paranoia e interpretação em annie hall de woody allen

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paranoia e interpretação em annie hall de woody allen
REVISTA LUMEN ET VIRTUS
ISSN 2177-2789
VOL. IV
Nº 8
FEVEREIRO/2013
PARANOIA E INTERPRETAÇÃO
EM ANNIE HALL DE WOODY ALLEN
Prof. Dr. Marcos C. P. Soares1
http://lattes.cnpq.br/7249014007309888
RESUMO – Este ensaio traz uma análise do filme Annie Hall do cineasta Woody Allen, na qual
se procura problematizar os argumentos da fortuna crítica para produzir uma visão do filme que
enfatize os modos como o cineasta procurou refletir sobre a matéria histórica do momento em
que o filme foi produzido. Desse modo, procurou-se mostrar como o texto fílmico é tanto uma
resposta à ascensão da Nova-direita a partir do governo Nixon como a elaboração de estratégias
de sobrevivência num contexto de censura à tradição da comédia política que havia surgido na
década anterior.
PALAVRAS-CHAVE – Woody Allen, Annie Hall, comédia, pós-modernismo.
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ABSTRACT – This essay brings an analysis of Annie Hall by Woody Allen in which there is an
attempt to confront the main tenets of the criticism produced about the film so as to emphasize
the ways in which the filmmaker sought to reflect upon key historical motifs of the period. The
film is seen as both a reaction to the rise of the New Right after Nixon’s government as well as
an attempt to create a series of strategies to deal with the censorship against a tradition of
political comedy created in the previous decade.
KEYWORDS – Woody Allen, Annie Hall, comedy, postmodernism.
O filme Annie Hall (no Brasil, Noivo neurótico, noiva nervosa, 1977) é
reconhecidamente um marco da comédia norte-americana e da carreira de Woody Allen.
Praticamente a totalidade da crítica enfatizou seu caráter de ruptura em relação à produção
anterior do cineasta tomando como base duas características centrais do filme: sua integração do
quadro cômico (a “gag”) na armação dramática do enredo, evitando a fragmentação em quadros
relativamente autônomos que marcava as obras anteriores, desde Take the Money and Run
(Um assaltante bem trapalhão, 1969) até Love and Death (A última noite de Boris
Grushenko, 1975); e o equilíbrio entre assuntos cômicos e sérios que, em princípio, dava uma
dimensão mais profunda aos temas tratados e inseria o filme na tradição mais nobre da literatura
séria do período, como aquela produzida por romancistas judeus consagrados como Philip Roth
e Saul Bellow (POGEL, 1987; BAILEY, 2001; HIRSCH, 2001; GIRGUS, 2002; SILET, 2006).
Professor Doutor de Literaturas Inglesa e Norte-Americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, especialidade em “Literatura e cinema”.
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Embora as duas afirmações tenham sido enfaticamente repetidas pelo próprio cineasta em
diversas entrevistas (mas com que intenção?), ambas merecem qualificações importantes,
encorajadas em certa medida pelo próprio filme: afinal, não é do arrogante professor universitário
na fila do cinema o diagnóstico de que Fellini é um cineasta autoindulgente porque faz filmes
excessivamente fragmentados nos quais “falta uma estrutura coesiva”?
O debate sobre a integração ou a independência entre a gag e a armação dramática
constitui um dos mais antigos pontos de contenção da crítica a respeito da comédia
cinematográfica. As interpretações mais correntes desde os anos 30 têm insistido, a partir da
comparação entre, por exemplo, os curtas-metragens iniciais de Charles Chaplin e de Buster
Keaton e suas obras-primas posteriores (como Luzes da cidade ou A General), no caráter
“primitivo” dos primeiros filmes e de sua superação através da integração da gag na tessitura
narrativa, de modo a torná-la funcional da perspectiva do desenvolvimento do enredo e não
apenas uma interrupção desnecessária. Desse ponto de vista, os valores centrais são aqueles
emprestados do drama burguês do século XIX, já amplamente superados na cena teatral pela
tradição que vai de Ibsen a Brecht (SZONDI, 2003), ou seja, tanto a construção meticulosa do
roteiro a partir de uma relação de causa e efeito entre os diversos eventos da narrativa quanto a
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ênfase na evolução psicológica do protagonista. Por outro, se adotarmos uma perspectiva épica
no lugar da estritamente dramática, os elementos relevantes são justamente aqueles ligados à
autonomização do quadro como instrumento de quebra da linearidade da peça bem feita e do
filme convencional. Dessa perspectiva, os valores centrais são os saltos entre quadros; a quebra
das relações dadas de bandeja para um espectador passivo; a des-psicologização que dá a ver os
efeitos de padronização da vida moderna sobre a subjetividade; a mimese dos choques e dos
ritmos modernos da grande cidade na própria estrutura narrativa; o emprego das categorias do
surrealismo e da montagem rítmica para pulverizar a ideia do filme como “recorte fiel e
transparente da realidade”. Já a separação entre assuntos sérios (aptos a serem tratados pelo
drama) e assuntos leves (a serem tratados no âmbito da comédia) depende de uma operação
francamente ideológica que não corresponde ao poder de fogo e complexidade do emprego da
comédia na história do teatro, da literatura e do cinema, inclusive, ou principalmente, na arte
política mais consequente e exigente do século XX. Se as duas explicações para a importância do
filme são, portanto, problemáticas, elas podem configurar um movimento de recuo real, com
motivações possivelmente de caráter histórico, cujo alcance deve ser aferido através da análise do
filme.
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Creio que a crítica Nancy Pogel tenha sido a primeira a introduzir um novo elemento
nessa discussão ao ventilar a suspeita de que as mudanças efetuadas em Annie Hall possam ter
alguma relação com a participação de Woody Allen como ator no filme de Martin Ritt, The
Front, apenas um ano antes do início da escrita do roteiro de seu novo filme:
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The Front, filme realizado por escritores e atores que haviam sido incluídos na
lista negra da era McCarthy, é uma comédia séria que lida com questões de
engajamento e integridade pessoal no período de caça aos comunistas na
década de 50. No roteiro de Walter Bernstein, Allen atua como um homem
comum sem interesse pelo engajamento político, que serve de “testa de ferro”,
vendendo em seu nome o trabalho de escritores que são impedidos de trabalhar
devido às suas filiações de esquerda. Inicialmente, como o homem comum dos
primeiros filmes de Allen, ele prefere ficar fora da controvérsia, mas quando é
chamado para depor diante do Comitê de Atividades Antiamericanas, ele
finalmente toma partido. “Não reconheço o direito deste comitê de fazer esses
tipos de perguntas”, ele afirma e em seguida continua: “Além disso, vocês todos
podem se f...”. Embora o filme de Ritt tenha uma conclusão feliz – o homem
comum reafirma sua integridade e conquista a heroína – as dificuldades
envolvidas no momento de adotar uma posição clara em circunstâncias menos
extremas deve ter sugerido a Allen uma série de possibilidades. Seu interesse em
comédias sérias que lidam com a necessidade de engajamento e integridade
pessoal, assim como com os desastres humanos causados por posições de
engajamento muito claras, anuncia seu trabalho futuro. (POGEL, 1987, p. 812).
O diagnóstico faz sentido, mas merece algumas especificações históricas. Um dos atores
principais do filme de Ritt é Zero Mostel, o comediante judeu que se tornou um dos mais
importantes artistas modernos da comédia política no teatro e no cinema norte-americanos, ele
próprio vítima da lista negra nos anos 50. No momento mais dramático do filme, o personagem
de Mostel, impossibilitado de conseguir trabalho devido à perseguição política, comete suicídio
pulando de uma janela de hotel (a sequência é uma homenagem clara àquela do suicídio do
trabalhador berlinense desempregado no filme Kuhle Wampe, escrito por Brecht em 1932). A
centralidade da cena na estrutura geral do filme (pois ela marca um momento de inflexão do
enredo a partir do qual o personagem de Woody Allen se politiza) indica a importância da
questão do desemprego causado por perseguições políticas não apenas nos anos 50, mas também
no processo de pesada censura contra a comédia política no momento da filmagem. Nesse caso,
o alvo foi a geração de comediantes posterior à de Mostel, atuante na comédia stand-up relegada
ao circuito off-off-Broadway dos bares e clubes de jazz do Greenwich Village devido à intensa
mercantilização do circuito teatral nova-iorquino (esse também é um período de desemprego em
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massa de músicos de jazz, tipo de música ultrapassada pelas linguagens mais modernas). A
leitura conjunta das biografias de alguns dos principais artistas do período – Zero Mostel
(SAINER, 1998), Lenny Bruce (SKOVER, 2002) e Mort Sahl (SAHL, 1977) – fornece pistas
importantes para a compreensão do processo a partir da reiteração de motivos: em todos os
casos repete-se o caminho que leva da filiação de esquerda, passa pela comédia centrada na sátira
política e leva à lista negra (Mostel), aos inúmeros processos, prisões e à morte trágica (Bruce) e
ao desemprego crônico (Sahl). Em diversas entrevistas, Woody Allen cita o mais abertamente
político dos três, Mort Sahl, cujo repertório de temas variava da discussão sobre o assassinato de
Kennedy até a corrupção do governo Nixon, como a mais fundamental influência sobre sua
carreira. Além de ser o mais combativo dos cômicos dessa geração, Sahl também atualizava uma
tradição que os interessados pela história do teatro norte-americano reconhecerão como aquela
do Living Newspaper, que encontrou seu ápice no teatro engajado dos anos 30: pois os números de
Sahl eram encenações, em grande parte improvisadas, de notícias de jornal que ele lia em voz alta
no palco. Aliava-se a isso a seriedade da pesquisa histórica: no período imediatamente após o
assassinato de Kennedy, o comediante era reconhecido como um dos maiores estudiosos do
Warren Report, o relatório produzido pelo Estado americano a partir das investigações do caso (em
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Annie Hall Allen faz uma homenagem a Sahl na menção à obsessão de Alvy Singer pelo
assunto). Digamos, para encurtar a história, que a conjunção entre a ascensão da Nova Direita a
partir de Nixon, a atuação da censura na mercantilização do circuito teatral em torno da
Broadway e, no campo do cinema, o fim da carreira, em alguns casos a morte, de diversos
cineastas associados à Renascença Americana desde 1969 (para não falar da adesão abjeta de
diversos desses cineastas à produção mainstream), assim como a consolidação da estética e dos
métodos de produção dos blockbusters de Steven Spielberg e George Lucas não serviram
exatamente como encorajamento para a continuação das experiências culturais na esquerda,
embora fornecessem uma série de assuntos para os artistas interessados e tornassem sua atuação
mais necessária do que nunca.
Este preâmbulo pode parecer estranho como introdução a um filme cujo assunto
explícito é a dificuldade das relações amorosas, mas logo de saída é preciso lembrar que o enredo
coloca em confronto pelo menos quatro linhas paralelas que têm em comum o mapeamento de
trajetórias de derrota: na primeira, a mais evidentemente autobiográfica, a ênfase recai sobre os
conflitos amorosos entre Annie Hall (Diane Keaton) e Alvy Singer (Woody Allen) e o fim
inexplicável de seu relacionamento; a segunda desenha a trajetória profissional de Alvy, que vai da
participação em campanhas de arrecadação de fundos para a candidatura de Adlai Stevenson
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(opositor de Nixon), passa pelas apresentações diante de plateias universitárias (desde o final dos
anos 60 um dos centros da agitação política da contracultura) e acaba no teatro comercial (a peça
que vemos sendo ensaiada no fim do filme); a terceira é a história da decadência da cidade de
Nova York, assunto ao qual Alvy se refere mais de uma vez, principalmente quando comenta a
onda de crimes que assolou a cidade; e, finalmente a quarta é a história de um retrocesso político,
a ascensão da Nova Direita, resumida tanto nas excelentes piadas sobre Lyndon Johnson e
Eisenhower, mas também de modo bastante econômico na coleção de buttons de Alvy, que
pedem o impeachment de Eisenhower, Nixon, Lyndon Johnson e Ronald Reagan. É o convívio
conflituoso entre essas linhas, que em certa medida se comentam e se determinam mutuamente,
que constitui o centro do filme, como veremos. Já a relativa sobreposição da primeira sobre as
demais (“Eu não sou essencialmente um comediante político”, diz Alvy no comício de
Stevenson) constitui um problema que exige análise.
Essa série de deslocamentos ou sobreposições tem início já no confronto entre o título
do filme e as primeiras sequências: embora o título Annie Hall nos leve a crer que a personagem
feminina será o centro do enredo, as cenas iniciais nos mostram Alvy tomando o centro das
atenções, conversando com a câmera e o telespectador, de quem exige atenção incondicional, e
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passando do tom confessional introdutório para as primeiras rememorações autobiográficas. A
plateia terá que esperar ainda bastante tempo para que a personagem de Diane Keaton apareça
em cena. O fato de que sua presença nesse início surja mediada pelo monólogo de Alvy indica o
método de apresentação do conjunto de eventos e personagens do filme, aos quais só teremos
acesso na medida em que eles interagem com o protagonista, mediador que submete a tudo e a
todos aos imperativos de sua memória. Tampouco deve escapar à nossa atenção o fato de que a
aparição do personagem de Woody Allen logo nas primeiras cenas corresponde às expectativas
encorajadas pela indústria cultural e pelo cinema industrial, que pautam suas escolhas e ênfases a
partir da hierarquia das estrelas e celebridades (afinal, trata-se de um filme de Woody Allen): a
adesão narcisista de Alvy a tais parâmetros – ele de fato domina a cena com sua atuação, seus
problemas e lembranças – enquadra o foco narrativo e em parte lhe determina a natureza. Já as
semelhanças (mas também as diferenças) entre Alvy e Woody Allen constituirão matéria sobre a
qual o filme vai se debruçar.
A relação entre o espectador e a matéria exposta pelo filme se complica quando a
confiabilidade de nosso narrador é colocada em xeque desde logo. Mas ao contrário dos casos
mais importantes da literatura moderna mais avançada, onde o narrador não confiável simula
objetividade e busca algum grau de universalidade, aqui o próprio detentor do foco narrativo
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admite seu estatuto (o formato de comédia stand-up coloca Alvy como narrador literal) e suas
imperfeições (ele tende a “exagerar suas memórias, tem uma imaginação hiperativa, gosta de
misturar eventos e tem dificuldade de distinguir entre fantasia e realidade”). Tudo isso dito em
meio a referencias às suas obsessões (a idade, a morte, o sexo, etc.) e a Freud, num
aproveitamento da imagem do intelectual judeu, nova-iorquino e neurótico que Allen havia
desenvolvido desde as apresentações no Greenwich Village. Adicionem-se a isso a honestidade
do relato; o tom confessional que aproxima espectador e personagem; as referências eruditas; a
graça com que confissão e memórias são encenadas (as piadas, as cenas de infância com a mãe e
os alunos da escola); e a ênfase no homem comum (feio, desajeitado, inseguro, a própria antítese
da estrela de cinema) e temos um quadro no qual a afirmação de que não há nada a esconder
pode fazer parte de uma série de estratégias através das quais o narrador procuraria garantir nossa
adesão. Por outro lado, a inclusão dos procedimentos estilísticos antirrealistas que pontuam o
filme (a interação do Alvy adulto com as cenas da infância e mais adiante o emprego do split-screen
e de legendas explicativas, as conversas com transeuntes nas ruas sobre problemas pessoais, a
não-linearidade no tratamento do tempo e do espaço, etc.) solapa qualquer pretensão à
objetividade e nos coloca inteiramente a mercê dos devaneios do personagem. Já as referências a
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Fellini (a cena da escola é uma clara citação de uma cena semelhante em Amarcord) demonstra que
nosso narrador é escolado na cultura cinéfila europeia, embora passe à sua sanitização a partir
da retirada de qualquer referência aos motivos históricos discutidos no filme original (nesse caso
a adesão do aparato escolar ao receituário fascista) em nome da violência pessoal (mas
engraçada) contra colegas e professores (são todos incompetentes e imbecis). Essa tensão, em
parte amenizada tanto pelo tom cômico do registro quanto pela proximidade com os estereótipos
associados à figura do próprio cineasta (que, em princípio, também gosta de psicanálise, Fellini,
Bergman, etc.), entre a honestidade quase singela do narrador, cujas manias neuróticas não
devemos levar muito a sério, e seus atos de megalomania, que degradam todos à mobília de suas
rememorações e mitologias pessoais, será desenvolvida ao longo do filme.
No entanto, além de enfatizar o caráter problemático do protagonista-narrador, é
preciso assinalar o potencial progressista e desmistificador que diversas de suas intervenções
sugerem: afinal, a recusa do realismo pode ser encarada como uma tentativa de dissolver o peso
das derrotas das diversas experiências libertárias que surgiram nos anos 60; os procedimentos
antirrealistas como ampliação do repertório expressivo e estratégia de confronto com a
linearidade do cinema industrial (de fato, esses procedimentos são responsáveis pelos melhores
momentos do filme); a referência a Fellini como o estabelecimento de um diálogo com um dos
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mais importantes artistas do cinema exigente europeu e uma tentativa de quebra do
provincianismo da cultura norte-americana; e a sátira à escola como ataque desejável à repressão
dos métodos de educação convencionais que rebaixam todas as suas vítimas. Em resumo, esse
movimento simultâneo de adesão e crítica ao personagem de Woody Allen, que pode ser adorável
ou detestável dependendo da situação ou do ponto de vista, encapsula aquele que talvez seja o
tema central do filme: o confronto entre as novas possibilidades proporcionadas pelo período e
as forças de repressão, objetivas e subjetivas, que agem para conter seu avanço.
A menção a Fellini também começa a delinear um tipo de relação com o espectador que
ultrapassa a consciência de Alvy: embora a citação explícita seja a Amarcord, o conjunto de fatores
descritos acima (que ocupam os primeiros minutos do filme) aponta para uma relação
possivelmente frutífera com 8 ½, filme de Fellini sobre um cineasta que submete o conjunto de
trabalhadores do set de filmagem à tirania de suas memórias, contratando, subjugando ou
demitindo atores conforme eles se adequem ou não às lembranças de sua infância. O filme
aponta para um “descompasso entre as forças sociais desencadeadas e o particularismo que as
rege, [de modo que] crueldades e fraquezas de si pequenas são monumentalizadas pela posse
privada da engrenagem social” (SCHWARZ, 1981).
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Entretanto, mas do que assinalar as
semelhanças entre os dois filmes, é importante marcar as diferenças: pois Alvy não detém a posse
dos meios de produção cultural e, portanto, não ocupa a mesma posição de destaque na indústria
cultural que o cineasta de Fellini. A situação fica clara numa sequência em que Alvy é abordado
por caçadores de autógrafos na porta de um cinema que exibe um filme de Bergman (o contraste
não poderia ser mais exasperante): o reconhecimento é hesitante, pois Alvy participou de apenas
alguns programas de televisão, de modo que sua imagem ainda não se fixou no imaginário do
público. Ainda assim, a admissão relutante de que ele orbita no espaço das celebridades
televisivas provoca uma reação frenética dos dois fãs, que mal lembram o nome do artista, e dão
início a um pseudoevento midiático no qual Alvy se torna momentaneamente famoso por ser
famoso. Entretanto, num movimento dialético da narração que o filme desenvolverá, é
precisamente esse apequenamento das perspectivas de Alvy, cujo controle sobre o mundo é
tênue, que vai garantir a (relativa e contraditória) emancipação de Annie Hall, que escapa das
limitações impostas por seu benfeitor, mas em parte por tirar proveito das oportunidades
oferecidas por ele. Alvy, ao contrário de Annie, no final do filme buscará uma solução escapista
na nostalgia, na perplexidade diante da vida e na adesão parcial aos imperativos do teatro
comercial.
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A introdução do tema da adesão às demandas do circuito cultural mainstream pode causar
estranhamento se relacionado à figura de Alvy, pois ele é cuidadoso na construção de uma
dicotomia clara entre duas posições antagônicas em relação ao assunto, colocando de um lado o
universo de Nova York e, de outro, o mundo pós-moderno de Los Angeles, com suas misturas
descabidas de enlatados televisivos, igrejas evangélicas, restaurantes de fast food, celebridades
hollywoodianas, estilos arquitetônicos, etc. Em tudo transparece o comercialismo mais
escancarado e a suspeita é que o estilo relax da Califórnia resida justamente no fato de que o
gosto pelos modismos mercantis é adotado sem peso na consciência. O restaurante de comida
natural, por exemplo, cenário do desfecho da relação entre Alvy e Annie, remete de modo
inequívoco aos critérios de classes das novas modas contraculturais, pois, como todos sabem,
até hoje o selo orgânico no mercado de alimentos serve como diferencial (a produção em
princípio caseira, artesanal, etc.) que multiplica seus preços. Rob, o amigo que migra de
Manhattan para Beverly Hills, surge como a figura do artista que vendeu a alma ao demônio e
aderiu às modas e ao narcisismo adolescente típicos de Hollywood. Além disso, sua trajetória
pessoal exemplifica um processo que ajudou a devastar o cenário da comédia stand-up novaiorquina em medos dos anos 70. Como mostra um estudioso do assunto:
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A televisão atraiu os melhores e mais inteligentes dos jovens cômicos. O
processo se inicia em meados dos anos 70, quando artistas como Freddie
Prinze e Jimmie Walker se tornaram astros de programas de televisão, e se
acelera na década de 80 com o sucesso de The Cosby Show. A partir de então,
produtores e executivos das principais redes passaram a vasculhar os clubes em
busca de comediantes cujos materiais e personas pudessem ser adaptados para a
TV. Alguns deles, como Roseanne Barr e Tim Allen, se tornaram astros
importantes. Outros foram rapidamente descartados. De qualquer modo, o
resultado foi uma drenagem que provocou um curto-circuito na carreira de
muitos comediantes jovens, que passaram a considerar o circuito de “stand-up”
não como um fim em si, mas como um modo de chegar às redes de televisão.
(ZOGLINa, 2008, p. 3)
De fato, o mapeamento da cretinice cultural californiana, com sua combinação entre a
produção de lixo cultural com um misticismo neo-ecólogico de butique constitui um dos pontos
altos do filme. O rebaixamento geral fica claro tanto na sequência do estúdio de televisão, onde
risadas enlatadas são introduzidas num programa cômico como reação padronizada da plateia
(numa tentativa do espetáculo de fingir que ele ainda admite réplica, para parafrasear Guy
Debord), quanto na festa na casa onde Chaplin havia morado antes de “seus probleminhas com o
Comitê de Atividades Antiamericanas” (o problema já era antigo), onde candidatos a estrelas se
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mesclam com empresários do show business enquanto entoam mantras e marcam reuniões de
negócios.
No entanto, o processo de imbecilização generalizada já atingiu Nova York: as plateias
dos clubes de música podem ser desatentas; caçadores de autógrafos parecidos com o elenco de
O poderoso chefão assediam artistas nas ruas; agentes da indústria de música pop rondam os
clubes de jazz à caça de talentos; escritores talentosos são forçados a escrever para comediantes
de quinta categoria; jornalistas fazem a apologia da mistura entre o rock dos Rolling Stones e as
apresentações de divindades hindus. Tampouco os intelectuais escapam: eles não apenas
declamam solenemente bobagens inacreditáveis sobre Fellini nas filas do cinema, mas levam uma
vida excessivamente cerebral (como nos casos das duas primeiras esposas de Alvy) que acaba
por sufocar os instintos vitais. Além disso, como mostra a festa onde a segunda mulher de Alvy
identifica figurões do mundo acadêmico de Nova York, os intelectuais se comportam como
celebridades e a festa nada mais é do que a busca por contatos influentes no mundo das editoras
e universidades. A resposta de Alvy, que enfatiza as atividades físicas (o esporte e o sexo) em
oposição às mentais, surge como reação a esse intelectualismo de fachada. Em suma, a avaliação
de Alvy sobre o mundo das ideias contemporâneas descarta tanto o universo da alta cultura
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quanto da cultura de massas produzida industrialmente. Para o espectador fica a impressão da
justeza da sátira selvagem levada a cabo.
Ao contrário das mulheres hiperintelectualizadas que cruzam o caminho de Alvy, Annie
Hall surge num posição intermediária entre o interesse pelas artes (teatro, música, fotografia,
poesia) e uma espontaneidade ou uma simplicidade simpáticas cifradas inicialmente na sua
falta de articulação. Quando conversam pela primeira vez num clube de tênis (ou seja, na prática
de uma atividade física), o diálogo é marcado pelas suas hesitações, frases inconclusas, interjeições
desajeitadas e contradições amalucadas. Sua falta de habilidade linguística é frequentemente
assunto da conversa entre os dois, com Alvy vez ou outra fazendo comentários depreciativos
sobre suas escolhas de vocabulário. Além disso, sua relação com as artes é instintiva, pois, como
ela mesma diz, ela aprendeu a cantar sem ter aulas e procura “não pensar demais sobre sua
abordagem” quando tira fotografias. Seus conhecimentos de poesia são rudimentares, mas ela
acha Silvia Plath legal (neat). Após a sequência com as legendas explicativas denunciando o
ridículo da tentativa de simular uma conversa intelectual sobre fotografia, a cena na casa de
praia, longe da cidade, em que os dois protagonistas se veem às voltas com algumas lagostas,
surge como o único momento verdadeiramente autêntico do filme em sua regressão a certo
infantilismo ingênuo e despreocupado, mas nem por isso avesso às atividades artísticas, pois
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Annie aproveita a situação para tirar fotografias do evento. Nesse momento do filme tudo indica
um universo de possibilidades amplas e de novos recomeços nesse paraíso reencontrado, numa
integração entre o afeto pessoal e uma atividade artística livre das restrições intelectuais ou
comerciais registradas no resto do filme. A importância da cena, a primeira a ser filmada de
acordo com as entrevistas de Woody Allen, é reforçada pela inclusão mais adiante de seu
negativo, agora com nova protagonista feminina, mas já em chave de derrota e nostalgia.
No entanto, como gosta de lembrar Terry Eagleton, qualquer futuro deve
necessariamente ser o futuro deste presente e, de volta em Nova York, inicia-se o processo de
educação sentimental de Annie. Alvy se torna assim um tipo de Pigmaleão moderno que
procura inserir sua discípula em seu universo middlebrow, ou seja, um mundo situado entre, de um
lado, uma intelectualidade “excessiva” e estéril e, de outro, a mercantilização que marca os
produtos mais banais da indústria cultural. A caracterização desse campo de referências culturais
pontua todo o filme: elas cobrem uma ampla área que inclui Freud e a psicanálise, Groucho
Marx, Balzac, Silvia Plath, Fellini, Marcel Ophüls, James Joyce, Billie Holiday, Truman Capote,
Branca de Neve, Bergman, O poderoso chefão, etc. Os livros sobre seu assunto favorito, a
morte, podem ir desde manuais de segunda categoria até Morte em Veneza.
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Nesse sentido, a acusação feita por Annie no final do filme de que Alvy é como Nova
York faz sentido, pois “a capital do século XX” é, de fato, um lugar marcado por uma
hiperinflação do consumo de arte mundial (galerias, museus, livrarias, cinemas, salas de concerto,
etc.) que constitui uma das principais atividades econômicas da cidade (depois das atividades do
mercado financeiro e do turismo, com as quais o mundo da arte tem parentescos muito
próximos). Pois o desmonte do parque industrial da cidade a partir do final dos anos 60, assim
como o ataque do governo federal a uma das redes de bem-estar social mais eficazes do país,
responsável pela bancarrota econômica da cidade, (BERKOWITZ, 2006), marcam um processo
de decadência de Nova York que atingiu seu clímax em 1975, quando a cidade esteve prestes a
declarar falência. David Harvey argumenta que junto com o Chile, onde o golpe de Estado em
1973 forneceu a possibilidade de que o país se tornasse um local privilegiado para o teste das
novas medidas econômicas neoliberais, Nova York se tornou uma cidade-laboratório importante
em que as novas medidas de desregulamentação e de aumento do setor de serviço ligado ao
capital financeiro foram implementadas e aferidas. (HARVEY, 2007, p. 63). O primeiro
resultado, ao qual Alvy se refere mais de uma vez no filme, foi a degradação e abandono de
partes inteiras da cidade (mais de 10% da população da cidade migrou para outros lugares), assim
como o aumento vertiginoso da violência urbana. A economia da cidade só se recuperaria com
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cortes radicais do orçamento do Estado de Bem Social (Harvey assinala que o processo de
“disciplinar poderosos sindicatos municipais” se intensifica no período entre 1975 e 1977)
(HARVEY, 2007, p. 52) e com o aumento do setor de serviços impulsionado pelo investimento
inicialmente na rede de museus (liderado pelas verbas milionárias destinadas ao MoMA, ao
Guggenheim e ao Metropolitan). Em seguida, deu-se início a uma das campanhas publicitárias de
turismo mais agressivas da história do país, em que a ênfase recaia tanto nas novas obras de arte
da nova arquitetura de arranha-céus pós-modernos (o World Trade Center, por exemplo, foi
inaugurado em 1973) quanto no amplo parque cultural oferecido pela cidade. Assim, o ecletismo
de Alvy tem um substrato objetivo na circulação de mercadorias culturais que movimenta a vida
na cidade (e, em certa medida, garante o relativo sucesso de bilheteria dos filmes de Woody Allen,
o mais nova-iorquino dos cineastas).
Num certo sentido, Annie Hall é um mapeamento da qualidade desse campo de
referências culturais. Novamente aqui se abrem inúmeras possibilidades centradas no acesso aos
bens culturais, elemento fundamental numa cultura anti-intelectual e provinciana como a norteamericana, o que acabou por manter a cidade de Nova York como o centro nervoso e principal
produtor da cultura de qualidade no país. A própria cinematografia de Woody Allen é testemunha
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eloquente do que se pode realizar a partir dessa variedade e facilidade de acesso. Por outro lado,
as relações arbitrárias entre objetos de cultura estabelecidas nos setores de circulação e consumo
de mercadorias, que encorajam a troca rápida entre produtos igualmente válidos, reduzidos a seu
valor de troca, e a proliferação acelerada de ofertas para a manutenção de um mercado
hiperaquecido, ajudaram a transformar Nova York num laboratório da cultura pós-moderna, cuja
superficialidade eclética foi frequentemente encoberta pelas qualidades híbridas e multiculturais
que lhe foram atribuídas.
O descompasso entre as formulações interpretativas oferecidas por Alvy e o teste da
realidade já se introduz nas primeiras falas do filme: pois as duas piadas que abrem seu
monólogo, junto com a terceira que fecha a narrativa, apesar da evidente graça e da autoridade
conferida a uma delas por sua origem intelectual, com direito à nota de rodapé (Freud),
claramente são demasiadamente gerais para dar conta da totalidade de materiais mobilizados pelo
filme. Em outras palavras, sua insistência em temas abstratos tais como a impossibilidade da
comunicação ou a fragilidade das relações humanas entra em claro confronto com a
concretude dos eventos e informações que constituem o enredo (creio que o mesmo argumento
possa ser utilizado para comparar os filmes de Bergman e Allen). As questões ligadas à batalha
pela emancipação feminina ou às diferenças de classe, por exemplo, que animam diversos dos
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episódios do filme, produzem diversos tipos de excesso que não são contemplados pelas
generalizações intelectuais. A cena do jantar na família de Annie, por exemplo, ponto de
inflexão do enredo a partir do qual a relação entre os dois amantes se deteriora, tem como base
evidente não apenas diferenças “culturais” (judeus e protestantes), mas claramente questões de
classe: o falso diálogo entre os dois núcleos intensifica o tema da incomunicabilidade, enquanto
lhe dá contornos históricos mais precisos.
As lacunas entre as ideias e a vida real são tematizadas em diversos episódios: num deles
o Alvy criança rechaça a teoria do período de latência de Freud ao afirmar que nunca passou
por ele, mas é violentamente repreendido por não se adequar ao modelo teórico. Diversas vezes,
as citações eruditas são francamente postiças ou simplesmente ridículas: a desculpa dada pela
segunda mulher de Alvy para evitar sexo é que sua dor de cabeça é igual à de Oswald,
personagem de Os espectros (peça de Ibsen de 1881), enquanto que a atividade sexual bem
sucedida pode ser comparada à finalização de um romance de Balzac ou a uma “experiência
kafkiana”. O adensamento desses procedimentos os transforma numa matriz formal do filme,
que se estrutura a partir da utilização de dois elementos centrais: um deles é a introdução do
contraste entre aquilo que os personagens falam (“somos duas pessoas maduras”, “os cursos de
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extensão universitária são ótimos”, etc.) e a ação efetiva (as brigas, perseguições, etc.), numa série
de justaposições baseadas em cortes rápidos que demonstram a ineficácia das racionalizações
apresentadas. Digamos que o filme encena de maneira cômica o velho conselho de Brecht de que
devemos prestar atenção ao que as pessoas fazem e não ao que dizem se quisermos desvendar
suas verdadeiras intenções.
A outra é a introdução do tema da paranoia. A produtividade do procedimento é
anunciada no momento em que o assunto é apresentado na forma de um exercício de
interpretação: Alvy lê tanto a referência a Wagner feita por um vendedor numa loja de discos
quanto o emprego de “did you?” (que em inglês oral americano pode ser contraído para didju,
homônimo de jew, judeu) por diversas pessoas como atos claros de antissemitismo. Mais adiante
o assunto ressurgirá no momento em que Alvy fica obcecado pela teoria conspiratória contra
Kennedy e ainda quando interpreta a crise da cidade de Nova York como nova investida
antissemita. A relação entre a paranoia e o ato interpretativo aparece de modo central na
teorização freudiana: para Freud, a paranoia seria uma condição em que tudo parece ser
opressivamente significativo e na qual todos os significados compõem um sistema totalmente
integrado. Para o paranoico, que descobre correspondências secretas entre pessoas e eventos
aparentemente diversos, não há espaço para a contingência, pois nada parece ser acidental. É
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nesse sentido que devemos entender a aproximação que Freud faz entre a paranoia e a filosofia,
mas também com a ficção, cujo papel é justamente de construir padrões e estruturas a partir da
junção de materiais heterogêneos (FREUD, 1979). De certo modo, o próprio filme, como
expressão das memórias de Alvy e de suas tentativas de fazer sentido das coisas, é um ato
explícito de interpretação que procura responder a pergunta do prólogo: como algo que parecia
tão promissor pôde dar errado? Além disso, a estrutura em flashback não é mero malabarismo
formal, mas uma tentativa de enfatizar o fato de que os eventos são descritos a posteriori,
concatenados, em princípio, numa ordem que procura desvendar o segredo de tamanha variedade
de informações e materiais. Entretanto, como enfatizamos acima, todas as hipóteses e
formulações gerais carecem de acuidade, surgindo mais como floreio retórico (Balzac, Ibsen) do
que como explicação do mundo. O filme demonstra, assim, a lacuna existente no pensamento
“interpretativo” do paranoico: o fato de que a mobilização de elementos concretos da realidade
(o antissemitismo) serve a um propósito totalizante cuja chave é inteiramente arbitrária (o
vendedor de discos de Wagner, a pergunta “Did you eat?”).
Mas o filme vai além e procura localizar a origem dessa abstração: pois a obsessão de
Alvy pelo tema do antissemitismo, por exemplo, é alimentada por doses maciças e contínuas do
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filme de Marcel Ophüls – Le chagrin et la pitié (1969) – sobre a presença dos nazistas na
França. A generalização do processo é encenada na sequência em que Alvy e Annie sentam no
Central Park e tecem comentários sobre os transeuntes, comparando-os aos estereótipos da
cultura do período (um grupo de mafiosos, um casal gay, um sósia de Truman Capote, etc.). Há
certa dose de acerto nesses usos dos objetos de cultura: de fato, um dos papeis da arte é
justamente a de organizar e potencializar nosso entendimento de materiais que podem estar
dispersos na vida real. Por outro lado, pode haver um potencial analítico grande no emprego de
estereótipos numa sociedade em que tantas pessoas aderem a processos de padronização
pautados pela imitação dos clichês e modismos da cultura de massas. Entretanto, a aplicação
generalizada desse tipo de comparação, como reclama a primeira mulher de Alvy, é
necessariamente redutora, pois se cola nas aparências do mundo sem examinar suas causas
profundas. Ou, em outras palavras, em que pese o potencial revelador e emancipatório da cultura,
ela pode se transformar num fetiche e inverter a direção do movimento da análise: ao invés da
observação do mundo pautar o ato interpretativo e a formulação teórica, é essa última que se
autonomiza, subjugando o mundo e o reduzindo a uma exemplificação de seus desideratos
abstratos. A demonstração mais cabal do ato de falsificação em curso nesse processo é o caráter
compensatório da peça escrita por Alvy no final do filme, que conserta a relação entre Alvy e
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Annie, com direito a I love you no final. No entanto, tampouco esse ponto também livre de suas
contradições, pois esse final feliz pode ser visto tanto como atendimento às demandas do teatro
comercial quanto como tentativa de manter vivo o desejo e a visão de outro mundo, num
momento de derrota generalizada, nos âmbitos pessoal e político. É na interação desses dois
vetores que reside o aspecto mais propriamente auto-reflexivo do filme.
Para Alvy, a série de derrotas que o filme mapeia conflui na história do fracasso de seu
relacionamento, que ele procura em vão compreender. Se a perplexidade diante de tantos
retrocessos no campo histórico deixou apenas o campo das relações pessoais como último
refúgio, o filme mostra que a hiperinflação da intimidade, que deve compensar pelo desastre em
outras frentes, transforma a vida amorosa num fetiche e coloca nela uma responsabilidade que ela
jamais poderá atender. Falha também a tentativa de juntar as peças para descobrir, quem sabe,
sua chave secreta. Resta o “texto” composto pelo tecido das memórias. Mas a vida reduzida a um
“discurso”, como gostam de dizer os pós-estruturalistas, também é uma abstração se romper os
fios que a unem à vida. Nesse momento é útil lembrar aquilo que Frederic Jameson disse sobre a
cultura pós-moderna:
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Se você insistir nos conteúdos culturais [das novas formas de comunicação
global], penso que chegará logo à celebração pós-moderna da diferença e da
diferenciação: de repente, todas as culturas do mundo estão em contato
simpático umas com as outras em uma espécie de imenso pluralismo de que é
muito difícil não gostar. Mas além dessa celebração da diferença cultural, e em
geral intimamente relacionada com ela, está a celebração do aparecimento, na
esfera pública, das vozes de uma imensa gama de grupos, raças, gêneros, etnias,
constituindo uma quebra das estruturas que condenavam segmentos inteiros da
população mundial ao silêncio e à subalternidade, e um crescimento mundial da
democratização [...] Se, por outro lado, seus pensamentos se voltarem para a
economia e o conceito de globalização tingir-se desses códigos e significados,
você verá que o conceito torna-se mais obscuro e opaco. O que vem agora à
tona é, mais do que uma diferença, uma crescente identidade: a rápida
assimilação de mercados nacionais até então autônomos e de zonas produtivas
a uma só esfera, o desaparecimento da autossuficiência nacional, a integração
forçada de nações do mundo inteiro à nova divisão global de trabalho, [num]
quadro de padronização em nova escala inédita de integração forçada em um
sistema mundial [e a] padronização ou americanização da cultura mundial, a
destruição das diferenças locais, a massificação de todos os povos do planeta.
(JAMESON, 2001, p. 46-7)
Em outras palavras, esse é o momento em que a tensão dialética entre, de um lado, a
atenção da cultura à realidade de seu tempo e, de outro, sua tentativa de ver de outro modo e
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apontar para aquilo que pode vir a ser se dissolve e produz no campo da cultura uma série de
miragens, numa ampliação da visão do paranoico, em flagrante descompasso com a vida real. O
filme de Woody Allen procura mapear esse processo de falência do pensamento diante do teste
imposto pela matéria histórica. Se o diagnóstico de Annie Hall estiver correto, a quase totalidade
dos artistas e intelectuais do período estava dividida entre a perplexidade diante dos eventos
(presos entre o horrível e o terrível como diria Alvy) e a adesão irrestrita ao “movimento
inevitável” do mundo, inclusive no campo da esquerda. Um dos diálogos do filme registra em
chave cômica a generalidade desse processo: na festa de intelectuais da segunda esposa, ela fica
interessada nos figurões da revista Commentary, que Alvy ridiculariza ao insistir que ela deveria
se chamar Dysentery a partir de sua fusão com a revista Dissent. O episódio parece uma
diabrura de Alvy e mais um capítulo da trajetória descendente de sua relação com as mulheres,
mas na verdade a anedota tem papel simbólico importante dentro desse quadro geral, pois ambas
as revistas foram fundadas no período do pós-guerra em Nova York para dar voz aos intelectuais
da esquerda anti-Stalinista, passando do ataque ao comunismo à defesa dos valores da direita
conservadora em meados dos anos 70.
Mas a entrada na batalha discursiva em torno da definição e usos da cultura ainda não
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estava decidida. O crítico inglês Raymond Williams insistia no fato de que a alfabetização da
classe operária inglesa para a leitura da bíblia não impedia que essas pessoas, uma vez de posse do
conhecimento, passassem a ler jornais radicais. No filme a figura de Annie Hall surge como
índice apequenado e contraditório, mas ainda assim com algum vigor, da resistência aos
movimentos de enquadramento a que a cultura submete a vida social. Não se trata de vitória (ela
tenta uma mal sucedida carreira na música pop) – os meados dos anos 70 não pareciam encorajar
tantas esperanças – mas de um descompasso entre aquilo que está sendo planejado (por Alvy
neste caso) e as possibilidades que se criam efetivamente (a relativa independência, determinação
ou segurança intelectual). Nesse sentido, Annie Hall é Woody Allen: nada está garantido, mas
nem tampouco inteiramente determinado. Pois, o novo nível global de integração do mercado
cultural abriu algumas possibilidades: no caso do cinema americano no momento da filmagem de
Annie Hall, ele criou tanto a adoção cosmética de formas e temas do cinema de qualidade
mundial, descontextualizados e reduzidos a floreios retóricos, como uma internacionalização da
inteligência e uma possibilidade da avalição crítica e criteriosa do repertório artístico desenvolvido
pelos movimentos revolucionários dos anos 60. São essas lacunas e contradições da indústria
cultural que animam o cinema de Woody Allen.
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Já a ênfase nas relações amorosas que o filme efetua pode ser vista tanto como crítica à
figura do intelectual, que abandona tudo para se concentrar em sua intimidade, como estratégia
de sobrevivência dentro de um quadro periclitante de censura ideológica e avanço da
padronização industrial da cultura. Nesse sentido, o filme mapeia outro descompasso, desta vez
mais produtivo: pois a ênfase na curva dramática em torno do romance entre os protagonistas
desloca para as margens, mas não apaga, uma variedade de materiais que não se submetem à sua
dominação. Dessa perspectiva, Annie Hall também faz um aproveitamento da nova tradição de
humor à qual Woody Allen se filiou. O contraexemplo aparece no próprio filme, no momento
em que Alvy visita o escritório de um agente e é obrigado a assistir a um patético comediante da
velha escola para quem ele deveria escrever piadas: enquanto a antiga tradição se pauta tanto pelo
emprego de estereótipos (sogras, amantes francesas, maridos traídos, etc.) quanto pelo uso de oneliners (uma única linha final que resume em si o conteúdo geral da anedota), a nova geração iria
“aproximar a comédia da vida” (ZOGLIN b, 2008, p. 5) ao construí-la a partir de uma série de
observações a respeito de eventos cotidianos e notícias de todos os tipos, ampliando
enormemente o escopo e alcance da análise. Além disso, a posição relativamente periférica em
relação ao principal circuito teatral (em torno da Broadway) permitiu que os jovens comediantes
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tivessem mais liberdade criativa e passassem a escrever seus próprios materiais, o que possibilitou
uma enorme expansão dos meios de expressão. Na qualidade de filme-síntese desses
desenvolvimentos, Annie Hall surge como ele próprio um índice de resistência estratégica, em
que exigências comerciais e cognitivas disputam espaço para manter vivo, ainda mais uma vez, o
espírito crítico.
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