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Huguenotes em Utopia ou o gênero utópico
e a Reforma (séculos XVI-XVIII)
Frank Lestringant
Universidade de Paris-Sorbonne
Tradução de Ana C. R. Ribeiro
Resumo
Ao longo de sua história, os reformados franceses mantiveram com o
gênero utópico uma relação privilegiada e particularmente fecunda. Recuando
no tempo, antes da “primeira” utopia em língua francesa, Histoire du grand et
admirable royaume d’Antangil, de 1616, que é também uma utopia protestante, a
investigação remonta a Rabelais e às suas seqüelas calvinistas, a Palissy e ao seu
jardim sonhado, ao engenheiro saboiano Jacques Perret e às suas cidades ideais
fortificadas pelos salmos. Ela estende-se em seguida ao tempo da Revogação e
às vésperas do Iluminismo, com as três grandes “utopias narrativas” de Gabriel
de Foigny, de Denis Veiras d’Alès et de Tyssot de Patot. A investigação leva
também em consideração as contra-utopias satíricas, quer se trate da Ilha sonante
e de La Mappe-Monde nouvelle papistique dos anos 1560 ou, muito mais tarde, no
termo do processo, da fantástica Description de l’Ile Formosa do suposto George
Psalmanaazaar.
Palavras-chave
Utopia, Contra-Utopia, Reforma, Contra-Reforma, Huguenotes.
Frank Lestringant é professor de literatura francesa do Renascimento na Universidade de
Paris IV-Sorbonne. Publicou cerca de trinta obras, das quais: Le Huguenot e le sauvage,
Klincksieck, 1990 ; L’Atelier du cosmographe ou l’image du monde à la Renaisssance,
Albin Michel, 1991; Le Cannibale, grandeur et décadence, Perrin, 1994; L’Expérience
huguenote au Nouveau Monde (XVIe siècle), Droz, 1996; Une sainte horreur, ou le
voyage en Eucharistie (XVIe-XVIIIe siècles), PUF, 1996; Le Livre des îles : atlas et récits
insulaires, de la Genèse à Jules Verne, Droz, 2002 ; Sous la leçon des vents, PUPS, 2003.
FRANK LESTRINGANT
1. Utopia e Reforma1
1
Sob este título, uma versão
reduzida do presente estudo
foi publicada no catálogo da
exposição Utopie. La quête
de la société idéale (SCHAER,
R., CLAEYS, G.,
SARGENT, L.T., 2000).
2
Sobre as relações entre
Reforma, utopia e revolução
social, a documentação é
imensa. Ver em particular
NIPPERDEY (1975),
FRIESEN (1974 e 1990).
Uma vasta gama dos textos
de Thomas Müntzer foi
vertida em francês por Joël
LEFEBVRE (1982).
Ver Frank LESTRINGANT
(1991 e 2004).
3
4
Sobre essa distinção, ver
Jean-Michel RACAULT
(1991, p. 7-19).
140
A forte dimensão utópica da Reforma já foi muitas vezes
ressaltada. Se a utopia, como quer Karl Mannheim (1956), deve ser
considerada uma atitude mental permanente, uma força dinâmica de
contestação, combatendo o estatismo da ideologia e dos aparelhos, então
a Reforma em seus primórdios é autenticamente utópica. Ela abala da
base ao ápice a Igreja instituída. Ela livra a consciência individual do
dever de obediência. Em seu setor mais radical, a Reforma termina na
revolução social com a guerra dos Camponeses fomentada por Thomas
Müntzer em 1524-1525 e, dez anos mais tarde, com a instauração da
Jerusalém anabatista em Münster, na Westfália2.
A reivindicação do Evangelho, exigência ao mesmo tempo
religiosa e social, é em si um slogan utópico. Em seu retorno à Palavra,
a Reforma de Lutero proclama o acesso direto de todos à salvação, sem
passar pelas obras, nem pela tutela de um clero considerado como uma
classe parasita. Logo de início a reivindicação do Evangelho, essa palavra
de ordem que esconde uma grande variedade de valores religiosos e
uma gama ainda maior de interpretações e de conseqüências no plano
prático, é um tema mobilizador, pois reconcilia o espiritual e o temporal,
proclamando aqui e agora a libertação não dos mandamentos, mas do
estado servil no qual nobreza e clero mantinham abusivamente o povo
(WIRTH, 1981, p. 49 e LIENHARD, 1983).
O potencial utópico da Reforma se manifesta em particular
no calvinismo, que, em nome da liberdade de consciência, preconiza a
resistência passiva ao invés da coerção, a fuga e o exílio, quando essa
resistência não é mais possível, e mesmo o martírio quando, nos anos
1550, as fogueiras se acendem na França e, quase espontaneamente,
homens, mulheres, velhos e crianças nelas se precipitam à porfia para
testemunhar ao mundo uma verdade literalmente flamejante3.
Utopia e Reforma: esses dois termos formam, hoje, um
binômio indissociável, tanto é verdade que ao proclamar a liberdade
de consciência e, em certos casos de opressão patente, o dever de
revolta, a Reforma não apenas inovou, mas subverteu a relação
tradicional com as autoridades, quaisquer fossem elas - políticas,
eclesiásticas, intelectuais ou simplesmente livrescas. Propor-nosemos aqui, mais modestamente e de maneira mais limitada, a mostrar
como, no decorrer de sua história movimentada, os reformados
franceses mantiveram com o gênero utópico uma relação privilegiada
e particularmente fecunda.
Convém aqui distinguir entre a utopia-modo e a utopia-gênero4.
A utopia-modo é um estado de espírito, um regime de pensamento, uma
projeção da humanidade em direção ao futuro. A utopia-gênero, por sua
vez, possui um sentido muito mais preciso. Ela pertence ao campo da
história literária e aparece desde o início como um objeto rigorosamente
codificado.
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
Nessa segunda acepção, claramente mais restrita, a utopia tem
origem grega, mas seu nome de batismo não é anterior à Utopia de
Thomas More, publicada em 1516. Utopia é um substantivo próprio,
o da ilha descoberta por Raphaël Hythloday, o “contador de lorotas”.
Por antonomásia, Utopia tornar-se-á utopia, mas serão necessários quase
dois séculos para que se opere o desdobramento do substantivo próprio
em substantivo comum. Esse substantivo comum será atestado na
França apenas na tardia data de 1710, em atraso em relação à Inglaterra
(RACAULT, 1991, p. 13).
Thomas More não é, nem de longe, um reformado. Ele
terminará como mártir da Contra-Reforma e santo católico, vítima
de seu devotamento ao poderio espiritual face ao golpe de força de
Henrique VIII, auto-proclamado chefe da Igreja da Inglaterra. Mas,
é um humanista, um amigo de Erasmo, imbuído, como ele, da filosofia de
Platão e das lições de Plutarco. Sua Utopia lembra a República e as Leis,
sem esquecer o Timeu e o Crítias, em que é narrado o mito da Atlântida.
Thomas More encontra-se portanto entre dois sistemas de pensamento
e na linha de ruptura que bruscamente separa duas ortodoxias rivais.
A atitude de ironia e de distância crítica que caracteriza sua obra mais
conhecida resolveu-se na sua existência da maneira mais trágica. Depois
dele Rabelais, Barthélemy Aneau, que escreve um prefácio para a edição
francesa da Utopia (MORE, 1559) morre assassinado5, mais tarde ainda
Campanella, que se submeterá à questão e passará a metade de seus
dias na prisão, tantos outros utopistas, enfim, viverão a mesma situação
desconfortável e arriscada de estar entre essas duas opções.
A Reforma logo recorre à utopia-gênero como a um de seus meios
de expressão privilegiados. A utopia lhe abre, com efeito, um espaço de
pensamento e de especulação em que ela pode ao mesmo tempo denunciar
sob uma forma alegórica a impostura do poderio espiritual e esboçar um
programa. Sabe-se que a palavra “utopia” tem duas etimologias possíveis,
de nenhum modo indiferentes, que modificam seu sentido final. Ou o
u- de utopia é o prefixo privativo - a utopia então é exatamente um
não-lugar - ou ainda é o prefixo melhorativo eu-. A utopia, nesse caso,
é o “lugar-onde-tudo-está-bem”. Deliberadamente, More aproveitou-se
dessa ambigüidade, privilegiando a primeira hipótese.
Na descrição de sua ilha ideal, More proclama uma dupla recusa,
que será constitutiva das utopias vindouras: a recusa da sociedade
existente, da qual a sociedade dos utopianos constitui o inverso, um
inverso tão viável e infinitamente mais razoável que o pretendido mundo
real; a recusa da Natureza que as leis utópicas, precisas, minuciosíssimas
e traindo obsessivamente seu espírito de geometria, retificam, controlam
e corrigem. A adaptação reformada da utopia-gênero encontra essas
duas recusas, que ela conjuga em proporções variáveis: recusa da ordem
papista; recusa visceral de um corpo idolátrico que a religião católica
exibe com uma indecência manifesta no centro de seus santuários e em
seu ritual.
Sobre as circunstâncias deste
assassinato, ver HAAG, 1846,
t. I e FONTAINE, 1996.
5
141
FRANK LESTRINGANT
2. Utopia e declamação
6
Ver DANDREY (1997),
no qual um capítulo é dedicado
a “Montaigne paradoxal”,
p. 137-173.
7
Sobre o bom uso da
declamação, ver QUIGNARD
(1990), em que 53 causas
fictícias conduzem a 53
romances tão rigorosamente
lógicos quanto inverossímeis.
Ver principalmente
TOURNON (1983, p. 203228). Todas as referências
a Montaigne remetem à
edição P. Villey dos Essais
(1965) [Usamos neste artigo
a tradução em português
de Sérgio Milliet, 1972 in:
MONTAIGNE, 1972
(N. da T.)].
8
9
Ver sobre esse ponto
LAFOND (1984, p. 736).
Sobre a relação da Servitude
com “Des Cannibales”, ver
LESTRINGANT (1994a,
ch. VIII, p. 181-183).
10
Todas as citações foram
traduzidas por mim, salvo
indicação (N. da T.).
142
A utopia-gênero liga-se, desde a Utopia de Thomas More que lhe
dá seu nome e a funda, ao gênero da declamação, ilustrado anteriormente
por Erasmo em seu Elogio da loucura. A declamação, no sentido retórico
do termo, é um exercício. Exercício de palavra e de pensamento. Termo
ao mesmo tempo mais amplo e mais técnico do que “paradoxo”6,
a “declamação” designa o exercício de desenvolvimento oratório sobre
um tema dado que os mestres de retórica recomendavam para a
formação ou o treinamento do orador. “O ‘real irreal’, tal era o objeto
psicológico, judiciário e retórico” do declamador. Lei e causa fictícias
levando a um procedimento fictício: recentemente, o escritor Pascal
Quignard mostrou pelo exemplo parcialmente inventado por Albucius
a que romances “estupefacientes” e surrealistas avant la lettre podia
conduzir tal exercício7.
De Erasmo a Montaigne8 e da afirmação do humanismo à sua
crise, a declamação conhece uma voga indiscutível na literatura européia
do Renascimento. O Elogio da Loucura, que Erasmo coloca dentre as
suas “declamações”, fixa seu tom e suas regras. Em Rabelais, o elogio das
dívidas por Panurge, no início do Terceiro Livro, e, ao final do mesmo
volume, o elogio da erva chamada Pantagruelion, são declamações
dotadas de todas as formalidades prescritas pela regra. Mais adiante
no século, é nessa tradição que Montaigne situa o Discurso da servidão
voluntária de seu amigo La Boétie: “Escreveu-o La Boétie em sua
adolescência, a fim de se exercitar em favor da liberdade e contra a
tirania” (MONTAIGNE, 1972, I, 28, p. 95)9. E Montaigne acrescenta
esta precisão capital: “Não ponho em dúvida que La Boétie pensasse o
que escrevia, pois era demasiado consciencioso para mentir, mesmo em
se divertindo” (ibid., p. 101). O jogo da declamação merece ser levado
a sério. Ficção nem sempre é mentira. Na utopia, igualmente, não se
brinca, ou apenas aparentemente.
Vários dos capítulos ou fragmentos de capítulos dos Ensaios de
Montaigne constituem-se em declamação. O exemplo mais célebre é,
sem dúvida, “Dos Canibais” (I, 31), apologia dos antropófagos livres do
Brasil, que revivem a idade do ouro dos antigos e a república ideal sonhada
por Platão e Plutarco. Em sua declamação, “as duas noções essenciais,
que estão ligadas, são as de exercício e de ficção” (CHOMARAT, 1981,
t. II, p. 935)10. A declamação se define, além disso, por sua total liberdade,
que faz dela o instrumento privilegiado para uma reflexão moral sem
preconceito. Desembaraçada das contingências históricas, isenta de
qualquer dogmatismo, assim como de qualquer finalidade didática,
ela afeta “certo desapego da realidade imediata para melhor considerá-la
e avaliá-la” (ibid., p. 940).
Uma terra afastada e pouco freqüentada é o local ideal para
situar a declamação, e a Utopia se lembrará disso. No Elogio de Erasmo,
a Loucura não confessa ter nascido nas Ilhas Fortunadas, onde tudo
cresce em abundância sem semeadura nem trabalho (1991, p. 117),
pois “a natureza não tem necessidade alguma da arte” (1979, p. 13) onde,
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
além disso, se ignora, como no Brasil de Montaigne, o trabalho, a velhice
e a doença? Esse recuo e essa distância, eventualmente tingidos de ironia,
encontram no capítulo I, 31 dos Ensaios o afastamento geográfico dos
Canibais, apartados até as antípodas.
O autor permanece presente sob a máscara, mesmo se é difícil
medir seu grau de adesão a cada um dos argumentos enunciados
(LAFOND, 1984, p. 740). Na declamação, o ponto de vista é móvel,
a identidade do locutor, constantemente fugaz. Trata-se de um “ensaio”
no sentido estrito do termo, exercício de pensamento sem fronteiras e
sem rédeas, experimentação ao mesmo tempo lúdica e rigorosa de uma
árdua liberdade.
A utopia como declamação vincula-se, portanto, à definição que
Raymond Ruyer propôs da utopia-gênero: “uma experiência mental
sobre os possíveis laterais” (RUYER, 1950, p. 9). Em outros termos,
uma experiência sem riscos físicos, mas não sem perigo, uma viagem
aventurosa para o espírito, mas sem molhar os pés. É o argumento
publicitário favorito dos autores de enciclopédias ou de relatos
longínquos, que encontramos, por exemplo, sob a pluma de André
Thevet, cosmógrafo dos reis da França, no início de seu Grand Insulaire
et Pilotage, composto por volta de 1588: “a realidade vos é aqui exibida
com tamanha fidelidade que sem molhar vossos pés, em vosso gabinete,
podereis conhecer os mais belos e notáveis segredos da marinha, da arte
de navegar e da pilotagem” (1588, f. 6 rº).
More, Erasmo, Rabelais, Montaigne: nenhum desses autores de
“declamações” - aos quais podemos acrescentar o nome de Barthélemy
Aneau, autor do prefácio da Utopia e autor de Alector, “história fabulosa”
e quase-utopia (1996) - deu o passo que separa a religião tradicional da
Reforma; nenhum deles converteu a crítica social e filosófica em ruptura
e em revolta. Tal atitude é reveladora da “esquizofrenia intelectual”
da qual falou Claude Lévi-Strauss a propósito de Montaigne (1991,
p. 290). Conservadorismo por fora e audácia intelectual por dentro;
conformismo exterior e liberdade no foro íntimo. Esse estado de espírito
instável, desconfortável sob muitos aspectos, é característico da utopiagênero, pelo menos durante a época clássica. Não se trata somente de
uma forma de resistência à censura e à intolerância, ou de uma maneira
de preservar um espaço de livre pensamento protegido dos aparelhos
da Igreja e do Estado, cuja força de opressão é cada vez mais sensível
durante o período. Mais profundamente, a utopia, como a declamação
que a engloba no início, permite superar o divórcio que reina entre
conhecimento e ação, entre ideal e realidade. Ela é um pensamento, não
do limiar, o que deixaria aberto um futuro metafísico, que de todas as
maneiras está trancado, mas da borda. Não é de se espantar que esse
pensamento da borda surja, não do coração da Reforma a partir do
momento em que ela se institucionaliza, mas de suas margens. Margens
interiores e radicais, no caso da guerra dos Camponeses e da Münster
anabatista de 1535; margens exteriores, onde se tecem, de More a
Montaigne e no recuo aparente da consciência humanista sobre si,
os motivos infinitamente variados da declamação.
143
FRANK LESTRINGANT
3. A utopia no insulário do Renascimento
Com a utopia, a declamação encontra a topografia, ou seja,
o mapa em grande escala, e mais exatamente a topografia insular,
que constitui um tipo de gênero à parte na disciplina geográfica.
Publicam-se, do século XVI ao XVIII, sobretudo em Veneza, atlas
exclusivamente compostos de mapas de ilhas, chamados de Isolarii ou
Insulários.
A Utopia de Thomas More, segundo certos historiadores, deveria
ser colocada em relação com as descobertas portuguesas. Thomas More
leu não somente as Quatuor navigationes de Amerigo Vespucci, mas
também o Itinerarium Portugallensium, compilação impressa em Milão
em 1508 e que continha, entre outros, os relatos das viagens de Ca’ da
Mosto, Vasco de Gama e Cabral. A Utopia seria indiana, tomando
emprestado da Índia o culto dos astros, a proibição do regime carnívoro,
os funerais alegres com incineração do cadáver, a coexistência pacífica de
várias religiões, o sistema de castas (MATOS, 1991, cap. VIII “L’Utopie
de Thomas More et l’expansion portugaise”, p. 383-422). Pouco importa,
para dizer a verdade. O essencial é que a Utopia é parte integrante
do arquipélago universal, tal como as grandes navegações acabam de
revelá-lo à Europa.
Ora esse mundo recentemente ampliado é um mundo
fragmentado, reduzido a migalhas, um mundo em arquipélago. Não por
acaso a Utopia é uma ilha. A ilha aparece como o elemento privilegiado
de uma geografia maleável, cuja forma e desenho são indefinidamente
reconstruíveis em função de projetos políticos particulares. A inconstância
da ilha, sua inaptidão congênita a ancorar-se de maneira durável em um
ponto determinado do mapa-múndi servem aos interesses divergentes
de potências coloniais rivais. O exemplo das Molucas, simultaneamente
reivindicadas pela Espanha e por Portugal, em virtude do tratado de
Tordesilhas, é particularmente esclarecedor. Em uma época em que o
cálculo das longitudes, por falta de instrumentos, é incerto, os cartógrafos
que servem esses dois monarcas vão deslocar, segundo a vontade de seus
respectivos mestres, o arquipélago inteiro de um lado ou de outro do
famoso meridiano de divisão das duas metades do mundo.
Definitivamente essas manipulações insulares só fazem desenvolver
as possibilidades latentes do sistema de representação cartográfica herdado
dos portulanos. Graças ao rosário de ilhas que a obstrui, a extensão
oceânica se presta a uma cabotagem imaginária, onde o conhecimento
ganha terreno pouco a pouco, sem que nunca se perca de vista a referência
familiar de um cabo ou de um recife. A ilha é instantaneamente visível
e passível de ser tomada ao ser avistada do navio que por ela passa. A
multiplicação das ilhas permite ampliar à totalidade do globo o benefício
dessa tomada parcial, progressiva e logo total. Assim, segundo o chanceler
Francis Bacon, avançou o progresso do conhecimento (1991).
A era dos Grandes Descobrimentos viu primeiramente
multiplicarem-se as ilhas: ilhas do Cabo Verde, São Tomé, Quiloa,
144
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
Mombasa, Zanzibar, Goa, na rota oriental das especiarias; arquipélago
das Antilhas e das Bahamas onde abordou Colombo, Terra Nova de
Cabot e Cartier, e também o Peru, o Brasil e a Califórnia, reputados
insulares por muito tempo, e a América que figura em vários Isolarii como
a maior ilha do mundo. As primeiras viagens transoceânicas tiveram por
resultado reduzir a migalhas a imagem da terra, outrora reduzida a um
ecúmeno monolítico. Serão necessárias décadas para que, de norte a sul,
seja reconstituída a unidade do continente americano. Anteriormente,
os sucessivos navegadores - Colombo, Vespucci, Verrazano, Cartier
- haviam procurado em vão, desde o estuário do Saint-Laurent até o
estreito de Magalhães, a solução da continuidade que permitiria, além
do acesso direto aos reinos do Oriente, uma ruptura na cadeia de ilhas
da barreira litorânea que se opunha aos seus esforços.
A unidade do Ocidente cristão rompe-se, cedendo lugar a um
arquipélago confessional particularmente emaranhado na Alemanha e na
Suíça dos inícios da Reforma, ou no sul da França. Esse desmembramento
do corpo da Igreja universal se produz em um momento em que o mundo
geográfico também perdera sua unidade e seus limites tradicionais.
Desde então, observa-se um tipo de convergência formal entre esses
dois fenômenos de desmantelamento. Os novos espaços poderão servir
de suporte alegórico à nova fragmentação das crenças e das Igrejas. Em
vários lugares se desenvolverá, por vias diversas, mas concomitantes,
uma experiência inaudita da alteridade. Uma das questões que coloca
o arquipélago utópico, seja ele exótico ou religioso, é a seguinte: como
apreender o outro e, se for o caso, viver com ele? É possível que haja
povos nus vivendo sem fé, sem lei, sem rei? Como é possível ser papista?
Ou supostamente reformado? Essas interrogações terminarão por se
juntar e logo se constituirão em apenas uma interrogação.
O antigo mapa-múndi já oferecia vastas possibilidades de
alegorização desses problemas. Tramado com símbolos, ele servia de
enquadramento de exposição a uma história teológica, com o Paraíso
terrestre no oriente, a entrada do Purgatório na Irlanda, as montanhas
de Gog e Magog no setentrião. Lembremo-nos das viagens de São
Brandão no mar ocidental e das ilhas fabulosas do imaginário medieval.
Mas com a imagem do mundo que surge no limiar do século XVI,
descobre-se um suporte mais rico e mais complexo, seguramente menos
legível. Nesse novo espaço, a utopia como eutopia ou lugar ideal, poderá
avizinhar contra-utopias, ilhas ou regiões repulsivas, que agravarão,
ao invés de corrigir, os defeitos e os vícios da sociedade de referência.
Esse arquipélago dos novos mares promoverá desenvolvimentos
inéditos da sátira, permitindo reificar ou mesmo petrificar os povos,
os grupos, as seitas ou as confissões que se quer desacreditar. Na odisséia
que descrevem os Quarto e Quinto Livros de Rabelais, quase não provoca
espanto encontrar a ilha dos Papafigas e frente a ela, após um dia de
navegação serena, a dos Papimanos.
145
FRANK LESTRINGANT
4. Utopias de Rabelais: de Thélème à Ilha Sonante
11
O comentário mais completo
é o de AUERBACH, 1968,
ch. XI, p. 267-286.
12
Sobre este capítulo ver
CAVE, 1988.
146
O mundo de Rabelais é móvel e pleno de surpresas, à semelhança
da geografia de sua época. A ilustração mais conhecida do mundo instável
da nova cosmografia se encontra no capítulo XXXII do Pantagruel,
intitulado “De Como Pantagruel Com a Sua Língua Cobriu Todo um
Exército, e o Que o Autor Viu Dentro da Sua Boca”. O episódio lembra a
História verdadeira de Luciano de Samos. Em Luciano, o herói descobre
na boca de um monstro marinho um novo mundo com montanhas,
florestas, um templo, uma fonte, vinhedos. Mas pela descoberta inesperada
do “novo mundo” na boca do gigante e pela lição de relativismo que ele
sugere, Rabelais liga a atualidade imediata das Grandes Descobertas a
um tema folclórico já explorado nas anônimas Chroniques gargantuines11.
O macrocosmo alargado por Colombo e Magalhães se inverte no
microcosmo de um corpo desmedidamente ampliado.
O “outro mundo” que está na boca de Pantagruel não é exatamente
um mundo inverso, mesmo que nele se ganhe a vida dormindo. É
também, e ao mesmo tempo, a repetição ou o prolongamento, como
se queira, do mundo “deste lado”. “Ele tem grande semelhança com
este” (AUERBACH, 1968, p. 273): nele se plantam repolhos para viver,
nele se morre de peste. No entanto, afligida por uma maleabilidade
constitutiva, essa estrutura elástica que varia e se metamorfoseia ao longo
das réplicas e da progressão do viajante - no caso “o autor” Alcofribas
Nasier, anagrama de François Rabelais - representa o não-lugar ideal
onde colocar o tema da relatividade dos conhecimentos.
A obra de Rabelais mantém inúmeras relações com a Utopia de
Thomas More. Badebec, mulher de Gargântua e mãe de Pantagruel,
é “filha do Rei dos Amaurotas em Utopia” (1991, segundo livro, cap.
II, p. 278). Pantagruel é chefe dos utopianos. O próprio Rabelais
concebeu sua utopia: a abadia de Thélème é uma Utopia de interior
situada na Touraine, “até o rio Loire, a duas léguas da grande floresta
de Port Huault” (1991, primeiro livro, cap. LII, p. 244). Mas Thélème
evoca menos uma república do que um convento. É, em verdade, um
monastério de um novo tipo cuja única regra é “Faze o que quiseres”,
como deixava prever o sentido da palavra grega télémé, “vontade”.
Mais convincente e mais rica é a comparação com o arquipélago
alegórico dos últimos livros de Pantagruel. O mundo instável do primeiro
Pantagruel e do Gargântua tende então a imobilizar-se, como as palavras
geladas do mar Glacial. Ao contrário do mundo em expansão inicial, as
ilhas são fechadas sobre si mesmas, sem boca e sem orifícios. A mais
evocativa nesse sentido é a ilha “admirável” de mestre Gaster, “primeiro
mestre das artes do mundo”, que se assemelha ao rochedo de Virtude
descrito por Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias. Suas entradas são quase
inacessíveis, seus declives rochosos e abruptos como os do monte Aiguille
no Dauphiné, mas em seu topo e no interior, é um lugar “tão agradável,
tão fértil, tão salubre e delicioso, que pensei estar no verdadeiro jardim
do paraíso terrestre” (1991, quarto livro, cap. LVII, p. 209)12.
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
O estranho mundo da ilha Sonante, primeira escala da navegação
de Quinto Livro, é um mundo de sinos, que são também caldeirões,
frigideiras e panelas onde está cozinhando a sopa gordurosa do Papa,
em uma equivalência que manifesta no mesmo ano de 1562 uma gravura
satírica de inspiração protestante, Le Renversement de la grand marmite:
um sino revirado, rachado e transbordante de sopa, onde nadam mitras
e crossas, ferve sobre um fogo alimentado pelo corpo de três mártires
reformados. Surgida do céu, a Verdade armada com o gládio dos Santos
Evangelhos entorna tudo13.
O antimundo da ilha Sonante, povoada de pássaros chamados
Clerigôs, Bispogôs, Cardinagôs e Papagôs denuncia de uma só vez
a hierarquia eclesiástica, as ordens novas, as ordens de cavalaria - suas
comendadorias ou “gulodices” (RABELAIS, 1991, quinto livro, cap. V) -,
a avidez, a glutonaria, a preguiça e a luxúria que reinam na corte do papa.
É o receptáculo de todos os resíduos de nosso mundo, o desaguadouro
onde a pobreza e a indigência rejeitam seu excesso de crianças, a saber,
os mais vis e desgraçados dentre eles, os “corcundas, caolhos, coxos,
manetas, gotosos, disformes, e desajeitados”, ou, como o resume a fórmula
homérica, “peso inútil da terra”. Uma alusão é introduzida à Reforma
conquistadora, presságio da derrota: “Depois de certos eclipses revoou
um grande número, por virtude das constelações celestes” (ibid., cap. IV,
p. 260-263).
A ilha Sonante figura também como mundo dos mortos, um
mundo estéril e sem geração, sem cultura e sem renovação, um mundo
que somente cresce com a destruição do outro. É aí que reina a tirania
do Papa, que queima, golpeia, fulmina, extermina. “Se uma vez ele vos
ouvir assim blasfemando estareis perdidos, boa gente; vedes lá dentro
da gaiola uma bacia? De lá sairão raios, trovoadas, relâmpagos, diabos e
tempestades, pelos quais em um momento estareis a cem pés sob a terra
abismados” (ibid., cap. VIII, p. 273).
Esse mundo invertido, que é também um mundo dos mortos,
esse mundo pervertido, que é ao mesmo tempo um mundo infernal,
que assusta ao invés de fazer rir, se encontra alguns anos mais tarde exatamente um lustre - em uma grande ficção cartográfica protestante
publicada em Genebra e intitulada La Mappe-Monde nouvelle papistique.
Essa ficção, que tem por autores o italiano Jean-Baptiste Trento14 e o
francês Pierre Eskrich (1567), comporta um texto ou Histoire e um
mapa de vastas dimensões ou Mappe-Monde15. A Histoire se distribui em
capítulos e rubricas, efetuando o cadastro de um novo mundo análogo em
todos os pontos àquele que os reis da Espanha e de Portugal descobriram
e conquistaram além-mar. Ora, nesse mapa, este “outro mundo” é em
realidade a cidade de Roma, cuja “muralha” - o muro de Aureliano,
incluindo a pirâmide de Caius Cestius - é perfeitamente reconhecível.
Este Novo Mapa-Múndi constitui uma alegoria cosmográfica da Igreja
católica, assim como a ilha Sonante. E como a ilha Sonante, esse mundo
novo e “monstr[u]oso”- termos praticamente equivalentes (RABELAIS,
1991, quinto livro, cap. III)16 - é colocado no Inferno, no caso, na boca
13
Paris, BnF, Estampes,
Qb 1 (1585). Xilogravura
colorida, 370 x 475 mm.
Sobre este documento ver
BENEDICT (1994-1995)
e LESTRINGANT (1996a).
Sobre este personagem ver
PREDA (1999).
14
15
Enquanto existem dezenas
de exemplares da Histoire, o
Mappe-Monde propriamente
dito subsiste hoje em apenas
três exemplares. Eu consultei o
da British Library, catalogado
como c.160.c.7. Mme Krystyna
Szykula teve a gentileza de me
conceder uma reprodução do
exemplar, montado e colorido,
conservado na Biblioteca da
Universidade de Wroclaw, na
Polonha. Um terceiro exemplar
foi localizado no castelomuseu de Sondershausen, na
Alemanha, por WAHRMAN
(1991, p. 188, nota 4). Este
exemplar também é colorido.
Os dois exemplares presentes
em Berlim antes da guerra
parecem ter sido perdidos.
Cf. LESTRINGANT
(1990a e 1998).
16
O jogo de palavras se perde
na tradução, pois em “monstr[u]
eux” há, além de “monstro”, o
pronome “eles”: “monstr[u]eles”
(N. da T.).
147
FRANK LESTRINGANT
do diabo desmesuradamente ampliada. O filho da perdição, identificado
pelos protestantes com o papa, não será, nos últimos tempos, vomitado
pela boca do Inferno, segundo a advertência do apóstolo Paulo
(II Tessalonicenses 2, 1-12), que ilustra de maneira impressionante uma
xilogravura de Lucas Cranach, de inspiração luterana17? Por isso Roma,
sede do Anticristo, é aqui logicamente situada, entre vômito e ingestão,
na boca de Satanás.
A cidade de Roma se inscreve no oval voraz dos lábios do diabo, que
formam os contornos do Mapa-Múndi. É, portanto, como a ilha Sonante,
o outro mundo nas duas acepções do termo, cosmográfica e escatológica,
um novo mundo e o mundo do além que convergem aqui em um fim do
mundo iminente. Armados de bíblias e de fundas, os reformadores se
mobilizam para saquear a Cidade Eterna menos de quarenta anos depois
do saque histórico de 1527. Eles são em número de vinte e quatro, como
os anciãos do Apocalipse, e reconhecemos dentre eles Lutero, Zwingli,
Bullinger, Ecolampádio, Calvino e Théodore de Bèze. Os canhões da
“Palavra de Deus” apontados nas trincheiras e os exércitos vindos do
norte da Europa reforçam de maneira eficaz seus esforços. Este novo
mundo que o papa, assim como o espanhol, conquistou pela violência e
pela astúcia queimando, destruindo, subjugando tudo, está condenado a
desaparecer nas entranhas do Inferno - de onde ele saiu. Vemos que cores
escuras ornam essa criação satírica excepcional que lembra Rabelais.
A ficção de um mapa romano - Mappe Romaine - será retomada
no século seguinte pelo inglês Thomas Taylor (1623), para servir de
frontispício a cinco tratados polêmicos descrevendo respectivamente a
fornalha romana, segundo Daniel 3, 22, o Edom romano, segundo Amos
1, 11, o passarinheiro romano, segundo o salmo 124, 7, a concepção
romana, segundo o salmo 7, 15-17, e por fim o regozijo, no céu, da Igreja
verdadeira. O mapa, porém, a partir de agora, quase não existe mais.
Reduz-se a um espaço compartimentado destinado a reunir diversas
alegorias satíricas visando o papado, e não mais a imagem de horror de
uma geografia demoníaca.
5. As utopias da Reforma combatente:
Bernard Palissy, Jacques Perret, Le Royaume d’Antangil
A utopia no jardim: a Recette véritable de Bernard Palissy
17
Sobre essa imagem do
Papa-Anticristo,
ver meu livro 1991, p. 18.
148
A aparentemente mil léguas desse arquipélago infernal, Bernard
Palissy, oleiro e “inventor dos rústicos figulinos do rei”, desenha um jardim
de sonho, que é também uma construção utópica de forte conotação
religiosa. Palissy encontrou seus modelos junto aos italianos Alberti e
Serlio, sem esquecer Francesco Colonna, o autor do Songe de Poliphile.
Ele soube tirar proveito da mediação de seus êmulos e adaptadores
franceses, Androuet du Cerceau e Philibert de l’Orme.
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
Palissy não é antes de tudo um escritor; é um artesão, um
mécanique, como se dizia então, que trabalha com suas mãos e ganha seu
alimento com o suor de seu rosto. O conhecimento que tem da terra não
é tirado dos livros - ele diz e repete isso em todos os modos - provém
de sua arte, “a arte da terra”, que é a arte do oleiro e a do fabricante de
faiança. A jardinagem é o prolongamento natural e quase inevitável de
seu ofício. Buscar as argilas e os barros mais convenientes para produzir
suas cerâmicas esmaltadas não é uma atividade em si muito diferente das
do jardineiro e do agrônomo, que se aplicam para encontrar os melhores
solos e as exposições mais favoráveis para tal ou tal cultivo.
Para Palissy, o Édem será o ponto de referência obrigatório de sua
atividade, o ponto de partida e o início de uma meditação em forma de
passeio em um jardim de sonho, o “modelo”, como ele mesmo diz, desse
jardim imaginário. Com efeito, os arquitetos humanos não podem fazer
melhor do que calcar seus projetos nos do Arquiteto divino, o primeiro
e o mais perfeito de todos. Esse modelo, evidentemente, é um pouco
teórico. Mas, é fácil tirar da fonte central e dos quatro rios do Paraíso
um plano em “quadratura” ou em quadrado centrado numa ilha circular
onde se eleva um gabinete de verdor. Além disso, é possível completar
os dados sucintos do livro da Gênese com outras passagens da Bíblia,
especialmente os Salmos. O Salmo 104, “dos esplendores da Criação”,
teria assim fornecido a Palissy a primeira idéia de seu jardim.
Este Salmo, na tradução de Clément Marot, é o acontecimento
que dá início a tudo, se acreditarmos no início da Recette véritable.
A primeira guerra de Religião acaba de se concluir, em Saintes e em
outras localidades, com a vitória provisória dos protestantes que levará
a um breve período de coexistência pacífica entre as duas confissões.
Palissy, que teme por sua vida, acaba de ser libertado da prisão. Em um
belo domingo da primavera de 1563, ele passeia meditando ao longo do
rio Charente. De repente, as palavras familiares do rei profeta lhe vêm à
mente. Um “coro de virgens” está sentado sob as árvores e canta o Salmo
104. “E porque suas vozes eram doces e harmônicas”, escreve Palissy,
“fizeram com que eu me esquecesse dos meus primeiros pensamentos”
(1996, p. 68). Pensamentos de melancolia e de luto pela lembrança da
guerra civil. Subitamente, o céu se eleva em sua alma. Ao invés de um
espetáculo de horror, é o verde paraíso das origens que se revela, com
suas “fontes e riachos”, seus “montes pedregosos” e suas abundantes
pradarias, seus “passarinhos” voltejando, seus animais correndo em
liberdade e até suas baleias que se agitam no vasto mar. Como perenizar
o milagre de uma tal visão, saída como por magia dos versos do salmista?
Palissy pensa primeiramente em um quadro, mas visto que “as pinturas
duram pouco”, ele opta pelo jardim, um jardim que será a miniatura do
mundo, mas um mundo ainda a salvo da malícia dos homens e gozando
para sempre da paz das origens.
Pois o “propósito admirável” de um jardim destinado a acolher
os reformados em tempos de perseguição é o ponto de convergência
149
FRANK LESTRINGANT
18
Sobre a dimensão mística
do jardim de Palissy, ver meu
prefácio em PALISSY (1996,
p. 5-47: “L’Éden et les ténèbres
extérieures”; cf. AMICO
(1996, ch. V: «Hors-mis le
jardin de Paradis terrestre»,
p. 157-185.
19
Sobre esta grande metáfora
do «livro da natureza», ver
CURTIUS (1986, ch. XVI,
t. II, p. 34).
150
de todos os temas sucessivamente abordados na Recette véritable,
o receptáculo de um saber variado e de conselhos técnicos que Palissy
destina desordenadamente ao agrimensor e ao agrônomo, ao esmaltador
e ao especialista em fontes. A cultura do jardim é o meio de perenizar a
paz precária que reina entre os homens, restabelecendo a comunicação
perdida com a natureza e com Deus. Neste jardim, o homem viverá sem
medo de seu próximo; os animais, coelhos selvagens, raposas, pássaros,
correrão em liberdade; as próprias árvores não mais serão feridas e
torturadas, como acontece, demasiado freqüentemente, por florestais
embrutecidos e ávidos de lucro, mas cortadas e enxertadas segundo as
regras da arte.
O jardim da Recette restabelece uma pura transparência entre o
homem e o Criador, em direção ao qual se eleva, sem obstáculo de agora
em diante, um hino contínuo de ações de graça. Neste jardim que é
o modelo reduzido da Criação, as grutas artificiais integram inscrições
recobertas de esmalte e que parecem engendradas pela matéria; os
pavilhões são formados por árvores vivas, cujos galhos artisticamente
curvados e enxertados em si mesmos escrevem versículos da Bíblia.
Sentenças tiradas dos livros sapienciais, em particular dos Provérbios,
da Sabedoria de Salomão e do Eclesiastes, se encontram desse modo
inscritos na natureza viva. A aderência primordial entre o Verbo divino
e a Criação, que era efetiva nos tempos do Éden, se encontra restituída
nessa escrita de pedra e nesses entrelaçamentos de galhos que anunciam
a Palavra e reverdecem a cada primavera.
Em Palissy, o jardim fala, sem tropos nem figuras. Ele deve
ser lido literalmente. Tipicamente protestante, ou mais exatamente
calvinista, é a recusa das imagens, conforme testemunha a aplicação
direta e sem intermediário da escrita sobre o vegetal ou o mineral.
Nenhum desvio pela figura humana ou pela alegoria. Nem estátuas,
nem hieróglifos, como se encontra tanto no Songe de Poliphile e nos
jardins toscanos ou latinos do século XVI. Da mesma forma, Palissy
recusa a madeira esquadriada e a pedra talhada, preferindo a árvore
viva e a pedra bruta. Esse jardim é um jardim de sinais imediatamente
legíveis pela comunidade dos crentes chamados a nela trabalhar a cada
dia da semana segundo o ofício do primeiro homem, o jardineiro Adão,
e a se reunir todos os domingos para celebrar Deus.
Essa leitura inspirada supõe definitivamente o exercício cotidiano
da meditação cristã. É “um passeio místico pelos escritos sapienciais da
Bíblia” ARMOGATHE, 1990, p. 26); um passeio, de corpo e alma,
no jardim do sentido espiritual18. Ou, para retomar uma imagem de
Paracelso, com quem Palissy não deixa de ter certo parentesco, o jardim,
como o mundo que ele resume, é um livro que se folheia com os pés19.
O Livro Santo e o Livro da Natureza, essas vias paralelas de
acesso à divindade, reúnem-se e se confundem no mito de um jardim
situado fora da história e de seus desastres recentes. Ora, esse sonho logo
extravasa o jardim em uma dupla orientação em direção ao futuro e ao
passado: por um lado, em uma “cidade de fortaleza” verdadeiramente
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
inexpugnável que Palissy descreve no apêndice de seu tratado e que
tem a forma helicoidal de uma concha de múrex; por outro lado, na
evocação de Saintes e de Saintonge no tempo da Reforma, durante a
curta primavera de 1562, quando um porvir radioso parecia abrir-se à
comunidade reformada. Repentinamente, é o espaço de Saintes, a bemnomeada, com seus coros de jovens moças sentadas à beira da água e
cantando Salmos, suas companhias de trabalhadores passeando na mata
e comentando a Bíblia em voz alta, que se alarga na dimensão de uma
visão ou de um sonho, transposição ideal da harmonia divina descida,
nesse domingo da vida, entre os homens. Essa utopia real, tipo de versão
protestante do sonho milenarista, durou apenas uma breve temporada,
irremediavelmente destruída pelo irrompimento das guerras de Religião.
Ela se isola a partir de então no recinto protegido do jardim místico e nos
limites mais bem defendidos ainda da “cidade de fortaleza” helicoidal,
cujo exterior e interior se confundem, e que é inexpugnável no sentido de
que ela é “a expressão topográfica de uma vontade unânime, o símbolo de
um corpo social unido” e estruturalmente solidário (LESTRINGANT,
1996, p. 42).
O tabu da imagem, que observamos em Palissy na sua desconfiança
em relação às pinturas que “duram pouco”, é observável também em
um tipo de precaução tática. Para não desvelar o segredo de seu jardim,
e sobretudo para subtrai-lo à maledicência dos caluniadores e outros
iconoclastas, Palissy se abstém de qualquer representação figurada.
Na Recette véritable, em que ele é tão longamente descrito, não
encontramos nem mapa do jardim, nem “retratos” de suas figuras e
canteiros. Mas a ausência de ilustração e a ambição espiritual do projeto
não implicam abstração. No detalhe, nada de mais concreto que o jardim
maneirista imaginado pelo oleiro do rei. As terras esmaltadas pululantes
de rãs e de lagartos moldados a partir de seres vivos, os fundos de pratos
onde ondulam, entre as folhas de saladas, vermes e cobras “ao natural”,
são feitos para desencorajar os mais robustos apetites. Esses detalhes,
que encontramos nas grutas “rústicas” do jardim imaginário, não deixam
de cantar, assim como os céus ou o Oceano, a glória do Altíssimo.
Artista cuja estética se caracteriza por ser “Anti-Renascentista”
(BATTISTI, 1989), Palissy é um visionário igual aos maiores, mesmo
se, para alcançar seus fins, sua visão se apropria das humildes ferramentas
do jardineiro, do agrimensor e do ceramista.
A utopia arquitetural de Jacques Perret
Em Palissy, o texto santo está fechado no jardim que lhe serve
de escrínio. É o inverso na obra do saboiano Jacques Perret, arquiteto
e engenheiro do rei Henrique IV, que publica em fins do século XVII
o tratado Des Fortifications et artifices, architecture et perspective (1601),
compreendendo vinte e duas pranchas gravadas por Thomas de Leu, das
quais cinco são mapas de cidades fortificadas, acompanhadas de vistas
em perspectiva cavaleira20. A Sagrada Escritura circula pelos bastiões em
20
Além do exemplar da
Bibliothèque Nationale de France
conservado sob a catalogação
Rés.V.410, desordenadamente
reunido e com várias pranchas
faltando, como a da cidade de
23 lados, consultei o exemplar
da Bibliothèque de l’Institut
de France (Rés. Folio N.160),
corretamente reunida e que
permite seguir a progressão
das pranchas, da cidadela “em
quadratura” ao plano de uma
“grande e excelente construção
com dois currais”. Outros
exemplares apontados por
Bruna CONCONI (1992)
na Bibliothèque de l’inspection
du Génie (Génie B-b fol. 13)
e, incompleto, na Bibliothèque
de la Société de l’histoire du
protestantisme français (in-fol.
396). Não pude consultar este
último exemplar, atualmente
sob restauro.
151
FRANK LESTRINGANT
21
“Fazenda dada a cultivar pelo
proprietário com a condição de
receber metade das colheitas
que produzir” (Domingos de
Azevedo. Grande Dicionário
Francês-Português. Lisboa:
Bertrand, 1952), segundo um
contrato chamado de métayage
(N. da T.).
22
Quanto a esta série de
observações, eu me inspiro
em CONCONI (1992,
p. 421-422).
152
triângulo, em quadrado, em estrela de cinco ou seis pontas. O versículo
bíblico se fraciona em dez, doze, dezesseis segmentos de direita,
aproximando-se ao máximo da épura arquitetural, e acrescentando à
cintura de pedra, de água e de terra uma muralha de palavras escritas
em letras maiúsculas.
O que quer dizer que a verdadeira defesa é a palavra de Deus,
mais firme que as mais sólidas muralhas, cortinas ou contra-escarpas,
mas também que a boa arquitetura é aquela capaz de reproduzir
diretamente o mandamento divino. Também não há nenhum
intermediário entre a Palavra e o espaço habitado pela comunidade dos
crentes. Mas, diferente do jardim de Palissy, a arquitetura militar e civil
de Jacques Perret não busca produzir um simulacro da natureza. Mais
rigorosamente utópica que o Éden da Recette véritable, ela desenha uma
cidade ideal, na linha de todas as que o Renascimento imaginou, na
Itália particularmente, desde Luciano Laurana, Piero della Francesca e
Leonardo da Vinci.
Na compilação de Jacques Perret encontramos sucessivamente
mapas e vistas perspectivas de cidadelas, de cidades inteiras, de templos,
de palácios, de casas particulares e de métairies21. Nela, o espaço é regido
pelo esquadro, a disposição das ruas e das praças é feita “em quadratura”.
Tal dispositivo mostra o triunfo da razão sobre a desordem das coisas,
e permite, além disso, um perfeito domínio do ponto de vista militar.
Pois se a geometria contenta a vista e satisfaz ao princípio de harmonia,
ela também responde a uma necessidade tática. “Da praça central o
canhão pode percorrer todo o comprimento de todas as ruas”, observa
o comentário relativo à cidadela ou fortaleza pentagonal. Mesma
observação em relação à cidade em hexágono: “Do meio da grande
praça, o canhão pode atirar no sentido de todas as ruas”.
Perret, como Palissy antes dele, ressalta a novidade de sua
empreitada e evita qualquer referência aos Antigos e aos Modernos,
salvo a Végèce, cujo De re militaria foi muito lido no Renascimento. Esse
esquecimento das autoridades em benefício apenas da palavra de Deus é
um traço específico da literatura protestante, desejosa de fazer tábula rasa
de qualquer tradição estrangeira à Bíblia. O que não impede que Perret
conheça os clássicos, começando por Vitrúvio e sua Architettura. Ele
colocou em prática assiduamente os italianos, Alberti e seus sucessores,
e se inspirou diretamente em Pietro Cataneo, cuja Architettura havia
sido publicada em Veneza de 1554 a 1567. Ele lhe deve em particular
a reunião, em sua compilação, dos dois componentes da arquitetura,
militar e civil, que estarão dissociados nos tratados ulteriores22.
Tanto tópico quanto típico da literatura protestante, é o acento
posto na Prática em detrimento da Teoria. Apesar do tratado Des
fortifications et artifices desenvolver os elementos de uma arquitetura
ideal, como era ideal o jardim da Recette véritable, Perret não cessa,
como Palissy, de ressaltar o valor de uso de seus planos e perspectivas,
perfeitamente realizáveis, se acreditarmos nele. Desses modelos, é fácil
tirar aplicações concretas. Alguns dos planos vêm acompanhados de um
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
perfil, e todos possuem uma escala de medida em toesas. Basta, portanto,
adaptar o modelo arquitetural ao terreno escolhido: “Calculando as
medidas que se quiser conhecer com o compasso sobre a escala, que é
aqui de 80 toesas, em relação ao perfil, encontraremos o que procuramos
tanto em relação ao plano quanto à perspectiva” (PERRET, 1601, f.A).
Perret acrescenta conselhos de ordem prática para a boa gestão do projeto:
“Esta figura representa diversos planos de fortificações e diversos perfis
para contentar diversas opiniões. Mas, em casos de grande importância e
despesa deve-se optar por consultar pessoas capazes e atribuir o comando
da empresa a apenas uma” (ibid., f.F).
Para dizer a verdade, essa compilação de pranchas de arquitetura
não teria nada de original e não mereceria ser qualificada de utopia
se não houvesse as inscrições bíblicas integradas ao desenho. Essas
inscrições são tiradas em sua maioria dos Salmos. Lembremo-nos que o
jardim de Palissy saíra já traçado do Salmo 104, cantado por um coro de
virgens à beira do Charente. Na compilação Des fortifications, a cidade
em quadrilátero é fortificada pelo salmo 91: “Aquele que habita no
esconderijo do Altíssimo...”23. A cidade em pentágono é protegida pelo
salmo 127: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a
edificam...”. A cidade hexagonal é defendida pelo salmo 33: “Regozijaivos no Senhor, vós justos, pois aos retos fica bem o louvor.”. A cidade de
vinte e três lados tem por paládio o salmo 117: “Louvai ao Senhor todas
as nações, exaltai-o todos os povos...” Quanto à cidade de dezesseis
lados, ela tem por defesa os dois mandamentos tirados de Êxodo 20 e
Mateus 22: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda
a tua alma, de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro
mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás ao teu próximo
como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda [sic] a lei e
os profetas.” (ibid., f. G2).
A escolha dos Salmos não é indiferente. Traduzidos em versos
franceses por Clément Marot e Théodore de Bèze, os Salmos tiveram
um papel chave na difusão da Reforma na França, depois na resistência
da Igreja minoritária às perseguições. Para os protestantes, era o canto
de reconhecimento e de reunião, o símbolo da identidade confessional.
Os Salmos eram cantados no decorrer das atividades cotidianas, mas
também pelos soldados no campo de batalha. Eles tinham um lugar
preponderante na liturgia, antes e depois do sermão. Além disso, o
adversário católico reconhecia no canto dos Salmos a principal força
de coesão dos huguenotes. Florimond de Raemond, conselheiro no
Parlamento de Bordeaux e autor de L’Histoire de la naissance, progrez,
et decadence de l’heresie de ce siecle, poderá escrever: “Ele foi a corrente e
a corda, do qual, como um outro Anfião Tebano [Anfião, o fundador
mítico de Tebas], Lutero e Calvino se serviram para atrair junto a si as
pedras com as quais eles construíram e fundaram os muros de sua nova
Babilônia” (CONCONI, 1992, p. 433).
Nova Babilônia, ou nova Jerusalém? Aí está toda a questão,
ou quase. Com efeito, a cidade ideal, edificada segundo as regras
23
Todas as citações bíblicas
são tiradas de A Bíblia sagrada.
Velho Testamento e Novo
Testamento. Versão revisada
da tradução de João Ferreira
de Almeida. Rio de Janeiro:
Imprensa Bíblica Brasileira,
1989 (N. da T.).
153
FRANK LESTRINGANT
24
Santo AGOSTINHO.
De Civitate Dei, XV, 5:
“Primus itaque fuit terrenae
civitatis conditor fratricida:
nam suum fratrem civem
civitatis aeternae in hac terra
peregrinantem invidentia
victus occidit”.
154
conjugadas da razão e da balística, seria realmente compatível com
os mandamentos? Na Bíblia, e em particular no Antigo Testamento
que alimentou os protestantes, as cidades têm quase sempre má fama.
Basta pensar na torre de Babel, símbolo do orgulho humano revoltado
contra Deus, ou nas cidades da planície, Sodoma e Gomorra, destruídas
pelo fogo do céu. Cain fugitivo após o assassinato de seu irmão Abel,
Cain errando pelo mundo e perseguido pela maldição divina só
interrompe sua marcha desvairada para fundar uma cidade. O jardim
é abençoado, pois procede diretamente dos desígnios do Criador,
tanto quanto a cidade dos homens é suspeita, pois se afasta por demais
manifestamente. O arquiteto e engenheiro Jacques Perret se encontra,
portanto, confrontado a uma dificuldade que o jardineiro Palissy não
encontrara.
Inscrevendo o texto dos Salmos em volta de suas projeções ideais,
Jacques Perret teria, portanto, a intenção de conjurar a maldição das
origens. Os Salmos, percorrendo de ponta a ponta os bastiões e formando
uma última muralha face ao exterior teriam, de algum modo, um papel
de talismã. Eles colocam as cinco cidades ideais sob a proteção do Verbo
e, além disso, chamam sobre elas a bênção divina. Mas nenhuma magia
há nessa salvaguarda, nem automatismo algum nessa proteção caída do
céu. Pelo modo como são escolhidos, os Salmos lembram os termos
de um contrato. A aliança é concedida gratuitamente por Deus ao seu
povo, à condição, todavia, que este se mostre digno e que respeite os
mandamentos. A graça, para Calvino, não dispensa a lei. Daí a referência
ao decálogo e à lei evangélica em complemento à mensagem dos Salmos.
A citação de Êxodo 20 e de Mateus 22 em torno dos dezesseis lados da
cidade constitui uma advertência decisiva a esse respeito.
Mas nem toda cidade procede necessariamente de Cain e de
sua descendência. Com efeito, Santo Agostinho distinguia entre a
cidade dos homens e a cidade de Deus, a cidade do mundo e a do Céu.
A primeira é formada pelos herdeiros de Cain, que colocam sua
esperança nas possessões da terra; a segunda é a dos imitadores de Abel,
a primeira vítima e o primeiro mártir, cujo reino é totalmente espiritual24.
Inscrever a Palavra de Deus nos contornos de uma construção humana
traçada com o compasso e o esquadro equivale precisamente a preparar
aqui e neste mundo a cidade de Deus, a instaurá-la por antecipação,
fornecendo dela a imagem e o modelo. Tal é o alcance autenticamente
visionário do empreendimento de Jacques Perret, tal é a ambição utópica
de seu projeto, que faz comunicar a terra com o céu e coincidir a obra
dos homens e os desígnios de Deus.
Acrescentemos que os protestantes, no século XVI, imaginam-se
como o novo povo eleito. A Igreja reformada constitui a herança de Abel.
Por isso a cidade dos Justos estará exposta à hostilidade dos idólatras.
Daí a necessidade de isolá-la e subtrai-la ao resto da humanidade.
A cidade fechada, cingida pela Palavra de Deus à maneira de uma
muralha, é um emblema por demais significativo do dogma calvinista da
eleição minoritária (BALMAS, 1969, p. 33).
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
Pedra e Palavra estão estreitamente justapostas, de modo que
nenhuma silhueta humana aparece nas vistas em perspectiva cavaleira de
Jacques Perret. Tampouco no jardim de Palissy havia presença humana.
No entanto, essa presença era sugerida por metáfora: o jardim de refúgio
estava plantado com olmos - “hommeaux”, escreve Palissy25. Essas árvores
que falam por meio do conjunto de letras de seus galhos entrelaçados
levam o mesmo nome que os homens. São a figuração dos membros
da comunidade viva chamada a recolher-se no jardim em tempos de
desordem. Do mesmo modo, nas cidades ideais de Perret, as pedras que
falam diretamente e sem intermediário são parecidas com as “pedras
vivas” presentes no Evangelho: “São homens”, comentava Panurge, em
um sentido desviado e um tanto libertino (RABELAIS, 1991, terceiro
livro, cap. VI, p. 459).
Definitivamente, que se trate do jardim fechado de Palissy
ou das cidades fortificadas de Perret, das quais procede a cidade de
Henrichemont, em Sologne, as utopias da Reforma combatente
respondem à situação de compromisso que fixa o édito de Nantes.
Abertas em direção ao Céu, elas estão fechadas do lado dos homens,
ou prontas para serem fechadas ao primeiro alarme. O arquipélago, ou
melhor, a nebulosa, representa bastante bem a extraordinária dispersão
- e também a incerta perenidade - do protestantismo, em particular nas
províncias da Aquitaine ou da Normandie. A comunidade reformada é
protegida, mas sob a forma de grupos isolados, perdidos na imensidão
católica de uma França filha primogênita da Igreja. Apenas Deus e o Rei,
seu lugar-tenente na terra, garantem esta possessão e este gozo limitados
no espaço - e no tempo, como a continuação da História provará26.
Símbolo dessa abertura única pelo alto: a penúltima prancha do
livro de Jacques Perret mostrando “o grande pavilhão Real”, destinado
a elevar-se no centro geométrico da cidade de vinte e três lados e capaz
de “alojar 500 pessoas à vontade”, uma construção de sete níveis de
altura aumentados com mais dois andares de forros sob um terraço e
um pórtico coroando o todo. Erigido sobre este pórtico em forma de
arco do triunfo, um tipo de obelisco de base circular sustenta uma esfera
terrestre entre lua e sol, rodeada de estrelas. Ainda mais acima, o nome
de “Deus” cercado por raios. Em volta da prancha, apoiado na margem
do desenho, pode-se ler esta divisa em letras maiúsculas: “Deve-se subir
no ponto mais alto para contemplar o céu, a terra e as coisas que neles
estão a fim de adorar apenas Deus, o Pai, o Filho e o Santo Espírito em
espírito e verdade. Toda glória pertence ao céu pelos séculos dos séculos.
Amém” (PERRET, 1601, f.K).
É interessante notar que Jacques Perret, por sua vez, renunciou
ao plano troncônico ou helicoidal que Palissy concebia para “a cidade
fortaleza”. Esta hélice elevando-se irresistivelmente para o céu remetia
sem dúvida claramente à representação tradicional da torre de Babel.
De 1563, ano da Recette véritable, data precisamente o famoso quadro
de Pieter Bruegel, o Velho representando a torre, símbolo de desmesura
e de orgulho. Escolhendo uma construção em plano quadrado, J. Perret
25
O trocadilho contido
em hommeaux poderia ser
traduzido por “olmens”,
um jogo de palavras
com “ormeaux”, olmos, e
“hommeaux”, justaposição
de “homme”, homem, e olmos
(N. da T.).
26
Ver sobre este ponto
SAUZET (1992, “De
Pétrarque à Descartes” LV).
155
FRANK LESTRINGANT
frustra antecipadamente qualquer assimilação entre seu sonho arquitetural de comunhão espiritual e a tentação sacrílega de Babel.
O Reino de Antangil
27
Sobre a dimensão utópica da
obra e as ressalvas que convém
considerar sobre esse aspecto,
ver a ampla e rica introdução
de M. M. FONTAINE
(1996, p. XIII-XX).
28
Como haviam entendido
os irmãos HAAG, que o
incluíram, no entanto, não
sem prudência, em La France
protestante (1846, p. 101-109).
Artigo retomado sob uma
forma resumida e privado
de sua bibliografia na edição
revisada por Henri Bordier
em 1877.
29
Ver de FONTAINE, além
da introdução citada
(em ANEAU, 1996), o artigo
de 1984, sobretudo p. 551-554.
156
Em 1616, exatamente um século depois da utopia de Thomas
More, é publicada a Histoire du grand et admirable royaume d’Antangil
(1616), com o endereço do livreiro Thomas Portau de Saumur. Frédéric
Lachèvre, que a reeditou, qualificou-a de “primeira utopia francesa”.
A Recette de Palissy, o livro Des fortifications, de Perret, filiavam-se ao
gênero utópico apenas pelo espírito. O Royaume d’Antangil, por sua vez,
cabe exatamente em sua definição.
Poderíamos objetar com um precedente desconhecido por muito
tempo, a utopia narrativa Alector ou le Coq, que Barthélemy Aneau
publicou em Lyon em 156027. Aneau será massacrado como herético no
ano seguinte, no dia de Corpus Christi, em 1561, quando explode um
tumulto consecutivo à profanação do santo sacramento durante o trajeto
da procissão. Oriundo do meio luterano de Bourges, por um tempo aluno
de Melchior Wolmar, Aneau não havia entretanto aderido à Reforma28.
Ele era “um pouco panteísta, estóico à maneira dos ciceronianos, irenista
como Castellion, e hermetista como muitos destes italianos cujas obras o
haviam tanto influenciado” (FONTAINE, 1996, p. CXIV). Não sendo
nem católico rigoroso nem protestante de Igreja, colocado fortuitamente
entre os dois campos, ele se encontrava na situação típica de muitos
utopistas, e morreu por sua independência intelectual em um tempo de
caos e de intolerâncias crescentes.
Um dos últimos capítulos de Alector, “história fabulosa” e fábula
mitológica, descreve a “corografia” de uma cidade ideal que se inscreve
na linha das arquiteturas visionárias do Quattrocento italiano, as de
Francesco di Giorgio Martini e de Filarete, e mais recentemente de Pietro
Cataneo, do qual já notamos a influência sobre Jacques Perret. A cidade
de Orbe, “assim chamada por sua forma e figura redonda”, está situada
“sobre uma montanha pouco alta mas muito larga, redonda pela metade
como um meio globo” (ANEAU, 1996, cap. XXVI, p. 169). Dividida
em quatro quartos segundo os pontos cardeais, aberta por quatro portas
sobre as quatro estações e as quatro idades da vida, Orbe é o modelo
reduzido do cosmos, um orbis terrrarum em miniatura, ao mesmo tempo
em que é um emblema do destino humano, uma imagem do microcosmo
ou “pequeno mundo” em seu devir29. No entanto, Aneau, que também
prefaciou uma tradução francesa de Thomas More, não constrói uma
verdadeira utopia. Sua história se recusa a traçar um programa. Ainda
que a cidade de Orbe prefigure em seus lineamentos e em sua estrutura
A Cidade do Sol de Tommaso Campanella, como ela devotada ao culto
solar, ela pertence totalmente a um passado imaginário. Além do mais,
em seu prefácio a La Republique d’Utopie par Thomas Maure, Aneau,
após Guillaume Budé, estendia a noção de Utopia para a Udepotia,
palavra forjada a partir do advérbio grego significando “nunca”
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
(FONTAINE, 1996, p. XV): com esse desvio, a cidade ideal era privada
de qualquer futuro, expulsa do mundo dos possíveis e confinada na
ficção literária.
O mesmo não acontece com a Histoire d’Antangil, que conserva
do modelo legado por More o jogo entre real e imaginário e, sobretudo,
a dimensão programática. Ela é inclusive uma ilustração um pouco
escolar do paradigma utópico. Nada se sabe de seu autor que a assinou
com as iniciais I.D.M.G.T., a não ser que ele era protestante, talvez de
Tours ou da província da Touraine, e tinha relação com os Países-Baixos.
Lançou-se alternadamente a hipótese de autoria do pastor Joachim Du
Moulin e de Jean de Moncy (CIORANESCU, 1963). É certo que
essa utopia é a primeira a ilustrar o mito da Terra Austral, esse vasto
continente estendendo-se de Java à Terra do Fogo, ou seja, maior que
as duas Américas, objeto dos sonhos de império das potências do Norte
da Europa e, simultaneamente, pólo de fixação privilegiado das utopias
narrativas da época clássica. O mito da terra austral havia sido lançado
cerca de trinta anos antes pelo livro dos Trois Mondes de La Popelinière
(1997), também ele protestante, desejoso de abrir para os países da
Reforma, huguenotes da França, Ingleses e Holandeses, uma área de
expansão colonial no mínimo igual ao Novo Mundo conquistado pela
Espanha e por Portugal30.
A Histoire d’Antangil é dirigida a “Senhores Estados [sic] das
Províncias unidas do país baixo” e está distribuída em cinco livros. Os
quatro últimos expõem com uma extrema minúcia o programa utópico
propriamente dito, sob os quatro capítulos seguintes: “Da excelente
polícia deste Império”, “Da polícia militar”, “Do alimento e instrução da
juventude”, “Da religião deste povo”. O primeiro livro, acompanhado de
um mapa orientado pelo Norte para baixo, completado por uma lista de
129 topônimos, é um quadro geográfico deste vasto império situado ao
sul da “grande Java” e compreendido entre o trigésimo e o qüinquagésimo
grau de latitude austral. Limitado, “do lado de nosso pólo”, pelo oceano
Índico, e na Antártica, por “altas montanhas sempre cobertas de neve”,
ele manifesta em sua verticalidade toda uma variedade de climas.
O Reino de Antangil está em “terra continente”, mas ele reproduz
o dispositivo insular da Utopia de More, legível em filigrana. Dois rios,
Iarrit e Bachil, demarcam o império a leste e a oeste, recortando no
continente austral um retângulo alongado do sul ao norte, “como um
quadrado longilíneo”, diz graciosamente o comentário. Esse retângulo
delimitado por fronteiras naturais é aberto até o centro por um grande
“golfo” chamado Pachinquir, de cem léguas de profundidade e dezessete
de largura. Eqüidistante dos dois rios fronteiriços e seguindo o mesmo
eixo longitudinal, esse golfo recebe quatro rios, “os quais, após ter
percorrido a maior parte deste Reino, nele desembocam”. Pensamos
nos quatro rios do Paraíso terrestre, que brotam da fonte de vida no
meio do jardim. Mas aqui é o inverso: vindos das extremidades do
reino e descrevendo suas sinuosidades até o Mediterrâneo vertical que
figura o golfo de Pachinquir, eles convergem para o centro. Sangil, a
30
Ver LESTRINGANT,
1990b, p. 226-234 e 257-261.
157
FRANK LESTRINGANT
capital, sede do governo e da igreja principal, está situada naturalmente
“na extremidade do Golfo de Pachinquir”, ou seja, no centro geométrico
do mapa. Semelhantemente, na utopia de More, Amaurota está
estabelecida no centro e ao fundo da baía que corta em forma de
meia-lua o círculo insular e o reduz à forma de um crescente. Esse
crescente quase fechado é perceptível em estado de remanência, na quase
ferradura que a geografia quadrada de Antangil desenha.
Como toda utopia, o reino de Antangil está voltado para si
mesmo e é dificilmente acessível do exterior. Excetuados os dois rios
fronteiriços, cuja embocadura forma dois portos naturais, a costa do
oceano é obstruída de baixios e de rochedos que a tornam inabordável. A
entrada do golfo de Pachinquir – “fácil e tranqüila, como o nome o diz”
- representa o acesso mais seguro. Ela é ainda estreitada pela presença de
uma ilha, Corylée, que obstrui os três quartos de sua largura. Restam, de
um lado e de outro, duas passagens estreitas, fáceis de controlar. Na ilha
do estuário se ergue um vulcão “ou Vesúvio” em perpétua erupção, que
substitui vantajosamente um farol.
Na extensão vertical do reino, faixa longitudinal recortada no
continente, coexistem todos os climas, do mais frio e seco ao mais quente
e úmido, “o que o torna mais deleitável e rico, pois possui sozinho tudo
o que as outras regiões têm apenas em parte” (I.D.M.G.T., 1933, p. 30).
Antangil é todo o universo, se não em sua extensão, pelo menos em sua
variedade. Quatro faixas climáticas se sucedem do sul ao norte, frio e seco
nas baixas encostas dos montes Sariché, opulentos em pastagens e em
gado; em seguida temperado; excessivo em calor e aridez à proximidade
do trópico de Capricórnio, que divide o mapa no terço de sua altura;
temperado novamente e chuvoso para além do trópico em direção ao
equador, em razão da vizinhança com o mar e com os ventos que aí
sopram, esta última observação, esclarece o autor, indo “contra a regra dos
antigos”. Tal diversidade climática tem como conseqüência a produção de
todas as riquezas imagináveis, desde os minerais extraídos das montanhas
meridionais até as pérolas que são pescadas na entrada do golfo de
Pachinquir, “das quais umas são brancas e claras como as que vemos em
nossa Europa, outras encarnadas e brilhantes como rubis e carbúnculos”
(ibid., p. 33). No intervalo são recolhidas as produções exóticas mais
variadas, “como cocos, abacaxis, bananas, mangas, betel, palmitos, ameixa
de espinho, canela, pimenta, cravo, gengibre, mástica, benjoim, grão
guaiac, brasil e vários outros frutos, madeiras e drogas deliciosas”.
Resumindo, é um segundo paraíso terrestre. Nada de surpreendente
se entre todos os animais que povoam este reino, os voadores são os mais
numerosos:
Diríamos ao ver a quantidade e diversidade dos pássaros que vivem
nestas regiões, e ao vê-los cantar e voar no ar, que é o próprio e particular
lugar no qual Deus, o Criador lhes proveu de alimento, ou que ele quis
dar esse contentamento aos habitantes deste Reino preferindo-os aos
outros povos (ibid., p. 30).
158
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
Aí encontramos os pássaros dos dois mundos, sem contar alguns
mais maravilhosos ainda, como a legendária ave do paraíso:
Os pássaros do paraíso chamados de mamucos, dos quais por aqui
ninguém sabe a origem, são vistos pendurados nas árvores de canela e
nos craveiros, as fêmeas cuidando de seus filhotes nas costas dos machos,
vivendo de maná, orvalho e bons odores.
A implacável utopia pode tomar corpo, uma vez dada e
inventariada em detalhes essa situação geográfica. O princípio de
igualdade, em More, dá lugar, em Antangil, a duas classes bem definidas:
nobres e ricos plebeus de um lado; povo, de outro. O Senado, eleito
pelo Conselho dos Estados, este formado por delegados enviados pelas
vinte e seis províncias, detém a realidade do poder; o rei, nomeado
vitaliciamente, mas sempre revogável, tem uma função exclusivamente
teórica. O Estado é o único proprietário das terras e das minas, mas ele
as arrenda a cada três anos aos que oferecerem mais. Se não há pobres
em Antangil, aliás, não mais do que na ilha de Utopia, a sociedade,
em todos os seus elementos, civil, militar, eclesiástico, obedece, todavia,
a uma estrita hierarquia.
É certamente no plano religioso que se afirma a identidade
protestante do autor. Ele é indiscutivelmente de cultura reformada,
mas a ficção utópica lhe permite tomar liberdades com sua religião de
origem. Em relação à utopia de More, o reino de Antangil tem o insigne
privilégio de ser cristão. Um brâmane da Índia, convertido por são Tomás
em pessoa, para lá levara a boa nova. Seus dons de taumaturgo tiveram
um êxito inesperado: graças ao Espírito santo, ele curou publicamente os
“doentes, inválidos, cegos, hidrópicos, paralíticos, epiléticos”, por simples
toque. Sendo “verificada pelos milagres”, a doutrina cristã é declarada
religião oficial e imposta em dezoito meses a todas as províncias do
reino. Os templos são esvaziados de seus “ídolos” e imagens, como
foram tantas igrejas no tempo da Reforma; as inscrições em honra dos
falsos deuses apagadas e substituídas pelas “mais fervorosas passagens
tiradas da Escritura”. A iconoclastia dos novos convertidos lembra o das
multidões francesas e flamengas no início dos anos 1560. Temperando
esse entusiasmo negador, os senhores de Antangil tomam medidas para
colocar em lugar seguro “tantas belas figuras e quadros, que poderiam
servir de ornamento aos edifícios públicos e casas particulares”.
Como na Inglaterra ou nos Países-Baixos, o museu substitui diretamente
a igreja.
O espaço interior dos templos é rearranjado, e constatamos por
esse detalhe o profundo acordo que reina aqui entre Reforma e espírito de
utopia. A limpeza pelo esvaziamento libera o espaço da prédica. Bancos
de marcenaria são colocados ao longo das paredes até uma altura de
doze bancadas e dispostos “em todo o entorno à maneira de anfiteatro”
(ibid., p. 124). Os bancos da platéia, “entrecortados por caminhos”,
estão reservados às mulheres. Na extremidade da forma oval, sobre a
159
FRANK LESTRINGANT
31
Como ressalta REYMOND
(1993-4, principalmente p.
516), o templo reformado não
é realmente uma construção
como as outras, e ele se
distinguirá cada vez mais ao
longo dos séculos. Sua forma
toma emprestado o modelo
da estrutura (retangular,
oval ou octogonal) que as
reconstituições eruditas
tomavam então do templo
de Salomão. Daí o nome que
os Reformados deram ao seu
local de culto. Cf.,
no mesmo volume, TILLICH
e GRELLIER.
160
décima segunda bancada e face à porta de entrada, se eleva a cadeira do
bispo. Conforme aos primeiros templos que os reformados constroem,
o edifício do novo culto proscreve o plano cruciforme, suspeito de
antropomorfismo. Se a figura do templo ainda tem um sentido, é à
comunidade viva que remete o oval, a essa comunidade em formação
arredondada que se contempla a si mesma, unida em Cristo e unida pela
Palavra. Esse templo sem altar, sem santo sacramento e sem imagem, é
aparentemente vazio, mas em verdade é pleno, habitado pela Presença
espiritual que cada um traz em si e que a assembléia manifesta31.
As diversas plantas e vistas perspectivas de templos calvinistas
que propunha Jacques Perret em seu tratado sobre as fortificações
apresentava a mesma “reforma” do espaço e o mesmo panoptismo.
O espaço central, no caso dele quadrangular e ocupado por bancos das
mulheres do povo, era cercado de “degraus à maneira de teatro alcançando
a muralha”, e sobre eles uma galeria “em todo o entorno, de uma toesa de
largura, tendo seus bancos na mesma maneira de um teatro” (PERRET,
1601, f. E r°, descrição do tempo normal). Uma inscrição precisava a
intenção de tal modelo espacial: “Os cristãos filhos de Deus são o seu
verdadeiro templo” (ibid., f. C1). O pastor Benedict Pictet dirá isso na
época do Iluminismo (1716, cap. II, p. 8): não poderíamos encerrar
nem, é claro, figurar Deus “em uma cintura de muralhas”. O templo
e, ao redor do templo, a cidade inteira, são a imagem, não do Salvador,
o que constituiria uma terrível blasfêmia, mas da comunidade reunida
no ato de fé da oração e da adoração. Os templos de Antangil, todos
construídos segundo o mesmo modelo e variando apenas nas dimensões,
nos remetem definitivamente ao jardim plantado de “hommeaux” de
Palissy e à arquitetura de “pedras vivas” do engenheiro Jacques Perret.
No reino de Antangil, a instauração antiga da “verdadeira” religião
resolve da maneira mais simples a questão da instituição eclesiástica. Mas
esse cristianismo austral desenvolveu alguns traços originais. Situandose mais perto da fonte evangélica do que o catolicismo degenerado dos
ocidentais, ele não comporta, no entanto, dogmas que o afastem do
calvinismo stricto sensu. Nos templos, como constatamos, as imagens são
prescritas. O culto está centrado na pregação. Ele se abre e se conclui
pelo canto dos salmos. Os sacramentos são reduzidos a dois: batismo
e santa ceia. Comunga-se numa espécie, recebendo o pão da mão do
bispo. Não há orações aos santos, “porque, dizem, um só Advogado
do Pai nos é dado para que interceda por nós”, nem orações para os
defuntos, “não acreditando nesta quimera de Purgatório” (I.D.M.G.T.,
1933, p. 132-13). Por outro lado, essa religião ressalta o benefício das
obras, em flagrante contradição com a doutrina reformada do sola fide:
“Eles crêem que sem as obras ninguém pode ser salvo”. Comem-se
comidas pesadas nos dias da quaresma, assim como nas sextas-feiras
e sábados, “o açougue e a peixaria ficando abertos em todas as épocas,
segundo a doutrina do Apóstolo”. Mas praticam-se jejum e abstinências
às vésperas das grandes festas, Anunciação, Páscoa, Pentecostes,
Natal e primeiro dia do Ano. Outra deformação do calvinismo:
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
essa religião tem seu clero e sua hierarquia, bem distinta pelas vestimentas
de cores diferentes: assim os bispos são vestidos com uma veste de sarja
violeta púrpura, com mangas estreitas, ornada com uma “cruz de galho de
palma e de oliveira com bordados de seda, ouro e prata”. Os pastores são
postos sob a vigilância de sufragâneos ou arcebispos, que, na proporção
de um para dez paróquias, controlam seus costumes e sua doutrina.
Mais acima ainda, um bispo é responsável por cada uma das vinte e
seis províncias. Esse protestantismo temperado de catolicismo em sua
hierarquia e em seus fastos lembra o anglicanismo de tipo episcopal.
6. Utopia e colonização, de Antangil à Ile d’Éden
Antangil constitui em todos os aspectos a transição entre as
primeiras utopias da Reforma e as utopias de crise da Frühaufklärung.
O modelo utópico encontrou seu lugar geográfico, o mítico continente
austral, do qual ele não se afastará mais consideravelmente de agora em
diante. Ele não define mais uma sociedade assediada e imbricada na
sociedade dominante, mas uma sociedade situada em um alhures dos
mais vagos. Esse alhures longínquo está, todavia, ligado aos sonhos
de império das novas potências coloniais, a Inglaterra e a Holanda
protestantes. A informação geográfica do autor do Royaume d’Antangil
é vasta e segura. Antangil, além disso, não é um nome forjado por
capricho; é o nome de uma baía situada no nordeste de Madagascar.
A sábia toponímia figurando em anexo do mapa mistura habilmente as
raízes indianas e amerindianas para criar um universo lingüístico misto,
um tipo de utopia verbal, situada a meio caminho da Índia bramânica e
da América peruana ou brasileira. Quanto às riquezas do fabuloso reino,
seu inventário não responde apenas ao prazer lúdico e um pouco infantil
da enumeração. Ele traça um programa de exploração e de tráfico.
Último ponto anunciador das utopias futuras: a heterodoxia
religiosa e o desvio em relação ao sistema estabelecido. A utopia de More
desenhava, nos limites da declamação, a república ideal fundada nas leis
da razão e da natureza. Depois de Antangil, o utopista não ocupa mais a
borda, mas a margem. Não é mais o humanista católico detendo-se no
limiar da Reforma e olhando para além, ou ainda, no campo adverso, o
reformado projetando no jardim sonhado ou a épura da cidade ideal ou
o sonho realizado da sociedade evangélica. As vias que se abrem a partir
de agora à utopia, e em particular à utopia protestante, são ao mesmo
tempo mais radicais e mais desesperadas: é o proscrito buscando asilo
em um outro continente, ou o marginal, o desclassificado edificando por
sua própria conta um universo compensatório.
No primeiro caso, a dinâmica utópica se encontra nos projetos
de colonização que florescem no tempo da Revogação, quando os
protestantes perseguidos na França e buscando um Refúgio alhures
seguem a injunção bíblica de fugir da “Babilônia perversa” para
fundar no deserto a Nova Jerusalém conforme ao ideal evangélico.
161
FRANK LESTRINGANT
32
Ver sobre este ponto os
trabalhos de Bertrand VAN
RUYMBEKE e, sobretudo,
sua tese (1995).
33
Sobre esta aventura, ver
J.-M. RACAULT, L’Utopie
narrative, op. cit., p. 63-74.
162
Situam-se nessa tradição os opúsculos de propaganda colonial convidando
os huguenotes a irem povoar a Caroline32, ou ainda, em 1689, o projeto
de Henri Duquesne, primogênito do almirante, “para o estabelecimento
da ilha de Éden”, em realidade a ilha Mascareigne ou Bourbon, hoje,
ilha da Reunião. Como observa Jean-Michel Racault, é em uma
perspectiva bastante próxima que são implantadas massivamente a partir
dos anos 1650, sobretudo na América do Norte, colônias protestantes
não conformistas, menonitas do Delaware, quakers da Pensilvânia,
fraternidades morávias (RACAULT, 1995, p. 16). O projeto de Henri
Duquesne fracassará lamentavelmente, mas o resultado será o idílio
em Rodrigue contado por François Leguat, abandonado durante dois
anos com sete companheiros na menor das Mascareignes, então intacta,
sem qualquer presença humana e miraculosamente preservada em sua
fauna e flora. A utopia volta-se então para a robinsonada, e o “romance
verdadeiro” de Leguat não pode ser estrangeiro à obra famosa de Daniel
Defoe. A sociedade ideal, cuja constituição e economia Duquesne havia
minuciosamente planificado, resume-se e simplifica-se em um retorno
à origem adâmica, em uma ilha de Cocanha onde a caça se oferece por
sua própria vontade ao caçador33. Da utopia elitista passamos, portanto,
à utopia primitivista, e desta à pastoral inspirada em L’Astrée, segundo
uma evolução muito comparável à que havia conhecido, um século e
meio antes, em um outro refúgio insular, a minoria huguenote no Brasil
durante a breve experiência da França Antártica de 1555 a 1560. O
sapateiro e futuro pastor Jean de Léry (1994), principal testemunha
da aventura, contou como, ao final de alguns meses de uma coabitação
difícil com Villegagnon, o chefe católico da colônia, seus correligionários
e ele mesmo haviam preferido à civilização e às suas obrigações, a vida
selvagem e sua liberdade entre os Índios canibais das proximidades.
A outra via aberta à utopia reformada a partir de Antangil
é a da marginalidade e da ruptura. O calvinismo de Antangil já está
modificado, e mesmo contradito, em um ponto essencial, a saber, o
benefício das obras, que restaura a confiança no homem e no mundo
e justifica, além do mais, o papel tutelar do clero. Mas essa utopia se
inscreve ainda em um projeto coletivo. Mesmo que ela seja divergente
no plano do dogma, ela caminha par a par com a expansão colonial
dos países protestantes e se acomoda com o sonho de um Refúgio em
terras longínquas. Tudo muda com Foigny e Vairasse, no último quarto
do século. Sob o pretexto de um retorno à natureza, a utopia, de agora
em diante, mostra em ação a perversão de um modelo em realidade
impraticável. A distorção do modelo acentua-se até engendrar, com
os Hermafroditas de Foigny, uma inquietante contra-natureza. Então
a contra-utopia terá chegado ao arquipélago dos monstros descrito no
Quart Livre de Rabelais, precisamente em direção à época em que as
Viagens de Gulliver lhe conferirão uma nova e impactante atualidade.
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
7. As utopias de crise da Reforma
Utopias e contra-utopias da época clássica:
Foigny, Vairasse, Tyssot de Patot
Enquanto as utopias da Reforma combatente, surgidas na época
das guerras de Religião e no início do reino estabilizador de Henrique
IV, exprimem um ideal comunitário e uma esperança coletiva, ainda
que frágil e ameaçada, as utopias da época da Revogação parecem
freqüentemente heterodoxas no plano religioso. Seu programa não é o
da Igreja militante, nem mesmo exatamente o de uma minoria oprimida.
Em sua dispersão, elas são soluções individuais imaginadas, ou, melhor
dizendo, improvisadas e construídas por consciências angustiadas face
ao desmoronamento de um mundo. Raymond Trousson escreve a
esse propósito: “É surpreendente constatar o quanto os três principais
utopistas deste período de Frühaufklärung - Foigny, Veiras, Tyssot de
Patot – apresentam pontos comuns. São todos os três protestantes,
tiveram que se expatriar, levaram uma vida difícil e miserável, vivendo de
aulas particulares e procurando em vão fazer seu nome com a literatura,
todos os três viveram e morreram na obscuridade” (1979, p. VIII).
O édito de Fontainebleau, que revoca em 1685 o édito de Nantes,
marca o final, em um grande século, da existência legal do protestantismo
na França. A comunidade reformada não tem mais lugar: a mesmo título
que o Deserto, a utopia é uma resposta trazida ao escândalo da História,
que faz da Reforma um não-lugar. Em Les Entretiens des voyageurs sur
la mer, de 1715, o pastor Gédéon Flournois escolherá a ponte instável
de um navio como o único lugar possível para um livre debate. No
mesmo livro, que tem pontos em comum com a obra de controvérsia
e com o romance, vemos, por um empréstimo engenhoso à tradição do
catolicismo devoto, um protestante solitário retirado em uma gruta e
vivendo segundo sua consciência longe de qualquer sociedade.
Para dizer a verdade, as utopias precedem esse acontecimento.
La Terre Australe connue de Gabriel de Foigny data de 1676, a Histoire
des Sévarambes de Denis Veiras (ou Vairasse) d’Alès de 1678-1679.
Apenas Les Voyages et aventures de Jacques Massé é posterior. Antidatada
e revestida do milésimo de 1710, a obra foi publicada em realidade
entre 1714 e 1717. É a menos original das três, aquela em que a utopia
propriamente dita ocupa o lugar mais restrito, situada como se deve
no hemisfério austral, à proximidade das Kerguélen, que ainda serão
descobertas. A república ideal aí expõe sua organização geométrica em
um terreno rigorosamente plano que faz pensar nos polders da Holanda
(RACAULT, 1991, p. 395-405).
Em Foigny e Veiras, a utopia nasce da ausência de esperança
histórica. As liberdades concedidas aos protestantes são restringidas,
as carreiras militares e os ofícios jurídicos lhes são progressivamente
fechados, deixando-lhes apenas a escolha entre a conversão e o exílio.
A Reforma não é mais um partido, é ainda e por pouco tempo uma
163
FRANK LESTRINGANT
Igreja lutando por sua sobrevivência, uma comunidade sem chefe
carismático, dividida entre os imperativos contraditórios da obediência
ao Príncipe e da fidelidade a Deus. Repetidas à saciedade por um
século, a controvérsia religiosa e as fulminações recíprocas favorecem a
indiferença, a incredulidade, e até o livre pensamento.
Segundo Raymond Trousson, a reivindicação compensatória é
particularmente aparente em Denis Veiras ou Vairasse, obscuro soldado e
advogado sem causas que se auto-proclama, sob o anagrama de Sevarias,
legislador genial e fundador de Utopia. A Histoire des Sévarambes é a
mais bem acabada das utopias romanescas. É o paradigma da “utopia
narrativa” ( J.-M. Racault), com um hábil equilíbrio entre a estatística
fictícia e a viagem imaginária. A obra tem cinco partes. A primeira conta
uma aventura marítima com naufrágio nas terras austrais e robinsonada,
a segunda, o habitual episódio de turismo utópico e a instalação de Siden,
anagrama de Denis, e de seus companheiros junto aos Sevarambes por
uma quinzena de anos. As três últimas são consagradas à história e aos
costumes dos Sevarambes. O herói civilizador dessa Utopia, Sevarias,
de origem persa e de religião parse, é um adorador do sol e do fogo. Ele
estabelece na Terra Austral uma monarquia “heliocrática”, da qual ele é
o vice-rei e grande sacerdote, como Moisés entre os hebreus, ou Calvino,
lugar-tenente de Deus na República de Genebra. Além de remeter a
precedentes tão ilustres, o principal mérito dessa constituição é de trazer
uma solução à grande preocupação política do tempo “definindo um
governo que exclui a tirania sem renunciar à estabilidade e ao poder”
(TROUSSON, 1979, p. XVI). A heliocracia dos Sevarambes é, de certa
forma, o prestígio do Rei-Sol aliado à liberdade de consciência. Além
disso, e para a felicidade de todos, com ausência de propriedade privada
e de nobreza hereditária.
Como em Antangil, a utopia dos Sevarambes concede um grande
espaço à questão religiosa. A obra não se limita a expor os princípios da
religião ideal, ela começa por evocar um contra-exemplo. A feliz Reforma
religiosa de Sevarias sucedeu a uma impostura. Antes dele, StroukarasOmigas, taumaturgo e curandeiro, já havia fundado uma religião solar,
mas, apoiando-a em falsos milagres, que lembram estranhamente os
de Moisés e de Jesus. Ele se proclamava filho da divindade, se cercava
de apóstolos divulgando seus méritos e logo em seguida cercou-se de
um clero enganador e ganancioso. No lugar dessas mentiras, Sevarias
estabelece o culto de uma trindade razoável, compreendendo o Deus
soberano Khodimbas, ou Grande Ser, inacessível aos mortais, um Deus
subordinado, o Sol, que é “como o canal favorável por onde escorrem até
nós os benefícios e as graças do grande Ser que o sustenta”, e em terceiro
lugar uma deusa da pátria. O Deus invisível lembra o Pachacamac dos
Peruanos e o culto da pátria se inspira em Esparta, Atenas e Roma.
A bricolagem religiosa que se observa em Antangil se confirma
em Veiras, grande leitor e fervente compilador de utopias, que
não deixa de citar em prefácio, para logo delas distinguir sua obra,
“A República de Platão, A Utopia de Thomas More ou a Nova Atlântida
164
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
do chanceler Bacon”. Essa bricolagem verifica-se na descrição de uma
seita cristã minoritária que os tolerantes Sevarambes aceitam entre eles.
Os giovanitas, assim chamados por causa do nome de seu fundador
Giovanni, um veneziano que foi o governador de Sevarias, celebram
a ceia como os calvinistas, mas negam a Trindade e a divindade eterna
do Filho de Deus. Nisso, eles são arianos ou socinianos. O que não os
impede de crer em “quase tudo em que crê a Igreja Romana, como o
Purgatório, a oração para os mortos, a invocação dos santos, o mérito
das obras”, e de reverenciar o Papa como o verdadeiro sucessor de são
Pedro.
Essas contradições, ou essas incoerências, podem ser desconcertantes.
Elas testemunham, desde a utopia de Antangil, em que ainda se tratava
apenas de dar uma forma mais branda ao calvinismo, o formidável progresso
do indiferentismo. Todos os ritos e todas as crenças se equivalem. Os diversos
dogmas religiosos estão igualmente afastados da verdade, e como tais podem
combinar-se entre si em proporções variáveis. O fundamento do pensamento
de Veiras, como sugere Raymond Trousson, é, sem dúvida, o materialismo
que professa o filósofo Scromenas. O deísmo dos Sevarambes não é mais do
que uma religião razoável e suportável, não é uma religião que chega a dar
sérias razões de viver.
O mesmo pessimismo antropológico já se encontrava na Terre
australe connue de Gabriel de Foigny (1990), publicada em Genebra sob
um falso endereço em 1676 e reeditada com cortes consideráveis em 1692.
Mais marginal ainda que Veiras, Foigny foi alternativamente monge
franciscano e protestante heterodoxo, antes de tornar ao catolicismo e
morrer católico. Esse perpétuo trânsfuga influenciado pelos Préadamites
de Isaac La Peyrère influenciará por sua vez a quarta e última das Viagens
de Gulliver34. À sua imagem, Jacques Sadeur, o herói da Terre australe
connue, machucado, ferido em sua alma e em sua carne, perseguido por
uma inexplicável maldição, busca até em um mundo imaginário uma
impossível quietude. Ao final de sua odisséia, ao desembarcar no porto
de Livorno, ele cai na água.
Sadeur passou trinta e dois anos de sua vida aventurosa junto aos
habitantes da Terra Austral. Hermafroditas, estes últimos são gerados
em uma partenogênese das mais misteriosas. O esperma e o sangue
estão ausentes de sua procriação - procriação pela qual, aliás, eles provam
apenas repugnância. Sua aversão é tamanha apenas em ouvir falar desses
“começos” (FOIGNY, 1990, p. 135) que eles preferem dizer que seus
filhos vêm em suas entranhas como as frutas nas árvores. Eles vivem nus,
mas sua nudez ordinária não provoca o desejo em modo algum. Suas
partes genitais, menores que as nossas, são pouco aparentes. Durante sua
gravidez, o ventre, que eles têm plano, mal se incha. Quase sem abertura
e sem protuberância, ainda que possuindo os dois sexos, seu corpo é
um corpo perfeito, um corpo fechado. A parte feminina de seu ser não
produz “nada como as perdas da natureza comuns às mulheres que não
estão grávidas” (ibid., p. 137). Quanto à sua metade masculina, ela não
se perturba em modo algum com a visão dos seios arredondados e rubros
34
A profunda semelhança
existente entre Foigny e
Swift foi trazida à luz por
Jean-Michel RACAULT,
1991, p. 594-595.
165
FRANK LESTRINGANT
de seus “irmãos”. Ora, longe de partilhar dessa ataraxia, o narrador trai,
por não se conter, sua natureza essencialmente diferente. Seus erros
repetidos atraem primeiramente reprimendas, depois um afastamento,
e finalmente sua condenação à morte, quando, cedendo aos charmes de
uma jovem cativa que ele viola na guerra contra os fondinos, é pego em
flagrante, convencido de ser “um inventor de crimes”.
Mesmo fechamento e mesma reserva no plano alimentar.
Alimentando-se de maneira muito frugal, os austrais praticamente não
expelem excrementos: eles quase não evacuam no espaço de “oito dias”
(ibid., p. 140). Exclusivamente frugívoros, eles ignoram a cozinha, que
desnatura. E ainda se escondem para comer o pouco que comem, como
se isso fosse uma ação vergonhosa. Esta é, com efeito, uma ação da
qual “um homem digno desse nome deveria se abster, se pudesse”. Eles
se nutrem somente “em segredo e às escondidas”. Em suma, odeiam
qualquer ação que lhes lembre a animalidade. Daí vem seu ódio particular
pela alimentação carnívora. Se eles se recusam a comer carne é por causa
de um temor vertiginoso: o contágio seria inelutável e os conduziria
a devorar seus semelhantes. O fato é “que a carne dos animais tendo
muita relação com a dos homens, quem puder comer a carne daqueles,
comerá sem dificuldade a carne destes” (ibid., p. 178). A Terra Austral
impele o sangue para fora. Nem menstruação nem excrementos vêm
poluir seus habitantes, virgens de qualquer dano carnal e que afastam
de sua boca como de seu sexo os corpos que se lhes assemelham demais.
Eles não dedicam à divindade nenhum sacrifício nem mesmo culto público,
e reproduzem, em seu regime de vida, o interdito do Levítico concernente
ao sangue.
Expulso do centro, o sangue, por outro lado, reflui nas fronteiras.
Ele corre em borbotões nas guerras onde não são poupadas nem
mulheres, nem velhos, nem crianças, mas onde, conforme o interdito
freqüentemente decretado no Antigo Testamento, em caso de vitória
sobre o inimigo, todo ser vivo é exterminado, até o rebanho. Separada da
animalidade ao preço da exterminação sempre recomeçada dos intrusos
que surgem em sua periferia, a utopia austral ignora, aparentemente,
as restrições do corpo. Seus habitantes são “homens inteiros”, ou seja,
semideuses que, como não podem envelhecer nem caem doentes,
suicidam-se por causa do tédio. Essa “humanidade sem pecado e, no
entanto, sem redenção nem salvação”, para retomar a fórmula de JeanMichel Racault (1991, p. 513), rechaça para fora dela os vestígios
do pensamento sacrificial. Daí esta paródia da Eucaristia situada em
Ausicamt ou Oscamt, uma ilha do arquipélago vizinho, da qual Jacques
Sadeur é a vítima em seu retorno do continente austral. Ele é amarrado
nu sobre um patíbulo de trinta pés de altura, é espetado nos pulsos e
nas coxas e os sacerdotes bebem seu sangue em meio às aclamações da
multidão. Muito oportunamente, uma irrupção de corsários franceses
interrompe o sacrifício.
A sociedade austral expulsa ou aniquila o corpo indesejável,
que ela não consumiria por nada no mundo, por ele tanto condensar,
166
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
a seus olhos, a impureza primitiva e o vil horror do animal. Ao contrário,
os habitantes de Oscamt pretendem apropriar-se até da menor parcela
e da última gota da carne e do sangue de uma vítima caída do céu.
Nesse antagonismo dos costumes alimentares e religiosos encontramos
a oposição paradigmática que Claude Lévi-Strauss, em Tristes Tropiques,
estabelece entre a antropofagia e a antropoemia (1955, 447-448), e que
se verifica, a partir das origens da Reforma, no divórcio durável dos
católicos e dos protestantes. A Terra Austral se coloca resolutamente,
por seu horror da carne e da nutrição, sob o signo do vômito. Ela
rejeita, extermina e queima tudo o que vem de outro lugar. Oscamt,
inversamente, obedece ao regime antropofágico. Ela acolhe em si o
intruso até recebê-lo no mais íntimo de sua carne. Se quisermos ler a
Terra Austral conhecida à maneira de uma alegoria teológica, é bastante
fácil reconhecer na primeira dessas sociedades “uma imagem do rigor do
calvinismo genebrino” (RACAULT, 1991, p. 509) e, na segunda, uma
clara alusão ao catolicismo. A anamorfose da ficção conduz o primeiro
modelo a um deísmo sem ritual e sem sacramentos, onde cada um ora
à divindade como bem entende, no foro interior de sua consciência, e
o segundo, a uma religião teatral e sanguinolenta, onde o sacrifício se
perfaz realmente à vista de todos. O desprezo pelo corpo e por suas
necessidades, o culto informal e silencioso, remetem sem dúvida a uma
sensibilidade protestante35. Já o júbilo ritual e o sacrifício neste grande
espetáculo, onde o corpo carnal é exaltado antes de ser consumido,
respondem, de maneira transparente, aos fastos da Igreja católica da
Contra-Reforma.
Transposição de sua própria situação histórica entre Roma e
Genebra, o destino doloroso do herói foi praticamente o mesmo de
Gabriel de Foigny, franciscano que abandonou o hábito, convertido ao
calvinismo, em tudo marginal e rebelde, sempre objeto de escândalo
e de reprovação, e que voltou para morrer, após ter sido expulso de
Genebra por má conduta, em um convento na Sabóia. Mas o alcance
de tal relato exemplar deve ser ampliado. Entre uma religião que, em
nome da natureza, confundida com a razão, exprime um horror visceral
da natureza36, e uma outra que dedica sacrifícios a ela, ao contrário, em
excesso, pronta a recair na barbárie primitiva, não há realmente escolha.
A sobre-humanidade austral, que censura nela mesma a parte
animal do ser, evolui para a inumanidade. Por outro lado, a maldição
do sangue pesa sobre o mais comum dos mortais, ou seja, na linguagem
dos australianos, sobre os “meio-homens” que possuem por causa de sua
imperfeição apenas um dos dois sexos. A condenação crítica da utopia37
em Foigny, assim como mais tarde em Swift, na Viagem ao país dos
Houyhnhnms, não leva de forma alguma, por uma conseqüência indireta,
à reabilitação do real, muito pelo contrário. A ironia geral e propriamente
desesperada sobre a condição humana proíbe procurar nas sociedades ou
nas religiões existentes uma solução aceitável.
A observação de Gustave
Lanson sobre este ponto é
perfeitamente justificada. Cf.
Maria Teresa BOVETTIPICHETTO (1976, p. 388).
35
36
Conforme a fórmula de
COULET: “estes seres naturais
têm em realidade horror da
natureza, ela é a seus olhos
desonra e queda, e talvez
mesmo pecado” (1967, t. I, p.
283). Cf. RACAULT, 1991, p.
496-501.
37
A expressão é de
RACAULT, 1991, p. 594.
167
FRANK LESTRINGANT
Da utopia como impostura:
a ilha Formosa de George Psalmanaazaar
38
Ver LESTRINGANT
1994b.
39
A edição original inglesa
havia sido editada em 1704
em Londres sob o título: An
Historical and Geographical
Descriptions of Formosa. Sobre
o personagem, de origem
francesa, e as fontes de sua
obra, ver ADAMS, 1993, p.
93-97. Do mesmo autor, 1983,
p. 71 e 108. Psalmanaazaar,
alias Psalmanazar, se tornará
em sua velhice, amigo de
Samuel Johnson.
168
A uma viagem pouco menos sombria nos convida o suposto
George Psalmanaazaar, muito provavelmente um huguenote que fugiu
da França logo após a revogação do édito de Nantes38. Mas ao invés de
fazer surgir no oceano, como Foigny, uma hipotética Terra Austral, com
sua geografia, sua flora, sua fauna e sua humanidade hermafrodita, ele
limitou-se a escolher uma ilha bem conhecida desde o Renascimento,
a bela e planturosa Formosa, e a preencher esses contornos e esse
nome já familiares com um novo conteúdo. Tal procedimento foi
maravilhosamente bem-sucedido. Não apenas ele pôde dissimular o
caráter fictício de sua relação, mas também fez com que o herói e narrador,
que era ele, sobrevivesse à sua aventura. Literalmente, ele construiu com
esse relato imaginário sua carreira e sua glória, e conseguiu que lhe fosse
atribuída uma cadeira de formosano em Oxford.
A Description de l’Ile Formosa, primeiramente publicada em Londres
em 1704, é, com efeito, uma das mais célebres contrafações que a literatura
de viagem produziu39. Essa pintura minuciosa de uma sociedade teocrática e
canibal transportava ao Extremo-Oriente os fastos sanguinolentos da religião
asteca. A intenção era criticar a ação missionária vigorosa dos jesuítas nesta
parte do mundo. Conseqüentemente, a idolatria dos formosanos estigmatizava
a concepção católica do sacrifício da missa. Bem acolhida em Londres, onde
sua apologia do anglicanismo foi apreciada, George Psalmanaazaar foi, ao
contrário, denunciado como impostor pelos jesuítas franceses. Apesar de seus
protestos, a relação do pseudojaponês foi amplamente aceita como autêntica
durante cerca de trinta anos.
Com Formosa, chegamos a um caso-limite. É uma utopia
dada como real e que não é uma utopia no sentido estrito, já que ela é
reconhecível no mapa e que ela tem um nome e contornos perfeitamente
determinados. Formosa, apesar de Todorov (1991, p. 134-141), não
coloca apenas um problema de ética histórica; o problema é também
de ordem epistemológica. Um século tão apreciador de utopias poderia
enganar-se sobre o caráter evidentemente inventado de uma descrição
que coincidia com seu desejo.
O mais surpreendente é a maneira pela qual o autor soube
produzir um sentimento de familiaridade apropriado para fazer com
que o mais inverossímil dos relatos fosse acolhido como verdadeiro.
A suposta vastidão da ilha de Formosa desafia o simples bom senso.
A existência de sacrifícios humanos contrasta com as observações até
então trazidas pelos viajantes. Mas tamanho horror não é desconhecido,
já que reside no coração do sacramento católico da Eucaristia, tal
como ele é espontaneamente interpretado pelos protestantes e por eles
cordialmente aviltado. A utopia formosana confere assim um brilho
espetacular a esse rito tanto mais escandaloso por ser perpetrado com
toda tranqüilidade em regiões próximas à Europa meridional, onde
reina sem divisão a igreja de Roma.
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
Que se julgue pelos fatos: todo ano são não menos de dezoito
mil crianças do sexo masculino, com menos de nove anos, a perecerem
pela mão dos sacrificadores. Certamente, como explica o narrador, a
teocracia sanguinária de Formosa teve seus precedentes entre os povos
mais famosos da história, gregos, latinos, israelitas. Quanto ao risco de
extinção da população por esse excesso sacrificial, ele é precavido pela
poligamia, fonte de uma descendência inesgotável. Além disso, a cifra de
dezoito mil não é estritamente respeitada: a “lei positiva” que o prescreve
“não é executada ao pé da letra”.
Como nota J.-M. Racault, há algo de Borges no pseudoformosano (1991, p. 304). Com um rigor impressionante, a Description
confia todos os elementos necessários à estatística do país. Um mapa,
que se estende da Coréia, no Norte, às Filipinas, ao Sul, recoloca a ilha
no arquipélago do mar da China. Um alfabeto, em que se encontram
alguns caracteres gregos e hebraicos, oferece ao leitor a possibilidade
de iniciar-se nos rudimentos da língua formosana. O viajante descobre
pouco depois, em seu quarto, moedas gravadas com curiosos hieróglifos
que lhe permitirão, se um dia ele tiver o desejo, negociar improváveis
mercadorias com os habitantes do lugar, cujos costumes, distintos
segundo o sexo e as condições sociais, são descritos. Tanto quanto uma
utopia, com efeito, a Description é um guia de viagem.
O quadro introdutório prepara para o mais central, este prato
principal constituído da antropofagia religiosa dos formosanos. O ritual
é descrito com toda a precisão técnica necessária. Nem gritos, nem
lágrimas, nem vãs convulsões durante um sacrifício prolongado por
horas, onde se degolam as vítimas em série e se arrancam os corações à
medida que se dá o sacrifício. O mais religioso silêncio é entrecortado
somente pelas orações dos oficiantes. Ressoam em seguida hinos
sagrados acompanhados de flautas, tímpanos “e outros instrumentos”
(PSALMANAAZAAR, 1705, cap. VI, p. 66-67) quando, assim que a
carne é cortada em pequenos pedaços e fervida em seu sangue, cada fiel
recebe sua parte. Com destreza, os sacerdotes enfiam em espetos bolinhas
de carne humana que, uma a uma, serão distribuídas à assembléia
composta de homens adultos, mulheres e crianças com mais de nove
anos. Um após o outro, eles avançam em direção do altar, onde recebem
respeitosamente das mãos do sacerdote o pedaço de carne consagrado e
o comem depois de terem colocado um joelho no chão.
É então que intervém o procedimento da “revolução sociológica”,
que logo receberá de Montesquieu suas letras de nobreza40. A testemunha
dos ritos formosanos fica naturalmente impassível face às cerimônias que
lhe são familiares, como se supõe. Por outro lado, ela precisa esclarecer
seu leitor europeu por meio de comparações julgadas apropriadas e que,
por um efeito de choque retroativo, farão com que pareçam insólitas
as práticas mais bem aceitas em nossas regiões. Daí o emprego de
formulações ambíguas como “essa espécie de Comunhão” para designar
a antropofagia ritual dos formosanos.
40
Sobre este conceito de
“revolução sociológica”,
ver CAILLOIS, 1947, t. I,
p. V. Cf. MAY, 1990.
169
FRANK LESTRINGANT
A continuação da apresentação das cerimônias observadas em
Formosa confirma esse modo de leitura alegórica, que recomendam,
no pé da página, as notas destinadas ao leitor. É assim que a mitra do
Grande Sacerdote, a quem pertence o privilégio de arrancar o coração
das crianças, lembra a do bispo; a faixa de tecido violeta que ele veste
se parece com o escapulário da “maioria dos monges da Europa”. Mais
adiante, as sandálias do Grande Sacerdote levam à comparação com as
sandálias dos capuchinhos, uma nota logo caracterizando estes últimos
como hipócritas: “É um tipo de monge que se diz reformado da Ordem
de São Francisco, que dá mostras de uma vida muito pobre e muito
austera; eles andam descalços” (PSALMANAAZAAR, 1705, cap. XII,
p. 84-86).
A primeira parte do livro estigmatiza o catolicismo pelo
desvio exótico. A segunda emprega nessa condenação os argumentos
complementares de uma narração. Notado por sua inteligência por um
padre jesuíta que se apega a ele e o educa, G. Psalmanaazaar é levado
à Europa. Primeiramente instruíram-no apenas nas verdades gerais
do cristianismo, que ele acolheu com entusiasmo. Ora, em Avignon,
o padre Alexandre de Rodes quer obrigá-lo a aceitar o dogma da
transubstanciação que o repugna, apesar de estar acostumado com o
derramamento de sangue e com a ingestão de carne humana. Ameaçado
pela Inquisição, ele se evade, chega a Colônia, onde conhece os
luteranos e sua consubstanciação, tão chocante a seus olhos quanto “a
Transubstanciação Romana”. O calvinismo lhe parece mais razoável.
Não nos esqueçamos de que o “verdadeiro” Psalmanaazaar é um provável
huguenote que sofreu com a expulsão.
O formosano consulta um ministro da religião reformada, que
concorda com ele a respeito dos “absurdos aos quais as doutrinas dos
romanos e dos luteranos estão sujeitas”, e ei-lo bem perto de tornar-se
cristão. Mas o pastor se mostra por demais apegado ao princípio da
predestinação absoluta. Rejeitado uma outra vez, errando de confissão
em confissão, o formosano fracassa e termina nos Países Baixos onde ele
adota por livre e espontânea vontade o anglicanismo, única doutrina,
a seu ver, que está em acordo com a religião natural, a mais conforme,
aliás, à Igreja primitiva. Uma oração de ações de graça conclui o capítulo
XXXIX e último: “Faça o céu que eu nunca me desvie dele e a este grande
Deus seja dada toda honra e toda glória, agora e sempre. Amém.” Antes
da Description, Antangil, após a exposição de uma doutrina religiosa
bastante vizinha, se concluia com a mesma invocação.
A fábula formosana parece, definitivamente, ser de uma
simplicidade luminosa. O enigma em forma de rébus geográfico logo
se resolve em uma história edificante, coroada por uma conclusão das
mais morais. Nesses anos que seguem a revogação do édito de Nantes,
tal testemunho constitui um argumento de peso na luta contra a Igreja
romana e a intolerância triunfante.
É também o balanço um pouco fariseu que faz, praticamente na
mesma época, Robinson Crusoé nas Réflexions sérieuses et importantes
170
HUGUENOTES EM UTOPIA OU O GÊNERO UTÓPICO...
que lhe atribui Daniel Defoe. Ao final de uma vida de aventuras
e de provações, o colonizador de Despair Island chega a essa idéia
tranqüilizadora, em processo de tornar-se um lugar comum:
Deve mesmo parecer a juízes imparciais que entre os cristãos, aqueles
cuja religião é a mais conforme aos livros sagrados são mais humanos
e mais sociáveis do que os outros. Nos países protestantes, a doçura
e o socorro mútuo são infinitamente mais notáveis do que nos países
católicos, e não seria difícil demonstrar isso ao longo da história e pela
experiência (DEFOE, 1721, t. III, cap. IV, p. 230).
Esse testemunho de aprovação podia agradar aos leitores
anglicanos das Serious Reflections como aos da Ile Formosa, mas o que
pensava realmente Psalmanaazaar? A alegoria canibal certamente pode
revestir um outro sentido. O catolicismo é de fato uma antropofagia.
Mas a predestinação absoluta recomendada por Calvino e seus discípulos
não é menos “monstruosa” que o dogma “absurdo” da transubstanciação.
Quando de uma disputa pública organizada na Eclusa, nos PaísesBaixos, o formosano, que hesita em deixar-se batizar, está em condições
favoráveis para replicar aos que se indignam com a inumanidade dos
sacrifícios de crianças, que o Deus “que tira de propósito criaturas do
nada para torná-las soberanamente infelizes, e que as condena a penas
eternas, antes mesmo que elas existam”, é muito mais cruel e bárbaro41.
A lição é: o símbolo pode ser mais assustador do que a própria realidade.
Em sua oposição ao papa, os calvinistas esforçaram-se para reformar
e purificar sua religião, afastando dela qualquer traço da obrigação
sacrificial das origens42. No entanto, eles não acabaram com o terror que
pesa sobre as almas.
De volta da contra-utopia de Formosa, o sábio Psalmanaazaar,
segundo uma regra várias vezes verificada no curso desta análise, adota
em matéria religiosa o caminho do meio como o mais razoável. Essa
solução híbrida é testemunha do espírito de bricolagem próprio do autor
e narrador, como, além do mais, da inverossímil construção de Formosa
em seu conjunto. O genial impostor não podia senão dar uma lição conforme à sua impostura. A escolha do anglicanismo era muito apropriada
para capturar seu público e convencê-lo da conformidade de seu relato.
Mas essa certeza assim dada por procuração era uma certeza traiçoeira,
uma falsa verdade, como a alegoria geográfica que lhe servia de pretexto
e suporte. A Description de l’île Formosa poderia assim constituir, para
além da ajuda conjuntural que ela traria à Reforma e aos inimigos dos
jesuítas, um formidável ataque à própria Reforma e, contando o final, a
toda forma de religião.
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Tal é o problema tratado em
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