David Lynch em

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David Lynch em
David Lynch em
Bianca Gonçalves Bueno site: http://www.bibi.org/ email: [email protected] Junho de 2003
Introdução Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive), dirigido por David Lynch, é uma obra complexa, como boa parte dos filmes de Lynch. O cineasta não se contenta apenas em contar histórias, ele quer criar mistérios, envolver o público e fazê­lo pensar. Para Lynch as obras estão sempre abertas e devem ser fruto de reflexão depois que o “espetáculo” acabou. Analisar Cidade dos Sonhos é fazer um passeio pelas obras de Lynch e por sua mente: o filme é um complexo de temas já abordados em sua obra e mais uma reflexão do o diretor espera do cinema enquanto criação artística que interage com o público. Assim, para que possa ser feita uma análise sobre o filme, é preciso ver que caminho Lynch percorreu até chegar a esta obra. Antes da análise do filme há uma breve biografia que tenta abarcar as experiências de Lynch não só no campo do cinema. Depois uma sinopse do filme e por fim análise. A análise se compõe de três partes: análise do filme em si, buscando seus significados, portanto uma análise semiótica; análise do filme enquanto uma metáfora do próprio cinema, e por extensão Hollywood, a “fábrica de sonhos”; e por fim, a análise do filme como uma síntese de suas obras. Biografia Quem é David Lynch? Jimmy Stewart de Marte, Mel Brooks. Um garoto entre 11 e 23, David Lynch. Sendo um dos mais importantes diretores da atualidade, Lynch é muitas vezes visto como um cineasta europeu por sua estética. De difícil interpretação, seu filmes fogem do “lugar comum”, com histórias fragmentadas, pois Lynch quer aos seus espectadores o mesmo que deseja ver no cinema: o mistério e reflexão. Para ele, os filmes não devem vir prontos e ter todas as respostas, e ele mesmo não gosta de falar de seus filmes, pois, cada pessoa tem uma interpretação possível para o que vê e o mais importante é buscar as respostas. Seus filmes chocam, não apenas pela obscuridade, mas pelo temas que envolvem sexo, violência, sexo e violência, morbidez, aberrações e sobrenatural. Seus filmes não conseguem ser definidos, beirando o noir , suspense, drama, thriller , horror, momentos de extrema ironia, e até mesmo road­ movies. A vida nos filmes de Lynch é estranha: é no seio da calma classe média americana de pequenas cidades que ele explora o lado negro do mundo, mostrando que nem tudo é belo na vida. David Keith Lynch nasceu em 20 de janeiro de 1946 (mesmo dia que Frederico Fellini, um de seus diretores preferidos), em Missoula, Montana, fronteira dos Estados Unidos com o Canadá. Filho de um engenheiro florestal que trabalhava para o Departamento de Agricultura norte­americano, ele e a família eram obrigados freqüentemente a se mudar de cidade. Lynch passou sua infância e adolescência viajando, morando nos estados de Idaho, Washington, Carolina do Norte e Virginia. Durante este período chegou a ser escoteiro e em 1963 ingressa no mundo das artes, através da Cocoran
1 School of Art, depois curso de pintura no Museum of Fine Arts de Boston e na Academy of Fine Arts da Pensilvânia. Seu primeiro filme, uma animação curta de 4 minutos, Six Figures Getting Sick (conhecido também como Six Men Getting Sick), de 1966, mostra figuras vomitando com as cabeças em chamas de diferentes ângulos, projetadas numa tela esculpida em três dimensões com faces humanas. O filme recebeu o prêmio Dr. W.S. Biddle Cadwalder Memorial Prize, PAFA. Dois anos depois, já casado com Margaret (Peggy) Reavey, Lynch realiza seu segundo filme, The Alphabet. O curta de 4 minutos é baseado no relato do sonho da sobrinha de Peggy, que acordou recitando o alfabeto. Para realizar este segundo filme Lynch pintou as paredes do quarto de preto e pintou o rosto de Peggy de branco para dar um contraste irreal. A câmera se move em diferentes posições, balançando. Há também uma seqüência animada de letras do alfabeto que lentamente aparecem e uma letra a maiúscula de gera uma minúscula e que origina uma figura humana. A trilha começa com um canto das letras “ABC” seguindo de um homem cantando. Na mixagem do som são inseridos efeitos como vento, choro (gravado na época do choro de sua filha Jennifer) e uma sereia. The Alphabet termina com a tal menina vomitando sangue: "Gosto de descrevê­lo como um pesadelo sobre o medo de aprender", define Lynch. O curta de 4 minutos ganhou um prêmio do American Film Institute (AFI). Com o prêmio do AFI de US$7200 realiza The Grandmother , em 1970. O curta de 35 minutos mistura cenas de filmagem em branco e preto com animação colorida. O filme é sobre um garotinho que foge de seu ambiente familiar criando uma avó para si através do cultivo de uma semente. As imagens filmadas trabalham com a estética dos primeiros filmes mudos, misturando tomadas granuladas, maquiagem estilizada, técnicas de atuação exageradas, ritmo errático, diversidade de iluminação e roupas indefinidas. No som, mais uma vez a experimentação surge com gritos de êxtase e medo e trovões. A temática da surrelista já aparece neste filme, com a imagem do olho de uma avó idealizada sendo perfurada pelos galhos do garotinho. O filme deu a Lynch uma bolsa no Centro para estudos avançados no American Film Institute, em Los Angeles. No ano seguinte começa a escrever o roteiro de Eraserhead, que será seu primeiro longa e só estreará em 1977. Durante este período Lynch realiza mais um curta, The Amputee. O curta de 5 minutos mostra uma mulher com as duas pernas amputadas até o joelho, sentada sozinha em um quarto escrevendo uma carta e mentalmente lendo para si mesma. A carta contém detalhes de relações que terminaram mal com ela e outros. Enquanto ela escreve, um médico cuida de suas pernas, mas ela não lhe dá atenção. A cena foi filmada duas vezes e o som foi inserido posteriormente, dando a impressão de que o som flutua sob as imagens.
2 Eraserhead, que estreou em 1976 no Festival de São Francisco, teve sua “premiere” em 19 de março de 1977 no Filmex em Los Angeles. Considerado por muitos críticos seu melhor filme, demorou quase seis anos para ser concluído. Nele, Lynch exerce as funções de diretor, co­roteirista, produtor, editor, diretor de arte e supervisor de efeitos especiais. O filme quase experimental, mostra a realidade doentia de vidas aparentemente desinteressantes e suburbanas a partir da relação de um homem com um feto. O feto em questão é um mostro que se assemelha a um ET. O sonho, que permeia toda a obra do diretor, surge na seqüência inicial, depois do título: uma cabeça de lado, a lua e um homem na janela. Os sons extradiegéticos e experimentais mais uma vez são utilizados, como metais e ruídos diversos. A iluminação marcante tem fortes contrastes de preto e branco, com alguns focos bem delimitados. Os personagens bizarros aparecem com uma mãe histérica, um pai louco e submisso, e uma boneca que canta e dança dentro de um radiador, pisando em vermes que se movem no chão. Eraserhead é Henry Spencer, o rapaz em busca de sua identidade que se identifica com o feto e nele se projeta (ou será ele mesmo um ET?), e que mais tarde se descobre, tem uma cabeça de borracha. As luzes que piscam freneticamente e queimam enquanto o feto está morrendo nos dão a real sensação de alucinação ao filme. Eraserhead foi alvo de culto de cinéfilos ao longo dos anos, sendo exibido em sessões à meia noite nos cineclubes. Jack Nance que faz o papel de Henry irá trabalhar em quase todos os filmes de Lynch, inclusive na série de Tv Twin Peaks, excetuando O homem elefante, seu filme seguinte e Cidade dos Sonhos. Mais tarde Lynch admitiu que a inspiração para o bebê monstro de Eraserhead foi sua filha mais velha, Jennifer. Em 1978, Mel Brooks contrata David Lynch para dirigir O homem elefante (The elephant man), que estréia em 1980, sendo indicado para oito Oscar s, inclusive melhor filme e diretor e vários prêmios europeus. A história baseada em fatos reais, da vida de John Merrick, um homem da Inglaterra vitória todo deformado por uma doença terrível, é um filme sensível. Mostrando a exploração do que está sob as aparências, há toda uma sociedade que exclui Merrick e da qual ele quer participar, da qual quer fazer parte. E é desta forma que se manifesta o racionalismo lynchiano, através de uma crítica social mordaz e agressiva e da quebra lógica. Ao longo do filme, John Merrick é objeto de três olhares, três idades do cinema: o burlesco, o moderno e o clássico, ou ainda: a feira, o hospital e o teatro. Ao longo do filme o “monstro” Merrick vai se tornando humanizado, ao contrário de seus demais filmes. Lynch participou da elaboração do roteiro e da escolher de boa parte da equipe, mas a pesar de toda esta aparente liberdade, teve muitos problemas e limitações, como imposições de atores, tempo do filme, entre outros. O início do filme, assim como Eraserhead,
3 também é um sonho, ou melhor, um pesadelo, com elefantes e uma bela mulher sendo agredida por eles. E quando Merrick vai ao teatro, suas impressões nos são passadas como num sonho, em fusões de imagens sobrepostas. A fotografia bem trabalhada, toda em preto e branco ajuda a criar toda uma atmosfera do que era Londres no século XIX e será o último filme do diretor em p&b. O sucesso confirmou o talento de Lynch, que conseguiu 50 milhões de dólares para produzir o seu terceiro filme Duna . A partir de 1982, e durante dez anos, Lynch produz para o jornal Los Angeles Reader, a tirinha The Angriest Dog in the World. Ela consistia em quatro quadrinhos (sempre os mesmos) nos quais apenas o texto mudava. No quadrinho, há um cão raivoso que não pode sair do lugar, pois está sempre preso com uma coleira e fica o dia todo ouvindo as conversas vazias de seus donos, o que o enraivece profundamente Perguntaram para Lynch sobre o humor contido nas tiras e ele respondeu: "Sim, ela é perversa porque o humor na tira é baseado na doença do estado lastimável de angústia e infelicidade das pessoas. Mas isso me impressiona". George Lucas ofereceu a Lynch a direção do terceiro episódio de Guerra nas Estrala, O Retorno de Jedi. Lynch recusou e em vez disso desenvolveu o roteiro de Ronnie Rocket, um filme de aventura que seria produzido por Francis Ford Coppola, mas que nunca foi feito, cujo roteiro circula pela Internet. Foi então dirigir Duna. Em 1984 estréia o malsinado Duna (Duna). O filme, uma superprodução de Dino de Laurentiis, custou 60 milhões de dólares, uma fortuna para a época e foi um fracasso de público e crítica, como já previa Lynch durante as filmagens. Ao tentar adaptar para as telas o longo romance de ficção científica de nome homônimo de Frank Hebert, o filme de duas horas e vinte minutos (na versão final, pois deveria ter quatro horas na versão de Lynch) não consegue abarcar toda a complexa história, deixando muitos vão e passagens mal construídas. A versão comercial do filme é descrita por Lynch como um compressor de lixo. O ator principal Kyle MacLachlan, foi a primeira escolha de Lynch e fez outros filmes com o diretor, além da série de Tv Twin Peaks. De Duna também saem os atores Dean Stockwell e Brad Dourif, parceiros constantes em sua obra. MacLachlan é Paul Atreides, ou Usul Muad’Dib, o predestinado que salva o povo de Arrakis, conhecido como Duna, da exploração do império. Os eventos do filme se passam em dez mil anos no futuro, onde a raça humana descobriu o segredo da longevidade e da presciência por meio do uso de uma droga, a chamada especiaria melange, encontrada apenas no planeta deserto Arrakis (Duna), habitado por estranhos nômades e por vermes gigantescos. Duna é um planeta desértico, onde o controle da água é vital para os povos que o habitam. A melange é uma
4 mistura de temperos que prolonga a vida e aumenta a capacidade de intuição de quem a ingere, além de possibilitar as viagens pelo espaço, logo a extração da melange é o negócio mais lucrativo do Império e é disputada por todos. O maior mérito do filme é a ambientação gótica que consegue recriar visualmente o que se lê no livro e os bons efeitos especiais. Claro que, sendo um filme de David Lynch há personagens bizarros, complexos, passagens sobrenaturais (como em qualquer filme de ficção científica) e feitos sonoros apurados, mas o filme nem de longe é uma obra que reflete a visão de Lynch. A partir de Duna que Lynch começa a trabalhar com músicos no papel de atores, com Sting no papel de Feyd­Rautha, o vilão, como fará mais tarde com Henry Rollins, Chris Isaak e Angelo Badalamenti, entre outros. Mesmo depois do fracasso de Duna , De Laurentiis volta a apostar no talento de Lynch, que cria uma obra prima: Veludo Azul (Blue Velvet). O filme que estréia em 1986 é indicado a diversos Oscars, pelo National Society of Film Critics ganha os prêmios de melhor ator (Dennis Hopper), filme, diretor e fotografia, e recebe o prêmio de melhor diretor do Los Angeles Film Critics Association Award. Veludo Azul é um marco na carreira de Lynch, deixando ainda mais clara a estética que será seguida em seus filmes seguintes: cores saturadas, fotografia com muito contraste, abundância de vermelhos e azuis, estilo neo­noir , personagens aparentemente comuns que mostram seu lado obscuro, pequenas cidadezinhas onde a tranqüilidade é apenas aparente, referências à década de cinqüenta, fetichismo, perversões, sexo, drogas, voyeurismo, fogo, clubes noturnos, cortina vermelha, realidade como um pesadelo, perda da inocência, um mistério a ser desvendado e o amor como leitmotiv. Há também o início de sua parceria com o compositor Angelo Badalamenti, que a partir de então compõe a trilha sonora de todos os seus trabalhos. Tida como a obra mais original e criativa do cinema americano na década de 80, Veludo Azul convida o espectador a identificar­se com o protagonista, o jovem Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan), que está simultaneamente perdido no escuro, mas mesmo assim, preparado para viver numa dimensão inocente do mundo. É um filme brutal que não evita a exposição dos mais variados tabus. Os conceitos de belo e feio, bom e mau, coexistirem de uma forma muito próxima, atravessando o filme (e os outros filmes de Lynch) com voracidade. De certo modo é um retrato da infância plácida de Lynch na zona rural, com cerca, flores, céu azul e a cerejeira que descrevia de modo obscuro: olhando de perto, a árvore deitava uma seiva amarela e preta, e ainda mais de perto, a seiva estava cheia de milhões de formigas vermelhas. Essa memória da infância dele é quase o início do filme é uma síntese do próprio filme e das outras obras de Lynch, que diz: “Acho que a superfície da vida não é tudo o que há para ver – não reflete o que está por baixo. Descobri que mesmo os lugares mais belos têm doenças ou coisas feias debaixo da superfície – um tema que tenho explorado nos meus filmes”.
5 A beleza de Veludo Azul não reside apenas na fotografia exuberante, ou nos enquadramentos que emolduram a imagem, mas na mise en scene. Tudo no filme é belo: a placidez de Sandy (Laura Dern), a melancolia de Dorothy (Isabella Rosselini) e mesmo a loucura de Frank Booth (Dennis Hopper), que perde seu status de ser humano para ser interpretado como um animal ensandecido. Lynch consegue quase remover o sex appeal da bela Isabella Rosselini: ela perde o brilho de sua exuberância como objeto sexual e ganha em sua atuação. Cantando Blue Velvet com um vestido azul de veludo, em frente a vermelhas cortinas com uma iluminação azul marcante, Dorothy é a mais sensual das criaturas, mesmo desprovida de sua natural beleza: ela transpira sensualidade. O filme flutua ao longo das imagens lentas, onde estas mesmas são a narração – o diálogo é um acessório. As cenas de violência são vistas em slow motion com ruídos de animais e objetos metálicos extradiegéticos, intensificando o choque da imagem. Como não poderia faltar há um relato de sonho no filme, onde Sandy revela seus verdadeiros sonhos, contrastando com a realidade que se apresenta para ela: “É um mundo estranho”, diz. A vida é um mundo estranho, assim como os filmes de Lynch. Em 1988 David Lynch atua no filme de Tina Rathborne, Zelly and Me. No ano seguinte produz com Angelo Badalamenti o álbum Floating into the night, fazendo também as letras para Julee Cruise, do qual se originará Industrial Symphony nº1. O vídeo Industrial Symphony nº1 é a filmagem da apresentação que Lynch e Badalamenti compuseram para o New Wave Music Festival, que acontece todos os anos na Brooklyn Academy of Music. Eles realizaram duas apresentações de 45 minutos cada, onde as composições compostas por ambos e interpretadas por Julee Cruise, com projeção de imagens (do futuro Coração Selvagem) e atuações ao vivo. O ano de 1990 marca dois fatos importantes na carreira de David Lynch: sua estréia na televisão e a Palma de ouro no Festival de Cannes, com Coração Selvagem (Wild at Heart). Coração Selvagem é um road­movie, mas como todos os filmes de Lynch é um híbrido, misturando suspense, ação, e, claro, uma história de amor. É a história de Sailor Ripley (Nicolas Cage) e Lula Fortune (Laura Dern), onde a violência, o sexo e o rock tomam conta da tela. Baseado no romance homônimo de Barry Gifford, o filme é “o Mágico de Oz sem o Cachorro”, segundo o próprio Lynch. Diversas referências ao clássico de Fleming são usadas: os sapatinhos vermelhos da bruxa, a bruxa má e a bruxinha boa, e uma citação ao cachorro chamado Totó. Lula e Sailor querem apenas ficar junto, mas a mãe de Lula, Marietta Pace Fortune (Diane Ladd) que é a bruxa má, uma verdadeira megera, e que não gosta do rapaz, faz de tudo para poder separá­los. Logo, os dois fogem depois que Sailor sai da cadeia e Lula vai buscá­lo, levando seu casaco de couro de jacaré (totalmente kitsch) e que simboliza a
6 individualidade dele. O fogo, símbolo da paixão e da fúria aparece logo na abertura do filme é este mesmo fogo que persegue o casal nas cenas de sexo e de violência. Com uma fotografia puxando para o amarelo, mas nunca abandonado os tons azul e vermelho que compõe seus filmes, os enquadramentos conduzem o olhar do espectador do ambiente para os detalhes que descrevem as sensações dos atores. As cenas de sexo e violência são trabalhadas em câmera lenta e a movimentação das outras é conduzida de maneira lenta, e nas cenas de mis ação são as atuações que imprimem ritmo ao filme. As cenas estranhas vão desde a mãe numa cena de loucura, na qual pinta todo o rosto de batom vermelho, passando por uma atuação peculiar de Willem Dafoe como Bobby Peru que só quer ouvir “fuck me”, um grupo de psicopatas que misturam sexo com assassinato até um cachorro, que sai tranqüilamente do banco de onde aconteceu o assalto, com uma mão humana (de um dos guardas) para comer longe dali. Embora o filme tenha conquistado a Palma de Ouro, o público foi frio na recepção do filme e a crítica acabou massacrando o filme nos Estados Unidos. Lynch só não foi deixado de lado porque no mesmo ano estréia na Tv com o seriado Twin Peaks, que se tornou um sucesso de crítica e público, a pesar de chocar os expectadores. A história da jovem Laura Palmer (Sheryl Lee), que idealizava tudo de bom e positivo na pequena cidade de Twin Peaks, aos poucos vai sendo desconstruída, mostrando que todos têm seu lado negro. O que parecia um tiro n’água, com cenas de violência, sexo, acontecimentos sobrenaturais, personagens com atitudes estranhas, acabou se tornando uma mania, onde todos queriam saber quem matou a doce e jovem Laura Palmer. A beleza das três protagonistas também ajudou na promoção da série, com Madchen Amick, Lara Flynn Boyle e Sherilyn Fenn, sendo inclusive capa de diversas revistas americanas. Twin Peaks foi indicada para catorze Emmys, o Oscar da televisão americana, vencendo como melhor montagem e melhor figurino. Lynch escreveu toda a série, mas acabou dirigindo apenas alguns dos episódios. Mas mesmo, com o sucesso, depois de duas temporadas (oito meses), o público ciente de quem tinha matado Laura Palmer, e da mudança de horário (o que baixou muito a audiência), Twin Peaks foi cancelada. No último episódio o último dos puros acaba corrompido: o agente especial do FBI Dale Cooper (MacLachlan) é possuído por um espírito mal, o mesmo responsável pela morte de Laura Palmer, Bob (Frank Silva). Curiosamente Frank Silva é o decorador do piloto da série. David Lynch também faz uma ponta num papel que criou para si, o do chefe regional do bureau do FBI Gordon Cole, um bem humorado e surdo agente, que tem um mundo próprio de sinais e símbolos (assim como o próprio Lynch em seus filmes). Twin Peaks misturava sobrenatural com sonhos, como uma forma de premonição. O Black Lodge, lugar onde as forças ocultas se reuniam e revelavam segredos para Cooper é uma das imagens mais fortes na mente das pessoas que assistiram a série: um local de chão
7 em zigue e zague preto e branco, com cortinas vermelhas de onde saíam seres estranhos e maus (aí a maldade pura e não apenas o lado mau das pessoas da cidade), com um anão que dança (Michael J. Anderson), um gigante faz confissões e onde todos falavam de trás para frente (com legendas para os espectadores). Havia também espíritos alienígenas e uma mulher que conversava com um tronco de árvore. Todas as outras características de fotografia, temas, estrutura, cenografia e narrativa estão presentes em Twin Peaks. Lynch revolucionou a Tv do começo dos anos 90 com esta polêmica, incestuosa, homoerótica e violenta série. A partir de seu ingresso na televisão Lynch começou a ampliar seu know­how, dirigindo diversos comerciais de televisão para perfumes de grandes marcas, como Sun, Moon, Stars, Gio, Obsession, carro (Nissan), para o Canal Sci­Fi e o teste de gravidez Clear Blue. Lynch também começa a dirigir videoclips, como Wicked Game, para Chris Isaak e Unfinished Sympathy do Massive Attack. Em 1992 Lynch realiza Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer (Twin Peaks: fire walk with me), um filme que mostra o que aconteceu na última semana de vida de Laura Palmer. O filme foi e é, com o perdão da palavra, um fiasco, não chegando perto do nível alcançado pelo elenco e toda a concepção da série de Tv e sendo um fracasso de público e crítica. Nele, vemos Laura aprontando todas antes de sua morte: cheirando cocaína, usando maconha, fazendo sexo com todos, prostituindo­se, enchendo a cara, enfim todas as coisas que vão sendo descobertas ao longo da serie são apresentadas no filme, inclusive que o espírito de Bob possui seu pai, Leland Palmer (Ray Wise), e mata Teresa Banks que era amante dele. Quase todos os personagens obscuros da série são apresentados: o homem de um braço só (Al Strobel), a mulher do tronco de árvore (Catherine E. Coulson), o anão, Bob, o sádico Leo Johnson (Eric Dare) e a cantora de cabaré, que também aparece na série, Julee Cruise. Duas curiosas presenças no filme são David Bowie, como o agente Phillip Jeffries que consegue penetrar no Black Lodgde, e Chris Isaak, como o agente especial do FBI Chester Desmond, que conhece o mundo de símbolos de Gordon Cole (mais uma vez David Lynch), mas desaparece depois de encontrar o misterioso anel com pedra verde que incita Bob a matar. Iniciando com uma tela azul (que na realidade é uma televisão, que logo depois é destruída), o filme mostra aos poucos a autodestruição de Laura e seu encontro no além com um anjo e Cooper no Black Lodge. Laura mistura sonho/ alucinação com realidade e o que vemos é uma condensação de símbolos, como se Lynch quisesse passar todas as informações de 29 episódios em apenas 135 minutos de filme. Embora trabalhe de modo linear, diversos flashbacks aparecem no filme, como lembranças de Leland. Lynch tenta retomar a estética e estilo da série Twin Peaks, mas como dito, fica aquém dela e de seus outros filmes.
8 A popularidade de Twin Peaks promoveu oportunidades para Lynch realizar em 1992 outros trabalhos na Tv: On the Air , cancelada depois do terceiro de sete episódios programados e os três primeiros episódios da série Hotel Room, em 1993. Nas comemorações do centenário do nascimento do cinema, em 1995, Lynch participa do filme Lumière e Companhia (Lumiere et compagnie), com Premonitions Following an Evil Deed. Para as comemorações, quarenta diretores foram convidados para fazer segmentos de 55 segundos utilizando uma câmera Lumiere original, e tendo como regras: não usar luz artificial, só realizar no máximo três tomadas de tentativa, a filmagem de uma só vez e som não sincronizado. No filme de Lynch a câmera capta cinco diferentes posições, onde a movimentação da câmera e o uso do obturador foram usados como aliados para criar a seqüência. Em Premonitions Following an Evil Deed, policias encontram o corpo de um rapaz jogado no campo, enquanto uma mulher aguarda em uma casa; três moças bonitas posam para a câmera e num galpão seres estranhos de macacão circulam onde há ao fundo uma mulher nua amarrada num tanque de água; e os policias chegam na casa onde a mulher aguardava. Toda esta trama curiosa faz parte do mundo criado pela mente inventiva de David Lynch. E o mais curioso do episódio, é que nele encontramos a estética de Lynch claramente impressa em apenas 55 segundos de filme! Vemos energia, como algo mal, fumaça, fogo, um assassinato, mistério, cenas e atitudes bizarras inexplicáveis, iluminação marcada, enquadramentos onde a movimentação da personagem é que dita a ação e não a câmera, e a resolução, mas não total, do mistério. O longa seguinte de Lynch, A estrada perdida (Lost Highway), de 1997, é o mais denso de complexo filme do diretor. Com uma trajetória toda circular, como uma fita de Moebius, começo e fim se encontram, deixando o espectador mais uma vez perdido. Qualquer explicação para o filme é válida, segundo Lynch, mas não se consegue descobrir ao certo o que aconteceu, uma vez que no início vemos o músico Fred Madison (Bill Pullman) atender o interfone e não vemos o interlocutor, cena que se repete no final e dessa vemos quem toca o interfone, que é ele mesmo. A lógica do filme não é linear, como tempo e espaço, deixando vários buracos negros na mente do espectador que conduzem a caminhos diversos Com A Estrada Perdida, Lynch passou a tratar alguns personagens de maneira radical, trocando suas personalidades ao longo da história. Críticos de São Paulo costumam contar a anedota sobre o colega que saiu no meio da sessão para fazer xixi e, na volta, encontrou personagens sendo chamados por nomes diferentes e interpretados por outros atores. Depois de alguns minutos na mais absoluta incompreensão, não se conteve e gritou: "Alguém pode me dizer o que está acontecendo no raio desse filme?" 1 O saxofonista Fred é casado com a bela Renee (Patrícia Arquete) e assombrado pela idéia de traição. Numa noite, depois de conhecer um sinistro homem de preto (Robert 1 http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2002/04/19/cad028.html 29/03/2003 20:05
9 Blake) encontra Renee morta, mas não sabe se alguém a matou ou se foi ele. Encarcerado, Fred começa a ter freqüentes dores de cabeça e um dia, depois de uma noite de pesadelos, os guardas encontram outra pessoa na cela solitária de alta segurança de Fred: Pete Dayton (Balthazar Getty). Pete, um jovem mecânico de classe média não sabe como foi parar lá dentro da cela, mas tenta retomar sua vida normal. Seus problemas começam quando um de seus clientes, Mr. Eddy ou Dick Laurent (Robert Loggia) lhe apresenta Alice Wakefield (Patrícia Arquete), uma prostituta que é uma versão loira de Renee. Pete enlouquece por Alice, e acaba se envolvendo num crime, matando Andy (Michael Massee), amigo de Renee e Alice, para poder fica com ela. Depois do assassinato eles partem por uma estrada onde há um motel de nome Lost Highway, e onde há a casa de um intercepatador que é o mesmo homem misterioso e sinistro da festa. Pete em sua ânsia por Alice, diz que quer tela, enquanto fazem sexo, mas ela responde que ele nunca a terá e o abandona. Abandonado Pete vira Fred e o homem misterioso aparece com Dick Laurent, que é assassinado por Fred, depois de flashbacks projetados em uma câmera de vídeo. Assim, Fred parte novamente pela estrada perdida para comunicar a si mesmo que “Dick Laurent está morto”. O que parece até uma simples narração, excetuando­se a descrição do flashback mostra­se quase indissolúvel. O filme é Lynch em seu estado mais áspero e negro. Entre outras coisas estranhas do filme há uma casa que pega fogo (o próprio inferno?) e onde mora um homem misterioso que comanda mortes (o demônio), troca de personagens e a busca incontrolável de um amor que não consegue nunca ser consumado. Mais um a vez o clima noir reina no filme, com direito a ambientes escuros, mulheres fatais, um mistério a ser descoberto, cortinas vermelhas, personagens misteriosos, detetives, e, inclusive, a maquiagem e o figurino de Renee. A modernidade se soma ao filma com câmeras de vídeo que projetam as pessoas como lembranças do passado, nos móveis da casa de Andy, desenhados pessoalmente por Lynch, e na trilha sonora que impõe ainda mais agressividade às cenas com um rock pesado. A câmera por sua vez, não se move de modo frenético, como as personagens, mas os enquadramentos aumentam ainda mais a sensação de estranhamento já criada pela narrativa e fotografia. Cidade dos Sonhos começa a ser filmado em 1999, como um piloto para uma série de tv para a rede ABC, com um final aberto. Segundo Lynch os executivos odiaram, pois a narrativa era lenta e havia muitas coisas estranhas e ela foi rejeitada. No mesmo ano é estréia a mais “normal” e linear obra de Lynch, sendo inclusive seu único filme de censura livre, e mais, distribuído pelos estúdios Disney: História Real (The Straight Story). História Real pode ser definido como um roadmovie num cortador de grama, dirigido por um velhinho de setenta e poucos anos que não enxerga bem e tem problemas na bacia e coluna. A beleza do filme consiste nas longas seqüências dos campos, nas cenas noturnas, onde em frente à fogueira Alvin Straight (Richard Farnsworth), faz novos amigos e demonstra com humildade os conhecimentos
10 de sua experiência de vida. Alvin atravessa boa parte dos Estados Unidos em cima de um trator apenas para rever seu irmão, com quem havia brigado anos antes, depois deste ter tido um ataque do coração. Não há nada macabro, barulhento, violento, nem mesmo há sexo ou pesadelos, como seria de se esperar de um filme de David Lynch. Mas há o homem comum das pequenas cidades que vence os obstáculos e superar seus limites. Mas, mesmo as personagens, aparentemente normais, não resistem a uma segunda observação: um velho de mais de setenta anos fazendo uma viagem solitária ao longo dos EUA num trator; uma mulher meio ensandecida que atropela um alce; uma jovem grávida que foge de casa; um senhor velho que se recusa a vender mercadorias de sua loja; pessoas extremamente hospitaleiras que surgem do nada para ajudar Alvin. Algumas coisas realmente não soam tão normais assim. O mistério, como em todos os seus filmes, permanece: por que Alvin brigou com o irmão, sendo assim tão importante reencontrá­lo? “Eu adoro os elementos da natureza e para mim um filme sempre começa com uma paisagem. Eu nunca parto do princípio de que vou fazer um filme comercial. Eu sempre parto do mesmo ponto: quero traduzir uma idéia em cinema, e vou fazê­lo da melhor maneira que sei e posso, e vou torcer pata que a platéia compreenda o que eu estou fazendo e viaje comigo na minha aventura ”, Lynch em entrevista sobre História Real. 2 Straight Story não é apenas a história de Alvin Straight, mas o modo como a história se conduz e como Alvin age ao longo do filme: de modo reto, tentando sempre seguir seu caminho e não se desviando. A câmera caminha lentamente pelas paisagens, sem pressa, do mesmo modo que Alvin. O roteiro, baseado na história real de Alvin Straight que percorreu 260 milhas em 1994, indo de Laurens, Iowa para Mr. Zion, Wisconsin, é de Mary Sweeney, montadora, roteirista, produtora e mulher de Lynch há quatorze anos. Talvez por isso não se pareça muito com um filme de Lynch. Mas há uma cena que soa surreal em História Real: depois do alce na rodovia, Alvin está sentado, comendo a carne do mesmo e cercado de alces de madeira que o observam atentamente, mas não se sabe de onde eles surgiram (da mente de Alvim?). Mais algumas questões permanecem: o velho viajou ou foi um sonho depois de seu ataque? Será que ele não morreu e a viagem simboliza o caminho da própria morte? Reconciliação com o passado? Depois da recusa da ABC, Lynch esperou um ano esperando para recuperar os direitos de Mulholland Drive, para transformá­lo num filme, patrocinado pela produtora francesa Canal +, graças ao intermédio de seu amigo Pierre Edelman. Foram aportados US$ 7 milhões, além dos US$ 8 milhões iniciais consumidos no piloto. Cidade dos Sonhos estréia em 2001 e é através dele que Lynch conquista o 2 BAHIANA, Ana Maria. Uma luz para David Lynch, IN: BRAVO!. São Paulo: D’Avila Comunicações, nº26, novembro, 1999, pg. 113.
11 prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes. Lynch escreveu as cenas adicionais e rodou em quatro semanas mais quarenta minutos. As novas idéias afetaram tudo aquilo já filmado, o princípio, meio e fim da história, segundo Lynch. O filme conquistou outros prêmios, como melhor diretor pelo Los Angeles Film Critics; melhor filme do New York Film Critics Circle; melhor filme e diretor no Boston Society of Film Critics; e melhor atriz estreante para Naomi Watts, do National Board of Review. Foi indicado ao Oscar de melhor diretor e quatro indicações ao Globo de Ouro. Ganhou também o Bafta na categoria melhor edição. A partir de 2000 Lynch iniciou uma série de quadrinho chamada Dumbland. Sobre ela Lynch afirma: “ Dumbland é uma série crua, estúpida, violenta, absurda. Se é engraçada, é engraçada porque vemos o absurdo de tudo isso” . O humor de Dumbland vem da mesma linha que The angriest dog in the world, inclusive o mesmo tipo de desenho. Agora a série pode ser vista por todos os internautas que têm acesso ao seu site, www.davidlynch.com , através de um pagamento mensal. Quem assina ao site diz que ele vale cada centavo. Através dessa associação podem ser vistos os últimos trabalhos e projetos do diretor, como os quadrinhos, um diário sobre o último Festival de Cannes e uma série chamada Rabbits, entre outros. Os filmes disponíveis no site foram criados especialmente para exibição via Internet e nenhum deles foi lançado em formato diferente até hoje. Para Lynch, o futuro está na Internet e por isso mesmo o diretor para lá convergiu. Como autor total de seu site, lá Lynch pode exercitar todas as suas idéias, com a liberdade que sempre quis, investindo no experimental. Ele que passeia pela fotografia, pintura, design de móveis, escultura e música, criou toda a concepção visual do site e seu conteúdo. Lá podem também ser encontrado para venda DVD de obras antes restritas aos cineclubes, como Eraserhead, fotos de filmes, canecas, bonés, livros e tudo o mais que a mente de Lynch criar. Há ainda sorteios de almoços com o diretor na lanchonete Bob's Big Boy com o vencedor da promoção "Lunch with Lynch" e curtas que são filmados no estúdio da casa de Lynch, em digital. Rabbits, a última série concluída de site, “ em uma cidade sem nome, castigada por uma chuva contínua, três coelhos vivem com um mistério pavoroso 3 ” , nas palavras de Lynch. Com nove episódios, tem Naomi Watts, Laura Elena Harring, e Scott Coffey vestidos de coelho da cabeça aos pés, transitando por um cenário pequeno cenário, como os das sitcom americanas. A última série em elaboração é Axxon­N, censurada para menores de 18 anos. Mas em breve Lynch surgirá com novas criações, conforme diz em seu site. 3 http://www.davidlynch.com/ 29/03/2003 17:20
12 Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive) Resumindo, Cidade dos Sonhos conta a história de Betty (Naomi Watts), uma aspirante a atriz que chega a Los Angeles com a determinação de se tornar uma estrela de cinema. Sem ter muitos recursos financeiros, ela hospeda­se na casa de sua tia, que está fora da cidade, e tem uma surpresa ao encontrar uma intrusa no local: Rita (Laura Elena Harring), uma mulher misteriosa que, depois de sofrer um grave acidente, perdeu a memória. Juntas, as duas garotas tentam descobrir as verdadeiras circunstâncias em que o acidente ocorreu e a origem do dinheiro que Rita traz em sua bolsa (cujo conteúdo também inclui uma estranha chave azul). A história também aborda os problemas enfrentados por um explosivo cineasta depois que este se recusa a escalar, como protagonista de seu novo filme, uma atriz apadrinhada pela máfia. O que parece uma simples história mostra­se muito mais complexa quando o filme é visto, deixando os espectadores perdidos quando surge uma segunda parte (ou terceira se contarmos como a primeira a que antecede os créditos e segunda a partir dos créditos) que se confronta com a primeira, destruindo todos os raciocínios lógicos antes formulados pela platéia. Resumindo minha visão sobre o filme ­ David Lynch nunca revela o significado de seus filmes, querendo que os espectadores formulem suas próprias teorias ­ é um filme dividido em duas grandes partes, com uma introdução antecendo as duas, sendo que a primeira parte é um sonho, e a segunda parte seria a realidade, o atual, com flashbacks e flashbacks dentro de flashbacks, na visão de Diane Selwyn (Naomi Watts), ou seja, os flashbacks não expõem a realidade dos fatos. Vários fatores me levaram à reflexão de que o filme, em boa parte, é um sonho. O primeiro: antes da exibição do filme em algumas salas de cinema de São Paulo a Europa Filmes, distribuidora do filme no Brasil, entregava um papel para o espectador que ia assistir ao filme, contendo o regulamento de uma promoção, com dez dicas para descobrir sobre o que era Cidade dos Sonhos, sendo que as dez melhores respostas ganhariam um DVD e uma camiseta do filme. Procurando as respostas para estas perguntas e analisando o resultado atentamente, eu cheguei à conclusão de sonho. As perguntas eram: 1. No começo do filme, depois dos créditos, duas pistas são reveladas. 2. Fique atento para o que está escrito no luminoso vermelho. 3. Qual o título do filme para o qual o personagem Adam Kesher está realizando teste de elenco? Ele será mencionado mais uma vez durante 'Cidade dos Sonhos'? 4. O acidente é um importante acontecimento em 'Cidade dos Sonhos'. Onde ele acontece?
5. Quem entrega a chave azul e por quê? 6. Fique atento para o roupão, o cinzeiro e a caneca de café. 7. Qual mistério é revelado no Club Silencio?
13 8. Somente o talento de Camilla pode ajudá­la? 9. Fique atento para o objeto que está nas mãos do estranho homem que vive perto da lanchonete Winkie. 10. Onde está tia Ruth? Segundo: Lynch diz que o filme é uma história de amor e que a resposta está no próprio título: bem Mulholland Drive é o nome de uma estrada sinuosa, situada nas montanhas de Santa Mônica, onde de um lado tem­se uma vista panorâmica de Los Angeles e do vale de São Francisco. Em alguns momentos atravessa uma zona residencial, em outros é uma estrada de montanha, aberta e selvagem, sendo que à noite, é muito sombria e há várias histórias e experiências em torno dela, criando grande poder de atração e de mistério. Nas palavras de Lynch: Para mim, o nome dessa rua, a simples existência dela, eu saber que essa rua está lá, me dá uma sensação de profundo mistério. Em alguns momentos, Mulholland Drive parece inteiramente pacífica e linda. Em outros, completamente misteriosa, e com um elemento muito claro de medo..... De um lado você pode ver todo o vale e de outro, Hollywood. 4 E também nos extras do DVD de Cidade dos Sonhos, Lynch fala que a Mulholland Drive “parece perdida num sonho”. O terceiro fator foi a análise detalhada do filme, anotando e comparando elementos e criando associações para explicar os fatos (mas vários continuam morando no mundo inexplicado das obras de Lynch com A estrada perdida ). O quarto oi um conclusão geral sobre todas as análises que encontrei sobre o filme, sendo que muitas delas dizem que a segunda parte também é um sonho, ou um delírio de Diane, ou o contrário, mas a minha opinião baseia­se em sonho e realidade. Ah, claro, todos os filmes de David Lynch trabalham com imagens de sonhos inseridas em algum momento do filme ou citadas, logo, para mim este deveria ter algum. O filme de narrativa circular, estrutura­se de modo não linear, misturando tempos e realidade, flashbacks, sonho e delírios. Assim, Lynch com a percepção do espectador sobre o que é real ou apenas uma ilusão (tema recorrente no filme) em diversos momentos de Cidade dos Sonhos. Baseada nesta complexa construção narrativa, a análise que faço do filme se conforme vemos os fatos acontecerem na tela e não da forma como eles devem ter acontecido de maneira cronológica. Mas antes da análise das seqüências, é preciso deixar claro que busquei as respostas para a compreensão do “realmente” aconteceu entre Diane e Camilla (Laura Elena Harring) na última parte do filme, principalmente na parte do jantar e na conversa que Diane tem com o matador 4 BAHIANA, Ana Maria. A subversão dos sentidos, In: BRAVO!. São Paulo: D’Avila Comunicações, nº 56, maio, 2002, pg. 64.
14 no café, pois de lá pareciam surgir todas as explicações “lógicas” (dentro da lógica dos filmes de Lynch) para a primeira parte. Abaixo, segue a sinopse de como seria a história na ordem cronológica dos acontecimentos: Diane Selwyn é uma boa garota de Deep Rivers, Ontário, mas um pouco confusa. Depois de receber uma herança deixada por sua tia Ruth, Diane viaja para Los Angeles para tentar alavancar sua carreira de atriz. Certo dia, ela faz um teste para participar do filme A História de Sylvia North, mas é rejeitada pelo diretor, Bob Rooker, que acaba escolhendo a bela Camilla Rhodes para o papel­título. Porém, Diane e Camilla acabam se tornando amigas e, eventualmente, amantes, sendo que esta última, agora uma atriz de sucesso, freqüentemente arruma pequenas pontas para a namorada em seus filmes. Infelizmente, nem tudo corre bem para as duas: durante as filmagens de seu novo projeto, Camilla se envolve com Adam Kesher, o diretor responsável pela empreitada (apesar de ser casado, ele logo se divorcia da esposa, alegando que ela o traíra com o rapaz responsável por limpar a piscina, deixando­a sem direito a nada). Enciumada, Diane passa a brigar com Camilla ­ até que, certa noite, é convidada para uma festa na mansão de Kesher, sem saber que será obrigada a testemunhar o anúncio do casamento de sua namorada e o cineasta. Sentindo­se humilhada, Diane decide contratar um assassino profissional para executar Camilla, pagando 50 mil dólares pelo serviço. Depois de receber o dinheiro e pegar uma foto de sua vítima, o sujeito diz que Diane encontrará uma chave azul em seu apartamento quando tudo estiver terminado – e, de fato, logo a recebe o aviso de que sua ex­namorada está morta. No entanto, corroída pelo remorso, ela tem um longo sonho envolvendo Camilla e, mesmo quando acordada, não consegue parar de pensar no que fez. Torturada pelas lembranças e pela crueldade de seus atos, Diane finalmente comete suicídio. Análise Com base na segunda parte do filme, que se inicia quando Diane (Naomi Watts) levanta e coloca o roupão para abrir a porta para sua vizinha, que pega o cinzeiro de piano. (nesse momento Diane vê a chave azul na mesa), a primeira parte é um sonho dos idéias de Diane, que ela cria para fugir da dura realidade em que se encontra (uma atriz fracassada, sem dinheiro e coma mulher que ama morta). Neste sonho, Diane tenta apaziguar seu sentimento de culpa por ter mandado matar Camilla, e cria uma Camilla sem lembranças, uma tela branca para Diane projetar suas fantasias. Ela recria, através de lembranças de pessoas, situações e lugares, seus desejos e frustrações. È um sonho em que sua relação com Camilla é diferente, em que Camilla é vulnerável, frágil, a ama e dela depende. É também um sonho de sua carreira perdida e a elegia de uma Hollywood perdida.
15 Na primeira parte Betty é a imagem idealizada de Diane: é inocente, simpática, pura, bela, talentosa, independente, corajosa e causa forte impressão em todos que a conhecem, ou seja, perfeita demais. Em seu sonho Diane é a perfeita heroína de filme, estruturando seu sonho de forma parecida ao roteiro de um filme noir , colocando­se no papel de mocinha e utilizando vários elementos clássicos do gênero, como a misteriosa mulher em apuros (Rita); a corrupção que domina a cidade; a visão cínica do mundo e os policiais com longas capas de chuva. Betty é, na verdade, tudo aquilo que Diane gostaria de ser, e em seu sonho, credita seu real fracasso a alguma misteriosa conspiração arquitetada por figuras sinistras. Com cores saturadas, imagens hiper­realistas, atuações e gestos exagerados, movimentação lenta da câmera (vários travellings em subjetiva), planos longos, fadeouts, alguma fumaça, algumas cenas escuras e imagens fantásticas, Lynch constrói visualmente a idéia de sonho. Também os diálogos e a música se desenvolvem de maneira lenta. A única cena rápida é a audição musical. Outro elemento de sonho nessa parte são as fontes de luz difusas, principalmente na cena em que as duas estão no táxi. O filme começa com uma imagem surreal de várias pessoas dançando ao som do jitterbug, aliás, várias cópias de cada um dos dançarinos, projetadas num fundo infinito com sombras, imagens sobrepostas, desfocadas de uma jovem e dois velhos (que aparecem mais duas vezes ao longo da película). Isso é uma lembrança idealizada do concurso de dança que Diane diz que ganhou, antes de ir para Los Angeles: ela coroada vencedora e seus avós felizes pelo seu sucesso alcançado (no roteiro do piloto os dois velhinhos são descritos como avós). A câmera mergulha num travesseiro, mostrando a subjetiva de Diane indo deitar e mergulhar em seu sonho em que se inicia a primeira parte. A primeira parte começa com a placa da rua, que é o próprio nome do filme (Mulholland Drive) com Camilla dentro de um carro preto prestes a ser assassinada, convertendo­o ao veículo da morte. Aqui, a primeira coisa que o sentimento de culpa de Diane faz é salvar Camilla, inserindo um acidente de carro, e ao mesmo tempo fazendo­a esquecer de tudo, podendo então criar um mundo novo com ela. Camilla sai vagando pelas ruas de Los Angeles e para na Sunset Boulevard, onde deita entre as folhagens ­ uma clara menção ao filme de Billy Wilder e por associação ao mundo do cinema. De volta à estrada, estão dois detetives investigando o acidente, que são os mesmo mencionados brevemente pela vizinha de Diane, que investigam a morte de Camilla, ou seja: continuam a investigar, de uma forma ou de outra, o que aconteceu a Camilla/Rita. De manhã Camilla esconde­se na casa de Tia Ruth, antes que ela vá viajar e adormece debaixo da mesa. Aqui começam dois sonhos dentro do sonho de Diane: um rapaz descreve a um homem mais velho o sonho que teve com uma figura aterradora, naquela mesma lanchonete onde está, dizendo: ”Espero não ver nunca aquela face fora do sonho". Eles estão saem da lanchonete, caminham até o local onde a face do sonho estava e encontram um mendigo (a face do sonho) e nesse momento o jovem cai no chão como morto. O rapaz é apenas uma pessoa
16 que Diane viu no dia em que contrata o assassino para matar Camilla, e acabou associando sua imagem ao assassino e à morte de Camilla. Logo, se ele morre Camilla não será morta porque o ciclo se interrompeu. Mas há mais um elemento importante: o mendigo. É o demônio interno de Diane, representa o mal (por isso uma figura quase “inumana”), criado quando Diane ordena a morte de Camilla. Como o rapaz estava lá nesse dia, ele seria o condutor para o mal que ela criou. Mas não apenas uma figura do mal, também funciona como uma força corrosiva interna de Diane que trabalha para dissolver suas fantasias. Ele, na segunda parte do filme, é o portador da caixa azul e é desta caixa que quase ao final do filme emergem os avós de Diane, como uma representação de todos os seus sonhos corrompidos. A câmera volta para Rita adormecida e o segundo pequeno sonho é inserido: a história do senhor Roque, um misterioso homem em uma cadeira de rodas e diversas ligações com frases em código. A seqüência termina com um telefone tocando e salta para a seguinte onde Betty está radiante no aeroporto de Los Angeles com um casal de velhinhos. Eles são os mesmo do concurso de dança, e assim representam os avós. Mas também aparecem na cena final, saindo da caixa azul, entrando no apartamento de Diane por baixo da porta e a perseguindo pelo apartamento. No início eles parecem felizes e orgulhosos do concurso que Diane ganhou, no aeroporto são todas as suas esperanças e assim pode­se dizer que são seus valores morais. Mas como ela manda matar Camilla, logo é uma assassina, seus valores morais foram corrompidos e por isso voltam para assombrá­la. Outro detalhe da cena é o comportamento dos dois no carro: as risadas soem extremamente falsas: não se sabe se riem de felicidade ou se zombam de Diane, como uma ironia, pois Diane foi muito tola ao acreditar que tudo daria certo (como a velhinha afirma que dará), só pelo fato dela ter conquistado o concurso e ter conseguido chegar em Los Angeles. Betty chega ao apartamento de sua tia Ruth, sendo muito bem recebida por Coco, a síndica. Betty caminha deslumbrada pelo apartamento até encontrar uma bolsa e um par de sapatos jogados no chão e logo depois Rita tomando banho. Diane pergunta seu nome, mas a resposta só virá depois, pois aqui descobrimos que Rita “perdeu” a memória. Ela tira esse nome do cartaz do filme, Gilda, que diz “Nunca houve mulher como Gilda”, em que Rita Hayworth faz o papel principal (mais uma referência ao mundo do cinema e aos filmes noir ). Diane vai então para ao quarto arrumar as coisas, Rita aparece logo depois, mostra seu machucado na cabeça e deita afirmando seu cansaço, sendo coberta por Diane com o roupão deixado por tia Ruth. Nesta longa seqüência o apartamento da tia é uma versão idealizada de apartamento real de Diane em Serra Bonita, mas também pode ser o real apartamento de sua tia, enquanto ela vivia em Hollywood (conforme Diane diz no jantar a tia trabalhava no cinema). No sonho Coco é a síndica, que aparece como uma pessoa maravilhosa, compreensiva e educada, mas que na realidade é a mãe de Adam Kesher, uma mulher arrogante, a quem Diane é apresentada durante o jantar. Camilla por sua vez aparece sem memória (conforme explicado antes) e escolhe o nome Rita. Dois significados podem ser possíveis, além da criação do cartaz que surge do imaginário de Diane sobre ser uma grande estrela de cinema: primeiro – Rita é uma atriz e como Camilla de nada se lembra, também vai representar ser outra pessoa;
17 segundo, como nunca “houve mulher como Gilda”, ela não existe e, portanto, ao retirar o nome do cartaz Diane cria uma Camilla que não existiu, colocando­a no papel de Rita. A partir do momento que Rita surge na vida de Betty, começa a depender dela e de seus cuidados, o contrário do que acontece na vida real de Diane, que dependia das indicações da namorada Camilla para conseguir papéis em filmes. Após Rita adormecer, a sombria história do senhor Roque reaparece através da uma reunião. Na reunião três executivos, entre eles o senhor Darby e Adam Kesher o diretor do filme recebem a visita de dois sinistros italianos que parecem mafiosos, os irmãos Castigliane, que impõem a presença da atriz Camilla Rhodes no papel principal do filme de Adam, enquanto o senhor Roque ouve a tudo através de alto­falantes. Um dos Castigliani pede um expresso para tomar, mas como não vem a seu gosto cospe o mesmo no guardanapo. Adam recusa­se a colocar a moça em seu filme, sai irado da sala e, no estacionamento quebra o vidro do carro dos Castigliane com um taco de golfe. Betty aparece no quarto e encontra Rita ainda dormindo. Um dos executivos vai até a sala onde está o senhor Roque, separada por um vidro, e tem uma conversa toda cifrada onde se sabe apenas que decidem o destinado do diretor Adam Kesher. Bem, esta seqüência iniciada com a reunião começando, depois que Rita adormece, até o fadeout na sala do Senhor Roque é mais um sonho dentro do sonho de Diane. É a continuação do sonho anterior com o senhor Roque, e aqui mais alguns personagens são inseridos. Adam Kesher, é ele mesmo, o diretor do qual Camilla fica noiva, mas o filme que está sendo discutido (A História de Sylvia North, cujo nome só é citado mais adiante), na realidade não é dirigido por ele e sim Bob Rooker. Camilla Rhodes, a atriz que é imposta para o papel principal, aparece na foto como a moça que dá um beijo em Camilla no jantar: Diane na realidade perdeu o papel de A História de Sylvia North para Camilla, mas seu sentimento de culpa por tê­la mandado matar subverte a situação, isentando Camilla de culpa e colocando criando outra Camilla; a outra em questão é uma moça que faz na festa o que Diane gostaria de fazer beijar­lhe em público. A Camilla que no sonho é a causa dos problemas de Adam, é o meio que Diane cria para humilhar o diretor por ter­lhe “roubado” a verdadeira Camilla. O mafioso que cospe o expresso (Angelo Badalamenti, o compositor do filme de Lynch) é apenas um homem que Diane vê com uma cara de mau­humor enquanto ela toma café no jantar, criando assim uma relação com o rosto dele e a bebida. A seqüência é também uma justificativa para si mesma do porquê Diane não conseguiu o sucesso: não foi por falta de talento, mas sim por forças ocultas que estavam além de seu poder e ela cria o imaginário de uma Hollywood onde conspirações são criadas pela a máfia que comanda as decisões executivas. Por fim, vale a apenas falar sobre a cenografia da sala: as cortinas e o aspecto sombrio da iluminação marcada são uma autocitação de Lynch, que aqui faz uma adaptação do Black Lodge da série Twin Peaks, onde as forças ocultas do mal se reuniam para decidir sobre a vida das pessoas. Depois do fadeout na sala do senhor Roque, o filme se desloca para um prédio onde dois homens conversam sobre um acidente de carro e o livro negro de Ed. Um deles mata o
18 outro, e em uma seqüência mais do que bizarra (lembrando os filmes de Tarantino), é obrigado a matar mais duas pessoas: uma gorda secretária que estava na outra sala e o faxineiro que vê o assassino tentando matar a moça gorda. Daqui podem ser feitas várias observações: o assassino desta seqüência é o mesmo assassino contratado por Diane para matar Camilla; o acidente sobre o qual eles conversam é o mesmo acidente de Rita, ou seja, como a história é contada para o assassino, no sonho ele não foi contratado para matar Camilla/Rita; Diane criou aqui um mecanismo para isentar­se da culpa e ainda salvar Rita (através do acidente); mas o assassino não é isentado de culpa no sonho de Diane, porque acaba matando duas pessoas inocentes para conquistar algo importante, o livro negro de Ed. O livro em questão é apenas a agenda que Diane vê com o assassino no dia em que o contrata. A câmera volta para Betty: ela está ao telefone com sua tia Ruth e descobre que Rita é uma intrusa. Ao ir esclarecer a situação com Rita, encontra­a chorando por ainda não se lembrar de quem é. Betty sugere a Rita olhar na sua bolsa, onde elas encontram uma grande quantia de dinheiro e uma estranha chave azul. A imagem salta para o assassino na rua conversando com um outro sujeito e uma prostituta, onde pergunta se viram uma morena com machucados. Retornamos para as duas, com Betty tentando descobrir de onde veio o dinheiro de Rita. Outro corte, onde Adam dirigindo é informado de que todas as pessoas de sua produção foram despedidas. Temos então dois elementos importantes da narrativa: o dinheiro e a chave azul. Tanto o dinheiro como a chave azul (no sonho, mais estilizada), estão em poder do assassino quando Diane conversa com ele na lanchonete: ela lhe entrega o dinheiro e ele diz que ela vai encontrar a chave azul em sua casa depois que for feito, ou seja, depois que Camilla for assassinada. Como estes dois objetos que representam a morte de Camilla estão com Rita, no sonho de Diane Camilla não morreu. Curiosamente Diane cria em seu sonho um vínculo entre Rita e o assassino: ele busca na rua uma morena um pouco machucada, o que nos leva à Rita. Rita se lembra para onde estava indo: Mulholland Drive. Betty então convence Rita a sair para as duas ligarem para averiguar se houve ou não um acidente lá perto desta estrada na noite anterior. Betty diz: “Faremos como nos filmes: a gente finge ser outra pessoa”. Ao dizer isto Lynch brinca com o espectador: Betty quer seu uma atriz, ela quer estar no cinema, mas nós estamos no cinema, e ela está atuando para nós, e mais, como é um sonho de Diane, ela já está interpretando outra pessoa, seu eu idealizado, no caso Betty. Aqui começa a aparecer a idéia do que estamos vendo é uma encenação (em sonho), não é real. Adam chega em sua casa e encontra a mulher com o lavador de piscinas (Billy Ray Cyrus, o cantor) na cama. Como vingança ele enche a caixa de jóias da esposa de tinta, ela o agride, ele revida e acaba apanhando do amante, sendo expulso de sua casa. O sonho de Diane mais uma vez deturpa a realidade: Adam diz no jantar que a mulher o traiu com o limpador de piscinas, por isso ele se separou dela e ela ficou sem nada, mas o que se percebe é que ele queria se separar da primeira esposa para ficar com Camilla. A vingança no sonho de Diane faz Adam apanhar de um amante (cuja imagem é retirada do mundo da televisão), e perder tudo, concretizando a traição da mulher, mas humilhando­o.
19 Betty e Rita guardam a bolsa, com a chave e o dinheiro, e saem para ligar na lanchonete Winkie’s. Fingindo ser outra pessoa, como tinha dito antes, Betty descobre em sua ligação para a polícia que aconteceu mesmo um acidente na noite anterior. Elas entram na lanchonete, buscam no jornal alguma notícia sobre o acidente, nada encontrando. Surge uma garçonete, cujo nome chama a atenção de Rita, que se lembra de um nome: Diane Selwyn. Elas voltam para o apartamento e procuram na lista pelo telefone de Diane Selwyn. Betty disca e fala: “É estranho ligar para si mesma”. Rita responde: “Talvez na seja eu”. Do outro lado da linha a secretária eletrônica atende: não é a voz de Rita, mas ela conhece aquela voz. Betty conclui que Diane talvez seja a companheira de quarto de Rita. Bem, mais uma pista: a fala de Betty deveria ser dita por Rita, uma vez que elas em princípio não sabem se Rita é ou não Diane, mas sendo Betty que diz, mostra­se um ato falho em seu sonho, pois é a voz dela que está do outro lado da linha, ela é Diane Selwyn. Já a garçonete chamada Diane é apenas uma troca: quando Diane está na mesma lanchonete falando com o assassino aparece essa mesma garçonete, com um crachá em que se lê Betty. Diane no sonho é então a companheira de quarto de Rita, refletindo o envolvimento entre Diane e Camilla no mundo real. Dois mafiosos aparecem na casa de Adam e a mulher dele e o amante acabam brigando com um deles. Adam por sua vez descobre que seus cartões de créditos foram cortados e eu que ele está falido. Recebe então o recado de sua secretária para se encontrar com um homem chamado Caubói. Enquanto isso, Betty e Rita são interrompidas enquanto procuram pistas em um mapa por vizinha vidente, Louise Bonner, que toca a campainha. Louise dizendo que há alguém em perigo, perguntando a Betty o que faz no apartamento de Ruth. Betty responde que é sobrinha de Ruth e “Meu nome é Betty”, ao que a outra responde: “Não, não é”. Coco aparece para entregar um roteiro para Betty e retira Louise de lá. Betty entra e vê Rita em choque ofegante. Mais uma vez o sonho de Diane a trai: a vidente, uma versão mendigo, e de sua consciência, diz a Betty que ela não é quem ela diz ser, logo aquilo não é real, e que alguém está em perigo, porque no sonho de Diane o pressentimento da morte de Camilla para todo momento, é uma realidade da qual ela não consegue escapar, tanto que Rita presente esse mal contra ela e fica em choque. Adam Kesher encontra­se com o Caubói, que é uma espécie de mensageiro dos irmãos Castigliane. O Caubói, com um chapéu à lá Tom Mix, diz para Adam pensar no que fez durante o dia e agir conforme disser, sendo que no dia seguinte deverá retornar ao seu trabalho, podendo deixar toda a equipe permanecer normal e nada se alterar, mas a atriz principal deve ser aquela já escolhida. O Caubói fala ainda que se Adam fizer tudo certo o verá mais uma vez, e duas vezes mais se comportar mal. O Caubói é mais uma elemento da conspiração criada no sonho de Diane, sendo que sua aparência peculiar chamou a atenção no jantar e por isso ela se lembrou dele, inserindo­o no sonho. Ao longo do filme o Caubói aparece três vezes, mesmo Adam agindo da maneira certa, mas na realidade ele aparece três vezes para Diane: neste encontro e duas vezes no final de seu sonho (quando ele diz que é hora de levantar e depois fecha a porta), pois ela se comportou de modo errado, e na festa. Diane sim se comportou mal e sua consciência acaba gerando essa associação.
20 Betty ensaia com Rita na cozinha para a audição que fará à tarde e ela diz que Betty foi ótima. Coco vai falar com Betty sobre Rita, encontrando as duas na sala. Mais uma vez Betty protege Rita, e combina de irem mais tarde até onde Diane Selwyn mora. Betty chega toda confiante na audição é bem recebida por todos, faz uma excelente atuação e o diretor do filme para o qual ela faz o teste, Bob Hooker, é o primeiro a lhe felicitar pela atuação. Betty sai com Martha Johnson (Kate Foster), uma executiva e sua assistente, para conhecer Adam Kesher. No momento em que chegam no estúdio Kesher está na audição de A História de Sylvia North com Camilla Rhodes. Betty apenas avista Adam, que parece se impressionar com sua aparência, mas diz que tem que ir embora (o encontro que marcou com Rita). Claro que toda a boa impressão e o talento que Betty demonstra são fruto dos anseios reais de Diane, mas o diretor do teste Bob Rooker é baseado em sua experiência real: ele era o diretor que rejeitou Diane em favor de Camilla, durante a produção de A História de Sylvia North, o filme que Adam no sonho dirige, e é claro que eu seu sonho Bob Rooker adorou seu trabalho. Quanto a Adam, a simples presença dele no sonho é dolorosa para Betty/Diane, pois ele a faz lembrar de sua separação de Camilla. Betty e Rita vão até o apartamento de Diane Selwyn, Rita o tempo todo tenta se esconder com medo de que a polícia ou alguém a veja. Lá elas descobrem que Diane trocou de apartamento com a vizinha, que não consegue olhar para Rita (o mesmo acontece com Rita), e que não é vista há alguns dias. Como ninguém atende a porta Betty resolve pular a janela e invadir o apartamento de Diane, abrindo a porta da frente para Rita: encontram o corpo de Diane já em decomposição na cama. Rita grita e depois corre em desespero. A inversão aqui acontece com o comportamento das duas: é Diane e não Rita que deveria ter medo da polícia estar dela. Quanto ao corpo de Diane: bem, sabe­se no final que ela se mata na cama, mas o vestido com o qual Diane aparece morta aqui é de Camilla, e a vizinha havia dito que não a via há alguns dias. É possível afirmar que Diane se antevê morta, mas diria que, como ela está com o vestido de Diane, e seus dias se sumiço combinam com os dias de sumiço que depois a vizinha reclama quando vai buscar suas coisas, é mais possível que essa seja uma morte simbólica: parte dela morreu com Camilla quando seu assassinato foi confirmado pela chave azul. Apenas o desconforto entre a vizinha e Rita não é claro: pode ser um antigo caso se Diane, antes de Camilla, que levou um fora e por isso ressente­ se com Rita e Diane na realidade. Em pânico Rita tenta cortar seu cabelo, mas Betty a impede e a ajuda a se esconder/ disfarçar, com uma peruca loira. Na cama, deitadas, as duas sentem uma atração: Rita não se lembra se já fez isso e Betty afirma que nunca fez, mas com Rita ela quer. Depois da noite de amor das duas, Rita sussurra dormindo em espanhol o nome Silêncio. Rita pede que Betty vá com ela até este lugar e com elas saem de táxi, com a peruca loira. O ciúmes que Diane sente de Camilla faz com que em seu sonho elas fundam em uma: Betty e Rita loiras. Em seu sonho Camilla não tem experiências, é receptiva para receber seu amor. É uma masturbação dentro do sonho de Diane, uma ilusão. Ela projeta suas fantasias e ilusões na cena se sexo em seu sonho, aquilo que não consegue mais realizar
21 com Camilla. Rita e Betty chegam ao Clube Silêncio, um cabaré surreal, com letreiro azul na porta escrito “Silencio”. Elas entram enquanto um sinistro apresentador faz uma performance falando: “Não tem banda! Isso é só... uma gravação Não tem banda. Mas, mesmo assim, ouvimos uma banda”. As cortinas abrem um pouco para de lá sair um trompetista, que interrompe sua performance, mas continuamos a ouvir a música que tocava. Durante a apresentação do apresentador com aparência demoníaca, uma mulher com cabelos azuis observa tudo atentamente. Ele levanta as mãos e uma forte luz azul a mover­se pelo clube, fazendo Betty tremem freneticamente. No meio das luzes e de uma fumaça o apresentador some. Outro apresentador entra e introduz a nova atração: Rebekah Del Rio, que canta Llorando. Betty e Rita começam a chorar compulsivamente enquanto a música é executada. A cantora cai, e ao que parece morta, mas mesmo assim as duas continuam a chorar. Betty vira­se para pegar a bolsa e encontra dentro uma caixa azul. "Não há orquestra. Não há orquestra. Está tudo gravado". Isso resume a intenção de Lynch, porque diz: está tudo gravado, tudo determinado já de antemão, nada é real é tudo uma ilusão, é tudo falso. Não importa o que se faça, há de se eternamente chegar ao mesmo lugar. Diane mandou matar Camilla e nada do que ela realize em seu sonho vai fazê­la ter de volta Camilla. Lynch faz uma brincadeira dupla: ao mesmo tempo em que Rita mostra a Betty que tudo é uma ilusão (é ela que conduz até o clube), que tudo é um sonho de Diane, diz para nós espectadores que estamos vendo e é apenas um filme. Mesmo o apresentador avisando que é falso, Betty e Rita se esquecem e emocionam­se com apresentação da cantora e nós também fomos tolos por chegarmos até aqui acreditando que tudo que víamos era a realidade de Betty. A letra de Llorando gira em torno do sofrimento de uma pessoa que perdeu seu grande amor, no caso Diane que perdeu Camilla. A luz azul é a mesma que aparece quando Diane entra em surto e corre dos velhos e a fumaça é a mesma que aparece no quarto dela depois que se manta; como o apresentador tem uma aparência demoníaca (sobrancelhas arqueadas, cavanhaque) e as luzes surgem com o seu sentimento de culpa, Diane foi para o inferno por ter mandado matar Camilla. Todos os elementos de cor azul (caixa, luz, chave, o neo do clube) estão associados aos sentimentos ruins de Diane, a sua raiva, ao assassinato de Camilla, ao seu sentimento de culpa e assim a mulher de azul, que aparece no fim do filme depois que Diane se mata e do monstro que aparece, pode ser a rainha de todos estes símbolos (pela sua própria pose no Silêncio), ou mais um deles. Rita e Betty voltam para o apartamento com a caixa azul em mãos, entram no quarto, Betty a coloca na cama enquanto Rita pega a caixa onde guardaram o dinheiro e a chave de Rita, mas quando se vira Betty sumiu. Ela chama por Betty várias vezes, fala “Donde estás?”, mas como não acha resolve abrir a caixa azul com a chave azul sozinha. A caixa é aberta, a câmera penetra em seu interior, a caixa tomba aberta no chão, a câmera sobe, e Tia Ruth aparece na porta observando para ver se algo estranho acontecer, mas o quarto está vazio e não há mais caixa. Há um corte para o apartamento de Diane, numa subjetiva que encontra o copo dela deitado, o Caubói aparece
22 e diz “hora de acordar”, há um lento fadeout, vemos o corpo de Diane em decomposição, o Caubói fecha a porta e a tela escurece. Assim termina a primeira parte. O movimento da câmera em direção ao interior da caixa também é um reflexo do que aconteceu no início do filme, quando a câmera se aproximou do travesseiro. Assim, podemos supor que a caixa azul simboliza Diane retornado consciência. A caixa azul nos remete à caixa de Pandora, que guarda todas as coisas ruins e as virtudes, só restando apenas a esperança. Como diz o ditado "A esperança é a última que morre", seria uma confirmação de que Camilla está morte e a caixa parece sugá­la. Ela representa também representa as memórias e a consciência de que Diane deixa afastada ao criar seus sonhos, mas que de lá saem, acabando com seu sonho. A caixa é associada à morte de Camilla, ela é simbólica: na segunda parte quando Diane pergunta o que a chave azul abre, o assassino começa a rir e não responde, mas sabe que quando a chave aparecer Camilla estará morta; Diane cria então um objeto no qual esta chave se encaixa. Em seu processo de despertar quando a caixa se abre algumas coisas se fundem à realidade, como a tia Ruth de Diane que está morta, mas no sonho a tia de Betty está passeando no Canadá. Diane se vê deitada duas vezes na mesma posição: em uma está dormindo e na outra morta. Essas duas visões estão contidas dentro de duas cenas com o Caubói, que então apareceu três vezes. No sonho o Caubói diz que se Adam se comportar mal ele irá aparecer mais duas vezes, como com Diane, logo (como já disse antes) ela não fez as coisas direito e assim é punida (por ela mesma). Ele diz “hora de acordar”, que pode ser entendido como hora de acabar com este sonho. O longo fadeout para a próxima cena é o despertar de Diane de seu sonho. Na segunda parte, que começa com um longo fadeout, se passa no dia em que Diane se mata, o mesmo em que encontra a chave e que tem o sonho. Há cenas que acontecem neste dia, com inserções de flashbacks e outros dentro destes. Os flashbacks são criados por um falso erro de continuidade: telefones tocando, bebidas na mão e passagens de um cômodo a outro com cenas não contínuas. Aqui é preciso ficar atento ao roupão que Diane coloca ao acordar e ao cinzeiro de piano em cima da mesa, pois eles ajudam a esclarecer o espaço temporal do filme. Nesta parte os acontecimentos são tidos como reais, sendo que apenas algumas cenas são as lembranças que Diane tem destes acontecimentos. Fade. Diane, deitada na mesma posição anterior, acorda com o som da sua vizinha batendo na porta, mas a camisola de outra cor. Ela veste o roupão, abre a porta para a vizinha que veio buscar suas coisas, entre elas um cinzeiro em cima da mesa, perto da chave azul. Diane vê a chave azul e antes de sair sua vizinha diz que dois policias a vieram procurar de novo. Diane caminha até a cozinha e depois de permanecer algum tempo parada delira que Camilla está lá, mas volta a si com os olhos cheios d’água. Recobrando os sentidos Diane está em outro local da cozinha, sendo este um flashback. Ela caminha com a caneca de café até o sofá de roupão, mas há o corte do plano, Diane está nua na parte de cima segurando um copo de whisky e Camilla está deitada sem blusa no sofá – um flashback dentro do anterior. Ela tenta acariciar Camilla, que a impede. “É ele, não é?”, pergunta Diane, seguida da imagem de um estúdio onde Camilla ensaia com o diretor Adam Kesher uma cena de beijo e Diane fica assistindo – mais um flashback. Depois Camilla aparece no apartamento de Diane, mas ela não deixa Camilla entrar. Diane está então se masturbando no sofá, até que o telefone toca. Ela
23 atende, mas está com outra roupa, o telefone é outro, e do outro lado da linha Camilla fala que o carro está esperando – outro flashback. Diane está na mesma limusine preta que Rita estava em seu sonho, o carro para de repente, mas é apenas uma surpresa: o carro para na Mulholland Drive e Camilla vem buscar Diane. As duas sobem as escadarias, Diane sendo conduzida. Toda a seqüência seguinte, do jantar na casa de Adam, serve de explicação para a primeira parte do filme, como já disse. É aqui que encontramos a maioria das pessoas utilizadas no sonho de Diane e testemunhamos a destruição emocional que levou a levou a decisão do assassinato de Camilla. É aqui que Diane cria o mendigo monstro, a caixa azul, e seus tormentos de consciência. Diane conhece Coco, mãe de Adam, conta a sua história do Canadá até Hollywood, vê um homem enquanto toma um café (o mafioso do expresso), observa uma loira se aproximar e beijar Camilla, vê um homem vestido de caubói passar e ouve o anúncio de casamento de Adam e Camilla. A imagem da loira beijando Diane sugere algo mais entre as duas e as risadas de Adam e Camilla durante o anúncio são estranhas, sendo estas duas distorções da visão de Diane criadas por seu ciúmes de Camilla. Diane está agora sentada na lanchonete Winkie’s conversando com o assassino e uma garçonete de nome Betty lhe serve mais café. Diane entrega uma foto de Camilla com o nome (assim como na reunião de Adam em seu sonho) e o dinheiro ao assassino, que lhe diz que quando estiver feito ela encontrará a chave azul; nesse momento ela avista ao fundo um rapaz estranho (o que descreve o sonho com o mendigo em seu sonho). Ela pergunta o que a chave abre e ele apenas ri. Vemos o mendigo está sentado, com fumaça da sua fogueira ao fundo, manuseando a caixa azul, que é jogada num saco de papel. E cai no chão. Dela saem os dois velhos. A câmera corta para o apartamento de Diane, partindo da chave azul: Diane assustada observa a chave sem se mover; os dois velhos entram por baixo da porta e luzes azuis começam a piscar, sons de grito surgem e Diane levanta correndo aterrorizada para seu quarto e lá se mata com um tiro, surgindo muita fumaça. Uma luz azul pisca na imagem sobrepondo o mendigo e cortinas; uma vista de Los Angeles e Rita e Betty juntas (Rita porque aqui Camilla está com a peruca louca e Diane volta a ter sua aparência idealizada). Aparece o Clube Silêncio com a luz azul que se agita e aos poucos vai sumindo, e a mulher de cabelo azul diz “Silêncio”. Curiosamente Diane morre na mesma posição de seu sonho (ou terá ela sonhado depois de morta, sendo as imagens que vêm depois fragmentos de seu sonho?). E como uma última brincadeira de Lynch a mulher de cabelo azul no Silêncio diz silêncio, o que é o que se pede antes do início de um filme. Hollywood O filme pode ser visto como uma sarcástica crítica à fábrica de sonhos de Hollywood, equiparada a uma máfia em que diretores e atrizes se vendem por muito pouco e produtores ditam as regras pela lei do gatilho, e uma homenagem ao cinema. Lynch fala que o filme: “Não é toda a verdade sobre Los Angeles, nem
24 toda a verdade sobre Hollywood e a indústria. É apenas uma história”. Para Lynch já afirmou que em Hollywood, o realizador é freqüentemente um cidadão de segunda categoria, o que podemos concluir que Adam Kesher apresenta elementos da imagem de Lynch. Se formos alisar, cada elemento de Cidade dos Sonhos converge univocamente para um lugar, o cinema. O filme aborda o mundo estranho e perverso de Hollywood, ao mesmo tempo em que é uma espécie de canção de amor ao cinema. O complexo painel traçado, fortemente estilizado, caricato e alegórico fala das relações de poder exercidas pelos chefões dos estúdios de cinema sobre os diretores dos filmes; fala sobre o sonho (e o declínio do sonho) americano entre as colinas de Hollywood; fala sobre a corrupta e perversa relação entre o fazer artístico e os poderes do dinheiro; fala sobre o processo de interpretação no cinema e a transformação da obra fílmica do roteiro à imagem pronta; fala sobre a verdade no cinema e fala sobre a natureza ilusória e artificial do cinema. Com Camilla Lynch joga explicitamente no modo como Hollywood usa mulheres predominantemente enquanto objeto sexual. Mas naturalmente, na extremidade está fazendo a mesma coisa que um filme de Hollywood faz normalmente a uma Camilla: imaginando que é um objeto vazio que se possa possuir. Já Betty é a ingênua quintessência de Hollywood, uma moça boa que está pedindo par ser corrompida também. E é claro um filme que fala da própria obra de David Lynch, de seu cinema, usando características presentes em seus filmes. Características dos filmes de David Lynch presentes em Cidade dos Sonhos ­ Alter­ego: Lynch costuma se divertir criando personagens que o representam em seus filmes por algumas características. Adam Kesher é o alter­ego de Lynch em Cidade dos Sonhos. ­ Amor: o amor é o grande desencadeador de tudo, é aquilo que está na base de cada minuto de sua obra. Os filmes de Lynch são sempre uma busca pelo amor. Diane não quer outra coisa se não ser amada por Camilla, e por não poder ter esse amor é que manda matá­la, mas também é este o motivo que a faz criar um sonho perfeito onde as duas estão felizes. Lynch diz que o filme é "uma história de amor na cidade dos sonhos". Uma história de amor entre Rita e Betty. ­ Clubes noturnos: uma de suas personagens começa a cantar, geralmente em clubes noturnos sempre um pouco assustadores. O Clube Silêncio é um dos melhores exemplos dos filmes de Lynch. ­ Contraste: “Eu gosto de contrastes... Porque ir ao cinema é ir para esse lugar escuro, mas seguro, explorar a vida e a morte em seus aspectos mais extremos. Meus filmes são super­radicais. Não são para todo mundo” – David Lynch. Sua obra é baseada nos
25 contrastes e analogias existentes entre ilusão e realidade, sanidade e loucura, mundos interior e exterior, universos adulto e infantil, elementos naturais e artificiais. Em Cidade dos Sonhos o contraste é principalmente entre o sonho e a realidade de Diane ­ Cortinas vermelhas: as cortinas vermelhas aparecem em quase todos os filme de Lynch, e em todos eles, as cortinas aparecem em locais de escuridão e mistério. As cortinas indicam que algo pode estar sendo escondido, ou podem revelar. Em Cidade dos Sonhos a cortina vermelha do Clube Silêncio esconde o palco, o apresentador misterioso, a cantora, o trompetista, mas simboliza o mistério do lugar e a ilusão, escondida até aquele momento dos espectadores, que nos é revelado depois. Há também cortinas na sala do Senhor Roque, um homem misterioso. ­ Dualidade: nos filmes de Lynch a dualidade aparece, seja real ou imaginada. Além disso, sempre há personagens que se contrapõem e se completam, ou que apresentam várias personalidades. Diane é cruel ao mandar matar Camilla, mas Betty é a imagem de ternura; Camilla é egoísta e Rita segue todos os conselhos de Betty. Não apenas a dualidade, como a identidade é discutida. Todos os personagens acabam lidando com a questão da identidade em Cidade dos Sonhos, pois há papéis diferentes em cada um das partes. Nas cenas com espelhos das duas personagens principais Lynch questiona os limites da identidade humana, ainda mais num lugar como Hollywood, mas também discute a própria essência ilusória da imagem. ­ Eletricidade: no mundo de David Lynch, eletricidade aparece representando a vida e/ou a presença dela. No filme analisado as luzes de Los Angeles acesas à noite, ou, por extensão, o luz azul que cintila sobre Diane antes de se matar e Betty no Clube Silêncio, como uma ameaça da extinção da vida (no caso de Diane). ­ Época indefinida: em alguns de seus filmes Lynch mistura estilos de épocas diferentes, com elementos de várias décadas. Mas, os anos cinqüenta, são seus preferidos, sempre havendo alguma referência, seja visual ou musical a esta década. Sobre a década ele comenta: ”Eu recordo­os na superfície como muito idílio. Mas há sempre um sentido de outras coisas. Os cinqüentas eram uma estadia bonita, em muitos sentidos: o nascimento do rock'n'roll, dos carros, de algum otimismo e liberdade. Pareceu como o tempo era mover­se mais lento. Havia uma qualidade esperançosa nas coisas”. Em Cidade dos Sonhos parece ser o tempo presente, mas várias partes do sonho aparecem como uma era romantizada dos prédios de apartamento de Hollywood e claro há elementos da década de cinqüenta. ­ Estradas: "Eu amo estradas de duas mãos. Naquelas "duas­pistas" à noite você descobre o sentido de mover­se pelo desconhecido, e é aquela excitação de sentidos que as pessoas podem ter". Lynch já fez vários filmes que também podiam ser definidos como road­movies, mas quando isto não acontece, insere uma estrada de outra maneira. O título do filme, Mulholland Drive é a própria estrada, sinuosa, misteriosa, uma estrada de sonho ­ Estranhamento: Lynch trabalha com transgressão audiovisual através de vários elementos: som extradiegético, divagações gratuitas de suas personagens, inserindo elementos absurdos, trabalhando os conceitos de realidade e cópia, materialidade e imaterialidade, corpo e espírito. Mesmo nos filmes em que há uma certa linearidade, existe
26 um trabalho em relação ao tempo e espaço que também serve para causar estranhamento, como acontece em Cidade dos Sonhos. Neste há também as inserções de flashback, umas dentro das outras, a troca de identidade das personagens e os elementos relacionados à cor azul. ­ Fotografia: slow motion em cenas de sexo e violência é uma das características marcantes da fotografia nos filmes de Lynch. São outras características: o uso consciente de cores fortes, saturadas, principalmente vermelho e azul, criando um visual hiper­realista; iluminação para criar ambientes, contrastando claro e escuro; pouca e lenta movimentação da câmera; posicionamentos não usuais; fadeouts; luz estroboscópica; ritmo tenso e lento através da montagem. No filme analisado, apenas o uso do slowmotion não aparece. ­ Fumaça e fogo: Fumaça vem antes do fogo, e Lynch reconhece esse fato. Ele usou o fumaça na maioria de seus filmes como um símbolo para a obscuridade, a escuridão, e a confusão. Em outros, o fumo relaciona­se à autodestruição, a escuridão interna de uma pessoa. O fogo simboliza o sobrenatural ou a raiva e hostilidade. A fumaça aparece quando Diane se mata, no Clube Silêncio, e atrás do mendigo na segunda parte, relacionada à obscuridade e escuridão. ­ Mistério: em seus filmes há sempre um mistério a resolver e quando ele é resolvido, ainda sim restam dúvidas, que Lynch suprime ou nos priva; o que alguns chamaram de processo lynchiano de criação por omissão. E como todo bom mistério deve haver um detetive. Para Lynch “os seres humanos são como detetives, amam um mistério, amam ir a aonde o mistério os puxa”. Aqui há vários mistérios, mas o primeiro que vemos é: quem é Rita? Mas desenhas de outros vão surgindo, e claro muitos ainda ficam abertos. ­ Morte: a morte funciona como ponto de partida em quase todos os filmes. Em Cidade dos Sonhos é a tentativa de assassinato de Camilla e o acidente de carro. ­ Narrativa: ao contrário de um dos preceitos da narrativa clássica, em várias obras de Lynch, não há o esquema linear de início, meio e fim. Seus filmes não obedecem a uma regra: horas apresentam muitos flashbacks, ou ligam início e fim, com inserções no meio, ou se estruturam de modo totalmente diverso, tendo o expectador que decifrar a ordem dos fatos, ou mesmo a lógica. É o que acontece em Cidade dos Sonhos, com uma narrativa toda fragmentada que mistura tempo e espaço. ­ Noir : Lynch faz uso de vários elementos de filmes noir para compor seu filmes: mulheres misteriosas, um mistério a ser descoberto, detetives, iluminação marcada pelo contraste, lugares sombrios, o caráter dual das personagens, ambientes noturnos, clubes noturnos. Cidade dos Sonhos contém todos estes elementos, mas a maior parte de sua narrativa acontece durante o dia. ­ Personagens deformados: personagens deformados, monstros, com problemas físicos, aberrações, ou seja, todo um universo de seres fisicamente diferentes. No caso de Cidade dos Sonhos o estranho mendigo e Mr Roque, o homem de cadeira de rodas.
27 ­ Personagem misterioso: sempre há um personagem que não se sabe de onde surgiu, quem é, ou o que ele representa. A mulher de cabelo azul no Clube Silêncio é um exemplo. ­ Realidade perturbada: em seus filmes a realidade perturbada, com hiper­realismo, criação de um real, distorção do real. Seus filmes não nos apresentam a “realidade” do dia a dia, ela é construída. O sonho de Diane é uma visão hiper­realista de Los Angeles. ­ Sexo: Lynch quase sempre coloca cenas de sexo, ou muitas cenas de sexo nos filmes. “O sexo é uma entrada a algo assim que poderoso e místico, mas os filmes descrevem­no geralmente de uma maneira completamente lisa” – David Lynch. O sexo que aparece entre Betty e Rita é delicado, terno, distanciando­se das visões de outros filmes de Lynch em que o sexo é compulsivo ou violento. ­ Sinais gráficos: placas nos filmes indicando a rua, cidade, número, um sinal gráfico, localizando o espectador e criando expectativas ou associações. Em Cidade dos Sonhos há a placa de Mulholland Drive (que também serve de explicação ao filme), a Sunset Boulevard (referência ao filme de Billy Wilder) e o número do apartamento de Diane (que serve para nos confundir). ­ Sonhos: “Cada filme é como um sonho desperto. Todas as idéias são como devaneios”. 5 O mecanismo que dá liga aos filmes de Lynch parece ser mesmo esse, originário da lógica dos sonhos. “Mas a idéia do sonho e o modo como os sonhos funcionam me fascinam. O modo como um sonho é uma história, com estrutura de uma história. O ideal para mim é combinar a superfície de uma história simples com a sensação de um sonho, com as abstrações possíveis num sonho”. Nos filmes de Lynch há dois tipos de citação de sonhos: as personagens têm sonhos ou a realidade das personagens se apresenta como um sonho. Em Cidade dos Sonhos a primeira parte do filme é um sonho e se parece com um. ­ Violência: “Não prego a violência, de jeito nenhum. Tudo o que quero é fazer o espectador entrar no mundo do filme, na experiência do filme, e a experiência do filme tem que ser fiel às regras que regem aquele mundo, o mundo da história. Eu tenho que fazer o espectador sentir tudo, o bem e o mal. E eu acho muito, muito legal sentir uma coisa assim num ambiente seguro, é um pouco como um sonho, uma fantasia, um poema sobre as coisas humanas, sobre aquilo que as criaturas humanas fazem, e é legal você se apaixonar por essas coisas” – David Lynch. Todos os seus filmes tem cenas de violência. Em Cidade dos Sonhos a violência é realizada pelo assassino que mata três no sonho de Diane e Camilla na realidade de Diane. ­ Voyeurismo: há sempre um personagem que age como o espectador, procurando inspecionando, descobrindo. Diferente dos detetives que usa, os voyeurs são outras personagens que apenas tem uma curiosidade aguçada. “Estou convencido de que nós todos somos voyeurs. Nós queremos saber os segredos e nós queremos saber quem está atrás das janelas. E não um modo que usamos para ferir os outros” ­ David Lynch. Betty é o exemplo 5 ATKINSON, Michael. Veludo Azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, pg. 12.
28 perfeito: ela age boa parte do tempo como um investigador, buscando, ligando, perguntando, invadindo a casa de Diane, para descobrir quem é Rita. Filmografia: 1968 – Six Figures Getting Sick ou Six Men Getting Sick (curta) 1968 – The Alhpabet (curta) 1970 – The Grandmother (curta) 1974 – The Amputee (curta) 1977 – Eraserhead 1980 – O homem elefante (The Elephant Man) 1984 – Duna (Dune) 1986 – Veludo Azul (Blue Velvet) 1989 – The Cowboy And The Frenchman (curta) 1990 – Coração Selvagem (Wild At Heart) 1992 – Twin Peaks: Os últimos dias de Laura Palmer (Twin Peaks. Fire Walk With Me) 1995 – Premonitions Following An Evil Deed (curta), In Lumière Et Compagnie 1996 – A Estrada Perdida (Lost Highway) 1999 – História Real (The Straight Story) 2001 – Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive) 2002 – Darkned Room (curta) Tv : 1990 – Twin Peaks 1990 – American Chronicles 1990 – Industrial Symphony Nº 1: The Dream Of The Broken Hearted 1992 – On The Air 1993 – Hotel Room Site: 2002 – Rabbits 2003 – Axxon­N Bibliografia: ATKINSON, Michael. Veludo Azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. BAHIANA, Ana Maria. A luz da lente – conversas com 12 cineastas contemporâneos. São Paulo: Editora Globo, 1996. _________. Uma luz para David Lynch, IN: BRAVO!. São Paulo: D’Avila Comunicações, nº26, novembro, 1999, pg. 111­ 115. _________. A subversão dos sentidos, & ANDRADE, Sérgio Augusto, A lógica e Lynch, In: BRAVO!. São Paulo: D’Avila Comunicações, nº 56, maio, 2002, pg. 62­69. COLI, Jorge. As paredes do labirinto, In: Mais!. São Paulo: Folha de São Paulo, 24 de fevereiro, 2002.
29 REGO, Alita Sá e GEIGER, Pedro. Invenções poéticas de David Lynch, In: Cinemais. Rio de Janeiro:Aeroplano Editora, nº33, janeiro/março, 2003, pg. 245 ­ 256. http://dir.salon.com/ent/movies/feature/2001/10/23/mulholland_drive_analysis/index.html 29/3/2003 18:15 http://dir.salon.com/ent/movies/int/2001/10/12/lynch_interview/index.html 18:18 29/3/2003 http://dir.salon.com/ent/movies/review/2001/10/12/mulholland_drive/index.html 29/3/2003 18:25 http://dir.salon.com/ent/movies/feature/2001/11/07/mulholland_dream/index.html 29/3/2003 18:31 http://home.no.net/zeroemc/filmes5/mulholland.htm 29/3/2003 19:01 http://home.no.net/zeroemc/filmes4/bluevelvet­sf.htm 29/3/2003 19:08 http://home.no.net/zeroemc/filmes5/helefante.htm 29/3/2003 19:16 http://www.acordeee.hpg.ig.com.br/sv_cidade.htm 29/3/2003 19:53 http://www.anedotabulgara.com.br/setaro/em_cartaz/cidade_sonhos.htm 29/3/2003 19:28 http://www.cinema.art.br/crit_editor_filme.asp?cod=1730 29/3/2003 19:40 http://www.contracampo.he.com.br/16/4vezeslynch.htm 29/3/2003 18:36 http://www.contracampo.he.com.br/16/palavraquemata.htm 29/3/2003 18:39 http://www.contracampo.he.com.br/16/homemelefante.htm 29/3/2003 18:41 http://www.contracampo.he.com.br/16/lynchquadrinista.htm 29/3/2003 18:43 http://www.contracampo.he.com.br/31/mulhollanddrive.htm 29/3/2003 18:48 http://www.contracampo.he.com.br/50/davidlynch.htm 29/3/2003 18:02 http://www.contracampo.he.com.br/41/twinpeaks.htm 29/3/2003 18:53 http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2002/04/19/cad028.html 29/3/2003 19:48 http://www.davidlynch.com/ 29/03/2003 17:20 http://www.geocities.com/Hollywood/2093/ 29/3/2003 17:53 http://www.mulhollanddrive.com/ 29/03/2003 16:38 http://www.terra.com.br/istoe/1698/artes/1698_estrada_perdida.htm 29/3/2003 19:56 http://www.themodernword.com/mulholland_drive.html 29/3/2003 17:58 http://www.uol.com.br/revistadecinema/body_index.html 24/5/2003 20:35
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