A PARCERIA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Transcrição

A PARCERIA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
A PARCERIA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: PROBLEMAS E
CONTRADIÇÕES
Georgia Sobreira dos Santos Cêa,1
Rosane Toebe Zen 2
Introdução
O capitalismo, na sua configuração recente, tem sofrido consideráveis alterações
concernentes às relações de trabalho. O tema tem sido motivo de intensos debates e
ações sociais, envolvendo ambas as partes interessadas. Para os empregadores, a
flexibilização das relações de trabalho é apresentada como condição para a
competitividade empresarial; para os trabalhadores, a escassez e as exigências do
mercado de trabalho agravam a fragilidade política das diferentes categorias
profissionais, ante as negociações e proposições patronais.
Para ilustrar esse contexto, pode-se citar o conteúdo das teses que embasaram os
debates e discussões realizadas por juízes do trabalho, durante o XIV Congresso
Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (CONAMAT), ocorrido em Manaus,
entre os dias 29 de abril e 2 de maio deste ano, e que teve como tema central “O
homem, o trabalho e o meio: uma visão jurídica e sociológica”3. O marco do
encerramento do evento foi a aprovação da “Carta de Manaus”, composta por 12 itens4.
O segundo deles é taxativo em afirmar que os juízes do trabalho, representados no
referido evento, “Rejeitam todas e quaisquer reformas tendentes à desregulamentação e
à precarização das relações de trabalho”.
1
Professora adjunta da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE); líder do Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Estado, Sociedade e Educação (GP-TESE), cadastrado no CNPq;
Rua Pio XII, 1789, apt. 8, bloco A, Centro, Cascavel – PR; [email protected].
2
Mestranda em do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação da UNIOESTE; membro do
Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Estado, Sociedade e Educação (GP-TESE), cadastrado no
CNPq; Rua Anita Garibaldi, 19, Boa Esperança, Toledo – PR; [email protected].
3
As dezenas de teses apresentadas foram distribuídas por comissões, organizadas em cinco temas:
Comissão 1: As novas tecnologias e as relações de trabalho; Comissão 2: O meio ambiente de trabalho e a
dignidade da pessoa humana; Comissão 3: O trabalho juridicamente tutelado como elemento de inclusão
social ; Comissão 4: A tutela jurisdicional como fator de promoção dos direitos fundamentais; Comissão
5: A modernização do processo e a ampliação da competência da Justiça do Trabalho. Informações e teses
disponíveis em: < http://www.conamat.com.br/tra_teses_acolhidas.aspx#comissao4>.
4
A
íntegra
da
Carta
está
disponível
em:
<http://www.anamatra.org.br/noticias/noticias/ler_noticias.cfm?cod_conteudo=18228&descricao=Noticia
s>.
Considerando que a Justiça do Trabalho é instância do Estado brasileiro5 e,
como tal, integra um dos poderes da República, pode-se ter noção do nível e grau de
gravidade da situação dos trabalhadores brasileiros diante das relações de trabalho em
curso, marcadamente restritivas de direitos e reticentes quanto à garantia de segurança
do/no trabalho.
Numa das teses apresentadas no evento, Rodrigues (2008, p. 2) salienta que a
lacuna legislativa no que tange às relações de trabalho no Brasil “[...] tornou-se cada vez
mais grave pelo assombroso crescimento do processo de terceirização, a todo momento
fomentando lides a serem submetidas ao judiciário”.
Uma das principais justificativas da classe empresarial para a defesa e expansão
vertiginosa do processo de terceirização é a crise que marca o trabalho formal na
configuração atual do capitalismo. Justifica-se que a terceirização e, portanto, as
parcerias, são inevitáveis para o refreamento da crise do emprego, daí a conseqüente
crítica às diferentes formas jurídicas que visam resguardar os direitos do trabalho,
direitos esses recentes e frágeis na realidade brasileira e que passam a ser duramente
atacados pelos grupos empresariais.
Pires (2008, p. 2), contra-argumentando o posicionamento empresarial, afirma
que
[...] é uma falácia dizer que existe uma relação de causalidade entre os
sistemas de garantia de emprego e o desemprego. Aliás, podemos
pensar que é a falta de garantia no emprego que aumenta o
desemprego. Já a contratação informal é mecanismo adotado por
empresas sem responsabilidade social e, quanto a elas, à fiscalização
ministerial e à Justiça do Trabalho caberá coibir a prática, adotando o
prestigiado princípio da primazia da realidade.
5
Este trabalho orienta-se pela noção de Estado ampliado ou noção geral de Estado, conforme definida
por Antonio Gramsci (1991), e pela identificação do Estado moderno como a estrutura de comando ou
controle político do capital, com base em Mészáros (2002). O primeiro autor propõe uma compreensão
dialética do Estado capitalista, que rompe com a identificação imediata entre governo e Estado e com a
cisão absoluta entre sociedade civil e Estado, além de explicitar a condição do poder político como
terreno e objeto da luta de classes. O segundo autor desenvolve uma interpretação do Estado moderno
como estrutura política, que deve diminuir, na medida do necessário, os desequilíbrios e as distorções das
dimensões constitutivas do sistema do capital. Não obstante as diferenças entre os autores quanto à
questão do Estado, ambos sustentam-se na máxima marxiana – aprofundando-a e atualizando-a – que
afirma que “A burguesia [...] é obrigada a organizar-se nacionalmente, e não mais localmente, a dar uma
forma geral a seu interesse médio [...]. o Estado [moderno] é a forma na qual os indivíduos de uma classe
dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época
[..] todas as instituições são mediadas pelo Estado e adquirem através dele uma forma política” (MARX,
ENGELS, 1996, p. 97-98).
2
A falta de responsabilidade social das empresas, conforme salienta Pires (2008),
aliada ao caráter gerencial assumido pelo Estado nacional, tem efeitos sociais de alto
impacto para os trabalhadores. Por um lado, constata-se a crescente diminuição da força
de trabalho caracterizada pelo tempo integral, segurança no emprego, perspectivas de
promoção, tutela contratual, entre outras; ao mesmo tempo, verifica-se o aumento da
composição e presença da força de trabalho atípico, caracterizado pela falta, ausência ou
fragilidade da tutela contratual, resultando, entre outros, no declínio da remuneração e
na desqualificação e precarização do trabalho (VASAPOLLO, 2005). Essas diferentes
formas de contratação vêm sendo orientadas pela idéia das parcerias entre vendedores e
compradores da força de trabalho, baseada na crença da possibilidade de atenuação e
mesmo diluição da contradição fundante entre capital e trabalho.
A ilustração apresentada anteriormente intenta demonstrar o grau de
complexidade que cerca o tema das parcerias nas relações de trabalho, o qual constitui o
objeto deste artigo. Para desenvolvê-lo, num primeiro momento discute-se o caráter
ideológico das parcerias entre trabalhadores e capitalistas, a partir da identificação dos
mecanismos através dos quais as parcerias têm assumido significativo papel na
produção, em diversos setores. Num segundo momento, o artigo apresenta reflexões
sobre as implicações práticas da lógica da parceria, tomando como referência uma
experiência concreta (o setor da avicultura).
Objetivos
A problematização e a elucidação de contradições inerentes à ideologia e às
práticas de parceria nas relações de trabalho constituem os objetivos centrais deste
artigo. O tratamento teórico desses elementos justifica-se, fundamentalmente, pela
necessidade de compreensão das mudanças em curso nas relações de trabalho e pela
necessidade de explicitação do aprimoramento das formas de exploração da força de
trabalho, que muitas vezes ganham a aparência de maior poder de participação e de
barganha dos trabalhadores, quando, em essência, promovem o contrário, aprofundando
sua subordinação aos ditames dos interesses empresariais.
Metodologia
3
Para a elaboração do artigo, utilizou-se a orientação teórico-metodológica
pautada na abordagem dialética, tomando como principal referencial a categoria da
contradição. Os instrumentos metodológicos que serviram de base para as análises são a
pesquisa bibliográfica e a análise de dados empíricos preliminares acerca da prática de
parcerias entre empresas e trabalhadores.
Resultados:
No Brasil, principalmente a partir da década de 1990, a desregulamentação do
mercado de trabalho – juntamente com a redefinição liberalizante do controle do Estado
sobre a atividade econômica e com a rearticulação do país no contexto das relações
mercantis em âmbito mundial (marcada pela abertura econômica)6 – passou a compor
um conjunto de diretrizes políticas que repercutiram, fortemente, nas relações de
trabalho.
Em estudo recente sobre os planos nacionais de desenvolvimento editados a
partir dos anos 1990 (os chamados planos plurianuais)7, Zen (2007) constata que o
conjunto de diretrizes apresentado acima está presente nos instrumentos de
planejamento governamental, ganhando diferentes argumentos e estando relacionados a
políticas específicas, mantendo, entretanto, o mesmo sentido político-econômico. A
autora afirma que
[...] está previsto que o Estado buscará a iniciativa privada para
realizar os investimentos em infra-estrutura (o que gera maior
endividamento e, conseqüente, redução da disponibilidade de recursos
públicos para investimento na área social). O tema da abertura do
comércio [...] trata do fortalecimento de setores com potencial de
inserção internacional. A desregulamentação do mercado de trabalho
se faz presente no que se refere à modernização das relações
trabalhistas; estas significam, em síntese, a redução dos poucos
direitos trabalhistas conquistados pelos trabalhadores até então (ZEN,
2007, p. 92).
As orientações e ações práticas encampadas pelo Estado brasileiro nas últimas
6
Segundo Boito (1999), esse conjunto, interpenetrado e articulado, constitui a base da chamada política
neoliberal.
7
No estudo, buscou-se a compreensão dos sentidos atribuídos à formação profissional nos Planos
plurianuais elaborados a partir dos anos 1990: Brasil em Ação (1996/1999), Avança Brasil (2000/2003) e
Brasil de Todos (2004/2007). Na parte inicial do trabalho, são identificadas as idéias centrais que
unificam os três planos analisados.
4
décadas são parte do caráter assumido pelas relações sociais de produção que se tornam
predominantes nas últimas décadas no país.
Analisando os fundamentos das relações sociais de produção no capitalismo,
Marx e Engels (1996) fazem referência ao conjunto de elementos que envolvem a
materialidade e a subjetividade da vida dos homens e que define os diferentes espaços
sociais a serem ocupados e as práticas sociais a serem concretizadas, visando à
realização da produção; tais relações são a expressão histórica da unidade orgânica entre
o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as formas assumidas socialmente
pelas relações de propriedade (expressão jurídica dessas relações) e as ações e idéias
esperadas dos agentes econômicos envolvidos na produção.
É a partir desses referenciais que o tema da parceria nas relações de trabalho é
tratado neste artigo. Tal postura teórica pode ser justificada pela própria compreensão
divulgada pelo meio empresarial do que significam as parcerias.
Isatto e Formoso (1999), num estudo sobre as parcerias entre empresas e
fornecedores sob a lógica da qualidade total, afirmam que
Enquanto a busca por maior poder de barganha é legítima em qualquer
situação, haja visto o que ocorre nas estruturas de keiretsu [modelo
empresarial caracterizado por uma cadeia hierárquica e de
subordinação entre empresas, visando um intento econômico] no
Japão, a efetiva implantação de parcerias corresponde a uma forma
distinta de exercício de tal poder. Tal habilidade – exercer o poder
sem sacrificar a longo prazo a sobrevivência do parceiro e lhe garantir
possibilidades de crescimento – parece, portanto, ser o elementochave no sucesso de tais relações, carecendo ainda de pesquisas mais
aprofundadas.
Vê-se, a partir deste exemplo, que a visão empresarial relaciona diretamente a
prática da parceria às relações de poder entre as partes envolvidas e crê na possibilidade
de que a dominação de uma delas sobre a outra possa se dar sem a falência da última.
Naturaliza-se, portanto, a dominação de um dos parceiros e a ocorrência de “sacrifício”
da sobrevivência da parte subjugada.
A análise dos autores, cristalina e direta, permite indicar que essa lógica rege, de
maneira geral, as diferentes formas que a parceria assume no atual contexto. Em geral, a
parceria serve de principal ferramenta de gestão do processo de terceirização de
serviços, atividades e de mão-de-obra. Esse processo é marcado pela realização de
contratos entre diferentes partes visando a realização de um fim, envolvendo distintos
5
agentes sociais, dependendo do tipo de atividade desenvolvida por distintas esferas: no
âmbito das relações políticas entre Estado e sociedade civil, nas transações empresariais
dos diferentes setores da economia, e mesmo no interior de diferentes processos de
trabalho, tendo como partes envolvidas os empregadores e os trabalhadores. Esta última
forma é a abordada neste artigo.
O processo de terceirização e sua principal ferramenta de gestão – a parceria –
são significativas expressões da desregulamentação das relações de trabalho, nas quais
são aceleradas e aprimoradas as estratégias de flexibilização das relações sociais de
produção, envolvendo as formas de organização e realização do trabalho, as ações e
expectativas dos agentes econômicos envolvidos na produção (proprietários de meios de
produção e proprietários da força de trabalho) e o caráter assumido pelas formas de
produção e distribuição da riqueza socialmente produzida. Nesse entorno, são também
flexibilizadas as forças produtivas do trabalho, expressas no próprio design e
funcionamento das máquinas e equipamentos.
São comuns os apelos empresariais e midiáticos para o aprofundamento da
flexibilização das relações de trabalho, sob o argumento de que a mesma age como
estratégia de enfrentamento ao problema do desemprego. Entretanto, compreendida no
contexto das relações sociais de produção, pode-se afirmar, com base em Vasapollo
(2005, p. 28), que a flexibilização, “[...] definitivamente, não é solução pra aumentar os
índices de ocupação. Ao contrário, é uma imposição à força de trabalho para que sejam
aceitos salários reais mais baixos e em piores condições”.
Os contratos de trabalho atípicos são os principais meios para o estabelecimento
de parcerias entre empregadores e trabalhadores. Estas acabam funcionando como
instrumentos de precarização do trabalho, uma vez que, segundo Vasapollo (2005, p.
60), diante das regras de eficiência das empresas, “[...] o trabalhador é abandonado
frente a um empresário com o qual ele tem de negociar seu salário e o tempo que ele vai
dedicar ao trabalho”.
Nesse contexto de precarização das relações de trabalho, ganha amplitude o
controle do capital sobre o processo de trabalho, uma das tendências imanentes do
capitalismo (BRIGHTON, 1991). Nesse sentido, as recentes inovações tecnológicas e
organizacionais aplicadas ao mundo do trabalho recolocam a discussão sobre as
possibilidades de participação dos trabalhadores nos processos de tomada de decisões
6
na empresa capitalista moderna.
Na contemporaneidade, manifesta-se a contradição entre a necessidade de maior
engajamento e participação dos trabalhadores na dinâmica das empresas, ante o caráter
flexibilizado das relações e processos de trabalho, e a necessidade, inerente ao exercício
do controle no processo de trabalho capitalista, de circunscrever e subordinar a ação e as
intencionalidades dos trabalhadores aos desígnios das formas de produção e reprodução
do capital que se tornam predominantes.
Harvey (1999, p. 119), analisando as transformações recentes do trabalho no
capitalismo, afirma o seguinte:
A socialização do trabalhador nas condições de produção capitalista
envolve o controle social bem amplo de suas capacidades físicas e
mentais. A educação, o treinamento, a persuasão, a mobilização de
certos sentimentos sociais (a ética do trabalho, a lealdade aos
companheiros, o orgulho local ou nacional) e propensões psicológicas
(a busca da identidade através do trabalho, a iniciativa individual ou a
solidariedade social) desempenham um papel e estão claramente
presentes na formação de ideologias dominantes cultivadas pelos
meios de comunicação de massas, pelas instituições religiosas e
educacionais, pelos vários setores do aparelho do Estado, e afirmadas
pela simples articulação de sua experiência por parte dos que fazem o
trabalho.
Diferentes são as formas de caracterizar e nomear essa recente feição do controle
do capital sobre o trabalho: “envolvimento cooptado” do trabalhador (ANTUNES,
1995, p. 35), “captura da subjetividade operária pela lógica do capital” (ALVES, 2000),
necessidade da aceitação, da colaboração e da adesão à filosofia da empresa por parte
dos trabalhadores (GOUNET, 2002, p. 46-47). Como elemento comum a essas
diferentes análises encontra-se a explicitação da estratégia ideológica capitalista de fazer
parecer que as contradições entre capital e trabalho se diluíram e que os interesses das
classes antagônicas são os mesmos. Ao desvelarem o aprofundamento do controle do
capital sobre o trabalho, sob novas feições, os autores citados contribuem para a
compreensão da contraditoriedade entre a necessidade de “adesão” dos trabalhadores –
que funciona mais como coação – e o esforço para que tal participação ativa no
processo de trabalho seja orientada pelas necessidades de produção e reprodução do
capital. Assim, as parcerias atuam como fiéis instrumentos do exercício de poder
realizado pela classe capitalista sobre os trabalhadores.
7
A PARCERIA NA AVICULTURA
A experiência concreta que aqui serve de reflexão sobre o tema da parceria é a
que se estabelece entre os avicultores (pequenos proprietários rurais) e as
agroindústrias. São várias as razões que podem ser mencionadas para justificar a
pertinência do estudo da parceria na avicultura: a importância econômica do setor, onde
o Brasil ocupa, desde 2004, a liderança mundial na exportação do produto (frango de
corte); o fato desse tipo de parceria constituir um elo entre as esferas rural e urbana de
produção; e o caráter pioneiro que a parceria no setor avícola assume, de forma
predominante e massiva, envolvendo avicultores e agroindústrias, conforme apontam
diversas pesquisas sobre o tema (BILK, 2003; CANAVER et. al., 1998; COSTA, 1993;
RIZZI, 2005). Mas a questão fundamental que justifica a abordagem dessa forma
específica de parceria é o fato da subordinação envolver sujeitos sociais aparentemente
controladores, ambos, de suas propriedades.
A maior indústria brasileira de produção de frango de corte surgiu no oeste
catarinense e hoje tem unidades nas principais regiões agrícolas do país. Foi pioneira no
sistema de parceria entre indústria e produtor rural, modelo criado em 1951, a princípio
denominado de integração vertical, que mais tarde passou a ser chamado de “Fomento
Agropecuário”. A produção consiste no fornecimento, por parte da agroindústria, dos
pintinhos, da ração e da assistência técnica. Aos avicultores deve caber a
responsabilidade pela construção, em suas propriedades, dos aviários e da compra dos
equipamentos, e desempenham a atividade de engorda dos animais, que são entregues à
empresa no ponto de abate (COSTA, 2005).
Esta forma de produção manteve-se incipiente, rarefeita e marcada por
experiências isoladas de frigoríficos até os anos 1970. Daí em diante, o processo de
modernização da agricultura se intensifica, abarcando mudanças que se fizeram sentir
desde a base técnica da produção até a implantação de indústrias processadoras de
matérias-primas de origem agrícola, encurtando o ciclo de produção (KAGEYAMA et.
al., 1990, apud. RIZZI, 1998). Estas alterações tornaram a produção em pequena escala
– ou seja, aquela produção própria da pequena agricultura – praticamente inviável,
deixando aos pequenos proprietários duas possibilidades: venda da propriedade –
configurando o movimento de concentração fundiária e o êxodo rural – ou a adaptação
8
da propriedade a segmentos em que a mão-de-obra familiar era bem-vinda, tornando-se
“parceiros” de agroindústrias (BILK, 2003).
Portanto, o movimento de intensificação e ampliação da industrialização que
ocorreu a partir dos anos 1970 em todos os setores produtivos (automobilístico, têxtil,
bens duráveis, por exemplo) atingiu também, neste mesmo período, a agricultura. Este
contexto tornou-se extremamente fértil para a avicultura agroindustrial. A avicultura se
modernizou impulsionada pelo apoio financeiro governamental, através de políticas de
crédito subsidiado, tanto para a instalação de frigoríficos e comercialização, bem como
para a instalação de aviários e equipamentos aos fornecedores de matéria-prima (o
avicultor).
De acordo com Sorj (1986), citado por Bilk (2003, p. 23),
[…] as políticas de modernização subsidiadas pelo Estado e o
crescimento da agroindústria como determinantes básicos de mudança
nas estruturas sociais agrárias […] promoveram a capitalização dos
processos de trabalho rurais e a mercantilização crescente da
agricultura de pequena escala, acelerando a taxa de proletarização
rural [e gerando] uma rearticulação fundamental à reprodução de
capitais industriais. O Estado passa a ser encarado como agente de
uma nova estratégia deliberada e coerente no sentido de transformar a
base produtiva da agricultura via sua integração ao complexo
agroindustrial.
Neste sentido, além de Bilk (2003), também outros pesquisadores (COSTA,
1993; GRIGOROVSKI et al, 2001; RIZZI, 1998) indicam que o Estado cumpriu e vem
cumprindo papel fundamental para o desenvolvimento da avicultura.
Na década de 1990, o setor avícola ganha importância no cenário econômico
nacional, incentivado pelas alterações conjunturais de cunho neoliberal, nas quais os
incentivosfinanceiros, a abertura comercial (exportação dos produtos), a reestruturação
produtiva8 financiada pelo Estado e a possibilidade de ampliação de ganhos pela
extração da mais-valia, tanto na sua forma relativa (incremento tecnológico), como na
sua forma absoluta (desregulamentação do mercado de trabalho), compõem os
principais elementos deste crescimento:
8
Diferentes estudos (COSTA, 2005; CANAVER et. al., 1998; FIGUEIREDO et. al., 2006;
MENEGHELLO et. al., 1999) apontam a abertura comercial e a reestruturação produtiva como elementos
que deram propulsão à avicultura nacional. Estes estudos compreendem a reestruturação produtiva como
o fator que possibilitou o aumento da produção do setor, e a abertura comercial como o elemento que
possibilitou a participação do produto nacional no mercado externo, sem manifestar preocupação com as
conseqüências destas transformações para os trabalhadores do setor.
9
[na década de 1990] O BNDES desembolsou R$ 940 milhões para o
setor, ou seja, 29% do valor destinado à cadeia de carnes. Os
financiamentos para a criação de aves representaram 42% desse valor,
com os 58% restantes sendo destinados às atividades de abate.
A dinâmica da avicultura no período esteve diretamente relacionada ao
aumento do consumo de frango verificado imediatamente após a
implantação do Plano Real. No ano seguinte (1995), o consumo per
capita cresceu 22%, passando de 19,2 kg/hab/ano para 23,4 kg/hab/ano.
Os financiamentos do BNDES acompanharam essa tendência: o valor
desembolsado, que até o final de 1994 foi de R$ 163 milhões, cresceu
exponencialmente, totalizando R$ 777 milhões na segunda metade da
década, ou seja, cinco vezes o verificado pré-Plano Real.
Os financiamentos foram utilizados para a implantação e a ampliação
da capacidade de granjas e complexos avícolas voltados para a
produção de animais para abate. Foram apoiados também investimentos
para alojamento de matrizes para a produção de ovos para gerar pintos
de um dia e investimentos em tecnologia, que visaram ao
melhoramento genético das aves com o propósito de aumentar a
produtividade do setor e contribuir para a diminuição do risco de
doenças nos criatórios.
A construção de abatedouros e incubadoras e a aquisição de plantéis de
matrizes adultas foram os itens mais freqüentemente financiados.
(GRIGOROVSKI et al, 2001, p. 169).
No entanto, os mecanismos financeiros e legais por meio dos quais o Estado
incentivou o desenvolvimento da avicultura não foram os mesmos para pequenos
produtores rurais e agroindústrias. O Estado atuou como mediador entre os interesses do
capital agroindustrial e os da pequena agricultura, num processo em que “[...] grandes
latifúndios se transformaram em modernas empresas capitalistas, diferenciando-se cada
vez mais dos latifundiários tradicionais, assentados na exploração da renda do pequeno
produtor” (SORJ, 1986, apud. BILK, 2003). A mediação consiste, nesse caso, no
fortalecimento da intrínseca relação entre os dois elos do processo produtivo – rural e
urbano –, na qual a agroindústria subjuga e explora o trabalho dos avicultores. As
políticas de crédito se assentaram em termos diferentes: as agroindústrias tiveram
acesso a linhas específicas e facilitadas de recursos públicos, tomados seja pela própria
receita do Estado, seja por empréstimos a organismos internacionais, enquanto os
agricultores tiveram que recorrer a empréstimos comerciais para financiar os
equipamentos com os quais passaram a produzir (BILK, 2003; COSTA, 1993).
A UBA (Associação Brasileira de Avicultura), em relatório anual referente ao
período 2006/2007, comemora os números do setor:
10
Em 2007, o mercado interno portou-se com demanda bastante
equilibrada com a produção, apresentando consumo médio de 580 mil
toneladas/mês e alcançando demanda anual de 6,960 milhões de
toneladas, com ganhos de 5% sobre o ano anterior, mantendo o
consumo per capita acima de 37,8 kg por habitante/ano. […] Na área
externa, […] as exportações brasileiras recuperaram as perdas e
ampliaram suas vendas, atingindo um crescimento, em volumes, da
ordem de 21%. Foi importante também a recuperação de preços, que
alcançou aumento de 28% sobre a média obtida em 2006 (UBA, 2007,
p. 36).
Este ganho, no entanto, não é revertido aos avicultores. Segundo as pesquisas de
Bilk (2003) e Costa (1993), os avicultores são submetidos ao intenso aumento da
produção sem que isso represente, na mesma proporção, aumento de renda. De acordo
com estes estudos, a remuneração dos avicultores representa para a agroindústria, em
média, a fatia de 5 a 10% do custo de produção. A diferença entre o mínimo (em torno
de 5%) e o máximo (10%) indica grande diferença remunerativa entre os avicultores,
evidenciando que alguns são mais bem remunerados que os demais. Este desequilíbrio
serve para justificar o desempenho individual de cada produtor, sob o ideário de que
todos têm condições de obter a mesma renda, no entanto, alguns se sobrepõem, e estes
são considerados produtores “padrão”. Ainda de acordo com Bilk (2003), agroindústrias
que há 20 anos atrás exigiam dos avicultores o alojamento mínimo de 2.000 cabeças de
frango por lote, aumentaram esse limite mínimo para 18.000 cabeças/lote. O volume de
produção por lote constitui somente uma das muitas exigências que as agroindústrias
fazem aos avicultores, o que incluiu também o constante incremento tecnológico. De
tempos em tempos os aviários recebem novos equipamentos, e estes investimentos
impactam na renda dos avicultores, que investem com recursos próprios, ou por meio de
empréstimos contraídos em instituições financeiras.
O não cumprimento das exigências produtivas e tecnológicas coloca os
avicultores sob o risco de exclusão do processo produtivo. Segundo Costa (1993), as
empresas mantêm cadastrados agricultores interessados à espera para tornar-se
parceiros. Assim, as empresas podem escolher, entre eles, os que apresentam melhores
condições de trabalho e investimento. Esta situação de competitividade e receio de
exclusão aproxima os avicultores da realidade perversa que já se tornou corriqueira
entre os trabalhadores urbanos.
Ainda de acordo com Costa (1993, p.169), a imposição e ampliação das
exigências por parte das agroindústrias se amparam nas dificuldades de organização dos
11
avicultores. Entre elas estão
[...] suas formas de representação política frágeis, a “pelegagem” dos
sindicatos, o individualismo, as distâncias que separam as famílias.
Por isso, o trabalho dos técnicos [que prestam assistência aos
avicultores] de mostrar que a integração é a saída e a empresa é
correta, justa, paga em dia, é fundamental para a manutenção do
sistema de integração à Empresa.
Os elementos brevemente apresentados nos permitem indicar que, assentado na
aparente igualdade entre trabalhadores e capitalistas, a parceria tem se revelado uma
relação cada vez mais depreciativa para o primeiro e vantajosa para o segundo, situação
que se amplia e ganha configurações novas, nas diferentes esferas produtivas, urbanas
ou rurais. O mesmo vale para as parcerias entre proprietários que, aparentemente iguais
juridicamente, reproduzem a subordinação e o subjugo já anunciados.
Reflexões finais:
De forma indicativa, o estudo aqui exposto permite afirmar que as parcerias
entre capital e trabalho atuam como estratégias ideológicas e operativas para a
ampliação das formas de exploração da força de trabalho – que se fortalecem pelo
aumento do exército de reserva e pela fragilidade das organizações de classe – e que
ganham a aparência de diminuição de conflitos entre as classes fundamentais do
capitalismo. A elucidação das contradições reveladoras da essência das práticas de
parcerias permite indicar que, ao contrário da aproximação entre interesses do capital e
do trabalho, o que vem se manifestando é um agravamento da subordinação material e
subjetiva dos trabalhadores aos interesses do capital, dificultando e precarizando, ainda
mais, sua condição de existência.
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