Somnium 102 - CLFC - Clube dos Leitores de Ficção Científica

Transcrição

Somnium 102 - CLFC - Clube dos Leitores de Ficção Científica
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Editorial
Desde 1985, o Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC)
tem uma história rica e relevante, revelando boa parte dos escritores que se firmaram como grandes nomes no fandom nacional.
Boa parte dessa história foi registrada no Somnium, o fanzine oficial do CLFC. Durante anos, foi através desta publicação
que os membros do clube puderam se manifestar, expondo seus
trabalhos e opiniões.
Os tempos mudam e o CLFC, que não é imune a ele, também
mudou. Em lugar dos antigos encontros presenciais, das reuniões
de amigos e dos grandes eventos, o CLFC tem uma presença
quase que totalmente virtual. É nas listas de discussão e nas redes
sociais que os membros do clube trocam informações, experiências e ideias.
Seguindo os passos do clube, é natural que o Somnium passe
por mudanças também. A antiga publicação em papel foi substituída, em 2008, por uma publicação virtual, uma edição muito
caprichada, preparada pela então presidente do CLFC, Ana Cristina Rodrigues.
A publicação ficou suspensa por um bom tempo. Quase
quatro anos se passaram desde aquela última edição. O Somnium
retornou no final de 2011, com diversas ideias e um novo formato: um blog. Neste blog, que pode ser visualizado em www.
clfc.com.br/somnium, alguns talentos já consagrados e outros
que começam a se firmar contribuíram com contos, artigos e re-
2
senhas.
Num contínuo processo de evolução, que infelizmente consumiu mais tempo do que o estimado, o Somnium agora terá
novamente uma edição disponível para download. O blog vai
continuar a existir, especialmente para divulgar eventos, lançamentos e resenhas. A edição para download será dedicada a contos e artigos ligados à ficção fantástica. Esta que você está lendo,
por exemplo, apresenta todos os contos e artigos que foram publicados nos primeiros meses da versão em blog do Somium.
Em breve, voltaremos com mais, mas por enquanto, espero
que curtam essas amostras do que os autores brasileiros de ficção
científica têm realizado.
Daniel Borba
Editor
Somnium – Edição 102, maio de 2012
Editor responsável: Daniel Borba
Capa e diagramação: Marcelo Bighetti
Colaboradores:
Álvaro Domingues
Cesar Alcázar
Clinton Davisson
Duda Falcão
Fábio San Juan
Lídia Zuin
Miguel Carqueija
TiborMoricz
CLFC gestão 2011-2013
Presidente: Clinton Davisson Fialho – sócio n. 546 (Macaé- RJ)
Secretario-Executivo: OsameKinouche Filho – sócio n. 186 (Ribeirão Preto -SP)
Tesoureiro: Daniel Fusco Borba – sócio n. 547 (São Paulo – SP)
Webmaster: Fábio San Juan – sócio n. 465 (Piracicaba – SP)
Contatos: [email protected]
www.clfc.com.br/somnium
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Índice
Contos
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10
15
22
27
Sonda, por Duda Falcão
Transubstanciação, por Álvaro Domingues
Uma Sepultura Solitária sobre a Colina, por Cesar Alcázar
Franco Atirador, por Tibor Moricz
O Capitão Barbosa, por Miguel Carqueija
Artigos
31
Há espaço ainda para o cyberpunk?
LidiaZuin
42
120 anos de Tolkien: A Caverna, o Dragão, o Anel e o Guarda-roupas
Clinton Davisson
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Sonda
Duda Falcão
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Sonda
Duda Falcão
— Chega! Tudo o que você diz só pode ser mentira!
Apontei o revólver para ele. O suor escorria pela minha testa
e a mão tremia. Onde eu devia mirar? Na cabeça ou no coração?
O maldito tinha um coração? Talvez tivesse. Sua semelhança conosco provocaria admiração em cientistas desavisados. Em mim,
causava náuseas. Não poderia titubear na hora de apertar o gatilho. Um momento de indecisão e a humanidade pagaria pelo
meu erro. Disso eu tinha certeza.
Lembro de como as peças foram se encaixando. Sou professor. Leciono história da arte e sempre admirei o trabalho de
Vincent van Gogh. Considerava magistral a série de autorretratos
que ele havia pintado. As cores que usava extrapolaram a própria
realidade. No último desses quadros, o pintor está com o rosto
completamente desnudo, sem a famosa barba.
Nunca me enganaria. Conheço a face de Vincent. Cursei mais
de uma pós-graduação pesquisando somente as obras dele. Hoje
sei que Deus me colocou nesse caminho. Do contrário, como eu
poderia encontrar as famigeradas cópias? No início achei que isso
fosse mera coincidência.
Gosto de registrar viagens em fotografias. Quando os amigos me visitam não deixo de mostrar todos os passos de minhas
últimas andanças fora de Porto Alegre. Tenho o hábito de fotografar pontos turísticos e o cuidado de registrá-los com o menor
número possível de pessoas. Certo dia, prestei atenção ao rosto de
um desses tantos anônimos que acabam invadindo nossas fotos.
Sabia que se tratava de alguém conhecido. Qual não foi a surpresa
quando associei sua face à de Vincent? De pronto, mencionei o
fato para uma amiga que estava me visitando. Ela riu e continuou
a ver outras fotos, sem dar importância alguma à minha cara de
espanto.
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Fiquei muito intrigado com aquilo. No dia seguinte, resolvi
olhar novamente a fotografia. Utilizei uma lupa sobre o rosto
daquela figura e tive mais certeza ainda de que se tratava dele.
Vincent van Gogh na Bahia e no século XXI. Isso não estava nem
um pouco certo. Era loucura. Um devaneio que começou a ficar
perigoso naquele instante.
Resolvi fazer uma busca nas outras fotografias daquela viagem. É claro que Vincent não apareceu. Mesmo assim eu continuava intrigado. Não tinha de trabalhar no sábado. Seria um
bom programa tomar algumas cervejas e realizar uma investigação em meus álbuns. Aproveitaria para relembrar locais de tantos
acontecimentos bons e, ao mesmo tempo, abortar de uma vez por
todas aquela ideia louca de que Vincent van Gogh ainda vivia
entre nós.
Não demorou muito. Dessa vez encontrei Vincent na Torre
Eiffel, depois na catedral de Florença rezando e também na praia
de Copacabana. Comecei a procurar incansavelmente nas fotografias caseiras e nas imagens da minha própria cidade. Encontrei-o despreocupado passeando na Usina do Gasômetro. Parei
de beber. Precisava colocar a mente em ordem. Aquilo não poderia ser um simples delírio. Tinha de ser ele. Mesmo que a roupa
fosse diferente e os cortes da barba e do cabelo não estivessem
sempre iguais.
Mostrei para quatro ou cinco amigos as fotos de Vincent
viajando pelo mundo. Conforme as risadas e a pilhéria aumentavam, desisti de continuar falando sobre aquelas evidências.
Meu avô é militar reformado e possui diversas pistolas em
casa. Pedi a ele um revólver emprestado. Não me sentia mais tão
seguro para andar nas avenidas da cidade sem estar armado. A
cada vez que circulava por ruas movimentadas, repletas de gente,
meu coração batia mais forte. Depois de alguns anos daquela
revelação fantástica, ou seja, a existência física de Vincent van
Gogh em nosso tempo, eu o encontrei. Enfim me libertava da
constrangedora amarra da loucura que eu mesmo havia me imposto.
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O artista caminhava devagar, sem pressa, pelo centro da cidade. Não hesitei em segui-lo. Somente a verdade poderia trazer
algum descanso para meu espírito. Ele não falou, nem mesmo
cumprimentou alguém durante o curto percurso. Tirou um molho de chaves do bolso. Foi até a entrada de um prédio antigo.
Aproveitando-me de sua distração, coloquei o cano do revólver
em suas costelas, enquanto ele terminava de abrir a porta. Apenas
ordenei que ficasse em silêncio e seguisse em frente. Logo estávamos em seu apartamento. Fechei a porta e me postei próximo a
ela. Ele se afastou de mim e sem medo puxou uma cadeira tosca,
na qual se sentou.
Perguntou o que eu desejava. Se quisesse dinheiro era só
pegar a carteira, porém avisou que me decepcionaria, pois era
pobre. Diante de meu silêncio, o pintor abriu um sorriso torto e
decidiu brincar comigo:
— Você não tem cara de ladrão — afirmou. — Sabe alguma
coisa a respeito de nós?
Meu sangue gelou nas veias. Ele era esperto.
— Como você pode estar vivo depois de tantos anos, Vincent van Gogh? —falei o nome completo para que não fugisse de
minha pergunta com rodeios ou hesitações.
Dessa vez ele quase gargalhou, seu sorriso abriu-se em perfeita ironia. Disse:
— Não sou Vincent. Vincent se suicidou. Ele queria mais do
que tudo ser humano. Essa foi sua fraqueza. Nós não somos fracos, homem. Se fôssemos, teríamos sucumbido aos caprichos da
humanidade. Somos mais do que simples criaturas.
— Um homem não pode viver mais de duzentos anos. Você
é igual a Vincent. Não me diga que não é ele! — esbravejei deixando que a arma ficasse bem à mostra.
— Fique calmo — ele solicitou. — Já tivemos encontros sem
segredos com outros humanos. Se você apertar o gatilho não
poderá ter as respostas que posso cordialmente lhe oferecer.
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Insisti na ideia de que ele era Van Gogh:
— Sei que você é o pintor. É igual a ele. Vincent era humano,
teve irmãos, um pai e uma mãe.
— Sim, isso é verdade — confirmou —, porém, é apenas uma
parte da história. Nascemos nos ventres de suas mulheres. Mas
não somos gerados por homens. Viemos do espaço e há mais de
dois mil anos esperamos pela chegada de nossos criadores. Nossa
tarefa constitui-se em conhecer a humanidade. Para isso, nada
melhor do que viver entre vocês.
— Chega! Tudo o que você diz só pode ser mentira!
Minha mente dava voltas, como se estivesse em uma rodagigante, desde o início daquele inferno até o encontro com a
coisa. Concentrei meus esforços em manter um diálogo antes de
meter uma bala na testa de meu desafeto.
— O que você é, então?
— Nós somos sondas.
Disparei o projétil do 38 mirando entre os olhos da sonda
que eu pensava ser Vincent van Gogh. O corpo tremeu após o
impacto. Naquele momento, não percebi a bobagem que havia
cometido. A face destruída e irreconhecível daquele espécime
terminou com qualquer chance de provar que sua fisionomia era
igual à do pintor. Num último lapso de vida, antes de silenciar,
a boca ainda se movimentou para emitir com uma voz quase
mecânica:
— A invasão terá início… em breve.
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Transubstanciação
Álvaro Domingues
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Transubstanciação
Álvaro Domingues
O velho pároco José caminhava pelas ruas, apesar da igreja
ter adquirido um aparelho de teletransporte recentemente. Não
lhe agradava ver seus átomos serem dispersos por aí. Além do
mais, os cientificistas cristãos da Igreja de São Tomé teriam um
prato cheio pra desmoralizá-lo em público. Desde que a seita surgira, os católicos, em especial os padres, não tinham mais sossego. Os cientificistas queriam porque queriam provas e mais
provas, de fatos históricos, de milagres e dogmas. Diziam ter fé,
mas queriam provas. E o pior é que achavam que os padres, por
acreditarem em milagres, não deviam se utilizar de qualquer tecnologia. Uma seita completamente irracional que se dizia justamente o contrário.
A verdade é que padre José gostava de caminhar e a casa do
paroquiano não era muito longe. “Dr Geraldo bem que poderia
ter ido até a igreja pra se confessar”, pensou o religioso. “Talvez estivesse doente, já que não o vi na missa no último domingo. Pensado bem, não o vi no anterior. E no antes do anterior, também.”
Puxou pela memória quando o vira pela última vez. Uns cinco ou
seis meses, talvez. “ Doente mesmo! Talvez em vez de confissão, a
extrema unção!” Essa ideia lhe fez sentir um arrepio. E um pingo
de remorso. Como ele, um padre tão dedicado à comunidade não
percebera a ausência de uma ovelha de seu rebanho?
Apressou o passo, lamentando não ter usado o engenho de
alta tecnologia da igreja. A casa do paroquiano todavia não estava
tão longe e ele a alcançou em poucos minutos. Ele foi recebido
na porta pelo próprio Dr. Geraldo, com uma aparência saudável,
apesar do ar de cansaço.
Mal ele entrou, o homem começou a falar:
— Padre! Que bom que o senhor veio! Queria muito me confessar e não queira ir até a igreja.
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Padre José ficou perplexo e perguntou:
— O que o impediria de ir a igreja? Por acaso está sofrendo
de síndrome do pânico?
Geraldo riu e respondeu:
— Nem pensar! É que minha confissão tem a ver com algo
que eu precisava lhe mostrar e não queria levar até a igreja, antes
que um padre a visse.
— O que essa coisa tem de tão terrível?
— Não é terrível… Bem, talvez seja para os cientificistas…
— O que é então?
— É um invento! Que vai tirar esses abutres das costas da
Igreja Católica pra sempre!
Padre José mostrou um ar incrédulo. Dr. Geraldo percebendo esta descrença, argumentou:
— Padre, o que eu tenho é um sintetizador de transubstanciação!
O páraco arregalou os olhos, gritando:
— Um o que?!
— Um sintetizador de transubstanciação.
— Explique!
— Vamos do começo, então. Eu percebi que as polêmicas
com os cientificistas cristãos eram quase todas baseadas em cima
dos eventos históricos: a virgindade de Maria, a ressurreição de
Cristo, os milagres, etc.. Como aconteceram há muito tempo, nenhum dos dois lados pode provar nenhum dos fatos, já que não
há provas físicas, apenas de testemunhos de pessoas crédulas ou
incrédulas contemporâneas aos acontecimentos.
— Todos, menos um…
— Isso mesmo padre. A cada missa, a Igreja oferece o milagre
da transubstanciação. O pão transforma-se no corpo e o vinho no
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sangue de Cristo! Algo que pode ser provado por uma simples
análise química. É claro que a Igreja jamais permitira uma análise
destas, pois sabemos que seriam encontrados apenas pão e vinho
(ou talvez vinagre…).
— Meu Deus! Não vai me dizer que..
— Sim! Eu fiz uma máquina que transforma a hóstia em
carne e o vinho em sangue, desde que, é claro, tenham sido consagradas por um padre!
tou:
Padre José estava chocado, mas também curioso, e pergun— Como isto é possível?
— Eu modifiquei um aparelho de teletransporte, que em
vez de separar os átomos de um objeto, separa seus constituintes
mínimos, prótons, elétrons e nêutrons e os reagrupa de novo de
acordo com um outro padrão, previamente escolhido! Como
meio de iniciar o processo eu codifiquei como senha as orações
da consagração. E um reconhecimento de voz, a sua. Para aumentar a verossimilhança, a carne e o sangue têm o DNA de um
descendente da casa de Davi.
Padre José mudou de expressão. Em vez de choque ou perplexidade, raiva. E ele então gritou:
— Seu idiota! Não percebe que você está fazendo o mesmo
jogo dos cientificistas? Eles são incapazes de perceber que isto
tudo é simbólico, metafórico, mítico! Ter uma prova para crer é
justamente o erro de São Tomé. A Transubstanciação é um mistério, porque ocorre no nível espiritual. Simboliza entre outras
coisas que Cristo está sempre entre nós. Religião sem mistério
não é religião!
Geraldo não escondeu sua decepção. Porém a decisão do
padre José era irrevogável. A absolvição estava condicionada à
destruição da máquina.
O sacerdote voltou mais aliviado para a Igreja. Na próxima
missa ficaria contente de que a hóstia continuaria sendo hóstia. E
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com gosto apenas de hóstia…
(Nota do autor: Este conto nasceu de uma discussão no
grupo do Clube dos Leitores de Ficção Científica a respeito de
temas pertinentes ou não para a Ficção Científica. A religião em
si, como todo tema humano, para mim, é um tema pertinente,
quer o autor creia ou não. Todavia eu nunca tinha escrito nada
em a que religião em si fosse o tema. O resultado deste auto desafio foi este conto.)
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Uma Sepultura Solitária
Sobre a Colina
Cesar Alcázar
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Uma Sepultura Solitária Sobre a Colina
Cesar Alcázar
Anrath puxou com violência as rédeas do cavalo. Um grito
lancinante quebrara o silêncio da madrugada e assustara o animal. Após conseguir dominar novamente sua montaria, o guerreiro perscrutou a escuridão na tentativa de encontrar a origem
do ruído. Não lhe agradava nem um pouco viajar à noite, no entanto, tinha pressa de se juntar aos homens de Niall macEochada,
rei de Ulaid. Niall estava reunindo tropas para saquear Dublin, e
o pagamento não era de se ignorar.
O cavalo agitou-se outra vez. Não muito longe dali, Anrath
avistou uma figura sombria correndo entre as árvores. Latidos
e rosnados podiam ser ouvidos claramente. Instantes depois, o
guerreiro viu que se tratava de um homem sendo perseguido por
lobos. As ferozes criaturas o alcançariam a qualquer momento.
Com um rápido movimento, a espada do mercenário de
Connacht rasgou o ar gélido do começo do inverno ao ser retirada da bainha. Ele esporeou o cavalo, que avançou a contragosto.
Nesse instante, os lobos pularam sobre sua presa, que para espanto de Anrath, era um homem bastante velho.
Percebendo que o cavalo não se aproximaria mais, o guerreiro saltou para o solo, espada em punho. Os animais logo o notaram e investiram contra ele. Ávidos caninos afiados tentavam
atingir sua carne. Desferindo golpes certeiros, Anrath eliminou
duas feras. O resto da alcatéia se dividiu, três continuaram atacando a vítima original e outros três enfrentavam o mercenário.
No chão, o pobre velho lutava desesperadamente pela própria
vida.
O maior dos lobos cravou os dentes no braço de Anrath, por
sorte protegido pela malha de metal. O animal fez com que ele
rodopiasse e perdesse o equilíbrio, tamanha sua violência. Se esforçando para permanecer de pé, Anrath livrou-se do lobo, que
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arremeteu mais uma vez. Um golpe instintivo interrompeu o
ataque do animal, cuja cabeça revolveu no ar antes de tocar o
chão.
Ao perceberem a derrota do líder do bando, o restante dos
lobos recuou. Eles olhavam o mercenário com a cabeça baixa,
rosnando ameaçadoramente. Anrath, por sua vez, encarou os animais direto nos olhos, sem medo. Ele alçou a espada, que refletiu
os olhos das bestas. Estava preparado para mais um combate. Entretanto, os lobos retrocederam alguns passos, para depois sumirem entre as árvores.
O homem velho continuava caído e gemeu de dor. Suas
vestes estavam cobertas de sangue. Fora uma luta atroz. Ele ergueu a cabeça e viu que o viajante corria para ajudá-lo. O guerreiro de longos cabelos negros e semblante melancólico ajoelhouse diante do velho, que falou entre soluços:
– Obrigado, amigo…
Anrath examinou os ferimentos do homem. A perna estava
dilacerada na altura da coxa e sangrava em abundância, entre
outras escoriações menores. Não havia como salvá-lo, pois a artéria havia sido rompida.
– Não me agradeça – o mercenário falou desolado enquanto amarrava um torniquete acima do ferimento para estancar o
sangue – Não cheguei a tempo.
– Sei que meu estado é grave, não se preocupe. Pelo menos
ainda viverei o suficiente. Devo isso a você. Meu nome é FearghalmacArtie.
– Anrath, de Connacht.
– Pois eu agradeço,Anrath. Não fosse por você, estes lobos
teriam me jantado!
– Por que um homem da sua idade está andando sozinho à
noite por essas florestas?
Os olhos de Fearghal se encheram de lágrimas e ele respon-
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deu com dificuldade em uma mistura de dor e emoção:
– Eu queria ver a batalha…
– Batalha? Não há nenhuma guerra acontecendo por essas
partes. Pelo menos que eu saiba.
– Eu me refiro à Batalha de Tara, meu amigo.
– Mas isso foi há muito tempo! – o mercenário exclamou
confuso.
– Sim. Mais de quarenta primaveras.
– Então, o quê você esperava ver?
Fearghal fitou o mercenário, seu rosto tomado por uma expressão nostálgica. Então, vagarosamente, ele começou a explicar:
– Nossos antepassados pagãos diziam que durante o Samhain a fronteira entre o mundo dos vivos e o Outro Mundo tornava-se muito tênue, fina. Com a chegada do inverno, animais
e plantas morriam em abundância, e isso permitia aos mortos
andar sobre a terra novamente. Nunca quis acreditar nisso, pois
sou um cristão.
O velho Fearghal fez uma pausa e o vento soprou uma triste
melodia. A névoa noturna parecia agora mais espessa. Anrath
terminou de amarrar os ferimentos do moribundo. Este, suspirando profundamente, continuou:
– Ouça, jovem, eu lutei em Tara na grande batalha. Agora, todos os meus companheiros daquele dia de glória já estão
mortos. Sou o último que resta. Jamais me esquecerei de nossa
vitória. O rei MáelSechnaill, dos UíNéill, havia chegado ao poder
do Reino de Mide e possuía o apoio de Leinster e Ulster. Só assim
pudemos enfrentar os nórdicos de OlafCuaran, Rei de Dublin. Os
exércitos se bateram não muito longe daqui, na Colina de Tara.
Ainda posso sentir a excitação do combate. Os gritos, os trovões
que resultam do encontro de metal contra metal.
Fearghal olhou para o céu, agora completamente encoberto
pela neblina, e suspirou outra vez. Anrath permanecia em rever-
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ente silêncio. Então, o velho homem prosseguiu:
– Você tem idéia do que é uma grande batalha?
– Sim, velho, eu lutei na Batalha em Clontarf anos atrás.
– Você? Mas é claro, por isso conheço o seu nome. Você é
Anrath, o Cão Negro! No entanto, não posso acreditar. O Cão
Negro de que ouvi falar é um traidor cruel e sanguinário. Não um
homem que ajudaria alguém como eu!
– Jamais recusei ajuda a alguém. Fiz coisas em meu passado que eu julgava serem corretas. Lutei ao lado dos vikings em
Clontarf por que eles eram minha família. Sou um assassino, sim,
porém não sou o monstro das histórias embriagadas que contam
nas tavernas.
– Então, você realizaria o último desejo de um velho que está
para morrer?
– Do que você está falando?
– Os habitantes desta região dizem que na primeira noite de
Samhain é possível ver os mortos de Tara, guerreando por toda a
eternidade no Outro Mundo. Quero ver a grandiosidade daquela
batalha mais uma vez. Por isso vim para cá. Agora lhe peço: leveme para a Colina de Tara, Anrath.
– Como vou levá-lo nesse estado até lá? Você morrerá rapidamente…
– Eu imploro,Anrath! Quero reviver essa glória. As estações
passam, os feitos perdem sua cor, os homens esquecem. Pelo menos eu quero lembrar. Por favor, deixe-me rever a Batalha de Tara.
– Isso é loucura!
Diante da reação do mercenário, Fearghal balbuciou entre
lágrimas:
– Dentro de algumas horas um novo dia nascerá, e eu não estarei mais nesse mundo. O que aconteceu em Tara se perderá para
sempre. Antes de morrer, quero estar com meus companheiros.
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Anrath pensou por alguns momentos. Não podia colocar o
velho sobre o cavalo, pois o galope o mataria em pouquíssimo
tempo. Mesmo que a Colina de Tara não fosse distante, não poderia arriscar. Ele socou o solo e embainhou a espada, resmungando
quase imperceptivelmente. Então, tomou sua decisão e falou:
– Velho, eu o levarei até Tara!
O mercenário amarrou seu cavalo a uma árvore. Em seguida,
tomou o velho homem nos braços e ergueu-o do solo. Teve cuidado para não lhe causar mais dor. Assim, Anrath deu os primeiros
passos na direção de Tara. Fearghal, apesar do intenso sofrimento, se manteve silencioso.
Atravessaram a floresta a passo lento, observados apenas por
ocasionais animais noturnos. Após cerca de meia hora, chegaram
a uma clareira. Não muito distante dali, Anrath distinguiu a Lia
Fáil, a Pedra do Destino, no local onde outrora eram coroados os
Reis Supremos da Irlanda. O mercenário colocou Fearghal com
cuidado no chão e disse:
– Chegamos, meu velho! Eis a Colina de Tara!
Fearghal olhou para o vasto terreno ondulado coberto de
verde. As brumas da noite encobriam o campo e ostentavam uma
coloração azulada devido ao brilho da lua. Tudo era tranqüilidade naquela paisagem. Não havia um único sinal de vida. Até
mesmo o vento não soprava. Os dois homens ficaram ali parados,
observando o bucólico cenário.
Desde o momento em que o mercenário o erguera do solo, o
velho nada dissera. Tampouco deixara que a dor o fizesse soluçar
ou gemer. Suportara com bravura cada passo dado pelo novo
amigo enquanto este lhe conduzia ao seu destino final. Agora, o
vazio das colinas verdejantes afligia seu peito. Teria sido tudo em
vão? Iria ele morrer sem rever a gloriosa imagem do passado pela
qual tanto ansiava?
O velho sentiu a vida escorregar de seu corpo como as areias
de uma ampulheta. Foi então que algo o alertou. O vulto escuro
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se movimentou à sua frente e logo se transformou em algo magnífico. Fearghal, enfim, exclamou:
– Lá estão eles! É maravilhoso… Você os vê, Anrath?
A luz de um relâmpago iluminou a colina e, por um instante apenas, o mercenário pôde ver milhares de homens lutando
ferozmente sob a densa neblina. O clamor do choque de armas
retumbou através dos ventos. Espadas, escudos e elmos emanavam um fulgor espectral na noite sombria. Em meio ao caos do
combate, Anrath avistou um homem muito parecido com o velho
que agora jazia em seus braços. A semelhança era impressionante, embora o combatente da visão fantasmagórica fosse muito
mais jovem.
Em segundos, a visão esvaneceu e o silêncio caiu outra vez
sobre a Colina de Tara. Anrath abaixou os olhos para o velho
Fearghal. Um leve sorriso marcava seu rosto imóvel, com o olhar
fixado no horizonte. Estava agora no Outro Mundo.
– Descanse,Fearghal… Que Macha, Morrígan e Badb te
recebam!
O mercenário pousou a cabeça do velho combatente no solo.
Levantou-se e começou a juntar pedras. Fearghal merecia ser
sepultado no local onde se deu o momento mais importante de
sua história. O lugar que ele não queria esquecer. Com o tempo,
Fearghal e aquela terra se tornariam um só.
Amanhecia e as brumas se dissipavam quando o trabalho de
cobrir o corpo terminou. As gotículas de orvalho acumuladas sobre o sepulcro de pedras brilharam como cristais aos primeiros
raios do sol. Um descanso apropriado para um guerreiro. Um
monumento para as gerações que estavam por vir.
Fearghal temia aquilo que Anrath mais desejava: o esquecimento. O mercenário olhou mais uma vez para o monte de pedras antes de partir. Os homens são apenas sombras passando
pelo tempo, pensou. Ontem, este lugar foi palco da maior de todas as batalhas, maior ainda do que a minha. Hoje, tudo o que
resta dela é uma solitária sepultura sobre a colina.
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Franco
Atirador
Tibor Moricz
22
Franco Atirador
Tibor Moricz
Não era mais que um pontinho lá no horizonte. Vinha em
avanço gradual. Cocei o bigode, soltei um bocejo e rearrumeias
pernas, descruzando-as e voltando a cruzá-las noutra posição.
Minhas botas estavam sujas de terra. Um rasgo longitudinal
numa delas deixava à mostra um pedaço da meia. Olhei para o
céu e perscrutei as nuvens e através delas… Como se pudesse.
Uma brisa suave soprava. Diante de mim o vale se descortinava
em meio a ravinas e pouca vegetação. O pó na língua formava
torrões que eu cuspia em pequenos intervalos.
Pensar em minha mãe foi simultâneo. Era obrigatório pensar
nela. Todos os dias e noites, sob o sol, sob a chuva ou sob o fogo
inimigo. Era uma figura renitente que, teimosa, não me abandonava. Mesmo que a tivesse abandonado há tempos.
Minha mãe… Senhora imponente em sua suposta majestade.
Isso. Toda mãe se sente majestade. Seu reino… O lar, seus súditos… Os filhos. Era quase impossível não sentir o travo amargo
na garganta. Quando fora? Quando? Quando foi que lhe gritei na
cara para que me deixasse seguir minha própria vida? Quando foi
que, em meio a impropérios – que hoje lamento não terem sido
mais virulentos -, enfiei-lhe o dedo na cara e lhe disse, em alto e
bom som, que eu era mais e melhor do que ela podia supor?
É… Quando?
Tem também o quando ela reunia familiares e amigos para
me fazer uma festa de aniversário surpresa… Mas esses eventos
eu preferia esquecer. Ocorriam sazonalmente, uma vez ao ano,
discretamente camuflados entre um dia e outro.
Balancei a cabeça e estiquei o olhar mais uma vez. O pontinho ao longe já se tornara distinguível. Era uma pessoa – claro
que sim, sabia desde o início –, homem ou mulher, caminhava de
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maneira cautelosa. Procurava abrigo entre as rochas. Carregava
petrechos que o faziam avançar com dificuldade. O que um idiota como esse estaria fazendo ali, sozinho? Não era dos nossos.
Posicionei o fuzil fazendo mira. A distância era ainda grande para
arriscar.
Lá vinha a minha mãe de novo. O olhar arguto me atravessando a carne como uma faca afiada. Passinhos sempre curtos,
mas fortes. Cada passada forte como se quisesse fazer o mundo
entender que estava ali, poderosa como nunca.
E estava.
Sempre acima de nós. Mesmo sendo de estatura média, mesmo tendo que erguer o olhar para nos encarar. Eu e meu irmão,
que já não era, mas um dia foi. Não a sete palmos de fundura, que
estaria muito bom. Mas espalhado em fragmentos ensanguentados. Um obus dentro da trincheira. Sem tempo para fugir. Nem
para pensar. Nem para um “ai”.
Era ela a responsável… A maldita.
Claro que sim. Quem mais poderia? Ela iniciou a guerra, nos
alistou, reuniu o inimigo, indicou a trincheira, fabricou o obus,
deu as coordenadas, disparou e gargalhou a morte do próprio
filho… Maldita.
Descruzei as pernas e bati com as botas no chão, fazendo
levantar uma pequena nuvem de poeira. Coloquei-me de joelhos
e projetei o corpo para frente, procurando o defunto que caminhava no vale.
Lá estava ele. Era homem. Talvez uns vinte anos de idade.
Três a menos que eu. Aparelhado. Uma mochila larga às costas.
Um fuzil pendurado no ombro, olhar perdido no caminho.
O destino o aguardava nas alturas. Sentei sobre os calcanhares, abri o cantil e bebi um gole de água. E a maldita voltou
a ocupar minhas lembranças. Como no dia em que enfiou o cabo
do guarda-chuva na garganta do senhor Clinton. Queria me defender, a idiota. Acabou por me colocar em maus lençóis. Ou
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quando teimou que Susan não era mulher para mim. E não era
mesmo, mas ela jamais poderia ter se metido nisso. Ou quando
disse a Joe, meu irmão despedaçado, que jamais permitiria que
ele se alistasse no exército. Que era o caçula, o desprotegido, o
incauto, aquele que deveria ser um modelo dentro de casa. Que
não deveria seguir meus maus exemplos.
Claro que ele disse a ela pra não se meter.
E da vez quando papai, completamente bêbado, começou
a quebrar os móveis da sala. Mamãe, de certa forma, o ajudou.
Pegou um vaso e o colocou pra dormir em meio aos cacos. Fora
horrível, de uma agressividade desnecessária.
Eu e Jorge assistimos a tudo, encolhidos num canto. Cabelos
desgrenhados, marcas pelo corpo, sangue escapando dos lábios.
Atônitos após a surra que levamos dele, atônitos pela reação de
mamãe. Atônitos por termos sido tão veementemente defendidos
sem que pudéssemos demonstrar nossa força.
Tudo bem… Éramos crianças. Mas crianças com opinião
própria. Tínhamos braços e pernas. Tínhamos cérebro. Tínhamos vontade.
“Vão morrer, os dois!… Vão morrer!”, gritou mamãe quando
fomos chamados ao front. Os perdigotos espirraram em nossas
faces. O rosto dela, sempre tão forte, tão vigoroso, desmoronava
diante de nós. Vimos o veneno escorrer.
Ou teria sido medo?
Nunca tivemos chances de voltar a vê-la. Ela morreu naquele
mesmo verão. Falência múltipla dos órgãos. Metástase. Câncer de
pâncreas não detectado até que fosse tarde demais. Morreu antes
de Jorge. Morreu depois de papai.
Jamais abri as suas cartas. Para quê? Para ter que enfrentar
uma sabedoria sempre indiscutível? Para ter que engolir sem
chances de resposta as súplicas, as recomendações?
Respirei fundo e elevei os pensamentos a Joe. Onde quer que
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estivesse. Talvez no inferno. Claro que mamãe estaria lá, se assim
fosse. Enfiando o cabo do guarda-chuva na garganta do diabo e
colocando Joe em ainda piores lençóis.
Aprumei o corpo. Recolhi duas lágrimas teimosas e posicionei o fuzil. Mamãe… Ainda tínhamos assuntos a acertar. Conversas a tecer. Posições a discutir. Projetei o corpo para frente e
procurei o alvo, arma engatilhada.
Lá estava ele.
Agachado próximo a um arbusto. Ajoelhado. A arma empunhada, o cano erguido. Quase um reflexo meu. Um espelho bizarro posicionado no vale, refletindo mais que a minha pessoa…
Quase a minha alma.
Afrouxei o aperto no gatilho e sorri com alguma ansiedade.
Pensei em Jorge e em mamãe. Dei uma risadinha nervosa. Vamos
aproveitar a chance, certo? É isso aí. Vamos aproveitar…
O estampido ecoou pelo vale, desaparecendo ao longe.
Mantive a posição. Arma nas mãos, cano apontado para
baixo, dedo trêmulo no gatilho. Nos olhos a opacidade. Antes de
cair do penhasco ainda consegui concatenar um breve pensamento. Alguma coisa a ver com mamãe.
Algo indistinto, como um vago sorriso de boas vindas.
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O Capitão Barbosa
Miguel Carqueija
27
O Capitão Barbosa
Miguel Carqueija
– Temos um problema sério, Capitão Barbosa – disse o imediato Zé Peroba.
– Não me traga problemas, traga soluções – respondeu Barbosa, enquanto traçava a sua feijoada mineira.
– Mas Capitão, o caso é urgente!
– O que pode ser tão urgente assim? Estamos sendo atacados
por uma esquadrilha de discos voadores?
– Pior, meu capitão, muito pior. O Tadeu se plantou dentro
do banheiro e não sai, e já tem cinco na fila!
– Mas não dá para aguentar um pouco?
– É claro que não, Capitão Barbosa! Não depois daquele vatapá que a gente comeu… E o pior é que eu sou o último da fila!
– Pombas… Bom, ele não deve demorar, afinal…
– O senhor que pensa. Ele entrou com uma revista de
quadrinhos…
– O que diz? Um gibi?
– Pior, Capitão, muito pior. Um mangá.
– Hein?
– Mangá, Capitão Barbosa. Aquela HQ japonesa, que a gente
lê de trás para diante…
– Sim, eu conheço, aliás nem sei porque é que os brasileiros
pegaram essa obsessão de mangá….
– E o senhor sabe como é… Mangádemora para ler… Sempre tem vários capítulos por volume…
– Ah, sim… E como é que você sabe disso?
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– Capitão, não dá para discutir isso agora… Será que a gente
pode arrombar a porta?
– Ah, é? Se vocês danificarem a nave eu terei que pagar do
meu salário, que já é tão minguado! Acho melhor vocês usarem
uns sacos de lixo e jogarem no incinerador!
– Bem… Bem… Com licença – e Zé Peroba saiu atarantado,
sem nem se lembrar de fazer continência.
– Com um milhão de estrelas de neutrons! – queixou-se
Barbosa. – Só essas naves brasileiras são construídas com um só
banheiro! Já cansei de mandar ofícios à Secretaria de Assuntos
Espaciais…
– E tem mais – disse uma voz feminina adocicada, soando
pelo alto-falante do teto – as espaçonaves japonesas, chinesas e
norte-americanas dispõem até de quatro ou cinco banheiros!
Barbosa acionou o holograma de mulher que personificava a nave Antaprise, já que não gostava de conversar com
paredes. Apareceu uma garota tipo havaiana, vestida com um
sarong(obviamente ele não aprovava aqueles hologramas de
naves vestindo sóbrios trajes oficiais), que acrescentou:
– Por que você mesmo não constrói o segundo banheiro?
Aliás isso é uma vergonha: tinha que ter pelo menos um para
homens e um para mulheres.
– Eu sei disso. É por isso que não se consegue mulheres na
tripulação de uma astronave brasileira! Eta país problemático!
Mas não posso bancar uma obra dessas em você. Não com o salário miserável que o governo brasileiro me paga!
– Capitão Barbosa, quero lhe avisar que estamos com um
novo problema, e esse é sério mesmo. Um dos disjuntores fundiu, um meteoro atingiu o nosso giroscópio e estamos em rota de
colisão com a superfície de Marte.
– Hein? O que? Por que é que você não me alertou antes?
– Bem… Eu queria ter feito… Mas o senhor estava tão ocu-
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pado com o assunto do banheiro…
– Mas que droga! (ele falou outra coisa – mas foi censurada,
como nas legendas dos filmes americanos) Você já tomou alguma
providência?
– É claro, Capitão. O senhor sabe que, desde que as naves
se tornaram inteligências artificiais, pessoas como o senhor passaram a ser meramente decorativas. Já pedi socorro, e está vindo
uma esquadrilha da Frota para nos ajudar.
– Ah, bom! É claro… Aqui tem muitas vidas humanas para
preservar…
– Que vidas humanas, Capitão Barbosa? Eles não querem é
que a superfície de Marte seja danificada!
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Há espaço ainda
para o cyberpunk?
Lidia Zuin
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Há espaço ainda para o cyberpunk?
Lidia Zuin
Há dois anos, eu apresentei na minha antiga faculdade,
Cásper Líbero, a monografia de iniciação científica WiredProtocol7: Um estudo sobre Serial ExperimentsLain e a alucinação
consensual do ciberespaço. Ela, que na verdade foi concluída em
2009, abriu-me caminhos para um gênero que, já na época, encontrava-se um tanto estagnado no mercado editorial brasileiro
e internacional. Dizem que o cyberpunk está morto, porque já o
vivemos agora – daí a transformação do cyber em nowpunk. E,
nesse sentido, é possível observar que vários escritores que fizeram parte da criação do cyberpunk estão migrando para gêneros
como a darkfantasy ou a fantasia urbana.
John Shirley e RudyRucker, por exemplo, fazem parte da primeira geração do cyberpunk, junto de Bruce Sterling, William
Gibson, NealStephenson e Pat Cadigan. Ambos, em suas mais
recentes obras, produziram histórias mais voltadas à fantasia que
à ficção científica. Shirley, que em 2009 publicou BleakHistory,
tem seu livro descrito como “uma quase fusão do cyberpunk com
a fantasia urbana”, enquanto Jim andtheFlims(2011), de Rucker,
pula de cabeça na fantasia. Em entrevista para o io9, o escritor
explica que “certos tipos de ciência se tornaram um pouco monótonos e desestimulantes”: “Relatividade, mecânica quântica,
biotecnologia, realidade virtual – elas estão um tanto velhas. Eu
gosto da ideia de uma nova ciência que é tão exagerada e estranha
que parece magia. Como você a encontra? Comece com magia,
então siga o caminho contrário direto para um tipo de ciência
louca do futuro que seja capaz de justificar”. Como a reportagem
indica,Rucker já havia publicado em seu blog que estava “cansado
de lidar com explicações para coisas estranhas em seus livros”.
Mas quem disse que fazer ficção científica é fácil? Em 2010,
quando organizei o evento Science’n’Fiction na Cásper, tivemos
a participação de dois físicos: João Zuffo e João Kogler, ambos
32
profissionais do Departamento de Sistemas Eletrônicos da Escola
Politécnica da Universidade de São Paulo. O primeiro apresentou uma série de gráficos, vídeos de robôs e outras inovações tecnológicas recentes que induziu à ideia de que a ficção científica e
a ciência caminham lado a lado – inclusive, Zuffo é autor do romance de ficção científica Flagrantes da Vida no Futuro (Editora
Saraiva, 2007).
Já Kogler deu seu depoimento pessoal, lembrando-se de
quando era criança e como havia um encantamento por filmes
e seriados, como Star Trek, os quais o teriam influenciado a se
tornar o cientista que é atualmente. Tal relação binômia se dá
de maneira dual, uma vez que tanto a ciência pode influenciar a
ficção científica quanto o contrário. Neste caso, é só pensar nos
primórdios da FC para lembramos de grandes nomes da ¬hard
sci-fi como Arthur C. Clarke e Isaac Asimov, inventor e professor
de bioquímica respectivamente. O autor de 2001: A Space Odyssey (1968) aopublicar o artigo “Extra-Terrestrial Relays — Can
Rocket Stations Give Worldwide Radio Coverage?” (1945) na Wireless World, revista britânica de entusiastas do rádio e da eletrônica, influenciou na criação dos satélites geoestacionários, os quais
orbitam na então chamada “Órbita Clarke”. Na verdade, Clarke
só popularizou um conceito já discutido em 1928 por Herman
Potočnik, cientista de foguetes austro-húngaro. Isto é, a ficção
científica é capaz de comunicar e interpretar ideias reservadas
ao âmbito das ciências, proporcionando não apenas uma leitura
leiga como uma inspiração científica.
O amolecimento da FC
Mas já que a hard sci-fi era tão apegada assim ao positivismo
e ao método cartesiano, à grande preocupação em explicar tudo
minuciosamente de acordo com a lógica das ciências exatas, foi
nos anos 1980 que surgiram os “punks” da FC, os quais sugeriram
uma versão soft da ficção científica. Acompanhando as inovações
tecnológicas na área da cibernética, o sexteto de escritores iniciou
o cyberpunk com ideias menos “duras”, mais preocupadas com as
experiências proporcionadas por um mundo em que a tecnologia
33
é muita e a qualidade de vida é pouca (high tech, lowlife, lema do
cyberpunk).
Depois das distopias de George Orwell e Aldous Huxley,
da Segunda Guerra Mundial, da Guerra Fria, mais a Guerra no
Vietnã e tantas outras, foi natural o crescimento de uma falta de
perspectiva por parte da juventude (no future, como cantava o
Sex Pistols em GodSavethe Queen). O niilismo prosperava por
toda a América, especialmente na Latina, que apelidou os anos 80
como a “década perdida” devido à estagnação econômica. Ainda
assim, foi uma época de grande pesquisa na área da cibernética
e de início da cibercultura, já que em 1988 houve a abertura da
rede mundial de computadores, antes apenas acessível às universidades e aos militares, para interesses comerciais – mais tarde,
nos anos 1990, ganhando sua versão World Wide Web (WWW).
Aliás, em termos de cibercultura, estuda-se a internet até hoje
conforme o termo “ciberespaço”, cunhado justamente por Gibson
em suas ficções. Ou seja, o cyberpunk já nasceu dentro de um
contexto tecnológico, como explica Bruce Sterling, no prefácio da
antologia Mirrorshades:
Os cyberpunks talvez sejam a primeira geração a crescer
não somente dentro da tradição literária da ficção científica, mas
em ummundo verdadeiramente de ficção científica. Para eles, as
técnicas da “FC hard” clássica – extrapolação, alfabetização tecnológica – não são ferramentas literárias, mas um auxílio para a
vida cotidiana (apud FERNANDES, 2006, p.51).
Então, por que escutamos que o cyberpunk está morto, uma
vez que já vivemos num mundo cyberpunk? Talvez porque alguns imaginem que o gênero tenha ficado estagnado no pensamento e estética dos anos 1980, não se atualizando para entender o
mundo na época atual. Mas, seguindo essa lógica, teoricamente,
a vertente já nasceu velha, uma vez que, como Gibson brinca no
prefácio de Neuromancer, ele foi capaz de “prever” o ciberespaço
e influenciar todo um comportamento hacker, mas não conseguiu “imaginar” o telefone celular. Isso porque em 1973, Martin
Cooper, pesquisador e executivo da Motorola, já havia montado
34
o primeiro telefone móvel analógico, além de a primeira geração
(1G) de celulares ter sido lançada em 1979, no Japão. No entanto,
a verdadeira utilização da telefonia móvel só aconteceu nos anos
1990, com a chegada da segunda geração (2G).
Mas essas constatações não devem ser utilizadas como uma
arma contra Gibson, já que a ficção científica não tem como
propósito prever o futuro, mas criar situações fictícias mais ou
menos prováveis de acordo com uma lógica científica mais ou
menos estrita. Reforçando, o cyberpunk ou a soft sci-fi não tinha
(ou não tem) tanto comprometimento com as ciências duras ou
exatas como a hardsci-fi. O cyberpunk trouxe muito mais um
comportamento e um pontapé inicial para quebrar a porcelana intocável das obras da geração dos anos 30. No fanzine CheapTruth,
lançado em 1982 por Bruce Sterling, Lewis Shinerescreveu, sob o
pseudônimo de Sue Denim, sobre a hard sci-fi como uma ficção
científica moralista, “do tipo que a mamãe e o papai gostam e
permitem” (apud FERNANDES, 2006, p.52), acrescentando que:
Talvez as pessoas que votam nos [prêmios] Nebula ainda
tenham medo de suas mamães e papais; talvez eles próprios ainda não sejam mamães e papais. Isto explicaria por que eles não
votam em livros com ideias de verdade, sexo de verdade e linguagem de verdade (apud FERNANDES, 2006, p.52).
E, realmente, uma das cenas de sexo mais interessantes que
já li foi justamente num livro de cyberpunk, especificamente o
Count Zero, de William Gibson, traduzido por Carlos Angelo e
publicado no Brasil pela editora Aleph:
E, aos poucos, sem palavras, ela lhe ensinou um novo tipo de
desejo. Estava acostumado a ser servido, a ser atendido anonimamente por profissionais experientes. Agora, na caverna branca,
ele se ajoelhava nos ladrilhos. Baixava a cabeça, lambendo-a, o sal
do Pacífico misturado à umidade da mulher, o frescor das coxas
envolvendo seu rosto. Com as mãos apoiando os quadris dela, ele
a segurava, erguia-a como um cálice, seus lábios pressionando
com firmeza, enquanto a língua buscava o local exato, o ponto, a
frequência que a faria chegar lá. Em seguida, com um grande sor-
35
riso, ele subiria nela, a penetraria, e acharia seu próprio caminho
até lá (GIBSON, 2008, p.18)
Isso tudo para depois descobrir que a mulher com quem o
personagem se relacionava foi contratada para espioná-lo. Com
o perdão do spoiler, mas é necessário destacar como o cyberpunk
não só quebra com o moralismo e com o mundinho perfeito da
antiga FC trazendo tais reviravoltas, como também tem um estilo
totalmente cru. Sem muitas firulas na linguagem, o cyberpunk
constrói um mundo noir e que acha sua própria elegância na sarjeta: prostitutas, junkies, ciborgues periféricos, paraísos tropicais
permeados por tecnologia e comércio ilegal, femmefatale, “samurais de asfalto”, armadilhas e perseguições, estereótipos azedados
pelo niilismo etc.
Além dos livros
O cyberpunk não criou apenas uma literatura, mas uma
postura, uma subcultura. Em AMARAL (2006), descobrimos a
ligação da subcultura gótica com a cyberpunk, hacker, clubber e
outras. Percebemos, com a leitura do livro da professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, que é como André Lemos,
professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), aponta em
Cibercultura. Tecnologia e vida social na cultura contemporânea
(2002):
A cultura cyberpunk não é somente uma corrente da Ficção
Científica, mas um fato sociológico irrefutável, uma mistura
de esoterismo, programação de computador, pirataria e Ficção
Científica, influenciada pela contracultura americana e pelos humores dos anos 80. Cultura hiper-tecnológica, ela está presente
em vários países, com formas diferentes de expressão. A atitude
cyberpunk é, acima de tudo, um comportamento irreverente e
criativo frente às novas tecnologias digitais (apud AMARAL,
2006, p.39).
E também como Timothy Leary, neurocientista e futurista,
diz em The cyberpunk: the individual as reality pilot(1988):
Cyberpunks são os inventores, escritores inovadores, artistas
36
tecnofronteiriços, diretores de filmes de risco, compositores de
mutação icônica, artistas expressionistas, livre-cientistas tecnocriativos, visionários dos computadores, empreendedores inovadores do show-bizz, hackers elegantes, videomagos dos efeitos
especiais, pilotos de testes neurológicos, exploradores de mídia
(apud AMARAL, 2006, p.38).
Isto é, o cyberpunk inundou muitas áreas da cultura, artes,
além da ciência. Um exemplo está na “ciborguização do rock”,
termo que Adriana Amaral usa em seu livro Visões Perigosas:
uma arque-genealogia do cyberpunk, para explicar a música industrial, que é uma categoria da música eletrônica surgida no
Reino Unido no fim dos anos 1970. Mais recentemente, com o
desenvolvimento desse gênero e aproximação da sonoridade com
ritmos como o techno, trance e metal, muitas bandas começaram
a demonstrar uma real aproximação com o cyberpunk. Seja com
títulos de álbuns (como Neuromance, do Dope Stars Inc) ou com
nome de músicas (como CYB3R D35TRUCT1ON, do T3RR0R
3RR0R), há ainda bandas que inserem samplesde filmes de ficção
científica, várias vezes pertencentes ao gênero cyberpunk – como
vocês podem ouvir neste podcast. Em COLLINS (2002), há a seguinte tabela de amostras de som que a pesquisadora reconheceu
de acordo com uma amostragem de canções de grupos de música
industrial:
37
Nessa mesma obra, aliás, a autora insere uma citação de
Bruce Sterling, que diz:
Conforme a conexão [entre a música industrial] com o cyberpunk continua, é realmente muito óbvio saber como isso tudo
começou. A música industrial está tratando da tese do “homem
assimilado na máquina” desde seu início. A SRL, Industrial Records, PortionControl e tantos outros sabem quantos outros
músicos e artistas performáticos incorporaram [o cyberpunk] às
suas criações (apud COLLINS, 2002, p.95).
Ano passado, por exemplo, o Partido Pirata alemão passou
a utilizar como “hino” de sua causa a música Lies Irae, da banda
italiana Dope Stars Inc. Ela, que segue uma premissa bastante
38
fundamentada no cyberpunk, disponibilizou o último álbum, Ultrawired, gratuitamente na internet. A canção, que brinca com o
título de uma das partes do Réquiem (Dies Irae), diz:
“We are living just to surf, cut, copy, paste
We are connected through our cyberspace
and every chatroom is the mother base
We know you’re quick to hide and cover up the facts
But We discover all of your hidden tracks
We’re changing all the rules of the game!
Ooooh,
we’re gonna hack their base
we’re the truth to face
peer-to-peer cyberspace
(…)
we are a generation of terabytes
we have no leaders, just our crazy hives
We’re gonna win this fight in any way
you want to be a part of the new era
And we no longer listen to your lies
We don’t believe in anything you say!” (Song Meanings)
E essa canção foi lançada bem próxima à época em que o
Wikileaks estourou. Ou seja, faz sentido dizer que já vivemos o
cyberpunk, mas Sterling, Gibson, Shirley, Rucker, Stephenson e
Cadigan também, em 1980. Não é desculpa. Hackers já existiam
naquele tempo (o nome cyberpunk veio de um conto de Bruce
Bethke, que teve seu computador invadido) e continuam firmes
até hoje, seja adquirindo informações confidenciais de governos, seja agindo por uma causa, como os Anonymous, ou agindo
como crackers, ripando jogos e softwares para serem disponibi-
39
lizados gratuitamente na rede, compartilhando arquivos e “quebrando as pernas” da indústria fonográfica. É igual e é diferente.
Mas quantos estão aproveitando essa onda para criar?
A resistência
A trilogia Millenium (2008-2009), escrita pelo sueco Stieg
Larsson, apesar de não ser uma obra cyberpunk, trouxe como
protagonista uma hacker que ajuda na investigação de um jornalista. Os filmes Terminator Salvation(2009), Surrogates(2009),
Repo Men(2010) e Sleep Dealer(2008) trabalharam com diferentes
noções de realidade virtual. O anime Ergo Proxy (2006) aborda
um futuro pós-apocalíptico com robôs e inteligências artificiais,
enquanto o game Deus ex: HumanRevolution(2011) foi um prequel da série que discutiu os limites da humanidade quando detentora de uma alta tecnologia. Já os seriados Dollhouse(2009-2010)
e Caprica(2011) levaram à TV diferentes versões do cyberpunk,
sendo que o último abordou muito profunda e interessantemente
a questão da realidade virtual e do pós-humanismo, da possibilidade de transferirmos nossa consciência para uma máquina. Nos
quadrinhos, Transmetropolitan(1997-2002) é o que se destaca,
principalmente ganhando o título de pós-cyberpunk – que é um
rótulo com o qual eu não concordo, mas que não vem ao caso
agora.
Enfim, se me perguntassem o que eu acho das considerações
de Rucker ao io9, eu diria que ele está sendo preguiçoso (risos).
É claro que para escrever uma boa ficção científica cyberpunk é
preciso certo conhecimento científico e/ou pesquisa, mas nada
que necessite um título em matemática, física ou bioquímica.
Agora, se o caso é a falta de interesse do mercado editorial ou dos
leitores, deixo em aberto essa questão. Até porque continuamos
vendo resquícios, como os mencionados no parágrafo anterior,
assim como em nosso próprio solo, com autores como Roberto
de Sousa Causo, que “milita” na causa desde os anos 1990, junto
de Fábio Fernandes (Os Dias da Peste, 2009), Richard Diegues
(Cyber Brasiliana, 2010), Carlos Orsi (Guerra Justa, 2010), Mario
Kuperman (Labirinto Digital, 2005), LuisBras (Paraíso Líquido,
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2010), além da antologia Cyberpunk: Histórias de um Futuro Extraordinário publicada pela Tarja Editorial em 2010 e do Duplo
Cyberpunk (2010), com os contos de Roberto de Sousa Causo e
Bruce Sterling.
Por isso, não se rendam às fumacinhas encantadoras do Steampunk ou às maravilhosas histórias da fantasia: o cyberpunk foi
nos anos 80/90 e o cyberpunk é agora!
Referências
ANDERS, Charlie Jane. Why do so many former cyberpunk authors now
write dark fantasy? In: io9. Disponível em: <http://io9.com/5795217/why-doso-many-former-cyberpunk-authors-now-write-dark-fantasy>
AMARAL, Adriana. Visões Perigosas: Uma Arque-Genealogia do Cyberpunk. Porto Alegre: EditoraSulina, 2006
COLLINS, Karen E. “The Future is Happening Already”: Industrial Music,
Dystopia, and the Aesthetic of the Machine. Ph.D. Thesis. Liverpool: Universityof Liverpool, 2002
______. Dead Channel Surfing: the commonalities between cyberpunk
literature and industrial music. Popular Music (2005) Volume 24/2. Cambridge
University Press, pp. 165-178
FERNANDES, Fábio. A construção do imaginário cyber. William Gibson,
criador da cibercultura. Editora Anhembi Morumbi, 2006
GIBSON, William. Count Zero. Tradução: Carlos Angelo. São Paulo: Editora Aleph, 2008
STERLING, Bruce; CAUSO, Roberto de Sousa. Duplo Cyberpunk: O
Consertador de Bicicletas e Vale-Tudo. São Paulo: Devir livraria, 2010
41
42
120 anos de Tolkien: A
Caverna, o Dragão, o Anel e o
Guarda-roupas
Clinton Davisson
Conheci Tolkien na primeira metade da década de 80 graças
ao trailer de O Senhor dos Anéis de Ralph Bakshi, aquele desenho animado esquisito, carregado de clima sombrio. Demorou um
ano para arrumar o vídeo mesmo, mas o trailer já me fazia tremer
de excitação com aquele universo sinistro e rico. Anos mais tarde
já conhecera, também através de desenho, o universo de Nárnia,
quando a Rede Globo passou, num domingo, o desenho O Leão,
a Feiticeira e o Guarda-Roupas, feito pelo mesmo Bill Melendez
que trouxera a turma do Charlie Brown. Eram universos vivos,
pulsantes, tão reais quanto a minha vida pacata em Volta Redonda. Dava para ver que a família do Senhor Castor possuía uma
história e que Gollum realmente tinha um passado de sofrimento
e tormento. Bem diferente dos desenhos que via na TV na época. O Homem-Pássaro, por exemplo, certamente vivia sentado
naquela sala, único cômodo de seu quartel general e não tirava
aquela máscara nem para ir ao banheiro. Tomar banho então, impossível. Aliás, o cara não devia nem comer alguma coisa para
viver, só ficava lá, esperando um vilão para enfrentar.
Mais tarde veio o desenho Caverna do Dragão, talvez a maior
das injustiças da mídia mundial pois, cancelado nos EUA, é um
marco cultural no Brasil, sendo amplamente conhecido por pessoas de todas as idades (eu sei porque perguntei para jovens nas
escolas de hoje e a popularidade continua soberana) mesmo após
25 anos do cancelamento.
Embora chupasse elementos da mitologia de Tolkien, Caverna do Dragão é muito mais um plágio descarado da obra de
C.S. Lewis. Acho estranho que as pessoas se assustem quando eu
43
digo isso. Mas está na cara: jovens encontram uma passagem para
outro mundo, recebem armas mágicas e são perseguidas pelo
bruxo(a)ditador (a) local, auxiliados por uma entidade (Aslam/
Mestre dos Magos) que parece saber de tudo, mas não conta por
pura sacanagem.
Todos estes desenhos precederam a literatura no meu caso.
Fui ler Tolkien em 1985. Na época, era difícil encontrar livros
do sul-africano. Dependia de uma única livraria em Volta Redonda inteira, a Veredas(que existe até hoje). Não havia aquela
coisa de pedir pela internet (não havia nem internet, bom deixar
claro para a geração de hoje). A Sociedade do Anel foi fácil, agora
As Duas Torres foi épico, só achei edição de português lusitano.
O que deixou a saga ainda mais com cara de medieval para mim.
O Retorno do Rei apareceu um ano depois em “brasileiro”. C.S.
Lewis então, fui ler em 2004, quando anunciaram o filme de “O
Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupas”.
Como tudo que é feito por seres humanos, a obra de Tolkien não está livre de defeitos. Aquela inocência dos personagens
e o discurso fascista de tudo que é belo é bom, são, em minha
humilde opinião, perdoáveis e, cá para nós, até desejáveis nessa
época em que tudo tem que ser politicamente correto. O que me
incomoda pessoalmente sempre foram aqueles capítulos intermináveis narrando montanhas ao longe de manhã, montanhas
ao longe à tarde, montanhas ao longe à noite. Por isso pulei de
alegria quando, no cinema, tudo aquilo virou um travelling com
música alta e um fade. Outro problema corrigido no cinema foi
a falta de mulheres ativas na história. Não, não sou daqueles que
reclama do relacionamento esquisito de Frodo e Sam, acho até
que isso vai depor a favor de Tolkien no futuro, quando, segundo Irvine Welsh, todo mundo vai ser gay. Acho até esquisita a
obsessão de algumas pessoas em relação a isso, pois, em Moby
Dick, por exemplo, o capitão Ahab tem um menininho ao seu
dispor em sua cabine e o próprio Ismael, personagem principal,
casa com o índio Queequeg literalmente logo no inicio do livro.
Mesmo quando a homossexualidade está sendo amplamente debatida, focam em Sam e Frodo e esquecem de Ismael e Queequeg.
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Resumo da história, a sexualidade de Frodo e Sam realmente não
me preocupa porque não me interessa.
Influência ativa na atualidade
Mesmo 39 anos após sua morte, John Ronald Reuel Tolkien ainda é influência presente nas obras de fantasia no mundo
todo. Trata-se daqueles casos em que a influência é tão poderosa
a ponto de virar padrão. Mais ainda, a busca por quebrar, superar,
ou simplesmente mudar esse padrão virou uma espécie de Santo
Graal da literatura fantástica.
Atualmente o marketing de George R. R. Martin no Brasil
flerta com a possibilidade do advento de um “Tolkien para adultos” já que há uma maturidade maior na história das Crônicas de
Gelo e Fogo. Personagens mais modernos e menos infantis. Se
isso se traduz em um autor melhor ou em uma história melhor, é
algo muito subjetivo. Mas o fato é que difícil falar de Martin, sem
falar de Tolkien. E para falar de Tolkien, não precisamos mencionar ninguém.
Temos também dos ingleses Neil Gailman e China Miéville
venerados, tanto pela crítica, quando pelo mercado editorial, por
conseguirem romper em parte a fórmula de anões, magos, elfos
e cavaleiros. O local de mineração continua sendo lendas antigas
europeias (no caso de Miéville há elementos de outras mitologias), mas o resultado é bem criativo e ousado.
Imitadores ruins e o mercado
Há algo intrigante em relação ao mercado mundial literário,
que passa por uma fase revolucionária que começou com Harry
Potter e continuou com Crepúsculo. Semelhante ao que aconteceu em 1977 com Star Wars onde as crianças deixaram de ser
um tempero e passaram a ser o prato principal da indústria cinematográfica, fazer livros para adolescentes virou o foco do mercado editorial.
É bom deixar claro que, quando digo “imitadores”, estou
querendo dizer, na verdade, autores que são influenciados de
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alguma forma por Tolkien. Dentre eles, temos J.K. Rowling. A
qualidade de Harry Potter é debatida por alguns críticos, pode
haver um furo aqui e ali, mas o fato é que o bruxinho não pode
ser taxado de mal escrito impunemente. Ao contrário, chegouse a insinuar que Rowling usava ghost-writers para “terceirizar”
as histórias. Um crítico chegou a dizer: “Ninguém faz livros de
tanta qualidade em tão pouco tempo”. Pessoalmente, acho Rowling genial. Sabe construir personagens adoráveis com os quais
nos identificamos. E ainda teve a sorte de ser transportada para o
cinema por cineastas competentes.
Embora não possamos considerar Stephanie Meyer como
uma imitadora de Tolkien, ela é uma das locomotivas que puxam
essa revolução literária. Crepúsculo já é um livro ruim de defender, com uma autora pertencente a uma religião que defende abertamente que os negros são descendentes de Cain, e gerou filmes
de gosto duvidoso, mas ainda há algo carismático na história
meio Romeu e Julieta, meio A Bela e a fera. Sua temática machista
e moralista encontrou terreno fértil nos EUA de Bush Jr e vem
fazendo uma legião de fãs no Brasil aonde a longevidade do governo petista vem fazendo crescer uma “consciência reacionária
anti-petista” com um discurso de “retorno da tradição, religião
e família” que flerta com o nazismo . Apesar disso tudo, Crepúsculo ainda é legal de assistir (confesso que só li o primeiro livro
e não gostei).
O problema maior começa com a falta de qualidade das obras que vem na cola destas locomotivas de olho nesse novo público infanto-juvenil. Porque grande parte dos adolescentes não
tem muito critério para ler. O que era uma opção de Tolkien por
um clima mais inocente e infantil, virou uma regra para os imitadores.
A busca por uma nova linguagem ou mesmo por novos
cenários e novas temáticas, deu lugar para o “mais do mesmo”.
Com uma história copiada de Star Wars e um cenário copiado
de Tolkien, o Christopher Paolini virou pesadelo de críticos, mas
fez a alegria do mercado e virou síntese de imitadores ruins de
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Tolkien.
O que acontece no Brasil que me deixa preocupado não é a
quantidade de imitadores de Tolkien, mas a falta de criatividade,
de bagagem literária e personalidade desses imitadores. Como o
mercado está próspero, o que acontece é uma profusão de livros
com temáticas de idade média europeia sem se dar ao trabalho de
fazer uma pesquisa maior sobre o assunto.
O natural seria se voltar para a cultura nacional, mas aí
entra o preconceito do brasileiro classe média pela cultura do
próprio país. Confesso, por exemplo, que embora seja fanático
por futebol, não morro de amores por samba, e Carnaval para
mim seja época de viajar e ficar bem longe… do Carnaval. Tudo
bem, questão de gosto, mas vejo certos exageros. “O problema
dos autores brasileiros é que insistem em querer nos empurrar essas coisas nacionais que não nos interessam”, bradava um imbecil
numa comunidade do Orkut anos atrás, como se falar de coisas
nacionais fosse como tentar vender uma droga para seu filho.
Claro, durante muitos anos a única referência das lendas nacionais estava atrelada ao – excelente – trabalho de Monteiro Lobato e suas adaptações televisivas para o mundo infantil. O atual
guru do Youtube, PC Siqueira, afirmou: “Não vou me assustar
com uma história de Saci. Quem vai se assustar com um bichinho
que dá nó em rabo de cavalo? Prefiro Zumbis que comem gente e
tem a ver com o fim do mundo. Desculpa!”.
Mas vale citar que houve tempos, 13 anos atrás para ser mais
preciso, que filmes de heróis da Marvel eram tidos como inadaptáveis para o cinema. Só Batman e Super-homem tinham conseguido espaço nas telas mundiais, enquanto apenas o Hulk havia
conseguido algum sucesso e mesmo assim em uma série de TV.
A adaptação do Capitão América para a TV não passou de um
piloto insosso na Sessão da Tarde.
Com novas tecnologias digitais, os heróis da Marvel tomaram de assalto o cinema de forma devastadora. O que estou querendo dizer é que, se existem barreiras para que se façam boas
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histórias envolvendo mitologia nacional, elas são tão consistentes
quanto a roupa nova do imperador.
André Vianco, atual golden boy da literatura fantástica no
Brasil, já utilizou curupiras bombados em seus livros e vendeu
muito. Sem falar que trouxe os vampiros para o Brasil de maneira
contundente e não houve problema nenhum nisso. Sem pensar
muito, o premiado Max Mallman, criou uma lenda própria de
imortais que praticam turismo histórico pelo mundo desde a invenção da escrita e acabam vivendo uma aventura no Rio de Janeiro em seu livro Zigurate.
O escritor Roberto Causo também desenvolveu um trabalho
semelhante com o ótimo A Sombra dos Homens que não apenas
tive a oportunidade de ler, como também presenciei uma avalanche de críticas cujo poder de fogo se concentrava não na qualidade do livro, mas no fato de usar a mitologia nacional como matéria prima para fantasia. Novamente é como se Causo estivesse
querendo empurrar goela abaixo do leitor a “malévola droga da
cultura nacional”.
Mas o golpe de misericórdia veio com o humilhante tapa na
cara dado pelo norte-americano, Christopher Kastensmidt, que,
morando em Porto Alegre, usou lendas nacionais, aquelas que
não tinham graça para nós, e criou The ElephantandMacaw Banner, uma série de contos que estão ganhando reconhecimento
internacional em revistas respeitadas, graças ao óbvio: o folclore
brasileiro é riquíssimo para quem tem ambições literárias que vão
além de criar uma aventura de RPG.
É importante enfatizar que não acho ruim ou errado um autor brasileiro escrever sobre elfos e anões e outros temas europeus. Primeiro porque nossas raízes históricas são tão europeias
quanto africanas e indígenas. Não sou obrigado a escolher apenas
uma. Depois porque criatividade precisa de liberdade. O problema é o preconceito, o ódio que alguns leitores e autores parecem
sentir pelas temáticas nacionais.
Enfim, ser fã de Tolkien, C.S. Lewis e simpatizantes é quase
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uma consequência do amor direto pela literatura fantástica, mas
na hora de produzir alguma coisa, o escritor nacional deveria
pensar em que tipo de reverência pretende render aos seus mestres. Imagine se os Beatles se contentassem em imitar Buddy Holly e não tentassem inventar mais nada?
Alguns tentam “inovar” de forma esquisita. Pegam os mesmos temas de Tolkien e dizem que “beberam das mesmas fontes”. Afinal, não foi Tolkien que inventou os elfos e os orcs. Aí
saem coisas esquisitas como elfos peludos que comem banana,
orcs louros, vampiros que brilham no sol… Sei lá, não era melhor
inventar algo novo ou talvez algo realmente criativo, ou pegar o
velho tema e colocar uma boa história pelo menos?
Talvez esse artigo tenha um pouco de dor de cotovelo, afinal,
pertenço muito mais ao seguimento de ficção científica, aquele
tema que todos adoram ver no cinema, mas pouca gente lê. Mas
não consigo ver vantagem em tentar clonar o texto de Tolkien 39
anos após sua morte.
Mas o que defendo é que ousadia e bagagem literária são
marcas do bom escritor e vejo pouca coisa disso na fantasia
brasileira atualmente. Se a ideia é homenagear mestre Tolkien,
acho que o mestre merecia um pouco mais em seu aniversário de
120 anos, concorda?
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Biografias
Miguel Carqueija
É um veterano autor carioca de ficção científica e que com o tempo foi trabalhando também
com outros gêneros, como o terror e a alta fantasia. Publicou 15 livros individuais, entre eles
“A Esfinge Negra” (Edições Hiperespaço, 2003), “O fantasma do apito” (Edições Scarum, 2007,
segunda edição em 2010), “Farei meu destino” (Giz Editorial, 2008, edição de papel e virtual),
“Tempo das caçadoras” (Scarium, 2009) e o mais recente “Os mistérios do Mundo Negro”
(Scarium, 2011, coautor Gabriel Coelho). Pela internet publicou “As portas do magma” (Scarium, 2008, coautor Jorge Luiz Calife) e “O fator caos” (Portal Cranik, 2010). Seu conto “O tesouro de Dona Mirtes” foi filmado em curta-metragem em 2004 e está disponível no youtube.
Cesar Alcázar
Nasceu em Porto Alegre, no ano de 1980. Encontrou na literatura uma forma de exteriorizar seus devaneios aventurescos e sombrios. Participou das antologias “Sagas Vol. 1 Espada e
Magia”, “Draculea – O livro secreto dos vampiros” e “No mundo dos Cavaleiros e Dragões”. É
autor do livro “Cemitério perdido dos Filmes B” (como Cesar Almeida) e um dos criadores
da Argonautas Editora. Em 2012, organizou a I Odisseia de Literatura Fantástica em Porto
Alegre.
Tibor Moricz
Filho de húngaros, é um paulistano nascido em 1959. Publicitário e escritor, publicou Síndrome de Cérbero (2007), Fome (2008) e O Peregrino – em busca das crianças perdidas
(2011). É um dos autores e organizadores dos dois primeiros volumes da coleção Imaginários
e capitão do bem sucedido blog internacional de entrevistas ficcionais From Bar to Bar. Premiado em concursos literários, tem contos publicados nas coletâneas Contos Imediatos (Editora
Terracota),Dieselpunk (Editora Draco) e 2013: Ano Um (Editora Ornitorrinco).
Duda Falcão
É escritor e editor. Desde 2009 participou de mais de 20 antologias. O seu primeiro romance,
intitulado Protetores, será lançado em 2012 pela Editora Underworld. É um dos dois editores
da Argonautas Editora. Em 2012, organizou a I Odisseia de Literatura Fantástica em Porto
Alegre.
Álvaro Domingues
Atuante no meio da ficção científica e autor do Blog do Pai Nerd,sempre cavou o seu espaço
em sites e revistas técnicas para publicar contos que investigam a fundo a mente humana até
reunir material suficiente para um livro. É autor de Sombas e Sonhos (Balão Editorial).
Clinton Davisson
É jornalista, escritor, presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica do Brasil e autor da
saga Hegemonia onde usa descaradamente fadas taradas, sereias feministas (que subjugam
os machos da espécie) e dragões com problemas existenciais, além de uma raça de gambás
maconheiros.
Lidia Zuin
É jornalista e mestranda em Comunicação e Semiótica. Autora de contos publicados pelas
editoras Draco (Imaginários vl. 3, Meu Amor é um Anjo, Space Opera II) e Estronho (Steampink), pesquisadora em comunicação e cultura, entusiasta cyberpunk e autora dos blogs
Fiercekrieg e KunstistKrieg.
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