Mundo hobbesiano
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Mundo hobbesiano
CINEMA por flávio paranhos q uem tiver a felicidade de estar em Nova York em janeiro ainda poderá assistir à peça Glengarry Glen Ross, de David Mamet, com Al Pacino no elenco, na Broadway. Não sei que papel ele faz na peça, mas, se for o mesmo da versão cinematográfica de 1992, é Ricky Roma, o mais esperto corretor. Mas pode ser que desta vez faça o papel que foi de Jack Lemon, Sheley Levene, o corretor mais velho e mais frágil. Aliás, o elenco desse filme é de primeira. Além de Al Pacino e Lemon, estão também Kevin Spacey, Alec Baldwin, Ed Harris e Alan Arkin. O título recebido no Brasil, pra variar, não foi muito feliz: Sucesso a qualquer preço. Porque “sucesso” não é bem o caso, seria mais “sobrevivência”. É como diz o subtítulo na capa do DVD: “Uma estória para todos que trabalham pra sobreviver”. Ou seja, uma estória pra todo mundo (ou quase). O início é sufocante. Os personagens estão num bar, em frente à corretora de imóveis em que 32 • CINEMA_FILO78.indd 32 trabalham. Faz muito calor. Sheley Levene conversa ao telefone (público), ficamos sabendo que tem um parente doente e sob risco de ter de sair do hospital, por falta de pagamento. Ricky Roma conversa com alguém que supomos ser amigo, mas depois descobrimos que se trata de um cliente em potencial. Sua lábia é evidente. Momentos depois, todos são convocados a uma reunião na corretora por John (Kevin Spacey), seu gerente, para ouvir Blake (Alec Baldwin), seu chefe, falar. Blake é grosso e direto – eles perderiam o emprego se não conseguissem efetuar uma venda logo. O ganhador, por outro lado, receberia um Cadillac. Com exceção de Ricky, bastante à vontade, o desespero toma conta dos demais. Cada um tenta se virar com as dicas fornecidas pelo gerente. (Imagino que na peça que agora está em cartaz, algumas modificações tenham sido feitas para modernizá-la, por exemplo, os telefones públicos trocados por celulares e as dicas em fichas trocadas por e-mail ou coisa parecida.) A partir de então, a natureza humana se revela em toda sua plena feiura, ilustrando magistralmente todas as teses de Hobbes: “E portanto se dois homens desejarem a mesma coisa, que entretanto ambos não podem possuir, eles se tornam inimigos; e para alcançar seus fins (que são basicamente a própria conservação e algumas vezes apenas seu deleite), esforçam-se por destruir ou subjugar um ao outro”1. A condição natural do homem, ou melhor, dos animais, portanto do homem também, é preservar a si e aos próximos, pois dessa forma perpetua seus próprios genes (Hobbes e Dawkins, uma mistura explosiva). Assim, agirá moralmente (no sentido de esforçar-se para não prejudicar o outro) na proporção direta de sua proximidade com este outro – é a “cebola moral” (agora é Paranhos mesmo). O homem é o tubarão do próprio homem, para não repetir- Hobbes, T. Of the naturall condition of mankind, as concerning their Felicity and Misery. In: Leviathan. Penguin Books (1985), p. 184 (tradução minha). 1 IMAGENS: DIVULGAÇÃO Mundo hobbesiano ciência&vida 12/19/12 5:27 AM Por desejarem a mesma coisa, os homens se tornam inimigos. A moral de “sobrevivência”, de Hobbes, no filme Sucesso a qualquer preço mos Plauto. Porém, um tubarão com consciência, para o qual podemos dar sentido amplo aqui, de “razão” e “sentimento moral”. Razão para complicarmos uma coisa simples, que é a vida. Funciona assim (ou deveria funcionar): presas fogem de predadores enquanto podem, mas correm atrás de suas próprias presas. É como disse Boris Mas não, temos de ter razão e culpa. Se eu der uma paulada em você, serei consumido pela culpa até me entregar (ou não). Se não me entregar e for flagrado, serei alvo da indignação alheia (Tugenhadt 3 os sentimentos morais por excelência, indignação e culpa). Isso se eu for flagrado. Se não, posso decidir me perdoar e sair livre. Moral é pra IMAGENS: DIVULGAÇÃO Hobbes está certo. O que nos segura, o que nos impede de nos atracarmos, é o espectro de um poder coercitivo. A força das palavras não basta. A rede criada pelos sentimentos morais menos ainda Grushencko2, a natureza é um imenso restaurante. No processo, reproduzem-se o mais que puderem. Criam vida e morrem para sustentar outras vidas. Afinal, a vida precisa da morte. O certo, então, seria eu não estar aqui escrevendo para você ler, mas, sim, eu estar de tocaia pra dar uma paulada em você, pra sobrar mais comida pra mim e meus próximos. Não seria muito mais simples? 2 O personagem de Woody em Love and death. quem quer moral, como disseram a tia May4 e Nietzsche5. Hobbes está certo. O que nos segura, o que nos impede de nos atracarmos, é o espectro de um poder coercitivo. A força das palavras não basta. A rede criada pelos sentimentos morais menos ainda. Esse é o grande Em Reflexões sobre o que significa justificar juízos morais. In: Brito, AN (Org.) Ética. Questões de fundamentação. UnB (2007), p. 19-35. 3 4 De Crimes e pecados, de Woody Allen. 5 Em Fragmentos do espólio. UnB (2004), p. 45. www.portalcienciaevida.com.br • CINEMA_FILO78.indd 33 Flávio Paranhos. Médico (UFGO), doutor (UFMG) e research fellow (Harvard) em Oftalmologia. Mestre (UFGO) e visiting fellow (Tufts) em Filosofia. Professor da PUC-Goiás. Coordenador da Coleção de Filosofia & Cinema da Nankin Editorial. ciência&vida • 33 12/19/12 5:27 AM CINEMA por flávio paranhos erro de qualquer teoria moral que tenha como ponto de partida o homem rousseauniano. Uma ética normativa que parta de uma descritiva equivocada só pode levar a lugar nenhum. A equação é cristalina, chega a doer os olhos: o homem não presta, ergo, há que se criar normas que controlem e, mesmo, cerceiem sua “não prestança”. Uma falácia naturalista às avessas. Partindo do princípio de que, se tiver oportunidade e ninguém estiver olhando, o homem fará o que for necessário para alcançar seu objetivo, a saber, mais dinheiro e poder para conseguir mais dinheiro e poder, podemos criar regras realistas para esse homem. Ecce homo, sem máscaras, sem hipocrisias e ingenuidades. No filme, dois dos corretores combinam jogar sujo. Um deles, por sinal, joga duplamente sujo: ao contar pro seu colega seu plano, já o envolve como cúmplice, deixando-o sem alternativa. Mas o final surpreende. Quem menos esperamos, é quem acaba por se atrever a cruzar a linha. Tratava-se de sobrevivência. Um outro filme também ótimo para corroborar Hobbes é Na companhia de homens (In the company of men –1997), escrito e dirigido por Neil Labute. Há uma diferença, porém. Por um bom tempo, acreditamos ser mais uma ilustração para teses de Sade. O personagem principal parece ter na crueldade apenas um brinquedo de prazer, quando combina com seu amigo de seduzir uma garota surda de seu escritório apenas para chutá-la depois. Alegava ter raiva das mulheres por ter ele próprio sido desprezado. O bocó do amigo topa. Mas algo dá errado, claro. Ambos conseguem seduzir a moça, mas ela acaba preferindo o canalha (resistirei à tentação de fazer um comentário machista, mas que dá vontade, dá). E o bocó, claro, se apaixona por ela. Até aqui, um Sade psicológico. Mas, no final, temos a revelação de que tudo não passou de um elaborado plano do cafajeste, pra dar o tombo no amigo bocó. Seu fim era poder e dinheiro, mas escolheu um meio “divertido” para alcançá-lo. Mas não vivemos em guerra, protestará um rousseauniano. De fato. A paz é, de certa forma, estrategicamente importante para assegurar que alcancemos nosso objetivo – dinheiro e poder para espalharmos nossos genes e garantirmos sua sobrevivência. Hobbes não nega isso. O estado de guerra é um estado em potencial. Uma possibilidade sempre presente e que se aflora com relativa facilidade. “É por si só manifesto que as ações dos homens procedem de sua vontade, e essa vontade procede da esperança e do medo, de tal modo que, quando veem que a violação das leis provavelmente lhes acarretará um bem maior, ou um mal menor, do que traria sua observância, eles facilmente as violam”6 . 6 Hobbes, T. Das causas e da origem primeira do governo civil. In: Do cidadão. Martins Fontes (1998), p. 91. Meu Leviathan é da Penguin Books de 1985, que conserva o inglês arcaico, o que é interessante mas ao mesmo tempo meio irritante. Do cidadão tem uma edição da Martins Fontes, com tradução, apresentação e notas de Renato Janine Ribeiro. Fragmentos finais, de Nietzsche, tem edição da UnB, com tradução, seleção e notas de Flávio Kothe. Glengarry Glen Ross, de David Mamet, dirigido por James Foley, faz parte da Coleção Lume. Tem um extra interessante, que é uma entre- 34 • CINEMA_FILO78.indd 34 vista com Jack Lemon, contando de seu esforço para que os espectadores não estabelecessem uma compaixão por seu personagem. Tive a sorte de ver Mamet dar uma canja ao piano, quando fui ver a banda de jazz Woody Allen no Carlyle, em Nova York, em 2008. Toca bem. Na companhia de homens, de Neil Labute, também faz parte da coleção Lume. Aron Eckhart, que faz o canalha, não era conhecido nessa época. Depois virou figurinha fácil em filmes de ação e comédias românticas. DO CIDADÃO Autor: Thomas Hobbes Editora: Martins Fontes 400 págs. IMAGEM: REPRODUÇÃO LIVROS, FILMES ciência&vida 12/19/12 5:27 AM