital social e os dilemas da sociedade. Aproveito para frisar que, se ainda não apresentei a referida doutrina, é porque desejo começar a abordá-la justamente por intermédio daquilo que ela explica. Sendo assim, começo. Examinando as “fronteiras do Estado mínimo” (Santos, 1993:77-115) – também título do capítulo no qual se insere a idéia de hobbesianismo social –, Santos identifica uma situação paradoxal no Brasil: a coexistência de elementos pertencentes a uma ordem poliárquica2 com outros próprios de um estado de natureza. Diante dessa constatação, o autor, recorrendo ao modelo de análise de Dahl, passa a enumerar os requisitos para a consecução de uma poliarquia, entrevendo, pouco a pouco, a existência de praticamente todos eles em nossa sociedade. No entanto, o autor imediatamente chama a atenção para o fato de que existem, por vezes ocultos, elementos discrepantes que constrangem o pleno aproveitamento das vantagens de uma poliarquia. Para efeitos de melhor compreensão do conceito de hobbesianismo social, optei por reduzir o uso que Santos faz da noção de estado de natureza à idéia genérica de desordem. Embora possa prejudicar sutilezas escondidas no texto, não é errado pensar que quanto maior for o grau de entropia da sociedade, mais esta tenderá ao estado de natureza. Assim, o estado de natureza, enquanto continente da desordem, da barbárie e do oriente político 3, instala-se como um dos pólos da discussão. O outro, a morfologia poliárquica da sociedade brasileira, abordarei enquanto deslindo o conceito de Santos. Identificados os pólos, resta agora a longitude do problema. 116 vinicius.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 6 27/09/04, 15:48 Em 1991, durante a crise de governabilidade do governo de Fernando Collor – crise que, como sabemos, o defenestrou do poder no ano seguinte –, veio à tona, irresistível, aquilo que Santos denominou “híbrido institucional brasileiro” (idem:77-79). O país, saído havia menos de dez anos do regime militar, dava sinais de debilidade institucional, revelando os efeitos colaterais de longo prazo dos anos de engessamento da vida associativa, contados a partir da Revolução de 1964. O longo período de orfandade participativa, durante o qual foram bloqueadas as vias tradicionais de expressão da vontade popular, tais como os partidos políticos ou os sindicatos, foi, inclusive, um dos responsáveis pelo incremento no chamado déficit democrático. Com o degelo “lento, seguro e gradual” do regime autoritário, surgimos legatários, segundo Santos, de uma cultura cívica estéril, descrente das instituições do Estado, própria de indivíduos que preferem “negar o conflito a admitir que sejam vítimas dele” (idem:80). Para o autor, ainda que tendo acumulado os requisitos fundamentais a uma poliarquia, o Brasil cultiva, intestinamente, a pusilanimidade cívica, uma cultura que discrepa totalmente das bases em que se encontram as poliarquias que já atingiram, digamos, níveis ótimos, tanto de desempenho institucional, quanto de confiança no sistema. A questão que se coloca, pois, é de equacionar forma e conteúdo, a fim de se alcançar efetividade, em graus cada vez mais refinados, no intermitente diálogo entre Estado e sociedade. Apesar de desejável, o próprio Dahl reconhece que aquela equação admite respostas, no mínimo, incongruentes com o que seria formalmente esperado: “[...] alguns críticos recentes da democratização incompleta em poliarquias argumentam ainda que, embora as poliarquias possam ser competitivas em nível nacional, muitas das organizações subnacionais, particularmente as associações privadas, são hegemônicas ou oligárquicas.” (1997:34) Atualizando a constatação inicial de Santos: o que existe no Brasil é um híbrido institucional. Mas que espécie de híbrido? Trata-se de um fenômeno que associa “uma morfologia poliárquica, excessivamente legisladora e regulatória, a um hobbesianismo social pré-participatório e estatofóbico.” (Santos, 1993:78) Cadernos de Sociologia e Política vinicius.pm6 7 27/09/04, 15:48 117 Separemos os termos da sentença: por “morfologia poliárquica” entendese a posse daqueles requisitos formais necessários à obtenção de uma poliarquia; o primeiro senão é que essa morfologia é logo predicada negativamente, pois ela é “excessivamente legisladora e regulatória”. Aqui, a remissão semi-automática é ao papel do Estado, especialmente do Poder Executivo, na administração da sociedade, durante a vigência e crise do Welfare State. Overload do Legislativo4, Estado máximo, até Ministério da Desburocratização tivemos. A herança do Estado tutelar ainda pesa muito e deixa marcas na composição dos elementos poliárquicos, inspirando desde o início a canibalização de seus principais pressupostos5. A outra parte da sentença traz um “hobbesianismo social préparticipatório e estatofóbico”. É exatamente o resultado da radiografia da sociedade brasileira, em sua disposição para a cidadania. Segundo Santos, estamos todos permeados pelo estado de natureza, que, na sua versão, é vivenciado pelos atores na radicalidade de se encontrar cotidianamente sob governos múltiplos e soberanias concorrentes (idem:80). O que ele chama de hobbesianismo social é um compósito formado pela refração à participação política (idem:94-98), desconfiança generalizada nas agências governamentais (idem:99-104), erosão das normas de convivência social (idem:109) e uma tendência ao escapismo na reclusão familiar (ibidem). Esses comportamentos, amalgamados, oferecem a denúncia do conteúdo edênico presente no imaginário do brasileiro (ver Carvalho, 1999), desenganando as formas pretensamente dóceis sob as quais estariam organizadas as relações entre os membros da sociedade e entre estes e o Estado. Afirma Santos que “[...] não obstante [o hobbesianismo social], a sociedade brasileira, tal como retratada em seu próprio depoimento, encontrar-se-ia entre as mais pacíficas do planeta. Isto porque o indivíduo isolado, nãopoliárquico, pobre em laços de congraçamento social, prefere negar o conflito a admitir que seja vítima dele.” (1993:80) Após a confirmação de que o Brasil, nos últimos cinqüenta anos, se preparou com sucesso para se transformar em uma poliarquia, portadora daquela série de requisitos, Santos percebe que o arcabouço sobre o qual se alicerçou tal poliarquia carece de maior robustez para suportar 118 vinicius.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 8 27/09/04, 15:48 crises e enfrentar riscos. O autor atesta que, de fato, o país experimentou significativo crescimento econômico desde 1940; que, em decorrência do incremento na economia, o país viu a taxa de urbanização subir exponencialmente6; que o volume do associativismo aumentou sobremaneira (basicamente associações de classe); e que também o número de partidos políticos e sindicatos cresceu, ao mesmo tempo que, durante o período de 1945 a 1964, a quantidade de eleitores sofreu acréscimo substancial. Tudo isso aconteceu. O problema é que a resposta da sociedade só fez confirmar aquela tendência – já há muito identificada por outros pensadores – para o insulamento refratário à participação, em seus mais diversos níveis, na esfera público-institucional. Analisando a relação entre eleitores e políticos e entre nível de sindicalização, renda e escolaridade, Santos descobre então a afonia das respostas da sociedade. Ele verifica que existe muito pouco contato entre eleitores e políticos e que isto acontece mesmo entre aqueles com maior rendimento mensal; que, apesar do número considerável de associações, como, por exemplo, os sindicatos, o nível de sindicalização ainda é considerado baixo em todas as faixas de renda, o mesmo ocorrendo com o que diz respeito à filiação partidária; e que em todas essas relações o grau de escolaridade pouco ou nada influenciou. Santos também procurou saber quais são os principais conflitos vivenciados pelos brasileiros e, o mais importante, até que ponto eles são levados a se resolver pela Justiça. Por via desses exemplos, podemos ter ao menos uma idéia acerca do ainda incipiente nível de capital social existente no país. Reproduzo aqui este último exemplo, que, embora não se refira diretamente ao problema do exercício da cidadania política, é emblemático da distância em relação ao aparelho administrativo estatal. Estabelecidos os principais conflitos por que passaram os brasileiros, maiores de 18 anos, de outubro de 1983 a setembro de 1988 (“Questão Trabalhista”, 18,7%; “Separação Judicial”, 18,0%; “Problema Criminal”, 17,2%; “Herança”, 10,3%; “Conflito de Vizinhança”, 10,2%) (idem:99), Santos capta o tipo de reação que o contingente de pessoas envolvidas em algum tipo de conflito teve, no período compreendido entre 1985 e 1988, e chega ao seguinte resultado: Fórum dos Alunos do IUPERJ vinicius.pm6 9 27/09/04, 15:48 119 Quadro 1 Negação do Conflito Ações Participantes em conflitos que não buscaram justiça Participantes que resolveram por conta própria Participantes que temeram represálias Participantes descrentes da Justiça; não quiseram envolvê-la; custava menos ser indiferente ao conflito Recorreram a outras pessoas ou entidades Brasil (%) 67,0 43,0 1,5 28,7 6,0 Fonte: Santos, 1993:102. Como podemos perceber, os resultados verificados não reportam uma grande proximidade do homem comum com as instâncias públicas. O hobbesianismo social – esta lassidão da vontade cívica – pode ser explicado pelo relativo déficit no nível de capital social no interior da sociedade contemporânea, especialmente pela crise da confiança. Embora o Brasil, para alguns autores, esteja hoje em franco processo de acumulação de capital social7, ele tem manifestado alguns dos principais sintomas de decréscimo no capital social que têm afligido as democracias avançadas. Vejamos agora no que consiste o conceito de capital social. Como mencionei no início deste trabalho, o conceito de capital é multiabrangente. Inspirado, até certa medida, na idéia genérica de capital – capital entendido como algo que, por excelência, gera valor –, o conceito de capital social possui hoje uma amplitude explicativa impressionante: da administração à ciência política, da economia à sociologia, passando inclusive pelos estudos sobre psicologia comportamental. Especialmente a partir da década de 80, os estudos sobre capital social começaram a compor uma vastíssima literatura, da qual somente há pouco se teve notícia no Brasil. E esta literatura, dada sua transdisciplinaridade fundamental, tem nos fornecido diferentes conceptualizações acerca do que é o capital social8, instruindo-nos seus usos, atributos, critérios e externalidades principais. Dessa forma, pelo menos em tese, parece difícil enfeixar conceitualmente abordagens tão díspares quanto numerosas; no entanto, a mais recente onda de escritos sobre a função do capital social nas democracias contemporâneas conseguiu sistematizar um conceito que, embora passível de utilizações 120 vinicius.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 10 27/09/04, 15:48 distintas, se mostra suficientemente coeso na organização interna de seus pressupostos. Segundo atual consenso existente entre os principais teóricos acerca do capital social, é possível defini-lo como o conjunto ou estoque de relações sociais reciprocamente orientadas, estabelecidas sob bases de confiança mútua e regidas por normas amplamente aceitas, donde surgem freqüentemente vínculos que tendem a agregar valor ao objeto de interesse dos atores envolvidos – motivo pelo qual geralmente o (aumento de) capital social tem sido entendido como desejável para a realização da democracia. Isto posto, apresento agora algumas idéias sobre o capital social, as quais têm contemplado os principais dilemas da democracia participativa, como, por exemplo, o caso do nosso hobbesianismo social. Robert Putnam (2000), em seu consagrado Bowling Alone9, busca traduzir a pífia evolução do quadro associativo-participatório dos EUA como resultado do decréscimo generalizado do capital social naquele país. Herdeiro do faro tocquevilliano, Putnam descobre, na erosão cívica (idem:277-284) que vem acometendo a sociedade norte-americana, a perda daquela característica primordial que Tocqueville identificou em seu A Democracia na América: “Os americanos de todas as idades, condições e mentalidades unemse constantemente. Não só possuem associações comerciais e industriais [...], mas ainda outras de mil espécies diferentes: religiosas, morais, graves ou fúteis, extremamente gerais ou muito particulares, imensas ou mínimas; os americanos se associam para dar festas, fundar seminários, construir albergues, erigir igrejas, difundir livros, enviar missionários aos antípodas. [...] Encontrei, nos Estados Unidos, espécies de associações, de que confesso nunca ter tido idéia e, freqüentemente, admirei a arte infinita com que os habitantes da América conseguiam estabelecer um objetivo comum para os esforços de um grande número de homens e deixá-los agir livremente.” (Tocqueville, 1979:287). Ao operar no mesmo registro que Tocqueville, Putnam ressalta a importância da permanência de componentes que, visto estarem reinantes ab ovo na composição da sociedade política norte-americana, comporiam o núcleo duro da própria democracia. O libelo tocquevilliano do associativismo é atualizado por Putnam como o elogio da conduta Fórum dos Alunos do I UPERJ vinicius.pm6 11 27/09/04, 15:48 121 gregária10 sobre a tendência – também entrevista pelo autor francês – ao individualismo grosseiro e familista. Assim, trabalhar em um projeto comunitário, jogar bridge com os amigos ou escrever cartas para a redação de um jornal (Putnam, 2000:98) seria de extrema relevância, não só para a saúde da american community, como também para o fortalecimento indireto do próprio regime democrático. Para Putnam, o capital social - desde que de boa qualidade (veremos a distinção logo adiante) - dirigiria a sociedade rumo a uma espiral positiva de participação clarividente, ainda que por meio da proliferação de grupos aparentemente triviais. Há uma variação quanto à qualidade do capital social, indicativa da finalidade (explícita ou velada) com que determinados grupos se organizam. Putnam salienta a ocorrência de dois tipos fundamentais de capital social: o inclusivo (bridging) e o exclusivo (bonding). Segundo essa distinção, existem grupos que, munidos de capital social inclusivo, constroem verdadeiras pontes entre as pessoas, ligando-as por intermédio de objetivos comuns, grupos que, freqüentemente, ultrapassam as fronteiras rígidas de um propósito muito específico. São exemplos de bridging social capital (idem:22) os movimentos por direitos civis, as associações cristãs de moços e as organizações religiosas ecumênicas. Por outro lado, existem grupos que, movidos por capital social exclusivo, servem para agregar as pessoas em torno de uma identidade comum (reforçando-a) e que, em geral, não aceitam ninguém que não possua as características necessárias para o pertencimento ao grupo. São exemplos de bonding social capital (ibidem) as fraternidades de cunho étnico e os clubes para milionários. Apesar de tal distinção, Putnam reconhece que, na realidade, às vezes existem agrupamentos dotados, ao mesmo tempo, de capital social inclusivo e exclusivo, e que a capacidade de serem verdadeiramente gregários e holistas é que servirá para distinguilos como vetores do bom ou mau capital social. Outra variação no conceito de capital social, abordada por diversos autores, diz respeito ao fato de que ele engendra tanto bens públicos quanto bens privados e, algumas vezes, as duas espécies ao mesmo tempo. Isto aponta para um desdobramento necessário do conceito em duas porções, uma micro e outra macroorientada. A microorientação 122 vinicius.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 12 27/09/04, 15:48 do conceito de capital social contempla tudo quanto é instruído exclusivamente: a) por ações entre sujeitos particulares com vistas à consecução de bens privados; ou b) por outras que, embora não visem a um fim específico, contribuem indiretamente como elementos mínimos para o fortalecimento da cultura cívica. Nesta acepção, a posse de maior ou menor nível relativo de capital social determina a maior ou menor probabilidade de êxito na realização de objetivos que, em geral, são pouco referentes às questões públicas (embora muito indiretamente possam nelas interferir). Exemplos, os mais diversos: a garantia de um bom emprego (Granovetter, 1973:1.360-1.380); a relação (de segredos de ofício) entre aprendizes e mestres nas oficinas à época da Revolução Industrial (Rotberg, 2001:97-119); o lugar da (des)confiança na máfia italiana (Gambetta, 1990:158-175); o papel da amizade para os imigrantes (idem:176-193). Nestes exemplos, e em muitos outros, a presença do capital social tem sido, pois, um diferencial para a efetivação de bens privados, embora sua interpretação deva sempre vir acompanhada de um exame das bases históricas que, em cada cultura, têm servido como bons ou maus propulsores da cultura cívica11. A macroorientação do conceito de capital social concerne, especialmente no que interessa ao exercício da cidadania política, ao conjunto de ações, costumes e grupos que, alguns sem parentesco a priori com qualquer ação politicamente orientada, fomentam, de forma agregada, bens públicos, confiança na esfera estatal, afluência cívicoparticipativa, enfim, o fortalecimento da própria democracia. Visto dessa perspectiva, o capital social sobreleva-se a um plano tal que se lhe alarga a tessitura explicativa sem nenhum estrangulamento teórico; ou seja, para alguns autores12, explicando o comportamento cívicopolítico, o conceito de capital social confere, de maneira cumulativa, relevância a toda ação considerada capaz de abrigar um mínimo quantum de capital social, desde a mais microorientada até a mais politicamente interessada – pelo que, no limite, toda forma de capital social se comporta para a construção da cultura democrática tal como um pixel em relação ao écran colorido que forma. Assim, ao alcançar o debate acerca do malaise da democracia contemporânea, a teoria do capital social se organiza em vários elementos Fórum dos Alunos do I UPERJ vinicius.pm6 13 27/09/04, 15:48 123 e fornece um sem-fim de variáveis que, coordenadas, são postas a diagnosticar o estado da cultura cívica de determinada sociedade. O entendimento básico de alguns autores é o de que um incremento no capital social acarreta o aumento na efetividade do exercício da cidadania política ou, como tem sido um dos exemplos mais freqüentes, o aumento da confiança nas instituições do governo. Entretanto, críticas a essa visão têm buscado relativizar essa causalidade, frisando que, primeiro, não necessariamente o capital social aumenta o nível agregado de confiança – porque o contrário também seria plausível13 – e que, segundo, a um maior exercício da cidadania política, suposto decorrente do acréscimo de capital social, não corresponde mecanicamente maior dose de confiança no regime – já que, por força de um maior esclarecimento, os indivíduos tenderiam a se tornar mais críticos14 com relação a qualquer instância do governo. A fim de responder aos principais sintomas de crise nas democracias contemporâneas15, inúmeras pesquisas, mesmo que não organizadas para testar a teoria do capital social, têm sido feitas sob a inspiração de alguns de seus elementos, sendo o mais notável aquele que se refere à confiança. As perguntas sobre o nível de confiança abundam nas recentes pesquisas e a amplitude de seu uso varia desde perguntas sobre a possibilidade de se confiar no próximo até inquéritos sobre a opinião a respeito da democracia como o melhor dos regimes. Em geral, os resultados não são dos melhores, embora estejam diferencialmente distribuídos de acordo com o alvo das enquetes16. Não obstante a possibilidade de não corresponderem fidedignamente à realidade17, tais pesquisas têm tido o mérito de acusar, não só em que estado se encontra o apoio à democracia em diversos países, mas, indiretamente, em que nível se encontra o agregado de capital social de cada sociedade. Antes de trazer de volta a questão do hobbesianismo social – com o propósito de antepô-la ao significado da confiança para a cidadania política –, cabe-me agora elucidar os diferentes usos do termo “confiança”, sem o que não será possível definir seu horizonte axiológico. 124 vinicius.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 14 27/09/04, 15:48 Apelo aqui para a distinção sugerida por Luhmann (apud Gambetta, 1990:94-107). Para ele, existe uma diferença – não factível em idioma português, pois neste só existe a palavra “confiança” – essencial entre os termos confidence e trust. Confidence diz respeito à confiança depositada inconscientemente em coisas sobre as quais o indivíduo nem chega a aventar a hipótese de desconfiança – posto que são fatos trivialmente críveis ou esperáveis. Como nos diz Luhmann, se você é confiante (confident), “Você é confiante no fato de que suas expectativas não serão desapontadas: no fato de que os políticos tentarão evitar a guerra, os carros não vão enguiçar ou sair da pista atingindo-o durante sua caminhada de domingo à noite. Ninguém consegue viver sem formar expectativas com relação a eventos contingentes, bem como todos devem descartar, em maior ou menor grau, aquela possibilidade de desapontamento.” (idem:97, tradução do autor) Já trust se refere à confiança depositada deliberadamente em coisas que envolvam alguma parcela de risco e requer um comprometimento prévio do indivíduo. Supondo a existência de escolhas racionais, Luhmann continua: “confiança (trust) somente é requerida se uma externalidade negativa faça você lamentar a sua ação.” (idem:98, tradução do autor) Podemos sintetizar essa distinção afirmando que, enquanto confidence repousa sobre bases relativamente seguras de convívio social – inscritas em uma economia de reciprocidade e confiança generalizadas -, trust, admitindo-se a imperfectibilidade humana, jaz sobre a possibilidade de erro ou engano que os indivíduos devem considerar – o que o leva a ser um componente importante para o exercício da cidadania política. Incorporemos essa distinção ao conjunto já exposto do capital social e voltemos – já é hora – ao hobbesianismo brasileiro. Wanderley Guilherme dos Santos (2001:232-250) afirma que um dos maiores problemas do Brasil tem sido os altos custos do fracasso da ação coletiva, principalmente entre as classes mais desfavorecidas. Para ele, a diferença estrutural do cálculo da ação coletiva no Brasil reside, primeiro, no fato de que nosso país não conta com uma rede de proteção social tão ampla quanto a dos países mais desenvolvidos – o que garantiria, no caso de fracasso da ação coletiva, “a subsistência com Fórum dos Alunos do I UPERJ vinicius.pm6 15 27/09/04, 15:48 125 tolerável resquício de dignidade” (idem:248); segundo, a diferença refere-se ao fato de que aqui a ação coletiva não é um jogo de soma zero, pois – para ser bem direto – o que é ruim sempre pode ficar pior. Assim, se juntarmos hobbesianismo social e o medo ante os custos do fracasso da ação coletiva, teremos uma sociedade que, mesmo em franco processo de acumulação de capital social (pelo conceito de Putnam), terminará refém de sua própria incapacidade de gerar a mínima confiança interpessoal e institucional (confidence) e de construir as bases para que os indivíduos possam arriscar-se (trust) sem tanto medo. Vimos como o hobbesianismo social tem sido um dos responsáveis pela indisposição para o exercício ativo das prerrogativas da cidadania. No Brasil, há muito existe um distanciamento entre a esfera pública estatal e o conjunto da sociedade que, isolado pela distância ao poder, geralmente não confia às instâncias governamentais a resolução de seus conflitos ou a implementação de suas demandas, corroborando modelos mafiosos de subgerenciamento dos bens públicos escassos (Santos, 1993:112-114). No Brasil, o triunfo de um Estado administrativo máximo, excessivamente regulador, sobre uma sociedade desarticulada e pobre de recursos – financeiros, sociais, políticos etc. – denuncia o vazio comunicacional entre Estado e sociedade. Apesar de estarmos em um período de plena acumulação de capital social (como já foi dito), alguns de seus elementos – como a confiança – não parecem presentes na relação entre sociedade e Estado, e nem no interior da própria sociedade. Dessa forma, em um país onde os riscos são potencialmente maiores que os resultados, onde “o custo do fracasso da ação coletiva [...] inclui a possibilidade de retorno a uma situação ainda pior do que a anterior” (Santos, 2001:248), o trust não chega mesmo a se ossificar na sociedade, desmancha-se com medo dos “bad outcomes”, encapsulando-se apenas em ações espasmódicas. Em um modelo que não oferece as condições para o estabelecimento de confidence, ou seja, em um mundo onde absolutamente tudo pode acontecer – daí o hobbesianismo –, faltam as bases não só para a realização de ações coletivas, mas para a própria crença na efetividade das instituições democráticas. Sob este ponto de vista, sem o capital social, o lugar da confiança dentro da composição 126 vinicius.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 16 27/09/04, 15:48 da cultura cívica brasileira é ocupado pelo medo – clássico elemento em Hobbes; e a celebração do contrato – para ficar ainda em território hobbesiano –, postergada sine die em favor do estado de natureza. (Recebido para publicação em novembro de 2003) Notas 1. Teorias, no plural mesmo. Como tratarei de mostrar, o conceito de capital social tem um sem-fim de cultores, cada qual a frisar um ou outro dos pontos do referido conceito, donde surgem abordagens às vezes muito distintas entre si. 2. Vale a pena explicitar quais são, de acordo com Dahl, os requisitos para a existência de uma poliarquia: liberdade de formar organizações e aderir a elas; liberdade de expressão; direito de voto; elegibilidade para cargos públicos; direito de líderes políticos disputarem apoio; direito de líderes políticos disputarem votos; fontes alternativas de informação; eleições livres e idôneas; instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência. 3. Sobre o “oriente político”, ver Werneck Vianna (1997:133). 4. Sobre o problema da sobrecarga do Poder Legislativo, em contextos próprios ao Welfare State, ver Cappelletti (1993:43-ss.). 5. Refiro-me basicamente ao voto e aos partidos políticos (ao associativismo como um todo). A história destes dois elementos no Brasil prova o claudicante desenvolvimento que tiveram, muitas vezes incorporando itens estranhos a um regime competitivo e liberal, estes freqüentemente tratados no ementário político e social brasileiro: o voto de cabresto, o mandonismo, o comando estatal dos sindicatos, os senadores “biônicos”, a cassação de políticos, a proibição de determinados partidos etc. 6. Embora hoje existam dúvidas quanto a isto, pelo menos do ponto de vista qualitativo. Fórum dos Alunos do IUPERJ vinicius.pm6 17 27/09/04, 15:48 127 7. Pelo menos é o que pensa Wanderley Guilherme dos Santos em artigo recentemente publicado (Santos, 2001). 8. Robert Putnam a este respeito nos informa que, ao longo dos últimos sessenta anos, pelo menos seis concepções distintas do capital social foram trazidas à lume, cada qual reportando-se a um conjunto específico de aspectos da sociedade (cf. Putnam, 2002:5). 9. A julgar pelo sucesso das vendas, este talvez tenha sido o livro que catapultou o conceito de capital social para o domínio do público não especializado. 10. O próprio Putnam, no site em que promove as idéias de seu livro Bowling Alone, indica um link sugestivo: www.bettertogether.com 11. Pelo menos foi o que fez Putnam (2000a) ao analisar as bases da cultura cívica no sul da Itália. 12. Autores como o próprio Putnam. Em seu Bowling Alone, em várias passagens, ele equipara jogar baralho a ir ao cinema ou escrever cartas a ações relativas à participação em sindicatos ou associações profissionais, por exemplo – fato que lhe tem granjeado críticas de diversas partes. 13. Trata-se do velho tema referente a saber quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha. Mesmo isolando um dos sentidos da causalidade, não se deve perder de vista que o sistema em questão é, por excelência, de retroalimentação. Visto por um ângulo, o estoque de capital social determina uma ação política mais intensa; por outro, ele é encarado como o produto de um exercício mais ativo da cidadania em sua esfera política. 14. É o que identifica Pippa Norris. Matizando os níveis de apoio (political support) à democracia, a autora defende idéia segundo a qual um exercício mais ativo da cidadania, em geral, acompanha o surgimento de cidadãos críticos – portanto, não necessariamente mais confiantes no governo (cf. Norris, 1999). 15. Rubricas da crise: descrédito na política (political distrust), malaise democrático (disaffected democracies), desalinhamento partidário (party dealignment) etc. 128 vinicius.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 18 27/09/04, 15:48 16. Pippa Norris, p. ex., diferencia os resultados conforme mudam as instâncias referidas: para ela, o pertencimento à comunidade política nacional (political community) e os princípios do regime democrático (regime principles) têm conseguido altos níveis de apoio; a performance governamental (regime performance), satisfação variada; enquanto as instituições do regime (regime institutions) e os atores políticos (political actors), níveis declinantes de confiança e apoio (cf. Norris, 1999:10). 17. Segundo Wanderley Guilherme dos Santos: “o narcisismo ou masoquismo da opinião pública é uma coisa, o que de fato acontece pode ser muito diferente” (Santos, 2001:241). Referências Bibliográficas BENDIX, Reinhard. (1996), Construção Nacional e Cidadania. São Paulo, Edusp. CABRAL, Manuel Villaverde. (2003), “O Exercício da Cidadania Política em Perspectiva Comparada (Portugal e Brasil)”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 18, nº 51. CAPPELLETTI, Mauro. (1993), Juízes Legisladores? Porto Alegre, Ed. Sérgio Antônio Fabris. CARVALHO, José Murilo de. (1999), “O Motivo Edênico no Imaginário Social Brasileiro”, in D. C. Pandolfi et alii (orgs.), Cidadania, Justiça e Violência. Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas Editora. DAHL, Robert. (1997), Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo, Edusp. GAMBETTA, Diego (org.). (1990), Trust: Making and Breaking Cooperative Relations. Oxford, Basil Blackwell. GRANOVETTER, Mark. (1973), “The Strenght of Weak Ties”. American Journal of Sociology, nº 78. Fórum dos Alunos do IUPERJ vinicius.pm6 19 27/09/04, 15:48 129 MARSHALL, Thomas H. (1967), Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro, Ed. Zahar. NORRIS, Pippa (ed.). (1999), Critical Citizens: Global Support for Democratic Government. Oxford, Oxford University Press. PUTNAM, Robert D. (2000), Bowling Alone: The Collapse and Revival of American Community. New York, Simon & Schuster. ___. (2000a), Comunidade e Democracia: A Experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas Editora. ___. (2002), Democracies in Flux: The Evolution of Social Capital in Contemporary Society. New York, Oxford University Press. ROTBERG, Robert I (org.). (2001), Patterns of Social Capital: Stability and Change in Historical Perspective. Cambridge, Cambridge University Press. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. (1993), Razões da Desordem (2ª ed.). Rio de Janeiro, Ed. Rocco. ___. (1998), Décadas de Espanto e uma Apologia Democrática. Rio de Janeiro, Ed. Rocco. ___. (2001), “A Democracia e seu Futuro no Brasil”, in J. P. dos Reis Velloso (org.), Como Vão o Desenvolvimento e a Democracia no Brasil? Rio de Janeiro, Ed. José Olympio. TOCQUEVILLE, Alexis de. (1979), A Democracia na América”. São Paulo, Ed. Abril Cultural, Coleção Os Pensadores. WERNECK VIANNA, Luiz Jorge. (1997), A Revolução Passiva: Iberismo e Americanismo no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Revan. 130 vinicius.pm6 Cadernos de Sociologia e Política 20 27/09/04, 15:48