O DIREITO NATURAL NA Praxe DOS CANONISTAS

Transcrição

O DIREITO NATURAL NA Praxe DOS CANONISTAS
Javier Hervada | 7
O DIREITO NATURAL NA PRÁXIS DOS CANONISTAS *
Javier Hervada
Professor de Direito Canônico da Universidade de Navarra, Espanha.
Tradução
Adam Kowalik
O melhor modo de expor a práxis dos canonistas sobre o direito natural é evocar a
posição que o direito natural ocupava no direito romano e no direito europeu, após a
Recepção até a aparição do positivismo jurídico no início do século XIX. Neste
sentido, a práxis canônica representa a continuação da tradição clássica. Não é de
se estranhar, por ter vindo de longe, a influência – por muitos motivos, perniciosa
para a teoria do direito natural – do chamado iusnaturalismo moderno, como as
profundas mudanças introduzidas pela filosofia kantiana na dita teoria e a rápida
expansão do positivismo jurídico.
Em nenhum momento, a existência do direito natural e sua influência no
ordenamento jurídico foram objetos de dúvida ou objeções. Isto foi, sem dúvida, fruto
da fidelidade ao pensamento católico, do qual forma parte a existência da lei natural.
Detenhamos-nos brevemente neste ponto.
A existência da lei natural não é, portanto, uma verdade que faz parte dos mistérios
do cristianismo. Constitui uma verdade natural, conhecida pela razão natural.
Recordemos que a idéia do justo natural surge com o nascimento do pensamento
filosófico na Grécia. Os sofistas expuseram – embora duvidosamente aceitável – a
distinção entre physis e nómos, entre o justo natural e o justo positivo, a qual foi
difundida por Aristóteles de tal modo que este foi chamado, não sem razão, o pai do
direito natural. Também a lei natural foi peça precursora da teoria moral dos estóicos
– que cobrem quinhentos anos da história da filosofia –, e de autores por eles
influenciados, como Cícero. E é bem notório que o direito natural teve um papel de
primordial importância no direito romano, que deve ao iusnaturalismo boa parte de
sua perfeição e harmonia.
Entretanto, é verdade que a lei natural compõe o ideário do cristianismo ou, em
termos mais precisos, faz parte do depósito revelado. É num muito conhecido texto
do Novo Testamento, Rom 2, 14-16, que aparece a lei natural como lei divina
gravada por Deus no coração humano, da qual a consciência dá testemunho. Esta
lei natural é projeto divino para a vida moral do homem, mas é também projeto
divino para a sociedade humana. Graças à passagem paulina, a teoria da lei natural
alcançou a Patrística e, através dela, o magistério eclesiástico, constituindo uma
peça fundamental do pensamento social católico.
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Artigo publicado originalmente em español sob o título: El derecho natural en la praxis de los canonistas.
Traduzido com a gentil permissão do autor.
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Sendo assim, é lógico que a legislação canônica aceite plenamente o direito natural,
e que a canonística, desde que nascera com Graciano, tenha assumido uma teoria
e uma prática do direito, que se fundamente nas teses iusnaturalistas.
Neste ponto, parece-me que é o momento de expor a concepção canonista do
direito natural. Facilmente pode-se advertir que não se trata de nenhuma teoria
original, mas sim da concepção clássica da tradição jurídica, aquela que começou
em Roma, foi recebida pela ciência jurídica medieval e se prolongou até o início do
positivismo, entre o fim do século XVIII e o início do século XIX. Portanto, expor a
concepção canonista do direito natural não é expor uma concepção original e
singular, senão o que foi a comum tradição da ciência jurídica até o advento do
positivismo jurídico. Não é, pois, uma experiência jurídica alheia à ciência jurídica
secular, senão a sobrevivência, depois de quase dois séculos de positivismo, da
melhor tradição jurídica européia.
Para compreendê-la, é preciso lembrar que a teoria do direito natural teve dois
modos de transmissão: a tradição filosófica e a tradição jurídica. Até a Codificação
do século XIX, a tradição jurídica se transmitiu através dos comentários sobre as
primeiras passagens do Digesto, incluído no Corpus Iuris Civilis, e sobre a primeira
distinção do Decreto de Graciano, componente do Corpus Iuris Canonici. Uma das
características da tradição jurídica foi ser escassamente sensível às disquisições
filosóficas, que pouco influíram nessa tradição. Tão-somente a elaboração
aristótelico-tomista, que é um reflexo da tradição jurídica, teve influxo nos
canonistas, apartadamente no século XVII, e mais perceptivelmente a partir do
século XIX, com não escassa influência também de Suárez. Não são, pois, os
filósofos que vamos analisar aqui, e sim uma construção de juristas.
a) A primeira afirmação fundamental da tradição clássica pode estabelecer-se deste
modo: o direito natural é verdadeiro direito. Com isso, não só quer dizer que existe o
direito natural, mas que também é incontestável que possui natureza
especificamente jurídica. Esta afirmativa requer explicação, para manifestar seu
sentido.
O direito natural, a partir do positivismo, enfrentou-se com duas classes de negação.
De um lado, a negação da mesma existência de uma ordem moral ou jurídica natural
ou de qualquer outro elemento natural que, de uma forma ou de outra, limite ou
condicione o direito positivo: é o positivismo extremado. Por outro, a negação do
direito natural como uma classe ou tipo de direito vigente, unida à afirmação da
existência de algum fator moral, ontológico, axiológico ou gnosiológico condicionador
do direito que, em algum sentido, chamou-se de direito natural: é o positivismo
moderado, também denominado de objetivismo jurídico. É bem sabido quão
múltiplas são as teorias que abrangem o objetivismo jurídico. Nele se podem incluir
correntes kantianas e neokantianas que falam do direito natural como forma a priori
do direito, como idéia ou ideal em termos formais do direito; a doutrina da natureza
das coisas; a jurisprudência de princípios; os traços da estimativa e axiologia
jurídicas; e as posturas de muitos outros autores que, de uma forma ou de outra,
postulam a existência de fatores que condicionam a interpretação do direito positivo
e, por conseguinte, do próprio direito positivo. Dentre estes autores, uns falam de
direito natural, outros não, mas o uso do termo direito natural pelos objetivistas não
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deve resultar em engano: tais condicionamentos não são o direito natural em sentido
clássico, e, por minha parte, penso que, em tais casos, não se deveria falar de
direito natural.
Para a ciência jurídica clássica, o direito natural é uma classe ou tipo de direito
vigente. É, pois, direito e, portanto, direito vigente. Quando se fala de direitos
naturais, refere-se a verdadeiros direitos do homem, que são defensáveis no foro; se
se fala de lei natural, refere-se a preceitos, proibições e permissões de origem
natural, que formam parte do direito vigente na sociedade. Verdadeiros direitos e
verdadeiras leis, dados pela natureza, mas cuja origem última se remonta ao
Supremo Legislador, que é Deus.
Direito vigente, parte do direito vigente: esta é a idéia fundamental da concepção
clássica do direito natural. É a concepção que encontramos em Aristóteles, em uma
conhecida passagem de Ética a Nicômaco, liv. V, C. 7, 1134 b: "No direito político –
isto é, no direito vigente de uma sociedade perfeita ou polis – uma parte é natural e
a outra legal. É natural o que, em todas as partes, possui a mesma força e não
depende das diversas opiniões dos homens; é legal tudo o que, em princípio, pode
ser indiferentemente de tal modo ou do modo contrário, mas que deixa de ser
indiferente desde que a lei o resolveu". O texto é bem claro: o direito natural é uma
parte do direito vigente da pólis.
Não menos claro é, para o que corresponde ao direito romano, a seguinte passagem
das Instituições de Gaio (I,1): "Todos os povos que se governam por leis e costumes
usam, em parte seu direito peculiar, em parte o comum de todos os homens; pois o
direito que cada povo estabeleceu para si, é próprio da cidade, e se denomina direito
civil, como direito propriamente da mesma cidade; entretanto, o que a razão natural
estabelece entre todos os homens é observado por todos os povos, e se denomina
direito de gente, como o direito que todos os povos usam. Assim, pois, o povo
romano usa, em parte seu próprio direito, e em parte o comum de todos os homens".
Gaio é inequívoco, o direito natural – o que estabelece a razão natural entre todos
os homens –, que ele chama de “direito de gente”, é um direito que se usa, um
direito vivo, que se aplica na vida e no foro. Observa-se, também, que se fala em
parte – partim – do direito total vigente. O direito natural é uma parte do direito
vigente.
Nem Aristóteles nem Gaio teorizam sobre essas passagens. O filósofo grego expôs
o que observou na realidade. Gaio descreveu a prática jurídica romana. É bem
conhecido o papel do direito natural em Roma. Por um lado, era o direito que
regulava as relações entre cidadãos romanos e estrangeiros, às quais não era
aplicável o ius civile. Por outro lado, teve uma função importante na tarefa de
humanização e adaptação do primitivo ius civile, rígido e formalista. Em qualquer
caso, era um direito vivo, parte do direito vigente.
O direito natural teve e tem na tradição clássica a consideração de uma classe ou
tipo de direito vigente. Em alguns casos, estabeleceu-se a bipartição entre direito
divino ou natural e direito humano; outras vezes se usou a tripartição entre direito
natural, direito de gente e direito civil. Assim o encontramos, por exemplo, em São
Isidoro de Sevilha, que transmitiu para a Idade Média a cultura clássica antiga.
Assim, o encontramos também em Graciano, no início mesmo de seu Decreto: "O
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gênero humano se rege por dois direitos, ou seja, pelo direito natural e pelos
costumes" ou direito positivo.
Esta tradição clássica, que permaneceu entre os juristas até a generalização do
kantismo e do positivismo, é a que permaneceu viva entre os canonistas até hoje. O
direito natural é verdadeiro direito vigente.
Poderíamos nos perguntar agora se a convicção da tradição clássica do direito
natural a respeito da natureza jurídica do direito natural – verdadeiro direito – tem
algum fundamento racional. Trata-se de uma tradição assumida acriticamente ou
existem argumentos racionais para aceitar a existência do direito natural?
A questão do direito natural refere-se tão-somente ao problema de existir um núcleo
natural de legalidade, ou, o que dá no mesmo, um produto cultural é um direito ou é
também uma realidade natural? Sem dúvida, o direito positivo, que – não se
esqueça – representa, em todo caso, a maior parte do fenômeno jurídico, é uma
realidade cultural, obra do homem. É este um fato indiscutível. Mas é o fenômeno
jurídico, em sua totalidade, um invento humano, um fato cultural, ou existe um
núcleo natural de legalidade, sobre o que se assenta o direito positivo como
fenômeno cultural? Eis aí uma pergunta a qual o positivismo deu uma resposta
indireta, mas que realmente não foi objeto de colocação direta nem de resposta
direta. A Escola moderna do Direito Natural, através de sua teoria do pacto social,
entendeu a sociedade e o poder como fenômenos culturais, a partir de um estado
natural de associabilidade, mas o direito não era concebido de igual modo, pois
partiu do fundamento de que, no estado natural, existia um ius naturae. Não era,
pois, o primitivo estado da humanidade um estado não jurídico.
Uma natural não juridicidade, de modo que o direito seja, desde sua raiz, um fato
cultural desde que razoavelmente sustentável, porque é axiomático que não haja
fato cultural que não tenha uma base natural. Para que o homem produza algo, é
absolutamente necessário que tenha a capacidade natural para isso, e que na
natureza se dêem as condições necessárias. Se o homem não tivesse a capacidade
de enxergar, não existiria todo aquele conjunto de feitos culturais relacionados com
a potência visual: nem a pintura, nem a escultura, nem a televisão, nem o cinema,
nem tudo que descansa sobre a capacidade humana de ver.
Por isso me parece de elementar sentido comum que, por existir o fenômeno
jurídico, deva existir um núcleo natural de legalidade. Observa-se que não é
suficiente qualquer potência ou capacidade para que exista o fato cultural. A
potência deve ser da mesma ordem do fato cultural e em relação a este. Para poder
nadar, é preciso que haja a capacidade natatória. Para que exista a escultura, é
preciso que haja a visão e a capacidade manual. Ou na natureza existe a dimensão
jurídica, ou esta resulta ser impossível e inexistente. É o que ocorre com os animais.
Os homens podem falar de direitos dos animais e fazer declarações sobre eles, mas
em relação aos animais e sua conduta, tais declarações são vácuas, pois os
pretendidos direitos nenhuma influência têm na conduta animal, que é alheia a esta
categoria. Se não houvesse legalidade natural no homem, não haveria direito
positivo. Daí que, no meu entender, a melhor demonstração da existência do direito
natural é a existência do direito positivo.
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Qual é esse núcleo natural de legalidade? Penso que, por um lado, esse núcleo
natural de legalidade reside na existência de uma dimensão jurídica da pessoa
humana, em virtude da qual tem a potência natural necessária para ser titular de
direitos. Mas isto só é possível se o homem estiver constitutivamente estruturado
como ser dominador de seu próprio ser e de seu ambiente, o que se deve admitir,
pois o homem é pessoa, e ser pessoa implica possuir o domínio sobre o próprio ser.
Portanto, se o homem for possuidor de seu próprio ser, torna-se titular de algum
direito: o direito ao próprio ser. O que significa dizer que é, naturalmente, não só
capaz de direitos, mas também titular de direitos.
Por outro lado, o núcleo natural de legalidade supõe a natural estrutura da pessoa
humana como ser regulado por leis sociais, o que implica alguma lei natural.
Em suma, penso que, em razão disto, ocorre o que podemos chamar de a
insuperável aporia do positivismo: se não existir direito natural não pode existir
direito positivo; e se existir direito positivo, necessariamente existe direito natural.
b) Passemos agora a uma segunda convicção da concepção clássica. Sendo
verdadeiro direito vigente, o direito natural não forma uma ordem jurídica ou
ordenamento separado do direito positivo. A idéia de que existem dois sistemas
jurídicos, um natural e outro positivo, duas ordens jurídicas completas em si, ambas
concorrendo na regulação da mesma realidade social, não é a tradição clássica,
senão a distorcida visão que introduziu a Escola moderna do Direito natural,
especialmente a direção racionalista.
Recordemos que o iusnaturalismo racionalista concebia o direito natural como o
conjunto de leis racionais que, a seu entender, regia a sociedade humana, por
virtude da Natureza. À semelhança do Universo, que tem leis físicas perpétuas,
universais e imutáveis, alheias à mudança histórica, a sociedade humana possuiria
também leis da natureza, fixas e imutáveis, alheias ao tempo e à história. Estas leis
naturais – leis racionais – formariam um sistema completo de normas reguladoras da
realidade social, que se oporiam ao direito então vigente, o direito do Antigo Regime,
que seria um direito obscurantista. O direito natural que o racionalismo oferecia,
representava para eles o novo direito – o próprio da era das luzes –, que devia
substituir o velho direito de raízes medievais. Daí que o ideal racionalista do século
XVIII terminou por ser a constituição desse direito racional em corpos legais, dando,
deste modo, impulsiono ao movimento codificador. Assim, pois, direito natural e
direito positivo se apresentavam como dois sistemas de normas ou ordens jurídicas.
Esta idéia das duas ordens, natural e positiva, deixou um rastro tão forte, que
inclusive alguns neoescolásticos – contra toda razão – tenham-na considerada como
apropriada. Mas a ninguém se oculta que esse iusnaturalismo das duas ordens ou
sistemas deveria conduzir – como conduziu – à negação do direito natural enquanto
direito vigente. Se o direito positivo é um sistema jurídico distinto do direito natural, e
dele é próprio o sistema de garantias judiciais e de execução coativa, o direito
natural é uma ordem normativa sem garantia judicial e sem coação. Isso já o
advertiu Hobbes, pondo-o Thomasio em relevo. A conseqüência – que já tiraram os
dois autores citados – é que o direito natural teria características peculiares distintas
das que são próprias do direito positivo, de tal modo que não seria, propriamente,
direito. O direito natural seria ética ou moral, conclusão racionalista que aceitaram
não poucos neoescolásticos e neotomistas, em que pese a não concordância com a
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Escolástica em geral, nem com Santo Tomás do Aquino, em particular. Isto é algo
sobre o qual se deve ter uma idéia muito clara. Entender o direito natural como
moral ou ética sociais não é a tradição clássica, a não ser uma derivação da Escola
racionalista do Direito Natural. Entendemos que, sem dúvida, existe uma ética social
natural, mas esta não é o direito natural.
Segundo a concepção clássica, o direito vigente consta de uma multiplicidade de
fatores divididos em dois grupos: uma parte natural e uma parte positiva. A palavra
chave é parte. Uma parte do direito vigente é natural, e outra é positiva. Víamo-lo em
Aristóteles e Gaio, e nitidamente é detectável tanto na tradição jurídica como na
tradição filosófico-teológica até o século XVIII. Assim como é detectável nos
canonistas até nossos dias.
Não há, pois, mais que um sistema jurídico vigente, dotado de garantias judiciais e
de execução coativa. Esse único sistema, em parte é natural, e em parte é positivo.
Tem, pois, o direito natural uma garantia judicial? De modo natural, é o sistema
judicial imperante na sociedade. Está dotado de coação? Efetivamente sim; é o
sistema coativo da sociedade que, igualmente com o sistema judicial, está a serviço
do direito vigente, seja natural, seja positivo. Isto resulta de difícil experiência no
âmbito da sociedade civil, porque o positivismo reinante desterrou a menção ao
direito natural nas sentenças dos juizes e nas alegações por escrito dos advogados;
mas segue sendo um fato, pois o direito natural não pode ser banido da vida jurídica
e intervém com nomes disfarçados: princípios informadores do ordenamento,
princípios de justiça, princípios gerais do direito, direitos humanos, natureza das
coisas, etc.
Por outro lado, é experiência vivida no ordenamento canônico. Experiência que
qualquer canonista e qualquer jurista familiarizado com a jurisprudência matrimonial
conhecem. Falo da jurisprudência sobre o matrimônio, porque o sistema matrimonial
canônico é exemplar a respeito. A construção legislativa, jurisprudencial e doutrinal
do matrimônio canônico é uma admirável articulação entre direito natural e direito
positivo em um único sistema jurídico. Constitui a melhor experiência
contemporânea da tradição clássica.
Para que o direito natural e o direito positivo formem um só sistema de normas, há
uma série de conseqüências, das quais quisesse aqui mostrar duas. Em primeiro
lugar, resulta vicioso para um jurista iusnaturalista clássico falar em uma solução de
direito natural e numa solução de direito positivo em relação a uma mesma questão.
Poder-se-ia dizer– e, de fato, se diz – que, em tal caso concreto, a solução de direito
natural é uma, e a de direito positivo é outra. Isto ou é uma conseqüência – ou, por
melhor dizer, uma inconseqüência – de seguir um método positivista para interpretar
o direito positivo, ou é uma má interpretação. Se direito natural e direito positivo são
parte – elementos ou fatores – do direito vigente, em cada caso concreto, só pode
haver uma solução, que é a solução de direito, em que se devem conjugar
harmonicamente os fatores naturais e os fatores positivos.
Também se torna equívoco fazer a distinção entre o direito natural e o direito
positivo, dizendo que o primeiro é o direito que deve ser, enquanto que o segundo é
o direito que é. Não sei se já se advertiu que tal afirmação é típica da Escola
racionalista do Direito Natural. Duas ordens normativas distintas, das quais uma, a
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natural ou racional, seria chamada a substituir a outra. Uma é, a outra deve ser. Ao
mesmo tempo, é uma forma sutil de negar a legalidade do direito natural: é óbvio
que o que deve ser, enquanto tal, ainda não é; logo, o direito natural devendo ser
direito vigente, significaria que não o é. Esta não é a tradição clássica, e por isso
afirmações deste estilo são alheias à comum canonística.
Não menos estranhamente soa aos ouvidos da canonística comum dizer que o
direito natural é o direito ideal, enquanto que o direito positivo é o direito real. Tal
afirmação é alheia à tradição clássica, para a qual o direito natural é direito vigente
e, por conseguinte, direito real. A ninguém se oculta que um ente ideal é um ente de
razão, sem existência fora do pensamento. O que implica que qualificar de direito
ideal o direito natural equivale a negar que seja verdadeiro direito. Uma lei ideal não
é uma lei, um direito ideal não é um direito; são idéias, como uma casa ideal é uma
idéia e não uma verdadeira casa.
Deste modo, não é de causar admiração que uma série de afirmações que, mais ou
menos, se naturalizaram na ciência jurídica ou na filosofia jurídica seculares, não
encontrem nenhuma difusão entre os canonistas. O direito natural como ordem ética
social, como idéia de direito ou ideal de justiça, como direito que devesse ser ou
como conjunto de princípios abstratos e generalíssimos, não corresponde à
experiência dos canonistas, como não corresponde à tradição clássica. Não se deve
esquecer que a concepção clássica responde perfeitamente à experiência da
canonística, acostumada a ver o direito natural como verdadeira lei e verdadeiro
direito, plena e perfeitamente articulados com o direito positivo.
c) Vimos dois aspectos fundamentais da concepção clássica e, portanto, da
canonística. Vejamos agora o terceiro aspecto que gostaria de expor aqui: as
relações entre direito natural e direito positivo conforme a interpretação do direito.
É, sem dúvida, a interpretação do direito a função essencial do jurista, cujo ofício e
missão consistem em dizer o direito, em estabelecer qual é, em cada caso concreto,
a solução de direito. Pois bem, em relação com esta operação essencial do jurista, a
tradição clássica dá uma série de regras – mais implícitas que explícitas –, que
facilmente se podem ver seguidas pelos canonistas. Em breve síntese, estas regras
são as seguintes:
Primeira: o direito natural mantém sempre sua índole de natural, até no suposto de
encontrar-se assumido pelo direito positivo. No caso de normas e direitos naturais
positivados, não se devem interpretar como direito positivo, mas sim como direito
natural, e, portanto, segundo sua própria índole. Tal seria –aplicando esta regra a
um exemplo de direito secular – o caso dos direitos fundamentais declarados pela
Constituição.
Segunda: o direito positivo deve interpretar-se conforme o direito natural, em razão
da função própria deste: ser base, cláusula-limite e princípio informador do
ordenamento jurídico. Isto não oferece especial dificuldade ao jurista, no que diz
respeito à maior parte do direito positivo.
Terceira: o direito positivo não pode prevalecer sobre o direito natural. Em caso de
conflito entre um direito e outro, o positivo deve reconduzir-se aos termos do direito
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natural. É este o princípio de prevalência do direito natural, que constitui a pedra de
escândalo dos positivistas. Ante este princípio, os positivistas de todos os signos,
rasgam as vestimentas, augurando todo tipo de males à ciência do direito e ao
ordenamento jurídico. A seu parecer, os princípios de certeza e de segurança se
veriam gravemente lesados, introduzir-se-ia a mais absoluta arbitrariedade e
tremeriam os fundamentos mesmos do Estado e do Direito. Uma reação tão
exagerada e de tanta ausência de contraste histórico nos mostra ser resultado em
boa parte de desconhecimento do princípio, e é mais uma desculpa que uma razão.
Imaginações, fruto do desconhecimento. O princípio se aplicou – disso temos
exemplos – pelos juristas romanos, mas certamente, entre as causas da queda do
Império, não parece que se encontre esse princípio. Aplicou-se durante a Idade
Média e a Idade Moderna e tais efeitos brilharam por sua ausência. E se aplicou no
direito canônico ao longo de toda a história e tampouco existe o menor sintoma de
algum cataclismo: o ordenamento canônico gozou e goza de excelente saúde, entre
outras coisas, graças a esse princípio.
Não se pensa que o princípio de prevalência conduz necessariamente a atitudes
extremas, como a objeção de consciência, a desobediência civil, a resistência
passiva ou ativa, ou coisas similares. É certo que tais atitudes podem ser a única
solução justa e honrada ante determinadas prescrições da lei positiva, mas se trata
de casos estranhos e incomuns. O normal é que o princípio de prevalência leve a
uma tarefa interpretativa que reconduza ao direito positivo em ser coerente com o
direito natural. Penso que, com dois exemplos tirados do Digesto, ficará
suficientemente em posição de relevo. Um deles é o de um usufruto de quantidade,
que os juristas entenderam como contrário à razão natural. Qual foi a solução?
Simplesmente entendê-lo como Cautio usufructuaria [caução usufrutuária] e, neste
sentido, interpretaram o correspondente senatus-consulto. Assim se lê em D. 7, 5, 2:
"Por este senatus-consulto não se deu vida a um próprio usufruto de quantidade, já
que a autoridade do senado não pôde trocar a razão natural, mas, introduzido o
remédio, começou a admitir uma Cautio usufructuaria". Outro caso se refere a capitis
deminutio. Em que pese que o ius civile declarava de tudo incapaz o capitis
deminutio, os juristas declararam subsistentes as prestações naturais: "É evidente –
lemos em D. 4,5,8 – que aquelas obrigações que contêm uma prestação natural não
se extinguem pela capitis deminutio, porque o direito civil não pode alterar os direitos
naturais; assim, a ação de dote subsiste ainda depois da capitis deminutio, porque
está referida ao que é bom e justo".
Facilmente se adverte que a regra da prevalência não origina nenhum cataclismo no
ordenamento jurídico, nem ataca os princípios de segurança e certeza. Pelo
contrário, é um princípio de humanização do direito, de implantação da justiça e de
reconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa humana. Não se esqueça que
o que é contrário ao direito natural é injusto, representa uma injustiça, e a missão
própria do jurista não é tanto dizer o legal como sendo dizer o justo. Por isso, o
escândalo dos positivistas ante este princípio me parece um escândalo farisaico.
Dizia a princípio que, para expor a função do direito natural na teoria e prática dos
canonistas sobre este, nada era melhor que evocar a tradição clássica, daquela que
a legislação e a ciência canônicas são expressão e sobrevivência. Parece-me ter
completado o propósito, sublinhando particularmente aqueles rasgos que são mais
aplicáveis à ciência jurídica secular. Penso que recordar a tradição clássica, mantida
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viva pela canonística, pode ser um aviso útil para os juristas empenhados em
superar o positivismo jurídico e em procurar novas vias para chegar a uma ciência
do direito mais humana e mais justa.