De Prinzhorn a Dubuffet: A repercussão das colecções de arte

Transcrição

De Prinzhorn a Dubuffet: A repercussão das colecções de arte
Leituras / Readings
De Prinzhorn a Dubuffet: A repercussão das
colecções de arte criada por doentes psiquiátricos
na arte do século XX
From Prinzhorn to Dubuffet: repercussion of psychiatric patients’ art collections in the XX century art
Resumo
No seu percurso experimental e de busca de espaços inovadores de expressão formal, a arte do passado século XX foi
testemunha de um interesse renovado por áreas artísticas marginais, entre as quais se situava a arte produzida pelos doentes
mentais. Este interesse cristalizou na formação de duas colecções dedicadas à arte criada por doentes psiquiátricos: a Colecção
Prinzhorn e a Colecção de Art Brut. A primeira, actualmente em exposição permanente na Clínica Psiquiátrica da Universidade
de Heidelberg, teve um papel de relevo no desenvolvimento da arte de vanguarda de entre-guerras graças à repercussão que teve
no expressionismo e no surrealismo, através de autores destacados como Paul Klee e Max Ernst. A Colecção de Arte Brut, criada
por Jean Dubuffet nos anos 40, teve grande transcendência na arte do pós-guerra, em especial no informalismo europeu.
Adrian Gramary
Médico Psiquiatra
Centro Hospitalar
Conde de Ferreira,
Porto
Abstract
The XXth century art witnessed an interest for outside artistic areas, which included the art created by mentally ill patients.This
interest led to the development of two collections dedicated to the art created by psychiatric patients: the Prinzhorn Collection
and the Art Brut Collection.The first one, in permanent exibition in Psychiatric Clinic of Heidelberg University, had a relevant
role in the vanguard art of between-wars period, through important artists like Paul Klee and Max Ernst. The Art Brut
Collection, created by Jean Dubuffet at 40’s, was important in post-war period, specially in european informalism.
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“Desde Van Gogh, todos somos auto-ditactas, quase se poderia dizer pintores primitivos. Como a tradição se
afundou no academicismo, devemos recriar toda uma linguagem... Não se pode aplicar nenhum critério à priori,
pois as regras fixas já não existem.”
Picasso
Direcção:
Adrian Gramary
Centro Hospitalar
Conde de Ferreira
Rua Costa Cabral, 1211
4200-227 Porto
e-mail:
[email protected]
No seu percurso experimental e a procura de inovadores espaços de expressão formal, o passado século
XX foi testemunha de um interesse especial, entre
outras áreas, pela arte produzida pelos doentes mentais.
Este interesse teve dois momentos de especial relevo,
que cristalizaram na formação das duas colecções
dedicadas à arte criada por doentes psiquiátricos: a
Colecção Prinzhorn e a Colecção de Art Brut.
A mais antiga, a Colecção Prinzhorn, é imprescindível
para entender a arte de vanguarda do século XX. Foi
reunida, a princípios dos anos vinte, na Universidade de
Heidelberg (Alemanha), berço da psiquiatria
fenomenológica clássica, sob a iniciativa do psiquiatra e
historiador Hans Prinzhorn (1886-1933). Prinzhorn
tinha estudado história da arte na Universidade de Viena
antes de se interessar pela Psiquiatria. Esta formação
específica foi, sem dúvida, decisiva para que a Clínica
Psiquiátrica de Heidelberg o contratasse em 1919 para
supervisionar a colecção de arte dos doentes mentais.
A colecção tinha sido iniciada no período em que Emil
Kraepelin dirigia a Clínica, de 1890 a 1903. Prinzhorn
ampliou a colecção - com a colaboração do director da
Clínica de Heidelberg, Karl Wilmanner - transformando-a numa vasta colecção que incluía, a meados da década
de 1920, cerca de 4500 peças de 350 indivíduos. O material
de Heidelberg foi cuidadosamente pré-selecionado. Uma
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carta assinada por Wilmanner foi enviada em 1920 aos principais
hospitais psiquiátricos de Alemanha, Áustria, Suíça, Itália e Holanda,
esclarecendo as intenções de Prinzhorn, pedindo “produções de
arte pictórica realizadas por doentes mentais que não sejam simples
cópias de imagens existentes ou memórias da época em que eram
pessoas sãs, senão que sejam consideradas como expressões das
suas experiências pessoais”.
Figura 1
Exemplar da Colecção Prinzhorn
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Tratava-se de obras espontâneas que surgiram da necessidade interna
de doentes que não tinham formação artística prévia. Numa época
de novas investigações sobre a doença mental, Prinzhorn defendia
a legitimidade estética dos trabalhos pintados por indivíduos psicóticos,
marginados da sociedade. Em comum com a teoria expressionista
da arte (que, por sua vez, tinha importantes raízes no romantismo
do século XIX) Prinzhorn acreditava na existência de um impulso
básico que levava à produção de imagens e que, em geral, está
suprimido nos adultos. Pensava que esta vontade de dar forma “é
instintiva e está comprometida pela razão e a causalidade”. Assim
como muitos artistas modernos, considerava a “imitação da natureza”
e o “ilusionismo” na arte a prova deste compromisso e, assim sendo,
tendia a ignorar toda obra sujeita a estes princípios, preferindo
aquelas obras em que os impulsos primitivos pareciam manifestar-se de uma forma mais pura.
As peças foram submetidas a uma catalogação exaustiva seguindo
um enfoque formal e de conteúdo, incluindo na colecção uma cópia
dos processos clínicos dos casos mais relevantes destinados ao
estudo científico. O desejo de Prinzhorn de tratar as obras examinadas
como produtos artísticos levou-o a tomar a decisão de tratar os
seus realizadores como indivíduos criadores e, numa série de estudos
específicos de 10 casos, dar-lhes nomes, embora se tratasse ainda
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de pseudónimos. Aquele foi um ponto de inflexão relativamente à
prática habitual até aquela altura, pois os criadores permaneciam
no anonimato ou, no máximo, eram identificados pelas iniciais.
Em 1922, Prinzhorn publicou o texto Bildnerei des Geisteskranken
(Introdução à produção de imagens dos doentes mentais), texto
que, desde uma abordagem descriptiva e seguindo o exemplo clínico
da obra de Karl Jaspers, tentava analisar a produção artística dos
doentes mentais com objectivos diagnósticos e para tentar
compreender a relação entre as obras e os artistas “sãos”. Segundo
a fenomenologia existencial de Jaspers, as obras periféricas dos
doentes mentais eram uma ferramenta útil para estudar a alienação
dos seres humanos do seu eu essencial.
Hans Prinzhorn deixou oficialmente a Clínica de Heidelberg em
1921, pouco antes de que fosse publicado o seu livro. Em Junho de
1933, enquanto seguia de perto o interesse crescente dos psiquiatras
de Heidelberg pelos medicamentos psicotrópicos, adoeceu e morreu
de morte prematura. Entretanto, a sua colecção permaneceu em
Heidelberg. Em 1933, com a chegada do partido nazi ao poder,
Wilmanner foi destituído como director pela sua manifesta ideologia
anti-nazi. O sucessor de Wilmanner foi Carl Schneider (que não é
o Kurt Schneider, autor da Psicopatologia Clínica e das Personalidades
Psicopáticas), membro do partido nazi desde 1932.
É com acerto que o autor do capítulo introdutório do catálogo da
exposição que em 2001 apresentou parte do legado Prinzhorn em
Barcelona intitula a sua parte “Um capítulo subterrâneo na história
da arte do século XX” pois, realmente, é pouco conhecida a
repercussão que a colecção e o livro de Prinzhorn teve na arte de
vanguarda do período de entre-guerras. O esvaziamento da linguagem
pictórica clássica de tipo figurativo-ilusionista (exemplificada no mito
do pintor grego Apeles, cujos cachos de uvas pintadas, os pássaros,
por engano tentavam comer) motivada por factores intrínsecos e
outros exteriores, como o nascimento da fotografia, determinou a
busca de novas linhas de expressão plástica, que a arte contemporânea
procurou em áreas marginais (arte infantil, arte primitiva, arte dos
doentes mentais).
Paul Klee e Max Ernst, dois criadores com especial protagonismo
na arte de vanguarda, conheceram em primeira mão a obra do
professor de Heidelberg.
A actividade docente de Klee na Bauhaus facilitou a difusão da
colecção no âmbito germânico. Uma reflexão no caderno diário de
Paul Klee, datada em 1912, permite perceber a convicção do pintor
relativamente à importância da arte dos doentes mentais na renovação
formal necessária na arte contemporânea: “Porque estes são os
inícios primitivos da arte, tal como se costuma encontrar nas
colecções etnográficas ou em casa, no quarto das crianças. Não te
rias leitor!.Também as crianças têm capacidade artística, e há sabedoria
em que a tenham. Quanto mais desvalidos são, mais instrutivos são
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os exemplos que nos oferecem; e devem ser mantidos livres de
corrupção desde pequenos.As obras dos doentes mentais oferecemnos exemplos paralelos; nem “conduta infantil” nem “loucura” são
aqui palavras insultantes, como costumam ser. Tudo isto tem que
ser tomado muito a sério, mais a sério que todas as galerias públicas,
quando se trata da reforma da arte actual.” Em palavras de Gombrich,
o que pretendia Klee era desfazer-se das convenções que tinha
adquirido na escola de arte e regressar à despreocupada
espontaneidade que recordava dos seus anos de infância, ou até aos
estados de delírio dos doentes mentais, que manifestam graus
extremos de regressão.
Max Ernst, membro inicial do grupo dadaísta e para Argan “o mais
surrealista dos pintores surrealistas”, elaborou, mediante o contacto
com a arte dos doentes mentais, procedimentos que tentavam ir
“para além da pintura” (e que iriam ter extraordinária repercussão
na arte do século XX) como a fotocolagem e a “frotagge” (criar
imagens através da fricção com materiais) entre outros. Quando,
em 1922, Ernst foi viver para Paris para se unir ao grupo surrealista,
levou consigo a Bildnerei como uma prenda simbólica para o poeta
Paul Eluard, facto que permitiu a difusão do trabalho de Prinzhorn
dentro do grupo surrealista (Breton, Dalí, Miró). No movimento
surrealista, a procura de um saber recolhido das profundezas psíquicas,
levou a um grande interesse pela doença mental e assim Breton, o
teórico do grupo, considerava que as operações psicóticas da loucura,
da mesma maneira que o transe hipnótico, o sono e o automatismo,
permitiam entrar nos “processos primários” situados no inconsciente,
que, em geral, resultam inacessíveis devido aos processos de
“culturação”.
O próprio Prinzhorn estava consciente dos paralelismos implícitos
entre a arte dos doentes mentais e a arte expressionista alemã. Pensava
que tinham em comum “uma renuncia ao mundo exterior” e um “decisivo giro para o interior da consciência”. Julgava, no entanto, que esta alienação do mundo das aparências era uma condição que, no caso do esquizofrénico é “imposta”, enquanto que a alienação do artista
contemporâneo é “consequência de uma paciente auto-análise”.
Esta relação rica e subtil não foi compreendida pela política cultural
nazi orquestrada por Josef Goebbels, cuja visão reaccionária da arte
pretendia excluir qualquer expressão artística que não respeitasse
os cânones da arte oficial de “puro tipo nórdico”. Com este objectivo,
foi iniciado um programa destinado a expulsar da Alemanha todos
os artistas contemporâneos e todos os conservadores de museus
que mostraram simpatias modernizantes . Este ataque atingiu o seu
climax com a exposição Entartete Kunst (Arte Degenerada) que
abriu as suas portas em 1937 na cidade de Munich e viajou por várias cidades da Alemanha. Esta exposição, feita com a colaboração
do então director de Heidelberg Carl Schneider, tentava estabelecer
semelhanças entre a obra de artistas contemporâneos e exemplos
tirados da colecção Prinzhorn. Para surpresa dos organizadores,
cerca de 200.000 pessoas visitaram a exposição nos poucos dias
em que esteve aberta, facto que deixou a dúvida de se tal afluência
não seria uma espécie de homenagem popular àqueles artistas
proibidos. Recentemente, foi organizada na Alemanha uma exposição
que tentou recuperar os quadros da exposição de 1937. Com ironia,
um critico comentava que esta reconstrução permitia re-descobrir
os autores mais importantes da arte do século XX (Van Gogh,
Matisse, Picasso, Kandinsky, Paul Klee, entre outros).
Figura 2
Exemplar da Colecção de Arte Bruta de Lausanne (Suiça)
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A segunda grande colecção, a Colecção de Arte Bruta de Lausanne (Suiça), foi criada por Jean Dubuffet após a Segunda Guerra
Mundial. Este autor, pai do informalismo europeu, formou com outras
pessoas (entre as quais André Breton, o poeta e líder do movimento
surrealista) a Compagnie de l´Art Brut (“Sociedade da Arte Bruta”)
que tentava buscar a “verdadeira arte” em locais inesperados. O
interesse de Dubuffet pela arte realizada pelos doentes mentais
surgiu em 1923, quando teve acesso ao livro de Prinzhorn. Em 1945
fez uma viagem à Suiça, junto com o arquitecto Le Corbusier e Jean
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Paulhan, que incluiu visitas a vários hospitais psiquiátricos suíços,
recolhendo trabalhos artísticos produzidos pelos doentes internados.
Esta busca levou também Dubuffet a procurar a obra de pessoas
que viviam na margem da sociedade ou distantes da “alta cultura”.
A formulação da arte brut por parte de Dubuffet deve ser contemplada no contexto dessa tendência específica da arte contemporânea (definida em palavras de Gombrich como a “atracção pela
regressão”) que reflecte uma desilusão dos artistas relativamente à
própria tradição cultural e que busca inspiração fora do cânone aceite
nos precedentes históricos da arte. Dubuffet estava consciente do
importante papel que tinha desenvolvido nas fases inaugurais da arte
do século XX a apropriação de objectos tribais procedentes de
África, Oceânia e América do Norte (por exemplo no expressionismo
e no cubismo), assim como a arte popular e arte infantil. Estes grupos
– tribos, populações rurais, crianças e doentes mentais – considerava-se que, em geral, compartilhavam uma série de traços “primitivos”
que os situava metafóricamente nas fontes originarias da cultura e
portanto, estavam em contacto mais directo com as forças da criação.
A colecção tem desde 1976 o seu local permanente na cidade suíça de Lausanne e a sua influência foi destacável nos movimentos
artísticos surgidos na arte após a Segunda Guerra Mundial.
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Sites das colecções na Internet:
www. prinzhorn.uni-hd/
www.artbrut.cg/
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REFERÊNCIAS
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de la exposición. MACBA - Museo d’Art Contemporani de Barcelona.
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