1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA – UFRO
Departamento de Ciências Jurídicas – DCJ
ESTADO MODERNO
características e conceito
elementos de formação
instituições políticas
natureza jurídica
atualidades
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)1
2013
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Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia – UFRO, junto ao Departamento de Ciências
Jurídicas/DCJ. Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais; Doutor em Ciências Sociais pela UNESP e Doutor
em Educação pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Ciências e em Direito, é jornalista.
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Partes deste trabalho foram publicadas em revistas e sites especializados; no entanto,
espaçadamente, todos os itens foram publicadas no site Gente de Opinião:
http://www.gentedeopiniao.com.br/colunista.php?news=104.
A iniciativa é parte de um projeto de extensão universitária desenvolvido no
Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia, no ano letivo de
2013. Portanto, é um projeto institucional.
O objeivo foi sempre expandir, popularizar e tornar acessível, gratuitamente, o
conhecimento pertintente à política, ao Estado e ao Direito. Literalmente, tratava-se, desde o
início, de “atualizar” o conhecimento (a espitemologia política) para que pudesse ser virtualizado
(Lévy, 1996).
Para facilitar a consulta, o texto está dividido em vários capítulos postados relativamente
em ordem cronológica – a não ser nos casos em que a lógica sequência dos temas deveria ser
garantida – e também em duas grandes subdivisões: 1. Fundamentos das disciplinas; 2. Estado de
Direito.
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Resumidamente, trata-se de um amplo resumo articulado que recupera os elementos e as
características do Estado desde a sua formação, observando-se historicamente a partir do Estado
Moderno. Para efeito didático, o texto está dividido em itens específicos.
No livro, veremos o conteúdo específico que compõe o objeto de análise da Teoria Geral
do Estado, bem como uma configuração preliminar acerca da política, do poder e do Estado, seus
elementos e variações limitadas e que os celebram como conceitos clássicos.
O trabalho tem uma finalidade exclusivamente didática, a fim de que possa ser lido como
manual para iniciados em Ciência Política e Teoria Geral do Estado e, por isso, não se trata da
proposição de teses inovadoras.
Há ainda um destaque maior quanto aos elementos e conteúdos de natureza jurídica, a
fim de que se possa ler no Estado Moderno uma estruturação política, institucional e jurídica
particular. O livro pode ser utilizado tanto nas disciplinas relacionadas à Ciência Política e
Teoria Política, quanto especificamente em Teoria Geral do Estado.
Além de muitos outros conceitos, clássicos e contemporâneos, o texto se propõe percorrer
determinados elementos, como: Ciência Política; Teorias do Estado; Estado Moderno; Estado de
Direito; República; Estado Democrático.
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Dedico este trabalho à minha esposa, Fátima, pelas incontáveis discussões e sugestões aqui
incorporadas – e pelo meu amor;
à minha mãe, Dalva, pelo carinho de sua criação e pelo amor de mãe;
ao meu, Saturnino, e meu irmão, Wagner, que já partiram, mas que preparam o seu
retorno para breve.
Também dedico o trabalho a todos os colegas de trabalho pelos debates e acareações,
bem como aos meus alunos que, com sua participação, levaram-me inúmeras vezes a
ponderar novamente sobre muitas questões e suas verdades restritas.
Ao amigo Chico Lemos, pelo espaço cedido no site Gente de Opinião – sempre com total
lisura, sem nenhuma forma de censura.
Aos meus professores que me fizeram chegar até aqui.
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PARTE I
FUNDAMENTOS
DAS DISCIPLINAS
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FUNDAMENTOS DAS DISCIPLINAS
Estudar a política é estudar os clássicos e isto nos é fundamental porque esses autores e
suas obras revelam ou nos ensinam o caminho para desbravarmos alguns dos principais segredos
e mistérios da condição humana – sobretudo se aceitarmos a ideia de que o homem é um animal
político que só se realiza no fazer-política. Neste caso, trata-se de visualizar, por exemplo, o que
torna o homem um ser sociável por excelência, mas que só se completa como zoon politikón. A
natureza tem muitos animais sociais, incluindo o homem que é um ser tendente à sociabilidade;
mas apenas o homem é um animal político. Ou seja, além de ser social, o homem é – em um
plano superior de sua organização social, mental – capaz de criar um tipo mais específico de
organização: as instituições políticas. A sociabilidade pode ser adquirida (como moral, por
exemplo) ou herdada, pelas tradições, como um a priori. Contudo, somente a política resulta da
razão como fabricação humana.
Teoria Geral do Estado
A Teoria Geral do Estado é uma doutrina que foi sistematizada no século XIX, na
Alemanha, por Jellinek. Comparativamente, a Ciência política corresponde à investigação
empírica do poder, já no clássico Renascimento italiano do século XVI, iniciada por Maquiavel.
A Teoria Geral do Estado (TGE) se apoiaria nas análises do chamado realismo político, mas com
o objetivo de superar as restrições impostas pela Filosofia do Estado. Com isso, a TGE passaria a
observar os elementos de permanência e constância na formação do Estado.
Epistemologicamente, são abordagens muito distintas e isso se observa desde a formação do
objeto científico de pesquisa: o poder, para a Ciência Política; o próprio Estado, para a TGE. No
início, o Estado como sociedade política organizada é visto como indutor do direito; em meados
do século XX, com Kelsen, o Estado é equiparado ao direito. Por fim, especialmente no pósSegunda Grande Guerra, a tese de que o direito deve regular o Estado – limitar o poder – ganha
muita força, inclusive com amplo reflexo no direito internacional, com a criação do ONU (1946)
e a proclamação da Declaração dos Direitos Humanos, de 1948. Por esta construção teórica e
conceitual que vem se afirmando há um século e meio podemos compreender as primeiras
noções acerca do aparelho estatal:
o Historicamente, o Estado manifesta continuamente duas de suas atividades ou
características mais atuantes: ora se presta à dominação ora se volta à opressão.
o Estado é uma organização institucional específica que sistematizou, centralizou o Poder
Político.
o Estado é a instituição mais forte (status) que preside a organização social.
Além dessas características, ainda podemos dizer que o Estado:
 exerce o monopólio do uso legítimo da força física;
 é baseado no centralismo e no monismo jurídico (monopólio da produção legislativa);
 é a instituição política por excelência.
De modo simplificado, para muitos o Estado se limita à União, uma vez que só a União
tem soberania – os demais entes da Federação teriam apenas uma autonomia limitada e residual:
o que não interessa à União compete ao Estado-membro e assim, sucessivamente, ao Município.
Para Deleuze (2005): O Estado é a soberania. Entretanto, a observação de que o Estado – além
de ser uma instância privilegiada de poder – deve ser estudado como artefato científico foi
entrelaçada por Jellinek.
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TEORIA POLÍTICA CLÁSSICA
O tema que dá título ao texto, como todos os clássicos, não se esgota em uma única
abordagem e nem se submete apenas a esta ou àquela escola de interpretação. Uma abordagem
histórica, mas liberal, terá, por exemplo, em Bobbio (2000), um desfecho apontando os avanços
da conquista da liberdade; outra, igualmente a partir do pensamento clássico, mas de corte
crítico-marxista, abordará a legitimidade do poder (Coutinho, 2011).
Entretanto, há uma tradição na análise da política – como esfera autônoma das
realizações humanas – que recorre à Grécia clássica de Platão e de Aristóteles (século V. a. C.)
para definir um entendimento analítico (científico). São destacados três pontos: I - A política em
si, como prática (Arete2 = adaptação perfeita, excelência, virtude); II - A elaboração de uma
teoria; III - A implicação de uma filosofia.
As reflexões de Platão sobre os tipos de governo, justiça, virtude, estabilidade política
marcaram todo o pensamento político. Basta-nos pensar na Prudência de São Tomás de Aquino3
ou na virtù em Maquiavel (1994). Em todo caso, com Platão, pela primeira vez, relacionaram-se
as instituições, as atitudes e as ideias com os processos e os resultados.
Além do mais, pode-se dizer, “metaforicamente”, que Aristóteles já se indagava sobre a
Razão de Estado, ao diferenciar o Chefe da República do chefe de família — organizar o Estado
não era o mesmo que cuidar de uma família numerosa. Há uma “diferença específica” entre tais
poderes — para Aristóteles, a família é quem “satisfaz as necessidades da vida”: “Assim, a
família é a sociedade cotidiana formada pela natureza e composta de pessoas que comem, como
diz Carondas, o mesmo pão e se esquentam, como diz Epimênides de Creta, com o mesmo fogo”
(Aristóteles, 1991, p. 03).
A sociedade é, em si mesma, já um resultado: um conjunto de casas forma uma aldeia e a
cidade surge da família retirada de sua natureza4. O “governo da sociedade humana”, portanto,
nada mais é do que o das “famílias organizadas”. As cidades devem conservar a existência e
buscar o bem-estar. Este é o “desígnio de sua natureza”. O homem sem esta “natureza cívica” é
um ser sem leis que só “respiraria a guerra”, como “ave de rapina pronta a cair sobre os outros”
(“autoconservação no estado de natureza”).
Esses homens que vivem sozinhos, ou são Deuses ou são brutos — daí a “função
civilizatória” do direito: “O discernimento e o respeito ao direito formam a base da vida
social e os juízes são seus primeiros órgãos” (Aristóteles, 1991, p. 05 – grifos nossos). Como o
Estado é formado por famílias5, convém tratar do “governo doméstico” ou despótico. Este poder
seria dividido entre despotismo (senhor/escravo), marital (marido/mulher), paternal (pai/filho).
Só muito tempo depois, no Renascimento de Maquiavel e da formação do Estado-Nação,
é que se separou a política da moral e, posteriormente, havendo a dicotomia entre Estado e
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Note-se que aríete significa um instrumento de guerra medieval.
A maior corrupção de um governo livre é desviar-se deste Bem Comum, classificando-se como governo tirano e
despótico: “Daí ameaçar o Senhor tais governantes por Ezequiel (34,2): ‘Ai dos homens que a si mesmos se
apascentavam (como procurando os seus próprios interesses) – porventura não são os rebanhos apascentados pelos
pastores” (Aquino, 1995, 128-129).
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Hoje, diríamos que a sociedade é uma associação de famílias que foram desnaturadas, retiradas de sua condição
original, isto é, a sociedade é uma construção artificial, uma construção política como Polis.
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Em Roma seriam os patrícios.
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sociedade. O industrialismo – no pós-acumulação primitiva (Marx, 1977)6 – reforçaria a sugestão
de autonomia da esfera política. Com maior destaque para nove elementos de confluência:
1. Base Racional para o Pensamento e Ação: a Teoria Política consiste na busca
sistemática do conhecimento fidedigno sobre os assuntos relacionados com a esfera
pública, com o objetivo de melhorar as condições da vida humana no interior da
associação política.
2. Âmbito da Política: compartilhamento das instituições públicas, como res publica,
commonwealth (Comunidade de Nações). Trata-se, de modo preciso, da fixação de um
coletivo político – o que, em tese, de acordo com a Teoria Geral do Estado, a partir do
Moderno, implicou na delimitação do território ou elemento físico do Estado.
3. Unidade Básica de Análise: a Teoria Política clássica estabeleceu a Polis como unidade
básica de análise. Por ser a unidade política de referência mais ampla no mundo antigo,
inspirou nos modernos a ideia de se analisar a totalidade política. Uma Teoria Política tão
ampla quanto a realidade a ser investigada.
4. Conceito de Ordem: se a sociedade política é um todo, a conclusão implica em um
conceito de ordem. O que também se confere no reconhecimento de uma classe
determinada de estruturas políticas analisáveis e que envolvem, entre outros, a
distribuição de funções e as formações institucionais vigentes. Como toda relação de
poder tem pontos de conflito, a Teoria Política se propôs a analisar a origem desses
conflitos e os princípios de justiça que devem reger todo sistema político. O que, por fim,
levou à necessidade de se estudar a desordem, como desequilíbrio na sistemática de
aplicação dessa mesma justiça.
5. Método Comparativo: o método comparativo permitiu ampliar o mapa conceitual e os
cenários políticos relacionados, bem como estabeleceu uma gama maior de alternativas.
6. Busca da Perfeição Absoluta: a comparação revelou uma diversidade incrível de
fenômenos políticos, elevando-se a proposta de determinar a melhor formação
constitucional, tal qual eleger a mais desejável e a que serviria de modelo eficaz, como se
fosse possível e desejável alçar a política no sentido de um absoluto7.
7. Relação entre Teoria e Prática: procurava-se desenvolver o Estado Ideal, reduzindo-se
as experiências políticas a proporções manejáveis e que estivessem de acordo com uma
nova ordenação, de modo que qualquer analista pudesse visualizar as estreitas relações do
conjunto político prescrito. A preocupação ou convicção fundamental sobre a melhor
forma de governo baseava-se no propósito (de ordem prática) de que a teoria pudesse
clarear e modificar a realidade sempre transformável.
8. Amálgama de elementos: solidificou-se uma tradição na análise dos elementos
constantes, fundamentais e isto aproximou a Teoria Política da Teoria Geral do Estado,
sobretudo quanto ao estudo do(a): i. natureza, origens e finalidades do Estado; ii. a Teoria
do Contrato Social; iii. a relação entre Igreja e Estado (Estado Laico); iv. a soberania
(Razão de Estado); v. a relação Estado/sociedade (Estado-Nação); vi. a melhor forma de
governo; vii. implicações do direito natural (ou Prudência) sobre a política (Vera, 2005).
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Marx analisa a função de mera repressão social desempenhado pelo Código Penal do século XVI: “Marx se refere
ao Código penal de Carlos V (A Constitutio criminali Carolina), aprovado em 1532 pela Dieta imperial de
Regensburgo. Este código se caracterizava pelo extremo rigor de suas penas” (Marx, 1987, p. 717).
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Vale a lembrança de que até hoje a Constituição de Weimar é celebrada como um marco do Estado Democrático,
imaculada, mas raramente é defenestrada pela análise crítica de que teria conteria o preceito jurídico permissivo do
Estado de Exceção do nazismo. Em Hobbes, nunca é demais relembrar, a soberania é um absoluto.
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O nono elemento, no mundo moderno, confere com a tarefa de fortalecer o Poder
Legislativo como um preceito básico, inaugural do moderno pensamento político liberal, mas,
que em seguida se configurou como regra elementar para todo o Estado contemporâneo. Isto
também se vê no conceito de Comunidade Civil ou commonwealth: “Como a forma de governo
depende da atribuição do poder supremo, ou seja, do Legislativo, é impossível conceber que um
poder inferior possa prescrever a um superior, ou que um outro além do poder supremo faça as
leis, a maneira de dispor o poder de fazer as leis determina a forma da comunidade civil”
(Locke, 1994, p. 160 – grifos nossos).
De modo direto, ainda podemos pensar que desde então o Poder é orgânico, exatamente,
porque é social8 e isto reflete a capacidade humana para se propor formas de organização social
que nem sempre se esgotam no uso da coerção. Assim, o Poder Social é a capacidade humana:
 Constitutiva ou própria à fabricação de resultados que afetem outros;
 Sistêmica de realizar objetivos coletivamente vinculatórios;
 Organizacional de disciplinar e modelar desejos, ações, discursos e a própria
subjetividade;
 Racional e voltada à dominação, em busca de resultados precisos.
Desde este ponto da inflexão teórica temos uma concepção organicista de Estado, no
tocante a duas vertentes: i) no modelo absolutista da soberania (Hobbes, 1983); ii) como reflexo
da necessidade de haver controle social diante da desagregação social provocada pelo
industrialismo (Durkheim, 1999).
Por fim, devemos pensar que as formações denominadas de organicismo estatal ou de
Estado Orgânico guardam suas principais referências em dois grandes momentos da história da
Teoria Geral do Estado: a) os clássicos da antiga Grécia; b) os contratualistas, no Renascimento.
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A afirmação quer dizer muitas coisas, uma vez que a soberania do Estado sobre a sociedade – como pressuposto de
um poder que se exerce de modo absolutista – não considera ou não valoriza adequadamente/significativamente o
povo como elemento de formação do próprio Estado. Também afirmações do tipo “O Estado é direito” (Kelsen,
19989) assinalam somente aspectos formais do próprio Estado (como a normatização do Poder Público, em
determinado território) sem considerar o elemento material (Povo). Para Kelsen, o Estado é uma “ordem da conduta
humana”, dotado de poder para que suas ordens sejam cumpridas por todos. Desse modo, o Estado é, ou uma parte
ou, o próprio ordenamento jurídico. Ou seja, o Estado tem a natureza de direito. Os indivíduos estão sujeitos ao
Estado. Em relação ao monismo, sua crítica se inclina a constatar que nenhum Estado soberano poderia admitir
contestação a sua estrutura normativa, sob o risco de invalidar a defesa nacional de sua soberania (Kelsen, 1986).
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TEORIA POLÍTICA E CIÊNCIA POLÍTICA
A Teoria Política é mais ampla do que a Ciência Política, pois inclui modelos
filosóficos e argumentos éticos, além de guardar uma relação extensa de noções e
perspectivas de difícil comprovação, como ideias, visões de mundo e utopias generalistas.
Já a Ciência Política implica em verificação real, na replicabilidade dos próprios
argumentos, teses, problemas, axiomas, incluindo os métodos e de coleta e de análise de
dados.
Pela análise da Teoria Política interliga-se a esfera da política à totalidade do real, da
realidade social – o que, em tese, exige que se articule a antropologia (política), a sociologia
(política) e as demais ciências humanas a fim de se obter uma contextualização mais abrangente
e precisa da realidade política. A Teoria Política, portanto, apresenta-se como uma articulação
global do conhecimento e com a pretensão de verificar a política a partir de análises sistêmicas,
globais, articuladas. A política surge como conjunto. Já a Ciência Política procederia à
dicotomização da análise social, instituindo objetos de verificação bastante preciso e até
limítrofes a determinadas ocasiões ou fenômenos políticos, como no caso da análise de sistemas
eleitorais:
A teoria política –uma disciplina filosófica – não se submete à estreita
divisão acadêmica do pensamento social hoje dominante, que faz
distinção entre “ciência política”, “sociologia”, “antropologia”,
“economia”, “história” [...] pretende compreendê-los como processos
dinâmicos determinados pela práxis, situados no devir histórico e que,
por isso, têm sua gênese no passado e apontam para o futuro [...]
Gramsci, em suas reflexões de teoria política, fez uma importante
distinção entre “grande política” (alta política) e “pequena política”
(política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas [...]
Poderíamos dizer que, enquanto a teoria política se ocupa da “grande
política”, a “ciência política” tem como objeto questões de “pequena
política” [...] Uma relação com a ética, com juízos de valor, é assim
momento ineliminável da teoria política (Coutinho, 2011, p. 09).
A Teoria Política é uma teoria do devir político.
Ciência Política
A Ciência Política marcou sua entrada na seara científica, como novo marco na
epistemologia política, com o uso dos métodos da ciência empírica. Na passagem da ciência
natural ao fenômeno político, o empirismo transformou-se em historicismo no bom sentido; no
sentido de que não há análise política segura sem o apego e a referência clara da história. Ainda
podemos dizer que a Ciência Política se interessa pelo fato político, contudo, este fato pode ter
sido gerado por um fator teórico ou ideológico, e assim também se debruça o cientista político na
análise do discurso político e das ideologias que movem a arena política. O que nos leva a pensar
que o cientista político ainda se interessa pela epistemologia política (“conhecer o conhecimento
político”). Com esta posição melhor demarcada distanciou-se da matriz originária da Filosofia
Política, em vários sentidos:
1. Mas, sobretudo, se entendermos que a Filosofia é descrição, projeção, teorização do
bom governo, da ótima República.
2. Como fundamento último do poder (obedecer ou não? A quem obedecer?).
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Trata-se da natureza e da função do dever de obediência. Portanto, reflete o debate sobre
a legitimação do poder. Além do mais, a delimitação do poder também está em pauta.
Nesta linha, os temas centrais do poder seriam o compromisso, a obrigação e o dever.
Buscar o sentido da Política, como atividade autônoma da condição humana e que
difere do direito e da moral.
Nesta concepção, por exemplo, distingue-se entre motivação individual e Razão de
Estado; observando-se a prevalência ora da ética da responsabilidade, ora a ética da
convicção.
Como referência epistemológica, lógica, metodológica, ainda podemos falar da
Filosofia Política como discurso crítico: pressupostos, métodos científicos de aferição
da verdade, pretensa objetividade.
Como metaciência, a Ciência Política trata do conhecimento oriundo da verificação
empírica, o mundo real e não o imaginário da ética, como estudo empírico do
comportamento político.
A Filosofia Política é prescritiva: a ótima República. A Ciência Política é descritiva
ou explicativa. Trata da política como realmente é, em abordagem de um realismo
político.
A política na análise da veritá effettuale: a verdade prática dos fatos.
A Filosofia Política, como justificação do poder, tem relações estreitas com a Ciência
Política:
Hobbes escreve uma gramática da obediência, mas também uma análise empírica
(prática) do poder.
Hegel não oferece uma distinção muito simples e clara entre realidade e ideologia do
poder (e do Estado: presente na história como Espírito Absoluto).
Estão em movimento tanto a “representação histórica” quanto a “legitimação ideal
do Estado”.
A Ciência Política deve se pautar pela descrição histórica dos métodos de
legitimação.
A relação entre Filosofia e Ciência Política talvez seja ainda mais evidente quando
tratamos do objeto de análise, qual seja, o próprio conceito de Política:
Não há Ciência Política sem conceituarmos a Política.
As análises atuais das relações políticas têm início com a demonstração de uma Teoria
Geral do Poder.
De tal modo que a Filosofia Política se confunde com a Teoria Geral da Política.
Porém, como análise do discurso, as diferenças são menores:
A Filosofia Política relata o discurso da ciência e do cientista da política.
A Ciência Política reforça a análise do discurso dos que têm poder.
Nas várias modalidades em que se aproximam e se distancia a Filosofia da Ciência
Política, há fenômenos que se complementam: divergência, convergência, indistinção,
integração recíproca. A Ciência Política é não-valorativa.
A Ciência da Política
Uma resenha da Ciência Política, indicando algumas de suas intenções, como nova
escritura política, é óbvio, traria modificações ousadas e mais contundentes aos escritos políticos.
Esta combinação entre escritos e escritura política também é uma forma de se analisar a
epistemologia política nascente no Renascimento, com Maquiavel.
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Para Aristóteles, mesmo a necessidade presente em situações críticas não comportaria
exceção, porque deveriam ser “medidas rigidamente aplicadas a todos”, além dos necessários
conselhos que se prestariam aos governantes. Suas ponderações foram desvirtuadas? Se
tomarmos a experiência nazista como baluarte, então, pode-se dizer que a Razão de Estado e a
transposição da necessidade em Estado de Necessidade ignoraram os conselhos de prudência e
de cautela dados por Aristóteles. Por isso, vale avaliar melhor o que Aristóteles disse sobre essa
questão que imiscui problemas de ordem privada com decisões de ordem pública. Para tanto,
Aristóteles terá um papel ativo nesta pesquisa, como clássico e com “especificidade” quanto ao
tema da “politização das necessidades”.
A formação do conceito de Política
POLÍTICA: do grego politikós, diz respeito a tudo que se refere aos assuntos da cidade,
ao cidadão, ao que é civil e público (ou social e sociável – ainda que possam ser tomados por
sinônimos, o social e o político estão profundamente interligados).
 No livro A Política, Aristóteles formula o primeiro tratado sobre a natureza, as
funções, a divisão do Estado e as formas de governo, como a arte ou ciência do
governo (Kybernets).
 Desta natureza política surgiram significados complementares:
a) A política como sujeito:
- domínio territorial (poder)
- monopólio legislativo (efeito erga omnes)
- controle dos meios de produção
b) A política como objeto:
- conquistar, reformar, manter o poder estatal
c) Relação com o poder:
- para Hobbes, o poder é consistente aos meios para alcançar vantagens.
i) o poder pode ser o domínio sobre o outro ou sobre a natureza;
ii) como posse sobre os meios para se obter vantagens
iii) como poder político recebe denominação variadas (relação entre súditos e Estado;
comando e obediência)
iv) para os gregos havia três formas básicas:
1) Poder paterno: familiar
2) Poder despótico: senhorio
3) Poder político: cidade/cidadão
d) Quanto ao poder sobre o outro:
I – Poder econômico: domínio dos recursos e dos bens materiais determinam a
compra da força de trabalho.
II – Poder ideológico: força de convencimento, capacidade de imposição de certos
argumentos por parte de uma pessoa investida de autoridade.
III – Poder político: poder coativo por excelência. Posse dos instrumentos de
exercício de força física.
e) Como Poder Supremo, essas três formas de poder mantem as bases das
sociedades desiguais, entendendo-se o poder político como capacidade de
subordinação dos demais. Nesta perspectiva, apenas a força física impede a
desobediência e a insubordinação.
f) Na Teoria Social o exercício do poder é descrito como um sistema:
o Organização das forças produtivas
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o Organização do consenso
o Organização da coação
 Para Gramsci alternam-se momentos de consenso (sociedade civil) e
momentos de domínio (Estado – sociedade política)
g) A compreensão clássica distinguia entre:
I – Dominium: poder econômico
II – Imperium: poder político
h) A força é um dos elementos presentes no poder político
- a exclusividade do uso da força, por um grupo, caracterizado o monopólio e a
imposição aos demais, irá demonstrar o poder político.
- em paralelo à tipificação (criminalização, penalização) dos atos de resistência.
- na Teoria da Soberania de Hobbes, o particular renuncia ao uso da força física
em prol do corpo político.
- para o marxismo, todo Estado é uma forma de ditadura, em que uma classe se
impõe às demais.
- para Max Weber, o Estado é uma empresa institucional no
exercício
do
monopólio do uso legítimo da força física (a coerção física legítima)
i) O sistema político é exigido no monopólio da força física
 Efeitos do monopólio da força física:
I) Exclusividade: consiste em debelar, criminalizar grupos armados rivais.
II) Universalidade: distribuição de bens e de recursos a todo o grupo.
III) Inclusividade: significa que existem dois níveis de regras – uma para
os cidadãos e outra para os agentes do poder político que obrigam ao
seu cumprimento.
 O máximo de inclusividade é obtido no Estado Totaliário (politização
integral das relações sociais).
j) Os fins – objetivos – da política são traçados e datados pela realidade e
necessidades de cada grupo social específico. Neste sentido, os meios
preponderam sobre os fins, como atitude tradicional da política.
- Contudo, a extrema ratio, a razão extrema do poder político, é a Razão de Estado.
- Mediante o uso da força, pode-se dizer que seja a preservação do poder.
- Ou seja, fazendo-se uso da força, procura-se preservar o monopólio do uso da força.
- A Razão de Estado poderia ser definida como o fim último da seguridade da ordem
pública (internamente) e da soberania (nas relações internacionais).
- A ordem seria o objetivo final; mesmo para os revolucionários que promovem a
desordem para obter outra ordem.
- Para Aristóteles, o objetivo da política é o viver-bem.
- Como Bem Comum, o fim da política é organizar a sociedade para organizar a
sociedade para compartilhar seus benefícios, isto é, a ordem.
1. A política apontada para o poder é um fim em si mesmo: quando meio e fim se
encontram, tem-se poder para manter e conquistar ainda mais poder.
2. O pragmatismo jurídico nos EUA prescreveu a felicidade como fim do Estado,
quantificando em dólares o mínimo necessário.
3. O poder como potência é o fim de alguns Estados: URSS – EUA – China.
k) Então, a política pode ser vista como:
I – Ciência: a ciência que estuda o poder
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II – Arte: a arte do conhecimento
III – Ofício: as obrigações de quem governa
IV – Valor: a política desencadeia valores como urbanidade, civilidade.
V – Normatividade: ainda que não haja leis isentas, fixas, uniformes no que concer à
política.
VI – Ação/consciência: a consciência do ator/observador da política está atrelada ao
fenômeno ou processo.
VII – Guia de consciência/convivência: (histórico) aprender como foi no passado;
como são hoje as regras? (normativo); como poderão ser no futuro? (teleológico).
 Mas, a política não é um corpo de normas, como se fosse um sub-capítulo do direito
político.
 A política é virtù, a virtude política para fundar Estados e poupar o poder.
 A política ainda é uma concepção de homem – do que decorre a Antropologia
Política.
 A política é uma profunda noção de comportamento, como Ética Política.
 Como economia política trata de questões globais, de relevo social e econômico.
 Neste aspecto, há algumas obras/autores que se destacam:
- Ética a Nicômaco (Aristóteles)
- Formações Econômicas Pré-capitalistas (Marx)
- O Estado e suas fontes do Direito (Del Vecchio)
- Antropologia Política (Balandier)
l) Ainda se destacam alguns temas/áreas que podem ser observadas, sem ser
uma lista completa:
Estrutura e formas de governo
Legitimidade e governabilidade
Fontes de legitimação do Estado e do poder
Direitos e deveres dos cidadãos
Relações entre indivíduos/Estado
O caráter positivo (“natural”, racional, arbitrário) das leis
A natureza e o alcance da liberdade
A obrigação política
A natureza e as formas da justiça
Causas, razões e legitimidade do mando
m) Do que decorrem três correlações com a ciência propriamente dita:
1. A Política como Ciência: que observa os fatos políticos empiricamente, como
planos, metas, projetos, estratégias políticas.
2. A política como atividade reflexiva: no que se refere a todo indivíduo que se
relaciona diretamente com o poder; o que reflete na vida comum dos demais.
3. A filosofia política que se apropria dos métodos da Ciência Política e faz
sua própria investigação, como, por exemplo, análise de discurso, valoração
de ideais e ideologias, proposições políticas.
4. A Ciência Política não só elabora Teoria Política, como se ocupa de regras
de ação humana; neste sentido, a Ciência Política é uma ciência normativa.
n) Por fim, uma das principais questões da Epistemologia Política: validação do
conhecimento político a partir da observação de fenômenos causais de ordem política,
15
como o poder, resguardando-se o tratamento empírico adequado, necessário, mas sem
desconsiderar a universalidade presente em toda a ciência normativa.
o) Afinal, O QUE É A POLÍTICA como Ciência?
 A necessidade de se estudar a política como disciplina e não necessariamente
como militância, é apresentada por David Held e Adrian Leftwich no artigo Uma
disciplina de política? (em Que es la política? La actividad y su estudio):
O que na realidade estão pedindo é que nos abstenhamos de participar na
política, isto é, em decisões acerca do emprego e distribuição dos
recursos em relação com assuntos que são muito importantes para nossas
vidas. Em si, não estão tratando de fomentar, defender ou de ilhar a
política, estão tentando suprimi-la. Portanto, estudar política é estudar
criticamente a história das possibilidades e as possibilidades da história
(Leftwich, 1992, p. 264 - tradução livre).
As intensas manifestações populares que tomaram conta das ruas no Brasil, por exemplo,
embaladas pela onda política internacional que mobilizou milhares de estudantes no Chile e pelo
Movimento dos Indignados, na Espanha, com o lema “Da indignação à rebelião”, exigem outra
política.
16
O QUE É A POLÍTICA?
Veremos outr breve descrição da política, uma espécie de guia para estudantes de
primeira hora na arte do convencimento e do exercício do poder. Este guia pode/deve ser lido por
acadêmicos, trabalhadores, professores, empregadas domésticas, eleitores, servidores públicos,
profissionais liberais e mais ainda pelos governantes.
Afinal, o que é a política?
Por política se entende uma porção, um recorte amplo de atividades humanas. Ou seja, a
política é o exercício de atividades essenciais à realização do ser humano. Neste raciocínio, a
política é a efetivação da condição humana. Política é a arte do convencimento para que se
exerça o poder de comando e assim se aprimore a condição humana; a possibilidade de se
conviver em sociedade, sobretudo quando há conflito de interesses. Portanto, a política é um guia
para a ação humana (Kibernets). Pois, não há homem que desconheça a política (zoon politikón).
O homem é um animal político. Mas, além disso, a política é:
O bom governo, quando se governa com honestidade.
Governar para o bem público.
Governar com liberdade, quando os envolvidos desenvolvem a plenitude da
isonomia (princípio da igualdade que está na base do direito) e da isegoria
(capacidade de pensamento, reflexão e de livre expressão).
A arte ou a ciência de se governar a cidade, com urbanidade.
A capacidade de decisão diante de qualquer circunstância da vida pública ou
privada.
O exercício do poder ou da dominação.
O exercício da cidadania, no regime democrático.
O reflexo da ética, como regras de comportamento social, como ethos ou
costumes públicos bem desenvolvidos e assegurados.
Uma prática social do poder assegurada por lei. Porque a política está definida,
regulamentada no direito positivo; como direito político, está inscrito e descrito na
Constituição.
O pensamento jurídico envolto na proporcionalidade; como capacidade de se
encontrar soluções válidas, eficazes para problemas coletivos e urgentes.
A política partidária expressa uma sociedade dividida em partes, e cada parte defende sua
ideologia, seu ponto de vista, seus interesses. Por isso, na relação política em que se opõem
contendores, defendem-se visões de mundo discordantes, opostas e até antagônicas.
Contudo, há algo que a política não é, por definição. A política não é sinônimo da
corrupção, uma vez que a corrupção é a deturpação de toda a política. A política é a arte
dissuasiva que conserva a sociedade; a política promove a constituição da sociedade. Portanto, a
política é o avesso da corrupção, pois a corrupção é a negação da vida social, da vida em grupo;
como corrupção da própria sociedade, a política seria a negação do zoon politikón e acabaria
definida pelo seu contrário – o que, evidentemente, não é lógico e nem racional.
A política é
A expressão política não tem uma definição exata e muito menos simples; ao longo da
história humana adquiriu significados diversos e empregos os mais variados. Política tem um
sentido diverso, complementar, amplo e complexo, desde sua origem na Cidade-Estado. Além de
um vínculo, a política é um objeto esquivo, indefinível, polissêmico, interminável (Vera, p. 57).
17
Para o grego clássico, no entanto, política deriva dos vocábulos polis, politeia, politica, politiké.
Em suma implica em:
 ê polis: a Cidade, a região, a reunião dos cidadãos que formam a cidade;
 ê politeia: o Estado, a Constituição, o regime político, a República, a cidadania (como
direito dos cidadãos);
 ta politica: plural de politikós, refere-se às coisas públicas, tudo que é inerente ao Estado,
à Constituição, ao regime político, à soberania;
 ê politiké: techné – a arte da política (Prêlot, 1964, p. 07).
O emprego do vocábulo, em inglês, ainda traz outras atribuições. Talvez num sentido já
adaptado a muitas necessidades estruturais e da conjuntura política ocidental moderna, já se
relaciona entre os objetivos políticos, a própria regulação da governança e a fixação do espaço
público (definido independente da vida privada):
 Politics: a política é relacionada com o exercício do poder. Poderia ser traduzido
como “processo político” ou “articulação política”. Os atores políticos encontramse em conflito de interesses ou de visão de mundo e por isso interatuam entre si.
 Policy: a política surge como decisões ordenadas em prol de um fim político.
Poderia ser traduzido como “políticas públicas”, as escolhas realizadas para
resolver problemas e carências.
 Polity: trata-se da dimensão institucional da política. Tem-se aqui o universo
político formado pelas ações e construtos humanos. Pode-se pensar como politeia
ou “institucionalidade política”, ou conjunto de instituições e de regras
desenhadas para modelar a interação política (Vera, 2005, p. 58).
Ainda implica em dizer, lato sensu, que o animal é social, mas só o homem é político. A
política, portanto, como tarefa ou fabricação humana é uma intenção, um produto da razão
e guarda racionalidade em si, é expressão de uma lógica que constrói uma visão de mundo.
Desse modo, a política relaciona meios e fins, é um objeto, uma relação e ao mesmo tempo
traça objetivos e fins que devem ser perseguidos coletivamente. A escolha dos meios
aplicados a esses fins, para se alcançar o que se quer, portanto, é uma escolha política. A
definição dos meios a fim de se alcançar determinados fins, nunca será uma escolha neutra:
Pode-se estudar a política, por conseguinte, em dois níveis – o dos fins e
o dos meios. O primeiro diz respeito a necessidades básicas, que
podemos classificar como físicos, mentais e sociais [...] Nesse nível, a
política tenta descobrir regularidades nos fins e nas necessidades que os
criam [...] Por outro lado, trata-se de processo em que a razão é aplicada
inicialmente à experiência para explicá-la e, em seguida, controlá-la ou
moldá-la segundo as finalidades [...] O processo é racional no sentido de
constituir uma tentativa para estabelecer um padrão ordenado de relações
de causa e efeito entre fenômenos, e utilizá-lo intencionalmente [...] Tal
exame de finalidades e da maneira como elas se desenvolvem e são
formuladas fornece base aos estudos políticos no segundo nível, isto é,
das condições e processos de cooperação em grupos ou associações,
como o Estado (Greaves, 1969, p. 215-216).
18
Como vimos, a política é essencialmente uma atividade racional. A política é inerente,
imanente ao homem, mas esta condição humana só se revela no fazer-política. Sem que se
expresse politicamente, a essência não se revelará e de uma condição inerente, civitatis activae, a
política apenas se resguarda em mera virtualidade (virtus): o que “pode” vir-a-ser. Como
latência, em sentido limitado, restrito de virtus, sem expressar “publicamente” a política, o
homem social não estimula suas virtudes, seus valores políticos. Sem a política, as virtudes
permanecem privadas, não conhecem o espaço público. Por isso, a política tem um claro sentido
publicista, voltado ao espaço público, à cidade, ao Estado ou, como queriam os romanos, à res
publica¸à coisa pública.
Para completar a condição política, a virtus precisa se converter em virtù; o valor da ação
política precisa dominar o furor humano (já nos ensinavam Petrarca e Maquiavel): “Vertù
contra furore / Prenderà l’arme, e fia ‘l combatter corto” 9 (Maquiavel, 1979, p. 94). Em
busca de uma mensagem humanista mais clara, nos dirá Maquiavel que a ganância, a soberba do
poder incontrolado (esse mesmo que se alimenta da vingança das penas cruéis) são a porta do
fracasso. Trata-se de um verso romano e nos diz que a virtude da política, como virtù, depende
da prudência e da inteligência, como forma de controle da violência, do furor, dos "arroubos", do
agir intempestivo.
Desde os gregos clássicos e sua polis sabemos que a política é um valor humano
intrínseco e, portanto, não apenas um instrumento dos demais valores. A política não é
totalmente neutra ou instrumental, é, em si, ao mesmo tempo, uma expressão da personalidade
humana. O político por si é uma parte da situação total, com a qual temos de contar. A política
planta seus próprios fins ideais que temos de considerar e alcançar se for possível. A ordem, a
justiça, a integração, o equilíbrio, a seguridade, o bem comum são aspirações, desideratos da
vida humana e tem seu lugar na escala de valores humanos. Constituem a especial
responsabilidade dos estadistas, para quem se apresentam como valores de significação vital. Se
temos a tarefa de empreender a edificação de um Estado, temos que supor esses valores como
tipologia dessa sociedade que queremos servir (Merriam, 1986, p. 66).
Arete, virtus e corpus
A política, enfim, quando consagrada na condição humana, quando transformada de
virtus (virtualidade) em virtù (virtude), será a própria excelência humana:
A excelência em si, arete como a teriam chamado os gregos, virtus como
teriam dito os romanos, sempre foi reservada à esfera pública, onde uma
pessoa podia sobressair-se e distinguir-se dos demais. Toda atividade
realizada em público atinge uma excelência jamais igualada na intimidade;
para a excelência, por definição, há sempre a necessidade da presença de
outros, e essa presença requer um público formal, constituído pelos pares
do indivíduo; não pode ser a presença fortuita e familiar de seus iguais...
(Arendt, 1991, p. 58).
A antiga filosofia cristã favorecia a perspectiva integrativa entre excelência e prudência:
Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas
interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se
interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo
intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação
entre os homens [...] O que torna tão difícil suportar a sociedade de massas
9
O valor tomará armas contra o furor; que a luta se espraie bem depressa!
19
não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo menos não é este o
fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força
de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las [...]
Encontrar um vinculo entre os homens, suficientemente forte para
substituir o mundo, foi a principal tarefa política da antiga filosofia cristã;
e foi Agostinho quem propôs educar sobre a caridade não apenas a
<irmandade> cristã, mas todas as relações humanas (Arendt, 1991, pp. 6263).
Porém, advertia Arendt, a ampliação da esfera privada representada pela figura central da
família refluía os impactos positivos que poderia exercer na conformação/confirmação do
próprio espaço público:
O caráter apolítico e não-público da comunidade cristã foi bem cedo
definido na condição de que deveria formar um corpus, cujos membros
teriam entre si a relação que têm os irmãos de uma mesma família. A
estrutura da vida comunitária tomou por modelo as relações entre os
membros de uma família porque estas eram sabidamente não-políticas e
até mesmo antipolíticas. Jamais existiu uma esfera pública entre os
membros de uma família, e era portanto improvável que viesse a surgir da
vida comunitária cristã se esta fosse governada pelo princípio da caridade
e nada mais (Arendt, 1991, pp. 63-64).
Isto confirmaria a necessidade da vida presente (necessitas vitae praesentis), ainda que
nem sempre corrobore a construção do espaço público. Ainda que a lição mais prudente na
própria descrição bíblica seja de uma prudência que se construa para a vida do homem público,
seja do chamado homem médio. Vejamos uma das mais difundidas transcrições que reforçam
este prisma: "Eis que eu vos mando como ovelhas no meio de lobos. Sede pois, prudentes como
a serpente e simples como as pombas". (Mt 10,16). Esta lição não pode muito bem refletir na
vida privada ou pública, na comércio e na política, entre adversários e vizinhos? Isto é
transformar a virtus em virtù, em domar a ação pela virtude. O arete é aquela intenção política
que reúne a força dos demais para agir pela polis, que controla a agressividade, que canaliza e
direciona a impetuosidade, transformando gravetos isolados e frágeis em um único bastão de
força conjunta. A política é o arete que deve romper o isolamento familiar, privado,
transformando o homem em coletivo, rompendo o isolamento, em espanhol, o aislamiento, para
que não existam mais ilhas sociais. É óbvio que a análise da política nos leva a repensar
conceitualmente o que é poder.
20
JELLINEK E O ESTADO DE DIREITO
O Estado brasileiro deve aprender com o passado
As manifestações públicas por todo o país, envolvendo centenas de milhares de pessoas,
são garantidas pela Constituição e devem nos levar a refletir honestamente sobre o Estado
brasileiro. O fenômeno da Multidão que atinge o país, depois de percorrer o mundo todo (Oriente
e Ocidente), traz à tona as justificativas do atual modelo político adotado pelo Estado brasileiro.
No plano externo, vigoram as relações a partir do que se convencionou chamar de Estado
Democrático de Direito Internacional. No âmbito interno, o Estado de Direito ainda anda às
turras com a Justiça social, reverberando mais ideologias neoliberais do que políticas públicas
respeitáveis10. Em todo caso, podemos/devemos pensar as bases jurídicas de onde provém o
próprio modelo jurídico do Estado de Direito europeu e que serviu de base à Constituição da
República Brasileira.
Para esta análise, emprestamos algumas análises e conceitos do iminente jurista alemão
Georg Jellinek, em que a soberania recai sobre o Estado e não sobre o povo; restringindo-se
desde o século XIX, portanto, o significado da soberania popular. Sendo o Estado uma
corporaçao assentada num determinado território e dotado de um poder de mando, nao se
percebe muita preocupação com a legitimidade política dos poderes constituídos. Do que já se
deprende que uma das principais preocupações não é exatamente a tese da Autolimitação do
Poder Político e nem com a ordem jurídica não-aristocrática.
A Teoria do Estado em Georg Jellinek
Além de um teórico precursor do Estado, Georg Jellinek (1851-1911) foi um jurista
alemão e filósofo do direito. É reconhecido como o fundador da disciplina de Teoria Geral do
Estado, pois até sua obra ser conhecida aplicava-se uma leitura ora idealista (Filosofia do Estado
de Hegel, por exemplo) ora negativista (ideologias do Estado, no exemplo da tradição marxista).
Sua maior contribuição está, portanto, na tentativa de se realçar as bases de uma disciplina ou
ciência que verificasse elementos de formação e de continuidade das estruturas e mecanismos do
aparato estatal. A partir de sua obra mais específica sobre Teoria Geral do Estado (2000), os
elementos políticos de composição do Poder Político, que se sagraram historicamente, passaram
a ser investigados quando se analisava o fenômeno estatal: povo; território; soberania.
É preciso ressaltar, neste momento, que o Estado centraliza o Poder Político, mas há
outras instituições e comunidades políticas que conformam o Poder Político. A Multidão,
atualmente, seria um desses agrupamentos com caráter político, além das associações políticas
que lutam pelo controle do Estado ou, ao contrário, os primeiros grupos humanos que detinham o
controle social sobre o Poder Político – antes, portanto, da fundação do próprio Estado.
Ainda é preciso lembrar que, para o jurista alemão, a soberania recai sobre o Estado e não
exatamente sobre a nação. Bonavides (2012, p. 71) traz a definição que Jellinek faz do Estado,
como “a corporação de um povo, assentada num determinado território e dotada de um poder
originário de mando”. Para Dallari, comparativamente, Estado é a ordem jurídica soberana que
tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território (2012, p. 122). Não só
a soberania pertence à nação, para o jurista brasileiro, como a nação é sinônimo de povo,
resguardado pela ordem jurídica legítima (bem comum).
10
Nessas manifestações de rua, a maioria dos populares não é contra a realização da Copa/2014 no Brasil. É contra a
corrupção em torno das obras da Copa e, obviamente, contra o fato de que a educação e a saúde não são tratadas
com o mesmo vigor e disposição para ingestão do dinheiro público.
21
Na análise que propusemos no texto, o direito germânico salientado por Jellinek é
oportuno de ser resgatado porque nos permite observar a articulação entre direito e cultura.
Como bem diz Jellinek: “...a princípio o Estado germânico é uma associação de povos a quem
falta a relação constante com um território fixo, o enlace permanente do território com o povo só
muito lentamente se levou a cabo em sua história” (2000, p. 307 – tradução livre). Neste sentido,
faltava ao Estado Germânico e ao Estado Feudal um enlace entre povo e território, ou seja, o que
se chamou de adensamento e de identidade cultural. A base do poder era móvel, não havia plena
identificação entre o Poder Público e o território, bem como ainda se lidava com grande
variedade de costumes e de interesses. Não é fácil de se supor, mas a desordem política e a
resistência ao poder central produziam inclusive a mobilidade física do Príncipe. Vejamos,
novamente com Jellinek (2000), o exemplo da Alemanha:
A residência do Príncipe era algo completamente contingente e
independente da organização do Estado. Por conseguinte, faltava-lhe
desde o início a centralização. A dificuldade de organização para um
povo que se estendeu por um vasto território e carece de um centro, é
ainda maior em uma época em que as comunicações eram rudimentares e
predominava a economia agrícola (Jellinek, p. 307).
Por fim, outra vez comparativamente ao Império Romano, há um dualismo na base
política e jurídica: “O reino germânico nasce, pois, como um poder limitado; por conseguinte,
desde seu início traz consigo um dualismo: o direito do Rei e o direito do povo, dualismo jamais
superado na Idade Média11” (Jellinek, 2000, p. 308). Assim, quando comparado à herança
política romana é ainda mais evidente a existência dessas dicotomias no acento do poder:
Onde quer que dominasse a Constituição municipal romana, acentuandose a substantividade política das cidades, algumas chegam em certas
ocasiões, como na Itália, a alcançar uma absoluta independência.
Posteriormente, e dotadas de privilégios reais, fundam-se na Alemanha e
na França cidades que chegam a conseguir, ao menos parte delas, um
caráter de corporações soberanas. Por isto, a divisão dual da natureza do
Estado significa por sua vez a atomização do poder público, e toda a
história dos Estados da Idade Média é ao mesmo tempo uma história do
ensaio para chegar a vencer este desmembramento ou, ao menos, para
minorar suas consequências (Jellinek, 2000, p. 309 – tradução livre).
Este modelo do direito público romano, em parte, manteve-se na legislação estatal
posterior, e em parte foi demovida. A compreensão de que o poder não pode ser afrontado, sob
pena de morte, manteve-se atuante. De outro modo, a própria proximidade entre direito e cultura,
no direito germânico, também se verificou na ideia de participação popular. Resumidamente,
trata-se da evolução e da transformação por que passaram o direito de resistência e de
participação:
O único modo de tornar possível o exercício da soberania popular é a
atribuição ao maior número de cidadãos do direito de participar direta e
indiretamente na tomada das decisões coletivas [...] O melhor remédio
11
Em outro momento, como a reforçar o já dito: “...o Estado nos aparece como um duplo Estado em que o príncipe
e as Cortes têm cada um seus funcionários particulares, tribunais e até exército e embaixadores” (Jellinek, 2000, pp.
309-310).
22
contra o abuso de poder sob qualquer forma – mesmo que “melhor” não
queira realmente dizer nem ótimo nem infalível – é a participação direta
ou indireta dos cidadãos, do maior número de cidadãos, na formação das
leis. Sob esse aspecto, os direitos políticos são um complemento natural
dos direitos de liberdade e dos direitos civis, ou, para usar as conhecidas
expressões tornadas célebres por Jellinek (1851-1911), os iura activae
civitatis constituem a melhor salvaguarda que num regime não fundado
sobre a soberania popular depende unicamente do direito natural de
resistência à opressão (Bobbio, 1990, pp. 43-44).
O instrumento de governo libertário, desde Cromwell (1599-1658)12, é o primeiro
exemplo de um documento constitucional moderno; o próprio nome revela sua ambição e
natureza. Ele mesmo expressou claramente o que esperava desse documento: “Em todo governo,
disse, tem que haver algo fundamental, semelhante à Carta Magna, permanente, invariável”
(Heller, 1998, p. 178)13. No curso da história dos direitos público-subjetivos, por sua vez,
teríamos de retomar a contribuição de Rousseau e a Revolução Francesa, quando se instituiu a
educação pública obrigatória – como forma de melhor divulgar os ideais revolucionários
republicanos. Ora, a República seria o melhor freio institucional e regimental ao Poder Político.
Portanto, desse período até à modernidade decorre a perspectiva de que o Estado deveria
conhecer alguns limites quanto à projeção do poder político – o que se convencionou chamar de
Teoria da Autolimitação do Estado: (Jellinek, 2000, p. 309-310).
O próprio Estado Moderno seria um tipo ideal, uma vez que se pode ver diferenças
exorbitantes se tomarmos exemplos históricos para efeito de comparação. De todo modo, o
conceito de tipo ideal foi emprestado do jurista europeu. O que se revela claramente, pois esta
concepção republicana do poder é compartilhada pela ciência do direito de Jellinek (2000), ao
expor a urgência de se configurar a própria Teoria da Autolimitação do Estado.
No seu encalço, a versão clássica de Zippelius corresponde ao Estado de Direito, como:
“a obrigação de criar e manter determinadas instituições públicas” (1997, pp. 377). Outros
juristas ainda lembram Jellinek e as instituições normativas: “a Constituição designa o conjunto
de normas jurídicas que definem os órgãos supremos do Estado, determinam a forma de sua
criação, sua relação recíproca e seu âmbito de atuação, como também fixam a posição do
indivíduo em relação ao poder do Estado” (Peña, 2003, p. 61).
No caso brasileiro, as Teorias do Estado deveriam dar cobertura especial ao preâmbulo da
Constituição, bem como supõem-se analisar pormenorizadamente os artigos 1º ao 4º, pois o
artigo 5º trata dos direitos individuais. A própria Constituição articula as Teorias do Estado,
transformando em artigos os preceitos do moderno Estado Democrático. Na CF/88 desfila a
história política do Estado e da sociedade: do liberalismo à democracia; do liberalismo aos
preceitos socialistas. Por fim, há quem sustente que falta sentido à discussão e à terminologia
porque no Estado Moderno não há liberdade sem a intervenção ou predisposição estatal ao seu
reconhecimento. Não há sentido em insistir no caráter público da liberdade pelo simples fato de
12
Com a guerra civil inglesa, Cromwell formou uma tropa de cavalaria que seria a base de suas ações em campo de
guerra. Liderando a causa causa parlamentar, concomitantemente ao comandante do exército (New Model Army –
uma gerança renascentista da cavalaria árabe?), acabou por derrotar as forças do Rei Carlos I da Inglaterra e assim
pôs fim ao poder absoluto da monarquia britânica.
13
Heller empresta a citação de Jellinek, 2000.
23
que não existem liberdades privadas fora do Estado. Em todo caso, pode-se frisar que o
liberalismo foi positivado como direito humano apenas no pós-Revolução Francesa:
Para a ideologia liberal o indivíduo é um fim em si mesmo, e a sociedade
e o direito não são mais do que meios postos a seu serviço para facilitar a
realização de seus interesses. A este respeito, certamente recorda-se que o
mito mais representativo desta ideologia é Robinson Crusoe, que é “o
herói do individualismo em ação”. A partir dessas coordenadas, os
direitos individuais são considerados em sentido eminentemente negativo
como garantia da não ingerência estatal em sua esfera: é o que Georg
Jellinek denominará status libertatis e Georges Burdeau liberdadeautonomia (Luño, 2003, p. 35 – tradução livre).
De todo modo, a influência de Jellinek ainda se manifesta em outro jurista alemão de
grande vulto e repercussão internacional: Hans Kelsen (1998). O chamado positivismo de Kelsen
não resolveria adequadamente a superveniência da Razão de Estado, tal qual o liberalismo de
Bobbio não teria maior eficácia: o resultado seria a formação atualíssima de um Estado Penal
Internacional. O século XX se caracterizou pela consolidação de um sistema de Estados
nacionais e pela superação do jus publicum europeum, com a criação da Liga das Nações e da
ONU. O eurocentrismo cedeu espaço ao globalismo – o ideal de Kant da Paz Perpétua estaria
mais próximo, como uma espécie de “profissão de fé cosmopolita” rumo ao “direito público da
humanidade”. Enquanto o direito internacional se referia à relação entre Estados. O direito
cosmopolita tratava da relação entre de Estados e indivíduos (estrangeiros).
O autor alemão rejeitava a Teoria Dualista do Direito – separando-se entre direito interno
e direito internacional –, opondo-se a Jellineck, por exemplo, e trazendo uma formulação nova
para a interpretação de Kant. O direito nacional de todos os Estados nacionais soberanos seria
elemento de um todo, partes de uma “ordem parcial”. O direito internacional, portanto, seria a
unidade objetiva do conhecimento jurídico”, o suporte para uma concepção monista (Teixeira,
2011). Pelo traço da história, vemos que na origem este seria um princípio (aliado à separação
dos poderes) mais fortes quanto à defesa da liberdade do cidadão, afastando tanto quanto
possível (ante o jugo da força física dos príncipes) a ação ofensiva e repressiva do Estado:
No entanto, o poder era suficientemente forte para proteger o cidadão e
para garantir o direito, também era suficientemente forte para oprimir o
cidadão e dispor arbitrariamente do direito [...] As instituições do
moderno Estado constitucional e de Direito nasceram, em grande parte,
como resposta ao desafio de um absolutismo absoluto. Neste sentido, a
história da liberdade do cidadão é uma história da restrição e do controle
do poder de Estado [...] Este procura um compromisso entre a
necessidade de um poder do Estado homogêneo e suficientemente forte
para garantir a paz jurídica e a necessidade de prevenir um abuso de
poder estatal e de estabelecer limites a uma expansão totalitária do poder
do Estado, assegurando na maior medida possível as liberdades
individuais (Zippelius, 1997, p. 384).
24
Porém, de lá para cá, houve essa inversão ou reconversão ideológica, com o princípio
atuando a favor do instituidor do Estado14 e não do povo, só a favor do Estado, quando se faz
necessário estancar sua sanha e seu avanço sobre os interesses da coletividade 15. De lá para cá, a
Administração Pública teria, então, se convertido em Administração Pública Corporativista e
com isso passaria a defender tão-somente os próprios interesses (ou da fração da burguesia que a
financia). Contudo, há muitas formas políticas estranhas ao Estado, mas não há ordem ou política
sem direito. A Multidão recupera as ruas como espaço público e nos obriga a repensar o Estado
como instituição política que centraliza o poder público e, por vezes, mantem-se longe do clamor
e das demandas populares. Por tudo isso é necessário investigarmos atentamente de que política
e poder é composto o Estado Moderno.
14
Aliás, o texto já traz implicitamente essa noção, ao grafar que àquela altura o poder já era suficientemente forte
para oprimir o cidadão.
15
A escorchante cobrança de impostos é só um dos exemplos possíveis.
25
O QUE É PODER
entre a epistemologia política e a experiência empírica
Para o ditado popular, “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Então, poder é
simplesmente ordenar e obedecer? Nesta relação apenas um manda e outro obedece? Esta
definição corresponde à definição de Poder Público?
No senso comum da política – e este pensamento não está de todo errado, apenas
incompleto –, o poder é a capacidade de impor sua vontade, de determinar que o(s) outro(s)
façam muitas vezes o que é contra seu interesse ou que deixem de fazer o que gostariam de
realizar. Para o bem, para o mal, o poder é sempre determinação, acatamento, realização.
Não há sociedade sem poder, por mais simples que seja, como contrato de dois ou um
pouco mais de indivíduos, sempre haverá obrigações de fazer ou de não-fazer. Em todo caso,
ainda é preciso discutir a(s) forma(s) como este poder é efetivado, quem se submete a ele e o
quanto pode ser útil e benéfico (ou não) à coletividade. Ou seja, poder é uma relação.
Seja para massacrar, seja para libertar um povo, o que sabemos – empiricamente,
historicamente – é que o poder é uma construção social. Só faz sentido falar do poder como
relação social, ampla, conectada à sociedade. Não há poder fora da sociedade; não há poder que
se realize unicamente dentro do Estado e das suas instituições, partidos ou agências, bem como
das corporações e sem que haja conexão social. Mesmo o poder limitado no tempo-espaço de
uma corporação, que restringe seu contato social, é um poder social que quer evitar maiores
aproximações da corporação com o restante da sociedade, ou seja, este poder restritivo tem como
principal função mitigar a relação social. Mas, não deixa de ser um poder social, ainda que se
queira o afastamento da sociedade.
O poder é uma construção social
É mais do que certo que o poder é uma relação, mas é uma relação que envolve sujeitos e
substantivos, trata-se de uma experiência empírica e não metafísica, seja entre senhor e escravo,
homem/mulher, pai/filho, empregador/empregado, governante e governados. Mas como se
constitui esta relação em que a política se define como uma experiência empírica do poder? Se o
poder é uma relação (determinação, acatamento, realização), é preciso ter em conta a
efetivação desse poder, suas formas de manifestação e de realização. Mesmo o poder como
virtualidade (virtus = potência) precisa apresentar condições reais de efetivação.
O poder não pode ser reduzido a uma experiência psicológica, em que uma personalidade
quer se impor a outros indivíduos – e ainda que isto seja verdadeiro. Como relação, o próprio
poder decorre de experiências, estruturas e dinâmicas sociais anteriores. Para Maquiavel (1979),
apesar do homem de virtù (de virtudes políticas aplicadas ao poder) almejar a conquista e
manutenção do poder, do Estado ou do Império, suas virtudes dependem do contingenciamento
da política. Neste sentido, pode-se dizer inicialmente que haja um poder embasado em virtudes
(virtù). Note-se que são as virtudes próprias da política, em que “os fins justificam os meios”,
são todas as virtudes que servem à conquista, organização, manutenção e ampliação do poder.
De modo quase geral, alimentado pelo senso comum, acredita-se que Maquiavel produziu
um manual sobre o poder, como conquistar e manter o poder, sendo quase um manual de
autoajuda para políticos – especialmente os sem-escrúpulos. No entanto, Maquiavel, como
criador da Ciência Política, produziu um manual sim, um clássico sobre a formação da Razão de
Estado.
Maquiavel e o poder como virtù
Muito simplificadamente, virtù – como antiqua virtus – equivale à Ética Pagã
(individualismo aplicado à política: quem detém o poder?). Mas, em sentido mais amplo, numa
26
fórmula de poder: virtù = Força + Vigor + Astúcia + Estabilidade (o status do Estado). Isto
Maquiavel (1979) descreveu em todos os seus escritos, de uma forma ou outra; todavia, foi no
livro O Príncipe em que sistematizou sua análise científica da política.
Para Maquiavel, não importa muito o dever-ser da política, mesmo o “sonho” com a
República (em Comentários à Primeira Década de Tito Lívio) é uma realidade em que se faz uso
dos “fins para justificar os meios”. Esta é a grande diferença em relação à filosofia política
clássica. Maquiavel criou a Ciência Política não porque usou ou deixou de usar a palavra política
(como o fizera Aristóteles, no livro A Política), mas sim porque empregou os modernos métodos
científicos na análise da realidade política.
O idealismo de Maquiavel “pode” ser a República (um dos maquiavelismos), mas não há
puericultura, uma vez que se for preciso utilizará da mentira, da traição, do assassinato
premeditado, do engodo para alcançar o primado do Bem Público. Daí a Razão de Estado (status,
no latim antigo: a extrema firmeza que interessa ao príncipe da política para manter o Estado
coeso). Desse modo, vemos que a Ciência Política criada por Maquiavel é absurdamente realista,
promovendo um choque de realidade na especulação moralista, legalista ou religiosa, do que se
espera da política, como o fizera Santo Thomás de Aquino na análise da Prudência16. Às vezes,
na maioria das vezes, é preciso fazer o Mal para se obter o Bem Público.
Quanto ao Príncipe, quer queiramos ou não, quer Maquiavel tenha ou não tenha dito ou
descrito claramente se e como usaria a palavra “política”, o fato relevante – aliás, o único fato
relevante – é que a análise que fez da política instituiu a chamada Ciência Política. Foi o
primeiro a aplicar o realismo e o empirismo (bem antes de Francis Bacon) na análise da política,
do poder e do Estado (status). Com Maquiavel aprendemos que o empirismo aplicado nas
ciências humanas provém do esforço da cognição da história.
Comparativamente, devemos saber que os sumérios (hoje Iraque), que criaram a escrita
cuneiforme, não “conheciam o conhecimento político” (epistemologia) para descrever a Polis
como os gregos; contudo, foram os criadores da Cidade-Estado ou Estados soberanos, como Ur,
Nipur e Lagash. Os gregos são herdeiros das instituições da Suméria e não contrário; apesar de
os gregos terem criado o conceito de Polis, foram os sumérios que lhe instituíram a realidade.
Ter iniciado a prática da política institucional confere o status de precursores aos
sumérios, assim como a análise de Maquiavel sobre a política (tenha ou não usado a “palavra”)
lhe atribuiu a primogenitura da Ciência Política. No fundo, análises que se prendem ao uso de
certas “palavras”, que insistem em sua presença, são análises ortodoxas (bíblicas,
fundamentalistas), e que pouco afetam a investigação científica relevante. Só há validade
científica no emprego das “palavras” quando, por meio da etimologia, buscamos o conceito e seu
alcance e não a tergiversação.
Será que Maquiavel tratou da virtù ou foi Petrarca? Esse tipo de conhecimento realmente
é relevante? Alguém com seriedade acadêmica duvida que Maquiavel construiu as bases do
realismo político com a investigação da virtù? Há pouca sabedoria na dúvida de que Maquiavel
revestiu a análise da política sob a virtù. O que importa saber é que Maquiavel empregou todos
16
A prudência está na vida social, que evita a dispersão, conduz ao Bem Comum e reforça a solidariedade social:
“Por onde é necessário ao homem viver em multidão, para que um seja ajudado por outro [...] Isso podendo, diz
Salomão (Pr 11,14): ‘Onde não há governante, disipar-se-á o povo” (Aquino, 1995, pp. 127-128). Para São Thomas
de Aquino, o Bem Comum seria tarefa do homem e da sociedade. A maior corrupção de um governo livre, portanto,
é desviar-se deste Bem Comum, classificando-se como governo tirano e despótico: “Daí ameaçar o Senhor tais
governantes por Ezequiel (34,2): ‘Ai dos homens que a si mesmos se apascentavam (como procurando os seus
próprios interesses) – porventura não são os rebanhos apascentados pelos pastores” (Aquino, 1995, 128-129).
27
os esforços possíveis a seu tempo para analisar a política em sua essência (virtù) e foi este
realismo político que instituiu a Ciência Política.
O príncipe da política
Em todo caso, n’O Príncipe, Maquiavel tratou de uma lógica do poder em análise
objetiva, histórica, da razão que explica e sustenta o poder em sua concretude. A mais conhecida
frase sobre o poder, superando qualquer pensamento genial de Aristóteles, por exemplo, assegura
que “os fins justificam os meios”. Não nos importa saber se ele próprio gostaria ou não que as
coisas se dessem desse modo, se seria possível outra forma para definir o alcance do poder.
Importa acima de tudo saber que esta regra do realismo político independe de qualquer análise
subjetiva trazida por nossa moralidade política.
Aliás, antes de mais nada, é preciso saber que Maquiavel refere-se ao poder do Estado e
não se expressa aos poderosos de plantão como se lhes desse uma justificativa para massacrar o
povo. Quem lê seu principal livro sabe localizar, perfeitamente, outras tantas afirmações de
Maquiavel a fim de que o poder seja dominado com prudência e sabedoria dosadora da força.
Basta-nos lembrar o pensamento que guardou de Petrarca: “O valor tomará armas contra o furor;
que a luta se espraie bem depressa!”. Não seja tolo, não abuse da sorte ou da força bruta, e terá
poder por muito tempo. Este homem de virtù, o político virtuoso, é capaz de manter o poder do
Estado organizado, coeso, funcional. É a este fenômeno que se chamou de (auto)conservação:
...Nicolau Maquiavel se desliga de todas as premissas
antropológicas da tradição filosófica ao introduzir o conceito de
homem como um ser egocêntrico, atento somente ao proveito próprio.
Nas diversas reflexões que Maquiavel realiza sob o ponto de vista de
como uma coletividade política pode manter e ampliar inteligentemente
seu poder, o fundamento da ontologia social apresenta a suposição de
um estado permanente de concorrência hostil entre os sujeitos: visto que
os homens, impelidos pela ambição incessante de obter estratégias
sempre renovadas de ação orientada ao êxito17, sabem mutuamente do
egocentrismo de suas constelações de interesses, eles se defrontam
ininterruptamente numa atitude de desconfiança e receio (Honneth,
2003, pp. 32-33 – grifos nossos).
A primeira modernidade, séculos XV e XVI, em consonância com a formação das
bases do Estado Moderno, centralizado, organizado, pronto para a expansão e conquista, teve um
núcleo comum, uma base ideológica ou justificativa muito eficiente, e é isto que se chama de
Razão de Estado. Maquiavel foi o precursor desta guinada entre a ética ou moral da política a
uma visão substancialmente realista da vida política. Foi este realismo político que o levou a
pensar a virtù como aquela capacidade humana (especialmente do Príncipe) de articular e de
manter o poder em favor da sobrevivência do grupo — a Razão de Estado18 (Honneth, 2003, pp.
32-33).
Mas há diferenças mais ou menos sutis com outros pensadores do Estado Moderno, pois
Hobbes, por exemplo, tivera a vantagem do tempo (centralização de Estados, a exemplo de
Portugal, e das descobertas ultramarinas) e de novos conhecimentos científicos a seu favor, a
exemplo da física e da concepção do chamado mecanismo: desdobramento do racionalismo em
17
Ação social orientada aos fins.
Daí a necessidade de se aprofundar o conhecimento acerca da virtù, a fim de conhecermos melhor esta substância
viva da Razão de Estado (tanto quanto também para entendermos melhor o porquê da ação social, em Max Weber).
18
28
favor de sistemas organizados, mais tarde incorporados na fabricação da grande indústria. Além
disso, chamaríamos a atenção para o fato de que o Estado Moderno estava em plena formação, e
sem contar o advento ou incremento das bases estruturais do capitalismo19:
Mas não são somente as experiências históricas e políticas da
constituição de um aparelho estatal moderno e de uma expansão maior da
circulação de mercadorias que dão a Hobbes vantagens sobre Maquiavel;
em seus trabalhos teóricos, ele já pode se apoiar no modelo metodológico
das ciências naturais, que nesse meio tempo conquistou validez universal
graças à pesquisa prática bem-sucedida de Galileu e à teoria do
conhecimento filosófica de Descartes [...] Para Hobbes a essência
humana, que ele pensa à maneira mecanicista como uma espécie de
autômato movendo-se por si próprio, destaca-se primeiramente pela
capacidade especial de empenhar-se com providência para o seu bemestar futuro (Honneth, 2003, p. 34).
Neste sentido, a teoria do contratualismo traria ou seria a justificativa (a explicação, o
convencimento lógico e moral) necessária à Razão do Estado (desculpa, razão ou demonstração
lógica do porquê de o Estado existir), assim como o homem de virtù (Príncipe) é o sujeito que
melhor conduz e comanda (condottiere) a máquina de poder público20. Em sentido
complementar, pelo aferimento do contrato social, o homem abandonaria o estágio primitivo de
sua organização social e aí passaria realmente a experimentar o sabor/dissabor político.
Então, em termos de Razão de Estado, Poder significa a capacidade de manifestar
força, de alterar a potência, de impor e de provocar dominação, mobilizando sujeitos,
expectativas e demandas numa relação hierárquica de subordinação, com ou sem o uso da
força, a fim de que se cumpram determinadas normas e diretrizes, e que seja capaz de
produzir os resultados almejados pelo soberano. É óbvio que não há poder sem que a potência
tenha se desvencilhado do repouso em que se encontrava – sob esse argumento, poder é sempre
movimento. A potência do poder também pressupõe vontade.
Hobbes e o contrato com o poder soberano
Para Hobbes (1588-1679), é preciso ter regras claras que operacionalizem ou
condicionem a soberania. Desse modo, em Hobbes, o Estado é o Leviatã, um monstro bíblico,
uma fortaleza sobre-humana capaz de subjugar a todos os indivíduos, graças a sua força
descomunal. Para representar tal força do Estado, Hobbes utilizou-se de uma imagem bíblica –
um potente, selvagem e indomável crocodilo (Livro de Jô – 40, 41). Já sabemos que Hobbes é
um dos grandes autores da Filosofia e da Ciência Política e que esteve muito interessado na
discussão da soberania estatal, mas antes dele está Bodin – este sim, conhecido como o clássico
pensador do tema soberania:
Bodin passou para a História do pensamento político como o teórico da
soberania. Contudo, o conceito de soberania como caracterização da
natureza do Estado não foi inventado por ele. “Soberania significa
simplesmente poder supremo”. Na escalada dos poderes de qualquer
sociedade organizada, verifica-se que todo poder inferior é subordinado a
19
Metodologicamente em sentido oposto, também seria proveitoso revisitar a justificação dada por Durkheim à
divisão do trabalho social.
20
Comparativamente, em Weber (1999), o Estado equivale a um amálgama sócio-político que tem o direito (na
verdade, monopólio) de usar da coerção e da violência; contexto em que a lei positiva é a própria legitimidade legal.
29
um poder superior, o qual, por sua vez, se subordina a outro poder
superior. No ápice deve haver um poder que não tem sobre si nenhum
outro – e esse poder supremo, “summa potestas”, é o poder soberano.
Onde há um poder soberano, há um Estado (Bobbio, 1985, p. 95).
Bodin, por sua vez, estaria embasado em outros juristas medievais, que também haviam
se debruçado sobre este tema: “Já os juristas medievais, comentaristas do Corpus Júris, tinham
traçado uma distinção entre as ‘civitates superiorem recognoscentes’ e as ‘civitates superiorem
non recognoscentes’ – só estas últimas possuíam o requisito da soberania, podendo ser
consideradas Estados, no sentido moderno do termo” (Bobbio, 1985, p. 95).
Em sentido prático, na definição do poder, Hobbes foi mais supremo do que Bodin, uma
vez que, Bodin admitia certos limites ao poder absoluto do soberano. Bobin recomendava: “a
observância das leis naturais e divinas e os direitos privados” (Bobbio, 1985, p. 107). Para
Hobbes, todavia, ou o poder é supremo ou é impotente, simplesmente porque não há (não pode
haver) limites à própria soberania. A soberania é infatigável porque o homem egoísta deve ser
forçado a viver em sociedade, e a vida social deve-se totalmente à soberania estatal.
Assim, em uma frase, pode-se dizer que a soberania do Estado é ilimitada e é
fundamental porque os homens lutam por seus interesses, incapazes da vida em comum, se
não forem obrigados a tal; a soberania é necessária porque os indivíduos não são capazes de se
reportar ao coletivo. É de fundamental importância que o Estado seja um ente presente,
onipotente para conter tanto a agressividade quanto o egoísmo natural dos homens, uma vez que
o Rei é só um (homem) e não seria capaz de mobilizar tantas forças ao mesmo tempo.
Hobbes vê o homem como uma máquina, em que o funcionamento resulta de um
encadeamento a partir da incidência de movimentos externos que estimulam outros movimentos
internos. Para Hobbes, a realidade é um conjunto de corpos em movimento. Mas Hobbes diverge
de Descartes, pois o “eu existo” depende de um “eu penso”; mas Hobbes quer saber de onde vem
o pensamento. Para Hobbes, a origem de todo pensamento é a sensação (empirismo) — no nosso
caso, desejo e “sensação de poder”. Para explicar o poder como se fosse um “estado tendencial”,
Hobbes formulou o conceito de conatus (endeavour).
A vida é um “movimento vital”, animada pelo “sistema sanguíneo” e conatus nada mais é
do desejo que se desdobra em paixões e vontades (desejo transformado em ato). Por outro lado,
são reações internas do corpo estimuladas por movimentos de corpos externos (primeiro
sensações, depois imaginações). Mas conatus também é pensamento: e pensamentos são
movimentos internos provocados por outros externos, sob a forma de “sensações, fantasmas,
imaginações, recordações”. Há ligações mecânicas entre pensamentos, como se fossem
“comboios de pensamentos”, em associações de movimentos e de significações. Daí virá a
linguagem e a comunicação: um “discurso mental” que se transforma em “discurso verbal”.
Há uma sequência de ações e de transformações entre “estado de natureza” e Estado
Político – uma conexão de sentimentos que se inicia com o desejo íntimo de sobreviver (conatus
ou endeavour). Conatus é, então, uma força genética que impulsiona o comportamento, um
“começo interno”, um desejo. Este desejo tanto é “canalizado” para o poder quanto para a
sobrevivência (conservação) — a conservação que ainda exige afirmação e (conhecimento)
crescimento de si mesmo. Então, conatus é esse “desejo pela autoconservação” (compulsão).
Pelo conatus, somos todos levados a vencer e isto gera conflitos: miséria para o perdedor;
felicidade para o vencedor. Portanto, é o “desejo de sobrevivência” que nos leva à paz, pois se
todos lutarem entre sim, sem o contrato social, muitos pereceram sem necessidade.
30
Do Homo homini lupus (“o homem é o lobo do homem”) e Bellum omnium contra omnes
(“a guerra de todos contra todos”) à soberania do Estado, houve alienação e não delegação de
poderes. A soberania se impõe pela Razão de Estado e pelos arcana imperii (“segredos
guardados nas arcas do império”). Portanto, soberania é onipotência: o poder não pode estar
dividido. E onipotência implica num poder absoluto, único, indivisível, irresistível, uma vez
que o soberano (onipotente) não tem deveres, só funções: Está acima das leis e acima dos
direitos, porquanto faz as leis e outorga direitos. Por sua vez, o poder soberano é inegociável:
“não há meia soberania”; indivisível: “não há direito de secessão”; inalienável: “não se abre
mão”; inesgotável: “não há previsão de término”; ilimitada: “não pode ser contingenciada”.
Então, a soberania se resume (não que se limite) ao “poder de vida e de morte”. Mas, o
conceito de Estado (racional), assim formulado, apesar desse poder absoluto, guardava ao
cidadão o direito de se defender e de resistir, se sua vida estivesse ameaçada (inclusive ou
sobretudo pelo Estado). Daí que o soberano é a “razão em ato” e aí se vê em Hobbes um
racionalismo também absoluto: o commonwealth pode se transformar numa máquina azeitada,
racional, ordenada e governada pelo poder soberano, igualmente racional. Afinal, “o pacto sem a
espada não passa de palavras ao léu”. Este commonwealth pode ser traduzido/entendido como
“Deus mortal”, ora também chamado República ou Civitas em latim. Porém, a soberania não
admite superlativos.
O poder como soma-zero
Nesta forma de se ver o poder, o resultado mais claro é a ocorrência de uma soma-zero,
pois o poder de um é necessariamente a negação do poder do outro, sem que os dois possam
ganhar seja o que for com a própria relação imposta e garantida pelo poder. Na geometrização do
poder, soma-zero implica em dizer que: “Se X tem poder, é preciso que em algum lugar haja
um ou vários Y que sejam desprovidos de tal poder. É o que a sociologia norte-americana
chama de teoria do ‘poder de soma zero’: o poder é uma soma fixa, tal que o poder de A implica
o não poder de B” (Lebrun, 1984, p. 18 – grifos nossos). A maior dificuldade está, exatamente,
em superar esta equação da soma-zero do poder. É preciso ver como se daria esta passagem do
mando simples (de A para B) para uma relação de comando, com valor agregado ao poder social.
Como capacidade de realização por meio de relações impostas ou constituídas, como
mito ou realidade comum, analisar o poder implica em refletir em termos de meios e fins ou
recursos, substâncias e o próprio exercício do poder, as formas de atuação, de justificação.
Recursos e exercício do poder
O poder tem uma espécie de fórmula de obtenção de meios e de recursos para sua
eficácia. Tanto quanto em relação aos “fins que justificam os meios” (Maquiavel, 1979) tanto no
exercício da proporcionalidade de que os “os meios devem se adequar aos fins” (Weber, 1999).
Na formulação mais conhecida, segue que: Poder é colocar A na posição de B ou, então,
impedi-lo disso. Para que A tenha poder, B deve ser destituído dessa pretensão, da mesma
forma como não pode haver dois soberanos, pois aí nenhum seria de verdade. Poder significa a
capacidade de manifestar força, de alterar a potência, de impor e de provocar dominação,
mobilizando sujeitos, expectativas e demandas numa relação hierárquica de subordinação,
com ou sem o uso da força, a fim de que se cumpram determinadas normas e diretrizes, e
que seja capaz de produzir os resultados almejados pelo soberano.
O poder não pode ser dividido, seccionado, devendo ser uno e indivisível (Maquiavel e
Hobbes). Como vimos, a isto se chamou de “soma-zero” do poder. Para ultrapassar este limite o
poder deve ser um instrumento de comando que agregue valor social. Como Poder Político, mas
31
sob a justificativa da Razão de Estado (a razão política de ser do Estado), o Estado existe para
dar salvaguarda à vida social.
O poder é mais do que uma soma-zero
De fato, o poder não é tão simples e não é apenas esta soma-zero, em que para um ganhar
o outro tem, obrigatoriamente, de perder. Na metáfora da economia, pode-se dizer que não há
valor agregado, sem mais-valor; ainda que esta ideia de mais-valia também seja negativa, em
todo caso, há geração de um novo valor, numa espécie de soma-mais-um. Em outra metáfora, a
soma-zero do poder corresponde a um ciclo vicioso e o poder que agrega valor é um círculo
virtuoso. Neste caso, a Filosofia Política nos auxilia na busca de racionalidades que construam,
logicamente, novos constructos e organogramas de soma de valor agregado ao poder.
Filosoficamente, o poder é sinônimo de capacidade e de potência (Mora, 2001).
 Potência sinaliza a tese clássica que advém do direito romano, de acordo com a
nomenclatura do potestas in populo. A potência repousa.
 Capacidade implica em “poder suficiente” ou “potência disposta à ação”. A
capacidade mobiliza.
Entretanto, o poder absorve um sentido ativo (de atividade); portanto, de ação. Mas, o
poder (força) ainda pode ser visto por um duplo sentido:
1. Poder é força: capacidade de fazer algo; “levar a cabo uma ação” (poder ativo).
1.1 O poder ativo é a faculdade de produzir resultados. Não só mobilização, mas
ação que implique em algum resultado efetivo (a omissão também pode produzir
resultados).
2. Poder é resultante: quando o próprio poder vier a sofrer alterações, mudanças
(poder passivo). Quando se instituem, por exemplo, outras regras de arregimentação
do poder instituído.
2.2 O poder passivo é uma capacidade inerente dos instrumentos de poder, a fim
de receber e absorver novas regras de limitação do próprio poder. Todo poder acaba
vinculado e todo vínculo estabelece limites.
Da filosofia política à ciência política propriamente dita, há uma mudança de prisma, de
perspectiva, em que o poder deixa de ser tratado como gerador de impacto ou de atribulações na
ordem da epistemologia política, como problema do conhecimento aplicado à política, para se
converter em realismo político, em experiência empírica do poder. Assim, o poder tem uma
divisão básica, clássica em ciência política, na forma do:
 Poder Econômico: manifesta-se quando as relações de produção ganham destaque e as
fortes pressões econômicas costumam dar o tom na definição do direito. Destacam-se os
grupos de pressão, mas acima de tudo a própria divisão em classes sociais, com o poder
econômico certamente reduzido da classe trabalhadora frente à burguesia, nestas que são,
historicamente, as classes fundamentais.
 Poder Ideológico: em certa medida se aproxima da definição de dominação carismática,
de Max Weber, especialmente se pensarmos no exercício do poder por meio da convicção
de uma opinião pública. Como força atual, os meios de comunicação se destacam em
primeiro plano, como no passado já foi a Igreja Católica. Nas décadas de 1960-70, o
sociólogo francês Regis Debray (1993) denominou este avanço midiático sobre o poder
como Estado Sedutor.
32

Poder Político: em regra, define-se como sendo o Estado. Instituído como a instituição a
priori, o Estado reúne, organiza todo o poder capaz de reportar com força política
suficiente para definir ou mudar as regras sociais de convivência. O Poder Político,
todavia, também se manifesta na agremiação de guardiões do clã e em muitas outras
formas de organização da vida social.
De modo simples, a corrente clássica associa o Poder Político, em regra, à
característica de monopólio do uso da força física (Weber, 1979). Não há poder desarmado,
que não se sustente no controle e no uso da violência organizada e isso vale em todos os
quadrantes:
Hobbes [...] “Pactos sem a espada são meras palavras” [Mao Tse-Tung]
“o poder brota do cano de uma arma”. Certamente, Marx estava ciente
do papel da violência na história, mas esse papel era para ele
secundário [...] a “ditadura do proletariado” – francamente
repressiva nos escritos de Marx – vem após a revolução e destina-se,
como a ditadura romana, a durar por um período estritamente
limitado [...] “Toda política é uma luta pelo poder, a forma básica do
poder é a violência”, disse C. Wright Mills, fazendo eco, por assim dizer,
à definição de Max Weber, do Estado como “o domínio do homem pelo
homem baseado nos meios da violência legítima, quer dizer,
supostamente legítima [...] “O Poder”, disse Voltaire, “consiste em fazer
com que os outros ajam conforme eu escolho”; ele está presente onde
quer que eu tenha a oportunidade de “afirmar minha própria vontade
contra a resistência” dos outros, disse Max Weber, lembrando-nos da
definição de Clausewitz, da guerra como “um ato de violência a fim de
compelir o oponente a fazer o que desejamos” [...] De acordo com John
Stuart Mill, “a primeira lição da civilização (é) aquela da obediência” [...]
A forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da
violência é o Um contra Todos (Arendt, 1994, pp. 14-18-31-32-33-35 –
grifos nossos).
O fato é que a realidade do poder instituído e igualmente presente na vida comum do
homem médio traz perquirições acima e fora da média. Neste sentido, o texto será ampliado para
outras formas de manifestação do poder, além dessas três formas consideradas como clássicas.
Desse modo, podemos emprestar de Kelsen alguns elementos acerca do Poder Jurídico.
Poder Jurídico: capacidade (potência, possibilidade) ou competência de regulação da
política presente/prevista na norma jurídica:
Quem elucidar o direito como norma elucidará o Estado. A força
coercitiva deste nada mais significa que o grau de eficácia da regra de
direito, ou seja, da norma jurídica. O Estado, organização do poder, para
Kelsen, se esvazia de toda a substantividade. Os elementos materiais que
o compõem – território e população – se convertem, respectivamente, na
típica e revolucionária linguagem do antigo professor vienense, em
âmbito espacial e âmbito pessoal de validade do ordenamento jurídico
(Bonavides, 2012, p. 44).
33
Sem substância, ou seja, povo e território, o Estado resta como abstração jurídica que
se materializa apenas na aplicabilidade (ou não) da norma. Assim, se o Estado é norma, o
poder está contido na norma (afastando-se do poder tanto o povo, quanto as instituições). Este
Poder Jurídico seria equivalente ao poder da política que já foi normatizado. O que aqui se
denominou de Poder Jurídico ou de normatização do poder, e de modo ainda mais institucional e
formal, recebe no âmbito do direito público a denominação de Poder Extroverso.
Poder Extroverso: é a capacidade do poder político constituir, unilateralmente,
obrigações para terceiros, ultrapassando seus próprios limites, ao instituir a regulamentação,
fiscalização e fomento de ações públicas, como o policiamento e a cobrança de impostos. Por
isso, também poderá ser definido como um poder lastreado pelas instituições públicas, de
gerenciamento do Estado e da vida social. É um poder típico das instituições do Estado.
Poder Institucional: no sentido estrito, o Estado produz instituições que devem servir à
organização do Poder Político. Porém, no sentido amplo, em que associamos política e direito, a
partir das principais instituições públicas, o próprio poder institucional tem de ser visto além de
uma mera nomenclatura. Precisa ser tomado como relação social construída entre a
epistemologia política – como conhecimento da política e que produz modificações políticas
efetivas – e a experiência empírica do poder, em que, do mesmo modo, no âmbito republicano, o
conhecimento da política deverá gerar um valor que possa ser agregado.
Esta combinação geraria uma profunda relação entre poder e valor, mas como valor
iminentemente público – o que se entende como Poder Público. Ocorre, no entanto, que este
novo homem republicano é, na verdade, o velho homem grego reinventado. O poder legítimo dá
origem à normatividade, como poder capaz de constituir novas bases jurídicas. A República, por
sua vez, decorre de processos revolucionários, como capacidade de constituir o novo poder e um
outro direito.
Poder Constituinte: o novo poder é uma espécie de poder político in natura, é um poder
popular que se converteu em normatividade. Como poder constituinte originário é um intenso
poder político; na forma de poder constituinte derivado atua como poder popular que já se
transformou em normatividade, a exemplo da Constituição Política. Assim, mesmo definindo-se
o poder como exercício da dominação, o povo tem capacidade política de modificar a vontade
expressa no Estado ou instaurar outra ordem.
O poder é a capacidade de interferir no caminho/condução normal, natural, regular dos
sentidos originalmente previstos. Neste sentido, o poder já é um mito. Esta ideia de poder
atemporal, como mito criado ao seu redor do poder, auxilia a perceber a profundidade de alguns
significados e símbolos envolvidos. No exemplo do nazismo isto é claro, pois mesmo ali havia
um contrato social sob a roupagem jurídica do Estado de Direito. O que também nos leva a
pensar que existem elementos compartilháveis entre todos os mitos, um deles seria o poder
atemporal e que se aplica como ameaça às gerações futuras.
Poder Atemporal: a diferença é que o contrato jurídico que encontra suas bases fora da
razão, por sua vez, encontrará as “certezas” em fontes não compartilháveis e nem justificáveis, a
exemplo dos mitos que alimentam todas as formas de irracionalidades sociais. Na Alemanha, por
exemplo, Armínio (Arminius, em latim, ou Hermann, em alemão) foi um líder tribal e grande
guerreiro (16 a.C. – 21 d.C.) e depois acabou editado como mito ariano pelo nazismo. Antes da
instrumentalização nazista, contudo, Bismarck – o Napoleão da Alemanha – já havia empregado
toda a força necessária à unificação do Estado nacional na Alemanha, no século XIX.
Sustentados pelo Mito de Armínio, milhares de pessoas julgaram-se superiores, capazes
de formular um mundo que lhes pertencia e que deveria ser imposto aos demais. É óbvio que o
34
nazismo foi uma criação racional, especialmente sua base jurídica (Schmitt, 2006), mas, a não
ser para os nazistas, não há justificação racional para seus atores sociais. O direito nazista, antes
de ter construída sua base jurídica (ou concomitantemente), encontrou sustentação mitológica,
neste caso irracional. Depois, o direito nazista procurou apoio em uma pretensa cientificidade
(Müller-Hill, 1993) que, logicamente, não tinha sustentação verificável, isto é, não se coadunava
com a humanidade: pela lógica, não pode haver uma experiência lógica para os nazistas e outra
para os “inferiores”. Todo mito também é mantido por símbolos fortes de poder.
Poder Simbólico: o poder, de certo modo, também é estabelecido por uma rede completa
de relações circulares que unem estruturas e práticas pela mediação do habitus21, definindo-se
limites de validade — um tipo de nexo conceitual entre estruturas e práticas. O Poder Simbólico
é definido como poder circular — a citação é muito utilizada, mas vale retomar:
No entanto, num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte,
como em outros tempos não se queria reconhecê-lo nas situações em que ele
entrava pelos olhos adentro, não é inútil lembrar que – sem nunca fazer dele,
numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de “círculo cujo centro está
em toda a parte e em parte alguma” – é necessário saber descobri-lo onde
ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto,
reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só
pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que
lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (Bourdieu, 1989, pp. 7-8).
Neste caso, a maior crítica repousa no fato de que todo poder simbólico é um poder real –
ou então não é poder. Logo, é preferível tratar do poder de fato. E um poder de fato, como uma
espécie de carne viva do poder, como poder nu (Einstein, 1994b), é o típico poder dos militares.
É importante ressaltar a obra de Einstein porque se trata de um físico e não de um cientista
político, que se interessa pela política (muitas vezes como “resultado” da própria aplicação
tecnológica: este é o caso da acusação de que Einstein teria contribuído para o desenvolvimento
das teorias que levaram à construção das Bombas A, mais tarde lançadas no Japão).
Einstein não simpatizava com a ideia de que os militares dirigissem as pesquisas
científicas ou de que elas passassem para sua jurisdição, sob o pretexto da segurança nacional.
Essa submissão, dizia, criava um pensamento militarista na sociedade civil. E, em decorrência,
gerava-se uma espécie de “poder nu” ou “poder bruto” — tal qual a expressão que empresta de
Bertrand Russel (aliás, o prefaciador de Escritos da maturidade). Esse poder reduzia os homens
a mero “capital humano” ou “material humano”, e por isso Einstein também criticava o
“marxismo teórico”, em que julgava haver uma “militarização do social”: a revolução. Não se
pode esquecer que Einstein é um pacifista nos moldes de Ghandi, daí condenar a violência
política. Portanto, há uma recusa do poder militar.
Poder militar: conhecido como manu militari, é um típico poder de exceção, de cunho
fascista, repressor, ditatorial, em que vigoram os meios de exceção e o terror que não consegue
escamotear a ilegalidade. Este Estado de não-Direito extemporâneo leva o lema francês presente
na Guerra da Argélia: A legalidade pode ser inconveniente. Salvo exceções, o nível ou padrão
21
Conceito de habitus: constitui-se “em um sistema de estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes. Em outras palavras, princípios de
geração e de formação de práticas e de representações que podem ser objetivamente reguladas e regulares sem serem fruto estrito de obediência a regras ou obedecerem à
ação orquestradora de um regente. Espécie de social introjetado e recriado pelo aparelho mental de cada indivíduo, o "habitus" é um entroncamento entre a coerção do
social
que
estrutura
e
é
estruturado
por
cada
ser
humano”
(grifos
nossos).
Veja-se
em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
93132006000200013&script=sci_arttext&tlng=pt. Ou ainda, definindo-se habitus como a contradição entre o analógico e o dialético.
35
civilizatório da sociedade moderna não suporta mais o Manu militari, esta mão militar que
executa a legalidade no paredão do embrutecimento e estranhamento político.
É passado o tempo da execução de ato ou obrigação pela força pública. Este também
seria o caso do regime da Estratocracia (stratus = militar). Via de regra fechado militarmente,
este recinto político se converte em ideologia – no caso, propriamente uma Ideologia
Autocrática: “Ideologia, propriamente entendida, deve, em primeiro lugar, indicar um certo nível
de racionalidade e universalidade; em segundo lugar, deve desempenhar um papel no
amoldamento da realidade social” (Castoriadis, 1985, p. 11). O Poder Militar, certamente,
receberá uma congruência de outras tantas formas e recursos de Exceção.
Poder de Exceção: vem do latim excipio (tomar, apanhar); indica algo que foi apanhado,
extraído de seu lugar de origem e/ou de sua referência, da mesma forma como alienar, quando se
retira, perde algo que lhe é próprio (a perda de si, do controle sobre...). Em suma, temos aqui
uma clara restrição. No aspecto político, trata-se de uma medida político-administrativa que
rompe com a normalidade — surpreendentemente, rompe-se com a normalidade do Estado sem
pretensamente abalar esse mesmo Estado. No caso específico do Estado de Exceção (substantivo
e adjetivo), ainda se trata de evidente suspensão de direitos. Protege-se o Estado suspendendo as
garantias individuais e institucionais que subsidiavam a democracia e a soberania popular.
Neste sentido, é uma medida do poder político que se volta contra a guerra civil ou
revolução social — age-se contra a liberdade quando a normalidade institucional e a ordem do
Estado estão sob forte ameaça22. Sob a forma clássica do Estado de Sítio23, a previsão coercitiva
é temporária, mas como visa sanar a anormalidade pode se perpetuar, desde que o próprio
Estado julgue que as causas que lhe motivaram ainda permaneçam — aí o estado de alerta não
seria desligado24. Esta definição de luta do Estado contra a guerra civil tem origem na Revolução
Francesa: état de siége, como Estado de Sítio. De acordo com a Teoria Política Clássica seria
como a descrição do Estado lutando contra a sociedade — um contrassenso porque o contrato
social não fora programado para se voltar o poder contra a sociedade. Se há crise institucional
deve-se reestruturar o Estado, não abater a liberdade e os direitos fundamentais.
Contemporaneamente, trata-se de uma luta do Estado contra setores significativos da
sociedade e também implica que a luta de classes não se converteu em luta de ideias (em luta
ideológica) ou porque houve um retrocesso. A ideia de guerra também se traduz por comoção,
abalo, perturbação, “revolta popular”. Comoção que vem de emoção: émouvoir. Quer dizer que
se submete o poder político e a sociedade a um movimento perturbador, capaz de abalar o
sentido prévio de coletividade — utilizando-se a auto-conservação. Assim, uma parte da
sociedade se revolta (volta-se contra o Estado) e outra, em represália, volta-se contra esta, em
nome do todo. Historicamente, vê-se o golpe de Estado contra a revolta popular:
O com da comoção indica uma forte emoção conjunta, o desespero e o
apelo dos que se encontram unidos diante do desgosto, da ameaça, do
medo, ou da dor [...] Mas o estar-junto não é suspenso apenas em sua
versão física, reunião, mas também em sua versão escrita, virtual,
comunicativa: suspensão do sigilo de correspondência, da liberdade de
imprensa, da liberdade de informação [...] O Estado faz uso, ele se
apropria das forças recônditas individualizadas no momento de comoção
22
Se fosse o caso, a medida de exceção poderia ser adotada para combater o crime organizado.
Na Constituição brasileira está previsto no art. 137.
24
Esta foi a argumentação jurídica que balizou tanto o fascismo quanto o nazismo, na 2ª Guerra.
23
36
— aquele lapso fugaz, extraordinário, que rompe com as cadeias
discursivas, jurídicas e temporais (Ghetti, 2006, p. 293).
Por isso, significa a suspensão da realização do direito em nome das regras de direito
(sacrifica-se o legítimo ao formal). Significa, igualmente, a suspensão da realização do direito
(Justiça) às regras do poder (soberania). Privilegia-se o chamamento ao império das leis em
detrimento da Justiça. Trata-se de um poder muito mais instrumentalizado (poderoso), intenso,
ao mesmo tempo em que se revela flexível, aclimatável, amalgamável às circunstâncias e
excepcionalidades que circunscrevem a este poder e à organização social. Temos os casos
presentes dos golpes de Estado e das ditaduras constitucionais. Portanto, nossa esperança é
investir em meios justos, como recursos de um poder civilizatório.
Poder Civilizatório: O Direito como motor do processo civilizatório indica que,
historicamente, a racionalização é uma tendência irreversível que se aprofunda na condução
interior dos atos humanos: do mito à religião e, desta, à “ciência provedora de um sentido de vida
desmistificada”. Não há sociedade, nem mesmo sob o nomadismo, que não tenha fixado regras
seguras e rígidas de convivialidade. A organização do Poder Social baseada em regras sociais
e/ou normas jurídicas: a crescente racionalização inerente ao processo civilizatório, justamente,
tende a converter as regras sociais em normatização jurídica. Se o positivismo jurídico não é
mais a força jurídica majoritária, isto apenas realça a mobilidade do Direito no contexto das
transformações sociais.
Investir no Poder Público
Contra todas essas investidas do poder nu devem ser asseguradas de forma
inequívoca as garantias políticas e institucionais de um Poder Popular. No dizer de Capella,
a processualística não pode ser substituída pela legitimação mítica do poder:
Tais expectativas, pelas que lutaram gerações de pessoas, aparecem ante
as consciências de todos como aureoladas juridicamente, como
hegemônicas. Justificar sua violação ou sua restrição exigirá, pois, um
esforço (discursivo) especial por parte de quem atente contra elas: tal é,
em realidade, sua magra couraça, mas, que ao mesmo tempo, facilita que
os indivíduos insistam na legitimidade e na justiça de suas pretensões
quando estas aparecem como o conteúdo de um direito de cidadania. Em
realidade, para denegar essas pretensões legítimas, o poder há de
recorrer, de um modo ou de outro, à doutrina do “estado de exceção”:
uma doutrina que, levada ao limite, exige a legitimação mítica (Capella,
1998, p. 143).
As cláusulas pétreas em defesa do Estado Democrático, da Justiça, dos direitos
fundamentais seriam exemplos claros das medidas sintetizadas e aureoladas juridicamente,
como hegemônicas – em defesa de um poder popular, social e democrático. Por isso, a melhor e
mais simples forma de defesa da soberania é restaurar o poder popular.
Poder Popular: isto é, o Poder Popular implica nas contramedidas usadas na defesa dos
valores, direitos e instituições populares, públicas, democráticas. Nesta linha de argumentação,
podemos entender a cidadania como o poder popular que se organiza ou se insurge contra todas
as formas de exceção, opressão ou exclusão tentadas pelos aparelhos ideológicos ou aparatos
repressivos do próprio Estado. Há inúmeros exemplos, como as lutas pela descolonização, contra
a segregação racial e de enfrentamento às leis injustas (Desobediência Civil). Entretanto, toda
37
forma de poder prevê alguma organização social e a capacidade de utilizar a força (se necessário)
para manter a coesão social necessária. A forma mais intrínseca, quase que atávica deste poder
que praticamente garante a sobrevivência da sociedade é denominada, no mundo moderno, de
Razão de Estado Exprimindo-se a própria razão de o Estado existir, o Estado existiria para
assegurar condições razoáveis, confortáveis de organização ao tecido social. Desde os clássicos,
sabemos que o Estado não deve existir para que os “poderosos” possam se locupletar do poder.
Com isso também vemos que Ciência e Filosofia Política estão sempre de mãos dadas e esta
relação já nos permite averiguar outros elementos que compõe o Estado.
38
ADENSAMENTO CULTURAL
Em uma linha: adensamento cultural implica em transformar a cultura, como as relações
familiares, “de sangue”, em política, em estruturas de poder e de comando. Entretanto, a questão
é tão decisiva que se não houvesse determinado grau de adensamento cultural não haveria
Estado-Nação, porque sem elos culturais e sociais de relevo e profundidade o próprio sentido de
nacionalidade seria fugidio e sem isto, é óbvio, não haveria o porquê das nações modernas como
base subjetiva de afirmação do Estado-Nação. A nacionalidade e o nacionalismo são essenciais,
no fim das contas, ao surgimento do Estado Moderno, ora como resposta às violentas lutas pelo
controle do Poder Político, ora em defesa da soberania contra os inimigos externos.
Um pouco de história
Na Inglaterra, em meio à guerra civil e intensa luta política, Hobbes escreveria o Leviatã:
um tipo de Estado super-humano. O filósofo da política e do Estado inglês, Tomas Hobbes,
ainda recomendaria o endeavour ou conatus, como forma de unificar o Estado único. Conatus é
desejo natural de sobrevivência (Angoulvent, 1996). Para sobreviver, os indivíduos organizamse coletivamente e a formaçao de grupos sociais de pertencimento é a primeira expressao política
da condição humana. Para efeito de sua sobrevivência, o homem desenvolve a sociabilidade, a
política como organização social e, por fim, o Estado. Apesar de ainda contar com muitas
restrições, o tipo histórico do Estado-Nação foi se formando por adensamento ou simples
conquista política, numa trajetória que iria do paroquialismo ao “não-localismo”:
A fusão de grupos similares em segmentos socioculturais não locais
ocorria com maior rapidez onde um grupo de senhores ou um senhor
consolidava suas posses por meio do matrimônio, do intercâmbio, do
comércio e da guerra [...] A consolidação política era possível de alcançar
somente por meio da destruição do poder soberano dos numerosos
senhores locais [...] A busca de fontes independentes de riqueza levou ao
“casamento” do poder real com os grandes mercadores [...] o rei
converteu-se em um sócio ativo das empresas mercantis. O comércio
substituiu a agricultura como chave do poder (Wolf, 2003, p. 206).
Como se vê, desde o início o Estado Moderno, sua soberania e seu direito se sustentaram
pela força da razão, superando-se em transformação o desejo de sobrevivência marcado pela
libido inicial – esta é a maior obra da Razão de Estado, emprestar racionalidade ao desejo
humano de poder. Na Razão de Estado, tem-se um desejo que se materializa em instituições e
institutos visíveis e compreensíveis por todos. Assim, contra a insegurança social e a falta de
sentido na civilização do pré-Renascimento, para Hobbes, a soberania ou Razão de Estado
encontraria máximas ou regramentos lógicos de poder. Não há tempo a perder com o direito
baseado na vingança, na dor, no ódio, porque é preciso construir o Estado e assegurar que os
cidadãos compreendam e legitimem esta que é a maior construção da humanidade.
A soberania, como espírito de autoconservação, exige respostas maduras, racionais do
Estado e de seus arquitetos. Desse modo, em meio a tanta diversidade e adversidade, para forjar
a estrutura lógica e racional25, monista26 e normativa27 do Estado (com um direito uno e
coerente), outras “irracionalidades” deveriam ser contornadas, subjugadas, como:
25
Se o objetivo é centralizar e fortalecer o poder central a fim de que se possa enfrentar os inimigos internos e
externos do grupo humano de um determinado território, então, o direito de resistência, distensão ou sedição deve
ser coibido. Pela lógica, o poder central deverá racionalizar as estruturas que conformam o poder e se ainda se
39









Fortes elementos de subjetividade cultural, religiosa.
Desafios colocados pela sedição.
Dificuldades inerentes à integração político-administrativa.
Poder baseado em laços familiares – parentesco.
Pluralismo jurídico.
Costumes locais.
Estranhamento à concentração do poder e racionalização do espaço público
(Administração).
Acumulação primitiva: pressão política do poder econômico da burguesia
insurgente.
Miséria social e êxodo rural.
Os Mitos de formação política (como Armínio, na Alemanha; Rômulo e Remo na Itália),
por exemplo, teriam se converter em elos e relações propriamente políticas. Além de toda a
arquitetura política racionalizada sob o cetro do Estado Moderno, ainda se pode dizer que
atuaram duas concepções éticas, diversas mas complementares, tanto na formação estatal quanto
no direito moderno:
 Ética Protestante: voltada a acumulação primitiva do capital.
 Ética Pagã: própria à conquista do poder (“os fins justificam os meios”).
As éticas do poder nascente seriam o invólucro subjetivo que faltava para justificar a
concentração da força e do poder.
Da cultura ao Estado Ético
A junção das duas éticas (protestante e pagã), no aspecto mais propriamente político,
resultou na formação do que se denominou de Estado Ético. Não há definição social, não há
construção política que não tenha recebido o certificado da razão, ainda que escondida sob o
manto da dominação e dos mitos. O ápice desta inteligência política seria, portanto, a ética
formulada pelo Estado: o Estado não seria apenas o profusor de uma ética superior, o Estado é a
síntese dos mais elevados elementos éticos – a inteligência superior a serviço de todo o espírito
humano (Bobbio, 1989). Hegel desenvolve essa perspectiva institucional atribuindo ao Estado
uma instância ou nível superior às classes sociais e aos conflitos sociais inerentes.
Um Estado Ético “paira” sobre a realidade, pois deve ser imparcial, irredutível às
contradições sociais e suas demandas classistas antagônicas e excludentes. Por isso, pode-se
dizer que é um modelo de Estado que se quer indiferente às diferenças sociais e, assim, promovese como intervencionista no âmbito moral. O problema é que o Estado Ético, como “instância
superior da organização social”, cria uma superestrutura política que “coloniza” e aprisiona as
relações sociais de acordo com os desígnios do poder hegemônico. Em todo caso, nessa linha de
argumentação, não haveria nada mais racional, sublime, do que o Estado. Independente dos
desvios e abusos de crendice no Estado Ético, como moral superior da Humanidade, não há
como não ver aí a conclusão ideológica da transformação do adensamento cultural em política.
objetiva a obtenção de fontes de financiamento para o Estado e suas empreitadas, logo, a racionalidade capitalista
será aplicada ao Poder Político.
26
Nesta fase absolutista, o poder central não encontrava limites ao manejo de suas forças, daí a Teoria da Soberania
assegurar ao Príncipe um poder absoluto (majestas). Somente no século XVIII surgiria a convicção de que o poder
deveria ser controlado, sobretudo a partir da tripartição dos poderes.
27
Teríamos de esperar pelo século XIX para conhecer o controle jurídico do Estado, afirmando-se a tese da
personalidade jurídica e do Estado de Direito.
40
Por isso, o adensamento cultural corresponde à formação do Poder Político como uma
organização social em estágio superior; implica na passagem do poder social ao nível em que a
política se transcorre em torno de amigos e inimigos. De forma direta, unificando-se o centro de
comando, a cultura represada no poder social se vê metamorfoseada em Poder Político.
A cultura política no Brasil
No Brasil, há adensamento cultural? É o suficiente para vermos a conversão das
demandas sociais em políticas públicas? A própria cultura política popular está de acordo com
seus interesses? É claro que são questões instigantes e não merecem respostas simplistas, no
entanto, a partir de alguns aspectos da realidade brasileira é que iremos construir o conceito de
adensamento cultural.
Pode-se dizer que o Estado Nacional brasileiro tem dois grandes grupos de problemas: a)
técnico – expresso na desigualdade regional e no desenvolvimento econômico, ambos baseados
na saúde econômica e que, atualmente, está estagnada; b) cultural – a formação classista que
sempre segregou ricos e pobres, brancos e negros, sulistas e nortistas.
Tecnicamente, o Estado precisa retomar o crescimento da economia, culturalmente,
precisamos distribuir melhor nossas riquezas; só com a economia mais forte, empregando-se,
incluindo-se milhões de pessoas poderemos combater o racismo, a indiferença social, o egoísmo.
É claro que com tanta exclusão e apartamento social o adensamento cultural se vê prejudicado.
Contudo, só com educação conseguiremos criar uma massa crítica capaz de avaliar as
soluções técnicas para os problemas globais. Só a educação será capaz de abalar uma cultura
secular, em que o povo somente apreciava, sem entender, o que se dizia fazer em seu nome. Sem
educação, não criaremos condições para fortalecer a sensação sublime da emancipação.
Aqui apelidada de libertação da ignorância, a emancipação torna os significados
compreensíveis, os símbolos decifráveis. Sem educação, a razão se mantém como privilégio de
poucos, pois o bom senso, o esclarecimento vem sim da educação. Sem que se democratize o
acesso à razão, a sensação de ser integrado é negada. Com educação, as pessoas poderão por si
esclarecer o que lhes interessa, pondo fim à tutela política. Por isso, a educação é a mágica que
liberta.
O poder tem códigos e senhas, e sem educação não se acessa seu interior e nem se decifra
seu mecanismo. Sem esta inclusão de novos significados para os velhos códigos da política,
veremos crescer por muito tempo o rol da criminalização que acerta em cheio a sociedade
brasileira. Os poderosos, sem controle democrático, limitam-se a digladiar pelos “castelos do
poder” e alguns atingindo outros produzem leis que não tratam da educação popular, mas sim da
criminalização social.
Sem a democracia que se inicia, exatamente, pela democratização do entendimento real
do significado extensivo das principais questões (educação), não se compõe com clareza os
marcos civilizatórios que separam o certo do errado. Sem a democratização da educação de
qualidade, o povo continuará órfão das sensações republicanas. Sem educação de qualidade, e
isto significa modificar o alcance e o conteúdo do que se ensina, tanto as elites quanto o povo
continuarão sem separar o público do privado.
Sem educação de qualidade e para todos, a sensação de ser republicano será sempre um
privilégio de poucos bem formados e educados pelo espírito público – o que é muito pouco para
mudar o Brasil. Sem esta educação, implica dizer que a nacionalidade é um eterno benefício de
minorias: para uns poucos, o Brasil é um bom país; para os de sempre, a maioria, vive-se a
negação da cidadania.
41
Pensar a educação em direitos (como educação republicana), é óbvio, remete a pensar o
direito à educação – mas é mais ou menos visível (historicamente) como não haveria direito à
educação sem que houvesse muita luta e é aí que a educação em direitos a precede, na forma da
luta política pelo reconhecimento de direitos — inclusive a luta pelo reconhecimento da
educação como um direito social fundamental.
A experiência da educação republicana nos EUA nos trouxe algo importante: reconhecer
que o efeito essencial da educação é a “crença na perfectibilidade”. Esta crença pode mover o
povo em direção ao Estado-Nação, principalmente se nesse curso está claro o sinal de que a
educação será uma luta contra as desigualdades, partindo-se do direito à isonomia republicana:
“Nas palavras pronunciadas por John Adams em 1765 – isto é, antes da Declaração da
Independência – ‘Sempre considerei a colonização da América como a abertura de um grandioso
desígnio da providência para a iluminação e emancipação da parte escravizada do gênero
humano sobre toda a terra” (Arendt, 1992, p. 224).
Não há densidade cultural onde reina a ignorância das instituições públicas. Mas, de nada
adiantaria este adensamento cultural sem que houvesse uma efetiva centralização do Poder
Político.
42
O ESTADO É UMA ESCRITURA POLÍTICA
Entre sociedade e Estado, bem como entre Poder Social e Poder Político, há diferenças
substanciais e que devem ser frisadas. Portanto, o objetivo geral deste item é demarcar algumas
dessas nuances e aprofundar o questionamento histórico acerca da passagem das sociedades
primitivas à estrutura política organizada em torno do Estado como o conhecemos atualmente.
Desta forma, a seguir, veremos uma estrutura política necessária, fundacional do Estado Antigo,
mas marcada pela sua condição natural: a origem social do Estado.
A Origem Social do Estado
O Estado, apesar de ser uma criação humana – decorrente da inerente condição do zoon
politikón –, não surgiu da noite para o dia. Assim, é necessário observarmos que há uma história,
um adensamento cultural, um fluxo institucional e por isso precisamos observar o Estado como
parte da ontologia política. Se o Estado é um produto humano, quer dizer que é derivado da
razão, como ato intencional, e isto nos inclina a ver o Estado como resultado de um
aperfeiçoamento de instituições políticas anteriores. Portanto, o Estado é resultado – antes de ser
meio ou fim –, e o fato de vermos resultados indica que há uma ontologia política.
Para este intuito de reconhecer a transformação da política em Estado, vamos abordar a
formação do Estado, as principais teorias envolvidas neste processo e, em especial, a formação
do Estado Antigo. Mas, antes de seguirmos este passo institucional da humanidade é preciso
reforçar o conhecimento que difere Estado e sociedade, Poder Social e Poder Político.
Por que o homem criou o Estado? Foi esse ato criador que nos transformou em animais
sociais e políticos? É nossa capacidade de criarmos sociedades organizadas e Estados que nos
caracteriza como humanos e, assim, nos diferencia dos demais animais sociais, como abelhas e
castores?
Antropologia do “Estado de Origem” 28
Tomamos consciência de que era necessária a vida social e depois demos um passo
decisivo rumo à criação ou elaboração do Direito – como forma de regular quem se relacionava
com quem, de que forma, onde, quando e porque se agiria deste ou daquele modo. O Direito,
inicialmente, é o conjunto das interações sociais, que no espaço urbanizado se transforma em
ação e relação política.
Essas múltiplas interações, no entanto, vêm racionalizadas (discutidas, ponderadas,
pensadas, “definidas”) e apresentadas formalmente29 por um grupo também substancial de
pessoas: “o(s) grupo(s) dominante(s)”. Neste aspecto, o Direito é social; pois o Direito decorre
das necessidades sociais que também se transformam ao longo da história – e ainda que
tenhamos de (re)lembrar que se trata de um tipo de necessidade primária, isto é, a necessidade da
sobrevivência.
Então, desse modo, como fato social (desde suas primeiras ocorrências significativas na
longa história da humanidade, e mais precisamente a partir do fortalecimento do Homo faber30),
o Direito não deve ser confundido com certo conjunto de regras a ser seguido, sob pena do
emprego exclusivo da sanção e da coerção.
28
Antropologia Política seria a expressão mais correta e poderia ser simplificada como o ramo da Antropologia que
se detém a analisar as formas iniciais, fundacionais do poder (social), e como área em que se destaca o Poder
Político assegurado pela estrutura do Estado.
29
São regras formalizadas porque seguem uma forma, uma maneira recorrente de serem tratadas, além de um ritual
que envolve tanto sua produção quanto sua execução.
30
Imortalizado pelo Mito de Prometeu, o Homo faber promoveu a transformação do homem selvagem em ser social.
43
A possibilidade do uso da sanção pelo Direito (quer seja premial, quer seja punitivo)
decorre da necessidade anterior da organização social – necessidade agora entendida como fruto,
princípio da vida social e das regras jurídicas regulatórias. Para bem e para mal, o Direito decorre
das principais necessidades sociais que vigoram em determinada época histórica. É fácil perceber
como a necessidade do Direito antecede a qualquer ideia de coerção e ao próprio Estado. É como
se disséssemos que o Direito é uma necessidade primária, de tão presente que estava na origem
das primeiras sociedades organizadas; assim como é elementar na organização da vida moderna.
Por fim, se ainda é necessária uma breve definição, podemos dizer que:
Direito é um conjunto de doutrinas, elaborações teóricas e conceituais, de sentidos,
de valores econômicos, culturais e políticos, de regras sociais e de normas jurídicas (o
próprio ordenamento jurídico), quer sejam regras impositivas ou reguladoras, quer sejam
normas orientadoras ou dirigentes de condutas, mas sempre oriundas e prescritas pelas
classes sociais ou pelos grupos econômicos e políticos dominantes e/ou hegemônicos. Como
se vê, o Direito (Poder Social) tanto está além quanto precede o Estado (Poder Político). O
Estado, nesta fase inicial, será simplificado como a instituição por excelência, detentor do
poder necessário (nem sempre legítimo) a fim de empregar a coerção e a dominação
política, econômica e social31.
Assim, nem o Estado e nem o Direito são entes ou instituições neutras, imparciais ou
indiferentes à realidade social e política que os cercam. Só há sentido falar em Direito “se” e
“enquanto” continua a ser aceito socialmente, nunca fora do contexto social e político que lhe
assegura validade, credibilidade e aceitação. Quando vem de fora para dentro, não é Direito,
autoridade; como poder heterônomo, é imposição autoritária de uma determinada vontade. O
Direito, pela lógica simples, deve expressar a vontade, as razões do grupo que o origina. Ao
produzir a sociedade, o Homo faber - que aparece no Mito de Prometeu - produziu as primeiras
formas jurídicas, aquele Direito com total validade social. Enfim, o que explica e justifica a
criação do Estado pelo Homem?
HIPÓTESES SOBRE A ORIGEM DO ESTADO
Veremos um total de 14 hipóteses com relação à origem do Estado, além das sugeridas
por Hobbes e Vico, e da ideia de que o Estado surge para satisfazer a necessidade de
sobrevivência dos indivíduos e dos grupos sociais, como analisadas em outro tópico. Com isso,
não se quer dizer que estas sejam todas as hipóteses possíveis, mas sim que são hipóteses
razoáveis, verificáveis – algumas, inclusive, nos dias atuais. Assim, passemos a analisar essas
possibilidades.
1. Exploração econômica entre classes sociais divergentes
É a clássica concepção marxista, socialista acerca da Formação do Estado. Serve-nos
como exemplo nossa própria realidade social, pois o Estado teria por finalidade assegurar que o
Poder Econômico permanecesse concentrado nas mãos da classe dominante. Lembremo-nos de
que, historicamente, não mais do que 1% (um por cento) da população detém mais de 50 % da
renda nacional ou da riqueza produzida por todo o povo e que, ao contrário, os 50 % (cinquenta
por cento) mais pobres não acumulam muito mais do que 5% (cinco por cento) da renda bruta. O
Estado, portanto, nos serviria apenas para garantir essa desigualdade e essa extrema concentração
de renda: “F. Oppenheimer [...] define todos os Estados conhecidos pelo fato da dominação de
31
No caso brasileiro, o Direito é postulado pelo Estado – entendendo-se o Direito agora simplificadamente como
“conjunto de normas sociais dotadas de coerção”. Mesmo que nem todo o Direito seja produzido pelo Estado, de
alguma forma todo o Direito deverá receber sua autenticação ou reconhecimento estatal, quer seja como chancela
premial, quer seja como ação punitiva.
44
uma classe sobre a outra para fins de exploração econômica” (Balandier, 1969, p. 141). Em uma
expressão clássica e consagrada, o Estado deve assegurar o domínio da burguesia sobre o
proletariado.
2. Associação voluntária
Neste caso, é como se não houvesse grandes discussões de valores, opiniões divergentes
quanto à natureza do Estado, com o povo chegando a um comum acordo sobre a
institucionalização do Poder Político. Isso é comum à maioria das associações civis, mas também
ilustra a chamada forma típica de organização do Estado. Pois, gradualmente, os grupos
envolvidos vão chegando à conclusão de que o Estado ou é necessário ou lhes serviria
adequadamente. Pode ser o caso concreto de associações de Estados menores para formar uma
estrutura política destacada, a exemplo da transformação das confederações em Estados
soberanos e autônomos, como a Confederação Helvética (que originou a Suíça) e os EUA (se
bem que, neste caso, a base da Federação é a própria Revolução Americana).
3. Dominação de uma potência superior
Um Estado que existia até ontem e passou a ser dominado por uma potência e se criou outro
Estado. A exemplo do ocorrido com a invasão americana ao Iraque, pois o Estado de Saddan
Hussein não existe mais e, em seu lugar, o povo iraquiano edificou outra estrutura estatal. A
eleição de uma Assembleia Constituinte, elaborando a primeira Constituição após a guerra é o
primeiro passo, uma vez que a Constituição Federal traçar o perfil e a estrutura básica desse
outro Estado iraquiano. Diz-se que, para saber como funciona um país (Estado), deve-se ler a
sua Constituição. Em resumo: “R. Linton, por exemplo (...) encara essencialmente dois meios
de construção dos Estados: a associação voluntária e a dominação imposta em razão de uma
potência superior” (Balandier, 1969, p. 141).
4. Com conquista rápida ou insidiosa
Nesta modalidade de conquista, exclui-se toda capacidade de resistência, pois o objetivo é não
dar chance alguma de defesa ao ofendido e assim ocupar seu território e conquistar seu povo.
Novamente, vale o exemplo da ocupação do território iraquiano pelas forças americanas e
aliadas, um processo que não levou mais do que poucas semanas, entre o desembarque e a
chegada à periferia de Bagdá. Após esse tipo de ocupação e conquista, então, é que se inicia a
formação do novo Estado, sobre os escombros da cultura anterior. Como diz Balandier
(1969):
Os Estados podem vir a existir seja pela federação voluntária de duas ou
mais tribos, seja pela subjugação de grupos fracos ou grupos mais
poderosos, que acarreta a perda de sua autonomia política (...) R. Beals e
H Hoijer consideram ainda, com menos reservas, que o direito exclusivo
de recorrer legitimamente à força e à coerção – pelo qual se define o
poder governamental – “só aparece com o Estado de conquista” (p. 142).
Vê-se que se trata de um Estado associado à coerção, como Estado de Conquista.
5. Quando há diferenciação não-igualitária entre os indivíduos
Se há uma diferenciação não-igualitária é porque pode haver uma diferenciação
igualitária? Podemos ser diferentes em alguns aspectos, mas iguais em outros? É óbvio que sim,
pois homens e mulheres são diferentes biologicamente, mas plenamente equiparados do ponto de
vista jurídico (já na questão social, política e econômica, são profundamente desiguais). Os
Estados que embainham em lutas de classes são típicos nesta análise: “R. Lowie [...] Observa ele
que as condições internas bastam ‘para criar classes hereditárias ou aproximadamente
45
hereditárias’ e, mais adiante, o Estado primitivo, e nota que os dois fatores principais – a
diferenciação não igualitária e a conquista – ‘não são necessariamente incompatíveis”
(Balandier, 1969, p. 142).
Na hipótese aventada, o Estado teria sido criado para garantir diferenças sociais,
hierárquicas entre as pessoas, entre os sexos (de acordo com a conhecida divisão sexual do
trabalho), mas também teria sido elaborado a fim de que as desigualdades (entre elas a
econômica) fossem ainda mais acentuadas. O Estado deveria garantir privilégios e não direitos
ou, então, dotar apenas alguns de amplos privilégios – em detrimento dos demais -, como
acontecia nas monarquias e nas aristocracias. Aliás, está presente a ideia de dividir ou diferenciar
para conquistar, bem como é a matriz explícita do clássico machismo patriarcal.
6. Quando há uma tendência natural para a organização dos Estados
Indica a possibilidade de que, naturalmente, alguns povos fossem conduzidos pela força
da organização social a estruturar seus Estados, porque a complexidade social – em determinada
fase de sua evolução – os levaria a isso. Talvez fosse o caso dos Astecas no México que, à época
da chegada dos espanhóis, já possuíam uma intrincada organização social, adiantado nível de
desenvolvimento tecnológico e imensa bagagem cultural – o que lhes permitiu construir
aquedutos e beneficiar o povo com o saneamento básico. Um estágio social e cultural, portanto,
muito mais desenvolvido do que Paris, por exemplo, que ainda despejava o esgoto no meio-fio
das ruas. Agora, não há garantias de que os Astecas iriam construir um Estado como se via nos
principais centros urbanos europeus. Se sua cultura tivesse tido a chance de prosperar, sem serem
aniquilados talvez sim:
Numa época muito antiga e num meio muito primitivo, não era
necessário romper os laços de parentesco para fundar um Estado político.
Com efeito, ao mesmo tempo que a família e o clã durante um número
incalculável de séculos existiram associações, como os ‘clubes’
masculinos, as classes de idade ou as organizações secretas,
independentes do parentesco, que evoluíam por assim dizer numa esfera
muito diferente da do grupo de parentesco e eram capazes de assumir
facilmente um caráter político, quando não o apresentavam desde o seu
aparecimento (Balandier, 1969, p. 143).
Em outro exemplo, muitas tribos africanas à época da colonização Europeia, contando
com milhares de indivíduos, também indicam outra hipótese. Pois, teriam ou não evoluído suas
sociedades para formas mais elaboradas de organização política, como o Estado? Nesta situação,
o Estado poderia ter uma origem familiar, de base comum ou pelo menos que fosse semelhante à
maioria dos casos.
7. Valorização de associações militares anteriores
O Estado teria sido reformado a partir de associações militares, ou seja, um grupo se
organizou militarmente, em primeiro lugar, e com isso encontrou mais força ou meios objetivos
para estruturar o novo Estado. Seria o caso de todos os grupos militares que têm êxito em sua
empreitada e, como movimento, revolucionam as bases políticas precedentes. Há inúmeros
exemplos, como Gengis Kam e a unificação da Mongólia, mas pode-se pensar na Revolução
Cubana e na posterior construção do Estado socialista de Cuba.
8. Há predominância de hierarquias sociais: regime de castas
O Estado teria sido criado apenas e unicamente a fim de manter a estrutura social e cultural de
acordo com as bases iniciais em que se deu a formação dessas sociedades. A estrutura de
46
castas, como ainda se vê na Índia, sem que haja nenhuma possibilidade de mudança social
mais profunda, restrita à mobilidade horizontal, em que os membros das castas inferiores não
chegam a ocupar posição relevante nas castas superiores é um exemplo bastante concreto. A
nota seguinte resume este sentido:
Lowie, portanto, deve apelar para fatores menos extensamente
distribuídos [...] Alguns de ordem interna: a valorização das associações
militares, ainda que seja apenas de caráter sazonal, como no caso dos
índios cheyennes; a predominância das hierarquias instauradas segundo a
posição; como nas sociedades polinesianas; a presença de personagens
vigorosamente sacralizados, que fundam uma autocracia associando ao
seu empreendimento a ‘auréola do sobrenatural’ (Balandier, 1969, p.
143).
A função do Estado, nesta perspectiva, restringe-se à opressão social e cultural. Destacam-se,
portanto, os fatores internos, tal qual as necessidades primárias.
9. Pode haver desenvolvimento interno ou regional
Uma situação com características particulares, em determinadas condições históricas e
geográficas, teriam estimulado um povo em especial a construir uma razoável estrutura
política à sombra do Estado. Pensemos na China e na enorme exposição do povo e da
sociedade aos seus inúmeros vizinhos (como os Mongóis – um povo sabidamente guerreiro):
M. Fried sugere que se diferenciem nitidamente os Estados primários dos
Estados secundários ou derivados. Os primeiros são os que se puderam
formar, graças a um desenvolvimento interno ou regional, sem a
intervenção do estímulo de outras formações estatais preexistentes; são
os menos numerosos: os do vale do Nilo e da Mesopotâmia – centros das
mais antigas sociedades de Estado -, os da China, do Peru e do México
(Balandier, 1969, p. 144).
Nessas condições, em que até a geografia favorecia os contatos (amigáveis, mas também
hostis), os chineses encontraram uma solução eficaz à sua defesa. Monumental como sua
cultura e território, os chineses construíram as grandes Muralhas da China para se defenderem
– as muralhas que, a essa altura, já circundavam o Estado Chinês. Neste sentido, as Muralhas
da China também são uma oferenda ao Estado32 – pois nunca se viu um Estado tão fortificado
quanto este. Por isso, também seriam chamados de Estados Primários (ou primeiros ou
primitivos).
10. Quando há secessão ou desmembramento (violento ou pacifico)
Os exemplos são variados, mas pode-se ter em mente a regra básica de que, em virtude da
guerra civil, fragmentou-se e se dissolveu a estrutura e a organização social antiga para se
formar um outro Estado. A exemplo da ex-Tchecoslováquia que virou República Theca e
Eslováquia, e que indicam uma fragmentação pacífica, assim como a ex-URSS. São exemplos
singulares a República da Irlanda (Eire), o Estado do Vaticano, o Estado de Israel 33. Já a
antiga Iugoslávia sofreu com a terrível guerra civil até se repartir em Estados menores, como
32
Equiparada talvez às muralhas que protegiam Tróia, diante das forças militares esmagadoras da Grécia antiga.
Este caso ainda envolto muito mais em mitologia do que em indicações históricas e ainda que existam indícios,
como pinturas da época, sinalizadores.
33
Com territórios cedidos, desmembrados do antigo espaço geográfico a que se vinvulavam.
47
Sérvia, Croácia, Bósnia – indicando um desmembramento violento até a total dissolução do
antigo Estado. No início da dissolução, ainda havia um pequeno território designado como
Iugoslávia, mas em seguida este território se dissolveu por completo, de forma que não mais
existe o território da Iugolsávia. No Brasil, tivemos a tentativa da Guerra dos Farrapos ou
Farroupilha. Para alguns autores, no fundo, os fatores essenciais se resumem a quatro:
Examinando o caso dos reinos e impérios africanos, H. Lewis identifica
alguns dos processos que contribuíram, de maneira induzida, para a sua
constituição: 1) a conquista, rápida ou insidiosa, que opera em detrimento
de unidades políticas enfraquecidas (reinos da região interlacustre na
África oriental); 2) a guerra, que provoca, pelo jogo das vitórias e
derrotas, nova divisão política (Gala, na Etiópia); 3) a secessão,
resultante da ambição dos agentes locais do poder central (Mossi) ou da
revolta contra o tributo (Daomé); 4) a submissão voluntária a um poder
estrangeiro considerado eficaz (Shambala, na Tanzânia) (Balandier,
1969, p. 144).
11. Por submissão voluntária surge um outro Estado
Isto ocorre quando um povo abre mão de sua soberania (não necessariamente de seu território
e nem de toda a autonomia) para fazer parte de outro Estado, teoricamente, mais forte ou
desenvolvido. É o caso patente de Porto Rico.
12. Quando há heterogeneidade étnica ou há culturas diferentes
A exemplo da Confederação Helvética, em que se reuniram muitos grupos ou tribos, e do que
resultou o Estado da Suíça. Cada região ainda hoje tem um dialeto próprio e ainda que
estejam submetidos ao Estado central, mantém certa autonomia ao planejarem e executarem a
democracia direta nos chamados cantões.
13. Um dos grupos é mais organizado e se opõe aos demais
Como se vários grupos ou várias famílias de uma mesma região, com o mesmo status,
convivessem em determinado espaço até que uma delas (por algum motivo) se destacasse e
conduzisse à formação do Estado. Podemos tomar o exemplo do Estado Romano, tendo por base
e origem as famílias patriarcais.
14. Um dos grupos tem líderes carismáticos e servem como modelo
Lembrando-se que o carisma advém de uma ascendência religiosa e que a reverência
popular se dá em função desse líder ser considerado um messias ou aquele que traz a verdade, a
luz, o caminho da verdade:
Uma variante das interpretações que se poderiam dizer relacionais, da
gênese dos Estados Primitivos, é proposta por A. Southall, que encara a
heterogeneidade étnica e cultural, num quadro regional, como condição
propícia à realização do processo. A interação de etnias diversificadas, de
estruturas sociais contrastadas, as predispõe a ajustar-se numa estrutura
de dominação/subordinação além da qual as formas do poder estatal tem
a possibilidade de se constituir. Segundo Southall, duas circunstâncias
são favoráveis a essa evolução. Um dos grupos em presença já possui
uma organização política eficaz em grande escala; dispõe dos meios que
permitem organizar politicamente um espaço ampliado e acaba impondo
sua supremacia às microsociedades com as quais se acha em relação. Um
dos grupos encerra líderes de tipo carismático, e estes se tornam os
48
chefes solicitados pelas sociedades vizinhas ou ‘modelos’ pelos quais
elas organizam o poder interno, subordinando-o. Num caso é a
competência a dirigir um espaço político ampliado, no outro é a
qualidade do líder que possibilita o estabelecimento de uma estrutura de
dominação. Estaria, então, formado o germe estatal (Balandier, 1969, p.
145).
Portanto, o líder carismático nada tem de populista, como estamos habituados a ver no
Ocidente e no Brasil. Pode-se reler a história de messias como Maomé e Moisés ou a trajetória
dos vários Aiatolás. Para alguns, obtém-se o mesmo efeito com Dalai Lama. A maioria dos
Estados teocráticos tem essa forte presença de líderes carismáticos. ainda vemos que há uma
nítida competência cognitiva para organizar e para liderar, na forma de Estados baseados na
dominação tradicional e carismática (M. Weber). Por fim, restariam formas mais fortuitas,
impuras, muito ocasionais, sem referências tradicionais que a literatura especializada pudesse
apontar com mais constância.
49
O QUE É O ESTADO?
A corrente majoritária no mundo jurídico associa o Estado à ideologia do Bem Comum,
sacramentando-se com a definição trazida pela encíclica Pacem in Terris, em 1963. O senso
comum também referenda este pensamento, como diriam nossas mães: “O Estado é um conjunto
de pensamentos e ideais mais ou menos iguais dos que lutam por uma vida melhor para todos”.
A lógica não traria conclusão diferente, afinal, por que razão o homem criaria uma instituição
tão poderosa quanto o Estado para lhe fazer o Mal?
Todavia, a análise das relações de poder não demonstra exatamente isso, pois há classes
sociais e grupos de interesses que instrumentalizam o Estado, levando-o a agir de acordo com
motivações menos nobres. O Estado brasileiro, por exemplo, apesar dos avanços institucionais,
normativos e políticos, ainda reflete o passado patrimonialista. O Estado Patrimonial guarda
como segrego de alcova o fato de que as impurezas da cultura das elites dominantes são
estendidas a todo o conjunto da cultura nacional.
Historicamente, o Estado remonta à Suméria, atual Iraque (7000 a.C.). As primeiras
formas de Estado, o chamado Estado Antigo, eram baseadas exatamente na exploração da
explosão da violência, a fim da conquista e da dominação (com penalidades igualmente
lastreadas em repressão e violência)34.
Para a antiga Filosofia do Estado, Aristóteles e Platão, o Estado surge como a
melhor forma para se organizar a sociedade; como organização política para a justiça.
Porém, alguns sofistas acreditavam ser o Estado apenas “o interesse do mais forte”, encontrandose o Estado basicamente ligado ao poder. Em todo caso, mesmo que se ocupasse de grupos de
interesse específicos, o Estado não seria uma oligarquia – acreditavam os gregos –, uma vez que
vários grupos em disputa equilibrariam a balança da justiça.
Indubitavelmente, o homem é um animal político, aprioristicamente, com uma vita activa
que requer movimento e ação (Arendt, 1991, p. 15). Mas, como definiu Hannah Arendt, de modo
preciso, a vita activa é sinônimo de ação política e esta estreita relação constitui o “cerne
humano”. O homem é um animal social, de múltiplas relações de convivialidade, conectividade,
civilidade, isonomia35, isegoria: sem liberdade de expressão, não há manifestação pública e
todos seriam aneu logou: sem direito e sem voz ativa (Arendt, 1998).
Na Idade Média, o Estado passou a ser tido como instância de poder inferior à Igreja;
sendo algo frequentemente Mau (Santo Agostinho) ou como mero reflexo da Igreja (Tomás de
Aquino). Do Renascimento em diante, como status (Maquiavel36) e contrato (Hobbes), o Estado
se separou gradativamente da Igreja: a soberania temporal37 se afirmou na transição para o
primado do Estado (laico).
Com Spinoza, o Estado sintetiza a liberdade, “a comunidade de homens livres, mas
livres porque vivem no Estado segundo o decreto comum”. Neste sentido, o Estado é o
equilíbrio entre religiões, ideologias, classes e indivíduos. Na Ilustração, o Estado é o
caminho da razão e a libertação do obscurantismo (despotismo esclarecido). Já o
romantismo alemão acabou por associar o Estado à Nação, em que o Estado encarnaria o
próprio espírito nacional – e como se não houvesse, por exemplo, contradições entre a
34
Consulte-se em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/6620/o-estado-de-direito-gregario.
O reconhecimento da igualdade formal é essencial ao “reconhecimento do discrímen”.
36
É Maquiavel quem utiliza pela primeira vez o vocábulo Estado, em que o Estado, (status = forte), é uma fortaleza,
firme, constante.
37
A Soberania é um dos elementos de formação do Estado Moderno, contudo, a soberania temporal, como
separação do poder da Igreja, é um dos seus rudimentos mais importantes.
35
50
sociedade e a família (Mora, 2001). Em todo caso, surgiram noções, ideais, elementos e
instituições que perduram até hoje:
 O Estado é status, força que garante a permanência, estabilidade, durabilidade da
organização social (Maquiavel)
 O Estado e suas leis correspondem ao pacto ou contrato anterior (Hobbes)
 O Estado sacramenta a “vontade geral” (Rousseau)
 Como componente do Estado, o povo não é um meio político (Kant)
 O fortalecimento da moral coletiva é o objeto do Estado, como espírito público
(Hegel)
 O Estado é “a organização da sociedade que garante a liberdade” (Spinoza)
 O dever fundamental é garantir o cumprimento dos direitos fundamentais
(constitucionalismo)
Para a Sociologia Política do Estado, o Poder Político tem cada vez mais sido
relacionado ao capital, como exemplo de sua temporalidade. Contudo, o Estado pode ser tido
como uma instituição geral que congrega muitos elementos e outras instituições-parte:
1) Instituições de suporte dos meios de violência e de COERÇÃO
2) Suas instituições são geograficamente delimitadas, como SOCIEDADE
3) A institucionalização das normas sociais e das regras jurídicas gera uma CULTURA
POLÍTICA compartilhável
Neste leque, o Estado é definido como organização social que produz cultura política
por meio da coerção. No entanto, configura-se um paradoxo insolúvel, entre liberdade e coesão
social: “A teoria tradicional preocupava-se com o alcance dos poderes discricionários do Estado”
(Outhwaite & Bottomore, 1996, p. 258). Mas, a realidade obrigou a uma segunda concepção
“infra-estrutural”. Isto é, o poder do Estado é medido a partir de sua capacidade de colaborar
com os vários grupos sociais que o compõe. Este poder colaborativo ainda atuou como limitador
ao poder despótico do Estado.
Na interpretação da Filosofia Jurídica do Estado, o leque é amplo, de Hegel a Kant, de
Del Vecchio a Duguit. Hegel definiu como Estado Ético: “realidade da ideia moral”;
“substância ética consciente de si mesma”; “síntese do espírito coletivo”; “instituição acima
da qual paira somente o Absoluto: a arte, a religião, a filosofia”. Em Kant, o Estado surge
como “a reunião de uma multidão de homens vivendo sob as leis do Direito”. Para Del
Vecchio é “a expressão potestativa da Sociedade”; “o Estado é o laço jurídico ou político ao
passo que a Sociedade é uma pluralidade de laços”. Em Burdieu: “o Estado se forma quando
o poder assenta numa instituição e não num homem. Chega-se a esse resultado mediante
uma operação jurídica que se chama a institucionalização do Poder” (Bonavides, 2012, p.
66-67 – grifos nossos). Também é possível ir além e visualizar a política-social, como o
exercício de uma força política capaz de proporcionar interação e sociabilidade:
Há atualmente a necessidade de ‘deflacionar’ seja a políticacompetência, seja a política-interesses para conquistar de novo um
observatório capaz de voltar a conectar a competência política e os
interesses com o quadro do conjunto das instituições e dos
procedimentos jurídicos nos quais funciona o Estado Moderno, e
também com o quadro dos valores culturais de onde nasceu a liberdade
moderna (Cerroni, 1992, p. 12 – grifos nossos).
51
Neste sentido, o Estado deveria atuar como vetor político de elevação dos critérios de
racionalização e imprimir valores próprios ao processo civilizatório, e a partir de ideias e ideais
como República, Democracia, Estado de Direito, Liberdade, emancipação, consciência e
responsabilidade pública.
Em todo caso, inicialmente, ainda podemos entender o Estado como um tipo
privilegiado de comunhão política, seja como força potestativa, seja como aliança de classes.
Mais frequentemente é definido como o Poder Político organizado, sendo centralizado na
forma de um poder unitário. O que implica em afirmar que o Estado é um poder único e
centralizado (mesmo sob a forma da Federação e dos Estados autônomos). O Estado também é
a instituição por excelência responsável pela organização das demais – o que ressalta a
importância da divisão de funções – para a administração e controle do poder – e congrega como
elementos funcionais o povo, o território e a soberania. Mas isso não explica muita coisa, pois é
preciso, por exemplo, discutir em que consiste a soberania, a quem e de que modo se organiza
esta soberania, em que bases territoriais e culturais abriga-se determinado povo.
Em todo caso, como instituição por excelência, o Estado conhece a outra forma
complementar de exercício do Poder Político, além da regulação da política – neste caso quando
opera como Poder Público. Se o Estado é o Poder Político centralizado (esta também seria uma
definição para soberania), o Estado também é o Poder Público que se manifesta como
organicidade e funcionalidade administrativa.
É como se dissesse que o Poder Público é uma forma especial de conversão do Poder
Político, atuando como prestação de serviços essenciais ao público, ao povo, e à administração
do próprio Estado. Assim, o Estado é a conversão do poder in natura – inerente a qualquer
organização social – em poder organizado para a dominação.
Então, Estado é a transformação da política em ato regimental do poder de se
estabelecer a própria dominação. O que permite entender que o Estado promove a ordem
jurídica por meio da coação física. Mas, acima da força física, o Estado é a organização
política que faz brotar a norma jurídica onde só havia a força. Contudo, o Estado é a
instituição que se prima pelo exercício legítimo da força física e do monopólio legislativo. O
efeito prático é a criação da hegemonia exercida sobre a força física e demais mecanismos de
controle social.
Este é o “fator hegemônico” que açambarca a todos, em toda a cadeia produtiva da
sociedade. Nas sociedades capitalistas, nas democráticas e nas republicanas, é o fenômeno que
ainda contabiliza a educação como instrumento de requisição do “direito a ter direitos”. Assim,
efetivamente para que hegemonia não seja sinônimo de monopólio, o emprego do termo
hegemonia deveria seguir o princípio grego:
O termo hegemonia deriva do grego eghestai, que significa “conduzir”,
“ser guia”, “ser líder”, ou também do verbo eghemoneuo, que significa
“ser guia”, preceder, “conduzir”, e do qual deriva “estar à frente”,
“comandar”, “ser o senhor”. Por eghemonia, o antigo grego entendia a
direção suprema do exército. Trata-se, portanto, de um termo militar38.
Hegemônico era o chefe militar, o guia e também o comandante do
exército. Na época das guerras do Peloponeso, falou-se da cidade
hegemônica para indicar a cidade que dirigia a aliança das cidades gregas
em luta entre si (Gruppi, 1978, nota 01).
38
E como serviu bem às alegações da Razão de Estado, da modernidade em diante!
52
Desse modo, o Estado é a instituição que exerce o monopólio (legítimo) da força
física, mas também deveria ser o guia e o suporte dos institutos democráticos e
republicanos. O que nos leva a concluir que o Estado é mais do que um contrato de poder ou
de dominação, mesmo porque a dominação pode rapidamente se converter em opressão e até
expropriação ilegítima de bens, valores, tradições e de graves violações de direitos.
É certo que uma escolha política anterior determinou o Estado – se foi por meio de um
contrato, esta é outra questão; porém, ao mesmo tempo, o Estado é a instituição capaz de
transformar a política em norma e regimento. Desse modo, o Estado faz conviver e legitima
as regras sociais e as normas jurídicas. Portanto, o Estado é o poder organizado para a
dominação, para o fato de que a política impõe finalidades, meios e consequências. Vendose que o Estado é o árbitro entre meios e fins políticos. Portanto, utilizar a ágora para
aniquilar a liberdade e o próprio Estado de Direito é como retroagir a um Estado pré-moderno,
abrindo brecha a muitos usos/abusivos do poder. O que nos leva a concluir como em Hannah
Arendt que o Estado Constitucional é regulado pela soberania popular:
O que hoje entendemos por governo constitucional, não importa se de
natureza monárquica ou republicana, é, em essência, um governo
controlado pelos governados, restringido em suas competências de
poder e em sua aplicação de força. É indiscutível que a restrição e
controle ocorrem em nome da liberdade, tanto da sociedade como do
indivíduo; trata-se de estabelecer limites, os mais amplos possíveis e
necessários, para o espaço estatal do governar, a fim de possibilitar a
liberdade fora de seu espaço (Arendt, 1998, p. 75).
A principal função pública do Estado é assegurar regularidade à organização social que
lhe deu origem. A fim de assegurar o controle social – instaurando níveis suportáveis de
desregramento e infrações sociais, como normais – o Estado conta com a Administração Pública.
Por isso, o Estado ainda é Administração Pública e gestão de políticas públicas.
De modo amplo, definindo-se o Estado como organização social para a normalidade,
pode-se ver que o Estado regulariza os embates políticos e ideológicos e assim limita
juridicamente os conflitos de interesse. Obviamente, o que é normal ou não será estabelecido
pelos grupos dominantes em exercício no próprio Poder Político.
Por fim, o Estado é uma forma especial de organização da política, da normatização
jurídica e das relações sociais. De tal forma que o Estado se converte em soberania política,
jurídica, organizacional. Portanto, ainda pode-se dizer que o Estado, como poder soberano,
sofre uma divisão e passa a conhecer outras formas de limitação ao poder central, por meio da
soberania interna e externa. Desde as formas iniciais à compleição mais atual do Estado
Moderno, percebe-se a racionalidade crescente como componente lógico da política centralizada.
53
COMPONENTES OU ELEMENTOS DO ESTADO
Portanto, define-se o Estado como o Poder Político organizado em torno, basicamente, de
três elementos: povo, território, soberania39. Aliás, esta sequência é essencial, pois sem que um
agrupamento étnico tivesse adquirido determinado nível de adensamento e identidade cultural,
tornando-se sedentário em primeiro lugar, não haveria território a ser definido (o governo se
fundamenta na gestão desta soberania); tudo seria apenas uma porção de terra maior ou menor, e
sem esta categorização não haveria porque defender a soberania de algo que não pertence ao
povo, como seu território. Em todo caso, de modo sumário, pode-se dizer que o Estado é
formado por elementos de duas categorias de natureza diferente:
1) Elementos Objetivos
a. Elemento Humano (Povo)
b. Elemento Físico (Território)
2) Elemento Subjetivo (Soberania)
Mas, por que tratamos de estruturas essenciais ou estudamos elementos básicos de
formação do Estado, como componentes obrigatórios na análise do cientista político e do jurista?
Essas “estruturas” são destacadas, ao invés de outras, por duas razões: a) especificamente
para diferenciar a formação política alcançada com a instituição do Estado de outros modelos de
organização – ainda que politizados, mas que não adotem os componentes estatais; b) porque
todos os Estados desde então apresentaram esses elementos comuns.
A partir da análise desses elementos de formação do Estado, por exemplo, diferencia-se a
instituição que concentra o Poder Político (Estado) de outras comunidades políticas, como as
comunidades de natureza ou primitivas, os clãs, as lideranças tribais, os conselhos de anciãos, em
que, apesar de eminente e até intensa atividade política, não se conhece exatamente a
concentração do Poder Político40. Pelos mesmos motivos distingue-se o Estado de todas as
formas “politizadas” mas não estatais, algumas até mesmo ilícitas (como o crime organizado) ou
de natureza revolucionária, a exemplo das Forças Aramadas Revolucionárias da Colômbia –
FARCs.
Neste sentido, como exemplos da necessária avaliação da concentração do Poder Político,
podemos tomar como exemplo o enorme esforço de Gengis Khan para organizar seu povo e
conseguir a concentração do Poder Político, em torno de uma liderança soberana. O líder, que
levaria à unificação da Mongólia, invocava o dever supremo à nação como característica bem
definida nos grandes construtores de Estados: “Se o meu corpo morre, deixa o meu corpo morrer,
mas não deixe morrer o meu país” (frase atribuída a Gengis Khan).
O próprio Maquiavel debateu-se arduamente para ver a Itália unificada, depois Hobbes,
em luta para não sucumbir à guerra civil na Inglaterra. Por isso, delimitou-se historicamente que
os elementos distintivos do Estado são em número de três: povo, território, soberania. Para uma
análise institucional e jurídica mais estendida ou complementar à análise histórica, com foco no
atual estágio do Estado Democrático, entretanto, devemos pensar em todos os seus elementos.
Na verdade, para melhor compreender o sentido global do Estado Moderno é preciso resgatar a
39
Entendendo-se o governo como administração ou gestão do Poder Político a fim de se atender aos desígnios da
soberania institucional.
40
Exemplo muito interessante desse tipo de organização e de manifestação política, intensamente vinculatória entre
as demandas de um grupo com o mundo exterior, verificou-se na década de 1990, em Chiapas/México, com os
zapatistas. A estrutura de poder mantinha um porta-voz institucional, legitimado, que era o subcomandante Marcos,
mas sempre atento e vinculado em suas ações às manifestações e determinações do conselho de anciãos que
sintetizavam o espírito do povo indígena.
54
Teoria Geral do Estado, como parte da Ciência do Direito, o próprio conceito de Ciência Política
e as estruturas sociais e culturais anteriores à formação do Estado-Nação. Para em seguida, após
análise da Santíssima Trindade do Estado Moderno (Povo-Território-Soberania), buscar a
compreensão maior das estruturas que compõem o Estado Atual.
Em suma, formado por elementos objetivos e subjetivos, materiais e históricos, o Estado
é uma instituição que se diferencia das demais fabricações humanas porque tem na organização
do poder uma meta infalível. Como já vimos, sem povo, território e soberania não há Estado,
ainda que possa ser pujante a política (como em comunidades tribais), a conquista territorial e a
manutenção do poder (a exemplo das formações mafiosas).
Entre tantas outras divergências jurídicas, morais, sociológicas e políticas, os elementos
de formação do Estado são uma constante na formação política, inicialmente no Ocidente, a
partir do Renascimento e da constituição do Estado-Nação, e depois espalhando-se por todo o
globo terrestre. Não há hoje no mundo Estado que não reconheça, inclusive constitucionalmente,
a exigência desses elementos como essenciais à administração do Poder Político em seu território
e sob a retaguarda do povo. Por isso, deve-se analisar os elementos de formação do Estado
separadamente e em maior profundidade.
Estado Moderno e poder organizado
Antes, contudo, cabe retomar parte da história de formação do próprio Estado Moderno.
Em resposta ao processo de expansão do capital no continente europeu, manifestando-se pela
necessidade de haver uma unificação do poder, com maior centralização e concentração de
forças, o Estado foi firmado como este guia a fim de que os interesses de classe estivessem mais
equilibrados. O Estado centralizado, no contexto do século XV, era atinente aos propósitos do
absolutismo. O rei, como salvaguarda da soberania, não poderia sofrer restrições sob pena de o
poder central não se ver mais como poder concreto.
Para este fim, foram desenvolvidas algumas instituições e modulações sociais e culturais:
1) unificação da língua e exigência de uma moeda comum (símbolos nacionais); 2) formação de
uma burocracia profissional, com destaque para a administração racional do poder central; 3)
organização de um poder militar capaz de reunir as forças públicas; 4) centralização política e
monopólio legislativo; 5) oficialização de comunicados e informes gerais, institucionais, a fim de
que houvesse uma maior regulamentação/regularização (a normatização leva à normalização); 6)
definição de um sistema tributário como requisito para manter a arrecadação regular de fundos
necessários à manutenção do Estado e de seu aparato organizacional.
De modo decisivo, impositivo, em 1648, o Tratado de Westfália colocaria fim à Guerra
dos Trinta Anos, demarcando pela primeira vez o território como elemento de regulação da
soberania dos Estados. O tratado regulamentou a organização política alemã e determinou limites
territoriais especialmente para França, Alemanha e Suíça. O que, certamente, permite-nos ver
como se estruturam o que podemos denominar de elementos políticos de formação do Estado.
Em síntese, pode-se definir o Estado como a unificação e centralização do Poder Político.
Entendendo-se o poder, basicamente, como resultante de variáveis ou características de
afirmação. Portanto, como fundamento do Estado, o poder é:
Relação
Posse
Dominação
Organização
Potência (virtus)
Capacidade (potência em movimento)
55
Instrumento (meio para ...)
Finalidade: a) poder social; b) valor egoísta
Estrutura: órgãos, instituições
Hierarquia
Disciplina
Coerção (erga omnes)
O poder, em uma frase, é o resultado da ação política. Porém, o que significa esta frase
aparentemente tão óbvia?
Elementos políticos de formação do Estado
Por definição, o Estado é uma instituição totalizadora, completa e fechada:
“Caracterizado essencialmente pela ordenação jurídica e política da sociedade, o Estado constitui
o regime de associação humana mais amplo e completo de todos os que se conhecem na história
da humanidade” (Borja, 1998, p. 394 – tradução livre). Neste sentido, reagindo como um “todo”,
como totalidade política e institucional, o Estado não deve admitir dissidências, dissensões e por
ser um sistema fechado não se encontra aberto para questionamentos. A ideia de ser uma
instituição completa indica que se trata de uma instituição que, teoricamente, não precisaria de
reparos substanciais, mas apenas de manutenção, havendo permanência da base e de seus
principais implementos.
Como instituição totalizante o Estado asseguraria sua própria sobrevivência com a
imposição de toda a força política e moral que conseguisse encontrar (faria valer a regra de que
“os fins justificam os meios”). À necessidade de se empregar esses recursos denominou-se de
Razão de Estado e ao estofo jurídico que o protege legalmente dos demais Estados, deu-se o
nome de soberania, como poder absoluto sobre seu povo, em determinado território.
Para um jurista conservador e pragmático como Austin, não se trata de justificar qualquer
forma arbitrária de sustentação do poder, mas sua noção de soberania política (una e ilimitada41
juridicamente) pode ter sugerido a muitos tal presunção do poder. De forma resumida, seu
pensamento revelou que:
O soberano [...] deve possuir dois atributos essenciais, a saber,
indivisibilidade e ilimitabilidade [...] O soberano deve ser uma
unidade [...] Além disso, não poderiam haver limitações à soberania, pois
tais limitações só resultariam da obediência a um poder externo [...] ou
seriam auto-impostas, em cujo caso só poderiam corresponder a limitações
morais e não legais e, portanto, como matéria de direito positivo, poderiam
sempre ser ignoradas [...] Pois Austin afirma que todas as chamadas
“leis” constitucionais que tratam da estrutura do poder soberano não
são realmente legais, pois quem é soberano será determinado, em
última instância, pelo fato de obediência. Ele também afirma que
quaisquer tentativas de restrições impostas pelo Parlamento ao poder
legislativo, seja qual for a força moral de que possam se revestir, são
realmente inoperantes no direito estrito. Isso significaria, por exemplo, que
uma cláusula num estatuto, segundo a qual uma emenda só deve ser
efetuada por um procedimento especial – como, por exemplo, por uma
maioria de dois terços, ou com a sanção de um referendo, ou com o
consentimento de algum outro órgão – não é realmente lei, mas, no
41
Para o detentor do Poder, o comando do Direito, aparentemente, é ilimitado.
56
máximo, o que Austin chama “moralidade positiva” (Lloyd, 2000, p. 220221 – grifos nossos).
Portanto, o elemento político mais distintivo do Estado é a capacidade de organização do
poder, inicialmente enquanto organização social – um tipo de poder social em que a diversidade
e a hierarquização poderiam ser incipientes – e, posteriormente, ainda mais no Estado Moderno e
sob a forma própria do Poder Político, quando se passou a entender o Poder Político também
como organização social, mas sobretudo como forma de dominação. Esta dominação política
substituiria, inclusive, outras formas de dominação, como a religiosa (mágica) ou apenas
tradicional e carismática.
Por Poder Político se entende tecnicamente o “domínio das formas e das modalidades de
governo”. De modo mais amplo, no entanto, assim como a família (o 1º grupo de socialização), o
Estado desempenhará um papel fundamental na socialização; desde a própria preservação das
demais instituições até a inserção dos indivíduos adultos, em idade de maioridade moral e
política, nas principais atividades de cunho político (Azambuja, 2001). Neste sentido, o Estado,
como poder organizado, é a realização da sociedade política.
Contudo, nesta transformação evolutiva, civilizatória, a fase seguinte consistiria em
impor restrições ao Poder Político, exatamente como este fizera em relação às mitologias do
próprio poder. O direito que provoca um efeito constrangedor ao ímpeto de mera subjugação do
povo, em tese, é um elemento de autoproteção social contra o Estado. Mesmo sob a forma do
Poder Político, que já subentende uma organização regular, sistêmica da atividade política, o
poder passaria por limites interpostos com mais rigor.
Com a interposição de elementos jurídicos ao modelo inicial do Estado (Poder Político)
os cidadãos passaram a conhecer dos direitos, ao contrário de quando eram subjugados e só
obedeciam a deveres instituídos por outros (Bobbio, 2000).
Organização funcional do Poder Político
Por fim, na delimitação deste tópico geral de formação do Estado, pode-se dizer que
desde o início, o Estado Moderno se modelou por duas condições básicas: centralização do poder
político e organização profissional das forças e capacidades necessárias à Administração Pública.
E é este sentido de forte organização que é ressaltado por Konrad Hesse (1998) e Hermann
Heller. Divergindo do clássico Jellinek (2000), Heller (1998) vê na organização um elemento
significativo, central do Estado, absolutamente não-subjetivo, configurando-se a seguinte
estrutura funcional: a ordenação/organização de um povo, em determinado território, ressalta a
necessidade de haver organização própria do poder, na forma de órgãos públicos. De acordo com
sua definição:
O Estado se considera como um grupo territorial de dominação: o Estado
se diferencia de todos os outros grupos territoriais de dominação por seu
caráter de unidade soberana de ação e decisão. O Estado está acima de
todas as demais unidades de poder que existem em seu território pelo fato
de que os órgãos estatais “capacitados” podem reclamar, com êxito
normal, a aplicação a eles exclusivamente reservada do poder coativo, e
também porque estão em condições de executar suas decisões frente aos
que se oponham a elas, com o uso de todo o poder físico coativo
disponível na organização estatal e de maneira unitária [...] O Estado é
soberano unicamente porque pode dotar sua organização de uma validez
peculiar frente a todas as demais ordenações sociais, vale dizer, porque
57
pode atuar sobre os homens que com seus atos lhe dão uma realidade
muito distinta do que fazem as demais organizações [...] O Estado não é
uma ordem normativa; tampouco é o “povo”; não está formado por
homens, senão por atividades humanas [...] O Estado, enfim, tampouco
pode ser identificado com os órgãos que atualizam sua unidade de
decisão e de ação [...] Por tal motivo, a organização estatal é aquele
status renovado constantemente pelos seus membros, ao que se juntam
organizadores e organizados42. A unidade real do Estado cobra existência
unicamente pelo fato de que um governo disponha de modo unitário
sobre as atividades unidas, necessárias para a autoafirmação do Estado
(Heller, 1998, p. 301 – grifos nossos).
Assim, Heller contrapõe-se a Jellinek (2000), negando-se a identificar as pessoas que
possuem poder com o próprio Estado: “Desde há muito tempo as chamadas teorias realistas do
Estado querem reduzi-lo às pessoas que detém o poder e cuja realidade física é tangível,
identificando-o, pois, com os órgãos de dominação” (Heller, 1998, p. 302). Portanto, se o poder é
relação, pode-se dizer que o Estado é organização. Veremos os tópicos assinalados
separadamente e de modo a aprofundar os conceitos, recuperando a importância da Ciência
Política e da Teoria Geral do Estado, além dos conceitos básicos de poder e de Poder Político.
Analisar o Poder Político, por sua vez, é privilegiar a análise do Estado, uma vez que o Estado
Moderno é a forma mais característica de condensação do Poder Político.
42
Status como uma espécie de pacto de adesão, comunhão, em que obedecemos ao desejo comum e assim
concebemos o projeto de convivialidade em uma estrutura política forte, decididamente organizada e pronta ao
exercício de um forte poder de atração.
58
DEFINIÇÕES DE ESTADO
A seguir, há indicações ou definições que se aplicam ao Estado como instituição
permanente da Humanidade ou em suas modalidades mais convencionais, como Estado
Moderno, Estado de Direito, Estado Constitucional e Estado Democrático de Direito. As
definições ou proposições que não carregam indicação bibliográfica são reflexões do autor, ou
seja, não são citações. O objetivo é apenas de fixar conceitos ou facilitar a primeira abordagem
de assuntos complexos. Inicialmente, pode-se dizer que o Estado é Primordial (urstaat43):
1. Corresponde à organização centralizada e hierarquizada do Poder Político.
2. É a corporação de um povo, assentada num determinado território e dotada de um poder
originário de mando (Jellinek, 2000).
3. É uma ordem da conduta humana (Kelsen, 1998).
4. Para Hegel, o Estado é a síntese dos mais elevados elementos éticos (Bobbio, 1989).
5. É o devir da razão (Deleuze, 2005, p. 23).
Para Aristóteles, a finalidade do Estado é a Polis. Pode-se dizer, “metaforicamente”,
que Aristóteles já se indagava sobre a Razão de Estado:
6. Em geral, chamamos interesse público tudo o que é regulado pelas leis para a
conservação dos Estados [...] O mais importante meio para a conservação dos Estados,
mas também o mais negligenciado, é fazer combinarem a educação dos cidadãos e a
Constituição” (Aristóteles, 1991, p. 217-218).
Nesta mesma lógica, vemos algumas reflexões e lições de Cícero, vendo que o Estado é a
República, como forma de não se permitir o uso de meios de exceção:
7. a) Os fundadores de Estados estão próximos da divindade; b) A felicidade está na perfeita
Constituição Política; c) Na República predomina a Justiça; d) A maior necessidade é a
virtude; e) O trabalho e a virtude levam à glória; f) Governar a República é converter a
teoria em prática; g) O Governo com justiça eleva a “herança da humanidade”; A virtude
está em combater as injúrias e a iniquidade (Cícero, s/d).
Diferentemente, firmando uma Ciência Política ou ciência do Estado, que não fosse mais
refém da Filosofia do Estado, Maquiavel retrata o Estado como uma instituição forte,
definitiva (status). Para Maquiavel, o homem de virtù é aquele que é capaz de formar alianças
que perduram na formação dos Estados:
8. Entretanto, aquele que depende menos da sorte conserva-se mais no poder [...] Mas, para
me deter naqueles que pelo próprio valor e não pela sorte se tornaram príncipes, declaro
ser os mais excelentes Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu e outros semelhantes [...] E
examinando suas obras e suas vidas, constata-se que da sorte só receberam a
43
A história da civilização Suméria ilustra a evolução da ideia de governo urbano e sua posterior transformação A
primeira fase (3360 a 2400 a.C.) coincide com a construção de Cidades-Estados fortificadas. Já a segunda fase (2400
a 2350 a. C.) narra o surgimento do primeiro Estado Antigo documentado: “Então, o repentino surgimento de um
homem importante inaugura uma nova fase [...] O reinado de Sargão I não se baseou na relativa superioridade de
uma Cidade-Estado sobre outra: ele estabeleceu um império unificado, integrando as cidades num todo [...] Com
Sargão I surgiu um verdadeiro Estado, com autoridades leigas e sacerdotais completamente separadas [...] Se o
poder estatal se originou dos desafios e das necessidades especiais da Mesopotâmia, era dever do governante
organizar grandes obras de irrigação, controlar as enchentes, reunir mão-de-obra para fazer tudo isto e ainda
conseguir soldados. Quando as armas se tornaram mais complexas e caras foi preciso maior profissionalismo”
(Roberts, 2003, pp. 90-91).
59
oportunidade que lhes proporcionou a matéria em que puderam introduzir a forma que
lhes agradava. Sem tal oportunidade o valor de seus espíritos se teria perdido e sem tal
valor a oportunidade teria surgido em vão44 (Maquiavel, 1996, p. 67).
Neste sentido, o Estado é um mito. O mito do Estado é aquele de uma força movedora e
executora de tarefas infatigáveis em razão de objetivos maiores:
9. O mito não pode ser descrito como uma simples emoção porque é a expressão de uma
emoção. A expressão de um sentimento não é o próprio sentimento — é a emoção
tornada imagem (Cassirer, 2003, p. 64)
Mas, todo Mito precisa de realidade e é isto que Maquiavel precisou. Porém,
contrariamente, como processo de institucionalização do poder, o Estado surge apenas uma
criação de um tipo específico de sociedade, não se constituindo em condição humana: O mundo
moderno, ao contrário, é construído à base de um poder como dominação. Excluindo-se as
sociedades primeiras — sociedades:
10. Sem fé, sem lei, sem rei [...] Inversamente, toda sociedade não-primitiva é uma sociedade
de Estado (Clastres, 1990, p. 143).
Para o moderno mundo civilizado do Ocidente, o Estado é pacto e coerção.
Consequentemente, a soberania pertence ao Estado Absolutista:
11. Aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer
como seus os atos e decisões de alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um
novo pacto no sentido de obedecer a outrem, seja no que for, sem sua licença (Hobbes,
1983, p. 107).
Em contexto e sentidos não muito divergentes Hobbes, Francis Bacon acreditava no
Estado-nação, mas também justificou teoricamente o absolutismo. Além disso, Bacon produziu
uma pequena obra Nova Atlântida é mais um tipo de anti-república:
12. Pois, bem o Estado vos concedeu licença para permanecerdes em terra pelo espaço de
seis semanas [...] Por isso, não vos preocupeis, o Estado vos manterá durante o tempo que
ficardes, nem tampouco precisais abreviar a estadia por isso [...] E se tiverdes qualquer
outro pedido a fazer, não oculteis. Pois percebereis que, qualquer que seja a resposta, não
ficareis sem a nossa proteção (Bacon, 2005, p. 228).
Mais especificamente, em Locke, vimos que a extensão do poder civil decorre da
profundidade e da fertilidade do commonwealth, capaz de refrear a ameaça e de se opor à
tirania. Em síntese, o Estado como poder civil é o grande objetivo político da humanidade. Mas,
Locke ainda definiria o Estado Laico:
13. É que o Estado não pode atribuir nenhum novo direito à igreja como também não,
inversamente, a igreja ao Estado. Assim, a igreja, quer o magistrado a ela adira ou a
abandone, permanece sempre a mesma que antes, uma sociedade livre e voluntária [...] O
poder civil é o mesmo em toda a parte e não pode conferir uma autoridade eclesiástica
maior a um príncipe cristão do que a que pode conferir a um príncipe pagão, isto é, não
pode conferir nenhuma [...] Ninguém, nenhuma igreja e até nenhum Estado tem, pois,
qualquer direito de atentar contra os bens civis de outrem nem, sob pretexto da religião,
44
A esta passagem, segue-se o seguinte comentário de Napoleão, como general: “O valor acima de tudo”.
60
de o despojar das suas posses terrestres. Quem pensar de outra maneira, gostaria que
pensasse no número infinito de processos e de guerras que assim proporciona ao gênero
humano; no incitamento à pilhagem, ao assassínio, aos ódios eternos: em nenhum lado a
segurança ou a paz e menos ainda a amizade, poderão se estabelecer e conservar entre os
homens, se houvesse de prevalecer a opinião de que a soberania se funda na graça e que a
religião deve propagar-se pela força e pelas armas (Locke, 1987, pp. 97-99).
Ao definir a legitimidade, Rousseau quer conservar o justo direito da resistência, no
Estado Civil. Ironicamente, o Estado deveria lhe assegurar o direito de reclamar da desigualdade
imposta pelo próprio Estado:
14. Se seguirmos o processo da desigualdade nessas diferentes revoluções, verificaremos ter
constituído seu primeiro termo o estabelecimento da lei e do direito de propriedade; a
instituição da magistratura, o segundo; sendo o terceiro e último a transformação do
poder legítimo em poder arbitrário [...] ver-se-iam os direitos dos cidadãos e as liberdades
nacionais apagarem-se pouco a pouco e as reclamações dos fracos serem consideradas
como murmúrio sedicioso [...] É do seio dessa desordem e dessas revoluções que o
despotismo, elevando-se aos poucos sua horrenda cabeça e devorando tudo o que
percebesse de bom e de sadio em todas as partes do Estado, conseguiria por fim esmagar
sob seus pés as leis e o povo, e estabelecer-se sobre as ruínas da república. Os tempos que
precederiam esta última mudança seriam períodos de agitações e de calamidades [...] pois
em todo lugar onde reina o despotismo, cui ex honesto nulla est spes (Rousseau, 1988, p.
81-84).
A Revolução Francesa celebraria a liberdade radical, contra toda e qualquer forma de
tirania, o que se conheceu como Estado Legal:
15. A liberdade, a igualdade, a justiça são os princípios necessários daquilo que não é
depravado; todas as convenções repousam sobre elas como o mar sobre sua base e contra
suas margens [...] na França não há poder, falando sensatamente; só as leis comandam,
seus ministros impõem-se a obrigação de prestar contas uns aos outros e todos juntos à
opinião, que é o espírito dos princípios [...] Os poderes devem ser moderados, as leis
implacáveis, os princípios irreversíveis45. A opinião é a conseqüência e a depositária dos
princípios. Em todas as coisas o princípio e o fim se tocam onde estão prestes a se
dissolver. Há uma diferença entre o espírito público e a opinião: o primeiro é formado
pelas relações de constituição ou da ordem, e a opinião é formada pelo espírito público
(Saint-Just, 1989, p. 50-52).
Por vezes, alegando-se a necessidade da organização da própria força política, o Estado
se converte em absolutismo e ainda que esteja envolto em algum direito. O Estado-Força
transforma a necessidade em Estado de Necessidade:
16. Quem quer que queira reinar sobre os homens busca rebaixá-los, surrupiar-lhes a
resistência e os direitos, até tê-los impotentes diante de si, feito animais [...] Tudo o que
se come é objeto de poder46 (Canetti, 1995, p. 208- 218).
45
46
Liberdade, Igualdade, Justiça formam o tripé da doutrina dos Direitos Humanos.
A próxima guerra mundial será por água?
61
Por tudo isso, o Estado Moderno é uma construção, ficção ou artificialidade da vida
moderna e, como Estado Racional, é um equivalente de poder que se mantem pela razão:
17. O Estado exerce o monopólio do uso legítimo da força física (Weber, 1979)
18. A modernidade política implica a substituição da autoridade descentralizada, típica do
feudalismo, pelo Estado central, dotado de um sistema tributário eficaz, de um exército
permanente, do monopólio da violência, de uma administração burocrática racional. A
modernidade cultural implica a secularização das visões do mundo tradicionais [...] e sua
diferenciação em esferas de valor [...] até então embutidas na religião: a ciência, a moral,
o direito e a arte (Rouanet, 2002, pp. 237-8).
Já quanto ao Estado Moderno ser fruto do capitalismo, alega-se que:
19. A Razão de Estado compõe-se de uma articulação orgânica de povo, território e
soberania.
20. O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê (Ausschuss) para
administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa (Marx & Engels, 1993, p. 68).
21. O Estado moderno – na qualidade de sistema de comando político abrangente do capital –
é, ao mesmo tempo, o pré-requisito necessário da transformação das unidades
inicialmente fragmentadas do capital em um sistema viável, e o quadro geral para a
completa articulação e manutenção deste último como sistema global (Mészáros, 2002, p.
123-5).
A partir da Revolução Industrial, mas, sobretudo, no pós-Segunda Guerra Mundial,
constitui-se em escala global um Estado Cientificista, como um conjunto complexo e
contraditório, em que se operam a afirmação histórica do direito à educação e a negação do
“direito à exclusão”. A modernidade representava a fase mais desenvolvida da divisão social do
trabalho, momento em que se articulam, ajustando-se às necessidades diversas da produção
industrial, o trabalho manual e o intelectual, na forma da função homogeneizadora e da função
diferenciadora. O papel do Estado seria, portanto, o de regular os contratos estabelecidos e
garantir seu cumprimento.
22. Para Durkheim, a competição capitalista não é o elemento central da ordem industrial
emergente, e algumas das características sobre as quais Marx pusera grande ênfase, ele
via como marginais e transitórias. O caráter de rápida transformação da vida social
moderna não deriva essencialmente do capitalismo, mas do impulso energizante de uma
complexa divisão de trabalho, aproveitando a produção para as necessidades humanas
através da exploração industrial da natureza. Vivemos numa ordem que não é capitalista,
mas industrial (Giddens, 1991, p. 20).
Estado e Direito tem uma Função Homogeneizadora, mas antes de tudo o Estado de
Direito é força:
23. Não somente a força é a companheira inseparável do direito, mas é da força que
surge o direito [...] Mas logo se descobriu que era geralmente mais econômico não
pretender a completa aniquilação do adversário; daí surgiram as instituições da
escravidão, os contratos e os tratados de paz, primeiras formas de direito. Todo tratado
é, com efeito, uma ordem que determina um limite para o poder do conquistador
(Durkheim, 2003, p. 51 – grifos nossos).
62
É difícil falar-se de um Estado anticapitalista, mas, como Estado Socialista, ou embalado
pelo socialismo, pode-se falar de uma origem ideológica do direito socialista, para usar de uma
frase, haveria possibilidade de se pensar um “socialismo jurídico”:
24. As reivindicações resultantes dos interesses comuns de uma classe só podem ser
realizadas quando esta classe conquiste o poder político e suas reivindicações alcancem
validade universal sob a forma de leis. Toda classe em luta precisa, pois, formular suas
reivindicações em um programa, sob a forma de reivindicações jurídicas. Mas as
reivindicações de cada classe mudam no decorrer das transformações sociais e políticas,
são diferentes em cada país, de acordo com as particularidades e o nível de
desenvolvimento social (Engels & Kautsky, 1991, p. 65).
De outro modo, por isso também é possível dizer-se que o Estado é um fenômeno
cultural:
25. O Estado corresponde à atualização dos valores comunitários por intermédio do Poder, e
da legitimação concomitante do Poder graças à atualização dos valores vividos pela
comunidade (Reale, 2000, p. 375-6).
Pode-se acreditar que o Estado é a síntese da vida moderna, ou seja, trata-se da
estrutura do Estado Moderno que sobrevive nos dias atuais:
26. Estado é a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado
em determinado território (Dallari, 2012, p. 122).
Juridicamente, o Estado de Direito se define como estruturas ou garantias institucionais
contra o Poder Político, isto, como segurança jurídica de que não haverá abuso do poder:
27. O Estado de Direito é uma ordem político-jurídica formada pelo Império da Lei, pela
consagração dos direitos individuais e separação dos poderes.
28. Por Estado de Direito se deve entender um Estado que, em suas relações com seus súditos
e para a garantia do estatuto individual, submete-se ele mesmo a um regime de direito,
porquanto encadeia sua ação em respeito a eles, por um conjunto de regras, das quais
umas determinam os direitos outorgados aos cidadãos e outras estabelecem previamente
as vias e os meios que poderão se empregar com o objetivo de realizar os fins estatais:
duas classes de regras que têm por efeito comum limitar o poder do Estado subordinandoo à ordem jurídica que consagram (Malberg, 2001, p. 449-461).
Do direito regulador do Poder Político, a partir da afirmação da tese da divisão dos
poderes, consagra-se o conhecido Estado-Juiz. Na modernidade, o Estado-Juiz se interpõe entre a
forma-Estado (coercitiva, repressiva, sob o capital) e a forma-Direito consensual:
29. A lei, por si, pode apenas, e sempre sob a condição de se apoiar na vontade social
preponderante, estabelecer essa limitação, por assim dizer, negativa: que se não façam
vigorar normas incompatíveis com as suas, derivadas de outras fontes, de tal maneira que
fiquem sempre salvas a coerência e a unidade orgânica do sistema (Vecchio, 2005, p.5657).
Historicamente, confunde-se razoavelmente o Estado Constitucional à luta pelo direito.
Em todo caso, há uma correspondência com a necessidade de se afirmar as garantias jurídicas na
Constituição:
63
30. O Estado Constitucional implica um comprometimento do Estado administrador pelos
órgãos legisladores, um “auto-comprometimento do Estado”, e, como sua consequência,
direito dos súditos contra o Estado como tal, “direitos subjetivos, públicos” (Radbruch,
1999, p. 167-168).
31. Estado Constitucional significa Estado assente numa Constituição reguladora tanto de
toda a sua organização como da relação com os cidadãos e tendente à limitação do poder
(Miranda, 2000, p. 86).
O Estado é organização. Desde meados do século XX, a estrutura estatal vem sofrendo
embargos propriamente democráticos ao poder central, em que o Poder Político surge em
correspondência à sociedade:
32. A organização estatal é aquele status renovado constantemente pelos seus membros, ao
que se juntam organizadores e organizados (Heller, 1998, p. 301).
Na atualidade, como concepção jurídica, o Estado é definido como modelo
paradigmático de organização e de exercício do poder:
33. É um modo especialíssimo de organização do pensamento jurídico, de racionalização do
poder, de organização e de enquadramento das relações humanas (Alland & Rials, 2012,
p. 702).
O Estado Democrático de Direito tem aproximadamente quatro décadas. Trata-se do
Estado de Justiça, como definido por Elías Díaz:
34. Socialismo e democracia coincidem em nosso tempo e institucionalizam-se
conjuntamente com a proposta do chamado Estado democrático de Direito: o socialismo
como resultado da superação do neocapitalismo próprio do Estado social de Direito [...]
Isto significa que o velho Estado de Direito, sem deixar de seguir sendo-o, terá que se
constituir em Estado de justiça [...] Estado de Justiça tem, sem dúvida, um sentido muito
mais abstrato. Ambos os termos só podem considerar-se intercambiáveis se os
entendemos no sentido de que o Estado democrático de Direito é hoje o Estado de
Justiça, quer dizer, o Estado que aparece atualmente como legítimo, como justo, em
função precisamente de alguns determinados valores históricos que são a democracia, o
socialismo, a liberdade e a paz47 (Díaz, 1998, p. 133-134).
No Estado Democrático de Direito, desde a década de 1970, em luta pelo direito e
contra o fascismo recalcitrante, afirmou-se a somatória entre Estado de Direito e democracia
(liberalismo+socialismo):
35. O moderno conceito de Estado Democrático de Direito atrelou-se conceitualmente ao
socialismo e à Justiça Social (Canotilho, s/d).
36. O Estado Democrático de Direito é formado pelo: a) princípio da constitucionalidade,
que exprime, em primeiro lugar, que o Estado Democrático de Direito se funda na
legitimidade de uma Constituição rígida, emanada da vontade popular, que, dotada de
supremacia, vincule todos os poderes e os atos deles provenientes, como a garantia de
atuação livre de regras da jurisdição constitucional; b) princípio democrático que, nos
termos da Constituição, há de constituir uma democracia representativa e participativa,
47
É óbvio que o Estado de Exceção não coaduna com nenhum desses valores e pressupostos, e ainda que possa ser
aventado em sua defesa será sempre uma ação ilegítima.
64
pluralista, e que seja a garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais (art.
1º); c) sistema de direitos fundamentais que compreende os individuais, coletivos, sociais
e culturais (títs. II, VII e VIII); d) princípio da justiça social referido no art. 170, caput, e
no art. 193, como princípio da ordem econômica e da ordem social [...]; e) princípio da
igualdade (art 5º, caput, e I); f) princípio da divisão de poderes (art. 2º) e da
independência do juiz (art. 95); g) princípio da legalidade (art. 5º, II); h) princípio da
segurança jurídica (art. 5º, XXXVI a LXXIII) (Silva, 1991, p. 108).
Muito mais do que norma (longe, portanto, do normativismo e do pragmatismo jurídico),
o Estado Democrático de Direito tem por princípio básico o direito que serve à Justiça. Várias
seriam essas condições como direitos essenciais, inalienáveis e intransferíveis (sejam individuais,
sejam sociais e coletivos):
37. (i) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração
autônoma do direito, que prevê a maior medida possível de liberdades subjetivas de ação
para cada um. (ii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da
configuração autônoma do status de membro de uma associação livre de parceiros do
direito. (iii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da
configuração autônoma do igual direito de proteção individual, portanto da
reclamabilidade de direitos subjetivos [...] (iv) Direitos fundamentais (de conteúdo
concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito para uma
participação, em igualdade de condições, na legislação política (Habermas, 2003, 167).
Quanto se coaduna a efetivação dos direitos fundamentais sociais às garantias
tradicionais do Estado de Direito, temos a abertura para outra dimensão político-social, pois:
38. O Estado Democrático de Direito Social é a organização do complexo do poder em
torno das instituições públicas, administrativas (burocracia) e políticas (tendo por a priori
o Poder Constituinte), no exercício legal e legítimo do monopólio do uso da força física
(violência), a fim de que o povo (conjunto dos cidadãos ativos), sob a égide da cidadania
democrática, do princípio da supremacia constitucional e na vigência plena das garantias,
das liberdades e dos direitos individuais e sociais, estabeleça o bem comum, o ethos
público, em determinado território, e de acordo com os preceitos da justiça social (a
igualdade real), da soberania popular e consoante com a integralidade do conjunto
orgânico dos direitos humanos, no tocante ao reconhecimento, defesa e promoção destes
mesmos valores humanos (Martinez, 2013).
Na atual fase do assim chamado Estado Pós-Moderno, há elementos que se solidificaram
e outros que se inscreveram modificando as estruturas envelhecidas, uma vez que:
39. O Estado Democrático de Direito Internacional, conceitualmente, leva a efeito a
Unidade na Diversidade da Humanidade. Também denominado de Estado Pluriétnico ou
Estado Democrático de Terceira Geração, assegura relevância jurídica à natureza
pluriétnica do espaço público. De modo complementar, pode-se dizer que o direito
internacional tem um reflexo interno, pois o Princípio da Autodeterminação dos Povos
deveria ser observado como recurso da autonomia requerida pelas culturas. Esta
modalidade de Estado Pluralista reconhece e se pauta pela tolerância, diversidade,
localismo, descentralização e autonomia (Wolkmer, 2001).
65
Como Estado Pós-Moderno, ao contrário da sistematização da cultura e do Poder
Político, a instabilidade institucional desafia três séculos de história do poder:
40. Essa instabilidade é dramaticamente acentuada pelo declínio do monopólio da força
armada, que já não está nas mãos dos governos (Hobsbawm, 2007, p. 87).
41. Para os Estados Unidos, é a primeira vez, desde a Guerra de 1812, que o território
nacional sofre um ataque, ou mesmo é ameaçado [...] Pela primeira, as armas voltaram-se
contra nós. Foi uma mudança dramática [...] A Inglaterra não foi atacada pela Índia, nem
a Bélgica pelo Congo, nem a Itália pela Etiópia, nem a França pela Argélia (Chomsky,
2002, pp. 11-12).
66
ANTOLOGIA POLÍTICA DO ESTADO RAZÃO
O Estado e o Direito como criações humanas
Com relação à origem social do Estado, vamos nos basear nas interpretações de dois dos
maiores expoentes da Ciência Política: Thomas Hobbes e Giambatista Vico. Hobbes é
considerado o pai do Estado Moderno, ou simplesmente teórico do absolutismo, e Vico foi quem
primeiro definiu a história como ciência. Com essa inspiração, podemos retomar a eterna questão
acerca da origem da política: em que aspecto nossa engenharia humana nos diferencia dos
demais animais sociais? Todos os animais sociais produzem política, como nós?
Em primeiro lugar, se a resposta fosse afirmativa teríamos de admitir que há diversos ou
vários Estados na natureza, uma vez que a política seria natural a todos os animais sociais. O que
não é verdade, pois se há muitos animais sociais, de todos, o homem é o único animal político.
Hobbes nos dirá que a origem do Estado está na necessidade da sobrevivência e no medo de que
sozinhos somos incapazes disso. Hobbes dirá o seguinte: “O fim último, a causa final e desígnio
dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir
aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua
própria conservação e com uma vida mais satisfeita” (Hobbes, 1983, p. 103 – grifos nossos).
Antes da criação do Estado, como reserva maior do poder e da soberania, como se davam
as organizações sociais em torno do poder? Ainda em Hobbes, vemos que: “Em todos os
lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-se e espoliar-se uns aos outros
sempre foi uma ocupação legítima, e tão longe de ser considerada contrária à lei de natureza que
quanto maior era a espoliação conseguida maior era a honra adquirida” (Hobbes, 1983, p. 103 –
grifos nossos). Então, diante disso, o Estado deverá responder com o acréscimo ou implemento
da segurança pública. Acertadamente, desde o pensamento clássico grego, política e polícia tem
a mesma raiz, a mesma ontologia, uma vez que a política (o Estado) deve assegurar exatamente a
segurança. Fora desse contexto o Estado perde sentido histórico, deixa de ser Polis.
Por outro lado, por que há necessidade da organização política em torno do Estado, se já
somos compelidos à vida social desde a constituição das famílias? Viver socialmente não
bastaria para suprir as necessidades humanas? Basear nossas cidades e sociedades em outras
espécies, igualmente organizadas em vida social, não seria suficiente para conseguirmos a paz, a
harmonia, a segurança que queremos? Imitar a vida natural, neste caso, não seria um bom
método político, especialmente hoje em que as sociedades modernas e complexas estão
exageradamente conturbadas?
Neste sentido, em que a vida social possa imitar a natureza, depois de Hobbes, a análise
de Giambattista Vico (1668-1744) parece bastante interessante e sugestiva, pois que o chamado
estado familiar não era uma construção política muito bem definida:
Vico parte do estado das famílias, embora posterior ao “estado ferino”,
que pode ser interpretado como uma historização, ainda que fantástica,
do estado de natureza hobbesiano, no qual o homem é o lobo (idest,
“fera”) do homem; assim, do estado de famílias, que é um estado ainda
pré-político, a humanidade passa ao Estado político, que nasce sob a
forma de república aristocrática com a conjunção dos chefes de família,
para só então chegar, em um segundo período, à república popular
(Bobbio, 2000, p. 119).
De certo modo, pode haver esta comparação entre os muitos animais sociais – na linha de
uma biologia política ou de uma política da natureza -, como se a biologia pudesse emprestar
67
ensinamentos à vida social humana complexa e à política do Estado. Afinal, há outros tipos de
sociedades:
É certo que há algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas,
que vivem socialmente umas com as outras (e por isso são contadas por
Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção senão seus
juízos e apetites particulares, nem linguagem através da qual possam
indicar umas às outras o que consideram adequado para o benefício
comum. Assim, talvez haja alguém interessado em saber por que a
humanidade não pode fazer o mesmo (Hobbes, 1983, p. 104).
O próprio Hobbes enunciará seis razões para diferenciar o estado de natureza do próprio
Estado, como organização preliminar do Estado Político: “Primeiro, que os homens estão
constantemente envolvidos numa competição pela honra e pela dignidade, o que não ocorre no
caso dessas criaturas. E é devido a isso que surgem entre os homens a inveja e o ódio48, e
finalmente a guerra, ao passo que entre aquelas criaturas tal não acontece” (Hobbes, 1983, p. 104
– grifos nossos). Ou seja, o homem vive em sociedade, mas não passa um segundo sem que
esteja cobiçando o poder – sua vida social, em hipótese alguma, é desinteressada, dirigida ao
conforto dos outros. Ao contrário, o ódio leva ao confronto com os outros. Antes de tudo e de
todos, está o que cada um quer: o homem é egoísta.
Depois está a diferença entre o querer dos indivíduos isoladamente e a sociedade global:
“Segundo, que entre essas criaturas não há diferença entre o bem comum e o bem individual e,
dado que por natureza tendem para o bem individual, acabam por promover o bem comum. Mas
o homem só encontra felicidade na comparação com os outros homens, e só pode tirar prazer do
que é eminente” (Hobbes, 1983, pp. 104-5).
Entre esses animais sociais não há competição e disputas pelo poder – a não ser quando
lutam com outras espécies a fim de as subjugar. Mas, entre os homens, a regra é exatamente a
comparação e a acusação, que levam à disputa e à regra da acumulação: “Terceiro, que, como
essas criaturas não possuem (ao contrário do homem) o uso da razão, elas não veem nem julgam
ver qualquer erro na administração de sua existência comum. Ao passo que entre os homens são
em grande número os que se julgam mais sábios, e mais capacitados que os outros para o
exercício do poder público” (Hobbes, 1983, pp. 105). A disputa política, como bem se sabe,
raramente é honesta, limpa, sem o uso da regra de que na guerra vale-tudo – não raramente, há
mistura da vida pública com a vida privada, em que os desejos mais mesquinhos se avolumam
sobre o interesse público.
Em quarto lugar, está o poder da comunicação: “[...] alguns homens são capazes de
apresentar aos outros o que é bom sob a aparência do mal, e o que é mau sob a aparência do bem;
ou então aumentando ou diminuindo a importância visível do bem ou do mal, semeando o
descontentamento entre os homens e perturbando a seu bel-prazer a paz em que os outros vivem”
(Hobbes, 1983, pp. 105). Todos nós, hoje em dia, sabemos como a mídia pode ser nefasta e
perversa, recusando-se a cumprir o papel social destacado pela Constituição Federal. Mas
Hobbes também já sabia e advertia para o uso prejudicial da palavra.
As demais espécies organizativas, ao se associarem, assim o fazem para buscar meios de
satisfazer a própria vida. O homem é insatisfeito em tudo, em todos os aspectos: “Quinto, as
criaturas irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano, e consequentemente basta
que estejam satisfeitas para nunca se ofenderem com seus semelhantes. Ao passo que o homem é
48
Será que este conjunto de “qualidades” humanas não é suficiente para se dizer que o homem é egoísta?
68
tanto mais implicativo quanto mais satisfeito se sente, pois é neste caso que tende mais para
exibir sua sabedoria e para controlar as ações dos que governam o Estado” (Hobbes, 1983, pp.
105). As vaidades do poder devem ser consideradas em sua grandeza por aqueles que procuram
levar a prudência para o recinto da política.
Com isso, podemos ver que nosso pacto ou contrato social é mero artifício – para que as
coisas não fiquem ainda piores – ao passo que a vida social das demais espécies decorre da
natureza. Buscamos a vida social para diminuir o impacto de nossas fraquezas pessoais, a
sociedade deve amenizar os danos da mediocridade:
Por último, o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que
o dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente.
Portanto não é de admirar que seja necessária alguma coisa mais, além de
um pacto, para tornar constante e duradouro seu acordo: ou seja, um
poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no
sentido do benefício comum (Hobbes, 1983, pp. 105).
De todas essas diferenças decorre ou sobressalta a ideia de que, para nós tanto a
sociedade quanto o Estado superveniente, são obras e criações artificiais e só assim se mantém,
com repetidas réplicas de ações comuns – a repetição de ações no interior das instituições
políticas torna possível crer nessa organização. Com o que, ainda podemos indagar: se na
natureza vigoram as leis da sobrevivência e do poder dos mais fortes (nem sempre fisicamente),
seguir o livre curso da natureza, deverá realmente nos levar à paz?
Por fim, seguindo Hobbes, podemos entender que se a natureza humana não concorre
para a paz, então, o Estado deverá estar baseado no terror – o terror de que a vida individual
não seja possível, o terror que deve dobrar as vontades do homem político egoísta e indiferente à
virtù:
É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida:
Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos
recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de
modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que
considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. Àquele
que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui
poder soberano. Todos os restantes são súditos (Hobbes, 1983, pp. 106).
Assim, temos que o Estado soberano, esse Leviatã – (biblicamente, um crocodilo
gigantesco) representa a maior organização do poder na Terra, bem como a maior ameaça à
desobediência das regras impostas –, é a personificação do Deus Moral, só abaixo do Deus
Mortal. Entretanto, que razões ou conjunto de implicações nos teriam trazido ao Estado como o
conhecemos, na forma de uma organização tão complexa e intrincada? Seria mesmo apenas o
temor de que o egoísmo humano nos legaria à desgraça total enquanto espécie?
Veremos que, além desse fator psicológico, há hipóteses variadas que podem auxiliar na
explicação e no entendimento dos muitos fatores que dão ou deram forma ao Estado. Algumas
dessas hipóteses nós já vimos, como por exemplo, a própria ideia de necessidade de organização
social para a obtenção de maiores possibilidades de sobrevivência dos grupos humano. No
entanto, outras teorias e exemplos práticos ou históricos (do passado e do presente) também
serão acrescentados. Enfim, passemos às principais hipóteses acerca da origem do Estado.
Vico: a história como ciência
69
Vico constrói uma filosofia da história apresentada por uma teoria cíclica das formas de
governo. Essa perspectiva cíclica de tomar a história não deixa de propor uma espécie de
“desencantamento do mundo”. Esse desencantamento civilizatório (mesmo que ciclicamente
retorne-se à barbárie), acompanha um seguimento maior do Renascimento, que é a aposta na
construção da política como método racional, próprio da lógica matemática. Vico apresenta uma
trilogia que parte de Roma: aristocrática, democrática, monárquica. Este sequenciamento, porém,
leva-o retornar a um “estado bestial” (stato ferino) em que não há sociabilidade. Nesta fase,
seríamos seres totalmente associais.
Por outro lado, há diferenças claras entre os três tipos de estado natural (que se colocam
acima da bestialidade humana inicial). Entre o “estado bestial” e o nível das repúblicas há a fase
intermediária das “famílias”. E aí, novamente, o desencantamento é uma razão progressiva e este
cursor da história se inicia com o mito. A origem dessa razão precursora estaria na vergonha e na
moral abalada e o matrimônio e a sepultura nasceriam dessa religião ou mito. Para Vico, este já
seria o estado de natureza, posterior ao estado bestial. Portanto, o estado de natureza é um estado
social primitivo (mas não bestial) e corresponderia à autoridade econômica (oikos: casa) ou
familiar. Só que a família era um conjunto de clientes (cliens): filhos, servos, vassalos.
Esta forma de autoridade social se basearia em uma situação objetiva de desigualdade: 1)
desigualdade natural entre pais e filhos; 2) a que mais denota análise, uma desigualdade entre
duas classes de homens: os poderosos (já saídos do bestialismo) e os serviçais (seres inferiores
submetidos ao estado mais primitivo). Este quadro social, entretanto, alimentaria a rebelião dos
escravos, agora movidos pelo desejo de liberdade, ao mesmo tempo em que forçaria os pais das
famílias (constituídas de “senhores superiores”) a se unificarem para dominar as rebeliões.
A primeira forma de Estado, portanto, seria esta “república aristocrática” (coincidente em
Weber na forma da “dominação patriarcal”) e teria por base a desigualdade entre patrícios e
plebeus: os primeiros, que gozavam de direitos privados e públicos e, os demais, que não tinham
status jurídico definido. Deste impulso histórico o homem teria chegado à “república popular”: a
segunda fase da autoridade, portanto, originou-se com a requisição do direito de rebelião ou luta
de classes. Toma o princípio de que “é natural que o servo deseje ardentemente escapar da
servidão”, mas a origem é histórica:
Quando essa luta termina, isto é, quando os plebeus alcançam em
primeiro lugar o direito de propriedade, depois o direito às núpcias
solenes e legítimas (“connubia patrum”), por fim os direitos políticos
(que Vico faz coincidir com a Lex Publilia, de 416 a.C., com a qual “a
república romana reconheceu sua transformação, de aristocrática em
popular”), dá-se passagem da primeira para a segunda forma de república
(Bobbio, 1985, pp. 121-2).
A Segunda República para Vico tem início com a luta pelo reconhecimento de direitos,
e isto numa era antes de Cristo: lutas desesperadas de oprimidos pelo reconhecimento de seus
direitos. Depois, Goethe diria: “Quem está com o direito, espera, e a hora virá” (1997, p. 418).
A divisão dos períodos históricos de Vico, por sua vez, segue a tradição egípcia: era dos
deuses, dos heróis e a dos homens: 1) Estado das Famílias: “homem primitivo era mal desperto
do sono da animalidade”. 2) Sociedades Heroicas: dominadas por homens fortes, rudes,
violentos, mas que são os verdadeiros fundadores de Estados (homens de virtù, para Maquiavel),
dão passagem do estado de natureza para o estado civil. 3) Era dos Homens: república popular
70
ou monarquia (duas espécies do mesmo gênero). Sua perspectiva histórica também pode ser
dividida de acordo com as fases da alma: percepção, fantasia, razão (o ápice da humanização).
Vico também estabeleceu três formas de jurisprudência: 1) sabedoria divina ou “teologia
mística” (mystae: definida por Horácio como própria dos “intérpretes dos deuses”); 2)
jurisprudência heroica – a qual Homero remete à “reputação dos antigos jurisconsultos” (cavere:
acautelar-se para provar em juízo a própria razão; de iure respondere: “encontrar cautelas
relativas aos contratos”); 3) jurisprudência humana: “guarda a verdade desses fatos e inclina
benignamente a razão das leis a tudo aquilo que demanda a igualdade das causas” (Vico, 1999, p.
407). Jurisprudência quer dizer que levamos a Prudência para o direito e que se decide de acordo
com alguma forma de sabedoria.
Ao que corresponderiam três formas de autoridade: a) divina; b) heroica; c) humana:
“oculta no crédito de pessoas experimentadas e de singular prudência nas coisas da ação e de
sublime sabedoria nas coisas inteligíveis” (Vico, 1999, p. 409). Vico também lembra a
necessidade de evitarmos a armadilha das facilidades do poder já indicadas por Lívio: Saepe
spectabat ad vim (“tendia sempre à violência”). Fato que respondia com o próprio Lívio, mas
tendo a prudência como receita: “O uso da violência incita à revolta popular” (Vico, 1999, p.
409 – grifos nossos). Novamente, a necessidade da jurisprudência.
Esta última modalidade de ação política, baseada na prudência dos “mais sábios e
experimentados”, coincidia com a “autoridade do conselho” dos jurisconsultos romanos, e que se
diziam “autores”. Certamente, uma forma superior de basear a autoridade (e o poder) não mais
sob indivíduos que se pensam simples pupilos e que estão sob a autoritas tutorum. Por fim,
concomitantemente, há três espécies de razão: 1) divina; 2) Razão de Estado; 3) razão natural:
aequum bonum ou aequitas naturalis — esta própria da multidão, mas movida pela “motivação
dos justos” (hoje seria bom senso?).
A visão histórica de Vico é progressiva e cíclica, mas incorre em um tipo de visão
regressiva: a passagem de uma constituição histórica a outra implica sempre em degeneração.
Quando o curso da história se esgota, retorna-se ao ponto de partida, esse ricorso (um revés do
corso da história) é tomado de exemplo da queda do Império romano e a chegada da Idade
Média: “retorno à barbárie” ou “Segunda Barbárie”. Pois, aí teríamos retornado à fase das
famílias. A definição do feudalismo, como era das trevas, segue este sentido de ricorso,
retrocesso histórico.
Há muitas causas dessas transformações históricas, mas a raiz, entretanto, está na
“barbárie das ideias”, a razão libertina, a própria “razão iluminista”. Dessacralizando a natureza e
a história (sem telos), perde-se o “temor reverencial” e o homem retorna à selva de instintos.
Com isto, Vico em muito se antecipou ao que chamaríamos de crise civilizatória.
Trata-se do princípio da força viva que a humanidade cria para si própria. Sobre o método
histórico, escreve Vico: “Os fatos da história conhecida [...]’ devem se ‘referir a suas origens
primitivas, divorciados das quais eles até então pareceram não ter uma base comum,
continuidade nem coerência” (Wilson, 1986, p. 10)49. A história é continuidade com coerência.
A filosofia da história de Vico é cíclica e sua fonte de inspiração é o retorno à
Antiguidade clássica greco-romana. Em sua filosofia, reparte a história em três tempos: a)
história dos deuses; b) história dos heróis50; c) história humana. A terceira fase é composta de
guerras civis semelhantes às lutas de classes e à conquista de um direito escrito — superior ao
direito natural. Este processo trifásico ocorreria em espiral. Vico fala em três tipos de direitos, de
49
50
Além disso, Vico dissera que sua força esteve em explicar a formação do direito humano.
Bárbaros, mas poetas, governados pela aristocracia.
71
governos e de autoridades, até que apresenta sua tese histórica evolutiva que engloba a Razão de
Estado:
A segunda foi a razão de Estado, chamada pelos romanos “civilis
aequitas”51, a qual Ulpiano dentre as Dignidades [...] nos referiu como
não sendo naturalmente conhecida por todos os homens, mas por alguns
poucos experimentados no governo, que saibam distinguir o que
pertence à conservação do gênero humano. Da qual foram
naturalmente sábios os senados heroicos, e, acima de todos, o romano,
prudentíssimo nos tempos da liberdade tão aristocrática, nos quais a
plebe era efetivamente excluída do trato da coisa pública, bem como da
popular, por todo o tempo em que o povo nas públicas atividades se fez
governar pelo senado, como ocorreu até os tempos dos Gracos (Vico,
1999, pp. 411-2 – grifos nossos).
Como vemos, a Razão de Estado era tarefa da aristocracia dominante, mas sempre
próxima do povo: “...a civil equidade tudo submetia naturalmente àquela lei, rainha de todas as
outras, concebida por Cícero com a mesma gravidade da matéria: “Suprema Lex populi salus
esto”52 (Vico, 1999, p. 412).
A corrupção da política (como ideal grego de liberdade e autonomia), entretanto, está na
inversão da predileção da vida pública pela privada, ou seja, na subversão do público pelo
privado (p. 413). O suporte da Razão de Estado, então, estaria na Aequitas naturalis (equidade
natural): “E a equidade civil, ou razão de Estado, foi entendida por poucos sábios de razão
pública e, com a sua eterna propriedade, é conservada como secreta dentro dos gabinetes” (Vico,
1999, p. 415). A Razão de Estado envolve o conhecimento dos segredos do Estado (arcana
imperi).
Para Vico, a Razão de Estado não é a forma de governo ou de autoridade civil mais
evoluída. Pois, teria início com a luta pelo reconhecimento de direitos. Não é a mais evoluída,
mas poderia ser tida como a principal porque o homem já estaria em outro nível de sua evolução
política, na fase do pós-luta por conservação. Diferentemente de toda a tradição política,
portanto, a Razão de Estado não corresponde à lua por conservação do próprio Estado, mas sim à
luta por emancipação de uma classe social de seus indivíduos igualmente fundadores, mas
escravizados. Assim pode-se dizer que se organizou a luta pelo reconhecimento dos sujeitos, das
demandas, das classes, das ações da “maioridade” e para que se legitimasse a “motivação dos
justos”, inibindo-se a corrupção e os usurpadores. A Razão de Estado é uma procura por
explicações racionais (ou não) para justificar a ocorrência do Estado Moderno. Em todo caso,
cabe ressaltar que autores e escolas clássicas destacaram-se na consideração de que o Estado é
uma criação, uma intenção evidente de determinados grupos humanos. Este “querer” o Estado,
por sua vez, decorre de um adensamento na ordem da cultura política.
51
52
Equidade civil.
“A salvação do povo seja a lei suprema”.
72
CONCENTRAÇÃO DO PODER POLÍTICO
O Estado, como uma forma particular de organização e de centralização do Poder
Político, recebeu no Renascimento (talvez até antes disso, na acumulação primitiva) duas fortes
inspirações: a ética pagã (libertando-se o poder da ética) e a ética protestante (liberando-se o
poder da religião). No primeiro caso, em nome do Estado, sob a justificativa de se construir a
Razão de Estado, todos os recursos de poder poderiam ser livremente manejados. Para o segundo
aspecto, como forma de financiamento do próprio Estado, a economia precisava ficar livre de
todos os entraves morais e, assim, o lucro que antes era pecado (usura) passou a ser investigado
como qualidade e distinção.
A ética protestante serviria ao capitalismo nascente, na verdade, legitimaria seus
interesses e costumes. A ética pagã seria aplicada mais diretamente aos elementos políticos que
exigem respostas diretas do Estado. As duas formas de ética do poder encontrar-se-iam na forma
do Estado monista e centralizador/indutor da acumulação de capitais, em que atuam as forças
centrífuga (para o poder econômico estendido pela expansão ultramarina do capital e pela Rota
da Seda) e centrípeta (para o poder estatal, que deve aglutinar forças e não dispersá-las). A esta
articulação entre capital, Estado e sociedade, deu-se o nome de capital disruptivo (Mészáros,
2002).
Uma das marcações mais distintas da modernidade é o fato de ter eivado de sentido todos
os valores sacros não submetidos ao desenvolvimento do próprio capital: “todos os homens são
passíveis de tornar-se homines sacri, se descartam ou até se matam sem se culpar e sem serem
punidos, [...] ‘o homem moderno é um animal cuja política põe em questão sua própria vida de
ser vivo” (Enriquez, 2004, p. 45). O único poder sacro, a partir de então, seria o poder de Estado
e sob suas vestes estariam depositados os interesses em financiar a expansão colonialista, bem
como assegurar a inviolabilidade do território. Por isso, as duas pontas de lança do Estado
Moderno são: colonização e soberania (interna e externa). Hobbes é um dos grandes autores da
Filosofia e da Ciência Política e esteve muito interessado na discussão da soberania estatal, mas
antes dele está Bodin:
Bodin passou para a História do pensamento político como o teórico da
soberania. Contudo, o conceito de soberania como caracterização da
natureza do Estado não foi inventado por ele. “Soberania significa
simplesmente poder supremo”. Na escalada dos poderes de qualquer
sociedade organizada, verifica-se que todo poder inferior é subordinado a
um poder superior, o qual, por sua vez, se subordina a outro poder
superior. No ápice deve haver um poder que não tem sobre si nenhum
outro – e esse poder supremo, “summa potestas”, é o poder soberano.
Onde há um poder soberano, há um Estado (Bobbio, 1985, p. 95).
Para os defensores do Poder Político unificado, todo poder seria usado na definição,
delimitação e defesa do Estado. No período absolutista, o Príncipe representava este poder
supremo, no período revolucionário e iluminista o summa potestas seria o lastro da soberania
popular.
Soberania é “Razão de Estado”
Isto é o retrato da “dominação absoluta” que se iniciou em Maquiavel e se tornou clara a
partir de Hobbes. Além da materialidade do poder, especialmente visível nas forças armadas de
dominação do próprio povo, o Estado precisava ser visto e considerado como um ente acima de
73
queixas, a salvo de represálias, como verdadeira encarnação da fé pública. O Estado Moderno
desde seu início cativou condições de atavismo, de secularização, de encarnação da alma do
povo (um tipo de Espírito Absoluto em que a fé pública não pode ser abalada). Nesta moderna
mitologia, pela primeira vez na história da Humanidade, uma das fabricações do homem (o
Estado) seria alvo de construção mitológica. Não há mito mais sacramentado do que o do Estado.
O mito do Estado que herdamos assinala o poder presente na Razão de Estado como
constitutivo da vida social. Este princípio legítimo da dominação (presente no mito) é o que
confere soberania ao Príncipe, supostamente legítimo. Este poder da Razão de Estado submete
todos os sujeitos ao direito, uma vez que é o produtor das próprias regras que garantem sua
imposição; sendo que o direito legítimo, é óbvio, é assim considerado como aquele que melhor
resguarda os interesses dos que governam o Poder Político.
No século XVI, a Monarquia já se tornara absoluta e legisladora, outorgara-se o vigor
capaz de atribuir, cancelar, instituir e redistribuir os direitos. Desde o século XVI, portanto, o
soberano, na forma da Razão de Estado, vem forçando a passagem da massa disforme, da
Multidão, à condição de um todo orquestrado (mas, de cima para baixo). Poder-se-ia alegar,
porém, que após o século XIX o direito53 passou a regular o soberano (tornando-se limitado, o
que era absoluto); mas, é preciso lembrar que mesmo o Estado mais democrático não abre mão
de formas ditatoriais de poder, a exemplo do direito de exclusão presente nas formas de exceção
— uma indicação de que a Razão de Estado continua seduzindo atenções. O que ainda nos diz
que Hobbes acertou na veia ao propor esta questão ao Estado Moderno:
E, para medirmos a inovação assim introduzida, basta recorrermos à frase
de um teólogo do Século XII: ‘A diferença entre o príncipe e o tirano é que
o príncipe obedece à Lei e governa o seu povo em conformidade com o
Direito [...] A teoria da Soberania libera o poder do Príncipe de tais
limitações (Lebrun, 1984, pp. 28-29 – grifos nossos).
Neste sentido, o tirano bem pode ser o Poderoso Chefão, a serviço do Estado ou de sua
Família, liberto das amarras morais da lei. Contudo, desde a afirmação do Estado Teológico, bem
descrito por Thomás de Aquino, o teólogo do século XII, ainda que em estado de tirania, o
dirigente deve observar a regra básica de que suas ações não podem se voltar contra o contrato
jurídico de que se alimenta a fé do povo. O Estado não pode ameaçar a fé pública, como
condição de verdade política, e que lhe foi conferida pelo povo na celebração do contrato
político. A indústria ou inteligência da direção política requer que se afine e aprimore o bom
senso, realçando-se três condições:
Primeira, que a multidão se estabeleça na unidade da paz. Segunda, ser
essa multidão, unida pelo vínculo da paz, dirigida a proceder bem [...]
Terceira, requer-se que, por indústria do dirigente, haja abundância
suficiente do necessário para o viver bem (Aquino, 1995, 167).
O dirigente do Estado deve ser um provedor.
Todavia, com ou sem a chancela do bom senso, o pensamento absolutista acerca do poder
marcou indelevelmente a Razão de Estado: poder soberano é o poder absoluto. Nenhum meio de
manutenção do poder pode ser excluído, seja para a regra, seja para as suas exceções, os fins
justificam os meios.
Atualização do debate
53
Assim, direito é a presunção de potencia; lei é a presunção de que há força.
74
Com o Estado-Nação sob fogo cerrado (a ex-Iugoslávia e a ex-URSS são exemplos
concretos), a própria soberania popular procura amparo em outras referências de poder, como no
apreço das localidades. Essas localidades, que não correspondem a regionalismos e nem a
folclores ou ethos (costumes sociais éticos), marcam o espaço físico em que o sujeito de
múltiplas relações se encontra. Melhor dizendo, é o espaço físico em que o sujeito está, mas não
necessariamente que ali ele se encontre (consigo mesmo, com seu ethos). Na síntese do Estado
Moderno atual, a Nação já se desprendeu do Estado. No século XXI, Estado e sociedade (Nação)
andarão cada vez mais divorciados, falando e respondendo por linguagens diferentes, trocando
entre si símbolos irreconhecíveis um para o outro, assim como o sujeito múltiplo, de pouca
referência ou de baixa entropia nacional, descolou-se de sua origem e viu a nacionalidade perder
o voo — e como a Nação resta-lhe aguardar a lista de espera:
Se os Estados do século XXI agora preferem fazer suas guerras com
exércitos profissionais, ou mesmo através da terceirização de serviços
bélicos, não é apenas por razões técnicas, mas porque já não se pode
confiar em que os cidadãos se deixem ser recrutados, aos milhões, para
morrer no campo de batalha em nome de seus países. Homens e mulheres
podem estar preparados para morrer (mais provavelmente para matar) por
dinheiro, ou por algo menor, ou algo maior, mas, nos lugares onde se
originou o conceito de nação, não mais pelo Estado nacional
(Hobsbawm, 2007, p. 96).
Entre tantos fatores de crise institucional apontados, pode-se destacar uma espécie de
crise de dominação pública. Não há Estado Global à vista ou, ao contrário, todos os Estados
padecem da quebra do paradigma do Estado Moderno: território, povo, soberania
(reconhecimento). De certo modo, isso condiz com a fragilidade do controle social atual, sem
envolvimento e participação política:
Pois, neste processo de expansão de concentração, o poder de controle
conferido ao capital vem sendo de fato re-transferido ao corpo social
como um todo, mesmo se de uma forma necessariamente irracional,
graças à irracionalidade inerente ao próprio capital. Que o deslocamento
objetivo do controle seja descrito, do ponto de vista do capital, como
“manter a nação como refém”, não muda nada o próprio fato (Mészáros,
1989, pp. 26-27).
Além do fato de haver uma crise interna de ausência de controle e externa, que varia e se
multiplica em fatores e atores, há uma interpelação clássica que se fazia a Clausewitz e o direito
de guerrear: toda guerra deve ser autorizada pelo Império. Por isso, John Rawls prefere falar em
povos do que em Estados:
Outra razão pela qual uso o termo “povos” é distinguir o meu
pensamento daquele a respeito dos Estados políticos como
tradicionalmente concebidos, com os seus poderes de soberania incluídos
no Direito internacional (positivo) pelos três séculos após a Guerra dos
Trinta Anos (1618-48) (Rawls, 2001, p. 33).
O fato perturbador é avaliar até que ponto estaremos mais protegidos (se isto já não for
um sentimento do passado) como povo ou como Estado. Ou, em outras palavras, o povo será
75
mais feliz sem a organização do Poder Político que se firmou desde o surgimento do Estado
Moderno? Distintamente, o Estado Moderno é a própria racionalização da política.
76
INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO
O Estado corresponde ao governo de um povo em determinado território, sendo que este
governo pode ser democrático ou autocrático (desde os regimes totalitários até a visão marxista
de que o Estado é um escritório da burguesia). Contudo, antes de avançar no conceito, talvez seja
mais pedagógico apresentar uma noção geral acerca da história do Estado, para em seguida
verificar a filosofia e o objetivo jurídico do aparato estatal. Para resumir, traremos apenas alguns
tipos ideais: 1) Estado Moderno; 2) Estado liberal clássico; 3) Estado de Direito; 4) Estado
Democrático.
1) Estado Moderno: antes da configuração clássica assentada na Paz de Westfália (1648),
Hobbes já retratava de forma imperiosa o que seria reservado à soberania como reserva de
forças do Estado centralizado. A Razão de Estado já fora anunciada por Nicolau Maquiavel
(de certo modo ligado ao Estado-Nação), mas em Thomas Hobbes a soberania é avocada
como essencial, indissolúvel, ilimitada54. Em Hobbes, trata-se de um Estado Policial, voltado
à necessidade de se assegurar a vida a cada cidadão. No entanto, o Estado é uma construção
política que visa assegurar a segurança elementar à organização civil (desde o século XV55).
E é nisto que se dá uma reta razão, como esforço de combinação do pensamento
(racionalidade) com a política (necessidade de ter no Estado o suporte do espaço comum de
convivência). Nasceria a Razão de Estado.
2) Estado liberal clássico, Estado Gendarme ou Guarda-Noturmo: reserva a prestação da
Segurança Pública e outros serviços essenciais ao Estado e descarta os demais serviços
(sociais) aos recursos individuais disponíveis, aos interesses de mercado ou à sorte de cada
um. No pensamento inaugural do liberalismo de John Locke (séculos XVI-XVII), o Estado
Gendarme é responsável pela segurança e pela civilização que daí decorre; como Guarda
Noturno, o Estado é o vigilante que assegura a passagem da guerra ao convívio organizado.
Enfim, para Locke, o estado de guerra é oposto ao estado de natureza56:
E temos aqui a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de
guerra, que, embora alguns homens confundam, são tão distintos um do
outro quanto um estado de paz, boa-vontade, assistência mútua e
preservação, de um estado de inimizade, maldade, violência e destruição
mútua [...] Quando a força deixa de existir, cessa o estado de guerra entre
aqueles que vivem em sociedade, e ambos os lados são igualmente
submetidos à justa determinação da lei; porque agora eles têm acesso a
um recurso, tanto para reparar o mal sofrido quanto para prevenir todo o
mal futuro” (Locke, 1994, pp. 92-93).
54
Ainda podemos dizer que a soberania não conhece superlativos, nada lhe é superior, como poder supremo:
indivisível, indispensável, não-oponível.
55
Ou, antes disso, no curso da acumulação primitiva, como se depreende da crítica de Marx (1977 & 1987).
56
O estado de natureza é: “Um estado, também, de igualdade, onde a reciprocidade determina todo o poder e toda
a competência, ninguém tendo mais que os outros; evidentemente, seres criados da mesma espécie e da mesma
condição, que, desde seu nascimento, desfrutam juntos de todas as vantagens comuns da natureza e do uso das
mesmas faculdades, devem ainda ser iguais entre si, sem subordinação ou sujeição, a menos que seu senhor e amo
de todos, por alguma declaração manifesta de sua vontade, tivesse destacado um acima dos outros e lhe houvesse
conferido sem equívoco, por uma designação evidente e clara, os direitos de um amo e de um senhor” (Locke, 1984,
p. 83).
77
3) Estado de Direito: após a centralização do Poder Político (apontada desde Maquiavel e
Hobbes), a separação dos poderes e a atenção à vontade geral (Montesquieu e Rousseau)
viriam assegurar que o poder seria melhor controlado, evitando-se todo possível regresso
ao autoritarismo. O período revolucionário (Revolução Americana e Francesa, no século
XVIII) inauguraria um debate acerca da soberania popular, como forma de
regular/legitimar o poder e limitar o próprio sentido de soberania como poder absoluto. A
formatação do Poder Judiciário, com toda a série de garantias à administração da Justiça,
ainda traria o resguardo necessário do Estado-Juiz. O controle jurídico que se fez exercer
sobre o poder confirmou o chamado Estado de Direito (na Alemanha do século XIX).
4) Estado Democrático: no pós-guerra, que se iniciara na Primeira Grande Guerra e se
confirmara na Segunda Guerra Mundial, verificou-se a urgência de se construir outras
salvaguardas à soberania popular. Primeiro, salvaguardas que contivessem a infusão de
guerras injustas ou o cometimento de crimes contra a humanidade, como fora o nazifascismo; depois, para que se construíssem bases efetivamente democráticas e que
aprofundassem as formas de participação na construção da cidadania. Para tanto, a
Constituição de Bonn, na Alemanha de 1949, foi seminal. O século XX construiu a
democracia de massas, o século XXI deverá apresentar muitas transformações em seus
institutos políticos e jurídicos.
Como se percebe, o Estado tem elementos de definição, mas o percurso histórico nos
revela que tais elementos sofrem transformações, a começar da soberania.
Então, o que é o Estado?
Inicialmente, pode-se dizer que o Estado é a instituição por excelência que organiza e
governa um povo, soberanamente, em determinado território. Contudo, o Estado é uma
construção lógica e política, com clara densidade cultural e com reflexos jurídicos, baseada num
pacto de não-agressão e que gera um contrato de convivência. Este contrato lógico decorre de
uma relação causal entre Nomos57 e Logos (entre Lei e Pensamento: raciocínio lógico-dedutivo),
afinal é um constructo racional que se verifica pela articulação coerentemente entre a política, a
linguagem e a razão. Portanto, há um processo político que se organiza mediante o
desencadeamento de ações políticas e procedimentos institucionais regulares. Se no pensamento
absolutista58 (copiado pelo positivismo jurídico) é correto afirmar que “O que agrada ao
soberano tem força de lei59”; no mundo contemporâneo, por sua vez, a soberania repousa no
próprio Poder Político. No passado de Hobbes (em meio à guerra civil ameaçadora com o
retorno ao estado de natureza), o Estado Forte (Leviatã) é de fato o “medo construído”. Pois, o
Absolutismo, presente nesta premissa, corresponde à teoria do direito que comporta a opressão
da liberdade natural (potestas superiorem non recognoscens60). Por esta teoria organicista do
poder, o Estado representa um organismo vivo, em que, em alguns momentos, cabe falar da
autopiese e, em outros, da simples heteronomia. Longe de ser descontrolada, a partir do século
XIX, a soberania sofre cada vez mais a regulação pelo direito, ressurgindo como soberania
popular, em cumprimento aos ideais de humanização do Poder Público, absorvendo outra dose
de restrição ao manejo do poder, e já se antecipando à cidadania democrática (para além do
57
Quando realmente submetido ao direito, este contrato político é melhor designado por Estado de Direito.
Com a soberania como forma de poder absoluto.
59
Luís XIV (1643-1715), na França, declararia: “O Estado sou eu”.
60
Como soberania do Poder Político: poder supremo que não reconhece outro acima de si.
58
78
exercício do monopólio do uso legítimo da força física, como queria Max Weber). Hoje, sabe-se
perfeitamente que o Estado também decorre de uma intencionalidade política presente na cultura.
1) Estado: é também definido como Poder Político.
2) Instituição: são organizações e/ou mecanismos de regulação e de calibragem das
relações sociais.
3) Governo: a governabilidade é uma condição para que o Estado seja eficaz, no sentido de
que o governo é o conjunto de instituições subordinadas ao Poder Político que efetivam
atividades de administração dos negócios públicos, como saúde e educação pública.
4) Povo: não se trata de um amontoado de indivíduos (massa), muitas vezes forçados a viver
juntos por ordem e pressão de outro Estado. Também as diferenças – muitas absurdas –,
como no Brasil, dificultam a formação de um sentimento comum, unificador entre tantos
grupos, classes, estamentos e camadas sociais. O povo é uma unidade cultural e social,
ideológica e política (sentir-se parte de uma Nação) e não apenas uma representação
jurídica. Este sentido de unidade política inda nos falta como Nação.
5) Território: apesar de comumente ser representado por uma parcela de terra, não se limita
a isto, pois o território inclui a plataforma continental, as embaixadas e prédios oficiais
construídos em outros países, além de navios e aviões embandeirados.
6) Construção lógica: subentende-se que haja coerência entre as partes de um todo; por
exemplo, entre as premissas (maior e menor) e a conclusão de uma determinada
demonstração lógica.
7) Densidade cultural: quer dizer que não basta ao povo viver em um mesmo território, se
não houver elos de ligação cultural entre seus membros. De certo modo, diz-se que o
Brasil é um país (Estado) sem Nação, porque as diferenças e crenças sociais e políticas
são tão gritantes (além do abismo da miséria e do analfabetismo) que é como se vivessem
vários povos de língua comum (aliás, os sotaques indicariam uma parte visível ou sonora
desta clivagem).
8) Reflexos jurídicos: quer dizer que se observa o fluxo corretamente entre política e
direito, isto é, a força que realmente impulsiona o direito é a política (organizada ou não),
pois o Poder Legislativo apenas expressa os anseios e os interesses predominantes.
Portanto, todo direito tem origem na política (e ainda que o direito político seja
superveniente e regulador da própria motivação política). Porém, há um reflexo jurídico
claro, à medida em que os meios políticos passam a ser controlados, regulados, de acordo
com os fins juridicamente e, anteriormente, definidos (em lei constitucional).
9) Pacto de não-agressão: o designado estado de natureza, como se fosse um status quo
ante à ordem política, implica em caos social volumoso, em que não há garantias à
sobrevivência, como se fosse uma realidade in natura, sem a proteção de qualquer
mecanismo jurídico e social. O Estado, então, é um pacto de sobrevivência, sem agressão
gratuita, sem violação dos direitos básicos.
10) Contrato de convivência: se temos que, desde a origem grega, política implica em
polidez social, logo, é de se concluir que a atividade política (assim definida) é um
mecanismo de aprimoramento e de revigoramento geral. As pessoas convivem melhor
quando são politizadas, por terem maior consciência de si e dos outros (de seu entorno).
11) Relação causal: quer dizer que há uma causa (necessidade de sobrevivência) e que o
Estado já é um efeito. O Estado não é uma constante na história da Humanidade, basta
ver que muitos povos (organizados) desconhecem a ordem estatal. O Estado é resultado
da construção da civilização e não causa; o Estado é parte importante do processo
79
civilizatório, mas não é o motor de toda a racionalidade; o Estado é indutor de civilidade,
mas não é a síntese perfeita do Espírito Humano, como em Hegel (Bobbio, 1989).
12) Nomos61: de amplo significado, pode-se pensar que nomos é o liame do homem a seu
grupo; no caso da forma-Estado, há uma intrínseca ligação entre os indivíduos, sua
cultura (Nação – nomos62) em determinado local (território).
13) Logos: inicialmente interpretado como PALAVRA (grego) escrita ou falada, em seguida,
designaria razão, conhecimento.
14) Lei: é um substrato do direito; como uma parte do todo (direito), às vezes mais, às vezes
menos significativa. A lei é uma forma de se circunscrever o direito. A lei também é uma
fonte do direito, como a cultura, os Princípios Gerais do Direito e os costumes.
15) Raciocínio lógico-dedutivo: quer dizer que a conclusão de nossa investigação é
coerente, que não há falha na construção e na demonstração de nossos argumentos. A
dedução de nossos argumentos é válida, se for lógica, pois dedução vem do latim
deductione, que significa "conduzir" ou "extrair" (como se extraísse a lógica). Por
exemplo, é lógico adequar a escolha dos meios de execução aos fins desejados.
16) Política: atividade essencialmente humana que nos diferencia dos demais animais, pois
muitas outras espécies desenvolvem a inteligência social, mas só o homem é capaz de
construir projetos políticos para suas cidades, como local de efetivação do zoon politikón.
Por meio da política (a vita activa, a CONDIÇÃO HUMANA DA PLURALIDADE63) o indivíduo
se faz cidadão.
17) Linguagem: capacidade humana de adquirir e de exprimir sistemas complexos de
comunicação. Há um contexto especial de sua intersecção com a política, desde a
capacidade de livre-comunicação (ou isegoria, como queriam os gregos), formando-se a
autonomia diante da lei (auto+nomos) e da articulação política, como convencimento
lógico a partir de um argumento superior, em que da igualdade entre os pares (isonomia)
afirma-se o mais apto (meritocracia).
18) Razão: no sentido mais simples é razão (ratio) o que é lógico, mas há uma “reta razão”,
como diz Hobbes, em que a razão e a dedução lógica são aplicadas na construção do
artifício do próprio Estado. Neste caso, fala-se de uma Razão de Estado, a razão como
motivação real de existência do Estado. Hobbes traz uma justificação racional do Estado,
como um momento decisivo na secularização da política, a formação da ultima ratio,
quando “os fins justificam os meios”.
19) Processo político: entenda-se que a atividade política, como o poder, é uma relação, isto
é, as ações comunicam-se, modificam-se, por meio da interação e esse processo (seriação
de longo prazo) ainda implica na característica de que a política é de natureza coletiva e
contínua. O Estado pode não ser democrático, mas não haverá solução de continuidade
do processo político.
61
Quando realmente submetido ao direito, este contrato político é melhor designado por Estado de Direito.
No Egito antigo eram divisões territoriais, um nomos da terra, a localidade em que o ser, o cidadão se realizava.
63
“Com a expressão vita activa, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e
ação [...] A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da
matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na
Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta
pluralidade é especialmente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de
toda vida política. Assim, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como
sinônimas as expressões <viver> e <estar entre os homens> (inter homines esse), ou <morrer> e <deixar de estar
entre os homens> (inter homines esse desinere)” (Arendt, 1991, p. 15 – grifos nossos).
62
80
20) Ação política: ações humanas são aquelas que têm resultado efetivo e, se são de cunho
social, como ações sociais, quer dizer que se manifestam correlatamente nas ações e nas
dimensões de outros indivíduos (quer queiramos ou não, quer saibamos ou não). Como
ações políticas, implica em dizer que a escolha entre meios e fins – na relação política –
não é uma escolha isenta; às vezes não é uma escolha tão lógica como gostaríamos,
contudo, trará resultados para todos os envolvidos no processo político.
21) Procedimentos institucionais regulares: se pensarmos na imensa dimensão que a
burocracia tem em nosso cotidiano já seria suficiente. Enretanto, temos de visualizar que
determinados procedimentos são essências na configuração das regras do jogo político,
desde a escolha de mesários idôneos até a aplicação da Lei da Ficha Limpa. Depois de
constituído o poder, em outro exemplo, o mandatário deve reger-se pelos princípios
gerais do direito, da moral e de uma ética política (sob pena de responder pelos crimes de
responsabilidade pública).
22) Pensamento absolutista64: Hobbes é quem melhor sintetiza esse período da história do
Estado. Em suma, a ideia de uma soberania absoluta é necessária a fim de que o Estado
conhecesse a fase inicial da concentração do poder. (Daí a tese absolutista). Sem o poder
concentrado, organizado, forças políticas rivais seriam grave ameaça ao Poder Político.
23) Positivismo jurídico: Em Auguste Comte, o positivismo é um movimento filosófico,
uma matriz metodológica, uma filosofia de vida: como correção, ordem, progresso,
eficácia da organização social. O positivismo jurídico é uma corrente ou teoria do direito
em que se procura explicar o fenômeno jurídico a partir (exclusivamente) das normas
jurídicas positivadas.
24) Mundo contemporâneo: via de regra, entende-se como o tempo mundano presente,
atual. Todavia, é preciso não esquecer que o presente é formado pelo passado, pelo que
se faz (ou deixa de fazer) no presente e pelos sonhos, desejos e aspirações que se tinha
anteriormente. O presente, portanto, não é estático e nem tão atual como nos parece à
primeira vista. Por isso, ainda recebe o codinome de Modernidade Tardia, como um
passado-presente.
25) Soberania: ser soberano é não conhecer limites que lhe sejam impostos de fora ou do
alto. É reunir condições, poder, para agir com o máximo de autonomia. Então, soberano é
o Estado e autônomo (ou não) é o indivíduo ou o Estado-membro. A soberania,
entretanto, tem inúmeras divisões práticas e jurídicas.
26) Poder Político: como foi dito, o Estado reúne as principais características do Poder
Político, faz-lhe a síntese. Porém, o Poder Político estará presente em todas as
organizações sociais, coletivas, políticas em que houver um claro propósito político.
27) Hobbes: foi um filósofo inglês (1588-1679) celebrado como clássico fundador da Teoria
do Estado. Apresentou suas principais construções teóricas acerca das necessidades e da
capacidade de governabilidade dos Estados, basicamente em dois livros: Leviatã e Do
Cidadão. Também formulou uma teoria do conhecimento, mas é muito mais atual na
leitura da Teoria da Soberania.
28) Guerra civil: equiparado ao estado de natureza, foi o período em que Hobbes, muito
abalado com sua própria sobrevivência, procurou explicar por meio da lógica aplicada à
política dos reis o que o povo precisava para não sofrer as mazelas da guerra
generalizada. Chamada de “última razão dos reis”, sua teoria conferia o poder absoluto
aos príncipes para colocarem fim à guerra de todos contra todos.
64
Com a soberania como forma de poder absoluto.
81
29) Estado de natureza: Em Hobbes, é uma condição de desordem e mortandade geral, em
Locke (como pensador do liberalismo clássico), entretanto, significa “um estado de
igualdade, reciprocidade, onde ninguém tem mais do que os outros, são seres criados da
mesma espécie e da mesma condição, e que desfrutam das vantagens da natureza”.
30) Estado Forte: é parte da estrutura estatal presente, intervencionista, em oposição ao
Estado mínimo, pouco regulador, e que se viu a partir do neoliberalismo na segunda
metade do século XX.
31) Leviatã: Em Hobbes, a figura mística, bíblica, de um imenso crocodilo é utilizada para
simbolizar o poder do Estado. Um humano sozinho, desarmado, seria capaz de enfrentar
um crocodilo do Nilo, pesando mais de uma tonelada, com seis metros de comprimento?
32) Medo Construído: como diz Max Weber, o indivíduo anseia pela dominação porque é a
garantia de sua existência. Outra coisa bem diferente é o que faz o Estado com a prática
do “medo construído”, uma vez que, cria-se, planeja-se a instabilidade, um caos
controlado, para depois apresentar-se a ideia da força como único meio de regulação e de
controle social. Já foi denominado de Terrorismo de Estado, em que o Estado é
provocador de práticas terroristas contra uma parcela de seu povo.
33) Absolutismo: teoria política que defendia ao monarca todo o poder de controle sobre o
Estado, além de ser o regente da vida comum do homem médio.
34) Premissa: é o ponto de partida (premissa maior) ou intermediário (premissa menor) de
uma demonstração lógica ou matemática: “Todo homem é um ser político” (maior).
“João é homem” (menor). Logo (conclusão): “João é um animal político”.
35) Teoria do direito: uma concepção própria da construção dos argumentos jurídicos,
designando princípios e diretrizes comuns a todos os ramos do direito, e em que se
procura analisar o direito como um todo organizado, ordenado e lógico. Do que deriva a
compreensão do significado basilar desempenhado pelos Princípios Gerais do Direito.
36) Opressão: se é certo que todos os povos organizados conhecidos, sem exceção,
conheceram a organização social e a dominação política, porque sem isto não haveria
condição de sobrevivência comum, outra questão bem diferente é supor que a opressão
das vontades fosse necessária. Portanto, a opressão é a negação do direito, da liberdade e
de todas as garantias de que a dominação exercida por um determinado governo será
legítima.
37) Liberdade natural: inicialmente, tratava-se da Teoria Política da liberdade presente no
estado de natureza (ou estado de guerra): fazer tudo que se quisesse, sem ser responsável
por nada. Em seguida, passou a ser parte de outra cosmologia, como se fosse uma dádiva
da natureza e, assim, a liberdade seria o primeiro dos direitos. Porque sem liberdade não
há vida. Desse modo, a liberdade se converteria em direito natural.
38) Teoria organicista do poder: o que nos interessa neste caso específico é apontar que o
Estado foi e ainda é designado a partir de Teorias Organicistas, com clara analogia a
formas de vida inteligente, desde o Estado Leviatã (crocodilo), até a representação do Tio
Sam (caricatura que personifica os EUA).
39) Organismo vivo: do mesmo modo que se tratou por muito tempo de uma estática social
– como se os mecanismo sociais uma vez definidos não pudessem ser revistos –, depois,
no compasso de espera da Revolução Industrial, formularam-se diversas concepções
organicistas, sendo uma dessas o Funcionalismo, de Durkheim. O Estado, a sociedade
são organizações (organismos) que devem funcionar de forma encaixada, azeitada pelo
direito, pela moral.
82
40) Autopiese: semelhante à natureza, em que as células podem se duplicar, o indivíduo
consciente de si e do que fazer, é capaz de multiplicar o conhecimento e as práticas
sociais e políticas instituidoras da realidade política republicana, democrática, justa.
41) Heteronomia: do grego Hetero + Nomia: outro + lei. Quer dizer que a regra vem de fora
(o Estado para o direito posto) ou do alto (Deus para o direito natural).
42) Século XIX: o aprofundamento da democracia que se verificou no século seguinte, no
século XIX já reconhecia o fomento dos movimentos populares, a começar da formação
do operariado organizado, do sindicalismo, e de uma consciência social que aliaria o
Mundo do Trabalho (como direito coletivo) à política. O trabalho é algo muito
importante, essencial à formação do homem, para ficar sujeito ao jugo de uma única
classe social.
43) Regulação pelo direito: também definido como medium-direito, esta regulação pelo
direito precisa ser entendida como parte da luta do “mundo da vida” ao requerer/enfrentar
o monopólio legislativo e coercitivo, em benefício da globalidade dos interesses sociais,
exigindo-se muito mais legitimidade do que mera legalização da repressão. O médiumdireito precisa ser afirmado como constructo da legitimidade e do reconhecimento
intersubjetivo dos agentes/sujeitos de direito.
44) Soberania popular: tem-se por este conceito a ideia-base de que a soberania (antes
ilimitada, como poder heterônomo), agora, é restrita ao incremento do poder de acordo
com os interesses sociais, globais, de toda a comunidade política. É uma tese que se inicia
com Rousseau e tem por fundamento a legitimação do Poder Político.
45) Humanização do Poder Público: tal qual se verificaria com a “humanização da pena”
(humanização do direito), o exercício do Poder Político deveria ser ampliado para além
dos horizontes da eficácia do poder coercitivo, uma vez que o papel civilizatório
manifesto pelo Estado e pelo Direito deveria ser destacado em primeiro lugar.
46) Restrição ao manejo do poder: o sistema de freios e contrapesos, a ampliação da
reserva legal, a responsabilidade objetiva cobrada do Estado são desdobramento da
primeira restrição política, imposta pela “regra da bilateralidade da norma jurídica”.
47) Cidadania democrática: em apoio paralelo à cidadania ativa (participativa), a
democracia democrática tem a vantagem de reunir as principais conquistas do
pensamento democrático clássico (como a alternância do poder), com todo o esforço de
proteção jurídica trazida pelo conjunto complexo dos direitos humanos.
48) Monopólio do uso legítimo da força física (coerção): o aparelho repressivo do Estado é
inerente ao controle político, soberano, como poder supremo do Estado sobre seus
indivíduos, e quer receba o nome de heteronomia (poder erga omnes da lei) quer seja
debatido como poder extroverso (capacidade administrativa do Estado, como se vê no
Poder de Polícia). Porém, muitos outros mecanismos de controle social (a cultura) e a
necessidade de promoção social (como na garantia dos direitos público-subjetivos), além
dos desafios apresentados pelos séculos XX-XXI, exigem muito mais do Poder Político
do que a mera repressão/contenção.
49) Max Weber: o sociólogo alemão é considerado um dos maiores pensadores do século
XIX. Com Karl Marx e Emile Durkheim formam o trio mais influente da sociologia. No
sentido do texto, entretanto, pode-se destacar que Weber teve um papel decisivo na
formulação da Constituição de Weimar (1919) e que sua definição de democracia
plebiscitária (construção de um saber nomológico, de leis gerais) ganhou muitos adeptos
e seguidores.
83
50) Intencionalidade política: nem todos os povos – por mais que possamos valorizar a
qualidade e o aprofundamento de sua organização social e cultural, como os Astecas e
muitas tribos africanas – tiveram a intenção de se organizar em um aparelho coercitivo de
Estado. O conhecimento antropológico esclareceu esse processo inúmeras vezes.
84
A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO
São muitas as fases históricas de evolução/desenvolvimento estatal: Estado antigo,
Estado Corporativo (medieval), Estado Moderno, Estado Liberal ou Capitalista, Estado
Constitucional e Estado Democrático. Especialmente na fase alcançada a partir de 1950, o
Estado Moderno configurou uma realidade bastante modificada pela incidência do direito
positivo e legitimado. Neste sentido, o direito interfere/intervém na estrutura política. Neste
longo processo houve uma modificação imperativa no poder, no Estado e no direito. Quanto ao
poder egoísta, imposto pela relação inicialmente resignada aos interesses dos que detém o poder,
transformou-se em poder legal. Gradativamente, por exemplo, há uma transformação da força
física (violência) em regulação social e jurídica.
Concepção Jurídica de Estado
Observando-se a evolução da concepção jurídica que se acerca do Poder Político
podemos verificar a história da evolução do próprio Estado. Como concepção jurídica, o Estado
é um modelo paradigmático de organização e de exercício do poder; como instituição maior, o
Poder Político é autor e sujeito de direitos. Há duas grandes escolas para interpretar esse
fenômeno político: 1) concepção extensiva de Estado – assevera que toda organização mais
complexa de poder pode ser qualificada de Estado; 2) concepção restritiva de Estado – noção
em que o Estado constitui uma das formas particulares de organização do poder. A primeira
visão confunde o Estado e a sociedade política. A segunda perspectiva tem no Estado um modo
especial de organização do pensamento e da ação política, capaz de racionalizar juridicamente o
poder e de organizar e enquadrar as relações humanas. Como fenômeno histórico (racional e
organizacional), o Estado é uma construção jurídica especial (artificial). Portanto, distingue-se da
Polis grega, da civitas romana e também do Império. Como o direito, o Estado é uma ficção
jurídica (como normatização do poder) que se segue à luta política por afirmação da soberania.
Etimologicamente, o Estado provém do latim status – de stare – ficar de pé, ser firme e
forte. Sob este conceito (stato para Maquiavel), diferencia-se da expressão grega Koinomia
politique ou das expressões latinas res publica e civitas. Na França, o termo Estado foi
confirmado/grafado em maiúsculo por Charles Loyseau. Surgiu simultaneamente entre o
termo/conceito e o fenômeno político. Bodin também colaborou significativamente com a
sistematização do conceito.
O fenômeno estatal revela-se, enfim, resultante de três movimentos: i) concentração do
poder; ii) secularização; iii) abstração jurídica. O primeiro ponto irá definir a soberania (com o
rei soberano) e a unidade territorial. A secularização reforçaria a soberania, uma vez que a
laicização aponta para a separação entre Estado e Igreja. Isto diminuiu a pressão externa sobre o
governo do Estado, corroborando com a soberania do poder secular. O terceiro aspecto revela
que o Estado é resultado da abstração do poder; primeiro dissociando-se a vida privada da norma
e sua figura pública; depois, modernamente, distinguindo-se entre a instituição dos governantes,
órgãos de Estado e os governados submetidos ao poder dos primeiros.
Este poder de institucionalização do titular do poder permite a estabilidade e a
permanência do poder estatal. Ao se ressaltar vícios e virtudes chega-se à conclusão de que o
Estado não é uma necessidade lógica (até porque há povos sem Estado), mas sim histórica. Quer
sejam os dilemas antigos, clássicos (imprimir-se eficácia ao poder estatal), quer sejam os
problemas modernos e contemporâneos (soberania externa, lobbies), ambos revelam um
paradoxo: apesar de todos os entrechoques e fatores de dissolução do poder estatal, o Estado
continua sendo a matriz, o esquema ideal de exercício do poder. O sucesso da forma-Estado pode
85
ser quantificado: 51 Estados na ONU, em 1945, e mais de 191 atualmente. O próprio direito de
secessão (a partir da Autolimitação dos Povos) conduz à criação de outros Estados.
A observação da bivalência do Estado – como ente jurídico e histórico – revela que os
defensores da Razão de Estado preveem que o Poder Político estaria além do alcance efetivo da
norma jurídica, por se tratar o Estado de um fenômeno essencialmente político65. A Razão de
Estado, como necessidade de se justificar o aparato estatal, coloca a instituição-Estado fora do
alcance das regras jurídicas, especialmente por se tratar da limitação do poder. As regras
jurídicas aplicadas à sobrevivência do Estado são, portanto, regras especiais, ocasionais,
excepcionais: de exceção.
Em sentido oposto, quando apreendemos o Estado como instituto de personalidade
jurídica, abrem-se duas posições: 1) Positivismo Jurídico: tem-se que o direito é produzido pelo
Estado e só existe por esta via; nenhum direito é então anterior nem superior à entidade estatal.
Exemplo marcante é encontrado numa decisão de 1927, da Corte Permanente de Justiça
Internacional: “As regras de direito, que vinculam os Estados procedem, portanto, da vontade
destes”. 2) Alteridade Jurídica: contrariamente à primeira posição – de identidade entre Estado e
direito –, esta aponta a alteridade ou a não-identificação66. Esta segunda versão – de que não há
justaposição – remonta ao século XIX, na Alemanha, e foi utilizada pela primeira vez sob a
expressão Rechtstaat67 ou Estado de Direito (na cultura jurídica francesa).
Nesta visão, o Estado é limitado (em poder) por regras jurídicas preexistentes e
superiores à ordem política. Inicialmente concebido como limitação ao poder arbitrário por
órgãos do Estado – depois como subordinação dos atos administrativos à lei –, a noção de Estado
de Direito é agora entendida como enunciação de direitos subjetivos que o Estado deve respeitar
(ou obrigação de não-fazer, não-violar, não-mitigar ou agravar conquistas de direitos). De modo
amplo, pode-se dizer que o Estado está obrigado a respeitar as regras de proteção dos direitos
humanos. Assim, é possível inferir que o Estado de Direito restringe a soberania do Estado.
Diante do direito internacional, o Estado obedece a condições de oponibilidade ao conjunto dos
outros sujeitos de direito internacional. Como coletividade a ser reconhecida juridicamente –
interna e externamente –, o Estado deve reunir alguns elementos: povo, território, aparato
governamental (exercício da soberania).
Elementos de formação
Esses elementos estão destacados no Primeiro Parecer, de 29/11/1991, da Comissão de
Arbitragem para a Paz na Iugoslávia (hoje extinta): “O Estado costuma ser definido como uma
coletividade que se compõe de um território e de uma população, ambos submetidos a um poder
político organizado”. O povo constitui o fundamento orgânico, vivo do Estado; a unidade do
povo implica na formação do sentimento de Estado-Nação (ou de Estado Multinacional, se for o
caso). De todo modo, trata-se de definir a soberania nacional como dimensionamento do caráter
homogêneo impresso pelo Poder Político. Quanto ao território basta que seus contornos sejam
suficientemente claros (sejam contínuos ou não). A governabilidade, como condição de
soberania, revela-se como eficácia do poder (internamente) ou independência (no plano externo).
O conjunto dessas condições constitui fatos-condições, ou seja, fatos em cuja realização o direito
vincula certo número de consequências. Satisfeitas essas condições, o povo deve exigir respeito
– sobretudo dos demais Estados - aos direitos fundamentais, como o direito à integridade
65
O Estado pode ser uma ficção jurídica, mas é uma realidade política.
A relação do Estado com o direito é uma relação entre a autoridade e a alteridade.
67
Pode ter o sentido de Estado Legal ou Estado Constitucional, como Poder Político delimitado/regulado pela lei e
pelo direito.
66
86
territorial. Com isto, destaca-se a capacidade de uma determinada coletividade política provocar
reconhecimento internacional a fim de que se afirme como Estado. Entendendo-se o
reconhecimento como condições de oponibilidade subjetiva da coletividade estatal.
O reconhecimento é ainda um poder discricionário, por duas razões: 1) Nenhum Estado é
obrigado ao reconhecimento; 2) pode-se subordinar o reconhecimento a determinadas condições,
como o respeito à democracia e aos direitos humanos. O ato declaratório do reconhecimento não
pode ser antecipado e, além disso, denega-se o reconhecimento ao Estado que tenha se utilizado
da violência para se afirmar. O problema real é que lutas de anticolonização costumam ser
violentas e o Estado formado em seguida pode pacificar as relações sociais. Enfim, é possível ver
efeitos políticos e jurídicos no reconhecimento: politicamente, determina a viabilidade do Estado
na arena internacional; juridicamente, permite ao Estado manter relações intersubjetivas
positivas, estabelecendo relações diplomáticas. O que ainda revela que o Estado é uma pessoa
jurídica que se beneficia de um atributo discriminante: a soberania. Como sujeito de direitos está
apto a arcar com obrigações e a ter direitos; como pessoa jurídica só poderá agir por intermédio
de indivíduos habilitados a representá-lo. O conjunto de direitos, obrigações, competências ou
poderes constitui o que se chama de capacidade jurídica. Tanto a personalidade quanto a
capacidade jurídica do Estado são originárias e iniciais.
Soberania
A soberania (derivada da realidade expressa pelo conceito de summa potestas) não
significa que seja ilimitada (como no passado), mas sim que não se admite nenhuma autoridade
acima dele (a não ser a lei criada pelo próprio Estado e pelo conjunto de valores expressos pelo
estágio civilizatório da Humanidade). No plano internacional, a soberania é limitada por seu
próprio exercício, uma vez que será sujeito às regras de direito internacional a que aderiu
espontaneamente. De acordo com o acórdão de 17/08/1923, CPJI, da Corte Permanente de
Justiça Internacional: “A faculdade de assumir compromissos internacionais é precisamente um
atributo da soberania do Estado”. A igualdade jurídica entre os Estados é prevista no artigo 2º,
§1º da Carta das Nações Unidas, de 194568. Internamente, a soberania pode ser definida
positivamente como a soma de certo número de prerrogativas do poder soberano (ou seja, pelo
quantum de poder). A soberania do poder é heteroilimitada – não podendo ser limitada de fora
para dentro ou de cima para baixo.
A soberania implica diretamente na ideia de funções do Estado, uma vez que o Poder
Político seria organizado em razão de um determinado fim – por alguma razão. O que nos leva a
definir o Estado de acordo com situações e exigências determinadas. Sobressaindo-se ao estado
de natureza – anomia –, o Estado deveria garantir a ordem, inibir a violência e a justiça privada.
Daí em diante – até se assentar como Estado Jurídico – conhecemos outras fases e formas: do
Estado Policial ao Estado Comerciante, regulador, intervencionista, pós-liberal. Desse modo,
como derivação da soberania do Poder Político (summa potestas), o poder seria repartido de
acordo com funções específicas: 1) poder soberano, inclusive para definir outras
funções/atribuições estatais (jure imperii); 2) atividades de gestão/gerência (hoje seria
governabilidade) que não impliquem em prerrogativas soberanas (jure gestionis). Em outra
síntese, as funções precípuas do Estado (desde Montesquieu) são: fazer a lei, executá-la e de
julgamento. Precisamente, nesta ordem.
68
Artigo 2. A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de
acordo com os seguintes Princípios: 1. A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus
Membros.
87
Por uma questão óbvia – ao substrato jurídico do Poder Político –, pode-se concluir que
há uma cronologia entre as funções: o Poder Executivo só pode aplicar a lei depois de sua
promulgação (pelo Legislativo) e o Judiciário só poderá fiscalizar a ambos após a emissão da
vontade da lei e da ação concreta do poder. Conforme o Poder Judiciário se organizava enquanto
função da soberania, elevava-se a consciência social acerca da lei (judicialização) e vice-versa,
uma vez que, as demandas sociais são o elã da luta política pelo direito. Ainda notabilizamos que
não se trata, isoladamente, do simples poder de juris-dictio, como poder de julgar, pois contrai
antes de tudo o poder de dizer a lei, de acordo com a capacidade de interpretação das normas, da
determinação de seu sentido e da verdade legal (Princípio da Verdade Real) avocada pelo Estado
Jurídico. A cada Estado, entretanto, compete regulamentar como se efetivará esta divisão das
funções políticas/organizativas do Poder Público, como se tem na decisão de 27 de junho de
1986, da Corte Internacional de Justiça, no Caso das Atividades Militares e Paramilitares na
Nicarágua e contra esta (Alland, 2012). Vemos, enfim, uma luta jurídica progressiva para se
superar a noção do poder pelo poder, redefinindo-o como poder normatizado, regido, delimitado
pelo direito. Pela modificação do poder também se analisa a evolução histórica da forma-Estado.
Poder como interesse
O poder como interesse revela que, aquele que aspira ao poder, considera-o como um
meio (poder instrumental) para atingir certos fins – ou deseja-o por motivos simplesmente
mesquinhos, para usufruir de seu prestígio (sensação de poder). Por fim, é o diapasão de toda
organização social até hoje existente. São problemas/dilemas individuais ou ético-políticos a
conquista, a manutenção, a regulação e o exercício do poder.
Poder e força
O poder como força é a capacidade ou a possibilidade de agir e de produzir efeitos.
Refere-se a indivíduos e a grupos humanos (como Poder Político) ou a fenômenos naturais
(poder de absorção). Em sua relação aos objetivos sociais, trata-se do poder do homem sobre o
homem. Como relação que se estabelece com o poder, o homem é tanto o sujeito quanto o objeto
do poder. De todo modo, o poder é uma relação triádica: a) o indivíduo ou o grupo que
orquestra o poder; b) o indivíduo ou o grupo a quem se dirige o poder; c) a esfera do poder
(todos os envolvidos são conectados/transformados pelo poder, gerando outros atores e nova
dinâmica ao poder). Como dinâmica, o poder está sempre em movimento, transformando-se. Por
fim, como poder atual, ainda se considera que o poder como capacidade de determinar o
comportamento de outrem é posta em ação. Como ato, o poder corresponde à passagem do
estado de potência à condição de ato político efetivo. Como potencial, o poder é um conjunto de
possibilidades, como capacidade de determinar o comportamento dos outros.
Poder Social
Como sociabilidade, o poder é uma capacidade sistêmica; a capacidade dos sistemas
sociais (portanto, uma propriedade impessoal) de produzir relações sociais e realizar objetivos
coletivamente vinculatórios ou, então, reduzir a complexidade ou os níveis de entropia social,
por meio da disciplina (uniformização dos comportamentos pelas instituições) e do controle
social. O poder pode ser uma busca intencional, em que se exerce autoridade, violência ou outra
força vital (como o temor reverencial) a fim de influir, solidificar ou modificar determinadas
instituições, dinâmicas e sistemas sociais.
Poder legal
Como poder regulado por lei – Estado de Direito –, o Poder Legal coloca-nos um dilema
atual: o próprio conceito de Estado de Direito é conteúdo e objetivo do Estado ou, ao contrário,
apenas a forma e a maneira de realizá-lo? Como doutrina do direito, o Estado de Direito delimita
88
o Poder Político, mas, além disso, traz regulações necessárias à vida comum do homem médio.
Neste caso, atua como substrato de sua consciência (cultura e consciência jurídica) – não apenas
como regras estatutárias, mas como a priori moral e organizacional dos espaços de
convivialidade. É um poder (moral, jurídico, político) que decorre da vontade geral, da
coletividade do povo, da relação do povo consigo, por meio da lei e como racionalidade jurídica.
Em suma, o Estado de Direito (como base institucional do Poder Legal) estabelece o “governo
em conformidade com a vontade geral racional”: a sociedade deve participar da determinação
dos objetivos do Estado. Sobretudo para que o Estado só intervenha na vida civil mediante leis
expressas: regras universais. É um objetivo Iluminista.
Poder Regulamentar
O poder como regulamento é a capacidade que “algumas autoridades administrativas têm
de ditar regras de direitos”, ou seja, decisões jurídicas com caráter geral, impessoal (Alland,
2012, p. 1350). Trata-se da mesma função material do Estado de ditar regras (função própria,
específica do Poder Legislativo), bem como se vincula a normatiza o cumprimento dessas regras
pela autoridade executiva. Esta diversidade é compensada por uma unidade orgânica do sistema
jurídico que disciplina as atribuições (como poder da norma). Não são leis; os regulamentos
reservam-se ao regime dos atos administrativos. Portanto, podem ser objetados pelos
administrados como atos ilegais. Na França, por exemplo, a lei é a única regra de direito
legítima, pois expressa a vontade geral. A lei seria disciplinar.
O Poder do direito
Sobretudo no século XX, mas já apontado no século XIX, o poder do direito se
materializou como Poder Político. Identificado como Estado de Direito, o poder seria regulado
por lei e o Estado Moderno seria convertido em Estado Constitucional, o governo dos homens –
determinante nos tipos passados de Estado – converter-se-ia em governo das leis. O Estado de
Direito é o poder das leis. Por isso, os conceitos políticos e constitucionais fundamentais
mantêm-se duráveis, mas como estruturas ou construtos jurídicos também são elaborados em
função de determinados contextos intelectuais, sociais e históricos diferenciados. Não são
somente lutas semânticas, mas sim lutas políticas não-comportadas e nem contidas por regras
acadêmicas. Em todo caso, há princípios que devem ser verificados:
1) Princípio da primazia da Constituição e de sua garantia jurisdicional;
2) Submissão da administração e da justiça à lei e ao direito;
3) Reserva de lei que proíbe ao Executivo agir sem uma base legislativa suficientemente
regulamentada;
4) Princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais;
5) Separação dos poderes;
6) Segurança jurídica;
7) Ordem jurídica democrática e seus corolários morais e legais (precisão, clareza e
objetividade das normas jurídicas, proteção da confiança legítima69, princípio da nãoretroatividade);
8) Responsabilidade do poder público;
69
O princípio da proteção da confiança legítima decorre da ideia de que o Estado de Direito desempenha uma
função hermenêutica. Evidencia a manutenção de determinados atos administrativos, mesmo sendo antijurídicos,
pois se verifica a expectativa legítima (do administrado) de que esses atos permitirão a estabilidade do sistema.
Direciona-se para o futuro da administração (previsibilidade), em que o administrado se vê regulado com certa
legitimidade (tranquilidade, imutabilidade da situação em que o administrado se encontra). Pode ser ainda que a
regra imoral reforce o sentimento de legalidade.
89
9) Princípio da proporcionalidade;
10) Direito a recursos e garantias processuais.
A noção formal do Estado de Direito se baseia nos princípios de constitucionalidade e
legalidade. A percepção material do Estado de Direito corresponde à garantia de que a
Constituição contém regras que disciplinam e são inspiradas pelos princípios já enumerados.
Porém, ainda se verificam diferenças no conteúdo, na natureza e na função:
a) Pode-se falar de uma noção política descritiva, quando se qualifica um Estado em que
a Constituição define os elementos do seu conteúdo (formal e material). É um tipo de
Estado.
b) Há uma noção de direito positivo e tem a função de ancorar esses princípios na
Constituição, especialmente se há falta de base legal. É um princípio constitucional.
c) Por fim, como noção política normativa funciona como ideal, objetivo políticojurídico coletivamente desejável. É uma ideia de Estado.
Juridicamente, o poder também se manifesta como direito e a força como capacidade
regulamentar.
O direito como realidade complexa
No século XX, o direito surgiu como um conjunto complexo (sistema) de normas
jurídicas e de regras sociais (direito positivo e costumes) que atuam na normalização
(normatização) das relações sociais e jurídicas, na vida comum do homem médio (controle
social) e na organização do Poder Político (poder unificado), como expressão da soberania
popular (Vontade Geral), e muitas vezes em desafio às discrepâncias sociais e jurídicas, ao
antidireito, e a fim de se reafirmar a legitimidade e a perfectibilidade do Estado Racional (como
utopia de direito passível de Justiça e não mera ficção).
1. SÉCULO XX: o direito no século XX movimentou-se em dois grandes sentidos, sob o
controle do capital financeiro, mas igualmente como produto de resistência na forma do
direito coletivo e difuso. O século XX ainda é um marco na passagem das tradições da
modernidade clássica para o que se chamou de pós-modernidade (com o enfraquecimento do
mesmo Estado gerador de direitos sociais).
2. DIREITO – resulta da luta política em torno da afirmação da soberania popular, muitas
vezes contra o próprio Estado. O direito, portanto, equivale à transformação do dever de
obediência em garantias e liberdades para se requisitar e conquistar outros direitos.
3. COMPLEXO (complexus) – designa uma rede, uma teia de relações ou de significados que
se articulam em escala global.
4. SISTEMA – conjunto ordenado/sistematizado de regras e de normas coerentes entre si,
eficazes (eficientes), abstratas, universais (gerais) e legitimadas pela vontade geral dos
indivíduos/sujeitos de direito (individuais e coletivos).
5. NORMAS JURÍDICAS – são normas “autorizadas” (outorgadas ou promulgadas) pelo
Estado a fim de que o direito seja positivo (para que o direito atue como meios reguladores,
como filosofia de vida, em que o positivismo seja um caminho reto, positivo).
6. REGRAS SOCIAIS E JURÍDICAS – são regras do convívio, muitas limitadas ou
instigadas pela moral prevalecente, em determinado contexto e de acordo com as
características apoiadas pelo grupo social predominante ou hegemônico.
7. DIREITO POSITIVO – direito posto, como direito imposto pelo Estado. No Brasil, pela
dicotomia muitas vezes notada entre o direito e a realidade social, o direito posto raramente é
90
um direito interposto, em comunhão e de acordo com o consenso. Também pode ser o direito
escrito “codificado”, salvo algumas exceções, como do direito administrativo e da CLT (que
é uma Consolidação das Leis Trabalhistas).
8. COSTUMES – vem de ethos: padrões de convivialidade (ética). Interliga-se à cultura, mas
não a substitui como sinônimo.
9. NORMALIZAÇÃO – tanto a norma social quanto a regra jurídica procuram afirmar o que o
senso geral de convivência define como normal (padrão social), em oposição ao anormal
(patologias sociais, como as psicopatias).
10. NORMATIZAÇÃO – imposição de regras jurídicas que seguem um padrão de normas
comuns e aceitas por todos.
11. RELAÇÕES SOCIAIS – são relações que resultam da regularidade nas ações sociais (como
ação em que o sentido subjetivo do indivíduo ou dos sujeitos está referido à conduta de
outros indivíduos/sujeitos envolvidos pela relação jurídica). O afeto e a amizade podem ser
exemplos de relações sociais, ao passo que o aperto de mãos indica uma ação social. Há uma
nítida diferença de intensidade.
12. VIDA COMUM – chamado de o “mundo da vida” inclui os padrões habitualmente aceitos,
além de todo o sistema de normas e de regras que surgem e se articulam a partir do Mundo
do Trabalho (formal e informal), das relações familiares e privadas e do espaço público da
política (no que se refere à política tradicional, às vezes oficial, mas também aos poros em
que se articulam a insatisfação e a revolta).
13. HOMEM MÉDIO – aquele indivíduo/sujeito que atua, vive, colabora/participa do mundo
da vida comum, quase que anonimamente, que expressa uma consciência mediana (senso
comum) acerca do direito e do poder; mas, que está sob o alcance integral do Poder Político
(do Estado que formula o direito que regula a vida das pessoas comuns e ao próprio Poder
Público).
14. CONTROLE SOCIAL – relacionam mecanismos de organização social que impedem a
desordem, a desarticulação social e que se verificam nas discrepâncias que ameaçam a
estabilidade social.
15. PODER POLÍTICO – comumente, refere-se ao Estado como instituição por excelência.
Contudo, o Poder Político é uma organização do poder de comando, sendo o Estado ou um
conjunto de Estados (commonwealth) ou mesmo uma organização coletiva (a exemplo dos
colegiados presentes nas comunidades primitivas).
16. PODER UNIFICADO – o poder assim definido, derivado do processo de laicização (como
indutor do crescente Princípio da Tolerância, em função de maior isonomia e objetividade ou
racionalidade das relações políticas), ainda se apresenta como resultado direto do Estado
Laico; separando-se o poder secular do poder sagrado, obriga-se ao Estado não-diferenciar,
negativamente, entre seus concidadãos70.
17. SOBERANIA POPULAR – ao contrário da Teoria Clássica da Soberania que tem forte
presença no pensamento de Hobbes (summa potestas – potestade71), a soberania popular
pressupõe que o Estado, como Poder Político, seja exercido democraticamente, de acordo
com os interesses sociais e populares, além de ser um poder regulado pelo direito
70
São princípios da soberania no Estado Atual: a exclusividade, universalidade, inclusividade
Refere-se à soberania como o poder próprio, inerente, específico do Estado e que se apresenta como evidente
supremacia sobre os indivíduos e as sociedades de indivíduos que formam sua estrutura social, e, a par disso, é
independente de todos os outros Estados.
71
91
democrático (este sentido é bem claro na expressão do legislador português, ao referir-se ao
Estado de direito democrático).
18. VONTADE GERAL – os clássicos da Teoria Política se referiam à soberania popular como
Vontade Geral; porém, não se aplica como somatória das vontades particulares porque a lei
(como direito positivo) é resultado do entrechoque entre vontades particulares (lobbies) – na
arena política –, especialmente no Parlamento, e que atingem um grau de maturação –
universalidade – graças à sublimação, depuração, abstração das próprias razões e motivos
que originaram o projeto legal72.
19. DISCREPÂNCIAS SISTÊMICAS E JURÍDICAS: todo sistema (por mais organizado que
seja) precisa de oxigenação a fim de que se adapte às mudanças sociais e assim atenda às
novas exigências coletivas. O que permite este movimento social são justamente as
discrepâncias. Todavia, se a entropia é superior ao nível de acomodação e à capacidade de
absorção, as mudanças (antes requeridas) transformam-se em distopias.
20. ANTIDIREITO – é preciso não esquecer que o antidireito nos leva direto para um tempo
pretérito, para um passado meio sombrio, de pouca luz, como se estivéssemos em meio às
trevas do Estado de (não)Direito. É preciso lembrar que o antidireito é sinônimo de antes do
Direito, ou seja, o tempo, a fase ou o momento onde predominava o uso da força, com a
negação veemente de muitas condições políticas – a exemplo das garantias que seriam
prestadas aos adversários, mas que hoje, graças à negação dessas garantias, acabaram por
transformar os dissidentes em inimigos. Pois bem, o antidireito e o direito positivo
transparente – mas estanque na defesa do patrimonialismo – são exemplos da mais pura
negação do Direito73.
21. LEGITIMIDADE – aproximando-se do conceito/sentido expresso tanto na soberania
popular quanto na ordem jurídica democrática, a noção de legitimidade do Estado preserva
conteúdos complementares: 1) Sem a conotação social, o direito é instável e, portanto, gerase uma insuperável insegurança jurídica; 2) Sem sociabilidade, o direito se reduz ao monismo
de subsunção, o direito que provém do Estado tende a se identificar com o poder
estabelecido; 3) Ao servir à Razão de Estado, o direito se desincumbe da obrigação de servir
à sociedade.
22. PERFECTIBILIDADE – nenhum sistema é perfeito, mas como medium, o direito tende ao
aprimoramento, à perfeição sistêmica, especialmente se observarmos no longo prazo, desde
sua separação da moral, dos preceitos religiosos, e até se afirmar como regras gerais,
abstratas.
23. ESTADO RACIONAL – a partir de Max Weber, entende-se como um processo de contínua
e crescente racionalização da vida pública, o que implica em dizer que também o Poder
Político não mais se isentará do alcance de regras igualmente racionais. Por fim, pode-se
dizer que o Estado é um agente ativo do processo civilizatório, uma vez que o Poder Político
é resultado do direito e, sob esse controle, produz novas leis.
24. UTOPIA DE DIREITO - quando se busca a verdade e a Justiça, o Direito tem que ser muito
mais do que uma figura de linguagem: por melhores que sejam as intenções, é preciso
72
A lei, resultado dessa abstração de realidade, após o longo processo de depuração/transformação em que se
submete no Poder Legislativo, em seguida, será aplicada conforme o procedimento jurídico designado como
subsunção: a norma eleva-se sobre a realidade que lhe deu origem, abstraindo-se de suas implicações históricas
imediatas, formalizando-se a ação de uma norma abstrata, em direção ao mundo real.
73
Infelizmente, no Brasil, o tom que prevalece é o pastel, ou seja, nem isso, nem aquilo, nem cá, nem lá, esse tom
apagado que não encanta ninguém, essa aquarela liquefeita em demasia e que só permite o improviso: o máximo do
improviso é a tal lei que não pega.
92
relembrar que o brilho cega, ou seja, a Justiça não pode ser substituída pela iconoclastia da
Justiça. A utopia pode transformar a realidade, mas tem que ser uma utopia possível – a
limitação da expressão está em que esse direito nuançado que temos hoje não consegue
reduzir as mazelas sociais das classes menos privilegiadas, populares e ainda vemos o
pensamento corrente de que há uma espécie de excesso de direitos. O que é contrassenso,
senso comum, limitado às aparências, pois, se somos iguais perante a lei, não há direitos
demais (a não ser que se tome isso por privilégios).
25. JUSTIÇA – por Justiça se entenda inicialmente o Princípio da Equidade (como equilíbrio
social) em que os mais fracos são tratados/preservados dos riscos e das ações diretas daqueles
que detém o poder: tratar os iguais, igualmente; os desiguais, desigualmente. Na regra geral
há a isonomia, mas diante do desequilíbrio social, cabem recursos/instrumentos de
recomposição sistêmica (como o discrímen: regras que discriminam para proteger os
desafortunados).
26. FICÇÃO – o direito é uma ficção porque se trata de criação humana, é uma invenção (como
intervenção no curso regular da vida social), um artificialismo que substitui as ações
humanas não reguladas e regidas pelo direito, como a vingança privada.
O século XX também foi o marco decisivo na transformação do Estado Liberal, sob a
democracia e o socialismo. As décadas de 1950 e 1970 foram decisivas na configuração de uma
tipologia do Poder Político não mais restrito aos interesses do grande capital. Como Estado de
Direito Justo, atribuindo-se uma relação entre Estado, Direito e Ética, pode-se dizer que se
encontra em fluxo um processo de hominização e socialização em que se rearticulam o Social e o
Político. Na restauração democrática que se seguiu ao Salazarismo e Franquismo instigou-se um
conteúdo ético ao Poder Político.
Estado e Ética
Sabemos perfeitamente que o homem é um animal político e não apenas social. Esta
parece ser a intenção de Aristóteles ao afirmar o zoon politikon, pois muitos outros animais
também são sociais, mas sem serem políticos. As abelhas e sua fascinante organização social, a
partir da intrincada e elabora colmeia, provoca fascínio há milênios – foi um símbolo adotado até
mesmo por Napoleão Bonaparte. O gado de forma geral é composto de animais sociais, quando
vivem agrupados, porém sem que tenham qualquer outro princípio organizativo, sem sequer se
defender organizadamente, coletivamente. O gado mesmo vivendo aos milhares dispara em
desabalada ao menor sinal de perigo, sem se preocupar com a autodefesa - talvez, à exceção do
Búfalo.
De todo modo, mesmo não havendo maior coordenação social ou não sendo possível
generalizar a característica social, algumas formas de vida pré-humanas (plantas74, insetos,
mamíferos) e até os humanoides75 têm ou tiveram suas vidas baseadas no desenvolvimento de
mecanismos sociais elementares:
Estes mecanismos chegam a ser descritos pelos biólogos, através de
conceitos como “apetite social”, “interatração”, “cooperação
inconsciente”, tendência automática para a ajuda mútua”, “tolerância à
presença de outros”, “competição consciente”, “sociabilidade” etc [...] É
verdade que subsiste o problema de como separar, caracterizar e
74
Esta é a simbiose que as plantas também se mostram capazes de desenvolver.
Como vimos, o homem pré-histórico procurava recuperar seus feridos de caçadas e combates. Não seria isso um
sinal de solidariedade?
75
93
interpretar o que é “social” nas formas pré-humanas da vida [...] Tudo
que se pode perceber é um gradual desenvolvimento de atributos sociais,
o qual indica um substrato de tendências sociais em todo o reino animal.
Desse substrato social a vida social emerge pela operação de diferentes
mecanismos e sob várias formas de expressão, até alcançar o presente
clímax nos vertebrados e nos insetos (Fernandes, 1977, p. 27).
Outros animais, no entanto, já reúnem melhores condições de organização, como abelhas,
formigas e castores – com divisões internas das funções sociais. Lobos, leões, cachorros
selvagens africanos ou chipanzés76, além dessa organização para viverem em sociedade, já
possuem certa inteligência social, pois são capazes de organizar a caça coletivamente. O
revezamento entre as funções de ataque e liderança no cerco final à caça, entre o chamado lobo
alfa e outros membros da equipe de assalto é um exemplo claro dessa inteligência social.
Denominamos de inteligência social essa capacidade de agir coletivamente que resulta
em maior capacidade de interação social. Portanto, inteligência social se refere à capacidade para
manejar apropriadamente situações pessoais e interpessoais da vida diária, tendo em conta
finalidades igualmente societárias. Daí que interação social, por sua vez, pressupõe níveis
positivos mínimos de sociabilidade, ajuda mútua e interdependência recíproca.
O homem, como é fácil perceber, reúne essas três dimensões, ou seja, é social, sociável,
societário, tem apurado senso de inteligência social77 e é um animal político: especialmente ao
externar e executar determinados níveis de poderio social78. De todos os animais, o homem é o
único capaz de racionalizar sobre o que é ser social, além de ser dotado de raciocínio lógico que
lhe permite agir politicamente, bem como refletir criticamente acerca dos seus próprios níveis de
inteligência social: o que também implica em práticas sociais que resultam em transformação
política - práxis. Quanto a esse homem social e político, pode-se falar que desenvolveu em
milhares de anos uma poderosa teleologia, ou capacidade projetiva das transformações sociais e
políticas futuras. E é certo como isto é parte do empuxo decisivo para desenvolver a inteligência
social e o raciocínio lógico do homem. Lembremos ainda da importância decisiva que teve o
movimento de pinça, com o movimento articulado entre o dedo indicador e o polegar: um
exemplo nítido do componente biológico da inteligência social.
Essa condição intelectual que o homem aprimorou a partir da experiência política, essa
possibilidade de abstração e reflexão do viver social e do fazer política, define a própria
dimensão social do político. Isso envolve uma relação que vai da ação política à reflexão do
político, da criação de instrumentos práticos de ação política às categorias mais abstratas que
envolvem o político: a exemplo dos Direitos políticos, como se viu fortalecer com o Estado
Moderno. Sucintamente, talvez se devesse dizer de uma dimensão social de implicações jurídicas
e políticas, pois:
É o conjunto de pessoas que gozam, pela condição comum em que se
encontram, da mesma posição com relação aos Direitos e deveres
políticos. Pelo fato de usufruírem conjuntamente desta posição, elaboram
e praticam formas de gestão da mesma que configuram, justamente,
76
Esses desenvolveram intrincada estratégia de caça coletiva, inclusive contra outros macacos menores.
É preciso ressaltar que o conceito de inteligência social ainda pressupõe a influência das emoções e até das
chamadas intuições.
78
Entendemos Poder Social como nossa imensa capacidade de organização social, domesticando a violência
(Arendt, 1994).
77
94
como comunitárias ou, ao menos, como representativas (Bobbio, 1993, p.
1214).
Essa intelecção da política permitiu ao homem sobressair-se socialmente, aprimorando
seus equipamentos sociais, ao romper e ultrapassar os limites sociais primários. De uma vida
eminentemente social, o homem transformou seu hábitat no complexo conceito e realidade da
iminente sociedade civil79. Para nós humanos, outrora animais resumidos à vida social primária,
limitados à condição natural da vida social (e ainda não expressamente política), agora só é
interessante a vida social se adstrita a uma objetivação política. Mas o que é sociedade civil80?
Esta locução é originária dos antigos romanos, para quem antes do
Estado existia uma societas civilis como referência a uma sociedade
formada sob garantias legais e como objeto de utilidade comum, como
dizia Cícero [...] Nos anos 90, os cientistas sociais norte-americanos
começaram a chamar civil society a tudo que era controlado e financiado
pelo Estado (Borja, 1998, p. 934).
A sociedade civil romana lembra um pouco os nossos grupos humanos gregários,
pareciam sinalizar o que chamamos no texto de interação social originária. De certa forma, o
texto nos remete a uma tentativa de entender alguns mecanismos e o porquê dessa gradual
passagem processual de transformação do social no político. Essa racionalidade política
potencializa o social, o querer e o suportar a vida em sociedade, em grupo, é o que permite a
criação da sociedade civil. Por ora, vamos entender racionalidade política como a meta traçada
por um verbo: traçar implicações claras para a atividade política, ainda que nem todos os
resultados sejam a própria concretização do projeto inicial. Também o conceito de socialização
jurídica pode nos ajudar nessa tarefa:
1. A palavra socialização jurídica foi criada em 1836. Ela figura no
dicionário alfabético e analógico da língua francesa (Robert) com dois
sentidos: a) o fato de desenvolver relações sociais, de formar um grupo
social, em sociedade (didático); b) o fato de colocar sob regime
comunitário, coletivo (1846) [...] 2. O conceito de socialização jurídica
aproxima-se do que J. Carbonnier (1978) chama de “processo de
juridicização” experimentado pelo indivíduo na sociedade, processo que
ele considera ao mesmo tempo próximo e distante daqueles através dos
quais o indivíduo é socializado e moralizado. Encontramos igualmente [...]
a expressão “formação da consciência jurídica” ou desenvolvimento da
consciência jurídica” para designar o conteúdo da socialização jurídica
(Arnaud, 1999, p. 743).
É lógico, mas cabe notar que se encontram em relação intrincada a Sociedade, a Política,
o Direito, e é esta capacidade de interagir o social e o político que faz do homem um animal
social capaz de agir politicamente. Como racionalidade aplicada ao social, a política será um
79
Muitos animais vivem em sociedade ou em organização social maior do que um simples bando, mas só o homem
conheceu a sociedade civil. É interessante notar como qualquer imagem de uma sociedade civil de animais é
carregada de intenso preconceito, como vemos no filme O Planeta dos Macacos – na primeira versão. No filme, é
clara a imagem de uma sociedade civil irascível.
80
Para Marx e Gramsci, a sociedade civil equipara-se à infraestrutura econômica.
95
pharmakón e esse fenômeno ocorre em toda sociedade que tenha evoluído para a sociedade civil
- no sentido ocidental de sociedade. Porém, não podemos esquecer que há características
próprias a algumas sociedades, a começar por todas que não perfazem o exato padrão da
sociedade industrial de massas.
Em muitas sociedades indígenas, por exemplo, não há uma noção de Direito como nós a
conhecemos, com subsunção e coerção. Portanto, deve-se ter clara a distinção entre regras
sociais e Direito. Nas sociedades indígenas, se não há subsunção (quando o caso concreto é
confrontado à regra geral e abstrata81), os conflitos só podem ser resolvidos e absorvidos no
interior do grupo como um todo – no plano geral e concreto da cultura do grupo social.
Diferentemente do Direito, as regras sociais tendem à unanimidade e o Direito pode ser baseado
em consensos muito provisórios. Além do que, nessas sociedades não-ocidentalizadas, não se
opera a coerção a partir de uma instituição como o Estado, mas sim no mundo concreto, na
cultura inclusiva do grupo social.
Em síntese, denominamos de subsunção cultural a esse processo em que o Direito se
resolve na cultura, imiscuindo-se aos conflitos e às soluções sempre coletivas e participativas, no
interior dos grupos. Nesse grupos sociais, trata-se de viver o Direito, de resolver os problemas
coletivamente, de reavivar as normas jurídicas, de reapresentar e indagar a todos os presentes se
as regras pré-estabelecidas se aplicam ao caso concreto, ao caso em questão ou não. E isto é
muito diferente de apenas representar a situação de fato, buscando comparar a norma ao caso
específico, viver o direito e não somente representá-lo por meio do advogado. Enfim, é como se
dissesse que se deve re-apresentar a norma social e não só representar sua existência.
Nesse item, podemos concluir que todo animal político é social, além de possuir apurado
senso de inteligência social: excluindo-se aqui o caso crônico dos psicopatas. Porém, ainda é de
se lembrar que mesmo o chamado ermitão é aquele sujeito que experimentou a vida social e
depois a abandonou, em troca da reclusão ou de maior privacidade82 – num nível intermediário
de afastamento social estão alguns monges ou religiosos. Também podemos dizer que nem todo
animal social é político ou que tenha capacidade intelectual para agir socialmente – para este
sentido, devemos analisar os casos de todas as formas sociais de vida rudimentares ou de menor
condição societária. Portanto, de toda análise, decorre que o homem é um animal social e
político, ou seja, o processo de hominização se dá nesta passagem gradual, mas constante do
social ao político, e depois com a transformação das regras sociais em Direito.
Em resumo, o homem político é o homem social que se instiga diretamente à prática do
poder, é aquele sujeito que declara e destaca sua intenção de fazer política de forma imediata,
sem mediações, demonstrando consciência da necessidade da prática política.
Enfim, a passagem do político ao jurídico implica uma nova fase da consciência coletiva,
como um tipo ou margem da consciência pública. Com a fixação do Estado de Direito,
teoricamente, houve um controle dos poderes do Estado e um maior requerimento pela coisa
pública, pela República: essa consciência pública apelidada de salus publica83. Mas, note-se que
mesmo a salus publica não implica necessariamente na figura do Estado, pois é muito fácil
perceber como o Estado pode ser um mero exercício da opressão. Naquelas sociedades
81
Esta regra supõe que o mesmo Direito que servirá de anteparo ao fato concreto, é ele mesmo um Direito subtraído
de suas origens sócio-políticas: como se as origens do Direito moderno não perpassassem pela política, a exemplo
do Poder Legislativo.
82
Aliás, só há sentido em falar de privacidade se há sociabilidade, e é óbvio que não há o privado se não há o social,
o público. Pois, desse ponto de vista, o público e o externo condicionam o privado, o interno.
83
Somente neste caso é que se pode falar que a sociedade civil não está em contraste com a ética e com a alteridade.
96
indígenas, já referidas, há forte concepção e cooperação para a coisa pública, mas se desconhece
totalmente a instituição do Estado. Em nossas sociedades, ao contrário, tanto o Estado quanto o
Direito se caracterizam muito mais pela prática da dominação e da opressão.
Aliás, há esse tipo de dominação e opressão porque não se desenvolveram nas sociedades
industriais, apropriadamente, os princípios da alteridade. De certo modo, trata-se de promover
um (re)encontro do Direito, da ética e da política com a cultura e com os modos sociais
apresentados pela vida social moderna. É isso que trataremos de modo sucinto a seguir.
A Formação da alteridade Política
Mas o que é alteridade política? Vimos uma condição inicial, imprescindível dessa
alteridade em Dussel, que é o respeito à integridade da vida biológica, tal qual prescreve o
princípio da dignidade da pessoa humana, e que por sua vez é o mais profundo alicerce do
componente ético da vida social. Aliás, a ética entendida aqui como a garantia primária da vida
social: como preservação do que está vivo, entre nós, no grupo, na coletividade.
Poderíamos pensar em vários níveis ou articulações diferentes: desde a interação social
clássica (na sociologia coincide com a solidariedade, ajuda mútua), até a dimensão política
postada na transformação do idiotes (desde a Grécia clássica, visto como o cidadão apático,
submisso, meramente cumpridor de seus Direitos e obrigações, não-questionador) em um
cidadão ativo, participativo, inquiridor da verdade, do Direito, da justiça. Trata-se do mundo da
ética, da maioridade e da maturidade política, em que se pratica e se promove a dimensão
pública, coletiva da política, sem apatia, egoísmo ou corrupção de qualquer natureza. Como nos
diz Nogueira:
Não é por acaso que a palavra grega politikós, com a qual se designa
tudo aquilo que é próprio da política (politiké), significa também
polido, cortês, delicado. Não é por acaso que o termo grego polis, de
onde vem política, se estende no latim urbe, de onde vem urbano, que
tanto diz respeito a cidade quanto a urbanidade, civilidade, afabilidade.
Nem mesmo a palavra polícia (do grego politeía e do latim politia)
escapa dessa raiz: tem a ver não tanto com repressão, como pensamos
hoje, mas com a atividade administrativa dedicada a tutelar e proteger a
coletividade e suas partes [...] na antiga Grécia a comunidade (koinonia)
reunia os indivíduos singulares (ídion) e quando o indivíduo exagerava
na sua singularidade a ponto de cancelar qualquer vínculo comunitário, o
ídion virava idiotes (palavra com que os gregos designavam o
absolutamente singular, aquele que não tem nada em comum com os
outros e por isso não se comunica ou oferece algo). Mais tarde, o idiotes
derivou “plebeu”, daí para “ignorante”, com o que se aproximou do
“idiota” que conhecemos hoje (Nogueira, 2001, p. 28-29 – grifos nossos).
Neste caso, serve-nos a alteridade política como uma necessária, urgente, fundamental
“psicologia do entendimento do usuário (quem são esses sujeitos da rede social e da vida
política? O que queremos deles?)”, mas agora em um tipo de abordagem universal: não um
usuário, mas “os usuários que queremos”, porque também se trata de um conjunto complexo (“o
que se tece em conjunto”). Portanto, trata-se obrigatoriamente de uma ação coletiva que também
se constitui numa noção elementar à interação social e à interface política e teleológica, pois é
facilmente percebido que não interage adequadamente bem, na vida social ou política, aquele
97
que não está preparado para encontrar os demais, os outros, próximos ou distantes de si
mesmos.
Encontrar o outro, na rede social e na vida política, é aprimorar, redimensionar, ou
simplesmente edificar, solidificar nossa própria alteridade: o nosso desentranhamento, o nosso
desenvolvimento interior para entender, absorver, alterar, tanto o mundo interno quanto o
externo. Como diz Rolnik (1994):
Para desenvolver este tipo de interrogação, proponho que nos situemos
no âmbito de uma ecologia da subjetividade para problematizarmos o
conceito de “outro” implicado tanto na noção de democracia, quanto na
noção de homem como cidadão: o outro, deste ponto de vista, é uma
unidade (um indivíduo), juridicamente circunscrita, composta por um
conjunto de Direitos e deveres definidos por lei. Aliás, este mesmo
conceito de outro está presente na palavra “ética” que tem sido
igualmente evocada no discurso que se reivindica como democrático, ao
lado da palavra “cidadania”: o conceito de ética, deste ponto de vista,
refere-se ao respeito pelos Direitos e deveres de todos, respeito pelas leis
que regulamentam tais Direitos e deveres [...] No entanto, a realidade não
se restringe ao visível, e a subjetividade não se restringe ao eu: num outro
plano, invisível, o que há é uma textura (ontológica) que vai se fazendo
de fluxos e partículas que constituem nossa composição atual,
conectando-se com outros fluxos e partículas com os quais estão
coexistindo, somando-se e esboçando outras composições. Tais
composições, a partir de um certo limiar, geram em nós estados inéditos,
inteiramente estranhos em relação àquilo de que é feita a consistência
subjetiva de nossa atual figura (p. 158-160).
A pessoa democrática é aquela que procura o Outro e este pode ser inominado (quando se
toma o público ou a categoria superdimensionada de interesses difusos como na República) ou
invisível (simplesmente desconhecido porque não há proximidade, mas só conexão pelo fato de
ser humano). Essa invisibilidade essencial à vida pública (até mesmo para que se tenha mais
imparcialidade e normatividade: menor personalismo), na rede social será um espectro, uma
possibilidade demonstrável pela imaterialidade própria à rede de sociabilidades. Ainda com
Rolnik (1994):
Assim a alteridade e seus efeitos, embora invisível, é real: nossa natureza
é essencialmente produção de diferença e a diferença é gênese de deviroutro. Se considerarmos que a processualidade é este devir-outro – ou
seja, a corporificação, no visível, das diferenças que vão se engendrando
no invisível – ganha maior consistência a ideia de que a processualidade
é intrínseca à(s) ordem(ns) que nos constitui(em) (p. 161).
Desse ponto de vista, a teleologia política e a interação social deveriam nutrir, fomentar
uma nova base para o próprio relacionamento humano de fundo ético, participante, mobilizador
da vida pública ou quando em público. Rolnik fala no “homem da ética”:
O homem da ética que nos habita (mesmo que, quase sempre, muito
timidamente) é o vetor de nossa subjetividade que transita no invisível: é
ele quem escuta as inquietantes reverberações das diferenças que se
98
engendram em nosso inconsciente e a partir daí nos leva a tomar decisões
que permitam a encarnação de tais diferenças em um novo modo de
existência, tanto no sentido de fazer novas composições, quanto no
sentido de desmanchar composições vigentes. É o homem do
inconsciente: operador da produção de nossa existência como obra de
arte. Ele também guia nossas escolhas, só que selecionando o que
favorece e o que não favorece a vida, tendo como critério a afirmação de
sua potência criadora – daí porque chamá-lo de “ético” (p. 166).
Por fim, é o próprio caos, entendido como a ausência de uma estrutura rígida, definida ou
definitiva e, portanto, mesmo que entendido o processo como “estrutura social” que, por
exemplo, estará mais próximo desse movimento que rearticula e re-engendra permanentemente
as suas próprias bases. Ou seja, essa condição mutável, não-nivelada, descontínua, fragmentada,
imersa na rede social de subjetividades formada pela junção dos sujeitos e resultante das ações
e intenções decorrentes da política, é definida, portanto, de acordo com a vontade ou disposição
(navegação) dos infinitos participantes sociais. E é esse fluxo que permite ao Direito (bem como
às demais instituições) ser modificável socialmente.
Para nós (políticos, teóricos ou não, tendo-se consciência disso ou não), sempre será
muito cara essa metáfora da topologia mutável da rede social para definir o cidadão (com base na
autonomia e na legitimidade das ações deslanchadas no “espaço público”), assim como em
Rolnik a base da argumentação do homem ético está pautada na modernidade:
Construir uma subjetividade em que se encontra o mais ativo possível o
homem da ética é estar próximo daquilo que vimos através da concepção
contemporânea da Física: é um tipo de homem que entendeu que ordem e
caos são indissociáveis e que aquilo que inquieta sua consciência é uma
diferença engendrada no caos; por isso esta inquietação para ele não é o
aterrador sinal de sua possível destruição, mas o apelo de uma
necessidade de criar que se impõe no invisível campo dos afetos, e ele se
dispõe a acolher este apelo – mais do que isso, ele deseja acolhê-lo (p.
169).
Mas, como entender a sociedade civil como princípio de alteridade sem que haja o
componente do Estado e do Direito? De modo muito genérico, portanto, ainda nos restam duas
questões para afirmar nosso campo de debate:
 A sociedade é uma natural construção humana ou essa abstração da vida material só
veio a se realizar com a sociedade civil?
 Seja como instrumento, seja como processo teleológico humano-genérico, a política
sempre esteve presente em todo o percurso do processo de nossa hominização?
Concluindo, podemos dizer que essa alteridade política discutida, e que envolve
autonomia, ética, Direito e responsabilidade, propõe uma maioridade política a todos os
envolvidos. Afinal, quando o Homo faber tomou a decisão de deixar de ser bando, simples
predador e caminhou para o conhecimento (orientado por Prometeu), não tinha em mente uma
sociedade inclusiva, realmente global e um Direito que respeitasse plenamente as regras de
convivialidade?
99
Parece-nos que sim e por isso cabe ao Estado, por intermédio de seus agentes, que não
apenas tutela ou presta assistencialismos, tanto quanto cabe ao cidadão que compreende essa
dinâmica inter-relação entre a sociedade, o Direito e a Política, porque esse conjunto deve servir
a todos e não apenas a si mesmo como meio de obtenção de vantagens pessoais. De certo modo,
equivale a dizer de uma sociedade civil em que a política é levada a sério, com cidadãos maiores
de idade, a fim de propor e processar a Política e o Direito. Nessa imbricação entre Direito,
Política, Ética há subsunção da violência e da coerção no diálogo, na comunicação, na
negociação, na legitimação global. Afinal, sem isso não há maioridade política, social ou
jurídica.
Formações Típicas e Atípicas do Estado
Além do que viemos analisando, ainda pode-se dizer que há formação de Estados
seguindo fórmulas típicas e atípicas (Dallari, 2000).
A) Forma típica
Aqui temos a união de Estados ou o desenvolvimento posterior de certa sociedade, até
atingir a forma de uma Federação, a exemplo dos EUA. De certo modo, também pode ser por
desdobramento ou derivação de um Estado anterior, a diferença é que, neste caso, a origem do
novo Estado será o Estado antecedente e não propriamente a associação voluntária entre pessoas
e grupos. Vemos facilmente que há maior constância de fatores observáveis, e que os casos são
mais rotineiros. Portanto, há maior possibilidade dessas formas de Estados se desenvolverem.
 Trata-se da criação de uma organização unitária com autonomia local.
B) Formas atípicas
Já as formas atípicas, como o próprio nome diz, não são comuns e nem o desdobramento
das funções públicas desses Estados é rotineira ou facilmente catalogada. Temos como exemplos
diretos os casos do Estado de Israel e do Estado do Vaticano: ambos com a 2ª Guerra como
cenário político.
100
AXIOMAS DO ESTADO MODERNO
O Estado, desde as primeiras reflexões objetivas, tem provocado debates acerca de seus
axiomas, afirmações, quase-sentenças acerca do Estado – especialmente o Estado Moderno –,
mas que requerem alguma reflexão. Se o axioma não se comprova, entretanto, merece um
pensamento sobre suas conclusões.
 O Estado é força: jus puniendi
(bellum omnium contra omnes84)
 O Estado é soberania
(Mas, “a soberania só reina sobre aquilo que consegue interiorizar”)
 A preocupação do Estado é conservar
(a Razão de Estado luta pela autoconservação85)
 O Estado é um estrato86
(o Estado transforma o Nomos em Logos)
 O Estado é um condutor
(condottiere87)
 O Estado é um regulamento
“Uma das tarefas fundamentais do Estado é estriar o espaço sobre o qual reina, ou utilizar
os espaços lisos como um meio de comunicação a serviço de um espaço estriado”
(Deleuze, 2005, p. 59).
 O Estado soberano é o que detém o poder de exceção
No contratualismo de Hobbes o Nomos é um tipo de “contrato comprometedor”, um
contrato em que todos se comprometem com objetivos similares, também se constitui da
linguagem rumo ao direito: “O contrato é um diálogo, um logos trocado e compartilhado que, de
fato, é transformado em nomos” (Angoulvent, 1996, p. 50).
Veremos, entretanto, que Nomos pode ter um significado diverso, na verdade, algo como
o sedimento do mundo da vida, da vida comum do homem médio sobre o qual se constrói a
cidade, a polis, o logos, a lex. Em termos antitéticos teríamos a seguinte construção: cidade –
Polis – cultura – lei versus campo – Nomos – agricultura – costumes.
Em todo caso, o contrato em Hobbes, é só um pacto unilateral, porque não tem a regra da
bilateralidade da norma jurídica. Para o intérprete do Nomos da Terra, sob o absolutismo, todo
poder emana do Estado e a ele voltará. O Estado Absoluto é o que garantirá, absolutamente, a
salvaguarda necessária (seja qual for) de Nomos e Logos serão um só, assim como Estado e
Direito são meio e fim em si mesmos. O soberano encontra um Nomos, como se a lei derivasse
do espírito nacional, constituindo-se num direito pressuposto que corrobora a ação do poder (e
este poder poderá ser de exceção, desde que se justifique os fins da Razão de Estado). Todo o
poder a quem detém o poder.
O Nomos ainda implica em uma Ciência do Estado, como se a polis ainda encontra-se
uma explicação racional, nomológica88, perfeitamente concebível a partir da transformação do
84
Guerra de todos contra todos.
Toda luta pela autoconservação é uma luta política (Honneth, 2003).
86
Estratocracia (stratus = militar). Mas, o governo do Poder Político, como estrato, não precisa necessariamente se
amoldar ao manu militari, como governo militar versus governo civil.
87
Historicamente, nas origens da máfia siciliana, designava-se condottiere como o chefe, o capo, da malta de
mafiosos ou líder de grupo de soldados mercenários. De certo modo, é esta verificação que levou a designarmos, no
Brasil, de Estado Paralelo.
85
101
Nomos. Para Max Weber, Nomos também tem um significado preciso, como regra naturalracional. A sociologia para Weber é a ciência do saber nomológico ou que busca um saber
nomológico (Nomos = regra, norma, regulamento de ação humana e de cunho social, da ação
social). Assim, teríamos algumas possibilidades, a fim de compreender a sociologia como um
sistema de regras de saber social, mas logicamente arquitetado: a) Sistema lógico de regras
sociais; b) Sistema de regras lógicas vigentes; c) Sistema de saber lógico; d) Sistema de regras
de saber lógico. Aplicando-se este sentido ao direito e à política, especialmente com Carl
Schmitt, leitor e intérprete de Weber e da concepção de que o Estado (Moderno) exerce o
monopólio legítimo da força física (violência), temos que o Poder Político é uma construção
racional e que deve se verter em poder do controle social.
Pela nomologia de Max Weber, o Estado não é um estrato porque segue governado por
uma parte, um estrato social, como estratocracia, mas sim porque uma parte pode administrar
como se fosse o todo. O Estado não precisa se converter em estratocracia para se qualificar como
soberano ou mesmo como estrato: “O Estado é a soberania. No entanto, a soberania só reina
sobre aquilo que ela é capaz de interiorizar, de apropriar-se localmente [...] o Estado de fato é o
devir da razão [...] O nomos é a consciência de um conjunto fluído: é nesse sentido que ele se
opõe à lei, ou à polis, como o interior, um flanco de montanha ou a extensão vaga em torno de
uma cidade (“ou bem nomos ou bem pólis)89” (Deleuze, 2005, p. 23). Apascentar como
administrar o todo, sendo uma parte, mas como se fosse o todo-representado e sem sucumbir às
tentações de desviar o todo aos interesses da parte empoderada. Aliás, empoderamento implica
em ação coletiva de poder.
É, portanto, no sentido expresso em que se associa política e força física (virilidade, em
Maquiavel) que se constituirá o Nomos da Terra, como princípio ordenador do direito que
sustenta e legitima o poder soberano do Estado Moderno. Nem o Estado, nem a lei violam a
origem natural, nacional, racional em que se constituiu o poder – afinal, sempre teremos a
famosa tríade de Povo + Território (Nomos) = Soberania (Logos).
A principal lei nos diz que o homem é sociável, portanto, toda lei que não violar este
sentido natural à sociabilidade (Nomos) será lógica (Logos). Se o Estado é uma consequência
desta regra, como escolha racional para melhor administrar os próprios meios de socialização,
então, toda lei (lex) perpetrada pelo aparelho estatal (polis) será equivalente, em princípio, ao
Nomos, como urstaat (o Estado de Origem, primordial, porque na origem está a sociabilidade).
Por fim, trata-se de um Estado Primordial, essencial, porque sua função é manter as bases de
sociabilidade elevadas, uma vez que, ele Estado já decorre dessa lei, como contrato global em
que se erige um poder para tratar exatamente dos meios para arregimentar membros à obra social
coletiva que corresponda à necessidade da socialização. O memorial do Estado traz uma história
em comum; como legado da vida comum do homem médio, não há como dissolvê-los pois são
um só90.
88
A Humanidade tem regras inerentes, imanentes, lógicas que desembocariam na escolha e no desenvolvimento
racional da forma-Estado.
89
Depois, na nota 44: “Apascentar (nemô) não remete a partilhar, mas a dispor aqui e ali, distribuir os animais.
Somente a partir de Sólon, Nomos vai designar o princípio das leis e do direito (Thesmoi e Dike), para depois ser
identificado às próprias leis. Numa época anterior, há antes uma alternativa entre a cidade, ou polis, regida pelas leis,
e os arredores como lugar do nomos [...] nomos não é cidade, mas campo pré-urbano, platô, estepe, montanha ou
deserto” (Deleuze, 2005, p. 52).
90
“Os Estados sempre têm a mesma composição; se há uma verdade na filosofia política de Hegel, é que ‘todo
Estado contém em si os momentos essenciais de sua existência” (Deleuze, 2005. p. 58). O que é essencial ao Estado
é essencial a seu povo, o que é logos em uma ponta é nomos na outra.
102
O Nomos é a soberania (absolutista) que se enraiza
Entre os séculos XVI e XIX, há formação e declínio do que se denominou de "época
interestatal do direito internacional". O resultado teórico e histórico do originário Estado-Nação,
caminho igualmente percorrido pelo Estado Moderno, foi uma enorme concentração de poderes
– um tipo de absolutismo institucional denominado de Estado de Polícia. Tratava-se de uma
estrutura de Estado policialesca em que se vigiava não só a soberania, a vida pública, mas,
sobretudo, a moral privada. Certamente, um germe do Estado Totalitário que vimos surgir no
século XX na Europa. Trata-se de uma expressão criada pela historiografia indicando um
fenômeno histórico e político preciso, circunstanciado e remonta aos historiadores
constitucionais alemães da metade do século XIX. Já a origem epistemológica da palavra
“polícia” vem do termo grego “politeia91” e do latim tardo-medieval “politia”92. Para Aristóteles,
“politeia” significava a sua Constituição e para Santo Tomás de Aquino, o ordenamento global
da vida humana. A importância operativa e sistêmica do termo polícia, pela ação estatal, só foi
aparecer nos Estados da Renascença, na Itália e, principalmente, na França, no Ducado de
Borgonha — momento em que a expressão implicava claros fins políticos e cumprimento dos
deveres públicos e cívicos dos súditos. Da Borgonha passa para a Alemanha, obtendo aí difusão
e grande sucesso, mas já não tinha mais a intenção de segurança na esfera pública:
Foi radicalmente diverso o papel desempenhado pela Polizei nos
territórios alemães. Aqui ela tornou-se o instrumento de que se serviu o
príncipe territorial para impor sua própria presença e autoridade contra as
forças tradicionais da sociedade imperial [...] Na transição de uma
estrutura constitucional formada tipicamente “por castas”, como a
imperial do século XVI, para uma organização do poder concentrado em
cada um dos Estados territoriais, como se verificou em alguns dos
territórios alemães durante o século XVII, é fácil entender que o
problema central para o príncipe territorial, que se apresentava
historicamente como fulcro dessa passagem, fosse o da necessidade de
criar para si um espaço autônomo, uma esfera soberana própria, tanto em
relação ascendente como descendente (Bobbio, 2000).
Estado de Polícia, então, corresponde ao Estado Absoluto, controlado e regulado por leis,
e mesmo que não sejam leis formuladas como expressão tácita da soberania popular. De
qualquer forma serão leis, com preceito claro de que deverão ser cumpridas e mesmo que não
sejam leis promulgadas, como entendemos atualmente. Vejamos mais uma vez como se deram as
sucessivas passagens do Estado Medieval em Estado Moderno e deste para o Estado Absoluto
(às margens do capitalismo efervescente):
A função histórica do Estado absoluto consiste em reconstruir (ou
construir) a unidade do Estado e da sociedade, em passar de uma situação
de divisão com privilégios das ordens (sucessores ou sucedâneos dos
privilégios feudais) para uma situação de coesão nacional, com relativa
igualdade de vínculos ao poder (ainda que na diversidade de direitos e
deveres) [...] Sobretudo no século XVIII, a lei prevalece sobre o costume
como fonte do Direito e esboça-se o movimento de codificação, reforça91
Como Constituição de direitos representativos de uma polis ou instrumento organizador das leis e dos
fundamentos constitutivos dessa polis.
92
Muitas polícias são ainda chamadas de politia.
103
se a justiça, consolida-se a função pública, criam-se exércitos nacionais e
o Estado intervém em alguns setores até aí ignorados da cultura, da
economia e da assistência social. Incrementa-se, entretanto, o
capitalismo, primeiro comercial, depois industrial, e a burguesia revela-se
o setor mais dinâmico da sociedade (Miranda, 2002, 44).
De certa forma, poderíamos chamar a isto de constitucionalização do Estado Moderno, ou
de uma segunda fase do Estado Moderno (Estado Absoluto). Nesta fase, começa a ser erigida a
concepção política de que o poder político do soberano deveria ser regulado. Porém, dadas as
novas forças econômicas insurgentes (propriamente capitalistas), o Estado de Polícia acabou por
se caracterizar como um Estado Absoluto impuro, ao mesmo tempo mais organizado, mas, mais
flexível, menos-radical, mais-heterodoxo93. Não é à toa que se pensa esse processo político e
econômico a partir do século XVII, depois da centralização de muitos Estados europeus, e
quando já se encontravam em plena acumulação primitiva, expansão marítima e colonização,
baseadas na extração de riquezas de outros povos e continentes. Tanto o mercado produtor (as
colônias) quanto o mercado consumidor (a Europa) precisavam ser regulados, a fim de que se
contivesse o processo de pilhagem e as guerras continentais. A esta altura, o domínio marítimo já
fora melhor estabelecido e pouco tempo depois a Primeira Revolução Industrial revelaria toda a
potência que vinha sendo gestada pela burguesia. Portanto, talvez esta fase final do absolutismo
(segunda fase do Estado Moderno) pudesse ser apelidada de constitucionalização do capital.
Mas, a Terra, literalmente, seria aberta à exploração e também por isso Bacon irá dizer que Saber
é Poder, aquele conhecimento que explora as raízes mais profundas das substancias, dos recursos
humanos. Em uma palavra: natureza. A tecnologia permitiria ao homem reencontrar a Terra,
ressignificar a natureza, retomar a continuação da nomologia.
O Nomos da Terra
O Homem do Renascimento tomou para si a natureza, mas pela primeira vez
assenhoreou-se da Terra, de todo o globo, inspecionando seus esconderijos. Esta era a base
cognitiva de seu direito natural. No Renascimento, por Nomos, trata-se de um "direito da
origem" e o estabelecimento de uma "ordem concreta”. A ideia de nomos tem um caráter
espacial94, fundacional. Não se limita à ideia de lei, pois se trata de: "ato originário que funda o
direito [rechtbegründenden Ur-Aktes]’ (NE, 16). Esse ato de fundação se apresentaria sob a
forma da ordenação de um espaço específico. Mais precisamente, trata-se de ‘um ato de
ordenação e de localização, constituinte e espacialmente concreto" (NE, 47)95.
Como ato originário que funda o direito, o Nomos interliga direito e espaço. É a
medida que funda os demais critérios de medida subsequentes. O Nomos da Terra, como direito
internacional, é o princípio fundamental de distribuição do espaço na Terra (o que, certamente,
remete à soberania, como forma assegurada, pacientada de se ocupar e sedimentar o Poder em
determinado território: de forma unívoca, inequívoca). Nomos da Terra é constituição e
parcelamento de terra e sua ordenação fundamental. Se é certo que se trata da delimitação
territorial, como referencial do Povo, é igualmente correto pensar que o Renascimento
93
Já sabemos que o Nomos é visceral, radical por definição, pois é lógico o poder que não abdica de suas
instituições, é legítimo o Poder Político que contempla suas fundações, que se “enraíza” na motivação originária,
que volta ás raízes.
94
O que indica, razoavelmente, a possibilidade de fixação do território, na conhecida trilogia de Povo, Território e
Soberania.
95
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2008000200004.
104
redistribuiu a Terra, de acordo com o direito de soberania dos Estados Absolutos. É como se
dissesse que a colonização fosse autorizada pelos critérios fundacionais do Nomos da Terra.
Outra conclusão lógica é que o Estado Absoluto autoriza um poder absoluto – até mesmo
porque não há soberania que não seja absoluta. O poder de exceção, portanto, seria um tipo de
redundância, uma vez que não se tem exceção (tudo será regra) onde o Estado detém o
monopólio legislativo sobre o uso da força. Ou, mais especificamente, porque o Estado age em
nome de um sentido e significa maiores: a autoconservação do povo no território delimitado
(Nomos soberano).
Assim, o Estado Absoluto surgiu como um constructo: construção racional e nacional. O
Estado é esta clara aliança entre Logos e Nomos, num claro processo de desencantamento do
mundo em que se articulam política, linguagem e direito96. Por isso, para Hobbes, Weber e Carl
Schmitt, o Leviatã é o guardião da liberdade, do direito natural que deve legitimar toda forma de
controle social necessária à contenção do povo em seu determinado território e como
salvaguarda contra ações externas. O Estado Moderno soube capitalizar o Nomos, legitimando a
exploração (interna e externa) a colonização como se derivassem de um direito atávico.
96
O que agrada ao soberano tem força de lei. O Leviatã é o “medo construído” e o Absolutismo aparece como uma
teoria do direito à opressão da liberdade natural para se constituir em liberdade civil. Só há legitimidade onde há
soberania estatal e esta vela pela “segurança” da vida civil (uma das promessas do Estado Moderno descumpridas na
atualidade).
105
A ARQUITETURA DO ESTADO MODERNO
As Pontes dos séculos XVIII e XIX97 são fortificações ou pontes-Estado. O Estado
Moderno ao mesmo tempo em que atrai com força centrípeta, aproximando distâncias entre
indivíduos e Estados, mantem-se seguro, a uma distância segura, calculada. Em todo caso, são
pontes que transpuseram os obstáculos da modernidade. Ao mesmo tempo em que se aprofunda,
em busca de um sentido que religue duas realidades, localidades separadas, indivíduos e
individualidades distantes, a ponte se espraia em direção ao horizonte. Por isso, é uma típica
ponte-Estado do século XVIII. Que segredos estariam guardados nos subterrâneos da Razão de
Estado?
Abaixo, esta segunda ponte se apresenta pronta para a Guerra, mas também é a casa da
política e da administração, religando-se o poder temporal com o poder religioso (como se vê na
imagem da catedral no lado direito da foto).
Já os arcos desta terceira ponte, abaixo, revelam força e beleza, ou melhor, a beleza da
força. Dá-nos a ideia de que o Estado é uma construção sublime, arquitetado para religar como
poder mágico. É um Estado místico, religioso, quer seja como relegere, quando podemos reler as
escrituras políticas, quer seja como religare, religando-se laços de solidariedade inerentes à
Razão de Estado: o imposto é suportado porque religa as pessoas nos que têm de essencial;
97
A análise das pontes do século XVIII é de Anne Querrien, socióloga e urbanista francesa, e é citada por Deleuze
(2005).
106
pagamos o Estado para que esteja do nosso lado. Este conjunto legitimaria a solidariedade
imposta pelo Estado e, por isso, o Estado Laico precisa criar suas próprias crenças, a começar da
crença na sua força irresistível, como ponte-Estado, entre Estado-soberano e seres domesticados
pela política. O preço para pertencer à Polis é perder a autonomia e assim não transpor os arcos
do triunfo político com consciência política. Pode-se participar da Polis, com consciência, mas
desde que a consciência não seja tanta que leve à crítica ao Estado.
Especificamente, os Arcos do Triunfo foram construídos por Napoleão, em Paris, entre
1806 e 1836. A arquitetura do poder, entretanto, não seria uma homenagem ao general, mas sim
o triunfo do próprio Estado, uma vez que o Estado Moderno surgiu com a derrocada de Napoleão
Bonaparte. Por esta lógica, conclui Hegel, o Estado de Napoleão sintetizava a realização da razão
(Châtelet. 1993). Em parte, esta superação pode ser vista na substituição dos exércitos de
mercenários de Napoleão Bonaparte (os decembristas) por exércitos regulares e, obviamente,
pelo soterramento da ideia de Imperialismo, simplesmente, porque o Estado Moderno requer
soberania interna e externa.
O chamado lumpemproletariado teve papel decisivo na Revolução Francesa de 1789,
como seguidores de Hobbes – uma gente decisiva e decidida a não-perder o acesso à história. Os
netos e bisnetos desses sujeitos voltaram a ser invocados, como mercenários, por Napoleão
Bonaparte (1769-1821). Chamados de decembristas, formavam fileiras com milhares de
soldados-mercenários. Nas revoluções operárias de 1848, na Europa, o lumpem esteve aliado ao
proletariado, bem como Comuna de Paris (1871), considerado o primeiro governo popular da
história. É evidente que esta instabilidade ideológica não serviria aos esforços de dominação do
Estado Moderno e também porque o Estado Moderno precisava se afirmar como base de um
novo mundo de significados políticos: “A centralização do Estado, de que necessita a sociedade
moderna, só surge das ruínas da máquina governamental burocrático-militar forjada em
oposição ao feudalismo” (Marx, 1978, p. 122 – grifos nossos). Institucionalmente, o Estado
Moderno precisava ser apresentado como “obra política bem acabada”, como um conjunto de
institutos e instituições de apoio. Contudo, como projeto constitucional, o Estado Moderno se
afirmaria na Revolução Francesa:
A liberdade, a igualdade, a justiça são os princípios necessários daquilo
que não é depravado; todas as convenções repousam sobre elas como o
mar sobre sua base e contra suas margens [...] na França não há poder,
falando sensatamente; só as leis comandam, seus ministros impõem-se a
obrigação de prestar contas uns aos outros e todos juntos à opinião, que é
o espírito dos princípios [...] Os poderes devem ser moderados, as leis
107
implacáveis, os princípios irreversíveis98. A opinião é a consequência e a
depositária dos princípios. Em todas as coisas o princípio e o fim se
tocam onde estão prestes a se dissolver. Há uma diferença entre o espírito
público e a opinião: o primeiro é formado pelas relações de constituição
ou da ordem, e a opinião é formada pelo espírito público (Saint-Just,
1989, p. 50, 51, 52).
Historicamente, no entanto, esta lógica política se construiu com Hobbes. O filósofo
inglês é um pensador do período clássico do Renascimento e, em certo sentido, é um homem do
seu tempo – ao depositar, por exemplo, as esperanças de construir o poder com base na razão. (O
Estado Moderno seria um projeto da razão). Se o homem é o lobo do homem, somente uma
razão superior poderá alquebrar a inclinação para a ofensa do direito e esta razão (ou reta razão)
é a soberania. Portanto, o contrato social deve seguir as orientações desta mesma razão como
indicador da construção da paz social. Porém, o contrato social de Hobbes não se compadece em
direito criminal e não pode ser abonado como justificativa do uso abusivo do poder (Mészáros,
2002, p. 123-5 – grifos nossos).
O Estado Moderno precisa(va) atrair amigos (força centrípeta) e repelir inimigos
(centrifugação). Nesse sentido, a tradição da própria Teoria Política identifica na violência o eixo
da correlação entre os oponentes do Estado – uma relação facilmente justificável, se pensarmos
que o Estado Moderno é fruto da razão. Neste sentido, a mesma ponte da política religa ou
repele. Uma caracterização precisa é fornecida pelo Dicionário de Política (organizado por
Norberto Bobbio) sobre o conceito de POLÍTICA, em seu 6 sub item, intitulado "A POLÍTICA
COMO RELAÇÃO AMIGO-INIMIGO":
__ Entre as mais conhecidas e discutidas definições de Política, conta-se
a de Carl Schmitt99 (retomada e desenvolvida por Julien Freund),
segundo a qual a esfera da Política coincide com a da relação amigoinimigo [...] Para dar maior força à sua definição, baseada numa oposição
fundamental, amigo-inimigo, Schmitt a compara às definições de moral,
de arte, etc, fundadas também em oposições fundamentais, como bommau, belo-feio, etc. [...] Logo se nota que o elemento distintivo está em
que se trata de conflitos que, em última instância, só podem ser
resolvidos pela força ou justificam, pelo menos, o uso da força pelos
contendores para por fim à luta [...] são os conflitos em que, confrontados
os contendores como inimigos, a vita mea é a mors tua (1993, p. 959-60).
Esse traço de violência permanente na política se deve ao fato dos conflitos não serem
resolvidos de forma definitiva, apresentando apenas momentos de tréguas passageiras,
armistícios. Bobbio (em O futuro da democracia) é sintético: “A vida política se desenvolve
através de conflitos jamais resolvidos em definitivo, e cuja resolução acontece mediante acordos
98
A liberdade, a igualdade, a justiça formam o tripé dos Direitos Humanos.
Bobbio (em O futuro da democracia) ressalta que Carl Schmitt acabou se envolvendo em uma intensa polêmica
antidemocrática (1986, p. 134) e continua na crítica (em Direita e esquerda), afirmando que Schmitt é um
representante da “direita reacionária leiga” (1995, p. 77). Além do que, Bobbio critica no autor a “indébita violação
ou contaminação de planos diversos, com as duplas verdadeiro-falso, belo-feio, etc.”, na comparação da dupla
“amigo-inimigo” na definição de política (1995, p. 75).
99
108
momentâneos, tréguas e esses tratados de paz mais duradouros que são as constituições”100
(1986, p. 132). Mesmo os períodos de armistício, suspensão temporária do estado de guerra, não
são suficientes para solucionar ou “eliminar” a violência reinante na política, sem que haja uma
total eliminação das “reservas secretas” ou interesses exclusivos e particularizados, porque nesse
estado apenas se prepara outra guerra. O Estado Moderno é uma arquitetura da razão e deveria
ser visto como pacificador, mas, por pela razão simples de não servir a todos do mesmo modo e
de modo suficiente, a relação com o poder estatal cria e recria adversidades e adversários. Na
verdade o Estado como um todo é um produto do querer humano, ou seja, de sua razão aplicada
à política e isto fortalece este “querer” que o Estado Moderno atuasse equilibradamente em
relação a todos – o que não é possível.
100
Como justificativa para essa interpretação da violência e dos conflitos na política, Bobbio traça um paralelo com o
surgimento do Estado, em que lados antagônicos se opunham continuamente: “Este contraste entre a figuração e a
realidade pode ser bem exemplificado pela não coincidência entre a ininterrupta continuidade do conflito secular,
típico da idade moderna, que opõe camadas e monarca, parlamentos e coroa, e a doutrina do estado, baseada sobre o
conceito de soberania, de unidade de poder, de primado do poder legislativo, e que vai sendo elaborada naquele
mesmo período de tempo por obra dos escritores políticos e de direito público, de Bodin a Rousseau, de Hobbes a
Hegel” (1986, p. 132).
109
PRINCÍPIOS DO ESTADO MODERNO (contemporaneidade)
Antes da crítica necessária ao Estado Moderno, e buscando a didática, pensemos num
tipo de “Estado Funcional”, agora baseando-nos nas sugestões que muitos doutrinadores
constitucionalistas apresentam acerca destas características e funções institucionais. As funções,
nós sabemos, vêm da clássica separação dos poderes e sintetizam-se assim: 1) legislativa:
lembremos que, além de editar as normas de Direito, o Poder Legislativo também deve fiscalizar
o executivo; 2) administrativa: veja-se que o executivo, utilizando-se do sistema de freios e
contrapesos, também pode propor projetos de lei – invocando a necessidade de agilizar os
trabalhos de um legislativo moroso; 3) judiciária: vamos gravar que este deveria ser o mais
equilibrado dos três poderes, mas que sofre a pena das ingerências do Executivo, sobretudo com
as nomeações dos juízes do Supremo Tribunal Federal. Mas como é que o legislativo pode
permitir a mutação das medidas provisórias em condição permanente – será recebendo verbas
suplementares? Quanto ao executivo, é certo que o Presidente da República indique seus
próprios juízes? Ou seja, não é por acaso que o judiciário enfrenta tamanha pressão pela criação
de um controle social externo. Nessa arenga do poder, é óbvio que não pode haver tantas trocas
de favores, pois um Estado não pode funcionar nessa base: seus beneficiários imediatos acabam
digladiando-se, sobretudo quando veem minguar as rações e sem que haja possibilidade de
satisfazer a volúpia dos mais fortes ou dos mais violentos.
Já as características podem assim ser resumidas: a) complexidade: enorme emaranhado e
multiplicidade de atos e funções de significado público (centralização, distribuição, controle e
articulação de funções e órgãos públicos); b) institucionalização: racionalização ou
“constitucionalização da política” e da administração, visando à consecução da gestão pública
(de outro modo, dir-se-ia burocratização e multiplicação exagerada da ação normativa)101. Tratase ainda da dissociação entre a pessoa, a chefia, a autoridade e o poder que exerce; c)
racionalização: fundamentação do poder no direito, permanência, continuidade e qualificação
do poder como ofício e não como dominação pessoal (uso do poder para fins públicos); d)
coercibilidade: sintetiza a capacidade jurídica da soberania em garantir o monopólio da força
física. O Estado procura organizar a segurança pública dos indivíduos e das instituições,
monopolizando o uso da força (vimos como se transforma no Estado Grande-Irmão que lê,
ilegalmente, até e-mail das pessoas); e) autonomia: para a defesa, integração e direção da
sociedade, as instituições especializadas (burocracia) adquirem autonomia dentro dos limites da
lei (discricionariedade). O Estado organiza a burocracia e a administração pública para o seu
próprio gerenciamento e isso necessita de uma maior margem de autonomia para estas
instituições (mas, por que no Estado Empresa não há liberdade ou participação popular?); f)
continuidade: a sedentariedade dos agrupamentos humanos estimulou a permanência ou
durabilidade das próprias instituições – diz-se que há permanência do poder político porque há
continuidade na relação espaço/tempo, relacionando sedentariedade e soberania; g)
previsibilidade: se há constância na observação das instituições e dos feitos públicos, ocorre
uma previsão coletiva de que no futuro próximo não deve haver mudanças radicais; h) mitologia
e Nomos da Terra: a mística do Bem Público alimenta o Mito do Estado; i) território: delimita
a sede material do poder. No território é que se materializa a Nação, transformando-se o nomos
101
Lembremos que os Estados de traço ou ranço nazi-fascista promovem um processo de aculturação baseado no
culto à personalidade, que é exatamente a indissociação entre a personalidade pública (o governante) e o cargo que
ocupa ou função que exerce. Há uma sobreposição do primeiro sobre o segundo, isto é, a negação veemente desta
característica democrática.
110
em logos, pois o território estipula a permanência do Poder Político (como local de interação
social, conserva a identidade do povo; j) desenvolvimento: o Estado pode reconhecer seu
desenvolvimento de formas distintas e isto inclui a regressa institucional. Pode ser de modo
isolado, oposto ou interdependente. Isolando-se, temos o exemplo do Mediterrâneo, oposto é o
tipo de Estado islâmico e da Europa Cristã, por fim, como interdependente, há o exemplo da
Colonização, uma vez que não há Colônia sem Metrópole.
O Estado Constitucional também se patenteou como Estado de Direito, mas sob a forma
jurídica de que, além de uma estrutura de Direito Constitucional (com ou sem Constituição
formal e escrita), seriam reconhecidos direitos fundamentais. De lá para cá, as regras básicas do
jogo democrático são as seguintes: “...regras estas que se caracterizam pela rotatividade do
poder, pelo sufrágio universal, pelo respeito às decisões da maioria, pela defesa dos direitos
da minoria...” (Bobbio, 1986, p. 32). De forma extensiva, o Princípio Democrático deve ser
analisado sob o prisma da eletividade, rotatividade, responsabilidade, transparência,
tolerância, publicidade, referendo e participação popular.
Uma forma simples de visualizarmos a ciência do direito como teoria social é pensar que
o Estado de Direito nada mais é do que uma construção jurídica que deve modelar o poder
público, atribuindo responsabilidades ao próprio Estado. Todavia, a ciência do direito, como
perspectiva científica mais elaborada, mais de acordo às sociedades diversificadas, complexas –
em que há transbordam as contradições, constrições e em que as dilações sociais colocam-nos
desafios, obrigações, responsabilidades individuais e coletivas além das previsões otimistas
(quando ingênuas) e positivistas: quando se tem no direito posto a resposta pronta ao inusitado.
Para tanto, é preciso estabelecer o entendimento inicial para um ideário de ciência, direito,
sociedade, modernidade, ciência do direito, complexidade, regularidade x inusitado. Na fase
atual do Estado Moderno, temos de associar os elementos fundamentais que estão presentes na
República, Democracia e Federação:
1. República e Federação:
 Predomínio dos direitos público-subjetivos; publicidade; responsabilidade;
legitimidade; salus publica - saneamento da estrutura do Estado (contas públicas)
implica em melhoria da saúde pública do Estado e do povo.
2. Sociedade Democrática:
 Democracia Política – como vimos com Bobbio (1986) trata-se da formalização e defesa
das “regras do jogo”: a) predomínio da vontade da maioria, b) defesa das minorias, c)
alternância no poder, d) sufrágio universal (coincide com uma dimensão do Princípio
Democrático).
— legalidade democrática ampliada: deferência e consentimento à autoridade, e não
autoritarismo ou simples culto ao poder.
3. Socialismo Democrático:
 Trata-se de uma forma de governo e de gestão da economia em que vige a Democracia
Econômica, e em que imperam determinados elementos sociais, jurídicos e políticos com
força imperiosa, tais como:
 constitucionalização dos direitos difusos e coletivos; inclusão social; distribuição de
renda; socialização do consumo; socialização progressiva dos meios de produção
(nacionalização e estatização do capital estrangeiro – diminuição do controle
patronal sobre o fluxo econômico); socialização da renda da terra e/ou do lucro das
empresas; respeito aos direitos e interesses dos trabalhadores; poder popular;
mobilidade e dinamismo social; elevação dos níveis de consciência pública (do
111
egoísmo ao social, do privado ao público, do indivíduo à cidadania) –
maturidade/embasamento lógico-racional da crítica social.
Para reafirmar esta teoria, a CF/88 excluiu a possibilidade de revisão constitucional, por
meio de emendas constitucionais das seguintes prerrogativas: a) Federação; b) separação dos
poderes; c) princípio democrático; d) direitos individuais. Outra análise decorrente do Estado
Moderno segue a seguinte lógica:
A articulação do Estado, aliada aos imperativos metabólicos mais
internos do capital, significa simultaneamente a transformação das
forças centrífugas disruptivas num sistema irrestringível de unidades
produtivas, sistema possuidor de uma estrutura de comando viável
dentro dos tais microcosmos reprodutivos e também fora de suas
fronteiras [...] Portanto, enquanto se puder manter tal dinâmica
expansionista, não há necessidade do Leviatã hobbesiano [...] É assim
que se redefine de maneira viável o significado do bellum omnium contra
omnes hobbesiano no sistema do capital, presumindo-se que não haja
limites para a expansão global [...] O Estado moderno – na qualidade
de sistema de comando político abrangente do capital – é, ao mesmo
tempo, o pré-requisito necessário da transformação das unidades
inicialmente fragmentadas do capital em um sistema viável, e o
quadro geral para a completa articulação e manutenção deste último
como sistema global. Neste sentido fundamental, o Estado – em razão de
seu papel constitutivo e permanentemente sustentador – deve ser
entendido como parte integrante da própria base material do capital. Ele
contribui de modo significativo não apenas para a formação e a
consolidação de todas as grandes estruturas reprodutivas da sociedade,
mas também para seu funcionamento ininterrupto (Mészáros, 2002, pp.
123-5 – grifos nossos).
É inegável a existência dos princípios norteadores do Estado Moderno, da sua formação
histórica até os dias atuais, no entanto, é preciso pensar se realmente são princípios norteadores
de um pensamento republicano ou se restam prisioneiros por interesses não confessáveis. Para
esta análise, tomemos apenas o exemplo do desenvolvimento tecnológico e econômico, tal qual
previsto no inciso XXVII, do art. 7º da CF/88: proteção em face da automação, na forma da lei.
Desse ponto de vista, a regulamentação do processo de automação deveria prever alguns
pontos102:
a) Fornecimento de informação prévia por parte da empresa dos seus projetos de
automação: A lei deve proteger o trabalhador dos efeitos negativos da automação e deve obrigar
à informação prévia por parte da empresa ao respectivo sindicato dos trabalhadores quanto aos
projetos substitutivos de tecnologia.
b) Estabelecimento de “hierarquia de natureza social” nos projetos de automação das
empresas. Deve-se estabelecer “hierarquia de interesse social” no processo de automação, de
modo a obrigar as empresas a iniciarem processos de automação pelos setores de maior
penosidade, periculosidade e insalubridade.
102
Disponivel em http://www.ambito-jjuridico.com.br/pdfsGerados/artigos/4831.
112
c) Determinação da negociação coletiva: O ideal é que a automação seja resultado da
negociação entre a empresa e o Sindicato representativo dos trabalhadores da empresa.
d) Controle do ritmo do trabalho: Um dos efeitos mais claros do processo de automação para
os trabalhadores que permanecem na empresa é o aumento do ritmo de trabalho, com fortes
efeitos negativos em termos da saúde e segurança no trabalho.
e) Plano de Demissão Voluntária: É importante que a futura regulamentação da automação
determine a obrigatoriedade da fixação de Planos de Demissão Voluntária (PDV) e dos critérios
que deveriam nortear estes planos.
f) Obrigatoriedade de contratação dos trabalhadores destinados às centrais coletivas de
reciclagem e realocação de mão-de-obra: O artigo 2º do PL de Fernando Henrique (o Projeto
de Lei Nº 2.902, de 1992) diz: “Os Sindicatos das categorias econômica e profissional, mediante
convenção coletiva de trabalho em comum acordo, manterão Centrais Coletivas de Reciclagem e
Realocação de Mão-de-Obra...”. Contudo, a futura regulamentação deveria prever também, mas
não o faz, que a empresa tem a obrigação de contratar prioritariamente os trabalhadores enviados
para os Centros de Requalificação.
g) Contribuição obrigatória da empresa que automatiza ao Fundo de Amparo ao
Trabalhador (FAT): cobrança de um determinado percentual sobre o último salário do
trabalhador, que será pago pela empresa e destinado ao FAT.
h) Nos setores intensivos em mão-de-obra, os encargos relativos ao sistema deverão ser
transferidos da folha de salários para o faturamento (valor adicionado). O objetivo desta
medida é tornar a contratação de mão-de-obra economicamente mais competitiva que sua
substituição por máquinas e equipamentos.
i) Ampliação das parcelas do seguro desemprego para os trabalhadores atingidos pela
automação.
j) Penalização às empresas que descumprirem a lei. A melhor penalização seria a
obrigatoriedade da reintegração dos trabalhadores atingidos pela automação.
l) Impedimento temporário da automação por força maior: a regulamentação deve delegar
ao poder executivo o poder de decretar o impedimento temporário da automação em determinada
atividade econômica por força maior, decorrente de crise econômica e dos impactos sociais por
ela gerados.
A automação é um fenômeno do mundo contemporâneo, tem transformado os processos
produtivos em todos os setores da economia: indústria, comércio, serviços, agricultura, pecuária,
extração mineral e vegetal. Em parte porque é um processo irreversível, a automação deve ser
alvo de nossa reflexão e crítica social.
Em todo caso, como gravame social, além da desarticulação das garantias do mundo do
trabalho, pode-se afirmar que o direito que não se submete à ciência é mera manifestação do
poder – livrando-se, por exemplo, da história e do movimento instaurador da luta social. O
direito sem luta não existe, a não ser como ideologia – na forma da negação da ciência. Colocase, portanto, inicialmente, a reversão do entendimento do direito como controle social, a serviço
das sociedades controlativas, a exemplo das iniciativas instauradas pelo Estado Penal. Outro
fator que ameaça a integridade do Poder Político, se tomamos a soberania popular por base, é a
apatia e o inegável desinteresse pela política.
Forçosamente Cidadão
É possível ou positivo forçar alguém a realizar alguma coisa, ainda mais se for contra sua
vontade ou se contrariar seu estado de inércia, ou seja, a natural vocação de nada-fazer? O corpo
113
em repouso tende a permanecer em repouso; se nada for feito, se nenhuma força agir a fim de
que se movimente, pela lei da inércia, não há indicação de que possa se colocar em ação.
Esta lei da física é uma das que se aplica, metaforicamente, à análise social e à
compreensão da qualidade da cidadania. A outra lei da física clássica bem aplicada à realidade
social, especialmente a realidade brasileira, é a entropia. Por esta dedução, o corpo em repouso
não produz entropia – ou pouco afeta o seu movimento. No caso da sociedade brasileira, os
corpos em repouso são os nossos, nós, os cidadãos de bem. Mas, ao contrário, a entropia, a
confusão, o caos social são formados, forçados por aqueles que querem privatizar, se apossar do
que é público, de tudo o que o povo outrora era o verdadeiro proprietário.
Uma conclusão possível, ainda que nem tão positivista, mas lógica, é de que o cidadão do
sofá, o cara, a pessoa que acessa o mundo real unicamente pela TV – mudando de canal toda vez
que sua consciência é afrontada – deve, urgentemente, movimentar-se para mudar a qualidade
das relações humanas ao seu redor. Sem isto não há como mudar a qualidade da política.
Sem que o cidadão do sofá saia de sua zona de conforto, sem que se sinta a indignação
diante do malfeito, não há sociedade que se organize para ser menos caótica e problemática.
Nossos problemas, como cidadãos ativos, são os mesmos problemas que se verificam na
sociedade como um todo. Estamos todos interligados. Na verdade, o que sofremos como
cidadãos decorre da quantidade de tempo que passamos no sofá, contemplando a vida lá fora.
A chamada vida comum do homem médio, a vida da maioria esmagadora dos leitores
desse texto, é marcada, quando não definida, por todos aqueles que detestam a política. Para a
infelicidade geral, se não gostamos da política, há os que a adoram, que têm fascínio pelo poder.
Infelizmente, para os que se sentam complacentes no sofá, há os que manipulam o mais famoso
dos “analfabetos políticos”. Quem é esse sujeito? É o cidadão do sofá. Porque, ao contrário, da
apatia e da inércia do passado, o cidadão do sofá ainda é antissocial, quase um cínico-social
porque a vida “lá fora” pouco lhe interessa. O máximo de interação que conhece passa pela
telinha e pelo plim-plim. A cidadania ao controle do zapping; depois do intervalo as
considerações finais sobre o sentido da vida; o jogo democrático que se parece com um game; a
vida pública no Brasil é um quase over-game; o cínico-mentiroso retoca a maquiagem, emposta a
voz como na locução de rádio e ainda pinta as unhas das mãos para fechar sua aparição de caras
e bocas na TV.
Então, neste caso específico, em que a inércia de alguns provoca o mal-estar global, não é
legítimo que se force o indivíduo a se transformar em sujeito de direitos? Para deixar sua
condição negativa, de não-ser-cidadão-efetivo, entretanto, o Estado não pode tudo sozinho. No
Brasil, o Estado obriga ao voto, como direito-dever de exercício do poder, mas isto não é
suficiente. Aliás, há algum tempo, a obrigatoriedade do voto tem levado a inúmeras distorções
como a venda de votos e a contratação de cabos eleitorais mercenários, sem nenhuma
identificação ideológica e partidária.
Enfim, o cidadão desperto também precisa fazer seu papel, precisa acordar aquele amigo,
companheira, familiar, conhecido que ainda não abandonou a comodidade do sofá ou que assiste
a cidadania desfilar na tela plana ou de plasma. Quem está pasmo é o cidadão que não se
conforma em ser plasmado pela inatividade. Ao contrário de apenas assistir, placidamente, a vida
pública ser corrompida, é preciso ser testemunha da mudança de alguns, porque ainda que
poucos, aos poucos, os cidadãos acordados serão muitos. Por isso, é preciso forçar a suposta
liberdade dos que não-querem-ser, para que a dignidade de todos seja uma realidade. Equivale a
forçar o cidadão a ser honesto.
114
DEFINIÇÃO JURÍDICA DE ESTADO
Nossa concepção global é de que o Estado Moderno sofreu inúmeras transformações em
suas bases e estruturas – a exemplo de que, inicialmente, a soberania era absoluta e,
hodiernamente, receita-se a limitação jurídica ao poder –, porém, os elementos essenciais
permanecem constantes. Os elementos que pouco ou nada se modificaram remetem à exigência
de que não há Estado independente sem a identificação e o reconhecimento de que há um povo
específico (auto referenciando-se), em determinado território, e com capacidade de se gerir com
autonomia e soberania. Além disso, a definição jurídica do Estado, na atual fase em que se
encontra o Estado Moderno, remete à autolimitação (pelo direito) e à heterolimitação da
soberania interna pelo direito internacional (a exemplo da imposição dos chamados crimes contra
a Humanidade). Entretanto, para avançar é necessário retomar algumas características do Estado
nascente na modernidade clássica.
Estado Moderno
O Estado Moderno é devedor, em sua fórmula inicial, ao pensamento político-jurídico
desenvolvido pelo filósofo inglês Thomas Hobbes. Para Hobbes, a soberania é uma construção
política e decorre de longa formação histórica, decorrendo da necessidade de autoconservação e,
por isso, não pode ser ameaçada pela tirania ou possibilidade do uso/abusivo do poder que
ameace a paz social, arduamente conquistada. Em Hobbes, o contrato socio-jurídico não pode ser
utilizado de modo reativo, vingativo, abusivo contra os interesses não-aceitos pelo governo
tirano. Contudo, Hobbes escreve uma teoria absolutista da soberania, mas não uma autorização
para o exercício absolutista, tirano do poder.
Estado de Direito
A teoria da autolimitação do poder, apesar de ser uma concepção teórica, tem de ligar
com elementos jurídicos precisos e institutos controlativos claros e objetivos do poder. Como
parte dos elementos que compõem a delimitação do poder, devemos citar os seguintes: coação +
norma + obrigação bilateral. Sob a proteção das cláusulas pétreas (art. 60, § 4º da CF/88) a forma
federativa de Estado não pode ser abolida, pois que subsume-se aí outra fórmula de segurança
democrática: democracia + Estado de Direito + Divisão dos Poderes. Se estendermos o
pensamento jurídico para o lastro do Estado Democrático de Direito, então, deveremos salientar
alguns elementos complementares: predomínio dos direitos público-subjetivos; publicidade;
responsabilidade; legitimidade; salus publica - saneamento da estrutura do Estado (contas
públicas) implica em melhoria da saúde pública do Estado e do povo.
Sob os auspícios do Estado de Direito se entenda que a autonomia e soberania serão
condicionadas por autolimitação e heterolimitação. Esta capacidade jurídica que assegura ao
Estado agir conforme claros preceitos jurídicos indica a necessidade de retomarmos as principais
teorias da personalidade jurídica:
a)
teoria que somente reconhece como pessoa o homem e nega ao
Estado a personalidade jurídica;
b)
teoria que só admite para o Estado a personalidade jurídica, mas
lhe nega a essência de pessoa moral;
c)
teoria que reconhece o Estado como pessoa moral e jurídica;
d)
teoria que personifica também a nação (variante francesa) e define
o Estado como a nação juridicamente organizada (Azevedo, 2009, p.
102).
115
O poder regulado, sem dúvida, significa que se reconhecem mutuamente,
concomitantemente, o Poder Político e o Poder Jurídico. Nesta junção que seria, também, a
congratulação entre legitimidade e legalidade. Em outras palavras:
Poder legal é aquele apenas instituído por lei; poder legítimo é aquele
que, instituído por lei, é jurídica e moralmente correto. Cumpre lembrar
que legitimidade é a coincidência entre os anseios do povo com os
objetivos do poder [...] O poder do Estado é, portanto, poder jurídico,
sem perder seu caráter político [...] O Estado, entidade abstrata, ficção
jurídica, faz sentir sua presença por meio dos agentes públicos (pessoas
físicas) e por meio de pessoas jurídicas (Azevedo, 2009, p. 102-103).
Por outro lado, se esta formalidade é essencial – até mesmo como capacidade de criação
da ficção jurídica a que se condiciona o Estado –, é ainda mais preciso, sobretudo no pós-1945,
que haja efetividade na defesa do direito democrático e no alargamento da visão intimista
presente nos direitos individuais e no liberalismo e individualismo jurídico. Isto ainda reforça a
necessidade de que competência e capacidade jurídica e política estejam muito esclarecidas e
definidas – em termos de exercício e de manifestação do poder – quando tratamos da atualidade
do Estado Moderno.
O Estado manifesta a soberania também pela jurisdição e a competência é o instituto
definidor do âmbito de exercício da atividade jurisdicional. Pela capacidade jurídica, lê-se que
todo homem é capaz de direitos e de obrigações. Por competência, entende-se o poder jurídico
atribuído pela pessoa jurídica a seus órgãos; é uma delimitação do raio de ação. Ou seja, ambas,
referem-se à limitação da soberania política (restritiva ao Estado) e extensão da soberania
jurídica (expansiva dos direitos, garantias, liberdades e também das responsabilidades). Também
é uma forma de se entender a comunicação necessária entre poder legal e poder legítimo.
Fundamentos do Direito e coletividade política
Um dos pressupostos dos direitos coletivos é de que o direito de um se comunique ao
direito dos demais, pois só assim se verifica a continuidade, a comunicação e a extensão de
pressupostos jurídicos comuns à coletividade. Porém, inicialmente:
A natureza das coisas, no entanto, determina que a preservação dos
direitos individuais de todos condiciona a uma limitação recíproca os
direitos individuais [...] Por outro lado, conjuga-se a esta doutrina que a
regra de direito deve ser sempre a mesma em todos os tempos, em todas
as nações e em todos os povos [...] Produto de longa elaboração, a
doutrina individualista encontrou decisivamente sua forma precisa e
acabada na “Declaração dos Direitos” de 1789: “Os homens nascem e
permanecem livres e iguais em direitos” (Duguit, 2006, pp. 11-13).
Para Duguit, a solidariedade ou interdependência é a capacidade humana por excelência
(o homem é social por natureza e não devido a artifícios, como Contrato Social):
A solidariedade humana pode absorver as solidariedades locais,
regionais, ou nacionais, de forma que o homem possa se considerar um
cidadão do mundo? É ainda possível realizar este anseio, considerando
todas as guerras, discriminações e ferocidades que o ser humano vem
praticando? Sim, porque os povos livres podem superar tudo isso
(Duguit, 2006, p. 22).
116
Talvez a única observação que fizéssemos, como adendo a esta nota, é que as hordas, ao
contrário das famílias e das cidades, é que haviam de lidar com a luta pela própria conservação,
pela sobrevivência, como auto-conservação individual e/ou grupal. Mais ou menos como o
estado bestial de Vico (1999). Já as cidades, Nações ou Estados (mesmo que na forma de IlhasNações), ver-se-iam imbricadas na Luta pela Autoconservação (Honneth, 2003), sem que ainda
estivesse notadamente presente a intersubjetividade. É, em parte, o caminho sugerido por
Rouanet ao tomar o Princípio Universal de Habermas para buscar amparo e legitimidade em
temas que foram muito caros ao Iluminismo, tal qual ainda seriam hoje em dia:
O indivíduo só existe em interação, mas essa interação pressupõe o
reconhecimento da dignidade e da integridade de cada participante. O
homem tem direitos como indivíduo, que não podem ser cancelados
pelos direitos da comunidade. Entre esses direitos do homem como
indivíduo, e não apenas como membro da comunidade, está o direito à
auto-realização, segundo seu próprio estilo e sua própria concepção de
felicidade [...] Quanto ao descentramento, a ética discursiva o redefine,
expurgando-o de suas características individualistas. O descentramento se
dá quando os indivíduos abandonam o mundo vivido e entram num
processo de argumentação coletiva. Nesse momento, eles se situam em
relação ao mundo vivido, numa perspectiva de excentricidade, de
exterioridade [...] É toda uma comunidade argumentativa que rompe as
relações espontâneas que seus membros mantinham entre si no mundo
vivido e que assume uma postura judicativa e crítica com relação à sua
própria sociedade [...] Coloquei o direito ao descentramento no cerne da
moralidade iluminista, pois é ele que permite ao indivíduo completar sua
psicogênise, acedendo ao estágio do pensamento crítico, e realizar
plenamente a palavra de ordem kantiana — sapere aude — pensando por
si mesmo, qualquer que seja a opinião de seu vizinho, da sua cidade ou
de seu país (Rouanet, 2002, pp. 223-225).
Este alinhamento de valores e de ações teriam o grande mérito de incutir o
reconhecimento da intersubjetividade, da alteridade (descentramento) como itens permanentes da
luta política pelo reconhecimento à inclusão. Na citação de Bobbio, o correto é que se observasse
o Estado de um ponto de vista clássico, ou seja, como imperativo de poder social. Este é o eco
que vem do passado constitucional dos próprios Estados:
Qualquer contexto em que a consideremos; na horda primitiva,
personificada num chefe ou grupo de anciãos; na cidade, com o chefe de
família; nos grandes países modernos, considerada no conjunto mais ou
menos complexo de grupos — príncipes, regentes, reis, imperadores,
presidentes, parlamentos, etc. —, a autoridade sempre constitui um fato
social da mesma ordem. Há diferença de grau, mas não de natureza
(Duguit, 2006, p. 32).
Assim, Estado é só uma diferença em termos de autoridade política, status, poder e
comando, e não propriamente derivação da Pólis dos gregos clássicos, como ressonância da
isonomia e da isegoria. Por outro lado, e parece claro a esta altura, na ausência do Estado ou sob
117
a ação da anarquia de comando do poder, o próprio Princípio da Autoridade Política pode estar
subsumido, imiscuído pela mera arrogância de autoridade, em que se aceita com complacência
uma grave confusão entre atitude de poder que não corresponde a nenhuma responsabilidade
social. Além disso, vimos/vemos a deposição do novo e a reposição do antigo e esquecido, do
pré-moderno, da conversão abissal de tradições sagradas e tradicionalismos irracionais; bate-se
intensamente hoje com xenofobias, governos de exceção, movimentos multicores, mas
reacionários, racistas, preconceituosos; vem desmantelando sistematicamente as redes e os
sistemas públicos de proteção social.
118
LEIS DE FÁBRICA:
não houve um Renascimento Jurídico
O objetivo deste item é indicar que o Estado Moderno não promoveu um Renascimento
Jurídico. Ainda que possamos falar de uma Renascença (nas artes), de um revigoramento do
homem, de suas representações, de seu imaginário a partir do Direito à Educação e, é evidente,
de um Renascimento Econômico e de suas forças produtivas, não houve um adensamento
jurídico alternativo. Pois, juridicamente, o Renascimento foi apenas o antepasto da acumulação
primitiva de capitais necessários ao livre desenvolvimento das revoluções nacionais (Estado
Moderno) e da própria Segunda Revolução Industrial, um século à frente. As Leis de
Cerceamento, parafraseando Marx, constituíram-se no primeiro “ato histórico-jurídico da
burguesia”. A chamada Lei de Fábrica surgiu muito tempo depois (1833). Neste sentido, o
Estado Moderno nasceria marcado pela luta de classes, como segurança jurídica do capital,
expropriação e espoliação do camponês e não, como se pensa, em defesa da segurança do
cidadão. Os marcos jurídicos do Estado Moderno, portanto, são regulados por direitos de classe e
sua soberania representa a salvaguarda dos interesses da burguesia nacional.
Como veremos, foram necessários cinco séculos de espera para ver alguma expressão jurídica de
Justiça Social. Contudo, para melhor visualizar o que não foi feito juridicamente, em termos de
desenvolvimento da própria “tecnologia jurídica”, veremos primeiro alguns impactos/reflexos da
influente atividade econômica do mesmo período.
Renascimento econômico
Marx destacou que a servidão havia desaparecido da Inglaterra em fins do século XIV.
Mas foi um longo processo de exploração/expropriação e “crescimento da economia para fora”,
constituindo-se no próprio Renascimento Econômico: acumulação primitiva; empuxo e
formação do Estado Moderno; navegações e descoberta de novos territórios e mercados que
formaram a estirpe do mercantilismo, a partir do século XVII:
Nos séculos XVI e XVII, a rápida expansão dos espaços econômicos, que
teve por base a incorporação das novas massas territoriais ao sistema
europeu pelas grandes descobertas, e a funcionalidade que esse processo
adquiriu na economia mercantilista (exploração das riquezas coloniais,
rápido crescimento do comércio etc.) favoreceram a acumulação
primitiva de capital e facilitaram a estruturação do moderno Estado
Nacional (Lessa, 2005, p. 58).
Foi este o próprio circulo virtuoso que geraria, na outra ponta, a Segunda Revolução
Industrial, com: forte/dinâmico sistema financeiro; modernização agrícola; competitividade no
comércio de lã (sobretudo no mercado externo). Porém, como se viu, este ímpeto de crescimento,
modernização e tecnificação produtiva é um resultado que foi plantado desde o século XV. Em
seguida, como marco divisório, os Atos de Navegação (1651) corroboraram com a derrocada da
supremacia marítima holandesa e em benefício da Inglaterra.
Outro evento importante, decisivo desse processo virtuoso em que se encontrava o
Renascimento Econômico, veio com a Revolução de 1688 ou Revolução Gloriosa — sucedendose à ditadura de Cromwell (1653-1658): favoreceu a ascensão burguesa; trouxe forma de
controle político sobre a monarquia; gerou condições propícias a um novo ciclo virtuoso da
economia; expansão do comércio; prosperidade agrícola; unificou o mercado nacional; houve
hegemonia na exploração dos mares; grande aproveitamento dos recursos energéticos (carvão);
119
ênfase comercialista na política mercantilista; acumulação acelerada de capitais a fim de detonar
o processo pioneiro dessa modalidade de industrialização emergente.
Ao que se somaram outros efetivos, como: fechamento dos campos e transformação dos
pequenos proprietários em trabalhadores livres; espírito empreendedor de boa parcela da
sociedade inglesa da época; internalização das principais inovações tecnológicas nas atividades
produtivas; abertura das primeiras linhas férreas e a invenção do barco a vapor. Além da
incorporação de outras tecnologias: “No caso, a introdução dos teares movidos a vapor, em
substituição aos teares manuais, juntamente com as máquinas para o processamento do algodão e
com as fiandeiras, foram as inovações que deram início ao industrialismo moderno” (Lessa,
2005, pp. 60-61). O escoamento de tamanha manufatura foi possível graças ao intercâmbio
comercial existente entre as colônias inglesas e com outras potências:
A convergência singular dessas dinâmicas que se desenrolaram desde o
século XVI na Inglaterra fez desse país o único na Europa com as
condições políticas, econômicas e sociais necessárias ao desenvolvimento
inicial da indústria e, portanto, do capitalismo industrial. Mas o
aprofundamento da Revolução Industrial dar-se-ia com o alargamento
das condições de oferta de recursos que até o final do século XVII eram
escassos ou de manipulação excessivamente cara, como o ferro, cujos
artefatos — especialmente as armas — eram demandados
prioritariamente pelo Estado (Lessa, 2005, p. 61).
Outras inovações foram a introdução da locomotiva a vapor e a edificação de estradas de
ferro, mas a isto se somava a penúria, a miséria das populações expulsas de suas terras e casas, e
de suas tradições. A reação a tudo, no entanto, não tardou nos grandes centros urbanos, levando à
aparição de movimentos de reação à industrialização, ao surgimento de lideranças trabalhistas de
um operariado de consciência crescente e auxiliado pelo nascimento dos movimentos de
reivindicação socialista, já a partir de 1830. A correspondência no setor de serviços (“economia
invisível”) indicaria índices elevados de crescimento, pois que era “a roldana que fazia girar o
ciclo econômico” (Lessa, 2005, p. 64).
A movimentação política e econômica deveria se fazer sentir em uma legislação
inovadora, que associasse direito e garantia do trabalho, primeira conquista jurídica/trabalhista
do trabalhador, como resultado de sua mobilização para enfrentar as agruras e severas
intensidades de exploração do trabalho (incluso o trabalho infantil e de mães amamentando ou
grávidas perto da “hora do parto”). Um destaque progressista em termos de convivência social
que só apareceria com o Iluminismo.
O não-renascimento jurídico
Contudo, antes que o Século das Luzes fizesse suas promessas de liberdade e de maioridade,
foram séculos de exploração à frente, com extensa e reiterada utilização de Leis de
Cerceamento ou Cercamento:
Além disso, desde o século XVI, acontecia na Inglaterra a substituição da
pequena propriedade pela grande propriedade, imposta pelas leis de
cercamento. Essas leis, estabelecidas pelos reis Tudor, acabavam com as
extensões de terras abertas, utilizadas comunitariamente por camponeses,
determinando o cercamento e venda desses campos. Com isso, cada vez
mais formavam-se grandes propriedades que produziam mercadorias para
o comércio e criavam ovelhas para o fornecimento de lã para a indústria
120
têxtil [...] Essas leis de cercamento forneceram, além de matérias-primas
para a Revolução, mão de obra para as cidades, ou seja, para as
manufaturas em expansão. Os camponeses, que perderam as terras
comuns e eram até obrigados a vender suas terras, não tinham condições
de viver no campo. Dirigiam-se então para as cidades, onde trabalhavam,
em péssimas condições, nas futuras indústrias. Assim, a Inglaterra
possuía mão de obra disponível para a Revolução103.
Com leis abusivas e política repressiva como suporte, as táticas do cerceamento eram
explicitamente negativas ao “direito consuetudinário” e exploradoras do campesinato, bem a
serviço da acumulação de capitais e que “obrigavam” a conversão dos camponeses em mão-deobra barata para o trabalho industrial:
O movimento dos cercamentos (enclosure), campos utilizados
comunitariamente pelos camponeses livres, passaram a ser cercados
pelos landlords: os latifundiários ingleses. Isto provocou um enorme
êxodo rural e a formação do proletariado como exército industrial de
reserva para alimentar o industrialismo nascente104.
Neste primeiro momento, pode-se dizer que o industrialismo “libertou” os camponeses
das amarras que o prendiam ao senhor feudal com a ajuda dos comerciantes e burgueses. Porém,
em seguida, novos grilhões foram rapidamente preparados, pois a ordem econômica exigia muito
mais acumulação do que já se vira até então. Portanto, o movimento econômico que gerou de
início a "liberdade negativa” aos camponeses não teve por objetivo estendê-la até a isonomia e
equidade. Em pleno Renascimento, portanto, as amarras da tradição começavam a se soltar, mas
sob a ação de leis típicas de um Estado de Exceção: “Uma lei de 1533 constata que certos
proprietários possuem 24.000 carneiros, impõe-lhes para limite a cifra de 2000105” (Marx, 1977,
p. 25). A este curso se seguiu a finalização das propriedades comunais, por força de lei — Bills
for enclosures for commons (Lei de cercamento das terras comuns):
A propriedade comunal, inteiramente distinta da propriedade pública [...]
era uma velha tradição germânica, conservada em vigor no seio da
sociedade feudal [...] as violentas usurpações [...] começaram no último
terço do século XV e se prolongaram para além do XVI [...] A forma
parlamentar do roubo cometido sobre as comunas é de “leis sobre o
fechamento das terras comunais” (Bills for enclosures for commons).
São, na realidade, decretos por meio dos quais os proprietários de terras
se presenteavam a si mesmos com os bens comunais, decretos de
expropriação do povo (Marx, 1977, pp. 34-35).
Na nota 16 deste capítulo, Marx retoma algumas minúcias do citado processo de
expropriação, citando um trecho do relatório intitulado A Political Inquiry into the Consequences
of Enclosing Waste Lands (A pesquisa política sobre as consequências do cercamento de terra
não cultivadas): “Se quiserdes que os caseiros trabalhem, diziam eles, conservai-os na pobreza.
103
Veja-se em: http://www.colband.com.br/ativ/nete/cida/linh/temp/modri03.htm.
Veja-se em: http://dgta.fca.unesp.br/docentes/dede/antigos/EconomiaBrasileira/Evol_Agricultura.pdf.
105
Marx acrescenta um comentário sugestivo: “Thomas Morus, em sua Utopia, fala do estranho país ‘onde os
carneiros comem os homens” (Marx, 1977, p. 25 – nota 5 do capítulo).
104
121
O fato real é que os arrendatários se arrogam assim todo o direito sobre as terras comunais e
delas fazem o que bem lhes parece” (Marx, 1977, p. 35). A estrutura mesma do modo de
produção pré-capitalista não auxiliava aos camponeses, nem mesmo quanto ao sentido político
da formação de uma consciência pró-ativa (Eagleton, 1999, pp. 44-45)106. Depois, Marx
reconstrói parte da história do direito trabalhista inglês, de corte claramente burguês e de
exceção:
A legislação sobre o trabalho assalariado [...] foi inaugurada na Inglaterra
em 1349 com o Statute of Labourers de Eduardo III. A este estatuto
corresponde em França a ordenação de 1350, promulgada em nome do
Rei João [...] Foi proibido, sob pena de prisão, pagar um salário mais
elevado que o estabelecido legalmente: porém, incorre em pena mais
severa, o que recebe o salário superior ao fixado, do que aquele que o
paga. Assim, as secções 18 e 19 do estatuto de aprendizagem de
Elizabeth punem com dez dias de prisão o patrão que faz pagamentos
além do limite legal e com vinte dias o operário que o aceita [...] Um
estatuto de 1630 estabelece penas ainda mais duras e autoriza mesmo
o patrão a obter o trabalho pela tabela legal, por meio da violência
corporal [...] As coligações operárias foram incluídas na categoria dos
maiores crimes desde o século XIV, até 1824 (Marx, 1977, pp. 66-67 –
grifos nossos).
O custo de se arrancar pela raiz qualquer identidade, resistência, tendência ao
inconformismo, foi o desenraizamento, a desterritorialização. No sentido de obrigarem ao
abandono de seus lares, convicções, tradições, “direitos” e imporem a conversação à
modernidade capitalista, exploração desmedida e “urbanização forçada” de levas de milhares de
famílias camponesas, as Leis de Cerceamento podem ser classificadas como leis motivacionais
do Estado Moderno de Exceção:
O último procedimento de um alcance histórico, que se empregou para
expropriar aos cultivadores, se chama clearing of states, literalmente:
“roçada dos bens de raiz”. No sentido inglês não significa uma operação
técnica de agronomia; é o conjunto de atos de violência por meio dos
quais se desembaraça dos cultivadores e de suas moradias, quando eles se
encontram sobre os bens de raiz destinados a passar ao regime da grande
cultura ou ao estado pastoril (Marx, 1977, p. 42).
Este desenraizamento obsessivo, truculento, imposto verticalmente pelo Estado, nada
mais faria do que sacramentar a lógica do capital burguês e do grande latifundiário: “O capital é
trabalho morto [...] O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o
capitalista consome a força de trabalho que comprou. Se o trabalhador consome seu tempo
disponível para si, então rouba ao capitalista” (Marx, 1985, p. 189).
Nem mesmo o direito renascentista por definição, o direito à educação (já sob a batuta
da universalidade), escaparia a este sentido pró-capitalista que estamos apontando para o direito
nascente no Estado Moderno. Como direito não-laico, o direito à educação surgiu para servir
como um poderoso meio de controle social erigido pelo Estado Moderno:
106
Weber teria uma leitura curiosamente próxima a este sentido, quando se refere à perda de “espaço econômico”
dos alemães para os poloneses, justamente por causa de sua precária articulação política (Conh, 1989).
122
Martinho Lutero apelou “para os vereadores de todas as cidades da
Alemanha, para que estabeleçam e mantenham escolas cristãs [...] A
educação obrigatória e universal foi estabelecida na Genebra
calvinista em 1536 e o discípulo escocês de Calvino, John Knox,
“plantou uma escola e uma igreja em cada paróquia.” [...] A educação
obrigatória está vinculada, historicamente, não só à invenção e
desenvolvimento da imprensa, à ascensão do protestantismo e do
capitalismo, mas também ao crescimento da própria ideia de naçãoestado (Ward, 1973, pp. 62-63 – grifos nossos).
Nessa toada, em meados do século XIX, como consequência do industrialismo imposto
pelo êxodo rural, com base no Renascimento Econômico inglês, as condições de trabalho não se
mostravam melhores do que antes: “A jornada de trabalho variava entre 12, 14 e 15 horas,
com trabalho noturno, refeições irregulares, em regra no próprio local de trabalho, empestado
pelo fósforo. Dante sentiria nessa manufatura suas fantasias mais cruéis sobre o inferno
ultrapassadas” (Marx, 1985, p. 198 – grifos nossos). Algumas tentativas de enfocar a igualdade
e a isonomia datam do Iluminismo (“humanizar o direito”), como vemos no livro Observações
Sobre a Tortura, de Pietro Verri (2000): é uma narrativa das barbáries da Razão de Estado,
ainda que feitas em “razão do Estado”. É um livro representativo do Iluminismo do século
XVIII, e relata a aplicação da tortura quando se buscavam os responsáveis para a peste que
assolou a Milão de 1630.
No fundo, nos crimes cometidos, vemos refletir-se a alma das pessoas e da sociedade em
que vivem. Já com os tipos penais, e com as penas consequentes, temos o nível de organização
da cultura, o formato que o povo conseguiu imprimir ao Estado. Por isso, os crimes e as penas
são fontes ricas, preciosas, para quem quer demonstrar o que a sociedade é capaz de produzir e
em que nível se encontra nesse longo processo civilizatório.
Abolir a pena de morte e a tortura, portanto, é “civilizar” a pena, o apenado, a vítima e o
penalista. Verri cita Cícero (no discurso Pro Silla): “A tortura é dominada pela dor, governada
pelo temperamento de cada um, tanto de espírito quanto de membros, ordenada pelo juiz,
dobrada pela dor, corrompida pela esperança, debilitada pelo temor, de modo que entre tantas
angústias não resta nenhum lugar para a verdade” (p. 113). O maior problema, no entanto, é que
o obscurantista não é capaz de entender o que Cícero diz (em sua síntese da razão), quanto mais
a assertiva de que a dignidade é fruto dessa mesma razão107.
Lei de Fábrica: esboço de uma interpretação materialista do renascimento
A primeira dessas medidas/garantias, especificamente no chamado “mundo do trabalho”
seria chamada Lei de Fábrica:
As primeiras medidas de proteção do trabalho seriam tomadas para
beneficiar a classe trabalhadora apenas em 1833, quando o parlamento
inglês votou a Lei de Fábrica, que estabelecia a proibição do trabalho de
crianças menores de 13 anos por jornadas superiores a nove horas por
dia. Em 1847, nova legislação trabalhista proibiu jornadas diárias com
mais de 10 horas para os menores de 18 anos e para as mulheres. Apenas
em 1874 foi promulgada a lei que estipulava a jornada diária de dez horas
para trabalhadores adultos do sexo masculino (Lessa, 2005, p. 63).
107
Veja-se a íntegra do artigo em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5123.
123
Essas medidas de segurança ou de garantia do direito (havia pressão social, do operariado
e também socialista/comunista) em prol da “expectativa de direito” (“direito a ter direitos”:
Bobbio, 1992) por parte da classe trabalhadora era o início de uma onda de resistências aos
efeitos trazidos pela Segunda Revolução Industrial – especialmente a partir da Inglaterra.
Note-se, em parte pelo que já vimos, que tratamos a luta de classes como uma relação
antagônica, contraditória e oposta entre as classes fundamentais; especificamente no capitalismo
essas classes são burguesia e proletariado. Mas há outras classes, como o lumpemproletariado e
a pequena burguesia e até frações de classe, também em luta, como: burguesia industrial X
agropecuária ou financistas versus industriais. Uma relação de oposição pode implicar apenas em
uma situação de conflito controlado, a exemplo do que se vê entre oposição e situação, relação
mediada pelo Princípio do Contraditório: comum ao debate parlamentar (trabalhistas X
conservadores) ou à relação jurídica.
Será uma relação antagônica quando a conflituosidade e a animosidade ganharem um
nível muito superior de beligerância, antecipando-se à negação, porque os discursos ou
ideologias estão em franco e aberto conflito: as visões de mundo se tornaram insuportavelmente
diversas. Por fim, será uma relação contraditória porque, aquela negação anunciada estará em
ação, o que implica que — apesar da mútua necessidade de existência entre os pólos em disputa
(“não há diálogo de mudos ou de surdos”) — a vida de um acarreta obrigatoriamente a
exclusão/eliminação do Outro.
Diferentemente da dialética oriental (positivo versus negativo), a dialética ocidental
marxista impõe a ocorrência da negação. Assim, a um processo dialético por contradição é
obrigatória a ocorrência de uma tese (situação), antítese (oposição) e de suas respectivas
superações em uma síntese (que não é nem a tese, nem a antítese, mas que contém parte das
duas, transformadas, revigoradas em um dado novo, em outro contexto). A síntese, portanto,
como substrato das duas ocorrências anteriores, será a nova tese — o que implicará em outra
antítese e assim por diante. Nesta fase, pode-se dizer que houve superação da própria luta de
classes, pois sem que uma das classes fundamentais tivesse sobrevivido, necessariamente, a outra
teria de se transformar em algo diverso daquilo que fora até então: as revoluções, portanto,
transformam a própria luta de classes que as alimentou até aquele momento. Na síntese
apresentada por Engels temos uma (re)visão histórica e crítica feita por Marx:
“O materialismo é filho nato da Grã-Bretanha” [...] O verdadeiro pai do
materialismo inglês é Bacon. Para ele, a ciência da natureza é a
verdadeira ciência, e a física experimental a parte mais importante da
ciência da natureza [...] Toda ciência se baseia na experiência e consiste
em aplicar um método racional de investigação ao que é dado pelos
sentidos. A indução, a análise, a comparação, a observação, a
experimentação são as condições fundamentais desse método racional
[...] Hobbes sistematiza o materialismo de Bacon. A sensoriedade perde o
seu brilho e converte-se na sensoriedade abstrata do geômetra [...] Se os
sentidos fornecem ao homem todos os conhecimentos – argumenta
Hobbes partindo de Bacon -, os conceitos, as ideias, as representações
mentais, etc., não são senão fantasmas do mundo físico, mais ou menos
despojado da sua forma sensorial. A ciência não pode fazer mais do que
dar nomes a estes fantasmas [...] Locke, na sua obra [...] Ensaio sobre o
Entendimento Humano fundamenta o princípio de Bacon e Hobbes [...]
124
Assim se expressa Karl Marx referindo-se às origens britânicas do
materialismo moderno (Engels, s/d, pp. 10-12).
Em seguida, Marx formula, no dizer de Engels, uma crítica mais rotunda acerca do
conatus ou endeavor de Hobbes (1983). No fundo, uma crítica de base à ideia da reta razão
(Angoulvent, 1996), porque a razão nunca seria reta se mais adiante sempre se colocassem
obstáculos, diatribes108, estranhamentos do mundo material — atuando como sufocação das
subjetividades:
Corpo, ser, substância, vêm a ser uma e a mesma ideia real. Não se pode
separar o pensamento da matéria que pensa. Ela é o sujeito de todas as
mudanças [...] Toda a paixão humana é movimento mecânico que
termina ou começa. Os objetos do impulso são o bem [...] O poder e a
liberdade são coisas idênticas [...] Hobbes sistematizou Bacon, mas sem
oferecer novas provas a favor do seu princípio fundamental: o de que os
conhecimentos e as ideias têm a sua origem no mundo dos sentidos
(Engels, s/d, p. 11).
Em parte, este é o esforço analítico principiando pelo materialismo histórico, tendo-se a
acumulação primitiva e a colonização (ultramar) como suportes extratores de riquezas que
originaram ou “suportaram” o Estado Moderno — em seguida, ainda socorre-se especialmente
do “papel político-institucional” exercido pelo Estado-Nação. Portanto, cabe bem uma
distinção/complemento quanto à dialética, especificamente para que possamos destacar o papel
do Estado na condição/condução das suas superestruturas: direito, educação, “função pública”.
Então, vejamos um relato sobre o Renascimento, a partir da perspectiva do Materialismo
Histórico:
As fortunas da Espanha, da Holanda, da Inglaterra, da França foram
obtidas, não somente com o trabalho excedente de seu proletariado, não
somente destroçando sua pequena burguesia, mas também com a
pilhagem sistemática de suas possessões de ultramar. A exploração de
classes foi complementada e sua potencialidade aumentada com a
exploração das nações. A burguesia das metrópoles se viu em situação de
assegurar uma posição privilegiada para seu próprio proletariado,
especialmente para as camadas superiores, mediante o pagamento com
lucros excedentes obtidos nas colônias [...] Espoliando a riqueza natural
dos países atrasados e restringindo deliberadamente seu desenvolvimento
industrial independente, os magnatas monopolistas e seus governos
concedem simultaneamente seu apoio financeiro, político e militar aos
grupos semifeudais mais reacionários e parasitas de exploradores nativos
[...] A luta dos povos coloniais por sua libertação, passando por cima das
etapas intermediárias, transforma-se na necessidade da luta contra o
imperialismo e, desse modo, está em consonância com a luta do
proletariado nas metrópoles [...] O capitalismo tem o duplo mérito
histórico de ter elevado a técnica a um alto nível e de ter ligado todas as
partes do mundo com os laços econômicos [...] No entanto, o capitalismo
não tem condição de cumprir essa tarefa urgente. O núcleo de sua
108
Leia-se mais, em: http://www.ricardocosta.com/pub/advogados.htm.
125
expansão continua sendo os estados nacionais circunscritos com suas
aduanas e seus exércitos. Não obstante, as forças produtivas superaram
faz tempo os limites do Estado nacional, transformando
consequentemente o que era antes um fator histórico progressista numa
restrição insuportável. As guerras imperialistas não são mais que
explosões das forças produtoras contra os limites estatais, que se
tornaram limitados demais para elas (Trotsky, 1990, p. 71-73-75).
Este texto de Trotsky sobre a colonização, o imperialismo e o papel do Estado-Nação
europeu na exploração das colônias, foi escrito em 1939. As revoluções foram intensas não só no
aspecto material (acumulação primitiva, inversão de capitais), mas igualmente nas
“mentalidades”: “Onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas as relações
feudais, patriarcais, idílicas” (Marx & Engels, 1993, p. 68).
Para Marx, o papel do Estado Moderno nunca foi de relevância muito superior ao que
vimos em alguns de seus interlocutores e comentadores: “O poder político do Estado moderno
nada mais é do que um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios comuns de toda a
classe burguesa” (Marx & Engels, 1993, p. 68 – grifos nossos). Em momento de reflexão
semelhante, Marx ainda dirá, entrelinhas, que o juiz crê que para chegar à verdade, é preciso
aplicar a subsunção e, como se aplica a isto reiteradamente, acaba por atribuir à subsunção a
própria força da verdade objetiva dos fatos sublimados, colimados pela ocorrência histórica e não
pela retórica. O juiz termina por acreditar mais nas aparências e nas formalidades do que no
direito e nos fatos:
As relações, na jurisprudência, política etc. — convertem-se em
conceitos na consciência; e por eles não se situarem acima dessas
relações, os conceitos das mesmas, em suas cabeças, são conceitos fixos;
o juiz, por exemplo, aplica o código e por isso, para ele, a legislação é
tida como verdadeiro motor ativo. Respeito pela sua mercadoria; pois sua
ocupação tem a ver com o geral (Marx, 1984, p. 134).
Por isso, pela ausência de realidade substancial que funcione como anteparo ao achaque à
consciência do aplicador do Judiciário (e agindo quase que por inércia, osmose, sob o efeito
direto da subsunção), a partir do Estado Moderno, não poderia ter havido um típico
Renascimento do Direito. De modo complementar também se destaca o Estado Moderno como
fixador material/ideológico do “sistema capitalista” já a partir do Renascimento. Em suma, tratase de uma leitura complementar, crítica/realista acerca do Renascimento e da Renascença, pois,
nem todas as ideias, vocações ou habilidades puderam (re)nascer livremente. De lá para cá, no
que concerne precisamente às múltiplas manifestações da Razão de Estado no mundo
contemporâneo, podemos salientar que há duas grandes correntes teóricas a serem observadas:
CORRENTES: Liberais (Grotius e Locke); Realistas (Maquiavel e Vico)
 máxima realista: A paz só é possível quando a guerra não é necessária
 máxima liberal: A guerra só é necessária quando a paz não é possível
A ordem e o direito internacional deveriam restringir e, ao mesmo tempo, garantir a soberania
e a Razão de Estado. No entanto, para os realistas, a Razão de Estado só se mantém segura com o
emprego da violência:
126
Como o objetivo do Estado é sua própria sobrevivência, aqueles que
se identificam com essa corrente tendem a dedicar-se ao estudo dos
meios e mecanismos empregados pelos estados para conservar e
acumular o poder necessário à sua própria sobrevivência enquanto
Estado. Como o Estado é o responsável final por sua própria
sobrevivência, o emprego da força militar e, em decorrência, a
guerra e a preparação para a guerra são, em última instância, o
instrumento essencial do Estado nas relações internacionais
(Albuquerque, 2005, p. 30 – grifos nossos).
Para os idealistas ou liberais, a necessidade de conservação não se converte,
obrigatoriamente, em Luta por Conservação (Honneth, 2003); antes se verte em cooperação.
Com isto, evita-se a transformação da necessidade em Estado de Necessidade (ou Estado de
Guerra, como ocorreu com a formação do Estado Moderno):
Assim sendo, quando a necessidade de conservar ou acumular riquezas
passa a esbarrar, necessariamente, na violação da necessidade de
terceiros, seja para conservar, seja para acumulá-las, a cooperação se
torna indispensável e, por sua vez, aumentando as oportunidades de
convivência, aumentam as razões de conflito [...] a inevitabilidade da
convivência leva à necessidade de cooperação e à inevitabilidade do
conflito, e a superação racional do conflito pela cooperação leva à
construção da ordem política (Albuquerque, 2005, p. 27 – grifos
nossos).
Os liberais buscam subordinar os conflitos à racionalidade normativa: a racionalidade
humana permite evitar o emprego da violência e os seus riscos inerentes, aprendendo-se com as
experiências e a comunicação política inaugurada pelos mecanismos mediadores. Os atores (ou
indivíduos envolvidos: pessoas ou grupos de interesse econômico) devem converter os conflitos
de interesses em normas (mesmo que sem a participação legitimadora do Estado). As normas,
então, funcionariam como meios e procedimentos capazes de evitar, solucionar ou limitar os
conflitos (Albuquerque, 2005). Todo Estado (a exemplo do Estado de Cortes, pré-Renascentista
e anterior ao Estado Moderno) luta por autonomia e soberania (centralização e unidade
política em que não cabe superlativo). Esta é a era da luta por conservação ou sobrevivência
(Honneth, 2003) a que se seguirá a espera pela fase do reconhecimento diplomático dos demais
Estados:
É essa articulação que Maquiavel sublinha, de tal modo que estamos
sempre postos na presença de vários termos simultâneos e
constrangidos a pensá-los em função de suas relações, isto é, das
ações e reações que exercem uns sobre os outros [...] Em suma,
somente a constelação dos fatos é significativa: não podemos considerar
o comportamento dos súditos senão em relação ao do príncipe e viceversa, e é o fato de suas relações que constitui o objeto do
conhecimento (Lefort, 2003, pp. 44-45 – grifos nossos).
Weber demonstrará muito bem esta relação/passagem do Estado Moderno à Razão
de Estado, a partir do exemplo do Estado nacional alemão. Da perspectiva da eterna luta pela
127
manutenção (conservação, sobrevivência) nasce uma imbricação entre economia e política e isto
as faz desembocar, associadamente, na Razão de Estado. Luta e Razão de Estado, portanto,
estariam absolutamente entrelaçadas enquanto tipos ideais em Weber:
Não é a paz e a felicidade que devemos legar aos vindouros mas sim a
eterna luta pela manutenção e aperfeiçoamento do nosso modo de ser
nacional [...] Os processos de desenvolvimento econômico são também
em última instância lutas de poder [...] E o Estado nacional não
representa para nós algo indefinido, que se imagina estar elevando
tanto mais alto quanto mais a sua essência fica recoberta por névoas
místicas, mas a organização mundana do poder nacional. E nesse Estado
nacional o critério de valor definitivo que vale também para o ponto de
vista da política econômica é para nós a “razão de Estado”. Ela não
significa para nós, ao contrário de um estranho mal-entendido, a “ajuda
do Estado” no lugar da “ajuda própria”, a regulamentação estatal da vida
econômica no lugar do livre jogo das forças econômicas. O que queremos
exprimir, ao falarmos de razão de Estado, é a reivindicação de que o
interesse de poder econômico e político da nossa nação e do seu
portador, o Estado nacional alemão, seja a instância final e decisiva para
as questões da política econômica alemã (Weber, 1989, p. 69 – grifos
nossos).
A ausência de um Estado dos Estados tem como consequência direta a ausência de uma
autoridade mediadora entre os contendores; os pactos e acordos multilaterais auxiliariam nesta
mediação, assim como os contratos políticos que permitiram ao Estado Moderno subtrair o
patrimônio dos súditos/cidadãos em situações de necessidade. Mas, a ausência de autoridade
(Estado dos Estados: função exercida pela Igreja Católica na Idade Média) também poderia gerar
guerras de conquista, quando houvesse: a) disputas diretas por territórios; b) Estados que
procuram se armar preventivamente; c) Estado em disputa para fixar ascendência ou
supremacia (Albuquerque, 2005, p. 12). É interessante como Kant e Weber se aproximam deste
ponto: a paz como preparativo da guerra.
Renascimento Político: Estado Moderno
A monarquia feudal, em decorrência da instabilidade inerente a sua estrutura política,
acabou por gerar os princípios e Bases do Estado Moderno: conflitos franco-ingleses; angloescoceses; dos conflitos franco-flamengos do século XIV à Guerra dos Cem Anos. Suas duas
faces forçaram a isso: de um lado paz, justiça e religião; de outro, guerra. As estruturas forjadas
ao Estado Moderno naquela época, guardadas as atualizações e proporções, vigoram até hoje:
Ao final do século XIII, ocorre uma mudança decisiva que contém em
germe a evolução futura e a transformação da monarquia feudal no
que se pode denominar Estado moderno, pois esta forma de Estado é o
ancestral direto, sem descontinuidades, do moderno Estado europeu
atual (Le Goff, 2006, p. 405 – grifos nossos).
As necessidades do Estado (ou Estado de Necessidade) autorizam o espólio dos súditos,
como antigamente se fazia para financiar as guerras de conquista (Cruzadas) ou “auxiliar” o
suserano. O Estado moderno se reservou o “direito de apelar” para se defender de suas
necessidades:
128
Em seguida, já que o Estado se reserva o direito de apelar em caso de
necessidade aos bens de seus súditos, é preciso que esses bens existam
e sejam protegidos: contra a arbitrariedade da violência feudal e a
flutuação dos variados tipos de terra que favorecem o feudalismo, o
Estado vai por intermédio de seus juízes permitir e proteger o
desenvolvimento da propriedade individual109 (Le Goff, 2006, p. 406
– grifos nossos).
Historicamente, um passo fundamental foi dado pela centralização de Portugal, já o
financiamento do Estado Moderno, internamente, deve-se à cobrança de tributos pelo trânsito
livre, uma evolução do outrora “resgate de pilhagem” (Marx, 1984, p. 89):
O aparecimento do ouro e da prata americanos nos mercados europeus, o
desenvolvimento progressivo da indústria, a rápida expansão do
comércio e a conseqüente prosperidade da burguesia não-corporativa e
do dinheiro deram as essas medidas um significado diferente. O Estado,
que era cada dia menos capaz de dispensar dinheiro, mantinha a
proibição das exportação de ouro e prata por razões de ordem fiscal
(Marx, 1984, pp. 89-90).
Após esse processo inicial, com a segunda fase do desenvolvimento europeu, veio o
Fausto inglês: “A nação marítima mais poderosa, a Inglaterra, mantinha sua preponderância no
plano comercial e na manufatura. Nota-se aqui a concentração em um só país” (Marx, 1984, p.
90). Sob este aspecto, a modernidade de Marx também se rendeu como herdeira àquela primeira
fase da modernidade: colonialismo.
Legalização da Luta de Classes
Assim, a inovação social, tecnológica, econômica, política e cultural (ideológica) de um
dos marcos do avanço/consolidação capitalista europeu, iniciada no século XV e com repique no
século XIX, certamente iria trazer modificações de ordem jurídica. Como diriam Marx e Engels
(2003), um devido ajustamento entre infra e superestrutura.
No caso específico do Estado Moderno, pode-se salientar a ocorrência da “laicização da
política”: a) exclusão da religião (diante da Razão de Estado); b) diluição radical do
imbricamento entre moral e política; c) aceitação “irregular e lenta” da perspectiva da
modernidade: “o outro lado” (Ribeiro, 2001). Outro destaque é a luta intestina entre o
reconhecimento versus a conservação e a dominação:
Em outro passo [pode-se argumentar que] o direito não é constituído
propriamente por relações sociais em geral, ou mesmo pelas relações de
produção e de troca, mas por um sistema acabado de relações, por um
sistema de relações caracterizado por um interesse de classe e defendido
pela classe dominante (Naves, pp. 30-31).
É certo, entretanto, que não se acomete mais da ingenuidade de se supor um Estado
Ético, na linha proposta por Hegel. Portanto, o Princípio da Igualdade jurídica, como certa
construção do Estado Moderno, especialmente o modelo que se afirmaria com a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (mas a de 1793), não ofereceria perspectiva muito diversa:
109
Neste sentido, já estariam surtindo largos efeitos as chamadas Leis de Cerceamento, obrigando camponeses a
deixarem seus lares e suas terras.
129
Na verdade, Marx vê a noção de “direitos iguais” herdada da época
burguesa, como um tipo de reflexo espiritual da troca de mercadorias
abstratamente iguais. Isto não quer dizer que para ele o conceito seja
desprovido de valor, mas que ele reprime inevitavelmente a
particularidade de homens e mulheres, os diversos talentos próprios de
cada um. Ele atua assim entre outras coisas como uma forma de
mistificação, ocultando o verdadeiro conteúdo das desigualdades sociais
atrás de uma mera forma legal (Eagleton, 1999, pp. 48-49).
O que Marx indagava era acerca da igualdade diante das próprias desigualdades sociais
que só fazem aflorar as potencialidades de poucos. Por isto, igualmente, a ideia da legitimação de
um estado de desigualdade estrutural, a partir do Estado Moderno, não lhe agradava. Como
também lhe soava estranha qualquer proposta ou possibilidade de uma legalização da luta de
classes:
Essa legalização da luta de classes significa que as formas de luta do
proletariado só são legalmente reconhecidas se observam os limites que
o direito e a ideologia jurídica estabelecem [...] As reivindicações
jurídicas do proletariado devem conter um elemento desestabilizador,
quer “perturbe” a quietude do domínio da ideologia jurídica (Naves,
1991, pp. 20-21).
Com interpretação semelhante, Lênin daria uma pista de que maneira o Princípio da
Igualdade exigiria uma resposta fora/além do âmbito do Estado Moderno:
Compreende-se a importância da luta do proletariado pela igualdade e
pelo próprio princípio de igualdade, contanto que sejam compreendidos
como convém, no sentido da supressão das classes. Mas, democracia
quer dizer apenas igualdade formal. E, logo após a realização da
igualdade de todos os membros da sociedade quanto ao gozo dos meios
de produção, isto é, a igualdade do trabalho e do salário, erguer-se-á,
então, fatalmente, perante a humanidade, o problema do progresso
seguinte, o problema da passagem da igualdade formal è igualdade real
baseada no princípio: “De cada um segundo a sua capacidade, a cada um
segundo as suas necessidades” (Lênin, 1986, p. 123).
Lênin, partindo do Engels d’A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado,
sistematizou assim as premissas do Estado de forma geral (e, é claro, também do Estado
Moderno):
O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das
classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de
classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a
existência do Estado prova que as contradições de classes são
inconciliáveis [...] Para Marx, o Estado não poderia surgir nem subsistir
se a conciliação das classes fosse possível [...] Para Marx, o Estado é um
órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe por
outra; é a criação de uma “ordem” que legalize e consolide essa
submissão, amortecendo a colisão das classes (Lênin, 1986, pp. 09-10).
130
Desse modo, o “jovem Marx” reforçaria esta advertência crítica: “Hegel não deve ser
censurado por ter descrito a essência do Estado moderno, como ele é, mas por ter imaginado que
aquilo que é constitui a essência do Estado” (Reichelt, 1990, p. 15)110. No mesmo sentido, já
apontava o próprio Marx:
A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que teve a mais
lógica, profunda e completa expressão em Hegel, surge ao mesmo tempo
como a análise crítica do Estado moderno e da realidade a ele associada e
como a negação definitiva de todas as anteriores formas de consciência
na jurisprudência e na política alemã, cuja expressão mais distinta e
mais geral, elevada ao nível de ciência, é precisamente a filosofia
especulativa do direito. Só a Alemanha poderia produzir a filosofia
especulativa do direito — este pensamento extravagante e abstrato acerca
do Estado moderno, cuja realidade permanece no além [...] o
representante alemão do Estado moderno, pelo contrário, que não toma
em linha de conta o homem real, só foi possível porque e na medida em
que o próprio Estado moderno não atribui importância ao homem real ou
unicamente satisfaz o homem total de maneira ilusória (Marx, 1989, p.
85).
É nítida a crítica de Marx a uma possível Teoria Geral do Estado baseada neste ideal que
possa permear as “estruturas jurídicas” vincadas no também ideal Estado Moderno.
Estado “pós-Iluminista”
Se não houve um Renascimento Jurídico, pode-se ver um Estado ou direito pósIluminismo? Como sabemos, esta legalização da luta de classes ocorreu mais tardiamente, a
partir da Lei de Fábrica e após, já sob os efeitos do clássico Estado de Direito, no contexto do
século XIX como salientou o também alemão Robert von Mohl — com uma maior
“judicialização do poder político” (Canotilho, 1999). Sob esse efeito da concepção jurídica de
uma ordem mundial, sobretudo no pós-guerra de 1945, nasceria o Estado Democrático de Direito
(Silva, 2003)111:
Desde Pablo Verdú (a primeira monografia, Estado Liberal de Direito e
Estado Social de Direito, data de 1955) e Elías Díaz (com seu livro
Estado de Derecho y sociedad democrática, de 1966), o moderno
conceito de Estado Democrático de Direito atrelou-se conceitualmente ao
socialismo e à Justiça Social. Esta ligação é tão forte que também foi
chamado de Estado de Justiça, por Elías Díaz112.
Por outro lado, há mais uma relação de contradição política nascida com o Renascimento,
do que de pura dominação, em que se avoluma um longo e tortuoso processo de luta entre
conservação de poder, de um lado, e reconhecimento de novas demandas e direitos, de outro, no
exemplo mais notório da contraposição entre burguesia e proletariado. Curiosamente, uma das
lições que se apreendem com o “jovem Marx” decorre da crítica ao dogmatismo políticojurídico, de esquerda ou de direita. O que melhor se aprende no “jovem Marx” é o caminho da
110
Refere-se à edição “MEW” ou Marx-Engels Werke, Berlim, Editora Dietz.
Ou, como pensava seu mentor, o espanhol Pablo Lucas Verdú: Estado Democrático de Direito Social.
112
Em: http://jusvi.com/artigos/29284/1.
111
131
utopia, mesmo que este seja apenas um singelo nalgum-lugar. O que também se apreende de
Marx é a necessária investigação das condições reais em que o Povo se encontra; sem o que as
análises conceituais não passam de ideologias do poder.
132
POVO POBRE, MAS HONESTO
Para pensarmos a estrutura básica do Estado, desde sua fundação no século XVII até a
atualidade, realmente devemos reter a sequência de povo, território e soberania, pois é o povo
que se fixa em determinado território e aí estabelece sua soberania.
Todos os grupos constituem-se em Povo e em Estado?
Alguns grupos humanos formam-se em comunidades, mas não se constituem em
sociedades políticas, na forma de Estados que organizam o Poder Político. Ou seja, são grupos
humanos que se organizam em termos de poder social, como comunidades políticas – porque
têm lideranças, convivência pública – mas não se estruturaram em sociedades políticas
desenvolvidas como temos nos Estados. O chefe ou líder político representa o espaço e o
convívio público, mas não há a ideia de representação, de poder delegado, em que se abdica do
próprio exercício do poder político:
O chefe não é um comando, as pessoas da tribo não têm nenhum dever
de obediência. O espaço da chefia não é o lugar do poder 113, e a figura
(mal denominada) do “chefe” selvagem não prefigura em nada aquela de
um futuro déspota. Certamente não é a da chefia primitiva que se pode
deduzir o aparelho estatal em geral” (Clastres, 1990, 143 – grifos
nossos)114.
Assim, há uma concepção que tem muito que ver com o princípio da organização social,
com a perspectiva de que a cultura pode se revestir de poder político (como nós entendemos o
próprio direito na forma do controle social) e nem por isso vir a se erigir na forma conhecida do
Estado e do direito moderno:
Segundo Southall, duas circunstâncias são favoráveis a essa evolução.
Um dos grupos em presença já possui uma organização política eficaz
em grande escala; dispõe dos meios que permitem organizar
politicamente um espaço ampliado e acaba impondo sua supremacia às
microssociedades com as quais se acha em relação. Um dos grupos
encerra líderes de tipo carismático, e estes se tornam os chefes
solicitados pelas sociedades vizinhas ou “modelos” pelos quais elas
organizam o poder interno, subordinando-o. Num caso é a competência
a dirigir um espaço político ampliado, no outro é a qualidade do líder
que possibilita o estabelecimento de uma estrutura de dominação.
Estaria, então, formado o germe estatal (Balandier, 1969, p. 145 – grifos
nossos).
Está clara a descrição dessa capacidade cognitiva do homem em se organizar e propor
formas de liderança. A questão estaria em investigar se a dominação político-jurídica seria
equidistante em termos dos envolvidos nas hastes do poder. Mesmo para a Antropologia, o
Estado serviria apenas para garantir essa desigualdade e essa extrema concentração de renda: “F.
Oppenheimer [...] define todos os Estados conhecidos pelo fato da dominação de uma classe
113
Entendido poder como organização, e não como manifestação da violência (Arendt, 1994).
Note-se que esses grupos sociais, a que se denomina vulgarmente de sociedades primitivas, indígenas, não
conheceram o Estado como nós conhecemos.
114
133
sobre a outra para fins de exploração econômica” (Balandier, 1969, p. 141). Ainda com
Balandier (1969):
Os Estados podem vir a existir seja pela federação voluntária de duas ou
mais tribos, seja pela subjugação de grupos fracos ou grupos mais
poderosos, que acarreta a perda de sua autonomia política [...] R. Beals e
H Hoijer consideram ainda, com menos reservas, que o direito exclusivo
de recorrer legitimamente à força e à coerção – pelo qual se define o
poder governamental – “só aparece com o Estado de conquista” (p. 142).
O fenômeno da dominação de classes foi consagrado no período denominado de
acumulação primitiva, sobretudo na Europa herdeira das Rotas da Seda, mas não é uma
exclusividade. Em sentido amplo, a categoria povo, como elemento de formação do Estado é
aceita com a instituição do Estado Moderno; porém, o povo como condição política
transformadora da realidade antecede em muito a esse período.
Historicamente, depois da célebre declaração romana de que “o poder pertence ao Povo”,
Vico foi um intérprete importante dos atos humanos no contexto histórico. Portanto, além de um
atributo jurídico, povo é uma realidade política que supõe a instauração de direitos e a
transformação da realidade política.
Na perspectiva histórica, Vico foi resgatado por Michelet (1798 — 1874), mas também
admirado por Marx e, contemporaneamente, James Joyce e Isaiah Berlin. Para Michelet, Povo é
uma construção social e econômica, sobretudo na sociedade capitalista e, com receio sobre suas
propriedades, a burguesia logo acionava as forças públicas como defensoras de um direito de
exclusividade, o direito de propriedade:
“Como? O Povo é assim?” [...] “Rápido, aumentemos a polícia, armemo-nos, fechemos
as portas, passemos o ferrolho [...] Também nesse campo os criminalistas dominaram a
opinião [...] Aí estão, artistas, vossos modelos... O bizarro, o excepcional, o monstruoso, eis o
que procurais [...] A esses relatos pitorescos acrescentam teorias profundas pelas quais o
Povo, a dar-lhes ouvido, justifica a si mesmo a guerra movida à propriedade [...] Devo
escavar a terra e encontrar as bases profundas desse monumento; a inscrição, vejo-o bem,
está oculta, escondida lá embaixo... Para escavar não tenho enxada, nem pá, minhas unhas
bastarão [...] Queria chegar ao fundo da terra. Mas, desta vez, não é um monumento de ódio e
de guerra civil que gostaria de exumar [...] “Legibus fidus, non regibus”. Fiel às leis, não aos
reis [...] Para citar um exemplo, eles não quiseram ver que a questão penitenciária dependia
da questão da instrução pública115 [...] Parece que os remédios específicos não faltaram. São
cerca de cinquenta mil no Bulletim des lois [...] A crítica do presente pelo passado, pela
comparação variada dos Povos e eras diferentes [...] A depressão e a degeneração são apenas
exteriores. O conteúdo subsiste. Essa raça sempre teve vinho no sangue; até naqueles que
parecem mais extintos, encontrareis uma centelha [...] Entraves exteriores e vida forte que
reclama de dentro: esse contraste produz muitos movimentos falsos, uma discordância nos
atos, nas palavras, que choca à primeira vista [...] A economia de palavras beneficia a energia
dos atos [...] o que é sonho no jovem transforma-se no ancião em reflexão e sabedoria [...] As
mulheres do Povo, particularmente, forçadas mais do que as outras a ser a providência da
família e do próprio marido [...] com o tempo chegam a atingir um espantoso grau de
maturidade [...] Conheci algumas [...] já não pertenciam à sua classe, nem a outra
qualquer: estavam acima de todas. Eram extraordinariamente prudentes, penetrantes, até
115
Trata-se da nota de pé de página, n. 01, à página 121, de O Povo, de Michelet, conforme citado.
134
mesmo em assuntos dos quais não se poderia suspeitar que tivessem qualquer experiência
[...] Disso resultou uma mudança profunda nas ideias e na moralidade. O homem constrói sua
alma de acordo com a situação material (Michelet, 1988, pp.115-129 – grifos nossos).
Sob a égide do capital, todas as formações sociais comandadas pelo Estado Moderno
seriam exclusivistas e determinadas a arrecadar a coerção em benefício unicamente de seus
privilégios? Economicamente, talvez a resposta seja sim; juridicamente, contudo, há distinções
de que se ocupam os juristas e os legisladores desde o Estado Moderno até a edificação do
Estado de Direito.
Então, o que é Povo?
Institucionalmente, povo é uma parte da população capaz de participar e interferir –
politicamente – nos principais processos eleitorais e democráticos de um Estado. Por Povo
podemos entender um conjunto de indivíduos que se constituem em comunidade para
realizar determinados interesses comuns. O Povo, então, reivindica a formação de um
Poder Político que lhe garanta a requisição de um direito adequado às suas necessidades e
aspirações.
Povo é o conjunto dos cidadãos, no sentido de conjunto de eleitores. Mas,
politicamente, Povo é o conjunto dos cidadãos ativos e institucionalizados (eleitores,
contribuintes, cidadãos registrados e com certidão de nascimento) que fazem parte de um país,
uma nação, uma coletividade política com a forma de Estado. Há esta diferença, em especial
atenção ao conjunto dos eleitores (que é a definição jurídica de Povo) porque o Povo é um
instituto político, jurídico, institucional que, inclusive, dá forma ao Estado, como elemento
essencial de sua configuração.
Já a população pode/deve incluir todas as pessoas, é quase um atributo estatístico,
como somatória de todos os indivíduos, sejam cidadãos ativos ou não, como no exemplo da
enorme categoria social de trabalhadores e não-trabalhadores; incluem-se todos os admitidos ou
reconhecidos pelo Estado, aqueles em que se atesta a existência formal, mas também aqueles
com os quais se perdeu a comunicação institucional, formal e que vivem à “sombra do
reconhecimento oficial”. Além dos inseridos regularmente no sistema social pelo Poder Político,
podemos pensar nos sem-teto, nos dependentes químicos, nos miseráveis e abandonados nas
cidades e nos campos, além dos Povos da natureza, índios, extrativistas que se embrenharam nas
matas, esquecendo-se da vida civil, ou os que nem foram tocados pelo Estado, como os índios
não-aculturados. As amostragens do tipo IBGE, por exemplo, recolhem ou indicam um perfil da
população brasileira, pois tenta-se mapear todas as “raças”, nações parciais que formam a grande
nação brasileira, jovens e adultos, homens e mulheres, com muita ou pouca escolaridade. Temos,
portanto, um perfil da população.
Em um plebiscito ou referendo teremos um perfil do Povo, pois com o resultado da
eleição pode-se verificar qual o perfil político do Povo, o que se pensa majoritariamente acerca
de determinadas instituições públicas (somos a favor ou contra o desarmamento do Povo?); bem
como nas eleições sabe-se qual a configuração política e ideológica do Povo, se mais à direita ou
mais à esquerda, se mais progressista ou conservadora, se mais reformista ou radical em razão de
determinados temas. Quando se elege um perfil de candidato como o de Maluf, excluindo-se a
possibilidade de compra de votos ou de voto de cabresto, pode-se concluir que parte do
eleitorado (parte do Povo) acredita em políticos que não são exemplos lapidares do pensamento
republicano. Quando se trata da cultura também se faz alusão à cultura popular, como se fosse a
cultura do Povo; no entanto, o Povo aqui está sendo utilizado como sinônimo de população uma
135
vez que abrange a formação da identidade de todos ou da imensa maioria das pessoas que
formam a base social de uma nação. Em outro sentido da cultura, mais claramente intencionado,
a ideia geral é o de que verifiquemos os reflexos ou repercussões diretas na condução e na
estrutura política de uma nação. Ou seja, se toda cultura traz efeitos ou condições e
condicionamentos políticos, então, a cultura de Povo se refere à ação de transformação da vida
social, quer seja pela cultura, como “política diária, costumeira”, quer seja pela política
institucional.
A nação, como nos dizia o historiador Renan, é um plebiscito diário, incondicional
em que depositamos nossa confiança, nossa fé, nossas esperanças em ver nossos próprios
sonhos e perspectivas mais próximos da realização. Na nação, convivem Povo e população, o
oficial e o informal, o público e o privado, o individual e o coletivo, o institucional e o cultural.
Na nação, ao contrário do Estado, os elementos da subjetividade e até da irregularidade cultural e
individual manifestam-se com muito mais clareza. Pela nação, o que nos une é a crença, a fé, o
desejo de partilhar experiências comuns, coletivas, ou que sejam individualizadas, mas no intuito
de que possam ser copiadas (como ocorre na presença do “herói nacional”). Há um desejo, uma
necessidade, um reconhecimento simbólico (bandeira) e vocal (língua oficial), um apelo à
identidade cultural (orgulho de ser brasileiro). No caso do Brasil teríamos a mesma formação
social e cultural na definição do Povo Brasileiro? Outra questão, mais complicada, é definir o
Povo brasileiro – algo que merece um capítulo em Cultura Brasileira.
O Brasil é um caso à parte
Em nosso caso, há variantes importantes que devem ser anunciadas, formamos uma
cultura em que sobrevivia a escravidão mesmo sob o comando capitalista. Isto seria possível
porque o mercado consumidor era considerado a Europa; o que desobrigava a existência de mão
de obra livre, como fonte de consumo e de estímulo à produção:
Há tipos e mitos com os quais se revela alguma forma de
"carnavalização" da situação, acontecimento ou impasse. É óbvio que
"Jeca Tatu", "Macunaíma" e até o "homem cordial" podem ser vistos
como signos de denúncia, ênfase distorcida, caricatura do que poderia ser
o "brasileiro", a "identidade do brasileiro", o "símbolo" de uma
população que se demora a adquirir a figura de "povo", a figuração de
"cidadão". Podem ser sátiras com as quais os "novos tempos" rejeitam os
"velhos tempos", o "presente rejeitando o "passado", o "moderno"
caricaturizando o "arcaico". São taquigrafias com as quais se parodiam,
rejeitam ou carnavalizam os indivíduos e as coletividades que se teriam
formado no longo da história. Mais ainda porque o homem cordial, Jeca
Tatu e Macunaíma são emblemas de um mundo no qual o "trabalho" é
castigo, sofrimento, danação e alienação, tudo isso naturalizado ou
ideologizado pela cultura de castas formada ao longo da história da
escravatura (Ianni, 2001).
A história do Povo é cheia de “mas” e de “aliás”.
Uma síntese das interpretações desenvolvidas por esses autores se
encontra nos seguintes livros: Evolução do Povo Brasileiro, de Oliveira
Vianna; Interpretação do Brasil, de Gilberto Freyre; A Evolução
Industrial do Brasil, de Roberto C. Simonsen; Evolução Política do
136
Brasil, de Caio Prado Júnior; e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de
Holanda (Ianni, 1994, p. 41).
No Brasil ao revés da lógica, por disposição legal e política, desde a colonização, fomos
instados a ordem por latifúndios que se distanciavam um dos outros em muitas léguas, e sem que
pudessem ser habitadas. O HOMO COLONIALIS, o Brasileiro nato tinha por referência de
sociabilidade o próprio núcleo em que vivia. Cada família era uma república partidária. Este
sentimento que Vianna buscava no povo, ele encontrou nas elites, era um complexo democrático
de Nação, mas excluindo-se pequenos grupos, no restante sempre houve um sentimento
satrapista, senhorial, patriarcal.
E quem era o Homo colonialis?
Pedro Malazartes é figura tradicional nos contos populares da Península
Ibérica, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável
de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos [...] É o tipo
feliz da inteligência despudorada e vitoriosa sobre os crédulos, os
avarentos, os parvos, os orgulhosos, os ricos e os vaidosos, expressões
garantidoras da simpatia pelo herói sem caráter [...] O episódio mais
tradicional é a venda de uma pele de cavalo, de urubu ou outro pássaro
vivo, tido como adivinho, por anunciar o jantar escondido pela adúltera e
expor o amante como sendo um demônio (Cascudo, 2001, pp. 351-352).
A maldade de Malazarte, por exemplo, deve servir de compensação financeira ao
trabalho do irmão, este que não fora pago e que ainda teve “uma lasca de couro tirada do lombo”.
A atitude mal-sã, na primeira crônica sobre Malazarte, é ainda uma resposta à humilhação
sofrida no trabalho, em razão do princípio da hierarquia e da subordinação (quanto a este
princípio, não se sabe se mudou da escravidão, para cá).
O que se diz de Malazarte, encaixa nesse veio da “brasilidade”, no jeitinho que dá em
tudo (ou quase tudo): “Uma casal de velhos possuía dois filhos homens, João e Pedro, este tão
astucioso e vadio que o chamavam Pedro Malazarte” (Cascudo, 2004, p. 174). (Ter astúcia é,
justamente, o que recomendava Maquiavel ao Príncipe). No Brasil, faz o típico “herói sem
fronteiras”, certamente, mas que também forma um par muito bom com o herói sem caráter. O
fato é que há uma dificuldade em ser “exato”, há mesmo um desconforto em definir-se o
brasileiro em poucas palavras, pois sua cultura de miscigenação é tão grande quanto o território.
Não encontramos em nossa elite modelos de urbanidade tradicional, com interiores ainda
pré-modernos, convivendo com enormes ares de fronteiras, como terra sem lei. Via de regra o
que se esconde, é que vivemos um modo de vida dissoluta, uma mistura de preconceito social e
cultural, sobrevivemos imersos nessa negação sistemática estrutural enraizada, que gera a
sensação de imperfeitos míseros resultados de uma cultura mutilada.
Sempre é oportuno destacar que a análise comparativa, reflexiva, dedutiva desses
períodos, indica a forma como o Brasil entrou na modernidade (e que tipo de entrada foi essa).
Porém, os vários discursos explicativos (políticos, ideológicos, institucionais) que daí
resplandecem são múltiplos e por vezes equidistantes ou contraditórios, pois tanto surgem
propostas analíticas socialistas (como Florestan Fernandes e Octavio Ianni) quanto
conservadoras (Hélio Jaguaribe, João Ubaldo Ribeiro).
Há diferenças políticas entre o povo e as elites?
137
Diz-se no senso comum que os pobres são mais honestos. É o que agora também se vê
em pesquisa realizada no Brasil:
Para 82% dos entrevistados "é fácil desobedecer às leis no Brasil"; 79% responderam que
"sempre que possível o brasileiro opta pelo 'jeitinho' ao invés de obedecer a lei"; e 54%
avaliaram que "existem poucas razões para uma pessoa como eu obedecer a lei."
O QUE FEZ DE ERRADO NOS ÚLTIMOS 12 MESES?

Segundo a pesquisa, 72% dos entrevistados afirmaram que atravessaram a rua fora da faixa de
pedestres ao menos uma vez nos últimos 12 meses; 60% disseram ter comprado CD ou DVD
pirata; 22% estacionaram em local proibido; 3% admitiram ter pagado propina a policiais ou
funcionários para não levar multa; e 3% afirmaram ter levado itens de uma loja sem pagar.
ACHA QUE SERIA CONDENADO SE...

Sobre a eficácia da Justiça, 80% acharam que seriam punidos se furtassem artigos baratos; 79%
se dirigissem após beber e 78% se estacionassem em local proibido. Comprar produto pirata
(54%) e atravessar a rua fora da faixa (52%) são as condutas que, na opinião dos entrevistados,
são menos passíveis de punição116.
Uma das reações mais conhecidas e difundidas pela cultura comum do homem médio
recebeu agora a chancela da pesquisa: os pobres são mais honestos. Esta parcela majoritária do
povo brasileiro, diz o senso comum, tem apenas a “palavra” para se fiar e se esta faltar não tem,
literalmente, mais crédito para trabalhar, consumir. Agora é preciso ter clareza sobre outros dois
116
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/04/23/quanto-menor-a-renda-e-a-escolaridade-maior-orespeito-a-lei-diz-estudo-da-fgv.htm, acesso em 23/04/2013.
138
pontos: se há um corrupto, é porque há um corruptor; existe a grande e a pequena corrupção, o
que as diferencia é o potencial de dano, não o ato desonroso em si. Neste sentido, o famoso gato
que “rouba” energia é tão prejudicial quanto a ação do governante que desviou recursos da
iluminação pública – o que se altera é o valor estimado. Mas, ambos devem ser combatidos
porque recaem na conta de luz do povo, mais exatamente na conta dos que pagam suas contas.
Em todo caso, apesar de não haver anjos e nem inocentes no âmbito da cultura
popular, também se percebe no dia a dia que, apesar da tolerância à corrupção (tolerância
negativa) ter-se difundido endemicamente pelo país, mulheres e “povo pobre” preferem as
relações mais normais, menos abaladas pela corrupção; isto porque, como elo frágil das relações
sociais, em casos de corrupção, eles, o pobre e a mulher, são sempre prejudicados, ainda mais
espoliados. A tolerância (negativa) à corrupção só beneficia o corrupto cínico, aquele que diz,
para justificar suas ações, que “todos têm seu preço”. Em todo caso, a tolerância à corrupção é
tão grave quanto a corrupção em si, a exemplo da expressão popular muito difundida: “se
estivesse lá, também roubaria”. O que ainda reforça a mágica da política corrupta, no pior estilo
do “rouba, mas faz”. Ou até mesmo a expressão mais marcada pela história, mas que expressa
muito bem a lógica política que relaciona os pobres e as elites dominantes: “é dando que se
recebe”. Pela esmola, o mais pobre e vulnerável abdica da reivindicação, do protesto, dos seus
direitos. Na ausência de um direito que se baseie na moral, consagra-se a corrupção como guia e
meta; quando, na verdade, deveriam ser instigadas, toleradas somente as ações honestas, sendo
estas entendidas como condutas republicanas, as que preservam a “coisa pública”, ao invés de
dilapidar o patrimônio do povo. Isto porque, é óbvio, a corrupção dilapida apenas o patrimônio
do povo, enriquecendo as elites que já são ou eram abastadas. Enfim, tudo é tolerável, salvo os
intolerantes (aqueles que não toleram a tolerância, isto é, as regras do jogo democrático – e a
democracia não prospera na corrupção). Em Bobbio (1992), essa noção está presente na fusão
entre tolerância negativa e intolerância positiva:
A tolerância positiva consiste na remoção de formas tradicionais de
repressão; a tolerância negativa chega mesmo à exaltação de uma
sociedade anti-repressiva, maximamente permissiva [...] Não é que a
tolerância seja ou deva ser ilimitada. Nenhuma forma de tolerância é tão
ampla que compreenda todas as ideias possíveis. A tolerância é sempre
tolerância em face de alguma cosa e exclusão de outra coisa [...] O único
critério razoável é o que deriva da ideia mesma de tolerância, e pode ser
139
formulado assim: a tolerância deve ser deve estendida a todos, salvo
àqueles que negam o princípio de tolerância, ou, mais brevemente, todos
devem ser tolerados, salvo os intolerantes (pp. 212-213).
A intolerância positiva, portanto, é ação de desagravo, em desforço e desfavor do
malfeito, e deve estar voltada contra tudo que estiver em desacordo com o sentido público. Neste
caso, a intolerância é positiva porque, ao negar a corrupção, exalta-se a defesa exatamente
daqueles (povo pobre) que mais precisam do Poder Público e de um direito que respalde o
fortalecimento da República. Por isso, não tolerar a corrupção é uma forma de se consagrar a
intolerância negativa, quando se desabona uma ação intolerante – e a corrupção talvez seja a
ação social mais intolerável para o povo: o indivíduo marcado pela cultura comum do homem
médio brasileiro. Como se sabe, Estado é um conjunto institucional formado pela articulação
umbilical entre povo, território e soberania. Portanto, vejamos de que território se trata.
140
TERRITÓRIO
Áreas ocupadas na Amazônia e controladas por forças paramilitares internacionais, sob a
roupagem de uma ONG, indicam ou não perda evidente de soberania nacional? Segundo o
general Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, já se configura um verdadeiro Estado Paralelo:
[...] só na região da Amazônia, já existem mais de 100 mil ONGs. A
maioria não é fiscalizada e atua livremente na região. Especialista em
assuntos da Amazônia desde que entrou para a reserva, em 2001, o
general Lessa já esteve à frente do Comando Militar da Amazônia, do
Comando Militar do Leste e foi presidente do Clube Militar117.
O Território é um dos elementos essenciais, de fundação e que asseguram a existência do
Estado. Não há Estado sem território. O território é a base material, mas também fortalece a
identificação geográfica, como base geográfica do poder, e ainda é um marco simbólico: “o solo
sagrado da pátria”. Na concepção política do território destacam-se questões relativas à
geopolítica e à esfera política em que a soberania do Estado é definida sobre seu território.
Maquiavel é um marco nesta dimensão, uma vez que delimitou a passagem histórica do EstadoCidade ao Estado Nacional.
Pode-se dizer, inicialmente, que o território (do latim territorium) serve de limite à sua
jurisdição e é “o país propriamente dito”. No Brasil, ainda, recebe a cautela do Código Penal118
(Neto, 2009, p. 58). Compreende: solo, subsolo, ilhas marítimas, ilhas fluviais e lacustres,
plataforma continental, mar territorial, espaço aéreo e mares interiores (Friede, 2010, p.56).
Território é a delimitação da ação soberana do Estado (Dallari, 2000). Definindo-se como
geopolítica, território é onde o Estado executa o Poder Político e exercita a soberania.
Sinteticamente, são componentes do território:
 Mar territorial
 Terra firme – com as águas recorrentes
 Subsolo
 Plataforma continental
 Espaço aéreo
Mar territorial são as águas que banham a terra firme, as costas do território do Estado. É
uma zona contígua ou adjacente variável, de 12 a 200 milhas. Na doutrina defensiva, nos séculos
XVIII e XIX, media-se o mar territorial pelo alcance das peças de artilharia: ub vis, ibi ius.
Atualmente, com a Declaração de Montevidéu (Primeira Conferência Latino-Americana sobre
Direito Marítimo), de 1970, a fixação brasileira em 200 milhas baseia-se na necessidade da
segurança nacional, na repressão ao contrabando e no controle da navegação estrangeira. De
acordo com a Conferência sobre o Direito do Mar (1958), definiu-se que a soberania do Estado
alcança “uma zona de mar adjacente às suas costas, designada sob o nome de mar territorial”. O
Brasil aderiu a esta política de soberania nacional, ressalvado o direito de passagem inocente,
como simples trânsito sem motivações pesqueiras ou militares. Durante muito tempo, a
codificação sobre o uso dos mares foi apenas costumeira. Só em 1958 é que ganhou novo regime
jurídico:
1) Convenção sobre o mar territorial e a zona contígua.
117
118
http://celiosiqueira.blogspot.com.br/2011/12/amazonia-general-lessa-denuncia-ongs.html, acessado em 18/04/13.
Artigo 5o, §§ 1o e 2o.
141
2) Convenção sobre o alto mar.
3) Convenção sobre pesca e conservação dos recursos vivos do alto mar.
4) Convenção sobre a plataforma continental.
A questão é que o mar não seria mais visto apenas como rota de navegação, mas
sobretudo pelo fator econômico. Antes mesmo da grande Convenção de 1982, já se criticava a
ideia do mar como res communis (pois não haveria qualquer elemento condominial); melhor
seria tratar o mar como res nullius (insuscetível de apropriação e sobre o qual os Estados têm
responsabilidades determinadas). Tentava-se a transposição de preceitos do direito civil. Porém,
desde 1982, ganhou força a convicção de que se trata de res communis. A Convenção das Nações
Unidas sobre o direito do mar entrou em vigor em 1994, mas o Brasil já havia aderido (Lei n.
8.617/93), reduzindo-se a largura do mar territorial a 12 milhas e adotando o conceito de zona
econômica exclusiva (180 milhas restantes).
O artigo 7º, § 1º da Convenção de 1982 trata das águas interiores – uma ficção jurídica,
porque carecem de interesse internacional, como baías e outras áreas situadas aquém da linha
de base (assumem a natureza de águas internas). O Estado lhe exerce soberania ilimitada; não há
direito de passagem inocente. Se há navios de guerra estrangeiros em seus portos, ao Estado
costeiro resta a imunidade da jurisdição cabível ao estrangeiro. Esta noção não se aplica aos
navios mercantes, apenas a praxe da não-interferência.
O subsolo e a plataforma continental – vide a extração do Pré-Sal – são indicadores do
território porque há uma definição tridimensional da soberania. Quanto ao subsolo, considerase que “o vértice se acha no centro da Terra”. A plataforma continental é uma extensão da
massa terrestre. Em 1951, a Comissão de Direito Internacional definiu-a como o leito do mar e o
subsolo das regiões submarinas contíguas às costas, mas situadas fora da zona do mar territorial,
até uma profundidade de 200 metros (Rezek, 2011). São aplicados os Princípios da Liberdade e
da Inapropriabilidade. Na definição do espaço aéreo, a soberania do Estado alcança a altitude
necessária à sua defesa e proteção. Na Conferência de Chicago (1944), definiu-se a liberdade de
voo ou trânsito inofensivo de aeronaves civis, exceto sobre áreas militarizadas. O espaço
cósmico, desde a Comissão para o Uso Pacífico do Espaço Extra-atmosférico (1958 e 1961), é
limitado pelo Princípio da Inapropriabilidade. Em 1967 a ONU interditou a colocação de armas
de destruição em massa. A política estadunidense de Ronald Reagan, denominada de Guerra nas
Estrelas, além de afrontar o dispositivo da ONU, ofendia a soberania de todos os Estados. As
exceções ao poder de império do Estado são a extraterritorialidade (a exemplo dos navios de
guerra) e a imunidade dos agentes diplomáticos. A definição de Navio data da Convenção de
1982 e exige que a embarcação tenha sempre um nome, porto de matrícula, determinada
tonelagem e nacionalidade (bandeira nacional). São de dois tipos básicos: navios mercantes
(geralmente particulares); navios de guerra (pertencentes às forças armadas de um Estado, com
armamentos, oficiais identificados e com tripulação submetida à disciplina militar). Gozam de
imunidades em portos ou mares estrangeiros.
De acordo com a concepção jurídica do território, incluindo-se Jellinek (2000), é clara
a afirmativa de que não há Estado sem território, como base física e permanente do poder. Em
sua demonstração histórica evolutiva, a teoria do território-patrimônio não distinguia o direito
público do direito privado (direito das coisas). Define-se claramente como teoria patrimonial, em
que não se separava nitidamente imperium e dominium e assim o território era tido como coisa
do Estado. O território era considerado propriedade dos senhores feudais e depois passou a ser
142
propriedade do Estado. A tese do dominium define o território como propriedade do Estado; já o
imperium conserva o caráter essencialmente político da soberania sobre o território.
A teoria do território-objeto define o território como direito real de caráter público –
um direito especial, eminente, soberano. Em sua exterioridade, o território é objeto frente ao
Estado, parte do direito de propriedade, mas agora definido como direito de propriedade deste. O
Estado pode utilizar o território para atender os fins designados politicamente, ao mesmo tempo
em que se exclui toda ação estrangeira (tal qual a concepção do direito de propriedade). Atribuise, no entanto, um poder jurídico exclusivo do Estado sobre seu território119. Seguindo-se a
teoria do território-espaço, ficou clara a distinção requerida entre propriedade e território, pois
o território não é uma extensão material e sim parte da essência do Estado. O poder do Estado
não é um poder exercido sobre o território, como coisa, propriedade (dominium), mas sim poder
no território (imperium). O território é “o palco da soberania estatal”. Em resumo:
Como a autoridade do Estado com respeito ao território é de teor pessoal,
não havendo aqui que falar de dominium, poder sobre coisas, senão de
imperium, poder sobre pessoas, o poder do Estado de obrigar as pessoas
no território se faz de maneira exclusiva, se se trata de Estado soberano e
unitário; ou, na hipótese federativa, de Estado composto, em colaboração
com o Estado soberano, ao qual se acha sujeito o Estado-membro,
conforme adverte Jellinek (Bonavides, 2012, p. 111).
Trata-se de um poder exercido sobre pessoas e não sobre coisas e/ou propriedades, como
parte do ser e da pessoa jurídica do Estado (Malberg, 2001). Contudo, algumas controvérsias
perduram, como o condominium que se formou no Sudão Anglo-Egípcio, como protetorado
britânico do século XIX e com exercício conjunto da soberania entre Egito e Grã-Bretanha,
formando-se o território que hoje é o Egito, a Líbia e o Sudão, até 1956, quando se deu a
separação dos territórios.
Por fim, a teoria do território-competência, na Escola de Viena, com Kelsen (1998),
tem no território “um elemento determinante da validez da norma”; uma espécie de “diocese do
poder estatal”, em que o território é definido como âmbito de validação da norma, como
“delimitação espacial da validez das normas jurídicas”. A soberania estatal sobre os territórios,
atualmente, é limitada pelos valores e interesses globais, a exemplo do patrimônio cultural,
histórico e natural120.
A aquisição do território do Acre pelo Brasil, da Bolívia, marcou a tentativa de se colocar
fim aos conflitos armados na região. Em 1903 foi assinado um tratado em Petrópolis, mediante
uma indenização de dois milhões de libras esterlinas – além de pequenas concessões territoriais
no Mato Grosso –, concedendo-se o território ao Brasil. Além disso, o país se comprometeu a
construir a famosa ferrovia Madeira-Mamoré. Em busca de resolver graves problemas
econômicos, a compra do Alaska da Rússia pelos EUA, na segunda metade do século XIX
(1867), revelou-se perturbador, porque se descobriu que o território era rico em jazidas de
petróleo. Hoje em dia, porém, esse tipo de aquisição territorial não seria tão facilmente
proclamada, uma vez que impõe clara perda de domínio territorial (a não ser pelo exemplo de
Porto Rico).
119
Clara limitação seria dada pela ONU, por exemplo, quanto aos crimes de guerra, de genocídio.
Como direitos da humanidade, a proteção especial deveria resguardar a memória da humanidade de ações como a
do Talebã que destruiu estátuas de pedra, datadas do século IX, de Buda (as maiores do mundo, com 53 metros), no
Afeganistão, em 2001.
120
143
A proteção internacional do meio ambiente, evolução e princípios
A normatização jurídica específica sobre o tema ambiental deve-se à sobrecarga da
interdependência. A ação ou omissão estatal ocasiona reflexos majorados em ambientes de
outros Estados e sobre sua própria população. Assim, o planejamento comum teria um ganho
global. Essa normatização configura o aprimoramento dos direitos humanos de terceira
geração: meio ambiente saudável. As normas ambientais são de caráter instrutivocomportamental, mais do que impositivas de obrigações de resultado (soft law). Algumas
disposições remontam ao século XIX, com claro sentido preservacionista da fauna, da flora e dos
rios. Nos anos de 1950, ainda como direito esparso, a preocupação já estava dirigida à crescente
poluição da indústria química e aos dejetos nucleares.
Em 1972 celebrou-se a grande Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente
(Estocolmo). Disto resultaram dezenas de Resoluções e Recomendações, incidindo na
Declaração de princípios norteadores de convicções comuns dos Estados participantes. A
Convenção relativa à proteção do patrimônio mundial, cultural e natural (1972) é o
primeiro documento que proclama o Direito da Humanidade. Tem por objeto a proteção de
bens jurídicos que pertencem à Humanidade. Os Estados soberanos em que esses bens se
encontram são meros administradores fiduciários. O patrimônio cultural e natural (artigos 1 e 2)
é protegido como integrante da biosfera, como valores criados pelo homem ou porque sejam
inerentes à natureza:
Artigo 1 (Patrimônio Cultural)
- MONUMENTOS: obras arquitetônicas universais, estruturas de natureza
arqueológica, cavernas, inscrições.
- CONJUNTOS: grupos de construção isolados ou reunidos.
- LUGARES NOTÁVEIS: “obras do homem ou obras conjugadas do homem e da
natureza”; inclusive lugares arqueológicos.
Artigo 2 (Patrimônio Natural)
- “Monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas”.
- Formações fisiológicas e fisiográficas: hábitat de refúgio para espécies animais e
vegetais ameaçadas de extinção.
- LUGARES NOTÁVEIS NATURAIS: de valor excepcional para a ciência ou do
ponto de vista da beleza natural.
De todo modo, são resguardados por sua importância científica, natural, cultural, estética.
De sua definição, não constam as obras de arte não-monumentais, como livros, partituras e obras
de arte representativos do espírito humano. Por outro lado, é óbvio que o conteúdo do Museu do
Louvre pertence ao imenso acervo da cultura mundial. A conservação dos originais é, pois,
exigência da memória humana, por constituírem valor único e insubstituível. Porém, a
conservação de obras raras depositadas em museus e bibliotecas ainda espera a revisão da
própria Convenção – quando se entender realmente fazerem parte do patrimônio mundial (artigo
8º – Comitê Intergovernamental). Em suma, constituem um interesse mundial excepcional.
Rio 92
Na Conferência apelidada de Rio92 estava posto o binômio que preconizava a
conjugação do desenvolvimento com preservação. Em 1992, no Rio de Janeiro, concluiu-se a
Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento. Desta resultaram
duas Convenções (mudanças climáticas; diversidade biológica) e duas Declarações (florestas;
144
uma geral) e um grande planejamento de ação global (Agenda 21). Cinco anos mais tarde, a
própria ONU reconheceria e deplorou o atraso na implantação da Agenda 21. Contudo, as
atenções se voltavam para o desenvolvimento sustentável: aquele que busca o desenvolvimento
sem sacrificar seu próprio cenário. Definiram-se os tópicos centrais do desenvolvimento
preservacionista – e este seria o papel esperado do Estado, a quem cumpre a
responsabilidade da preservação ambiental. Entendendo-se o território como ambiente.
No Rio de Janeiro se objetivaram os direitos das gerações futuras, fixando-se como
deveres – os seguintes princípios: prevenção121; precaução122; cooperação internacional. A
Convenção sobre a Diversidade Biológica (1992) regulou a preservação da biosfera, a harmonia
e o equilíbrio ambiental. Aplica-se, no plano internacional, o Princípio da Solidariedade entre
todos os povos e destes com as gerações futuras. Trata-se da preservação da qualidade de vida,
no presente e para o futuro. O objetivo de curto prazo era superar os níveis de degradação
ambiental da época. Em 2005, 1350 cientistas de 95 países publicaram um relatório perturbador:
- um bilhão de pessoas não tinham acesso à água potável e três bilhões não tinham saneamento;
- entre 10% e 30% das espécies de anfíbios, aves e mamíferos estão ameaçados de extinção;
- entre 20% e 35% dos recifes e manguezais já tinham sido destruídos.
A Comissão Mundial para o Desenvolvimento Econômico (ONU-1987) definiu o
desenvolvimento sustentável como um direito das futuras gerações, com base em dois conceitos:
1) NECESSIDADES: prioridade ao atendimento dos pobres do mundo todo; e
2) LIMITAÇÕES: impostas pela tecnologia ou organização social à exploração dos recursos
naturais.
Os mercados não podem mais regular o desenvolvimento sustentável. Em 2007, o
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (GEO4) indicou que a privatização dos
recursos naturais e dos serviços públicos é o pior caminho a seguir. Cabe, pois, ao Concerto
Universal das Nações (a partir do Estado-Nação) cuidar dos direitos das futuras gerações. Isto
remete à Conferência sobre o Meio Ambiente Humano (Estocolmo, 1972). A partir da
experiência do Rio de Janeiro (1992) foi aprovada uma Convenção Climática (1994). O foco
central era a biodiversidade: “fundamento biológico da diferença”. A Humanidade se fortificaria
com a preservação das diferenças culturais e naturais, assim como se empobrece com a
desigualdade social. Nenhuma espécie de ser vivo ou genoma pode ser monopólio de ninguém –
é o legado da Humanidade. Porém, nos EUA e na Europa, as patentes de organismos biológicos
alterados geneticamente são regulares, especialmente para espécies transgênicas. Aqui, dever-seia aplicar o Princípio da Precaução com a inversão do ônus da prova, porque os agentes
econômicos é que devem provar a inocuidade dos experimentos genéticos.
Em 1998, no Japão, aprovou-se o chamado Protocolo de Kyoto, acerca da redução
percentual e variável conforme as regiões e os níveis de desenvolvimento, sobre a emissão de
gases poluentes – entrando em vigor em 2005. Em 2007, em Bali (Indonésia), realizou-se a 13ª
Conferência do Clima, como preparativo da renovação dos intentos protocolados em Kyoto
(metas fixadas para 2013). Na década de 1990, o neoliberalismo dava a tônica e a Convenção de
1992 não foi adiante no enfrentamento dos valores econômicos estipulados pelas grandes
corporações internacionais. Essas empresas, as que mais degradam o meio ambiente, não foram
sancionadas por seus Estados e nem pelo direito internacional.
121
122
Quando há certeza científica dos danos ocasionados.
Não há certeza de que possa haver danos ambientais. Mas, com forte suposição, in dubio pro meio.
145
A Convenção sobre o Direito do Mar (1982) afirmou direitos fundamentais da
Humanidade sobre mares e oceanos. Trata-se da exploração e do aproveitamento dos recursos
dos fundos marinhos e subsolos – para além dos limites da jurisdição do Estado-Nação.
Incorporou-se o Princípio da Conservação Comum ao Meio Marinho. Para alguns, trata-se da
afirmação dos direitos humanos de 4ª Geração: 1ª Geração = direitos civis e de cidadania; 2ª
Geração = direitos econômicos, sociais e culturais; 3ª Geração = Direito dos Povos – direito
internacional; 4ª Geração = direitos fundamentais da Humanidade. É o documento mais longo da
história do direito internacional. O artigo 136 trata como patrimônio universal o leito do mar, os
fundos marinhos e o subsolo – além dos limites da soberania. Denomina-se a “Área”.
Domínio Público Internacional
São os espaços em que a sua utilização suscita o interesse de muitos Estados ou de toda a
comunidade internacional. Cuida-se aqui do mar, dos rios internacionais, do espaço aéreo, do
espaço extra-atmosférico e do ambiente antártico. Pelo escasso interesse econômico
suscitado, o Polo Norte não recebeu tratamento jurídico extensivo. Ao contrário do Polo Sul, ali
não há massa terrestre – apenas água congelada. Normalmente é visto mais como uma rota aérea
alternativa (Europa-extremo oriente). É visto como espaço de livre-trânsito, equiparado ao alto
mar. A chamada Teoria dos Setores, sempre por atos unilaterais (não-questionados), e
incorporando-se o Princípio da Contiguidade, serviu para se invocar o domínio das ilhas
próximas à área (800 km do ponto de convergência): do litoral norte do Canadá, da Dinamarca,
da Noruega e da Rússia. A ANTÁRTICA, por sua vez, é uma gigantesca ilha coberta de gelo.
As pretensões nacionais de domínio também foram se acentuando, com base em quatro teorias:
a) TEORIA DOS SETORES: o continente seria dividido em inúmeras fatias triangulares
(com maior proximidade o Chile e a Austrália; mas igualmente o Paquistão e até a
Islândia).
b) TEORIA DA DESCOBERTA: Grã-Bretanha e Dinamarca por sua tradição marítima
exploratória.
c) TEORIA DO CONTROLE: aplicar-se-ia ao litoral antártico (EUA).
d) TEORIA DA CONTINUIDADE DA MASSA GEOLÓGICA: Argentina.
O Tratado da Antártica (1959) recebeu a adesão brasileira em 1975 – hoje são 45
países participantes. O regime jurídico do tratado expõe a não-militarização da região, mas não
trata da renúncia e nem do reconhecimento do domínio de qualquer das partes envolvidas.
Proibiu-se as manobras militares, qualquer tipo de fortificação ou o lançamento de resíduos
radioativos. A Antártica deve ser usada para fins pacíficos, pesquisas e preservação de recursos
biológicos (artigo 9º, § 2º). Em 1991, o Protocolo de Madri preservava a Antártica contra toda
forma de exploração mineral por 50 anos. Destarte, é fácil concluir que um povo precisa
estabelecer a plena soberania sobre seu território.
146
SOBERANIA
A espionagem digital de segredos do governo federal, por instituições dos EUA, aniquila
a soberania nacional? De modo simples e objetivo, a soberania implica no poder supremo,
absoluto, superior: “um poder de dizer-se tal - qual”, de mandar. Por isso, não se diz de um
“poder de comandar”, porque, neste caso, seria um poder de dividir o comando, “mandar com”,
isto é, um poder de mandar com alguém não é um poder soberano, mas sim repartido. Vemos
uma demonstração “organicista” do poder repartido, na figura estilizada de um indivíduo
humano. Por sua vez, o poder soberano é inegociável: “não há meia soberania”; indivisível:
“não há direito de secessão”; inalienável: “não se abre mão”; inesgotável: “não há previsão
de término”; ilimitada: “sem-limites”. Então, a soberania se resume (não que se limite) ao
“poder de vida e de morte”. A soberania ocorre quando o príncipe, imperador, soberano ou
mesmo o governante (na democracia) ou general (na ditadura) editam o direito por intermédio do
Estado.
Em primeiro lugar, o direito ou a lei nada mais são do que a expressão fria, calculista do
poder. Assim, o poder pertence àqueles que se ocupam do Estado naquele momento, enquanto
grupo ou classe que domina o Estado, como “classe dominante” e que, portanto, passam a
produzir um direito que lhes interessa. Em segundo lugar, se os detentores do poder (e
processadores do direito) tiverem virtude, valor, prudência e astúcia, irão produzir leis que
tragam obrigações e deveres ao povo, mas que lhes reservem apenas privilégios. Por fim, sua
glória se revelará somente quando o povo não perceber que as leis são carregadas dessas
imperfeições, isto é, quando o próprio povo estiver cego para ver que só lhe cabem deveres e que
aos príncipes e barões só restam privilégios. De outro modo, quando o povo se apercebe de que
está sendo ludibriado, então, o soberano tem que agir com vigor, mas um vigor suficiente para
admoestar os adversários e assim novamente conduzi-los à cega obediência. Portanto, sob a ótica
de quem detém o poder (soberano seria redundância) “o povo está sempre jungido ao jugo”, em
que o direito é a expressão mais deletéria, abstrata, subsumida da excrescência do poder.
Portanto, são características da soberania:
 Poder acima dos outros: poder supremo e uno.
 Não admite superlativo.
 Não é um poder temporal – não tem data de validade
No passado remoto, o Príncipe faria tudo para manter o Estado unido, hoje é o
governante. Na defesa da Razão de Estado, o soberano deve manter o Poder Público. Todo
Estado soberano é um Estado regulador da moral pública, como Estado Interventor na cultura,
moral. Alguns são mais, outros menos. Em suma, o Estado soberano é centrado (voltado para
seus próprios problemas), centralizado (com um único poder central), centralizador (exerce-se
pela força centrípeta), unificado (uno, indivisível) e apto (com recursos morais e materiais) para
manter a unidade e a força do Poder Político.
O Direito de Príncipes e Magnatas
Para os mecanicistas ou organicistas, o poder soberano implica nos “elos da soberania”.
No fundo, é como se quisessem dizer que tudo converge para o poder, para os elos do poder.
Certamente, há uma hierarquia entre esses elos, entre o soberano e o povo: real possuidor, mas
não destinatário da soberania. Há fases ou gomos de uma enorme correia de transmissão. Esta
correia do poder que une os que mandam e os que simplesmente obedecem inclui obviamente o
direito e o próprio Estado. Porém, também nesta correia de transmissão, há um elo mais fraco: o
147
povo tutelado. Não há mediação entre quem manda e quem só obedece, numa das pontas está o
feitor do soberano e na outra, o tutelado. A ilusão do povo está em acreditar que este feitor (mero
emissário do poder) possa representá-lo com legitimidade e parcimônia. Na primeira ficção
jurídica, o povo abriria mão do seu poder, “por não conseguir governar o tempo todo” (afinal,
alguém tem que trabalhar), trocando a chamada soberania popular pela segurança prestada pelo
Príncipe. Por fim, a outra parte desta mesma ilusão é pensar que o poder tenha parcimônia:
realmente, trata-se de uma ficção jurídica e ideologia política porque nada na história política dos
povos conhecidos, endossa esse pensamento.
Contudo, deve-se ver no direito uma relação de bipolaridade e que esta é sua alternativa
para o “devido controle do poder” — pois dá para sustentar que esta bipolaridade do direito se
resume a isto: de um lado, os que obedecem; de outro, os que mandam. Novamente os que
procuram parcimônia no poder e no direito terão um desafio pela frente, pois o povo sabe do que
fala: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Então, qual parcimônia? É somente o caso
de uma resignação sábia: “há crítica e repreensão silenciosa”. Para os que pregam
inadvertidamente que “o direito é parcimonioso”, ainda podemos dizer que “o poder dos
magnatas não pode ser magnânimo”. É difícil conciliar, por motivos mais do que lógicos e
óbvios, a dupla magnata/magnânimo (dadivoso) seria uma altercação do bom-senso e ignorar o
bom-senso não é algo dizível e nem razoável: as punições costumam ser mais do que duras. No
entanto, há grandes alterações entre o passado e o presente, entre o direito que socorre e serve
aos poderosos de ontem e de hoje, entre os príncipes de outrora e os magnatas modernos?
De certo modo, isso explica porque um ex-juiz condenado a décadas de prisão (por
corrupção e muitos outros crimes contra a fé pública) sai caminhando do Tribunal, para aguardar
o julgamento dos recursos em liberdade. Podemos dizer que o direito é feito pelo feitor do
soberano e que o carrasco é seu executor, mas a ilusão do feitor é exatamente esta: acreditar que
ele é o soberano. Enfim, de certo modo, por isso se diz que “o poder é uma ilusão” e o direito
mesquinharia. Agora, de lá para cá, entre esse modelo de Estado Moderno-colonial e a assim
chamada “sociedade da informação” o que, de fato, mudou? Mudou o fato de que os feitores de
antanho, hoje, estão revestidos de uma forte ideologia que é crer que o direito possa trazer
pacificação social numa sociedade cindida em classes sociais.
Hobbes e o Poder Soberano
Em todo caso, quer seja um empréstimo apropriado ou não quanto à soberania ameaçada
por delinquentes ou inimigos, Hobbes seria mais explícito quanto à própria soberania
necessária à Razão de Estado, ou seja, no lugar do Homem de virtù deve consubstanciar-se
realmente o Estado como soberano. Portanto, o poder, ainda que absolutista, é menos pessoal ou
personalizado e mais seguro a todo o povo:
1. Em primeiro lugar, aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados pelo
pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de alguém, não podem legitimamente
celebrar entre si um novo pacto no sentido de obedecer a outrem, sem sua licença.
2. Em segundo lugar é evidente que quem é tornado soberano não faz antecipadamente
qualquer pacto com seus súditos, porque teria ou que celebrá-lo com toda a multidão, na
qualidade de parte do pacto, ou que celebrar diversos pactos, um com cada um deles.
3. Em terceiro lugar, se a maioria, por voto de consentimento, escolher um soberano, os que
tiverem discordado devem passar a consentir juntamente com os restantes ou será
deixado na condição de guerra.
148
4. Em quarto lugar, dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões
do soberano instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria
para com qualquer dos seus súditos, e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça.
5. Em quinto lugar, aquele que detém o poder soberano não pode justamente ser morto, nem
de qualquer outra maneira pode ser punido por seus súditos.
6. Em sexto lugar, compete à soberania ser juiz de quais as opiniões e doutrinas que são
contrárias à paz, e quais as que lhe são propícias. Portanto compete ao detentor do poder
soberano ser o juiz, ou constituir todos os juízes de opiniões e doutrinas, como uma coisa
necessária para a paz, evitando assim a discórdia e a guerra civil.
7. A sétima razão diz que: todo o homem pode saber quais os bens de que pode gozar
portanto esta propriedade, dado que é necessária à paz e depende do poder, é um ato
desse poder, tendo em vista a paz pública.
8. Em oitavo lugar, pertence ao poder soberano a autoridade judicial, quer dizer, o direito de
ouvir e julgar todas as controvérsias que possam surgir.
9. Em nono lugar, pertence à soberania o direito de fazer a guerra e a paz com outros
Estados.
10. Em décimo lugar, compete à soberania a escolha de todos os conselheiros, ministros,
magistrados e funcionários.
11. Em décimo primeiro lugar, é confiado ao soberano o direito de recompensar com
riquezas e honras, e o de punir com castigos corporais ou pecuniários, de acordo com a
lei que previamente estabeleceu.
12. Por último [...] Ao soberano compete pois também conceder títulos de honra, e decidir
qual a ordem de lugar e dignidade que cabe a cada um (Hobbes, 1983).
A soberania é o poder de exceção
A grande diferença entre os possíveis bandidos do passado e os usurpadores atuais do
poder é que, no passado idílico, os mercenários respondiam aos seus generais e, na atualidade,
empresas de matar como a Blackwater (assenhoreando-se do Iraque) atuam como civis e não
respondem ao comando do Estado: literalmente, como nunca se viu na história, a máquina de
guerra está acima da lei. Curiosamente, a soberania se apresenta melhor exposta sob os regimes
de exceção, pois aí o poder aflora totalmente, como poder nu, no dizer de Einstein (1994).
Soberano é aquele pode se colocar “fora” da lei: “O paradoxo da soberania assim se enuncia: ‘o
soberano está ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico’ [...] A especificação ‘ao
mesmo tempo’ não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei,
coloca-se legalmente fora da lei” (Agamben, 2002, p. 23). Em resumo: exceção é um conceito
limítrofe, “conceito de esfera extrema”, por isso sua definição não se configura na normalidade,
mas sim no limite, no caso ulterior à legalidade. Seguindo-se Agamben (2002), e aplicando-se a
tautologia (ele chama de paradoxo da soberania), pode-se dizer que a lei está fora dela mesma,
afinal a autoridade não precisa do direito para criar o direito (basta-lhe o poder). O controle
pluripotenciário123 ou institucional (divisão e controle dos três poderes), no fundo, também não
responde satisfatoriamente à necessidade específica que gera exceções e que traz imbricações
para a soberania. Diante da anormalidade, é preciso a ação eficaz do poder soberano — daí a
dificuldade de se limitar a competência:
123
Poder-se-ia pensar na proteção do direito internacional, a fim de que não ocorressem abusos demasiados na
aplicação do “direito de exclusão”, já a partir da Paz perpétua de Kant. Porém, exemplos recentes como da Guerra
dos Bálcãs e a invasão do Iraque, mostram-nos o oposto.
149
Se houver êxito na descrição das competências conferidas para o estado
de exceção – seja por meio do controle recíproco, seja pela delimitação
temporal, seja, enfim, como na regulamentação jurídico-estatal do estado
de sítio por meio da enumeração das competências extraordinárias -, a
questão da soberania será reprimida em um passo importante, mas,
obviamente, não resolvida (Schmitt, 2006, p. 12).
O poder é mantido em detrimento do direito porque o Estado de Exceção é um “Leviatã
fora da ordem”, em grave luta por autoconservação. A essência da soberania é a luta por
autconservação do Estado. Por isso, não-contraditoriamente, a competência excepcional busca
a lógica da normalidade para definir que a exceção pretende evitar o caos jurídico: o que não
elimina a ironia124. De todo modo, em consequência, defende-se o status quo, o establishment
como indicador do poder soberano. Isto transformou a teoria do direito à exclusão em uma teoria
sistêmica do status quo; apesar da redundância, não por acaso, status (firme) derivou a figura do
próprio Estado, ou seja, a teoria da exceção procura a paz na Razão de Estado. Seguindo esta
linha, para Carl Schmitt, a dominação estatal está baseada no monopólio decisional acerca do
próprio uso do poder/coerção. Apesar da teoria da exceção se valer da lógica formal (mas
provocando-nos com o raciocínio indutivo), a razão em que se baseia o Estado de Exceção não é
a razão da autonomia e sim a Razão de Estado que acomete e subjuga a todos. De acordo com o
raciocínio da exceção, basta ter suficiente razão/coerção. Portanto, dado que há o poder que se
quer estabelecido, a exceção não está fora, mas dentro da regra e de sua lógica — “para poder
excluir, a regra de exclusão teve de ser incluída”:
A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é
excluído da norma geral [...] A norma se aplica à exceção desaplicandose, retirando-se desta [...] Neste sentido, a exceção é verdadeiramente,
segundo o étimo, capturada fora (ex capere) e não simplesmente
excluída [...] Deleuze pôde assim escrever que “a soberania não reina
a não ser sobre aquilo que é capaz de interiorizar 125” (Agamben,
2002, p. 25 – grifos nossos).
Também é desta configuração que advirá o conceito de soberania: Soberano é quem
decide sobre o Estado de Exceção Permanente, dirá solenemente Carl Schmitt (2006, p. 07).
Mas, o que deve fazer o soberano em caso de extrema necessidade? A resposta à pergunta é
igualmente uma resposta dada por Bodin e retomada por Schmitt:
Até que ponto o soberano se submete à leis e se obriga diante das
corporações? [...] Bodin responde no sentido de que promessas são
vinculantes, porque a força obrigacional de uma promessa repousa no
Direito Natural; porém, no caso de necessidade, cessa a vinculação
segundo os princípios naturais gerais. Em geral, ele diz que, frente às
corporações ou ao povo, o governante está obrigado somente enquanto o
cumprimento de sua promessa for de interesse do povo, mas ela não se
vincula si la necessite est urgente (Schmitt, 2006, p. 09 – grifos nossos).
124
125
Faz-se a “suspensão do Estado de Direito” para evitar o caos jurídico.
Refere-se ao Deleuze dos Mil Platôs.
150
Com isto, diz Schmitt, Bodin inseriu a decisão no conceito de soberania. Por isso, a
resposta à indagação de quem é o soberano na condição de exceção, já traz em si a resposta à
questão de quem é a suma competência nestes casos: o soberano absoluto. Porém, a questão da
exceção se ressente toda vez que se quer saber quem é o detentor do poder absoluto:
Em uma locução mais usual, perguntava-se quem teria a presunção, para
si, do poder ilimitado. Por isso, a discussão sobre o estado de exceção, o
extremus necessitas casus [...] Em razão disso, também se pergunta quem
decide sobre as competências constitucionais não regulamentadas, ou
seja, quem é competente quando a ordem jurídica não oferece resposta à
questão da competência (Schmitt, 2006, p. 11).
Vico também afirmou a superioridade da exceção. Neste sentido, para Vico (1999),
superior aos limites impostos pela norma jurídica, a exceção se torna princípio e baliza, o fim em
si mesmo que requer imediata e plena aplicação. Na verdade, saber que os casos de extrema
necessidade (exceção) estão ou não previstos em lei, é uma questão menor, porque a decretação
do Estado de Exceção suspende toda a fruição do ordenamento jurídico. Então, mesmo a
previsão legal será suspensa e, se não houver previsão legal, com mais motivação a exceção será
decretada. Atualmente, o que se chama de Estado Global nada mais é do que a globalização vista
como um longo e amplo processo histórico-coletivo de negação de um suposto Direito Global, e
que veio se formando desde o século XVI. Este processo se fortaleceu no século XVIII (com as
Revoluções Americana e Francesa: a primeira mais republicana, fundante de um Estado-Nação;
a segunda mais proletária e, depois, igualmente sangrenta e até conservadora). No século XIX,
contou-se com a inclusão de um movimento operário organizado (ou mais organizado do que ao
tempo das “barricadas” de 1848 por quase toda a Europa) e de um outro feminista (de Chicago
para o restante do mundo). No século XX, apenas para recordar, este processo ainda tinha
energia para aderir e congregar outras tantas forças sociais, como: requerer a autodeterminação
dos povos, os “direitos humanitários” (especialmente no pós-Segunda Grande Guerra), além de
contar com as minorias (inclusive dos “deficientes, mutilados e amputados" entre 1939-45), o
meio-ambiente, o desenvolvimento tecno-científico.
Durante séculos vimos ascender por boa parte do mundo novo e do Velho Continente
formas intensas e determinadas de luta pelo reconhecimento de demandas, direitos e inserção
social na dura batalha pela transformação global e que levasse aos mais diversos tipos, formas e
mecanismos de reconhecimento das diversidades sociais. Anteriormente, a globalização dos
direitos havia nos trazido a perspectiva da interação, do reconhecimento, da expansão do próprio
direito: sobretudo sob a alcunha dos direitos humanos. Neste sentido caminham os quase sempre
enumerados exemplos das lutas operárias (da Revolução Mexicana à tomada do poder em Cuba:
1959), do movimento feminista, do movimento estudantil no maio de 68, da Revolução dos
Cravos, num só dia em Portugal: 25/04/1974. Mas o que temos no século XXI, além da agonia
desse fluxo de conquistas e de seus combatentes? No século XXI, o que mais afronta a soberania
é o poder econômico das empresas e grupos transnacionais, o capital especulativo e os atos de
terrorismo individual ou de grupos como a Al Qaeda.
Com o que vimos, podemos dizer que a soberania é realmente a capacidade de mobilizar
as forças políticas necessárias, sem distinção da moral, para sanar os problemas que afligem a
Razão de Estado. Portanto, neste prisma, a soberania pode aplicar forças que são próprias do
Estado de Exceção. No final da ação, após a decretação da intervenção forçosa do poder, dir-se-á
que a exceção está fora do alcance do Estado de Direito, uma vez que todo o ordenamento
151
encontrar-se-á suspenso. Detém a soberania aquele que pode criar e manejar o poder de acordo
com sua vontade e que, ao final das contas, pode dizer o direito:
Na exceção soberana trata-se, na verdade, não tanto de controlar ou
neutralizar o excesso, quanto, antes de tudo, de criar e definir o próprio
espaço no qual a ordem jurídico-política pode ter valor [...] O
“ordenamento do espaço”, no qual consiste para Schmitt o Nómos
soberano, não é, portanto, apenas “tomada da terra126” (Landnahme),
fixação de uma ordem jurídica (Ordnung) e territorial (Ortung), mas,
sobretudo, “tomada do fora”, exceção (Ausnahme) (Agamben, 2002, pp.
26-27).
À primeira leitura, o Ser Soberano orquestra a própria vida como melhor lhe aprouver.
Soberano é não ser obrigado a seguir as ordens de outrem, a agir com liberdade, autonomia,
independência, sem ser tutelado, administrado, controlado por outras pessoas, instituições e/ou
Estados. Por isso, é comum identificar-se, confundir-se soberania com independência, como se
todos que são independentes fossem soberanos e vice-versa. Afinal, um Estado incapaz de se
manter economicamente estável, sem depender dos outros, não será um Estado soberano.
Se há propriedades particulares na Amazônia ocupadas por forças militares mercenárias,
com sede nos EUA, isto implica que perdemos nossa soberania enquanto país? Ou será que
perdemos a soberania apenas naquela região? Podemos manter metade ou um pedaço de
território e ainda dizer que somos soberanos naquela região, mas que no todo estamos
dominados, submetidos? Quando a Polícia Pacificadora, no alto dos morros no Rio de Janeiro,
instala bandeiras do Brasil, estará admitindo que, a partir daquele momento, readmitiu a
soberania naquela localidade e que, antes, não era soberano por ali? O crime organizado
internacional, o tráfico de pessoas, isto também não desbaratina a soberania de um país?
Além disso, é preciso saber que a soberania se aplica à Razão de Estado, ou seja, há um
núcleo que fortalece a identidade, uma reserva moral para formar a Nação, uma justificativa
política e jurídica para que o Estado exista e é isto que deve ser preservado sob todas as formas;
para manter a soberania, isto é, a integridade da Razão de Estado, “os fins justificam os meios”.
O tema é complexo e todas essas relações e intersecções são difíceis de julgar de modo direito.
Em sentido complementar, a soberania que se constrói na legalidade deve colocar freios e
limitações ao uso/abusivo do poder.
Soberania Jurídica
A soberania surgiu como um dos conceitos fundamentais na moderna ideia de lei. O
soberano, portanto, é aquela pessoa ou órgão (Poder Legislativo) que age como legislador
supremo numa dada comunidade. O Estado é uma noção mais geral do que a de soberano,
representando a comunidade como organização jurídica, e simbolizando assim todas as várias
manifestações da comunidade legalmente organizada. É sentida a necessidade de atribuir essa
autoridade a alguma fonte mais permanente, ou seja, o próprio Estado. O aspecto interno da
soberania é o do supremo legislador. Em seu aspecto externo, por outro lado, a posição é muito
semelhante a do monarca absoluto ao abrigo de um sistema tradicional de direito (poder
absoluto, no passado, e Poder Extroverso, atualmente). Um dos objetivos positivistas é
estabelecer a autonomia da lei como um sistema de normas positivas cuja validade pode ser
determinada dentro da estrutura básica do próprio sistema jurídico (presunção de legitimidade,
126
Interessante pensar que o soberano é aquele que “toma a terra em primeiro lugar”, demarca-a e aí estabelece o
nomos, a norma atribuída ao território a esta altura delimitado.
152
presunção de veracidade). Além disso, a ideia de direito positivo parece também acarretar a
noção de uma regra estabelecida (positum) por algum legislador humano identificável
(coercibilidade). A lei estaria apta a possuir essa autonomia sem recorrer à autoridade
externa127. Em síntese, o positivismo (incluindo o positivismo jurídico):
 É normativo.
 É positivo (filosofia positiva).
 É herdeiro do Cartesianismo e do Iluminismo.
 É um posicionamento contrário ao fanatismo.
 “É a verdadeira filosofia do povo”.
 Reforçou a perspectiva do Nós — a ideia de indivíduo era abstrata demais.
 É (foi) uma busca pelo "bom senso universal".
 Orienta para abandar as especulações e a metafísica.
 Apresentou-se, primeiramente, como Física Social.
 É o prenúncio ou a primeira pronúncia da Sociologia.
 É uma filosofia da ciência, uma espécie de moral e uma nova religião.
 Aplica o método das ciências naturais às ciências sociais.
 É uma doutrina que investiga leis, suas constâncias e relações:
A teoria imperativa (imperative theory of law - imperatividade) equivale realmente a
dizer que a lei é aquilo que o soberano ordena e que, por outro lado, nada pode ser lei que não
tenha sido ordenado pelo soberano. O positivismo jurídico (dogmatismo, legalismo, monismo)
expressaria uma unidade auto-suficiente da lei (tautologia). Porém, como observou o juiz
Holmes, “a vida do direito não se baseia na lógica, mas na experiência” (Path of the Law - do
juiz Oliver Wendell Holmes Jr.128). Toda norma legal que imponha uma obrigação (em contraste
com as normas que meramente permitem ou autorizam certos atos) deve ter uma sanção
agregada. A própria sanção é, no entanto, mera descrição de certas normas concretas na base da
hierarquia legal, as quais fornecem um fundamento legal para a aplicação da força em
determinados casos. Para Kelsen, uma sanção não é ameaça de força ou sua aplicação concreta,
mas, simplesmente, a “concretização” final da série de normas que faz com que esse resultado
físico seja autorizado no sentido jurídico (Lloyd, 2000, p. 240)129. O ponto de vista de Kelsen é
que esse sistema monístico é não só desejável, mas, de fato, operativo, pois os Estados aderemlhe substancialmente, num grau que se coaduna com o princípio do mínimo de efetividade (erga
omnes, exigibilidade, auto-executoriedade).
Controle externo da soberania: o positivismo de Kelsen
O século XX se caracterizou pela consolidação de um sistema de Estados nacionais e pela
superação do jus publicum europeum, com a criação da Liga das Nações e da ONU. O
eurocentrismo cedeu espaço ao globalismo – o ideal de Kant da Paz Perpétua estaria mais
próximo, como uma espécie de “profissão de fé cosmopolita” rumo ao “direito público da
127
Discípulo de Bentham, John Austin (positivismo legal) apreciava a ideia de que a validade legal não se assenta
na ordem moral e é distinta desta última.
128
Possner, Richard A. (ed.) The Essential Holmes. Chicago - London. Tradução de Lauro Frederico Barbosa da
Silveira. The University of Chicago Press. 1992. p. 160-177.
129
Toda norma legal que imponha uma obrigação (em contraste com as normas que meramente permitem ou
autorizam certos atos) deve ter uma sanção agregada. A própria sanção é, no entanto, mera descrição de certas
normas concretas na base da hierarquia legal, as quais fornecem um fundamento legal para a aplicação da força em
determinados casos (Lloyd, 2000).
153
humanidade”. Enquanto o direito internacional se referia à relação entre Estados. O direito
cosmopolita tratava da relação entre de Estados e indivíduos (estrangeiros).
O autor alemão rejeitava a Teoria Dualista do Direito – separando-se entre direito interno
e direito internacional –, opondo-se a Jellineck, por exemplo, e trazendo uma formulação nova
para a interpretação de Kant. O direito nacional de todos os Estados nacionais soberanos seria
elemento de um todo, partes de uma “ordem parcial”. O direito internacional, portanto, seria a
unidade objetiva do conhecimento jurídico”, o suporte para uma concepção monista.
O que traria unidade ao sistema do direito seria a norma fundamental do direito
internacional. Com isto, o que mais o distanciava da teoria dualista é o fato do direito
internacional ser relegado a um tipo de moral, ou direito natural, distanciando-se o direito
internacional de um verdadeiro direito - o – direito positivo.
Para Kelsen, o Estado é uma “ordem da conduta humana”, dotado de poder para que suas
ordens sejam cumpridas por todos. Desse modo, o Estado é, ou uma parte ou, o próprio
ordenamento jurídico. Ou seja, o Estado tem a natureza de direito. Os indivíduos estão sujeitos
ao Estado. Em relação ao monismo, sua crítica se inclina a constatar que nenhum Estado
soberano poderia admitir contestação a sua estrutura normativa, sob o risco de invalidar a defesa
nacional de sua soberania.
Se o Estado é um conceito (ente) substancialmente político não seria em si uma
substância jurídica e todas as soberanias estariam ameaçadas. Ao passo que, reunindo em um
sistema único todas as regras do direito positivo, a soberania do Estado (de todos os Estados) se
revelaria idêntica à positividade do direito. Esta comunidade de Estados, personificação do
ordenamento jurídico mundial, como Estado mundial, é sinônimo de civitas maxima.
As oposições entre regras de direito interno e regras de direito internacional, neste
modelo, não seriam contradições lógicas, mas sim antinomia entre uma norma inferior e outra
de natureza superior. Fazendo-se prevalecer um princípio básico do direito: a lei superior derroga
a lei inferior.
Assim, se para a concepção objetivista, o conceito ético de homem é a humanidade, para
a teoria objetivista do direito, o direito só pode ser internacional, universal, e por isso ético. A
expectativa objetivista seria garantir positividade ao direito internacional. Além do que a Teoria
da Autolimitação do Poder (“regra da bilateralidade da norma jurídica”), sem que o Estado
precisasse recorrer a uma ordem superior, não foi observada por Kelsen.
Outra contradição está em admitir que “não há capacidade de decisão política sem se
considerar elementos meta-jurídicos – como ideias éticas e políticas. Em todo caso, a teoria
pluralista e a concepção objetivista de Kelsen assinala que a “unidade da soberania” (como
“unidade do conhecimento”) deve ultrapassar os limites do EU estatal, sob o espírito universal,
em que as efemérides do “espírito de cada um” (ente político-jurídico) deve se realizar,
objetivando-se, uma vez que supera-se o subjetivismo de cada-um-só.
Disto resulta outra contradição: “o direito se torna a organização da humanidade e aí se
identifica com uma ordem moral suprema”. Fora do sistema puro do direito, direito e moral se
apresentam sem distinção. Sua civitas maxima foi pensada a partir de todos os problemas da
comunidade política do século XX, essencialmente em não se impor como unidade jurídica aos
Estados soberanos. Mas, termina projetando ao direito internacional as mesmas características do
Estado nacional: uma ética-universal e uma consciência humana universal. É isto o que o Estado
representa para cada indivíduo em sociedade.
É de se acentuar que o seu modelo de globalismo jurídico está na base da concepção
universalista dos direitos humanos, quando preceitua-se que a formação de instituições jurídicas
154
supranacionais recorre à “unidade da experiência humana”, de uma moral validável
universalmente e da vinculação de todos os Estados, quer queiram, quer não – mesmo os nãocivilizados.
Seu objetivo era eliminar a justiça privada do âmbito das relações internacionais: o
direito internacional seria o direito da comunidade interestatal. Do que decorre outra noção
nuclear: a necessária centralização da administração da justiça em um tribunal internacional. O
que confirma a ideia de que o direito é o monopólio da força em uma ordem coercitiva. A
analogia doméstica revelaria que o Estado mundial garantiria a paz, tal qual se vê no esforço
empreendido pela Federação nos EUA e nos Cantões suíços. Seu globalismo, enfim, é
essencialmente jurídico. Mesmo para que tivesse eficácia fosse necessário que se criasse uma
polícia internacional (jus puniend global). O que ainda equivaleria à restrição ou destruição da
soberania estatal. A força dessa convicção está no fato de que o direito é também uma “ideologia
de poder”.
A ONU teria criado uma estrutura internacional de segurança recíproca. Porém, o
Conselho de Segurança Pública perderia juridicidade, pois a concentração de poder
desembocaria em decisões políticas. Quando escreveu sobre isso, em 1954, Kelsen alertava
inclusive para que os vencedores da Segunda Guerra julgassem os crimes de guerra neste
embrião de Tribunal Penal Internacional. Afinal, para Kelsen, “o direito é força”. Acreditava que
a criminalização pessoal dos agentes da guerra evitaria outros conflitos bélicos. Contudo, assim
Kelsen retornava às noções medievais de punibilidade do justus hostis e ainda negava o Princípio
da Legalidade. Os detratores da guerra sabem que agem de forma absolutamente imoral e, por
isso, devem ser julgados, independentemente de lei anterior que defina a ação como crime.
Kelsen anteciparia as bases jurídicas e morais que passariam a ser invocadas na
estruturação do Estado Penal: normas penais em branco (criminalização moral,
independentemente de lei anterior que o defina) e polícia internacional a serviço do Império. Em
todo caso, vislumbra-se ao menos a intenção de se demover o livre curso das forças
incontroláveis da exceção130.
Partindo-se do Positivismo Jurídico, especialmente de Hans Kelsen, o direito é tido como
sinônimo de lei. Essa ideia do direito como um apanhado puramente dogmático de normas,
decorre da visão monista do direito, ou seja, todo direito válido decorre única e exclusivamente
do Estado. De outro modo, não podemos nos esquecer de que o pluralismo conceitual que
recobre o direito é fruto exatamente da ocorrência da multiplicidade social (da dinâmica social) e
que, portanto, o campo jurídico é sempre social, isto é, mais vasto do que a delimitação jurídica
dos próprios eventos sociais. Desse ponto de vista, não se trata de uma discussão fútil a que
procura ordenar alguns significados viáveis, aceitáveis, legítimos do direito; por isso, também
não há neutralidade axiológica. Mas, como afirmava Kelsen, temos de observar o “princípio da
supremacia da norma” – “a lei é obedecida porque é a lei”. Kelsen objetivava libertar o direito (a
lei) dos elementos que lhe são estranhos, como o social, o político, o econômico. Esta proposição
de uma teoria pura do direito quer ver o direito fora do contexto, ou seja, em “condições ideais
de aplicabilidade”.
A soberania racional
A soberania foi definida no contexto do Estado Racional, ou seja, o monopólio
político e jurídico não mais provém das tradições, do passado remoto, porque são decisões
130
Mesmo em Kelsen, a soberania se ajusta ao direito. O Estado de Direito tem a profundidade equivalente à
aspiração à Justiça: “ordem juridicamente centralizada segundo a qual a jurisdição e a administração estão
vinculadas à lei” (Kelsen, 1979, p. 35).
155
racionais do legislador. Trata-se, então, de um projeto de poder consciente, como soberania
racional. Os indivíduos são portadores do direito de segurança e assim devem ser protegidos
pela lei; anteriormente, os mesmos indivíduos estavam atados por laços de sangue e, como
membros de uma comunidade, pertenciam a nações sem soberania. Assim, o Estado
soberano é uma ordem jurídica que governa uma criação comunitária consciente, racional
e desejada. Para a comunidade, a teoria da soberania permitiu a consciência do dever de
organizar o governo de forma soberana. Na definição de Bodin: “O Estado define-se como um
governo de muitas famílias e daquilo que lhes é comum, dotados de poder soberano e conduzido
legitimamente” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 222)131. A soberania significa, portanto, o mais alto
poder de comandar. Do latim majestas, resume-se como poder absoluto e perpétuo. Impera o
sentido de que o soberano não está limitado de forma alguma, às próprias leis; é o ponto
forte do Estado de Exceção. Elevando-se acima do senso de justiça (ou da tradição), é certo dizer
que o direito retira sua força da soberania. De tal modo que a soberania é um poder de
dominação formalmente supremo. Desde Bodin – sobretudo no Estado de Necessidade – o
próprio direito de produzir outros direitos decorre da soberania como plenitude do poder e
não requer qualquer legitimação adicional. Como unidade, o Estado é uma ordem pacífica
unitária, uma vez que a base da legitimação do direito interno está na conquista da independência
interna e externa. Não há soberania sem liberdade integral de ação. A soberania não é, pois,
uma consequência, mas antes de tudo uma qualidade política. O Estado é uma unidade de poder
que tem o monopólio para impor o direito estatal por meio da força (coerção): “Só o poder cria
o direito. O justo e o injusto nascem por meio do Estado soberano” (Fleiner-Gerster, 2006, p.
228 – grifos nossos). Quem pode criar o direito, tem o poder de transformar o justo no injusto – e
vice-versa. O poder soberano é aquele que tem um poder ilimitado sobre o povo, em
determinado território.
O conceito jurídico de soberania (competência soberana) engloba o direito de tomar
decisões obrigatórias para os outros. O conceito político de soberania (plenitude de poder)
implica apenas no poder de comandar os outros. Tem soberania externa quem é sujeito do
direito internacional público e estabelece acordos e tratados com outros Estados. Na soberania
interna, o Estado é identificado como a autoridade suprema perante seus cidadãos. Sob uma
soberania orgânica, pode-se perguntar quem exerce internamente o poder supremo: o monarca
ou o povo (soberania popular). Como soberania absoluta, há uma competência suprema no
exercício do poder. Na soberania relativa se descreve a regulamentação do poder e a
organização das funções públicas que servem ao interesse comum (o Judiciário e a polícia).
Como soberania positiva se designa a margem de ação do Estado. Já a soberania negativa
indica o espaço de liberdade política concedida pelo direito (historicamente, a liberdade negativa
vem sendo demarcada desde a Carta do Rei João Sem Terra). Modernamente, para Austin –
também citado por Gerster – são idênticas as soberanias jurídica e política. Com Hart – ainda
próximo de Austin – a soberania não se constrói somente com obediência, costumes e
comandos. O poder só (como poder nu) não basta; a obrigatoriedade intrínseca do direito é uma
regra positivada. Portanto, o soberano deve se ater a certas regras, deve respeitar certas
prescrições de procedimento. Com o que ainda se verifica um caráter vinculante intrínseco do
direito, em que a soberania expressa a ordem jurídica democrática: “Assim, não é soberano
aquele que possui o poder em sua plenitude máxima, mas sim aquele que edita leis conforme
regras prescritas, das quais o povo aprova o caráter vinculante” (Fleiner-Gerster, 2006, p.
242 – grifos nossos). Nesta soberania profunda, a legitimidade do poder – como mecanismo de
131
A ideia de que o governo e o Estado derivam da organização familiar do poder também está em Vico (1999).
156
controle do Estado de Direito – está na distribuição da Justiça Social. Desse modo, há uma
presunção de legitimidade nas decisões; na soberania jurídica profunda está a autoridade do
Estado e não só a força do Estado. Mas, ainda há que se reportar que na soberania profunda
(ordem jurídica democrática) o potestas in populo não é um adereço do poder, sendo expressão
do poder social. Portanto, soberano é o povo que expressa sua vontade contida no poder social.
Não há soberania sem legitimidade – o poder de impor uma vontade sem restrições é tirania e o
apelo à força pode indicar, exatamente, a perda da soberania como capacidade de exercitar o
governo. Quanto mais autoritário, mais desesperado para se manter o poder já violado. Não
podemos esquecer, porém, que o Estado Moderno teve ampla justificativa como força e coerção,
como jus puniendi.
157
ESTADO GUARDA-NOTURNO
poder de punir: jus puniendi
O Estado Moderno tem como característica acentuada o exercício do poder de controle
social e de repressão às tentativas de sedição. Esta condição foi predominante durante muito
tempo, uma vez que o poder central, para se manter como governo e administração do Poder
Político, constituindo-se em ação efetiva do Estado soberano, precisava repelir todas as ações
que rivalizassem com sua estrutura de poder. Para esta análise tomaremos obras da literatura que
se expressam pelo realismo de que são porta-vozes.
A literatura que denuncia as sombras do não-direito
O Último Dia de um Condenado, romance de Victor Hugo (2002), é um libelo a favor
da liberdade – muito mais abrangente, portanto, do que uma trincheira contra a pena de morte. É
um clássico que permite inúmeras leituras e nos faz pensar/sentir/reviver a total
insegurança/insensatez/incoerência do sistema social e estatal em que vivemos. Salta aos olhos
como é pequena a alma que rege o espírito público quando vocacionado à violência.
É necessário repensar a crença no chamado Estado Guarda-Noturno132: aquele que dizia
velar pela segurança de todos. Sob o ângulo da Teoria Política contemporânea, esse Estado
Guarda-Noturno traz uma espécie de Estado Gendarme e, de quebra, vem o fim da crença na
segurança do Estado. Trata-se do fim da perspectiva de que o Estado é capaz de assegurar
tranquilidade, paz, interação e socialização para os mais acomodados, para os seres comuns ou,
então, a tal ressocialização para os mais ineptos.
O Estado Guarda-Noturno, entretanto, quando não cumpre essa meta da segurança
mínima, vê-se inundado de projetos neoliberais, vê-se invadido e ocupado pelas ideologias
privatistas e é por causa da insegurança que se cria o Estado Guarda-Costas: quem pode pagar
mais, tem maior proteção, pois que a segurança, de direito fundamental, transforma-se em objeto
de consumo – da mesma forma, quem tem poder de consumo também pode se proteger. Isto é,
pobres de nós que acreditamos nesse Estado Inseguro.
O Estado-Gendarme133 é ele próprio inepto e por inúmeras razões: não há como ter um
policial, um gendarme, para cada cidadão, para cada pessoa. Diria, no entanto, que é mais grave,
pois, ainda que fosse possível, isto não seria útil, razoável, não traria benefícios a ninguém.
Aliás, seria nossa maior desgraça, porque basta pensar que, pior do que um Estado com poucos
policiais é ter um Estado repleto deles – os policiais a vigiarem a tudo e a todos.
Tudo na dose certa? Nesse caso, o Estado Policial é o Estado repressor, controlador,
abusivo, violento, autoritário. Não se trata de um “ou-ou”, ou violência ou repressão, porque a
repressão só pode ser violenta. Trata-se de ver que, se o Estado se transformou no Estado
Vingador, no Estado Vingativo, isso é um péssimo sinal, sendo sinal de que aí grassa a dor, a
tortura, o medo, a vingança, o terror, a ameaça, a insegurança, a mera repressão, a apatia – depois
o questionamento, a resistência, a desobediência: e mais repressão. Não há coisa pior do que essa
insegurança jurídica e política:
Afirma-se que há segurança para os cidadãos, tendo-se em vista que as
preceituações legais estabelecem como todos devem pautar a sua
conduta, a fim de evitar as sanções estabelecidas, no caso dum
descumprimento dos deveres que as leis impõem. Mas haverá maior
insegurança do que uma determinação sem limites, através da legislação,
132
133
Essa expressão foi utilizada pela primeira vez por Lassale, ao final do século XIX (Canotilho, s/d, p. 92).
O do acompanhamento policial em que tudo e todos são suspeitos, como é todo regime fascista.
158
do que é permitido ou proibido, além do mais realizada por um certo
poder que se dispensa de provar a própria legitimidade? Este poder, ao
contrário, se presume legítimo, a partir do fato de que está em exercício e
chegou à posição desempenhada, seguindo os processos que ele próprio
estabelece, altera e, de todas as formas, controla a seu bel-prazer (Filho,
1999, p. 37-38).
De forma prática, quanto mais se pede a polícia nas ruas, mais longe estamos da
segurança, pois é o sinal claro de que as ruas (o espaço público) foram tomadas unicamente pela
violência, pela barbárie. E, nesse caso (é coisa da lógica), mais violência não trará a paz...só mais
violência. Assim, ao contrário, o caminho seria termos mais educação, mais lazer, mais
ocupação, mais cultura, mais vida pública, mais responsabilidade social, maior
comprometimento e maior participação – de pobres e ricos e altos e baixos.
Para salvaguardar essa mensagem, na voz de um condenado à pena de morte, Victor
Hugo se pergunta se o sistema tem vida ou alguma inteligência (aqui representadas na figura dos
juízes que condenam o sujeito ao cadafalso). Sua resposta viria num lamento lacônico: “Não.
Eles veem em tudo isso apenas a queda vertical de uma lâmina triangular e pensam sem dúvida
que para o condenado não há nada antes, nada depois” (Victor Hugo, 2002, p. 46).
Mas, como o Estado de Direito se limitará à pura vingança? Para Victor Hugo, é possível
indicar, o sistema parece não ser nada mais do que essa encarnação da maldade, essa
corporificação das penas, dos apenados e dos penalistas. Victor Hugo já indicava algumas
ranhuras do biopoder, quando o poder se inscreve na carne, quando não mais se satisfaz com a
simbologia e passa a se calcificar na figura do agente da punição. Comparativamente, n’A
Colônia Penal, Kafka irá rasgar a pele dos presos, tatuando a derme, rasgando profundamente a
alma de cada detento. De modo semelhante, Victor Hugo conseguirá relatar mais vivamente o
biopoder do que o panóptico de Foucault. O biopoder, portanto, é o poder em carne e osso, vivo
como o sangue, mas sem fluxo:
Esse bom carcereiro, com seu sorriso benévolo, suas palavras afáveis, seu
olho que lisonjeia e vigia, suas mãos grossas e largas, é a prisão
encarnada, é o Bicêtre fazendo-se homem. Tudo é prisão à minha volta.
Reconheço o cárcere sob todas as suas formas: sob a forma humana
assim como sob a forma de grade ou de ferrolho. Esse muro é prisão de
pedra; essa porta é prisão de madeira; esses carcereiros são prisão em
carne e osso. A prisão é uma espécie de ser horribilíssimo, completo,
indivisível, metade edifício, metade ser humano (Victor Hugo, 2002, p.
82).
Sempre se soube que quem controla a carne, controla a vida. Em resumo, nesse Victor
Hugo há um sistema punitivo como reverberação de uma “bondade mal-sã” (o sadismo
embalado em cortesia). À espera da definição do dia em que a sentença da morte seria executada,
o prisioneiro revela esse sentimento, como se ainda dissesse que o pecador vem bem vestido: “É
hoje! O diretor da prisão em pessoa acaba de me visitar. Perguntou-me no que ele poderia ser-me
agradável e útil, exprimiu o desejo de que eu não tivesse do que me queixar, dele ou de seus
subordinados, informou-se com interesse sobre a minha saúde e como eu havia passado a noite.
Ao me deixar, chamou-me de senhor! É hoje!” (Victor Hugo, 2002, p. 81).
159
Assim, é fácil ver como o sistema nada recupera, pois ele próprio é irrecuperável. Mas é
notável como Victor Hugo nos diz isso de forma quase poética, ou seja, no melhor estilo do
“romantismo realista e engajado”: “Ah! Como é infame uma prisão! Há nela um veneno que
macula tudo. Tudo é conspurcado, até mesmo a canção de uma menina de quinze anos! Se
encontramos um pássaro, haverá lama em suas asas; se colhemos uma bela flor e a aspiramos:
ela fede” (Victor Hugo, 2002, p. 78)134.
Kafka Tatua o Biopoder
Na Colônia Penal (1993), conto de transição, Franz Kafka sinaliza (no enfoque proposto
no texto) um marco, uma inscrição material na “literatura engajada de denúncia do biopoder”: a
literatura engajada na crítica social e institucional (interpessoal), e que se utiliza da metáfora do
corpo vivo, em carne e osso, vendo-lhe fluir o sangue, para diagnosticar/vaticinar que o poder
nos atormenta até as entranhas, até a medula (em alguns casos, há uma metástase incontrolável).
De qualquer forma, pela leitura do texto do Kafka advogado, fica patente como o poder
está alojado (ou ocupa?) num biótipo; do contrário, que outro significado ainda mais oculto seria
revelado no “ato de se tatuar as ordens/deveres/punições junto à derme dos condenados”? Para
que inscrever profundamente nas carnes dos condenados135?
No caso do condenado que dirige as cenas e as atenções principais, Na Colônia Penal, a
ordem não cumprida será estampada para que reflua toda e qualquer futura admoestação: “Nossa
sentença não soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o
rastelo. No corpo deste condenado, por exemplo — o oficial apontou para o homem — será
gravado: Honra o teu superior!” (Kafka, 1993, p. 39).
E como se trata de desafio ao instituído, o caso será resolvido em julgamento sumário,
sem a processualística que só abalaria “o bom andamento das coisas”. Em resposta a um ilustre
visitante, o policial/torturador não mede suas palavras: “O explorador queria perguntar diversas
coisas, mas à vista do homem indagou apenas: — Ele conhece a sentença? Não, disse o oficial, e
logo quis continuar com as suas explicações. Mas o explorador o interrompeu: — Ele não
conhece a própria sentença? [...] — Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria
carne” (Kafka, 1993, p. 39-40).
O suplício, a deturpação de todo princípio do direito e a ampla violação dos direitos
humanos confirmam como funciona a dinâmica do Estado não-Democrático, do Estado de
Exceção, desse verdadeiro Estado de Execução: “— As coisas se passam da seguinte maneira.
Fui nomeado juiz aqui na colônia penal. Apesar da minha juventude. Pois em todas as questões
penais estive lado a lado com o comandante e sou também o que melhor conhece o aparelho. O
princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável” (Kafka, 1993, p. 41).
Então, o próprio biopoder será outra metáfora, a revelar outras tantas situações/relações
ainda mais recônditas? Trata-se de desvelar o Estado de não-Direito, as graves violações dos
direitos fundamentais. Metáfora da metáfora, o conto se revela como um possível caminho de
condução à verdade, sobretudo acerca do status quo e dos interstícios dos institutos de
dominação/repressão. Porém, há aí também uma dialética e ora se contempla o rito do poder (a
134
E não há forma melhor de fechar do que lembrar, apesar dos pesares, que depois de sua leitura nossa alma sai
fortificada, porque nossas prisões e nossos algozes tornam-se mais visíveis e previsíveis. O sentimento de ler o gênio
é insuperável, indescritível, insofismável, porque se trata de um romance insubstituível, que deve ser estudado,
apreendido e não apenas lido ou, o pior, consumido – o sentimento que resultou dessa leitura, realmente, é
constituído ou reflete as belas letras que lhe dão guarida.
135
Curiosa a relação que se pode estabelecer entre as tatuagens habituais dos presos, revelando até níveis
hierárquicos ou valentia decorrente dos crimes cometidos e ali “desenhados”: não deixam, nunca, de ser desenhos do
poder.
160
tatuagem na carne e na mente) e ora sua resistência: essa sempre iniciada na indiferença.
Vejamos os dois sentidos ou os dois casos: “O comandante, com a visão que tinha das coisas,
determinava que sobretudo as crianças deviam ser levadas em consideração [...] Como
captávamos todos a expressão de transfiguração no rosto martirizado, como banhávamos as
nossas faces no brilho dessa justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia! Que tempos
aqueles, meu camarada!” (Kafka, 1993, p. 55). Essa é uma descrição dos mecanismos internos,
psíquicos, do sadismo em seu pleno funcionamento. Agora vejamos como se aposta na
indiferença, a negação que tanto provoca/desestabiliza o status quo já enfraquecido:
Quando o antigo comandante vivia, a colônia estava cheia de partidários
seus; tenho em parte a força de convicção dele, mas me falta inteiramente
o seu poder; em vista disso os adeptos se esconderam, existem muitos
ainda, mas nenhum o admite. Se o senhor for à casa de chá hoje, ou seja,
num dia de execução, e ficar escutando em volta, talvez ouça apenas
declarações ambíguas. São todos adeptos, mas sob o atual comandante e
seus atuais pontos de vista, eles não me servem para coisa alguma
(Kafka, 1993, p. 53).
Aliás, será essa uma descrição do que motiva a negação do direito à indiferença? Aí se
desnuda e se esclarece outra metáfora: reconhecer a indiferença é afastar a cumplicidade. O
poder, agora que estamos mais esclarecidos, diz-nos atentamente que não lhe interessa o sujeito
participativo ou o mero adepto, mas só o cúmplice. Por fim, a última grande metáfora nos revela,
talvez, como é intenso/custoso – mas devendo ser definitivo – o “enterro da repressão”. Porém, é
de se lembrar, suas marcas sempre ficam expostas como indicativos de que o biopoder é o nosso
habitat natural: “Tinha uma inscrição com letras muito miúdas. Para poder lê-las o explorador
precisou se ajoelhar. Dizia o seguinte: “Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora
não podem dizer o nome, cavaram-lhe o túmulo e assentaram a lápide. Existe uma profecia
segundo a qual o comandante, depois de determinado número de anos, ressuscitará e chefiará
seus adeptos para a reconquista da colônia. Acreditai e esperai!” (Kafka, 1993, p. 77). São
lamúrias da opressão – aliás, uma ironia: “as queixas lamuriosas da opressão”. A lápide
descritiva do biopoder - a aposta certeira de que o mal habita a todos - é nossa consciência, é o
lembrete presente para a vida toda; pois é preciso lembrar, repetir à exaustão, para não voltar!
Pietro Verri: uma Terrível Combinação Literária
Um livro que deveria ser alçado à cabeceira, principalmente de quem busca no Estado um
instrumento de regulação das condições mínimas da justiça (sem esquecer que vivemos em uma
sociedade de classes, cindida em contradições), é o famoso Observações Sobre a Tortura, de
Pietro Verri (2000): uma narrativa das barbáries do Estado, ainda que feitas em “razão do
Estado”. Trata-se de um livro que luta por um quádruplo: razão, verdade, justiça, dignidade. Não
há razão sem verdade, nem justiça sem dignidade (não é digno de fé quem não age pela verdade;
não tem razão quem não é justo).
Observações Sobre a Tortura é um livro representativo do Iluminismo do século XVIII, e
relata a aplicação da tortura quando se buscavam os responsáveis para a peste que assolou a
Milão de 1630. É uma narração intensa, perturbadora, angustiante, lutando contra a barbárie
praticada pela tortura, pelo uso da força bruta, pelo obscurantismo, pela mediocridade, pela
ignomínia e pela cupidez. De outro modo, é uma aposta na razão, no conhecimento, na
inteligência, na arte do desvelamento.
161
No fundo, nos crimes cometidos, vemos refletir-se a alma das pessoas e da sociedade em
que vivem. Já com os tipos penais, e com as penas consequentes, temos o nível de organização
da cultura, o formato que o povo conseguiu imprimir ao Estado. Por isso, os crimes e as penas
são fontes ricas, preciosas, para quem quer demonstrar o que a sociedade é capaz de produzir e
em que nível se encontra nesse longo processo civilizatório. Portanto, abolir a pena de morte e a
tortura é “civilizar” a pena, o apenado, a vítima e a sociedade.
É como se dissesse que só se utiliza da força bruta aquele que é incapaz de alguma prova
ou demonstração de inteligência: o uso desmesurado da força é a prova maior da fraqueza de
espírito que domina a (in)consciência mediana – perde a consciência quem domina pela
violência. Nesse turno, a tortura é o atentado mor ao desenvolvimento racional, social, cultural,
pessoal e coletivo. Aliás, a violência é a marca efetiva da ausência de qualquer espírito vital,
vivendo-se aí no núcleo da barbárie. E justamente por isso, como alegar-se que a crueldade pode
dar luz à razão?
Não pode, é certo, e essa tem sido a tônica da defesa da razão contra a força e o
obscurantismo – Verri cita Cícero (no discurso Pro Silla): “A tortura é dominada pela dor,
governada pelo temperamento de cada um, tanto de espírito quanto de membros, ordenada pelo
juiz, dobrada pela dor, corrompida pela esperança, debilitada pelo temor, de modo que entre
tantas angústias não resta nenhum lugar para a verdade” (Verri, 2000, p. 113). O maior
problema, no entanto, é que o obscurantista não é capaz de entender o que diz Cícero (em sua
síntese da razão), quanto mais a assertiva de que a dignidade é fruto dessa mesma razão.
Nesse aspecto, nessa incessante busca pelo esclarecimento, pela verdade, pela razão e
pela justiça, Verri pode ser alinhado a Victor Hugo (n’O Último Dia de um Condenado), mesmo
porque Victor Hugo deve ter lido Verri - tal qual Kafka deve ter lido a ambos, para escrever A
Colônia Penal. Conclusivamente, nos três, vê-se como o indivíduo violento é obscurantista:
“Com isso, parece conclusivamente demonstrado que a tortura não constitui um meio para
descobrir a verdade, mas é um convite para que tanto o culpado quanto o inocente se declarem
culpados, o que constitui um meio para confundir a verdade, jamais para descobri-la” (Verri, p.
89). Devemos lembrar que revelar a verdade sempre ocasiona alguma punição e, então, muitas
vezes, obriga-se à sua ocultação: “Em suma, a verdade proscrita não pôde manifestar-se em lugar
algum; os ladridos da superstição e a insolente ignorância a obrigaram a permanecer oculta” (p.
75).
Por fim, ainda diria que, não resta dúvida, a leitura fluente desses autores, num
movimento contínuo, é algo muito impactante, chocante, contundente. É preciso ter o próprio
espírito fortalecido para tal empreitada, a fim de que, ao mesmo tempo, saiba-se tratar de
literatura, mas sem descuidar de sua historicidade e veracidade. É preciso atenção para não
desconsiderar as belas letras, porém mais ainda para não sucumbir à depressão ou à tentação da
fúria que resulte da leitura indignada: não se pode ler apenas com o estômago, ainda que se sinta
a acidez e os vários baques. A tríplice leitura resulta de um jogo complexo, movimentado, em
que o desgosto pode ameaçar, mas ao que não se deve ceder, pois seria a negação do próprio
intuito de quem os escreveu. Aliás, qualquer rancor que se sinta é como dizer que Verri, Hugo e
Kafka não tiveram êxito em suas obras, é sucumbir aos sentimentos combatidos pelos próprios
autores.
Talvez o melhor a ser feito pelo leitor, após essa terrível combinação literária, fosse
escrever e relatar seus próprios sentimentos – promover sua catarse, liberar qualquer espírito
sombrio, como um sinal de que a luta está tendo resultado. Porque, o melhor remédio contra o
arbítrio continua sendo a escrita, e isso pela simples razão de que as belas letras combatem toda
162
forma de obscurantismo. Neste caso, os três, em comum, denunciaram as sombras que encobrem
nossa menoridade emocional, racional, humana, pessoal – denunciaram o anoitecer da razão. Daí
a dificuldade de que nossos sentimentos, após a leitura, possam (devam) provocar indignação na
alma, mas sem que a isso se siga alguma forma de ira, de desespero ou de desconsolo. Penso que
a exata medida entre os extremos será a verdade...e o que é que eles buscavam senão a verdade?
Nos três, também equipara-se a liberdade à vida, não ao direito à vida como se tem
habitualmente, mas à própria vida, essa do dia-a-dia (não como recurso literário, estilístico,
conceitual), mas sim a vida em carne e osso, com seu fluxo constante e intenso de energia vital
que nos põe de pé. Trata-se, portanto, da superação de qualquer nível de formalidade no tocante
à dignidade da vida – é a literatura engajada ao espírito público, pois o Estado de Direito deve ter
belas letras. Contudo, para dirimir divergências, a estrutura social seria dividida em classes
sociais e isto aumentaria a capacidade controlativa do Estado.
163
A DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO
na configuração do Estado Moderno
Na passagem da centralização do Poder Político para a fase de expansão do poder
econômico, colonialismo, tanto o direito quanto o Estado passaram a receber incrementos em sua
finalidade. Já havia ocorrido a acumulação primitiva136, em que Estado e direito serviram à
expropriação do camponês, do colono, do servo e se iniciava o momento em que o capital
precisava de oxigênio para garantir sua projeção e hegemonia na Europa. A conversão da
economia em força centrífuga garantiria que os Estados olhassem para além-mar, mas,
internamente, o antigo servo se converteria em trabalhador urbano, servindo da primeira mão de
obra do capitalismo nascente. O adensamento cultural, neste caso em especial, teria um
desdobramento jurídico.
Letramento Jurídico no Renascimento
Ao mesmo tempo em que o Estado Moderno vinha tecendo sua centralização, as forças
econômicas procuravam respirar além-mar com a expansão ultramarina (força centrífuga,
expansiva, do Capitalismo Mercantil). O enriquecimento interno seria essencial ao
desdobramento da miscelânea de poderes na unidade do Estado-Nação e isto se faria com base
na acumulação primitiva: primeiramente pela obrigação imposta pelas leis de cercamento (ou
cerceamento); externamente pelo estabelecimento de rotas de navegação e pela descoberta, e
sucessiva colonização de novos continentes: a aculturação levaria ao assenhoramento. O
exército permanente e a burocracia de caráter contínuo garantiriam a administração
financeira do Estado. Esta articulação, sob a análise materialista do período de fortalecimento
do Estado Moderno resultaria em conclusões diversas (e adversas para determinadas classes
sociais envolvidas):
O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica
da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de
consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o
desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a
consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que,
inversamente, determina a sua consciência (Marx, 2003, p. 05).
136
Curioso lembrar que romancistas vitorianos já retomavam a cultura popular como forma de crítica à realidade
social e econômica que se avolumava na cumulação primitiva do capital europeu. Aí nasceria o mito de Fausto e o
direito ao capital. Marlowe (1564-1595), no seu Fausto, parte de um texto alemão precedente, de contos e fábulas
sobre adeptos de seitas ocultas. Surge, portanto, no imaginário da Idade Média inglesa e em meio à acumulação
primitiva que reforçaria as despensas do Renascimento e do capitalismo originário. Foi um dos maiores dramaturgos
sob o reinado de Elizabeth I. O contexto da peça recai sobre o diabólico pacto de sangue com o capital (retomado
por Balzac e Goethe). Em um suposto retrato de Marlowe, quando estaria com 21 anos, lê-se uma instigante
inscrição, um tanto profética: “O que me alimenta, me destrói”. O pecado do capital é a condição humana que se põe
na acumulação primitiva, às vésperas do Estado Moderno: “Se negamos ter pecado, a nós próprios nos enganamos e
nenhuma verdade existe em nós” (Marlowe, 2006, p. 39). O estado do capital vai macular a alma de fausto: “Que
mundo inteiro de prazer e lucro, de grão poder, onipotência e honra, ‘Stá prometido ao estudioso artífice!”
(Marlowe, 2006, p. 40). Depois de receber os dois anjos, Bom e Mau, Fausto os desafia a trazer o capital para
contratar mercenários: “Espíritos trarão quanto eu deseje? [...] Direi que à Índia voem pelo ouro [...] Contar
segredos de estrangeiros reis [...] Fundos terei para recrutar soldados” (Marlowe, 2006, p. 41). A Razão de Estado
não conhece a moral da nacionalidade.
164
O Letramento Jurídico que se construiria no Estado Moderno deveria reconhecer o poder
central e suas características: relação de sujeição de caráter unitário; ordem jurídica única; poder
estatal centralizado. A mudança na supremacia papal tem o ponto culminante na outorga da bula
Unam sanctam, de Bonifácio VIII, em 1302. Esta reforma trouxe como consequência a
emancipação política quase definitiva do poder político em relação à Igreja. Neste momento
histórico, Dante Alighieri (2006, pp. 35-36) escrevia sua Monarquia e ali já principiava a razão
como mote renascentista.
A razão se aplicaria à política, como forma extrema de organização, controle do poder
centralizado. No século XIV, as corporações estamentais converteram-se em grupos
internacionais (do clero, dos Cavaleiros e dos burgueses), rompendo-se as amarras políticas
territoriais. A expressão Estado se converteu em unidades de poderes contínuos e organizados,
com apenas um exército permanente, uma hierarquia de funcionários, uma única ordem jurídica
unitária, impondo aos súditos o dever geral de obediência. A consequência imediata da
concentração dos instrumentos de mando e de corpos militares, burocráticos, políticos e
econômicos é a formação de uma unidade de ação política (fenômeno que surge no norte da
Itália); surgindo assim o monismo de poder, relativamente estático, diferencia-se de modo
característico do Estado da Idade Moderna. O instrumento mais eficaz à independência e à
unidade do poder central foi a hierarquia das autoridades137.
O Renascimento operou-se por uma centralização de poder (e expansão econômica) a
partir da Itália, e aí se pode falar, então, de Estado Moderno. No início da Idade Moderna, o
Estado teve que se encarregar de tarefas que antes cabiam à família, à Igreja ou às instituições
locais. A necessidade de um poder maior exigia novas técnicas de adaptação à modernidade.
Eram matérias e técnicas relacionadas à comunicação de modo geral (a partir de Gutemberg, no
século XV) ou, mais especificamente, à administração da Justiça e à cultura nacional. Um
Estado que não se adaptasse às revolucionárias inovações tecnológicas, estaria condenado à
decadência. As técnicas, especialmente com o refinamento da burocracia, trouxeram a
unificação de procedimentos técnicos (também culturais) porque o Estado passava a alcançar
uniformemente a todos os seus cidadãos (erga omnes).
Com isto, estaria ordenada a hierarquia de modo regular, segundo competências
administrativas delimitadas, com funcionários especializados, mas ainda nomeados por um
superior, sendo economicamente dependentes: a meritocracia não estava neste palco. Entretanto,
esses funcionários deveriam voltar-se de modo contínuo à preocupação central com o público,
cooperando desta forma com a formação consciente da unidade nacional. Também graças à
hierarquização vertical e horizontal do serviço público, a organização pode defender-se por
todo o território: abarcando seus habitantes num só poder e domínio regular (universalizante,
generalizante, coercitivo e fortalecido pela exterioridade), com outros ritos sócio-políticos,
com certa previsibilidade e de consequências mais presumíveis, planejando (com estratégia e
táticas apuradas) e planificando ações relevantes e/ou essenciais à edificação do Estado-Nação.
O Estado-Nação só seria independente, militar e politicamente se fosse capaz de produzir com
autonomia uma unidade jurídica universalizante. O passado recente estamental havia
137
Na base de um Estado Racional que vinha nascendo, também já apontava no horizonte, a soberania. Mas, a
soberania, desde o início, viria atormentada de paradoxos: a atração de forças antagônicas (centrípeta e centrífuga) e
a presença/exigência natural de um mínimo de autonomia: “Um dos paradoxos da política consiste em que tem de
ter soberania, porém, por sua vez, essa soberania tem que estar sujeita à crítica e à apelação intelectual e moral [...]
Depende da prudência dos estadistas evitar situações em que os cidadãos tenham que eleger entre obedecer a Deus
ou aos homens, preferir a morte ou a perda da liberdade, converter a traição em heroísmo patriótico, confundindo a
prioridade de seus valores” (Merrian, 1986, p. 111 – grifos nossos).
165
demonstrado uma extraordinária debilidade e desagregação jurídica, com a grave consequência
de acarretar uma, igualmente, grave e insuportável insegurança jurídica.
Por outro lado, sob o Estado-Nação, a colaboração da burocracia do serviço público,
segundo o princípio da divisão do trabalho social138 e da especialização de tarefas, elevaria os
níveis de eficácia e de eficiência. Este seria um dos últimos constructos de ação técnica e
política do Estado-Nação e já suportada por uma ordenação e ordem jurídica racional e
programada. Portanto, já estamos bem mais próximos da modernidade e, com o que, ainda
mudaria a natureza jurídica do chamado ordenamento jurídico moderno. Esta série de
mudanças seria reforma ou revolução?
Neste instante, o direito passaria a responder plenamente ao desenvolvimento do capital,
sendo reflexo da divisão social do trabalho. Com empréstimo da análise da sociologia clássica,
percebe-se que o Estado construiu uma legalidade adaptada à divisão social de classes. Esta base
legal, por sua vez, teria um substrato ético.
A ética protestante do trabalho, portanto, assentava-se em dois pilares: a) como
ideologia influenciava o proletariado nascente, para que trabalhasse com afinco e nobreza (o
trabalho como atividade-fim, como valor quanto a fins); b) como idolatria vestiria os desejos
dos capitalistas para investir e fazer crescer, como provedores que guardariam de forma ascética
o produto do trabalho alheio e, o principal, sem que isto se confundisse com a usura. À Igreja
Católica caberia o voto de pobreza, pois aqui o lucro atrairia investimentos na produção, mais
postos de trabalho, prosperidade social e isso, é óbvio, não poderia ser pecado venial. A
acumulação de capitais passaria a ser a tônica, pois, daria glórias às obras do Senhor: o trabalho
dignificava, tanto quanto o empregador-acumulador seria doravante o provedor de todos139. A
superioridade moral da vida vinha atrelada, portanto, à capacidade de se sustentar com os
salários (que vem de sal, do suor do próprio rosto) resultantes do próprio esforço e sendo
auferido, é claro, pela capacidade individual de (in)sucesso140.
Da divisão social que serve ao Estado Cientificista
O aprimoramento da crescente divisão social do trabalho decorre da racionalização do
processo de produção. Em suma, é o capitalismo dependente da divisão social do trabalho, como
sua fonte de energia e impulsão, isto é, sem divisão social do trabalho de pouco adiantariam os
esforços intelectuais e ideológicos propostos ao Estado Cientificista. Para Émile Durkheim, a
modernidade representa a fase mais desenvolvida da divisão social do trabalho em que se
articulam, ajustando-se às necessidades diversas da produção industrial, o trabalho manual e o
intelectual, na forma da função homogeneizadora e da função diferenciadora. O papel do Estado
seria, portanto, o de regular os contratos estabelecidos e garantir seu cumprimento.
Para Durkheim, a competição capitalista não é o elemento central da
ordem industrial emergente, e algumas das características sobre as quais
138
Ou seria mais acertado dizer-se divisão social do trabalho?
Uma visão romanceada desse processo benemérito que está por trás do empreendedor pode ser vista no livro Os
Miseráveis, de Victor Hugo, na personagem de Jean Valjan.
140
Este seria o claro recado do liberalismo clássico, no famoso §27 do Segundo Tratado sobre o Governo Civil:
“Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele
tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo
que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade [...] Ao remover este objeto do estado comum em que a
natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens [...]
Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito
ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em
qualidade” (Locke, 1994, p. 98).
139
166
Marx pusera grande ênfase, ele via como marginais e transitórias. O
caráter de rápida transformação da vida social moderna não deriva
essencialmente do capitalismo, mas do impulso energizante de uma
complexa divisão de trabalho, aproveitando a produção para as
necessidades humanas através da exploração industrial da natureza.
Vivemos numa ordem que não é capitalista, mas industrial (Giddens, 1991,
p. 20).
Também inspirado no liberalismo (princípio da liberdade “Minha liberdade começa onde
termina a sua”), Durkheim irá associar liberdade a um conjunto de regras. Para ser mais preciso,
mais moderno, poder-se-ia dizer: “só se é livre no direito”. É interessante notar que, tal qual
Marx, Durkheim falará de uma autoridade moral superior da coletividade: “De fato, uma regra
não é apenas uma maneira habitual de agir; é, antes de mais nada, uma maneira de agir
obrigatória, isto é, que escapa ,em certa medida, do arbítrio individual [...] pois a única
personalidade moral que está acima das personalidades particulares é a formada pela
coletividade” (Durkheim,1999, p. X).
Esta coletividade, sob o capitalismo e a modernidade, deveria imprimir coesão e
regularidade (“solidariedade orgânica”). Para Durkheim, a divisão do trabalho é evolutiva
(desenvolve-se a solidariedade moderna), quando para Marx é opressiva e alienante. De toda
forma, para ambos, a grande indústria é o polo dessa forma de definir a modernidade.
Por sua vez, a grande indústria surgiria como parte dos conflitos da “sociedade moderna”
que se abria a partir da Idade Média. Como nos indica Durkheim, no período da Idade Média, o
direito ao trabalho era resguardado um tanto quanto diferente do próprio curso do capitalismo
moderno: “Assim, os patrões eram proibidos de frustra-lo de seu direito ao trabalho”, fazendo-se
assistir por seus vizinhos ou mesmo por suas esposas” (Durkheim, 1999, p. XX). É óbvio que
Durkheim via o direito ao trabalho, mais não percebia a luta de classes em torno da espoliação do
trabalho.
Outro dado interessante na modernidade de Durkheim era o papel destacado às
corporações profissionais, como mediadoras da relação social e, neste sentido, é fácil perceber
que a modernidade demora muito a recuperar a ideia de “probidade profissional” (basicamente,
no século XIX). O direito administrativo Francês é um marco. Entretanto, para Durkheim, as
corporações na Idade Média já anunciaram a chegada da Burguesia ou terceiro estado: De fato,
durante muito tempo Burguês e “gente de ofício eram uma só coisa” (Durkheim, 1999, p.
XXVIII).
Também irá dizer que, na Alemanha, Burguês e citadino eram sinônimos. O direito
urbano era o direito do lucro: “Por isso as palavras forenses ou mercatores serviam para designar
indiferentemente os habitantes das cidades, e o jus civile ou direito urbano é frequentemente
chamado de jus fori ou direito do mercado” (Durkheim, 1999, p. XXVIII). No fundo, para
Durkheim, a modernidade que saia dessa relação com as corporações, soava-lhe, como só
poderia ser, corporativa (Durkheim, 1999, p. XX). Mas, para Durkheim, corporação e grande
indústria estão em litígio no início, pois a primeira ainda primava pela reserva de mercado.
Contudo, depois em pleno curso capitalista (mesmo antes da Revolução Francesa), as
corporações já partiram para a dimensão territorial, com alcance Nacional — é preciso lembrar
que, por força da força da laicização, já se formara o Estado-Nação, como matriz do próprio
Estado Moderno.
O Estado é capaz de regular a luta de classes?
167
O Estado Moderno, sob esta perspectiva, nasceu colecionando os conflitos e a luta
política entre as classes fundamentais (burguesia e proletariado). Refletindo o século XIX – mas
que vale para fases iniciais – Durkheim designou de direito contratual, o direito que deveria reger
a divisão social do trabalho:
...é fácil determinar qual é o papel do direito restitutivo a que essa
solidariedade corresponde: é o conjunto dos direitos reais. Ora, da própria
definição que dele foi dada, resulta que o direito de propriedade é seu
tipo mais perfeito [...] A relação entre a divisão do trabalho e o direito
contratual não é menos acentuada. De fato, o contrato é, por excelência, a
expressão jurídica da cooperação [...] Ora, essa reciprocidade só é
possível onde há cooperação, e esta, por sua vez, não existe sem a divisão
do trabalho (Durkheim, 1999, pp. 92-100 – grifos nossos).
Durkheim refere-se a Descartes: “A filosofia cartesiana impõe-se como a nova filosofia,
inaugurando o pensamento moderno” (Rosenfield, 2005, p. 16). Porém, se esta dúvida não é de
ordem moral, é porque também não se aplica às raízes, vale dizer, não se questiona nem mesmo a
modernidade que lhe deu forma, nem o capitalismo que lhe deu a forja: “Essa dúvida, aliás, não é
perigosa, pois não tem por objeto a realidade moral, que não está em questão, mas sim a
explicação que uma reflexão incompetente e mal informada proporciona desta” (Durkheim,
1999, XLIX). Em seguida, irá declarar-se amplamente racionalista quanto ao “moderno método
da investigação científica”: “Para submeter à ciência uma ordem de fatos, não basta observa-los
com cuidado, descrevê-los, classificá-los; mas, o que é muito mais difícil, é preciso, além disso,
segundo o método de Descartes, encontrar o meio pelo qual são científicos, isto, é descobrir
neles algum elemento objetivo que comporte uma determinação exata e, se possível, a medida.
Nós nos esforçamos por satisfazer a essa condição de toda ciência” (Durkheim, 1999, p. XLIX).
Diferentemente de Marx, para Durkheim, a divisão do trabalho social (sob o capital) é
indubitável, um caminho natural, necessário, sem volta. A divisão do trabalho é uma lei e o
próprio desenvolvimento social se incumbirá de fazer-se cumpri-la. As especializações
profissionais seriam mero resultado desse processo (Durkheim, 1999, p. 02).
Neste sentido, Weber também havia diagnosticado que os intelectuais já não têm mais
total controle sobre suas bibliotecas — criticando a análise de Marx acerca da “divisão do
trabalho social”. Durkheim também não vê a divisão do trabalho no aspecto estritamente
econômico, mas como se fora realmente o curso natural da vida ou a necessidade da imposição
de um método científico: positivismo. Mas como fundamentação desse mesmo método, no
início, valem todos os argumentos possíveis, inclui-se certo biologismo: “...a lei da divisão do
trabalho se aplica tanto aos organismos como às sociedades; pode-se inclusive dizer que um
organismo ocupa uma posição tanto mais elevada na escala animal quanto mais as suas funções
forem especializadas...um fenômeno de biologia geral” (Durkheim, 1999, p. 03). De qualquer
modo, a divisão do trabalho é o mote do capitalismo e da sociedade moderna — apenas “um
fenômeno de biologia geral”. Durkheim também será um confesso admirador da delimitação das
áreas do saber, a estrita especialização: “O homem de bem de outrora já não é, para nós, senão
um diletante, e recusamos ao diletantismo todo e qualquer valor moral; vimos, antes, a perfeição
no homem competente que procura, não ser completo, mas produzir, que tem uma tarefa
delimitada e que a ela se dedica, que faz seu serviço, traça seu caminho” (Durkheim, 1999, p.
05). A superioridade do Estado Moderno seria atestada por sua capacidade jurídica.
168
ESTADO ORGÂNICO
Para que a coerção seja reconhecida como legítima, para que produza efeitos jurídicos e
políticos, enfim, para que possa tão-somente ser delimitada (e resguardada) pela norma jurídica,
a coerção precisa ser aceita como direito.
Também por isso se confunde o exercício do monopólio jurídico da coerção como sendo
a própria finalidade estatal – e não como meio de organização e de controle social. Esta confusão
ainda leva ao pensamento de que o Estado tem força ilimitada.
Na verdade, a soberania jurídica indica, exatamente, que o Estado sofre inúmeras
restrições. O direito inclui costumes, ideal de igualdade, isonomia e desejo de participação e isto
já inibe o poder como retrocesso moral.
A opinião pública internacional pode obrigar à tomada de restrições e pressionar por
embargos globais, como na África do Sul e no México, dos zapatistas. Além disso, há limitações
internas ao próprio poder (entre os grupos ou elites que disputam o controle do poder).
Neste sentido, diz-se que o Estado é um sistema de ordens. Isto quer dizer que
cooperação e coerção são necessárias e equivalentes. O Estado é assim uma forma particular de
associação e que representa – como principal expoente – as tradições da comunidade.
O Estado é responsável por uma lealdade mística do grupo; propicia canais de
comunicação em que se exprimem suas lideranças e acentua a formação de uma mística em torno
do poder público (o que coincide com o direito como ficção).
Desenha-se o Estado como associação. Desse modo, fala-se de uma similaridade genérica
de elementos de formação, e ainda que a qualidade de permanência da estrutura política seja
questionada diante da solvência de tantos Estados. O que permanece e o que se modifica?
O Estado – definido como Leviatã – que se confunde com a sociedade em sentido global,
no entanto, tem as instituições sociais como suas criaturas. Ao se entender que o Estado é a
sociedade em unidade, subentende-se que detenha o controle da retidão moral.
Também por isso, não se confunde de forma nenhuma com a instituição governo, pois
este é instituto ou ação de governar apenas as instituições operativas das funções de gestão e da
capacidade de execução das políticas públicas (nisto coincide com o Poder Executivo).
Outra diferença está no fato de que a defesa da soberania, por exemplo, compete aos três
poderes. Não é à toa que as condições mais críticas para o Poder Político, como no caso da
declaração de guerra ou Estado de Sítio, necessitam da chancela do Parlamento e do Judiciário.
Por sua vez, a fim de se afirmar o Estado para além do governo, é fácil notar que a
própria ideia que congrega a supremacia moral do Estado o detecta como ente absoluto, à
perfeição, como Estado Ideal, uma vez que obriga todos ao dever de obediência.
Este Estado Ideal é destacado por sua capacidade de ação em compasso de heteronomia
(ou supremacia moral). O Estado Ideal, contudo, é o Estado real em que se operacionaliza a força
moral e a coerção física. O ideal se transforma em realidade fática.
O Estado Ideal, produtor de leis adequadas, lógicas, em que prospera o direito como
instrumento da Justiça, é o Estado real que temos pela frente todos os dias, com acertos e erros.
Talvez com mais erros do que acertos, mas é a realidade que serve de parâmetro ao Ideal.
Na definição de Burke – como associação em permanência –, “o Estado é uma sociedade
entre vivos, mortos e dos que estão por nascer” (Greaves, 1969). Esta é a força na crença de que
sozinhos, armados apenas de autonomia, logo pereceremos. Esta escolha nem está à disposição.
169
O Bem Comum ou a racionalidade política – são tratados como sinônimos, pois só loucos
criariam algo para lhes prejudicar – fundamentam-se nas tradições que devem se corporificar na
teleologia (futuro = expectativa, confiança, credibilidade).
Na conclusão de Hegel: poder é direito. O maior problema, neste caso, é limitar a
autoridade de direito à autoridade de fato; confunde-se obediência com legitimidade. Na verdade,
o bem social é tão indeterminável quanto existem vontades e consciências individuais.
De Kant a Hegel, o Estado como Poder Político é uma criação natural da vida social e
deriva do caráter do povo. Portanto, não pode ser modelado por qualquer vontade individual.
Esta tradição iluminista responde ao individualismo (renascentista).
Este tipo de Estado – como organismo social – ocorre em sociedades que desconhecem o
autogoverno e que tem seu poder central muito forte e centralizado autoritariamente, a exemplo
da Alemanha do século XIX.
O Homem nasce membro do Estado (é fruto da exterioridade e anterioridade do fato
social, como em Durkheim). Assim, a maior limitação desta perspectiva é desconsiderar a
imigração como fenômeno político. Se fosse tão orgânico, não haveria naturalização.
O que se vê, historicamente, é que o Estado muda profundamente de natureza e de caráter
político; muda sua Constituição, seu território, seu nome. O que também permite indagar “Que
mudança metafísica corresponde à metamorfose política?”.
Por isso, o Estado deve ser tratado como um sistema de cooperação entre homens
que querem/precisam realizar determinados fins. Como organismo vivo, o Estado constitui
certos padrões no querer e na forma de organizar as ações com vistas aos objetivos.
Mesmo que seja para garantir o predomínio ou enlevo do capital e/ou de elites políticas,
em certo contexto ou na infraestrutura social global, como organismo, o Estado precisa se
colocar de acordo com as subjetividades sociais, ou perderá toda sua legitimidade.
Ainda que seja para o exercício da dominação (ou opressão de classe, em certos casos), o
Estado não pode se deslocar do rol que referencia os objetivos gerais. Sem um mínimo de
quórum social, a cooperação entre homens para agir em concerto se converte em sedição.
O Estado, para se manter como referência e instrumento principal de articulação entre o
geral e o particular, entre a norma e a autonomia individual, precisa controlar o livre arbítrio, a
livre escolha pela nova nacionalidade ou terá de enfrentar a sedição.
Neste caso, a imigração se converte na controversa realidade política do direito de asilo.
E aí, não só o julgamento político interno será desfavorável (chegando-se à guerra civil), como o
julgamento moral da opinião pública internacional será implacável.
No final do século XX, os países do Leste Europeu em desconstituição política, como na
dramática ex-Iugoslávia, são exemplos notáveis. No século XXI, os frágeis Estados do Ocidente
também são exemplares, mas a Síria, em guerra civil e a Turquia, a um passo da distensão
política, são casos reveladores.
170
PERSONALIDADE JURÍDICA DO ESTADO
Personalidade jurídica é a capacidade/faculdade jurídica que atribui um
determinado poder a fim de que se faça algo. Mas, para compreendermos adequadamente o
conceito, inicialmente, é preciso afirmar que, por personalidade jurídica do Estado subentende-se
uma espécie de ficção jurídica. É a faculdade ou capacidade de agir do Estado para se impor
como Poder Público. Na verdade, uma corruptela do direito privado. Segundo De Plácido e
Silva, por personalidade entende-se a: “Denominação propriamente dada à personalidade que se
atribui ou se assegura às pessoas jurídicas, em virtude do que se investem de uma qualidade de
pessoa, que as torna suscetíveis de direitos e obrigações e com direito a uma existência própria,
protegida pela lei” (2002, p. 606 – grifos nossos).
 do latim: personalitas, de persona (compete a determinada pessoa).
(em oposição ou mera distinção a qualquer outra pessoa).
 personalidade civil: advém do nascimento com vida (nascituro).
 capacidade de agir – possibilidade de agir.
A personalidade jurídica decorre de determinadas capacidades, ou mais especificamente
da faculdade de agir. Faculdade: “Derivado do latim facultas, de facul ou facilis (fácil), possui,
ampla e genericamente, o significado do poder que se tem para que se faça alguma coisa, seja
de ordem física ou de ordem moral [...] A faculdade jurídica, pois, exprime o próprio exercício
do direito subjetivo da pessoa, exteriorizado pela facultas agendi (faculdade de agir)” (De
Plácido e Silva, 2002, p. 344 – grifos nossos). Portanto, decorre de uma capacidade bem
específica:
 Facultas agendi: “a faculdade de agir”141.
 capacidade de exercício dos direitos subjetivos.
A ação do cidadão requer a retração do Estado. O principal objetivo interposto pelo
Estado de Direito, mediante a teoria da personalidade jurídica, é não-violar o direito por ele
criado ou admitido, como é o caso dos direitos humanos recepcionados. Em seguida, para
sacramentar a necessidade de que o Estado deveria agir em certa sintonia, formulou-se a
obrigação de servir à sociedade.
Assim, o Estado toma de empréstimo uma construção lógica do Direito Civil e deve
refletir a noção de personalidade jurídica, como complexo de faculdades e direitos que o homem
possui em potencial. Qualidades atribuídas à pessoa e que a tornam apta para adquirir direitos e
contrair obrigações. Contudo, cabe esclarecer que a facultas agendi, essa faculdade jurídica, não
é sinônimo da obrigação de cumprir o que quer que tenha sido estabelecido. A obrigação é,
antes, o resultado do exercício dessa mesma faculdade: a condição de estabelecer vínculos, de
forma livre e autônoma. A facultas agendi do cidadão decorre, enfim, da obrigação de o Estado
não-violar os mesmos direitos que o cidadão requer mediante sua faculdade de agir.
O conflito social, na ordem jurídica, não só é regular, como é necessário. Com o que se
vê que Estado e poder constituem-se em realidade quando se efetiva a unidade política que
respeita a pluralidade de interesses, aspirações, ideologias e visões de mundo: uma fusão política
temporária, nunca definitiva, porque sempre é baseada na pluralidade. O que ainda deve oxigenar
as visões mais estáticas acerca do positivismo jurídico que enfeixa a tese da personalidade
141
Constitui opção, inclusive, do direito de não-fazer, de abster-se de agir. Diferentemente da omissão, pois aqui há
a presunção da obrigatoriedade do dever de agir.
171
jurídica do Estado. Trata-se de uma unidade de índole funcional e não um critério ou meio de
unificação total.
Como mecanismo de regulação econômica, o Estado tem ainda o caráter de assistência
vital, intervindo e regulando as mais notáveis condições da vida comum do homem médio. O que
o caracteriza como o ideal Estado Democrático: como sujeito uniforme de domínio racional,
capaz de recepcionar os conflitos e atuar no interior da auto-organização da sociedade industrial.
Esta condição em que se posiciona o Estado na era industrial revela que não há paridade entre a
vontade estatal e a formação da unidade política, exatamente porque outros sujeitos coletivos de
direito atuam mais firmemente no contexto global. Ao passo que, em regra, “Unidade Política,
Estado, Coletividade” tendem a formar o mesmo eixo de coexistência. Enfim, esta conexão entre
direito e política será determinada pela ordem jurídica necessária, determinada e não-discricional
(Hesse, 1998).
Teorias da Pessoa Jurídica
Para Savigny, um publicista alemão, do século XIX, a personalidade jurídica nada mais é
do que uma ficção jurídica que migra do direito privado ao direito público: a) Estado reconhece
os sujeitos de direitos, nas pessoas capazes; b) comunidades jurídicas (direitos + obrigações) são
pessoas jurídicas. Para o jurista alemão, os sujeitos de direitos são indivíduos conscientes; o
Estado, por sua vez, constitui-se de sujeitos de direitos artificiais (o Estado é um agrupamento de
interesse coletivo que supera a limitação histórica do jus puniendi).
Em outra concepção, na escola realista, não há necessidade de uma criação ficcional,
uma vez que o Estado precisa, obrigatoriamente, ser definido juridicamente. Em todo caso,
decorrem algumas consequências da aceitação da ideia de que o Estado tem personalidade
jurídica: a) a possibilidade de tratamento jurídico dos interesses coletivos; b) impedimento à ação
arbitrária do Estado, por meio de mecanismos jurídicos; c) o reconhecimento de que o Estado
tem direitos e obrigações; e d) o estabelecimento de limites jurídicos claros e precisos na atuação
do Estado com o particular (Júnior, 2001).
Neste caso, o reconhecimento de que o Estado tem direitos e obrigações é uma
obviedade. Pois, quando não há esse “reconhecimento” o Estado é autoritário/totalitário e nesse
contexto só há deveres – sobretudo o dever de obediência. Sem direito, sob o império dos
deveres autocráticos, não há faculdade de agir, nem em concerto nem isoladamente. No Estado
de Direito, em que há democracia, destaca-se em primeiro lugar a noção do próprio direito (a
afirmação do direito e a segurança do indivíduo resultam da transferência de potência que
provém do direito). Assim, principalmente, há o direito de recusar o dever injusto ou se afirma o
dever de garantir a operacionalidade desse mesmo direito (agora um direito público, “de alcance
e significados coletivos” – republicano, portanto - e não restrito aos limites dos direitos
individuais).
Algumas causas da Personalidade Jurídica do Estado
A primeira constatação é de que o Estado possa se constituir em pessoa jurídica e, assim,
a escola do contratualismo assegura que o povo é uma unidade. Para o positivismo de Kelsen, a
norma é a única realidade jurídica. Dessa qualidade, o Estado transfere a personalidade (comum
aos indivíduos) ao Estado. Portanto, o Estado é um produto de convenção coletiva – por
imposição da lei. De certo modo, o Estado cria a norma capaz de conferir personalidade ao
próprio Estado (se o Estado cria a norma que o sustenta, acaba por criar a si mesmo).
Na perspectiva do organicismo biológico, o Estado é tido como exemplo a ser seguido,
como se fora uma pessoa grande. Na onda do organicismo ético de Jellinek, o Estado condensa a
capacidade criada pela vontade da ordem jurídica. Parte-se da premissa de que os cidadãos têm
172
capacidade jurídica, como pessoa física, e por isso são sujeitos de direitos. Considera-se que o
direito estabelece relações entre os indivíduos e que, se o Estado é uma unidade coletiva (síntese
da consciência coletiva), logo, o Estado tem personalidade jurídica.
Em sentido contrário, sobretudo no século XIX, alegava-se que o Estado pouco diferia do
governo. Inclusive na crítica marxista (Lênin, 1986), diz-se que só há vontade sobre o Estado,
uma vez que predomina a personalidade dos governantes (portadores da subjetividade estatal). A
relação de dominação se complementaria com a (ilusão da) cooperação de serviços públicos.
Diz-se que o Estado se impõe a todos, mas torna-se apenas de quase todos. O que difere,
evidentemente, de tornar-se de todos. Neste sentido, a personalidade jurídica é abstrata: de
quase todos. E, sendo de quase todos, pode negativamente representar a vontade jurídica de
alguns: sejam grupos ou classes. Neste sentido, a visão jurídica do Estado corresponde à visão
política dos governantes. Por fim, perscrutando a teoria da Finalidade do Estado, subentende-se
que o povo elabora os estatutos do Estado, atribuindo-lhe a titularidade da soberania
(personalidade jurídica) e preserva o fundamento democrático.
Poder Político e Reserva de Justiça
Sob a égide do Estado Democrático de Direito Social, a relação político-jurídica do
Estado Democrático de Direito é bem expressa por meio de uma Constituição escrita, rígida e
dirigente e, por isso, é óbvio que devem ser leis democráticas e, portanto, justas. Trata-se enfim,
de regime garantístico142 de direitos, liberdades e garantias (Estado Constitucional em defesa da
democracia e do direito de auto organização143). Para Canotilho (s/d), controlar o poder político
sob o império das leis significa “o reconhecimento de que o Estado tem direitos e obrigações144”.
Em resumo, o Estado detém capacidade jurídica concreta porque reúne as condições
(capacidade) de propiciar alguma unidade institucional. Na verdade, hoje, “o reconhecimento de
que o Estado tem direitos e obrigações” é uma obviedade. Pois, quando não há esse
“reconhecimento”, o Estado é autoritário/totalitário e nesse contexto só há deveres – sobretudo o
dever de obediência. No Estado de Direito em que há democracia, destaca-se em primeiro lugar a
noção do próprio direito (a afirmação do Direito e a segurança do indivíduo resultam da
transferência de potência que provém do Direito). Assim, principalmente, há o direito (dever) de
recusar a obrigação injusta ou se afirma o dever de garantir a operacionalidade do Direito Justo.
No conceito de Estado de não-Direito, é curioso e revelador pensar que a negação esteja
presa ao centro, ao interior do próprio conceito, como se fosse possível pensar em um adireito,
como não-direito, negando-se a possibilidade de que possa haver direito. A personalidade
jurídica presente no Estado de não-direito, portanto, é algo bizarro, absolutamente estranha à
lógica em que o direito pressupõe a faculdade de agir. Como pode-se agir se não há direito e
garantia para tanto?
A personalidade jurídica democrática
O expresso sentido de autocontrole do poder, a fim de contornar a sedução das forças
autocráticas, foi ratificado pela Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José
da Costa Rica (1969) e aprovada pelo Brasil, especialmente a partir de seu artigo 27, ao apontar
142
Como regime de garantia e suporte dos direitos, mas agora entendido como corolário de instrumentais técnicos
(direito de petição, por exemplo) e políticos (democracia).
143
Uma Constituição promulgada solenemente e que constitui uma reserva de justiça (reserva de valor
democrático, republicano) quanto aos direitos, deveres, obrigações e garantias de preservação do próprio interesse
público.
144
Teoricamente: “Sujeição do poder a princípios e regras jurídicas” (Canotilho, s/d, p. 231). Na ordem prática da
política, o regime democrático é obstáculo eficiente ao fascismo, da mesma forma como práticas autocráticas não
beneficiam ou instigam a democracia e seus procedimentos.
173
para as condições ou casos válidos, no tocante à SUSPENSÃO DE GARANTIAS,
INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO:
1.
Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a
independência ou segurança do Estado-parte, este poderá adotar as disposições que, na medida e
pelo tempo estritamente limitados às exigências da situação, suspendam as obrigações contraídas
em virtude desta Convenção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais
obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação alguma fundada
em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social.
2.
A disposição precedente não autoriza a suspensão dos direitos determinados nos
seguintes artigos: 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5
(direito à integridade pessoal), 6 (proibição da escravidão e da servidão), 9 (princípio da
legalidade e da retroatividade), 12 (liberdade de consciência e religião), 17 (proteção da família),
18 (direito ao nome), 19 (direitos da criança), 20 (direito à nacionalidade) e 23 (direitos
políticos), nem das garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos.
3.
Todo Estado-parte no presente Pacto que fizer uso do direito de suspensão deverá
comunicar imediatamente aos outros Estados-partes na presente Convenção, por intermédio do
Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos, as disposições cuja aplicação haja
suspendido, os motivos determinantes da suspensão e a data em que haja dado por terminada tal
suspensão (grifos nossos).
Controle social da personalidade jurídica
Os Direitos Humanos são universais porque são tidos por naturais, naturalmente
pertencentes ao ser humano. Na ótica do direito, constituem parte da pessoa humana antes
mesmo dela ter sua personalidade jurídica assegurada ou decretada pelo poder do Estado em que
tenha nascido. Em suma, costuma-se declarar para efeito de determinação jurídica e divulgação
popular que pertencem a todos nós independentemente de credo, raça, sexo, idade, poder
aquisitivo, ideologia política, consciência moral etc.
Nesse contexto, e contando a própria estrutura institucional do Estado de Direito, é
correto afirmar que o povo não tem personalidade jurídica145, mas, nem por isso - transferindo
a soberania popular ao Estado -, o povo se desvincula do interesse público, uma vez que afirma
sua vontade política coletiva por meio da constituição de um governo soberano e responsável
juridicamente pela administração dos negócios e dos interesses públicos.
Revela-se a própria essência e ânsia da constitucionalização da política, e que será melhor
realizada, tecnicamente falando, tanto quanto esse controle de poder for capaz de operar a
institucionalização do próprio poder constituinte – o que deverá delimitar a violência em torno da
Constituição da República e Democrática. Em suma, opera-se a passagem da luta política
visceral (radical, literal, carnal) à fase da luta institucional (operativa, organizativa, instrumental)
em torno do Estado já democratizado, coletivizado, desprivatizado.
Na prática, isso implica dizer que uma consciência jurídica difundida, reconhecida e, ao
menos relativamente previsível (como consciência jurídica globalmente respeitada, requerida e
reiterada), não pode – por força da lógica – gerar uma estrutura política ou um poder político
autocrático e que a torne indefesa diante de alguns interesses políticos inconfessos146. Assim:
145
Ainda que possa agir por meio de inúmeros agentes e sujeitos coletivos de direito.
Teoricamente: “Sujeição do poder a princípios e regras jurídicas” (Canotilho, s/d, p. 231). Na ordem prática da
política, o regime democrático é obstáculo eficiente ao fascismo, da mesma forma como práticas autocráticas não
beneficiam ou instigam a democracia e seus procedimentos.
146
174
A articulação das dimensões do Estado de direito e do Estado
democrático no moderno Estado Constitucional Democrático de
Direito permite-nos concluir que, no fundo, a proclamada tensão entre
“constitucionalistas” e “democratas”, entre Estado de direito e
democracia, é um dos “mitos” do pensamento político moderno. Saber se
o “governo das leis” é melhor do que o “governo dos homens” e viceversa é, pois, uma questão mal posta: o governo dos homens é sempre um
governo sob leis e por meio das leis. É, basicamente, um governo de
homens segundo a lei constitucional, ela própria imperativamente
informada pelos princípios jurídicos radicados na consciência jurídica
geral147 (Canotilho, s/d, p. 231).
Desse modo, quando, na história da Humanidade, a complexidade social era superior à
capacidade reguladora do Estado, ele próprio, o Estado, viu-se obrigado a refundir as instituições
do poder e assim criou-se a República, a Democracia, o Estado de Direito e a Federação. Este
conjunto complexo, por sua vez, alimenta a soberania jurídica, a ordem jurídica democrática e
condicionam indelevelmente a personalidade jurídica do Estado Democrático. O Estado é o
Poder Político por excelência, mas no Brasil apresenta vícios exclusivos.
147
Donde se percebe que as teorias ficcionista e realista da personalidade jurídica do Estado formam um todo, mas
que são analisadas separadamente para se garantir maior qualidade pedagógica.
175
O PODER POLÍTICO
no país, corrompe-se até o conceito
O Poder Político é o poder de comando, de governo; é o poder como formulação,
exercício e controle da soberania política. Quando olhamos a realidade brasileira e da América
Latina, entretanto, toda a construção epistemológica – de entendimento e suporte racional das
principais instituições políticas – parece ruir sem lógica. Toda a orquestração inteligente,
arquitetada com coerência e sintonia, que deveria surgir da análise dos instrumentos que
suportam o Poder Político se desmorona. No lugar do entendimento surge uma tremenda
confusão e desordem institucional, pois aqui teoria política na prática é outra. Na vida comum do
homem médio, os instrumentos do poder não servem ao povo, mas sim ao próprio poder. E é isto
que confunde até os iniciados na análise do poder, do direito e da teoria política.
Talvez realmente seja uma missão impossível redigir um manual de Ciência Política e de
Teorias do Estado que o povo consiga acompanhar. A dificuldade, todavia, não está na
linguagem, mas sim na capacidade do autor explicar que nem tudo que ele lê, de fato ocorre e, ao
contrário, que nem tudo que ocorre, deveria ser como é.
Costuma-se dizer que, se na prática a teoria é outra, é porque a teoria está errada, ou seja,
uma explicação que não encontra suporte na realidade dos fatos parece inconclusa, desprovida de
realismo, longe da verdade dos fatos. Em política, sobretudo nas instituições políticas brasileiras
(e na América Latina), comumente se vê o oposto: a realidade é outra porque até mesmo os
conceitos foram deturpados e o que se critica como política, em suma, é a corrupção da política.
Neste caso, portanto, a teoria está correta, apenas estamos analisando pelo lado do
avesso, incapacitados de compreender pela inversão provocada no fenômeno. Infelizmente,
habituou-se tomar a corrupção institucional e conceitual como se fora o recurso normal,
validável e ainda se quer adequar a teoria política a este efeito perverso da realidade política
nacional. O inescrupuloso, inclusive, apoiaria o raciocínio da corrupção da política, pois ainda
teria o referendo de uma teoria política do cinismo.
Poder Político
Originariamente, a Antropologia Política nos mostra que o Poder Político poderia ser de
um grupo oude uma assembleia, a exemplo dos conselhos de anciãos que orientam as ações de
seus representantes, desde as gens, ou entre os índios, até as modernas assembleias legislativas.
Outra estrutura do Poder Político é o encargo do soberano, mais comum ante a longeva história
do abuso de poder, está no uso que fazia o rei ("o Estado sou eu" – lembremos de Luís XIV, na
França), ou então o Estado atual, em que se dividem as funções de gestão política. O Poder
Político organizado na forma estatal, portanto, seria uma variável dentre várias.
Para nós que vivemos na América Latina, resta a dúvida de que só o Executivo parece ser
um poder de fato e talvez não passe mesmo de nomenclatura, pois soberano é quem manda, ou
seja, quem destina o dinheiro, as forças políticas e os recursos da máquina administrativa. Talvez
o Estado Capitalista seja mesmo apenas um engodo e esta divisão de poderes não passe de
fantasia ou ideologia liberal. Contudo, temos de diferenciar nossas premissas – se faremos uma
análise como se vê desde Montesquieu e então temos três poderes que se completam mais ou
menos harmonicamente. Pensemos em Estados definidos, organizados, como Suíça, Áustria,
Alemanha e no papel desempenhado pelo Tribunal Constitucional.
Neste caso, a soberania é uma só, é una, e será o poder repartido apenas como forma de
controle interno exercido sobre o próprio poder. A soberania é prevista nas constituições
modernas como pertencentes ao povo de cada país, sendo manifesta por meio da democracia
176
direta, a exemplo dos Cantões suíços, ou em determinados momentos, nos plebiscitos e
referendos, como visto no Brasil, ou então por meio de uma assembleia legislativa. Isto constitui
a soberania popular. Em todo caso, a divisão dos poderes nada mais fez do que avançar a
chamada soberania legislativa (Parlamento) como forma de se restringir, punir os possíveis
abusos de poder cometidos pelo Executivo. A divisão de poderes, entretanto, serve para inibir,
impedir que também o Legislativo cometa desvios (forjando emendas constitucionais contra o
Judiciário, numa espécie de ditadura legislativa) ou, então, para que o Judiciário não se arvore
em legislador (uma das críticas assumidas por causa da crescente judicialização da política, no
exemplo do mensalão – mas, onde está a ilegalidade do julgamento do mensalão?).
Historicamente, a ação do Parlamento, contra um Executivo muito forte (dotado de toda a
soberania), coincide com o surgimento do Estado Liberal – Locke já falava de uma divisão de
poderes, em que o Judiciário decorreria do Legislativo. Mas antes dele, desde o Rei João Sem
Terra ou com a lei de Habeas corpus, e os demais direitos civis, o próprio direito foi utilizado
como instrumento de garantia da divisão dos poderes e como forma eficaz de seu controle. Desse
modo, há uma divisão de poder sim, porque o Executivo desde então não pode tudo ou contra
todos, precisa barganhar suas ações com os outros poderes e ainda zelar pela legitimidade e
legalidade de suas ações. Mas, também se trata de uma divisão de funções – e não propriamente
de poder – se pensarmos que o poder de mando, nas democracias liberais, pertence ao povo (com
os efeitos da soberania popular).
A soberania depositada no Poder Político, juridicamente, pode ser vista na extensão do
poder erga omnes acumulado na lei. É o direito que exerce a “coerção contra todos” e não o
Poder Político. Neste sentido, a soberania pertence ao direito e não ao Executivo ou ao
Legislativo. E nem mesmo pertence a soberania ao Judiciário, que tem apenas a função de
intérprete legal. O Poder Político pode até ser a fonte do direito, porém, a partir da fase de
superação do modelo de Estado Absolutista (em que a soberania é do Soberano: rei ou órgão de
poder) e desde que haja autocontrole do poder, não pode o Estado criar o antidireito em nome de
sua soberania legislativa. Esta é uma das restrições ao Poder Político enfeixado no soberano que
vem sendo articulada desde o século XIX: não pode o Estado criar um antidireito que desobrigue
o poder e permita-lhe agir como de interesse de poucos; não pode o Estado formular uma
desculpa legal que torne sinônimos o governo (como função transitória de poder) e o próprio
Estado (como entidade meio de estabilidade política e institucional). Uma das garantias do
Estado de Direito é exatamente a divisão dos poderes e a garantia de que nenhum dos três
poderes utilizar-se-á do Estado contra a sociedade e seus cidadãos.
Brasil e América Latina
No Brasil, pela série histórica de desvios, de desmandos e de abusos de fato e de poder,
do Executivo sobre os demais poderes, às vezes até duvidamos de que existam outros poderes (o
AI-5 da ditadura militar, de 1967, de triste lembrança, é um exemplo marcante, assim como o
Estado Novo, de Getúlio Vargas). Ou, recentemente, com os exemplos da PEC 37, que limita a
capacidade investigativa do Ministério Público, beneficiando a corrupção política e de outra
quesubmete decisões do Supremo Tribunal Federal para análise final e possível alteração pelo
Congresso Nacional (PEC 33). A soberana decisão do STF perderia validade jurídica em todo
seu conteúdo; em razão de interesses políticos partidários ou de grupos de pressão, seria criado
um direito que se adéqüe aos interesses do governo de plantão e não ao Estado e ao povo. Este é
um exemplo de ditadura legislativa e infelizmente foi dado pelo Brasil – o nazismo, ao criar a
Lei de Plenos Poderes, encontraria no Legislativo brasileiro uma ressonância em estrutura legal.
177
Na Argentina, parte do conselho superior da magistratura será eleita – em atitude
eleitoreira, populista – e também terá efeitos semelhantes ao que se ameaça criar no Brasil. No
mesmo contexto dos abusos de poder ou golpes contra a ordem jurídica democrática, a
Constituição do Paraguai prevê o impeachment, mas não exatamente em toque de caixa. No dia
22 de junho de 2012 o presidente Fernando Lugo foi destituído do cargo, condenado por “mau
desempenho”, em processo de impeachment que durou 36 horas. A Bolívia, desde sua
independência em 1825, recebeu cerca de 150 tentativas de golpes de Estado ou tomadas de
poder não constitucionais, como se tivesse um presidente eleito a cada 14 meses. Em 1979, o
país teve três presidentes. Entre 1978 e 1982 foram nove dirigentes.
Isto ocorre porque a democracia sempre foi tímida na América Latina, seja em governos
de direita ou de esquerda; a politização das lides políticas nunca foi regida pacificamente, porque
o Executivo sempre decretou variados tipos de golpes contras as instituições democráticas e
populares.
Porém, quando mais uma vez olha-se para a história política da Humanidade vemos
outras construções que não são apenas simbólicas, mas realmente recursais da divisão de
poderes. Veja-se a força instituída ao Legislativo nos países parlamentaristas (repartindo-se o
Executivo em dois: com Chefe de Estado e Chefe de Governo, separadamente) ou a força
decisiva/descritiva do poder, assumida pela Suprema Corte nos EUA. Mesmo as leis de exceção,
aprovadas após o 11/09, tiveram de ser chanceladas, interpretadas pelo Judiciário. A Suprema
Corte não analisou, por exemplo, se a quinta emenda terá sua ação restringida por tais leis. E
enquanto isso não ocorre as leis de exceção merecem debate jurídico, lá e aqui. Estas são formas
efetivas, reais de se ver/pensar a soberania popular que se equilibra na divisão dos poderes, ora
se fortalecendo o Parlamento, ora vertendo-se sob a ação independente do Poder Judiciário.
Desse modo, se a teoria pode e deve ser melhorada é porque não está errada, isto é, a
teoria política prevê a perfectibidade, um ajustamento com o melhor dever-ser do poder e não é
uma mera ideologia (um falseamento, encobrimento dos sentidos que impede a apreensão mais
adequada do fenômeno social); ocorre, então, que a prática deve ser convulsionada por uma
análise crítica. Na prática, a teoria está ajustada a uma realidade funcional e não exatamente
preparada para atuar na sua deformação; em tese, a prática corrompeu todos os laços com o
intuito organizativo da sociedade (como poder social) e do Estado (como Poder Político).
Por fim, pode-se dizer que a soberania é única, com o Estado regulado pelo direito;
Estado este que não pode atuar contra as normas de contenção do próprio poder (criando o
antidireito para anular as regras democrática de autocontrole do Poder Político) e nem contra a
sociedade e seus cidadãos. Para facilitar essa tarefa, há a divisão de poderes, a fim de que a
soberania não converta as prerrogativas do Executivo – o poder que manipula concretamente os
recursos políticos e econômicos – em abuso de poder. Na teoria política correta temos uma
soberania e vários poderes; mas, na prática corrupta, viceja um poder que se traveste de
soberano. O Acerto de contas realizado contra as antigas tradições, acabou por opor o Estado de
Cortes ao Estado legal, como foi apelidado pelos franceses revolucionários.
178
A DIVISÃO ESPACIAL DO PODER POLÍTICO
O tema não traz uma implicação imediata à realidade brasileira, ainda que a Federação
esteja estampada no nome do país: República Federativa do Brasil. Em todo caso, como convite,
após a leitura, é preciso aplicar este conhecimento ao nosso contexto político-administrativo. É
importante lembrar que o Poder Político implica em toda forma coletiva de organização do
poder, como forma e mecanismo de organização e de controle social, a exemplo dos colegiados
tribais (de anciãos) e o próprio Estado soberano. Também precisamos distinguir entre formas de
geração dos Estados (desmembramento, anexação pacífica ou violenta), tipologia estatal (Estado
Laico, Estado Moderno) e a classificação e distribuição espacial do poder.
Uma vez que já se apresentou conceitualmente a melhor observação acerca do Poder
Político, como organização política com vistas a exercer o controle e o exercício pleno
(monopólio) do poder, quer seja em grupos de lideranças ou colegiados (grupos tribais), quer
seja sob o Estado soberano, resta sabermos o que se entende por classificação espacial do Poder
Político. A primeira distinção a se fazer sobre a disposição espacial do Poder Político unificado é
entre Estado Unitário (simples) e Estado Composto (Estados Unidos148).
I. UNITÁRIO: há absoluta centralização do exercício do Poder Político; concentra-se a
tomada de decisões; há descentralização administrativa em baixo relevo, mas não se
desdobra a capacidade organizativa do próprio poder. Pois, a autoridade administrativa
decorre do poder central. Neste sentido, o Poder Legislativo é exclusivo. Como
exemplos, temos o Uruguai, o Chile, o Paraguai e Portugal.
II. COMPOSTO: trata-se da união ou associação de vários Estados ou entes políticoadministrativos sob a direção de um único poder diretivo. Entretanto, há uma variedade
de formas assumidas:
1. UNIÃO PESSOAL: conservando sua soberania, dois ou mais Estados unem-se sob
um único governo. Simon Bolívar foi presidente simultaneamente da Bolívia, da
Colômbia e do Peru. No século XX, como reflexo do Imperialismo, há a União
Congo-Bélgica149 (1885-1908). Ex-Zaire, atual República Democrática do Congo150
(imerso no trauma da guerra civil entre Tutsis e Hutus), o assim chamado CongoBelga esteve sob a possessão pessoal de Leopoldo II da Bélgica, até 1908.
2. UNIÃO REAL: dois ou mais Estados guardam autonomia e soberania internas, mas
se unem para ter uma representação diplomática unificada, comum, a exemplo do
ocorrido entre Áustria e Hungria (1867-1919).
148
Não é à toa que se denominou de Estados Unidos da América.
A Inglaterra não foi atacada pela Índia, nem a Bélgica pelo Congo, nem a Itália pela Etiópia, nem a França pela
Argélia (que a França também não reconhecia como uma “colônia”) (Chomsky, 2002, pp. 11-12).
150
Em confronto que teve início em 1988, foram mortos mais de 4 milhões de pessoas e ainda sofrem outros 3,5
milhões de refugiados. Oficialmente, a guerra terminou em 2003, mas o país ainda é palco de conflitos e tem uma
crise humanitária das piores do mundo. Apesar de ser rico em diamantes, ouro e outros minerais preciosos, milhões
de congoleses sofrem de doenças, fome e de uma terrível perseguição a partir do Leste do país (Kivu do Norte e
Kivu do Sul). Em 1994, a vizinha Ruanda também conheceu o genocídio: mais de 1 milhão de tutsis foram
assassinados pelos hutus. Depois, em 1996, o governo tutsi foi restabelecido e invadiu o Congo para atacar os hutus
e isto (re)iniciou a guerra, envolvendo Ruanda, Angola, Uganda, Zimbábue e Namíbia. No Congo, mas pode-se
dizer que em muitas outras partes do mundo, as táticas empregadas esgotam-se no uso/abusivo dos meios de
exceção. O aliciamento de crianças com engodos e justificativas que mais parecem ameaças também são “armas
ideológicas” usadas pela Razão de Estado.
149
179
3. UNIÃO INCORPORADA: há fusão de dois ou mais Estados visando a formação de
um único ente político, como na união entre Escócia, Inglaterra e Irlanda para se obter
o Reino Unido da Grã-Bretanha (Araújo, 2006).
4. CONFEDERAÇÃO: associação de vários Estados com soberania no plano interno e
autonomia no externo (é claro que é vedada qualquer aliança com inimigos de algum
dos entes políticos participantes). Unem-se em pactos para certos fins, como os EUA
(1781-1787) e a Confederação Helvética (1815-1848). Dentre as confederações, vale
destacar em mais detalhes, outras FORMAS ATÍPICAS DE ESTADO:
 Confederação Helvética: A Suíça (capital Berna) é um Estado Federal desde
1848. Oficialmente Confederação Suíça, trata-se de uma república federal de 26
Estados (Cantões). Ao longo do século XIX a ConFederação Helvética progrediu
para se tornar uma democracia. Semelhante a outras “federações”, a Suíça tem
duas câmaras parlamentares (Senado e Câmara Federal), um governo federal e um
tribunal de Justiça Suprema. A hierarquida do Poder Político é assim observada:
em primeiro lugar está o sistema Federal; em segundo, o cantonal; em terceiro, o
sistema comunal. O Governo Central vela pelas relações políticas com o exterior,
a economia nacional, as Forças Armadas. O poder cantonal tem aparato policial,
sistema de saúde e educação independentes. Já o Governo é exercido por um
Conselho Federal (poder executivo, eleito indiretamente) pelo Conselho Nacional
e Conselho dos Estados (Parlamento Suíço). A Carta Federal de 1291 é o
documento de fundação da ConFederação Helvética.
 Confederação americana: este período da história dos EUA (1783-1815)
caracteriza-se pela independência e união das treze colônias para formar um
Estado livre. A derrota foi reconhecida pelo Reino Unido em 1783. Até 1787,
quando redigiram a Constituição americana, formavam um ConFederação (à
espera de se assumirem efetivamente como Estado). A Carta de Direitos foi
aprovada em seguida e George Washington foi o primeiro presidente, em 1789.
 Confederação hispânica: Na Carta da Jamaica de 1815, Simón Bolívar lançou
as bases para se formar uma conFederação hispano-americana. No romance O
General em seu Labirinto – retrato melancólico de alguém açodado pelo desterro
–, G. G. Márquez traçou os últimos tempos de Bolívar.
 Os Emirados Árabes Unidos (EAU) formam uma conFederação de Estados de
grande autonomia, situada no sudeste da Península Arábica (Golfo Pérsico).
Chamados emirados, os sete Estados que a compõem, são: Abu Dhabi, Dubai,
Sharjah, Ajman, Umm al-Quwain, Ras al-Khaimah e Fujairah. A capital é Abu
Dhabi (segunda maior cidade). Lutando contra o domínio português e britânico,
em 1853, os Xeques da Trégua assinaram um tratado de "trégua marítima
perpétua", com o Reino Unido. Em 1930 iniciaram as primeiras investigações
petrolíferas e em 1962 foi exportado o primeiro carregamento direito de Abu
Dhabi. Os sete Xeques da Trégua, junto ao Bahrain e ao Qatar, tentaram formar
uma união de emirados árabes. Nesta fase, Bahrain e Qatar tornaram-se
independentes, respectivamente, em agosto e setembro de 1971. Até então, os sete
estados ainda não haviam declarado suas independências, mas firmaram sua
soberania juntos. Abu Dhabi e Dubai formaram uma união provisória, entre os
dois emirados, prepararam uma Constituição, e em seguida chamaram os
180

mandantes dos outros cinco emirados para firmarem um acordo geral. Nesta data,
os emirados independentes passariam a Emirados Árabes Unidos.
Reino Unido: O Reino Unida da Grã-Bretanha é um país insular soberano. Tratase de uma união política formada de quatro nações: Escócia, Inglaterra, Irlanda do
Norte e País de Gales.
181
5. FEDERAÇÃO: é uma união ou associação de Estados que mantém unificada a
soberania no plano externo, mas com doses diferenciadas de autonomia interna
(comparativamente, entre Brasil e EUA, por exemplo). De todo modo, os Estadosmembros têm seus poderes, direitos e deveres prescritos e delimitados por uma
Constituição Federal. Entre 1871-1918 alguns Estados do Império Alemão (Baviera,
Saxe) possuíam o direito de legação ativo e passivo151. Até hoje os Cantões suíços
podem estabelecer relações comerciais com outros Estados soberanos.
151
O direito de legação ativo implica em enviar representante diplomático, bem como o direito de legação passivo
(recebê-lo), é exercido por meio de observadores autônomos do Estado soberano.
182
6. O ESTADO FEDERAL ainda pode ser formado por agregação (EUA, Alemanha,
Suíça) e desagregação ou segregação, quando um Estado Unitário resolve se
descentralizar (ex-Iugoslávia). Sua estrutura de disposição administrativa pode ser 1)
Dual, com a separação rígida de competências (no sistema bicameral, por exemplo)
ou 2) Corporativo, em que há competência comum ou concorrente. Nesta forma
especial de disposição espacial do Poder Político, ainda há referência quanto a ser 1.
Simétrico (EUA), com homogeneidade cultural e desenvolvimento equilibrado entre
seus entes ou 2. Assimétrico (Suíça/Canadá), apontando-se grande diversidade de
língua e cultura. Há uma estrutura orgânica do poder (os Estados membros
aparecem como um simples reflexo do poder central) e de integração (pela
integração nacional prevalece a preponderância do Governo Central). No caso
brasileiro há que se ressaltar o fator de equilibração do poder (em harmonia, os
entes federados devem reforçar as instituições). A tríplice estrutura do Estado
brasileiro (União/Estados/Municípios) facilita a administração de território tão vasto.
O Estado Federal brasileiro ainda prevê: a) Descentralização Políticoadministrativa: A CF/88 prevê núcleos de poder político, concedendo autonomia
para os referidos entes políticos; b) Repartição de competências: garantindo a
autonomia entre os Estados-membros (entes federados), assegura-se o equilíbrio da
Federação; c) Constituição rígida como base jurídica: a Constituição rígida de 1988
garantiu a distribuição de competências entre os entes autônomos. Por fim, há que se
destacar que inexiste o direito de secessão. Trata-se do princípio da
indissolubilidade do vínculo federativo (art. 34, I da CF/88), além de que o art. 60 §
4º, I determina que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir a forma federativa de Estado (por ser cláusula pétrea). A soberania do Estado
Federal prevê que os Estados-membros, a partir do momento em que passam a
ingressar na Federação, perdem a soberania, passando a ser autônomos. Em nosso
caso, determinou o constituinte que a forma estatal fosse de uma República
Federativa do Brasil. O Estado soberano é o que mantém autonomia interna, com
independência e soberania externa.
183
7. ATIPICIDADES. Estado semi-soberano: aquele que se submete ao império do
direito internacional e tem parte de sua soberania restringida. Estados de autonomia
reduzida: têm reduzida capacidade gestão (capitis deminutio), em razão de outra
nação protetora impor suas restrições. Estados vassalos: com certa autonomia
interna, dependem externamente do Estado monopolizador. Têm restrição de direitos
internos (força armada, moeda própria); acompanha o Estado suserano nas guerras; os
tratados ratificados devem ser aceitos pelo vassalo; paga-se um tributo periódico ao
suserano. No Império Otomano foram vassalos a Albânia, a Sérvia e Montenegro.
Protetorado: normalmente, provém de um tratado, mas em 1914, entre Egito e GrãBretanha, não havia documento formal. O Estado protetor tem a obrigação de
proteger o outro e exerce o direito de dirigir o protegido no plano externo. Há três
tipos básicos: a) Internacional: protetor e protegido apresentam o mesmo padrão
cultural e civilizatório; b) Colonial: o protegido se submete ao plano diretor e à
cultura dominante do protetor; c) Semiprotetorado (Estados- clientes): Estados da
América Central cederam direitos e poderes aos EUA para a gestão econômica e o
devido pagamento de dívidas externas. Alguns desses efeitos, na orientação política e
gestão ideológica, foram destacados pela URSS, no pós-Segunda Guerra Mundial.
Estados associados: apesar de libertos da autoridade de sua metrópole de origem,
mantem-se atados sob certa coordenação em assuntos de soberania e autonomia,
como Porto Rico (EUA) e Ilhas Cook (Nova Zelândia). Desde 1993, Andorra é país
membro da ONU, mas sofre das querelas de poder francês. Mini-Estados ou Estado
exíguo: Vaticano, Mônaco, San Marino não têm direitos plenos – como o direito de
guerrear –, mas asseguraram o ius tractuum.
184
SEPARAÇÃO DE PODERES E SISTEMA DE GOVERNO
Na construção da modernidade política, uma das principais preocupações era com a
divisão ou separação dos poderes, uma vez que, após a necessária unificação do Poder Político
sob o Estado Moderno, passou a ser evidente o desafio em se assegurar que o soberano passasse,
gradativamente, a ser o povo e não mais o príncipe, especialmente os tiranos.
Uma forma eficaz de implementar o poder seria dividi-lo – como sabemos desde a
famosa tripartição dos poderes perpetrada por Montesquieu e adotada pela imensa maioria dos
Estados –, mas, outros recursos foram edificados para fortalecer o Parlamento, e assim originouse os sistemas de governo: Presidencialismo – Parlamentarismo. Se o objetivo era fortalecer o
Parlamento, retirando ou controlando o Poder Político, então, por óbvio, formou-se primeiro o
parlamentarismo como forma de governo.
I - SISTEMA DE GOVERNO (Parlamentarismo e Presidencialismo)
O Parlamentarismo, como medida em que se assegurava a retirada de poder do monarca,
teve um grande impulso com a mobilização de nobres e burgueses (iniciantes) na Inglaterra do
século XIII (1215) e que resultou na famosa Carta Magna152 (o Bill of Rights foi uma declaração
de direitos assinada pelo Rei João Sem Terra153). Em outra fase, nos séculos XVI-XVII, também
na Inglaterra de John Locke, foi assegurado o Habeas corpus (1679)154. Com o pensamento
liberal de Locke há um avanço inestimável na defesa de prerrogativas que asseguram a liberdade
negativa155; por outro lado, o direito resta obstruído pelo capital 156, como se fora conquista única
da burguesia nascente:
Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas
mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em
que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso
acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade [...]
Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou,
através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum
dos outros homens [...] Sendo este trabalho uma propriedade
inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o
direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta
é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade (Locke, 1994, p.
98).
Portanto, temos aqui os fundamentos da propriedade como direito natural.
Estado de Direito Absenteísta
152
“39 – Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou
exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão
mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país” (Miranda, 1990, p.15).
153
Considera-se como Liberdade Negativa porque se retira direitos do Estado (absoluto) e há repasse gradual de
margens de liberdade aos cidadãos. De certo modo, o Estado tem menos liberdade de ação que resulte em restrição
de liberdades dos cidadãos.
154
Ao que se seguiu A Declaração de Direitos de 1689, já com previsão expressa ao Parlamento: “8º Que as eleições
dos membros do Parlamento devem ser livres” (Miranda, 1990, p. 24). Depois, O Ato de Estabelecimento (1701)
fortaleceu a Câmara dos Comuns: “6º Que não poderá ser membro da Câmara dos Comuns qualquer pessoa que
tiver um cargo ou provento dependente do rei ou que receber qualquer pensão da Coroa” (Miranda, 1990, p. 27).
155
Locke designará papel estratégico ao Legislativo, como contenção ao Poder Político: “A lei civil, sendo o ato de
todo o corpo político, tem a primazia sobre cada parte do mesmo corpo” (Locke, 1994, p. 138).
156
Martinez, 2012.
185
Chamaremos de Estado de Direito Absenteísta aquela fase em que o Estado Liberal agia
apenas em defesa das prerrogativas e garantias do direito de propriedade. Trata-se de uma forma
de Estado que se abstém quando lhe convém, ou seja, abstém-se quase sempre, agindo
prioritariamente quando se torna necessário defender a propriedade e os seus proprietários. E em
que contexto se colocou este Estado de Direito Absenteísta?
Nas condições em que se dava a primeira fase do liberalismo clássico, coincidente com as
revoluções industriais e com a base jurídica delimitada pelos direitos individuais, ao movimento
liberal não cabia outra solução, senão tentar controlar o poder estatal que sobreveio do Estado
Moderno: “Convinha rodear-lhe de freios constitucionais a ação invasora, duramente sentida
durante as épocas do absolutismo, mitigando-se-lhe assim a força coercitiva. Far-se-ia isso
mediante a clássica divisão de poderes [...] aproxima-se o Estado Jurídico157 de Kant do
Estado Constitucional de Montesquieu” (Bonavides, 2003 p. 87 – grifos nossos). Há um forte
apelo por um Estado Absenteísta, que procure distensão, distanciamento ou pouca atividade
política:
De acordo com o sistema da liberdade natural, o poder do Estado fica
apenas com três funções para cumprir, aliás três obrigações, de maior
importância, mas simples e compreensíveis para o senso comum: em
primeiro lugar, a obrigação de proteger a nação contra atos de violência e
ataques de outras nações independentes; em segundo lugar, a obrigação
de salvaguardar, na medida do possível, todos os membros da própria
nação contra agressões ilegais dos seus concidadãos, ou seja, garantir
uma jurisdição imparcial; e em terceiro lugar, a obrigação de criar e
manter determinadas instituições públicas... (Zippelius, 1997, pp. 377).
O poder forte do Estado Moderno seria substituído por um poder fraco ou moderado no
Estado Liberal – o Poder Político, na Inglaterra de John Locke, nasceu controlado pelo
Legislativo158. De forma resumida, podemos caracterizar o Estado liberal a partir de três
elementos básicos:
a) individualismo: não se diz que “o indivíduo vive em sociedade159”, diz-se simplesmente
da importância do indivíduo como “célula mater” da sociedade capitalista.
(Demonstração clara disso é que, até hoje, o sujeito de direitos é associado ao indivíduo,
ao cidadão, à pessoa física, e apenas progressivamente é que se alarga o seu alcance para
as associações, os sindicatos, as cooperativas, como sujeito coletivo de direitos)160.
157
Em outro contexto, analisando a função essencial do Poder Judiciário como regulador dos mecanismos de justiça
formal e real, demos a esta fundamentação jurídica específica o codinome de Estado Jurídico. Bem diferente,
portanto, desse Estado-ideia, distante do mundo político, de que falava Kant.
158
É importante frisar que não se trata, sob nenhum aspecto, de limitação da soberania, como vemos na Constituição
francesa de 1791: “Artigo 1º A soberania é uma, indivisível, inalienável e imprescritível. Ela pertence à Nação;
nenhuma secção do povo, nenhum indivíduo pode atribuir a si próprio o seu exercício” (Miranda, 1990, p. 62).
159
Quanto tempo até que em Constituição tivéssemos a garantia de aspirar, juridicamente, por uma sociedade livre,
justa e solidária? Veja-se o Preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.
160
Veja-se o exemplo constitucional do mandado de segurança coletivo, em que se contemplam as coletividades, ter
sido implementado somente com a CF/88.
186
b) propriedade: como direito natural a salvo da interferência e até mesmo da positivação
do Estado, o direito à propriedade é um direito fundamental, incondicionado, ilimitado e
irrestrito em seu gozo – “o direito à propriedade é sagrado, condiciona a própria vida e a
liberdade do indivíduo proprietário”. (Só no ambiente progressista e transformador do
Estado Social é que se formulou o princípio da sujeição da propriedade privada,
afirmando-se que estão condicionadas todas as propriedades (urbanas ou rurais) à
verificação da função social. A validação do direito está associada à legitimidade social).
c) liberdade: o ideal do libertas quae sera tamem (a liberdade mesmo que tardia, à custa de
muita luta social e derramamento de sangue: como liberdade propositiva) acaba
resumido, limitado à liberdade negativa: não fazer o que a lei proíbe. Também a
liberdade mercantil, a liberdade para comerciar, será destacada: a liberdade consagradora
dos privilégios jurídicos dos proprietários, pois quem pode comprar (a burguesia)
condiciona a liberdade de quem só é capaz de vender (os trabalhadores)161.
Desse modo, o que se espera do Estado é que aja pouco, especialmente quanto a regular o
direito de propriedade. Haverá apelo por um tipo de Estado Liberal, absenteísta, mais isento em
termos de intervenção/regulação162, acionado somente para defender os privilégios do uso e gozo
do direito de propriedade.
Neste sentido apontava também um tratado de Wilhelm von Humboldt de
1792, com o título sugestivo “Ideias relativas a uma tentativa de
determinar os limites da ação do Estado” [...] “O Estado deve abster-se”,
exigia ele, “de todo o cuidado pela prosperidade positiva dos cidadãos e
não deve dar mais passo algum além dos que forem necessários para os
proteger contra si próprios e contra inimigos externos; não deve restringir
a liberdade deles para outra finalidade qualquer” (Zippelius, 1997, pp.
378).
Portanto, no contexto do Estado Liberal, devemos entender em primeiro lugar que se trata
de uma liberdade que adveio das chamadas revoluções liberais ou burguesas, e que o autor de
referência, como vimos, é o inglês John Locke. Neste contexto se define a liberdade como: “...
gozar de uma esfera de ação, mais ou menos ampla, não controlada pelos órgãos do poder estatal
[...] De fato, denomina-se ‘liberal’ aquele que persegue o fim de ampliar cada vez mais a esfera
das ações não-impedidas [...]” (Bobbio, 2000, p. 101). Neste sentido, fica fácil perceber que ao
indivíduo cabia ampliar os limites impostos pela liberdade negativa, restritiva do Estado:
“Donde ‘Estado Liberal’ é aquele no qual a ingerência do poder público é o mais restrita
possível” (Bobbio, 2000, p. 101).
No Estado Liberal, a liberdade é condição da igualdade formal ou legal, já sabemos, mas
é preciso relembrar que ambas são componentes fundamentais e elementares da democracia.
Sem sujeito de direitos não há liberdade e sem liberdade não há participação – por sua vez, sem
envolvimento e participação (auxiliando na formulação e aceitando as próprias regras) não há
autorização, expressão tácita, consentimento e, por fim, legitimidade do poder e do comando.
161
É óbvio que não pode haver igualdade entre quem compra e quem vende força de trabalho – esta é uma razão
lógica para que o Direito do Trabalho defenda, prioritariamente, o trabalhador, o hipossuficiente, diante do capital.
162
O neoliberalismo a partir dos anos 1970 nos trouxe um tipo de Estado Mínimo, mas que resultou catastrófico.
187
Seguindo Miranda, sem esta liberdade inerente ao sujeito de direitos, no Estado de Direito, o
poder é abusivo, arbitrário, autoritário, autocrático, aristocrático163:
As correntes filosóficas do contratualismo, do individualismo e do
iluminismo – de que são expoentes doutrinais Locke (Segundo Tratado
sobre o Governo), Monstesquieu (Espírito das Leis), Rousseau (Contrato
Social), Kant (além das obras filosóficas fundamentais, Paz Perpétua) – e
importantíssimos movimentos econômicos, sociais e políticos conduzem
ao Estado constitucional, representativo ou de Direito [...] O Estado
constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado liberal,
assente na ideia de liberdade e, em nome dela, empenhado em limitar o
poder político tanto internamente (pela sua divisão) como externamente
(pela redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade) (Miranda,
2002, pp. 45-47).
Ressalte-se ainda que, em virtude desse processo de maturação da ideia de liberdade
(agora em seu sentido propositivo, ampliado: minha liberdade vai até onde começa a sua), a
história do Estado Liberal deve ser vista como parte de um amplo e longo processo secular
transcorrido entre os séculos XVII e XIX, e que se processa só inicialmente com a Revolução
Inglesa (1689), Americana (1776) e Francesa (1789). No curso do próprio processo político,
digamos que vindo de Locke a Rousseau, é possível ver que o pensamento se encaminha da mera
liberdade de fazer e deixar passar (de comprar, possuir e vender como e quando se bem
entender) à liberdade de conotação especialmente política: a liberdade de associação política
para fazer política.
Tolerância ao capital e à liberdade religiosa
Esta articulação entre capital – como Poder Econômico hegemônico – e liberdade
religiosa (subtraindo-se, inicialmente, poder da Igreja Católica), por sua vez, pavimentou a
iniciativa política (seguida da segurança jurídica) necessária à sustentação do Estado Laico.
Acrescente-se também outra substancial diferença operada como conquista institucional:
a garantia constitucional de que a liberdade a partir de então seria assegurada pela Constituição.
Com força de lei, com possibilidade de opor-se sanção e coerção a fim de se ter seu cumprimento
integral, o direito à liberdade viria protegido pela garantia do Habeas corpus164. Mas, além da
liberdade, também a política seria alvo de regulamentação e, por isso, fala-se de Estado de
Direito Liberal:
O Estado abstração, o Estado isento de contingências históricas, na
sua conceituação pura e absoluta, o Estado processo especulativo e
dado apriorístico, exclusivamente racional, “fora de quaisquer
representações finalísticas de caráter empírico, e independente do
arbítrio humano [...] era apenas a expressão vitoriosa do
163
Não há nenhuma possibilidade do direito (isonomia – princípio da igualdade) se ainda tratamos de senhores e
servos – daí que estes devem ser libertos e emancipados. Também é neste sentido que a liberdade precede e
condiciona a igualdade. Portanto, a democracia supõe autonomia e autarquia: envolvimento direto na formulação
das regras e do poder.
164
Lembremo-nos de que a Declaração traz direitos e a Constituição os consubstancia, por intermédio (da
segurança) das garantias (constitucionais e institucionais), da definição das liberdades (liberdade negativa), do
cumprimento dos deveres ou obrigações (individuais, como o voto, ou coletivas, como a preservação do patrimônio
público). A Constituição iria implementar as prescrições das Declarações de Direitos, prestadas anteriormente.
188
individualismo de seu tempo, influindo na mente do filósofo e
pedindo-lhe a justificação teórica, por meios racionais, do Estado
liberal nascido da Revolução Francesa (Bonavides, 2003 p. 85 – grifos
nossos).
Carta Sobre a Tolerância é o nome de um livro de John Locke (1987): considerado o
principal pensador do liberalismo e do “individualismo possessivo”. É creditado a ele, por
exemplo, o desenvolvimento teórico que sustenta ainda hoje as garantias e os direitos
individuais, como visto no Habeas corpus (“tenhas o corpo livre”).
Nessa carta sobre a tolerância, Locke expõe e argumenta de maneira lógica a necessidade
da separação entre Igreja e Estado. E, uma vez exposta a argumentação que garante a separação
entre a “razão” que envolve as agências políticas e os “sentimentos” de foro íntimo que
alimentam a crença na transcendência, Locke define-se pela tolerância à diversidade de culto e
de práticas (“Não se deve proibir em religião o que é permitido na lei civil165”).
O que também acarretaria alguns princípios básicos da tolerância religiosa: solidariedade e
generosidade. Pois, se “a fé age pelo amor e não pela força, deve-se esperar que haja respeito
para que se seja respeitado. Ao que ainda se soma a caridade, mansidão e benevolência”. A
apatia, o desinteresse, como fomento do próprio fundamentalismo não combinam com Locke e
com os princípios do liberalismo, uma vez que a tolerância estará presente tanto na religião
quanto na educação:
[quem] se arroga o ofício de ensinar é obrigado a recordar os seus
dois deveres de paz e benevolência para com todos os homens; a
todos, quer estejam no erro ou na ortodoxia, sejam da sua opinião ou
deles se diferenciem pela política e pelos ritos, sejam particulares ou
governantes, se é que alguns deles se encontram na sua escola, a todos
deve exortar à caridade, à mansidão e à tolerância; devem apaziguar
e abrandar o seu ódio e o ardor da sua animosidade contra os
heterodoxos... (Locke, 1987, p. 100 – grifos nossos).
É claro que também poderão dizer que a prática da política difere da tolerância política e
religiosa. Na verdade, estão quase certos, porque encontra-se uma “tolerância geral das ações”.
Tudo foi feito de boa fé, afinal, generosidade e tolerância (com o erro, inclusive) são resultados
esperados da ação humana. Portanto, nessas bases da ordem jurídica e no espírito do homem
comum (cultura política) – além de meios de regulação do Poder Político –, encontra-se a
possibilidade fática de surgimento do Parlamentarismo, como fortalecimento do Poder
Legislativo.
1) Parlamentarismo
No parlamentarismo, como está posto na nomenclatura, o Poder Legislativo é mais
fortalecido, uma vez que o Chefe de Governo (como representante do Poder Executivo) é
escolhido entre o Poder Legislativo. Histórica e conceitualmente, o Parlamentarismo é uma
forma superior de organização da soberania popular, por derivar a atividade de governo
diretamente na vontade popular. Como vemos no pensamento liberal de origem, trata-se de
estabelecer o alcance e os limites do Poder Legislativo:
Primeiro: ele não é exercido e é impossível que seja exercido de maneira
absolutamente arbitrária sobre as vidas e sobre as fortunas das pessoas
165
Um sentido emprestado ao Princípio da Legalidade.
189
[...] Segundo: O Legislativo, ou autoridade suprema, não pode arrogar
para si um poder de governar por decretos arbitrários improvisados, mas
se limitar a dispensar a justiça e decidir os direitos do súdito através de
leis permanentes já promulgadas e juízes autorizados e conhecidos [...]
Terceiro: O poder supremo não pode tirar de nenhum homem qualquer
parte de sua propriedade sem seu próprio consentimento [...] Quarto: O
poder legislativo não pode transferir para quaisquer outras mãos o poder
de legislar; ele detém apenas um poder que o povo lhe delegou e não
pode transmiti-lo para outros (Locke, 1994, pp. 163-164-166-168).
No sentido mais amplo de autocontrole do Poder Político, se o Legislativo é erigido a fim
de se controlar a “capacidade de execução da política” (do monarca no passado, do Presidente,
no presidencialismo), então, é evidente que seriam estabelecidas obrigações do Poder legislativo:
Primeiro: Ele deve governar por meio de leis estabelecidas e
promulgadas, e se abster de modificá-las em casos particulares, a fim de
que haja uma única regra para ricos e pobres, para o favorito da corte e o
camponês que conduz o arado. Segundo: Estas leis só devem ter uma
finalidade: o bem do povo. Terceiro: O poder legislativo não deve impor
impostos sobre a propriedade do povo sem que este expresse seu
consentimento, individualmente ou através de seus representantes [...]
Quarto: O legislativo não deve nem pode transferir para outros o poder de
legislar, e nem também deve depositá-lo em outras mãos que não aquelas
a que o povo o confiou (Locke, 1994, p. 169).
Não adianta trocar um poder opressivo por outro, daí a necessidade de se
regulamentar/regular toda forma de poder. No entanto, para Locke, o Legislativo é um poder
superior porque deriva diretamente da soberania popular. O que revela uma hierarquia entre os
poderes:
Em uma sociedade política organizada, que se apresenta como um
conjunto independente e que age segundo sua própria natureza, ou seja,
que age para a preservação da comunidade, só pode existir um poder
supremo, que é o Legislativo, ao qual todos os outros estão e devem estar
subordinados; não obstante, como o legislativo é apenas um poder
fiduciário e se limita a certos fins determinados, permanece ainda no
povo um poder supremo para destituir ou alterar o Legislativo quando
considerar o ato legislativo contrário à confiança que nele depositou [...]
Deste modo, a comunidade permanece perpetuamente investida do poder
supremo de se salvaguardar contra as tentativas e as intenções de quem
quer que seja, mesmo aquelas de seus próprios legisladores, sempre que
eles forem tão tolos ou tão perversos para preparar e desenvolver projetos
contra as liberdades e as propriedades dos súditos (Locke, 1994, p. 173).
No parlamentarismo, a função executiva se fraciona em três órgãos distintos e
complementares: Chefe do Estado, Chefe do Governo e Gabinete. Durante as eleições, para obter
maioria e com isso reunir melhores condições de indicar o Chefe de Governo, os partidos
políticos já identificam e indicam ao eleitorado seu futuro primeiro-ministro (o líder e o
190
candidato, teoricamente, mais votado no partido). Os eleitores sabem que ao votar em um partido
estarão votando em seu primeiro-ministro, afinal, encerrado o período eleitoral, o Chefe de
Estado se vê obrigado a nomear o primeiro-ministro. Isso faz do parlamento a peça central do
governo, pois acaba dirigindo a política interna do país. O eleitor, portanto, sabe perfeitamente
que ao votar terá dupla responsabilidade, porque vota a fim de compor a atividade legislativa e
potencialmente no candidato que será indicado ao cargo mais importante de todo o Poder
Executivo.
Trata-se de um regime de governo muito mais prático do que teórico e muito mais
histórico (constructo, protótipo) do que um modelo (suposto, projetado). A representação
política, por ser ainda mais incisiva e presente, é menos virtual (potencial, hipotética) do que no
regime presidencial. O arete ou virtus é de cunho popular, pois – historicamente – o
legislativo conclama à participação. De modo sistemático, são algumas de suas características:
a) Distinção entre Chefe de Estado e Chefe de Governo
A Chefia de Estado normalmente é reservada a atividades diplomáticas, de representação
do Estado junto a outros Estados soberanos. Em regimes mistos será exercido pelo Presidente
eleito. Já o Poder Político, como capacidade administrativa do Estado, será representado pelo
Chefe de Governo e obedece a uma tripartição: Poder Executivo (1º Ministro auxiliado pelo
gabinete); Poder Legislativo (exercido pela Câmara dos Comuns e Câmara dos Lordes); o Poder
Judiciário (sendo que para Locke o Judiciário é uma extensão do Legislativo).
b) Chefia de Governo com responsabilidade política
O Sistema Parlamentarista apresenta dois chefes: um chefe de Estado (representado pelo
Monarca – ou Presidente eleito, em sistemas mistos – e tem função de presidir a nação) e um
Chefe de Governo (1º Ministro no exercício do Poder Executivo com o gabinete). Portanto, a
responsabilidade política é compartilhada.
c) Possibilidade de dissolução do Parlamento.
Ao contrário do presidente da República, que se vê no centro da crise política, sendo
incapaz de resolver o problema sem que se misture o cargo à pessoa, o 1º Ministro presta contas
de suas ações diretamente ao Parlamento, podendo perder o cargo, pois se a crise for mais grave
será julgado em processo de impeachment. Mas, com sua queda se desfaz rapidamente a crise
política e outro parlamentar será alçado à condição de Chefe de Governo.
d) O Poder Legislativo e o Executivo são interdependentes, o que torna menos evidente a
tripartição dos Poderes.
Uma vez que o Chefe de Estado (Primeiro-Ministro) é eleito entre os membros do
Parlamento, subentende-se que o Poder Executivo está submerso ao Legislativo, como se o real
poder fosse o Legislativo, reservando-se ao Executivo apenas funções administrativas ou
diplomáticas (representativas da Razão de Estado).
Base Histórica de fomento do Poder Legislativo
Séculos XIII – XIV - Assembleias políticas na Inglaterra.
 Fixação da Câmara dos Comuns
 manutenção (limitação) da Câmara dos Lordes
Século XVII
– Conselho de Gabinete
- conselheiro privado
- relações interiores
- deficiência da política do rei
Século XVIII
191
– destaque ministerial
- instituições do Primeiro Ministro
- fortalecimento da Câmara dos comuns (participação nas escolhas)
- Parlamento x ministros
- impeachment – instituto legal: penalização e destituição do poder166
- surgimento da responsabilidade política
- voto de desconfiança: deposição ministerial
- não há divisão clássica dos poderes
Funcionamento
- escolha do primeiro-ministro pelo partido que tenha maioria congressual
- pluripartidarismo dificulta essa definição
Chefe de Estado
- mera representação; posição secundária
- em crise, indica o primeiro-ministro
Chefe de Governo
- figura política central
- deriva do Legislativo, mas exerce o poder executivo
Dissolução do Parlamento
- maioria congressual pequena
- por solicitação do Chefe de Governo
 novas eleições
 risco para o primeiro-ministro que pode perder, completamente, o apoio da maioria no
Legislativo
2) Presidencialismo
O presidencialismo é uma das formas tradicionais da divisão de poderes que se obtêm
com o sistema de governo. Montesquieu refere-se, mais explicitamente, ao presidencialismo, ao
propor a tripartição dos poderes, uma vez que no Legislativo, o Poder Executivo é exercido pelo
Chefe de Governo indicado pelo Parlamento. Assim, inicialmente, inclusive para se fixar melhor
a repartição dos poderes, no presidencialismo, há um maior fortalecimento do Poder Executivo.
Por sua vez, tem algumas características que devem ser anunciadas:
a) O Presidente da República é Chefe de Estado e Chefe de Governo.
Este fato pode e normalmente acaba por gerar uma concentração de poder muito maior do
que o previsto e do que se poderia esperar em virtude da adoção da divisão dos poderes167.
b) A chefia do Executivo é unipessoal.
Significa que o Presidente da República tem a incumbência de ditar as diretrizes e fixar
as metas da administração pública. Neste caso, a tripartição dos Poderes é visível internamente,
uma vez que a concentração do poder na Presidência da República é evidente, sendo considerado
como o responsável pelo desenvolvimento do Estado e da sociedade civil.
c) O Presidente da República é escolhido pelo povo.
166
Originalmente, o impeachment era um procedimento criminal e só no decorrer da história é que transformou em
processo político-administrativo.
167
Por isso, no nascimento do governo presidencialista, na França do pós-1789, o legislador já previu uma série de
restrições ao Poder Político exercido pelo Presidente da República: “Não mais haverá venalidade ou hereditariedade
de qualquer ofício público”. A mesma Constituição Francesa de 1791 ainda vedaria a edição de medidas provisórias:
“O Poder Executivo não pode fazer nenhuma lei, mesmo provisória, mas somente proclamações conforme às leis
para ordenar ou lembrar a sua execução” (Miranda, 1990, p. 71).
192
Ainda que no Brasil haja o instituto da reeleição, como expressão da democracia
representativa, o povo elege diretamente o cargo mais elevado do poder central junto ao Poder
Executivo.
d) O Presidente da República é escolhido por um prazo determinado.
Uma das regras da democracia (como normatização do poder) é a imposição da
rotatividade do poder e a fixação de um prazo delimitado, razoável, não-extenso demais, em que
vige a determinação do cargo de Presidente da República (bem como dos demais cargos do
Executivo e do Legislativo).
e) O Presidente da República tem poder de veto.
Significa que, a fim de se garantir o sistema de “freios e contrapesos”, o chefe do
Executivo usa do veto, no todo ou em parte, dos projetos de lei aprovados pelo Legislativo.
Funciona como mecanismo de mediação, equilíbrio entre o Legislativo e o Executivo.
f) o maior problema – como ocorre no Brasil – é a ocorrência de um superpresidencialismo, em
que o Executivo se arvora sobre o Judiciário e o Legislativo.
II - REGIME DE GOVERNO (Democracia ou Ditadura)
Tome-se por ditadura toda forma de negação da soberania popular, incluindo-se a
decretação do Estado de Sítio – sob suposta condição de legalidade –, ou nos casos em que
apenas converte-se o Golpe de Estado em capa de legalidade.
DEMOCRACIA
Evolução da Democracia
1.
2.
No sentido histórico, cronológico
Configura-se como progresso
A) Artefato: instrumento e ideia em processo de desenvolvimento
Conceituação inicial
Democracia
3. Regime político fundado na soberania popular e no respeito
integral aos direitos humanos (lei, imperativo, da maioria,
somada aos direitos das minorias).
4. Democracia política (liberal).
5. Democracia social – direito social (intervenção do Estado do
Bem-Estar social).
Valores fundamentais
6. Liberdade
7. Igualdade
8. Fraternidade
De forma geral, concorrentes do liberalismo desconfiam da soberania popular,
identificada com a democracia popular soviética, ou com certa utopia rousseaniana. Contudo,
na democracia não há poder, nem direito ilimitado. A soberania popular é regrada, baseada
em leis e melhorias das “relações e representações sociais”. A soberania popular:

Refere-se ao exercício máximo do poder, como soberania política.
193




Agrega-se aos direitos sociais de todos os tipos (os que já existem e os que poderão
vir a ser criados).
Acrescente-se a liberdade negativa (mais próxima do liberalismo clássico).
Entenda-se como garantia contra o abuso do Estado ou do poder de outros.
Liberdade positiva é ver-se livre para fazer algo. É a liberdade positiva que se associa
à ideia de direito que deve ser formalmente estabelecido. Precisa ser garantida
concretamente para o exercício ou fruição desse direito. (Na Franca, por exemplo, a greve
é uma liberdade: não está nos códigos. Mas, paga-se pelos abusos como cidadão).
No Princípio Democrático (Canotilho, s/d) só existe um direito se houver a garantia de
que ele possa ser usufruído.
III - FORMA DE GOVERNO (República ou Monarquia)
Com o que vimos já podemos depreender que, o que denominamos de Estado de Direito
Republicano corresponde a um tipo de Estado, isto é, tratamos enquanto tipologia de Estado e
não apenas como forma de governo. José Afonso da Silva define o modelo como “formas
institucionais do Estado” (2003, p. 102), colocando-se além da simples forma de governo, no
sentido de que se pode mais facilmente modificar o governo do que o Estado.
Por outro lado, Bobbio trata o tema de forma depreciativa, como mera forma de governo:
“Na minha formação de estudioso de política nunca me detive sobre o republicanismo ou a
república [...] ‘república’ é o nome da forma de governo oposta à ‘monarquia’ ou ao
‘principado’, a começar pelo nosso Maquiavel” (2002, p. 10-11). De certo modo, é como se
estivesse em jogo só a questão da representação – aqui se trata da representação formal
parlamentar.
Isto é, como forma de governo, a República estaria assistida somente com o exercício da
representação, porque garantiria a governabilidade necessária. Esse tipo de análise da
governabilidade também, não raramente, a confunde com o bom funcionamento do governo e
este, por sua vez, é limitado à separação dos poderes. Como sabemos, o objetivo era fortalecer e
resguardar a democracia. Neste contexto, ainda podemos destacar a fundamentação jurídica
essencial da própria democracia.
Resumo
O sistema de governo presidencialista é baseado na separação de poderes, mas com
forte concentração de comando (governo) no Poder Executivo. Tem, como características
gerais: a) independência dos poderes; b) eletividade para organização do Legislativo e do
Executivo; c) curta duração dos mandatos (média de 4 ou 5 anos: Iraque = 7 anos); d)
supremacia da lei constitucional (ver garantias institucionais); e) ministérios são auxiliares do
Executivo. A tendência à concentração de poderes, desde a origem, levou os EUA a adotarem o
sistema de freios e contrapesos, como garantia da interdependência (a indicação, com peso de
nomeação, dos Ministros do STF pelo chefe do Executivo – e sua sabatina pelo Senado -,
seguiria o mesmo princípio).
Por sua vez, o parlamentarismo constitui outra manifestação ou criação do pensamento
liberal, outro instituto político do Estado Liberal. Mantendo-se certa consonância com o
pensamento de Locke, podemos dizer que o poder Executivo é subordinado ao Legislativo,
pois o poder de legislar sobre o Estado é superior e anterior ao próprio momento de execução das
ações desse Estado. Além de que o Legislativo (poder fiduciário) deriva diretamente da vontade
popular: o verdadeiro poder originário. Assim, é também a base em que se assenta toda a
responsabilidade sujeita à vida social, uma vez que o poder civil é instituído pelo povo – autor e
194
sujeito da história que pode, inclusive, destituir o próprio Poder Legislativo. Portanto, nessa
matriz conceitual do Parlamentarismo, temos uma ligação muito mais íntima entre poder,
competência e capacidade legislativa e soberania popular.
195
PARTIDOS POLÍTICOS E GRUPOS DE PRESSÃO
Como resumo da obra, pode-se dizer que, esporadicamente, os partidos existiram na
República romana e em algumas cidades do Renascimento, além da Inglaterra dos Stuart. No
Brasil, o inchaço, o excesso e a falta de identidade tem minado a estrutura política, com especial
atenção para os partidos políticos. Todavia, a partir do século XIX algumas condições especiais
passaram a ser observadas na Europa ocidental, sendo o mais importante:
I)
A existência de segmentos sociais (étnicos, religiosos ou de classe).
II)
O governo baseado no apoio popular.
III)
A potencialização de organização da massa popular a fim de que a expressão
política fosse a mais ativamente organizada.
Ainda cabe lembrar que os partidos políticos e os grupos de pressão surgiram ou se
fortaleceram, no século XX, em substituição a dois mitos/modelos clássicos da Teoria Política: i)
absolutismo/Estado Leviatã; ii) individualismo/cidadão soberano. De quebra, especialmente no
período entre-guerras, subsumiu-se qualquer resquício da vontade geral.
No século XX, como século dos partidos políticos, a representação do interesse de
massas passou a ser evidenciado. Neste sentido, os partidos políticos indicam os níveis de
competitividade presente na arena política (Outhwaite, 1996).
Partidos políticos
O tema dos partidos políticos lembra, obrigatoriamente, a representação política sob a
forma do regime político da democracia parlamentar, representativa ou indireta. Os partidos
comunicam-se como extensores da República e da Federação, afinal, é sob esta forma de
distribuição da representação política que o Poder Político centralizado será constituído e que o
Princípio do Pluralismo Político será garantido (CF/88168). Entretanto, é de se frisar que os
partidos políticos implicam no referencial da participação política em níveis ou modalidades
diferentes e complementares, como destaque para:
a) Presença (como ocorre nos casos de corpo presente nas reuniões).
b) Ativação (desenvolve-se uma série de atividades designadas por delegação de
princípios).
c) Participação (quando se contribui direta ou indiretamente para uma decisão política).
Conforme a definição de Max Weber, o partido político é uma associação que visa um
fim deliberado, seja ele objetivo (realização de um plano), pessoal (obter benefícios inerentes ao
poder) ou combinando todos esses objetivos. Na definição, destaca-se o caráter associativo dos
partidos, como partes (indivíduos) que se associam para melhor se representarem e defenderem
seus interesses.
Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, o fenômeno da participação política
quase unicamente por meio dos partidos, a Partitocracia, expressou o bloqueio da manifestação
168168
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição.
196
institucional dos conteúdos políticos que antes eram manifestos pelos notáveis (homens dignos
de nota) e que exerciam a capacidade da liderança e da representação individual, como se deu
com o próprio Weber, notadamente na Constituição de Weimar (Bobbio, 2000, p. 888-905).
É do conhecimento médio, mas vale lembrar que a nomenclatura dos partidos políticos
vem do fato de representarem um segmento da sociedade global, em termos de representação
social e/ou política. Partido vem da capacidade limitada da representação, ou seja, de se
representar somente uma parte169 da sociedade.
Partido: partitus, partire. Como se tratasse de uma partição, repartição da representação
política. Sobretudo na sociedade industrial, complexa, forjada sob violentos embates entre as
classes sociais, a ideia de vontade geral – muito rapidamente – foi submetida à realidade da
contradição social, obrigando-se à conclusão pela incapacidade de se representar e/ou agir
conforme o interesse social, popular, geral.
O Estado não é isento a esses efeitos e embates ideológicos, uma vez que o governo – a
parte operacional do Poder Político – sempre estará a cabo de um determinado partido ou parte
política, como classe social. Até mesmo porque, na sociedade moderna, o interesse econômico é
hegemônico, predominante e, assim, submete os demais grupos, classes e/ou camadas sociais.
Enfim, como não se pode representar a vontade geral, em função da contradição social,
foi e é necessário organizar a representação política em partes ou em partidos que representem
interesses específicos.
Outro componente inicial a receber destaque quando abordamos a composição partidária
se refere ao fenômeno do bipartidarismo, como nos EUA, entre Democratas e Republicanos, e no
Reino Unido entre o Partido Tory (de natureza conservadora) e o Partido Whig. O primeiro,
apoiando a permanência de Jaime II – convertido ao catolicismo – e os whigs, que apoiavam sua
exclusão (de acordo com a Lei de Exclusão, de 1678 – 1681).
Em sentido complementar, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), no México, no
poder por mais de 70 anos consecutivos, indica que a relação umbilical entre o partido e o poder
central pode ser tamanha, a ponto de se ter quase que a existência de um único partido. Apesar de
submetido ao processo eletivo, o ajuste e o monopólio exercido na máquina administrativa pelo
PRI não permitiam que outros partidos fizessem uma frente política considerável.
No México, o pluralismo partidário era previsto e implementado, mesmo sem o rodízio
ou a alternância efetiva no poder. Portanto, na prática, o Princípio Republicano sempre esteve em
risco, uma vez que a alternância do poder não se refere apenas ao indivíduo – evitando-se o culto
à personalidade, com a fixação de um máximo de reeleições –, mas sim à rotatividade efetiva dos
grupos, partidos e classes sociais que controlem os mecanismos de poder.
Absolutamente diversa dessa realidade, a democracia dos Cantões suíços pode ser uma
exceção ao conjunto, mas é interessante de ser frisada. Nesta experiência convivem os partidos
políticos e a forma direta de manifestação da vontade popular. Os Cantões fazem conviver há
séculos a democracia direta com o Princípio da Representação. Na Alemanha, os lobbies
configuraram-se como movimentos legítimos e tradicionais:
De longa tradição na Alemanha, as fundações são financiadas
indiretamente pelo governo federal, através dos partidos políticos
alemães. A mais antiga delas é a Fundação Friedrich Ebert, criada há 80
anos e ligada ao Partido Social Democrata (SPD). Seguem-se a Fundação
Konrad Adenauer, criada há 50 anos e ligada à União Democrata Cristã
169
Parte – do latim pars, pártis. Partição, partitio – ônis. Partícula: partidário, partidarismo. Partido: partitus,
partire (Cunha, 2010, p. 479).
197
(CDU), a Fundação Heinrich Böll, dos verdes, e a Hans Seidl, da União
Social Cristã (CSU). Mesmo o antigo PDS (Partido do Socialismo
Democrático), hoje Partido de Esquerda, tem a Fundação Rosa
Luxemburgo170.
Por meio dos partidos políticos (de âmbito nacional) expressam-se ou devem se expressar
as manifestações de anseio social, local. Com grupos de interesse que atuam em legítima
adequação às regras democráticas, nas suas localidades – antes de se formarem os pleitos
estaduais e nacionais –, os partidos políticos congregam um mínimo de satisfação popular. O fato
dos Cantões terem vida própria, larga escala de autonomia, reforça a necessidade dos partidos
manterem proximidade com suas bases.
Brasil
Comparativamente ao que vimos na abordagem dos Cantões suíços, seria o equivalente a
termos no Brasil uma boa distribuição orçamentária, municípios com atuação mais destacada, o
evidente orçamento participativo e uma atuação destacada do cidadão que não é só eleitor. No
país, dada a estrutura centralizada – centralizadora de um quase superpresidencialismo, também
o pacto federativo se ressente da má distribuição do poder.
Diante dessa mega estrutura de poder no país, mesmo com a alteração de modelos
econômicos, como se deu a partir de 1930, a distribuição de poder pelos partidos e a
configuração das lideranças partidárias se mantiveram constantes. O que indica a proeminência
de uma elite político-partidária que se alterna no poder, mas que não oxigena a própria política
frente ao controle central (Fausto, 1986). O fenômeno da reeleição só viria a acirrar um defeito
histórico na má distribuição do poder no país171.
A partir da década de 1990, acostumamo-nos a ver na cena política nacional a fluência e
a grande diversidade dos movimentos sociais e populares. Alguns dos movimentos sociais, como
em favor da edição de “penas duras” (e que culminou na Lei de Crimes Hediondos) não eram
propriamente de apelo popular.
Antecipando-se o debate, pode-se pensar que movimentos sociais e populares constituem
fontes de pressão política. No entanto, enquanto movimentos que não batem às portas do poder
constituído, não são em si grupos de pressão.
Muitos desses movimentos ainda se alinharam ao movimento sindical – como o MST e a
CUT –, mas ainda assim precisariam de partidos políticos que os representassem e pressionassem
o Poder Político (isto porque almejam constituir o poder): o PT dos anos 1990 foi exemplar neste
sentido. Organizou-se a partir de movimentos sociais, constitui inúmeros grupos de pressão e
alcançou o comando do poder central. A tecnocracia e/ou meritocracia aplicada à política, no
sentido de partido de quadros, foram trazidas pelo PSDB, especialmente na eleição presidencial
de Fernando Henrique Cardoso172.
Em contexto semelhante, mas em sentido diverso, foram forjados verdadeiros
movimentos populares (e/ou grupos de interesse) – alternando esforços por convencimento – a
partir de entidades de classe que se comportaram como grupos de pressão: foi o caso da OAB e
da CNBB, no embate pela redemocratização.
170
http://www.dw.de/funda%C3%A7%C3%B5es-pol%C3%ADticas-para-manter-tradi%C3%A7%C3%A3odemocr%C3%A1tica/a-1765847.
171
Emenda constitucional nº 16, de 04 de junho de 1997.
172
Sua titulação acadêmica, professor titular de Ciência Política, indica claramente a ascendência que manteve no
PSDB, formando-se como partido de quadros.
198
Todavia, por maior que sejam esses esforços, toda a articulação pode ser perdida em
razão de outros interesses com maior poder econômico – como a bancada ruralista – ou os
grupos que representam a indústria tabagista e de bebidas alcoólicas. Esta diversidade de
influências culturais e origens sociais e ideológicas conduziu o PT (como partido de massas) e o
PSDB (como partido de quadros) a monopolizarem a organização política brasileira nas últimas
décadas.
Partidos de massa e de quadro
De certo modo, ainda que superficialmente, pode-se dizer que o debate clássico acerca
dos partidos políticos, quer seja na formação de quadros, quer seja na condução das massas, é
mal colocado no país.
Neste binômio da Teoria Política clássica, entre partido de massas e partido de quadros,
há muitos exemplos, a começar pelo Partido da Ação italiano, em reação ao fascismo. Também o
Partido Comunista Brasileiro, com a direção de Luís Carlos Prestes e o PCdoB, sob a direção de
João Amazonas. Mas, aqui cabem alguns breves reparos: apesar das fortes lideranças políticoideológicas, os partidos comunistas no Brasil não foram partidos de massas.
É claro que todo partido precisa de apego popular, mas um partido de massas movimenta
milhões de eleitores e de seguidores, o que não ocorreu no caso comunista. Quanto ao Partido da
Ação italiano, é interessante de ser resgatado porque Norberto Bobbio, talvez o maior cientista
político liberal do século XX, foi um de seus militantes. De inclinação fascista em boa parte da
juventude acadêmica, Bobbio faleceu como liberal jusnaturalista, adepto do Iluminismo e de suas
aplicações no direito.
Os partidos de massa procuram seus eleitores e cabos eleitorais na antevéspera do
processo eleitoral. Os partidos de quadros são vitimados pelo Executivo (ao não privilegiar a
meritocracia) – em seus acertos de composição majoritária – e pelos grupos de interesse que
igualmente desequilibram a tecnicalidade com a imposição do jogo político.
Diante deste dilema – e mesmo sabedores de que as emendas de iniciativa popular têm
resguardo constitucional – é forçoso concluir que o superpresidencialismo brasileiro, ainda que
sob reflexos do Estado Patrimonial, não só desbaratina a repartição entre os três poderes como
fragiliza o pacto federativo. No bojo dos partidos políticos o impacto revela acertos e
composições que pouco refletem o “espírito nacional” ou as culturas e suas localidades.
Com partidos que deslocam seu eixo de representação e participação para a esfera
federal, é lógico concluir que este desvio fortalece as elites políticas e empobrece a democracia,
bem como anula o conjunto dos partidos políticos. Com partidos frágeis, crescem
vertiginosamente os grupos de pressão (ilegais no Brasil, regulados nos EUA).
Grupos de interesse e grupos de pressão
Neste contexto, os partidos resguardam seu arsenal – em meio aos lobbies – para agir
junto ao Congresso Nacional (sobretudo, nas lideranças partidárias) e diretamente nos gabinetes
do Poder Executivo (via de regra, cargos ocupados por membros indicados pelos mesmos
partidos). Ou seja, em nosso cenário, os lobbies também dirigem-se ao centro do poder. Os
municípios são resgatados em sua relevância apenas no período eleitoral.
Neste momento, o eleitor se encontra com o dispositivo partidário. Mas, passada a
eleição, o partido toma a parcela de poder que lhe foi conferida pelos e votos e, como seus
mandatários, também a militância e a discussão partidária saem da vida comum do homem
médio.
Ainda se faz inicialmente outra distinção que é bem nítida. Os grupos de interesse – como
organismos de expressão de anseios coletivos – antecedem aos grupos de pressão. Caracterizam-
199
se mais especificamente por representarem interesses determinados e específicos e porque não
incidem necessariamente na seara da pressão política. O grupo de pressão, é forçoso dizer, tem
por característica básica o exercício da influencia sobre o Poder Público a fim de que ações de
governo venham atender a interesses mais restritos. Portanto, um grupo de pressão é um grupo
de interesse mobilizado, colocado em ação.
Para Burdeau, os grupos de interesse e de pressão sempre existiram; à diferença de que
modernamente são mais organizados e sistêmicos do que na sua origem. Muitos se confundem
com o próprio poder instituído, como se fossem “poderes de fato”. Para os que ainda adivinham
o definhamento dos partidos políticos, fala-se que são “governos invisíveis” (Bonavides, 2012).
De fato, por exemplo na Assembleia Nacional Constituinte de 1986 era flagrante a ação
de inúmeros grupos de pressão. No decorrer da CF/88 muitos grupos se manifestaram –
chegando, inclusive, a organizar os partidos como se fossem um grande lobby: a bancada
evangélica é um exemplo.
Alguns grupos de pressão nasceram ou evoluíram a partir da falência e/ou incapacidade
de gerir e instrumentalizar demandas no cenário político. Esses grupos podem ser definidos
como grupos não-partidários, mas nunca como grupos não-políticos, pois seguem determinadas
investigações e se espraiam em ações que requerem resultados políticos.
Como grupos de interesses políticos organizados, muitas vezes encontram interesses
econômicos ou até culturais camuflados, alguns grupos de pressão ainda representam demandas
culturais que travestem envolvimento politico e até partidário.
Muitos organismos não-governamentais ou multilaterais podem se alinhar nessas
definições e em outras assemelhadas. De todo modo, importa ressaltar que são
organismos/organizações que surgem e ganham relevo em razão de se ver diminuir a partição
dos partidos políticos.
Há que se apontar ainda que os grupos de pressão não são ruins ou bons por natureza, não
há divinização e nem demonização em política. Podem se constituir em lobbies a favor do
desarmamento ou em benefício da indústria armamentista, a favor ou contra o uso de energia
sustentável, bem como delatando ou negando o aquecimento do globo terrestre.
O fato é que os grupos de pressão, em lição dos anos 1970, exercem um papel de
contínua representação entre indivíduos e Estados, intermediando estruturas e sistemas políticos
tradicionais, poucos móveis, e os anseios muitas vezes isolados e até despretensiosos de alguns
poucos:
Os grupos de pressão, segundo J. H. Kaiser, são organizações da esfera
intermediária entre o indivíduo e o Estado, nas quais um interesse se
incorporou e se tornou politicamente relevante. Ou são grupos que
procuram fazer com que as decisões dos poderes públicos sejam
conformes com os interesses e as ideias de uma determinada categoria
social [...] Os grupos de pressão não são outra coisa senão as forças
sociais, profissionais, econômicas e espirituais de uma nação, enquanto
aparecem organizadas e ativas (Bonavides, 2012, p. 460).
Por seu turno, partidos marcados por ideologias e purismos culturais e religiosos portamse como seitas fanáticas e assim “exploram os ressentimentos políticos”. Pode-se dizer,
concluindo, que, na seara política em que os partidos são enfraquecidos por sua própria inépcia
ou pela ação dos lobbies, ironicamente, fortalecem-se estruturas totalitárias, arcaicas.
Partidos liberais e Totalitarismo
200
Outra distinção que se deve ter muito clara é entre os chamados partidos liberais ou
democráticos (social democráticos) e os “partidos ideológicos”, missionários, que historicamente
desembocaram em estruturas e regimes totalitários.
Historicamente, a nomenclatura aponta para os Partidos Únicos ou que se fizeram
hegemônicos após a conquista do poder. Este fenômeno pode ser observado com o Partido
Nazista (Partido Nacional Socialista), após a ascensão de Hitler, e o Partido Comunista, sob o
comando de Stalin, na ex-URSS. Além de algumas outras experiências reais, do mesmo Partido
Comunista na China, de Mao Tsé Tung, e no Camboja comandado pelo Khmer Vermelho, de Pol
Pot173. Por isso, ainda é comum que os grupos de pressão atuem no interior desses partidos
convulsionando toda perspectiva de relação política, uma vez que se baseiam em bandeiras de
intolerância:
Explorando os ressentimentos da derrota bem como as cláusulas
apertadas do Tratado de Versalhes, levantava-se o partido de Hitler
contra a cobiça estrangeira [...] o anti-semitismo [...] militarismo [...] O
que mais assombro causa aos que se ocupam do fenômeno nacionalsocialista é precisamente o fato de que a Constituição de Weimar abriu a
porta para Hitler, em 1933, e festejou, com esmagadora maioria eleitoral,
a entrada dos assassinos da liberdade política na Alemanha. Partidos de
natureza ideológica, constituídos dos insatisfeitos da ordem democrática,
dos marginais da liberdade, sua pregação subversiva se exercita de modo
quase impune, representado o pesadelo dos regimes de opinião
(BONAVIDES, 1998, p. 254-255).
Nesta relação impura entre partidos e grupos de pressão, percebe-se, notadamente, que se
confunde Estado, Governo e partido. Como se o Estado fosse o mero instrumento de
ação/manipulação do governo daqueles que se tornaram partidários do poder. No caso específico,
o que Hitler dizia a seus comandados diretos tinha força de lei:
Partidos providos de “concepção do mundo” tendem, segundo o
publicista de Munique, a se fazerem totalitários, a quererem
compendiar, numa filosofia única, todas as manifestações do engenho
humano [...] Assemelham-se as seitas e igrejas [...] São dotados de
irresistível impulso para a intolerância. Não perdoam os seus inimigos
[...] levam a luta política para o terreno das paixões mais violentas e os
combates partidários tomam para eles o caráter de guerras de religião
(BONAVIDES, 1998, p. 255).
Quando, na verdade, sabe-se que o partido, para ser democrático exige reciprocidade de
relações entre as lideranças e os seus seguidores, com a liberdade de dizer sim e não, de
consentir ou discordar.
Síntese
Quanto aos partidos, podemos dizer que sua ideia fundadora e origem histórica tiveram
por princípio dirigir a participação política popular, oportunizar o acesso de novos sujeitos
legitimados e expressar demandas antes contidas pela negação dos direitos. Contudo, o
173
Uma conclusão apressada indicaria que a solução diante dos Partidos Únicos seria um Partido Libertário, porém,
há aí uma contradição em seus termos. O pensamento libertário tem por essência a autonomia e a recusa da
representação, o que inviabilizaria a organização partidária. Isto é, um partido anarquista não faz o menor sentido.
201
enfraquecimento político, provocado pela multiplicação partidária tem levado a inúmeros
desacertos institucionais. No Brasil, há um verdadeiro fermento dos partidos políticos,
instigando-se a indisciplina ou “venda” da representação por meio das “legendas de aluguel”.
O Brasil ganhou mais dois partidos na semana passada: o Solidariedade,
do deputado Paulinho da Força (PDT-SP), e o Partido da República e
Ordem Social (PROS) , de Eurípedes Júnior. Se a Justiça Eleitoral aceitar
a validade da Rede, de Marina Silva, as eleições de 2014 terão 33
partidos na ativa174.
No que diz respeito aos grupos de interesse e de pressão, pode-se verificar que a
iniciativa é legítima – quando não confrontados com objetos ilícitos – porque perfazem a
comunicação entre o Poder Político e a sociedade civil (ou entre os indivíduos e seus coletivos).
Entretanto, apenas proibindo-se, sem melhor regulamentação ou maior fiscalização, os lobbies
têm proliferado no país, aproximando em definitivo a política da polícia.
174
http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2013-09-28/regras-simples-e-financiamento-publico-incentivam-criacaode-partidos-no-brasil.html.
202
A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO PÚBLICO
do Estado de Cortes ao Estado Legal
Neste tópico veremos que a história de afirmação do Estado Moderno deu-se em dois
sentidos: 1) contra as formas autocráticas e absolutistas próprias ao Antigo Regime; 2) como
conversão da ideia de soberania do poder, para a edificação da soberania popular, especialmente
porque a legalidade derivava sua força da legitimidade. O chamado Estado Legal deveria superar
uma fase monolítica do Poder Político e se apresentou pela primeira vez a coisa pública como
sinônimo de popular; a primeira vez em que o povo passaria a integrar uma política de Estado
que não fosse como peões que caminham para a guerra, mas sim integrando-se a soberania
popular como matriz das políticas públicas. O texto está dividido em duas partes.
1ª Parte: a soberania absolutista
Na vigência do feudalismo temos a figura do Estado só no nome, uma vez que as
estruturas políticas não estão definidas. Nesta fase do Estado Feudal - período que compreende a
Idade Média - não temos os marcos históricos mais estimulantes para analisar as tipologias do
Estado e nem há grandes formulações ou teorias políticas. Evidentemente, há alguns elementos
que caracterizam esse chamado Estado Medieval: cristianismo; invasões bárbaras; feudalismo.
Pode-se dizer que no período há uma Filosofia Política católica, de certo modo embasada na
moral cristã, mas certamente não chega a compor a realidade da política e do Poder Público da
época. Por seu turno, há outros elementos ou circunstâncias que conformam o Estado Feudal:
A – permanente instabilidade política, econômica e social; B – distinção
e choque entre poder espiritual e poder temporal; C – fragmentação do
poder, mediante a infinita multiplicação de centros internos de poder
político, distribuídos aos nobres, bispos, universidades, reinos,
corporações etc; D – sistema jurídico consuetudinário embasado em
regalias nobiliárquicas; E – relações de dependência pessoal, hierarquia
de privilégios (Streck, 2001, p. 21 – grifos nossos).
A história desse Estado Medieval é longa e tortuosa, mas pode-se dizer que, do final do
Estado Romano até que se estruturasse um novo tipo de Estado ou sistema de produção, entre
feudalismo e capitalismo, transcorreram outros mil anos, agora sob a dominação do poder
espiritual estabelecido no correr da Idade Média. Temos aqui um longo período em que, todavia,
apenas duas questões foram constantes: a oposição entre Estado x Igreja; tirania x justiça. Na
Idade Média como um todo predominara certa visão negativa do Estado175, pois o Estado
acabara sendo definido de forma limitada ou restritiva como se estivesse destinado à repressão,
ao passo que a salvação deveria provir da religião, da fé e mais especificamente da Igreja
Católica.
O autor católico Isidoro de Sevilha (550-636) seria um exemplo claro do que se chama de
Estado negativo, ou seja, um tipo de Estado que não age senão sob a forma da ameaça e do
terror. O Estado também seria negativo porque não agiria de forma propositiva, mas só restritiva
e, principalmente, negativa quanto aos direitos. Temos, enfim, um Estado elitista e atento às
conveniências do poder e do modo de produção feudal ou estamental. Neste caso, a pena imposta
pelo Estado negativo seria a restrição da liberdade:
“Pela vontade de Deus, a pena de servidão foi imposta à humanidade
devido ao pecado do primeiro homem; quando ele nota que a liberdade
175
Se bem que esta também não é uma ideia comum, pois na Idade Média, sob os auspícios do catolicismo,
desenvolveu-se a noção de que o Estado deve buscar o bem comum.
203
não convém a alguns homens, misericordiosamente lhes impõe a
escravidão. E, embora todos os fiéis possam ser redimidos do pecado
original pelo batismo, Deus, na sua eqüidade, fez diferente a vida dos
homens, ‘determinando que alguns fossem servos, outros senhores’, de
modo que o arbítrio que têm os servos de agir mal fosse limitado pelo
poder dos que dominam. Com efeito, se ninguém temesse, quem poderia
impedir alguém de cometer o mal? Por isso são eleitos príncipes e reis,
para que ‘com o terror’ livrem seus súditos do mal, ‘obrigando-os, pelas
leis, a viver retamente” (Sententiae, III, 47)176 (Bobbio, 1985, p. 78).
Veja-se que tanto a regra econômica (servidão) quanto a primazia de dizer o certo ou o
errado (moral) era de domínio religioso – uma prerrogativa da Igreja e não exatamente do
Estado. A frase Deus na sua equidade determinou que alguns fossem servos e outros senhores,
ilustra bem a função do poder religioso. As leis que devemos seguir para viver retamente
derivam desse poder espiritual, não do Estado e, por isso, não há poder secular. Mil anos depois
das afirmações de Isidoro de Sevilha, e já com Lutero177, a pregação ainda seria a mesma, com
conselhos semelhantes para que se usasse da força com o mesmo intuito do amedrontamento
(Bobbio, 1985, p. 79). É interessante notar que posteriormente Bobbio desagravou a crítica
endereçada à concepção negativa que se formou em torno do Estado Medieval, porque
igualmente ia ter-se desenvolvido uma concepção racional do Estado. Como podemos ver,
Bobbio chega a inverter os polos, chamando agora de concepção positiva do Estado:
Concepção positiva é certamente aquela que remonta a Aristóteles, e
torna-se dominante na Europa da segunda metade do século XIII em
diante, quando se difunde o Aristóteles latino: o fim da comunidade
política, a koinonía politiké, a societas civilis na predominante tradução
latina, não é apenas o viver ou sobreviver, mas o bonum vivere, o viver
bem (Bobbio, 2000, p. 120).
O Estado é coerção e punição, e nisto é negativo, mas os filósofos do Estado e os
teólogos (da Moral) dirão aos servos que o Estado deve prover a vida boa e justa. Agora resta
saber para quem a vida seria boa e justa. De certo modo, Bobbio trata da Filosofia Política
católica alegada por muitos autores. Já o segundo grande problema alegado destaca a tirania ou
os cuidados a fim de que seja evitada, porque com tiranos não há segurança e nem justiça. Aliás,
o tema do novo príncipe, colocado por Maquiavel, inferia diretamente nesta grave questão da
tirania, como forma de abuso de poder e que, gerando descontentamento e resistência, acabaria
176
A forma de governo alegada é claramente a monarquia despótica.
É preciso o compromisso e a promessa de Deus, tal qual se apresenta resumida na fé. O surgimento do Outro,
portanto, está associado a esta mesma fé: “A fé é feita de tal modo que quem crê num outro, crê justamente porque
considera o outro justo e verdadeiro” (Lutero, 1998, p. 35). Aquele que crê, reconhece o direito e a liberdade. A fé
une a alma a Cristo, como uma noiva ao noivo: “Assim, a alma traz consigo todos os vícios e pecados que
pertencerão a Cristo” (Lutero, 1998, p. 37). É a fé que honra os mandamentos. Nisto também está a soberania
espiritual, uma vez que o cristão serve a todos: “Onde ele for livre nada precisará fazer; onde for servo, deverá fazer
todo tipo de coisa” (Lutero, 1998, p. 49). O homem honesto, prudente em si mesmo, é o que tem boas obras para
justificar sua fé.
177
204
por provocar desestabilização do poder e do Estado178. Ainda com Bobbio temos um resumo
instigante das obras e dos autores centrais dessa temática:
Dos comentários medievais sobre a tirania, o mais célebre é o de Bartolo
(1314-1357); no De Regimine Civitatis, que introduz a distinção
(destinada ao êxito) entre o tirano que exerce abusivamente o poder –
“tyrannus ex parte exercitti” – e o que conquistou o poder sem ter direito
– “tyrannus ex defectu tituli”. Possivelmente o mais completo dos
tratados sobre a tirania é o de Coluccio Salutati, e Tratado sobre o
Tirano, escrito no fim do século XV... (Bobbio, 1985, p. 81).
Entretanto, Coluccio Salutati não será em nada originário e acabará promovendo quase
que uma cópia das fórmulas propostas por Aristóteles e depois retomadas por São Tomás, além
de Ptolomeu de Luca e Egídio Romano. As três formas de principatus ou exemplos de casos
concretos de tirania são: principatus regius; politicus e despoticus179. Porém, não devemos nos
esquecer que todo esse debate visava alertar para o perigo de instaurar a tirania e para saldar o
príncipe sábio e justo. Esse Príncipe sábio, não-tirano, é justamente aquele que se utiliza da força
de forma não abusiva ou indiscriminadamente180:
No que concerne à tirania, Coluccio retoma a distinção entre suas duas
formas, definidas por Bartolo: tirano é tanto o que “invadit imperium et
iustum non habet titulum dominandi” (o príncipe que conquista o poder
sem justo título a ele, sendo portanto um príncipe usurpador, ilegítimo)
quanto o que “superbe dominatur aut iniustitiam facit vel iura legesque
non observat” (o príncipe que, embora tenha título justo para exercer o
poder, o exerce em violação das leis, abusando de seus privilégios,
tratando cruelmente os súditos, etc). Por antítese, o príncipe legítimo e
justo – não tirano – é o que tem ao mesmo tempo um título justo (“cui iure
principatus delatus est”) e governa com justiça (“qui iustitiam ministrat et
leges servat”) (Bobbio, 1985, pp. 81-2).
Enfim, o grande tema político da Idade Média se pautava em como delimitar e evitar – o
quanto possível – a tirania. Portanto, ao contrário disso, o governo não-tirânico, não-despótico,
era o governo estabelecido com parcimônia. E estas eram exatamente as lições prolatadas pela
Filosofia Política católica – mais uma moral política, um guia do bem e do mal, do que
exatamente Ciência Política. Neste sentido, a Ciência Política não é moral, nem imoral, é
simplesmente amoral.
Nesta fase, Filosofia Política e Ciência Política se distanciam porque, enquanto a
Filosofia Política indicava como se deveria regular o Poder Público, a Ciência Política –
especialmente depois de Maquiavel – indicava a realidade dura e nua do poder e dos poderosos.
Como diz Darcy Azambuja (2001), a respeito das ideias que circundavam o grande preceito da
soberania, entre filosofia e realidade há uma grande distância:
178
Ao contrário do que se pensa, mesmo em Maquiavel, a força tem de ser usada com parcimônia, ponderação e
sempre se demonstrando claramente que o fim último é a sobrevivência do próprio Estado.
179
“O principatus regius é aquele em que o rei governa como o pai sobre os filhos; o politicus, aquele em que
governa como o marido sobre a esposa; o despoticus, como o senhor sobre os escravos” (Bobbio, 1985, p. 81).
180
“Daí ameaçar o Senhor tais governantes por Ezequiel (34,2): ‘Ai dos homens que a si mesmos se apascentavam
(como procurando os seus próprios interesses) – porventura não são os rebanhos apascentados pelos pastores”
(Aquino, 1995, p. 128-129).
205
Bigne de Villeneuve assim as resumiu no que respeita à ideia de Estado.
Existe um Direito Natural, de origem divina, ao qual toda a atividade
humana, e conseqüentemente a do Estado é subordinada. Existe um Direito
Positivo de que o Estado é o criador, mas que também se deve harmonizar
com o Direito Natural e tende a realizar o bem público. Seus preceitos
mais gerais são obrigatórios também para o chefe do Estado. A direção do
Estado compete ao Príncipe ou a uma Assembleia, que devem procurar o
bem público, são responsáveis perante Deus e até certo ponto perante os
homens. A essa ideia de Estado, contida nos grandes sistemas filosóficos
medievais, opunha-se a noção de Estado, a realidade (p. 144).
Isto é o que preceituava, diremos outra vez, a Filosofia Política católica da época, porém
não era o que se encontrava na ação diretiva daqueles que exerciam o poder. Entre o dever-ser
dos atores sociais e o resultado final das múltiplas forças políticas atuantes (o Rei ou Príncipe
eram apenas uma das forças em questão), havia uma distância considerável com muitos
obstáculos, e este governante acabava, em geral, refém dos vários polos em conflito. Mas,
vejamos mais um pouco das condições propriamente políticas em que gravitava este pretenso
Estado Feudal.
Todo Poder provém de Deus
Fala-se ainda de um pretenso Estado Medieval porque, na Idade Média, a figura do
Estado como centro de poder desaparece – a política se esfacela, surgindo muitos concorrentes
ao Estado e ao rei, a começar da própria Igreja Católica e dos demais estamentos sociais. O
Estado se mostra enfraquecido e/ou impotente diante de tanta concorrência pela hegemonia do
poder político. Aliás, se a política e o poder eram tão fragmentados e distribuídos pela sociedade
é porque faltava justamente hegemonia e controle unificado. Porém, mesmo com esta estrutura
política, há a passagem da insegurança geral à pequena segurança local – o senhor feudal deveria
garantir a segurança dos servos em cada feudo, em troca de parte de seu tempo disponível para o
trabalho. É curioso lembrar que, em caso real de guerra, os servos é que deveriam lutar.
Já o Cristianismo, como Filosofia Política, acenava com o poder do bem comum 181 –
certamente como forma ideológica que camuflasse todas as contradições e/ou conflitos sociais e
políticos. De todo modo, a Igreja tentava impor certos limites ao exercício do poder – até para
que não soasse como o uso do poder nu e cru: Non est potestas nisi a Deo (algo como: em última
instância, “o poder pertence a Deus”).
De qualquer forma, o poder deveria ser exercido com sabedoria e um mínimo de
aquiescência ou de legitimidade dos servos: Regnum non est propter regem, sed rex propter
regnum (“o rei existe para o reino” e não o contrário). Deste modo, pode-se dizer que se
almejava o consenso: “É nesse elemento de ordem objetiva em que reside a principal garantia
das pessoas” (Miranda, 2000, p. 60). É interessante frisar que, mesmo o poder religioso buscava
formas de legitimação de seus atos e editos de poder.
A desorganização experimentada no Estado germânico serve como um bom referencial
desse período, pois é ilustrativo do que se vivia em termos políticos nesta era, o tempo de
florescerem as concepções cristãs e germânicas. A formação histórica do Estado Germânico nos
indica a conturbação de forças e poderes que assolavam o Estado medieval. Como bem diz
Jellinek: “...a princípio o Estado germânico é uma associação de povos a quem falta a relação
181
João XXIII, na Encíclica Pacem in Terris, em 1963, dirá: “o bem comum consiste no conjunto de todas as
condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”.
206
constante com um território fixo, o enlace permanente do território com o povo só muito
lentamente se levou a cabo em sua história” (2000, p. 307 – tradução livre). Neste sentido,
faltava ao Estado Germânico e ao Estado Feudal um enlace entre povo e território, ou seja, o que
chamamos de adensamento e de identidade cultural.
A base do poder era móvel, não havia plena identificação entre o Poder Público e o
território, bem como ainda se lidava com grande variedade de costumes e de interesses. Não é
fácil de se supor, mas a desordem política e a resistência ao poder central produziam inclusive a
mobilidade física do Príncipe. Vejamos, novamente com Jellinek (2000), o exemplo da
Alemanha:
A residência do Príncipe era algo completamente contingente e
independente da organização do Estado. Por conseguinte, faltava-lhe desde
o início a centralização. A dificuldade de organização para um povo que se
estendeu por um vasto território e carece de um centro, é ainda maior em
uma época em que as comunicações eram rudimentares e predominava a
economia agrícola (Jellinek, p. 307).
Além da escassez econômica – que só começou a se modificar com o desenvolvimento da
maquinaria e da produção que conduziu à Primeira Revolução Industrial –, o próprio Príncipe ou
Rei (enquanto representantes do Poder Público) não fortaleciam a identificação territorial. Diz-se
que a ideia de Estado não sobreviveu ao feudalismo, porque o eixo do poder já não passava pelo
Estado, estando antes, sobretudo, dirigido às relações mantidas entre Igreja e sociedade. Às
vezes, o Estado até se interpunha (ou tentava), mas sempre como intermediário, não como centro
destacado de soberania.
 No feudalismo, além de ser dissolvida a noção de Estado, ao invés de IMPERIUM
(“poder como faculdade soberana de mandar” – e que provém do Estado) passou a
vigorar a noção de DOMINIUM (família e propriedade182: a política migra do geral
para as particularidades sociais). Com isso, temos também o que se configura, desde
Max Weber, como Estado Patrimonial: o Estado é parte do patrimônio particular
dos que detêm o controle do Poder Público – a política é posse privada. É como se
o Patrimônio Público se torna-se gradativamente propriedade privada dos
mandatários e poderosos que controlam a máquina pública183.
Por fim, outra vez comparativamente ao Império Romano, há um dualismo na base
política e jurídica: “O reino germânico nasce, pois, como um poder limitado; por conseguinte,
desde seu início traz consigo um dualismo: o direito do Rei e o direito do povo, dualismo jamais
superado na Idade Média184” (Jellinek, 2000, p. 308). Outros autores encontraram uma fase
intermediária entre o feudalismo e a própria unificação do poder, como se terá sob a égide do
Estado Moderno. Esta fase intermediária será apelidada de Estado de Cortes.
Estado de Cortes
182
É como se os centros de poder tivessem migrado do Estado, do Poder Público, para a instância da família,
enquanto referência do Poder Privado.
183
Deve-se perguntar: o que sempre foi o coronelismo no Brasil?
184
Em outro momento, como a reforçar o já dito: “...o Estado nos aparece como um duplo Estado em que o príncipe
e as Cortes têm cada um seus funcionários particulares, tribunais e até exército e embaixadores” (Jellinek, 2000, pp.
309-310).
207
O Estado de Cortes não foge muito à estrutura fragmentária do poder havida no
feudalismo – apenas se coloca numa fase intercalada entre o Estado Feudal esfacelado e o
Estado Moderno, dominado pelas Monarquias Absolutas (Estado Absoluto – também indicado
como Estado de Polícia).
No nosso caso, o Estado de Cortes não passa de um Estado Estamental, dividido em
estamentos185, na medida em que predominam as mesmas dualidades políticas - tipicamente a
oposição entre Rei x estamentos. Nessa estrutura de comando, o Rei tem algum poder de fato
(não é somente um mero coadjuvante ou enfeite), mas trata-se de um comando exercido em
conjunto. Em suma, no Estado de Cortes, o Rei tem legitimidade e poder, mas só conseguiria
governar com o auxílio das cortes: um tipo de Estado dual ou bipartido.
O Estado de Cortes não é mera extensão do feudalismo, porque com certo poder o Rei já
não é só marionete, mas também não é soberano porque tinha que negociar em tudo o que
realmente fosse importante. Como diz Radbruch, além de lutarem contra o rei, porventura, as
Cortes ainda desafiavam os senhores feudais:
... o Estado de Cortes se afigura, contudo, como uma duplicidade de
Estados entrelaçados: de um lado o senhor feudal, soberano irrestrito
apenas em seu domínio; de outro lado, as Cortes com soberania quase tão
irrestrita sobre os pequenos proprietários, cobrando-lhes impostos,
julgando-os, chamando-os às armas; reunindo-se em assembleias sem
serem convocadas e negociando com o senhor feudal em pé de igualdade,
a ele se submetendo apenas à medida que se tenham submetido
espontaneamente, atendendo ao chamado às armas por contrato de
vassalagem, comprometendo-se a apoio financeiro através de atributos
por ele solicitados; provavelmente tratando com potências estrangeiras
através de enviados próprios, contrariando a política do senhor feudal. A
dupla soberania anárquica do Estado de Cortes conduziu
obrigatoriamente a uma luta constante pela soberania única (1999, p. 38).
A principal característica do Estado de Cortes, portanto, é a política de Estado negociada
com as cortes. Ainda são características desse Estado de Cortes a existência de direitos
fragmentados e estratificados, além de que há representação por estamentos. Isto é, dependendo
do estamento a que pertencessem, vigoravam determinados direitos e capacidades sociais e
políticas – daí se falar em Estado Estamental. Por isso, vê-se que o Estado de Cortes ainda pode
ser chamado de Estado Corporativo, ou seja, a política de interesses está dividida em estamentos.
Mas também as corporações (tipicamente relacionadas à produção) iriam disputar seu quinhão ou
parcela de poder.
Estado Corporativo
Sob a expressão Estado de Cortes, pode-se ver um Estado que precisa negociar
extensamente com as muitas corporações, sejam elas de ofício (de trabalho e de produção), sejam
as destinadas à participação política da nobreza186. No estudo do Estado Corporativo, trata-se da
análise da estrutura administrativa do Estado Medieval que permite certa autonomia política,
185
Estamentos são nivelamentos sociais que não permitem mobilidade social, nem como ascensão e nem declínio
brusco. Os nobres falidos da Corte seriam mantidos pelos demais membros dessa Corte, para demonstrarem que a
Corte mantinha o poder e o prestígio de sempre.
186
Pode-se dizer que há representação do poder em assembleias estamentais, sob a forma de Parlamentos, Estados
Gerais, Dietas e /ou Cortes (Miranda, 2000, p. 77).
208
administrativa e jurídica às localidades territoriais. De todo modo, quase que reprisando o que já
vimos, o Estado Medieval é um tipo de Estado que se caracterizava especialmente pela
atomização do poder e da política. Assim, quando comparado à herança política romana é ainda
mais evidente a existência dessas dicotomias no acento do poder:
Onde quer que dominasse a Constituição municipal romana, acentuandose a substantividade política das cidades, algumas chegam em certas
ocasiões, como na Itália, a alcançar uma absoluta independência.
Posteriormente, e dotadas de privilégios reais, fundam-se na Alemanha e
na França cidades que chegam a conseguir, ao menos parte delas, um
caráter de corporações soberanas. Por isto, a divisão dual da natureza do
Estado significa por sua vez a atomização do poder público, e toda a
história dos Estados da Idade Média é ao mesmo tempo uma história do
ensaio para chegar a vencer este desmembramento ou, ao menos, para
minorar suas consequências (Jellinek, 2000, p. 309 – tradução livre).
Neste Estado Corporativo, a sociedade aparece claramente dividida em grupos, camadas
ou setores sociais (chamados de estamentos) sem que haja possibilidade concreta de mobilidade
social. Um exemplo clássico da luta pelo Direito e pela participação vem da Inglaterra, quando
os estamentos lutavam contra o Rei, a fim de que este admitisse as garantias individuais (Bill of
Rights). Dentre outras garantias, este documento, o Bill of Rights, propugnava pela defesa de
alguns direitos individuais. É o caso preciso da liberdade individual, ainda restrita ao comércio,
mas que deveria ser assistida juridicamente, agora por meio de um instrumento jurídico chamado
Habeas Corpus. Em regra, contudo, temos aqui um Estado que serve à Igreja, que lhe é
submisso. Esta tipologia que interpõe o Estado de Cortes entre o feudalismo e o absolutismo,
também é partilhada por Bobbio (1987):
À base do critério histórico, a tipologia mais corrente e mais acreditada
junto aos historiadores das instituições é a que propõe a seguinte
sequência: Estado Feudal, Estado estamental, Estado absoluto, Estado
representativo. A configuração de um Estado de estamentos, interposto
entre o Estado Feudal e o Estado absoluto, data de Otto von Gierke e
Max Weber, e após Weber foi retomada pelos historiadores das
instituições sobretudo alemães (p. 114).
Em termos semelhantes ao que já viemos analisando, para Bobbio, o Estado Estamental é
um tipo de Estado que não aglutina forças políticas suficientes para controlar os demais setores
políticos e religiosos e tampouco as classes sociais dessa época. Portanto, trata-se de uma fase
intermediária e que irá desembocar no Estado Moderno – este, absoluto em sua primeira
configuração:
Como forma intermediária entre o Estado Feudal e o Estado absoluto, o
Estado estamental distingue-se do primeiro por uma gradual
institucionalização dos contra-poderes e também pela transformação das
relações de pessoa a pessoa, próprias do sistema feudal, em relações entre
instituições: de um lado as assembleias de estamento, de outro o rei com
seu aparato de funcionários que, onde conseguem se afirmar, dão origem
ao Estado burocrático característico da monarquia absoluta. Distingue-se
do segundo pela presença de uma contraposição de poderes em contínuo
209
conflito entre si, que o advento da monarquia absoluta tende a suprimir
(Bobbio, 1987, p. 115).
A disputa acirrada pelo controle do Estado, da burocracia, do exército, das instituições
regulatórias só se dará, contudo, na passagem ao Estado Moderno. De certo modo, esta também
será uma fase apenas iniciada pelo absolutismo, uma vez que era necessária a divisão dos
poderes187 para que o perfil institucional do Estado Moderno estivesse mais bem definido. O
perfil definido é aquele que aponta para um Estado unitário, fortalecido e reconhecido por todos.
O Estado Feudal, todavia, ainda será conhecido por seu pluralismo jurídico porque, não havendo
centralização política, também não há uniformização jurídica:
Dizendo que a sociedade medieval tinha um caráter pluralista, queremos
afirmar que o direito segundo o qual estava regulada originava-se de
diferentes fontes de produção científica, e estava organizado em diversos
ordenamentos jurídicos. No que diz respeito às fontes, operavam na
sociedade medieval ao mesmo tempo, ainda que com diferente eficácia, os
vários fatos ou atos normativos que, numa teoria geral das fontes, são
considerados como possíveis fatos constitutivos de normatividade jurídica,
quer dizer o costume (direito consuetudinário), a vontade da classe política
que detém o poder supremo (direito legislativo), a tradição doutrinária
(direito científico), a atividade das cortes de justiça (direito
jurisprudencial) (Bobbio, 1992, p. 11).
Esta foi, sem dúvida, uma intensa e extensa experiência do chamado pluralismo jurídico,
pois tivemos, como fontes do Direito, os costumes, a política, a religião e o Judiciário, o que,
certamente, não convinha a quem mantivesse aspirações de centralizar o poder e o Estado. Além
disso, pode-se dizer que o pluralismo jurídico e político medieval era capaz de produzir
interpretações variadas, múltiplas do Direito. Ora os clérigos buscando o Direito a partir da
Moral e da Teologia Oficial, ora os senhores feudais (muitas vezes em litígio com o Rei) que
viam no Direito a mera extensão de seus próprios hábitos pessoais, familiares ou nobiliárquicos.
Ou os próprios servos que tinham sua noção de Direito extraída da cultura, das tradições (muitas
vezes tradicionalismo, como no caso do senhor feudal que tinha direitos sobre a primeira noite
das noivas) e/ou dos valores familiares. Então, tanto as fontes quanto as interpretações do Direito
eram variadas e isto, é claro, não favorecia a uniformização do poder. Por isso, não é difícil de se
perceber que havia imensos conflitos jurídicos com os vários segmentos sociais, políticos e
religiosos disputando entre si o controle legal:
Com a autoridade central enfraquecida, as atividades legislativas, judicial
e administrativa serão disputadas entre os reis, a Igreja, os senhores, as
corporações e explicadas com o recurso a ideias variadas [...] Os poderes
militares, administrativos, fiscais e jurisdicionais dos senhores feudais
serão explicados pela situação patrimonial, pela posse da terra, regulada
pelo direito privado (Sundfeld, 2004, p. 33).
Portanto, a primeira centralização e unificação que se deu a partir daí foi exatamente em
relação às fontes jurídicas legítimas – quando o Estado passasse a ser fonte reconhecida do
187
Ou das funções, uma vez que o poder soberano é uno.
210
Direito. O Estado será a fonte única do Direito, a fonte jurídica monista. Mas antes vejamos um
breve resumo do Estado Medieval que provocou, exatamente, a centralização do Poder Político.
RESUMO: Estado Medieval - características
 Fases do Estado Medieval: Feudal – Estamental - Cortes – Corporativo.
 Modo de Produção Feudal:
a) Vassalagem: os proprietários menos poderosos são submetidos.
b) Benefício: contrato entre o senhor feudal e o chefe de família – o servo recebia
terras para produzir, mas teria que trabalhar para o senhor feudal.
c) Imunidade: algumas glebas estão isentas da aferição de tributos.
1. Permanente instabilidade institucional: política, econômica e social.
2. Oposição entre poder espiritual e poder temporal.
3. Fragmentação e multiplicação de centros internos do Poder Público: nobres, bispos,
universidades, reinos, corporações.
4. Pluralismo Jurídico - base consuetudinária embasada em regalias nobiliárquicas.
5. Relações de dependência pessoal, hierarquia de privilégios.
6. Não está em vigência o IMPERIUM (“poder como faculdade soberana de mandar”:
Estado).
7. Vigora a noção de DOMINIUM (família e propriedade – a política migra para o
doméstico).
Estado Patrimonial – características
 Hereditariedade, primogenitura e inalienabilidade da propriedade rural.
 Relações de sujeição, domínio, posse.
 Relações de clientelismo:
- Favoritismo - favorecimento pessoal.
- Punição exemplar dos adversários (não há neutralidade).
 A relação jurídica se baseia em privilégios (leis de caráter privado), regalias,
imunidades, salvo-condutos.
 Privatização da política – o espaço público cede às pressões do espaço privado. O
geral se enfraquece diante do particular.
 Tirania: principatus regius (pais e filhos) - politicus (marido e esposa) - despoticus
(senhor e servo).
2ª Parte: ESTADO LEGAL
o direito como dominação ou liberdade?
Veremos agora um acerto de contas com as formas desorganizadas, mas absolutistas que
formaram o Antigo Regime.
Direito e Dominação no Estado Legal
Neste momento, o objetivo é relacionar Direito e Política de um ponto de vista mais
orgânico e menos formal, destacando alguns momentos históricos, especialmente o século XIX e
a afirmação de novos direitos – agora já tendo em pauta a passagem do Estado Legal para o
Estado de Direito moderno. O Estado Legal exprimirá o próprio processo histórico de
constitucionalização do Poder Político e que Jorge Miranda (2000) denominou de auto-regência
do Direito ou do jurídico, frisando que é uma das garantias ou das conquistas trazidas pelo curso
do liberalismo: a outra base do Estado Constitucional. As conquistas e as transformações
211
perpetradas pelo liberalismo, na ordem constitucional, serão de duas maneiras ou formas
distintas e complementares:
Diretamente: a abolição da escravatura, a transformação do Direito e do
processo penais, a progressiva supressão de privilégios de nascimento, a
liberdade de imprensa. Indiretamente: a prescrição de princípios que,
ainda quando não postos logo em prática, viriam, pela sua própria lógica,
numa espécie de auto-regência do Direito, a servir a todas as classes, e
não apenas à classe burguesa que começara por os defender em proveito
próprio (assim, a partir da liberdade de associação a conquista da
liberdade sindical e a partir do princípio da soberania do povo e do
sufrágio universal) (Miranda, 2000, p. 89).
Vemos que mesmo o desenvolvimento liberal do Direito permitirá que, em algum
momento posterior, outros grupos ou classes sociais façam uso dos principais institutos jurídicos.
Não há uma diferenciação substancial quanto à auto-regulação do jurídico, mas é bom dizer que
isto não implica em autonomia ou desligamento do jurídico em relação ao político. De todo
modo, há a sugestão de que este é o fundamento político em que está assentado o Estado de
Direito188. Miranda ainda irá frisar o seguinte:
É justamente por efeito desta auto-regência do jurídico que até as
próprias classes inferiores podem vir a ter interesse na realização do
direito estabelecido pelas classes superiores. É esta a razão que nos
explica por que, tantas vezes, na luta pelo direito as classes oprimidas se
tenham convertido em defensoras da ordem jurídica estabelecida que as
classes superiores impuseram sobre elas. É que esse direito, apesar de ser
de classe, é sempre direito e, sendo direito, jamais ousará apregoar
francamente o interesse da classe dominante. Encobri-lo-á sob a
roupagem duma forma jurídica, redundando assim, qualquer que seja o
seu conteúdo, em benefício de todos os oprimidos (Miranda, 2000, p. 89).
O Estado Legal, como estrutura político-jurídica posterior à Revolução Francesa, é
exemplo de uma dessas fases de inversão, subversão do Direito Posto. Isto é, o mesmo Direito
que outrora tinha sido criado para o estrito cumprimento do exercício legal (simples e direto) da
dominação de uma classe social sobre outras, agora permite ou deixa em aberto a possibilidade
de os oprimidos utilizarem-se daquele mesmo Direito para a sua libertação. O fato é que, em
regra, o Direito sempre falará em liberdade e só raramente demonstrará as armas de dominação
empregadas. Talvez por isso o mais correto seja dizer que as demais classes e grupos sociais de
oprimidos passem a reivindicar e requerer mais exatamente a ideia de direito, esse ideal de
justiça, do que propriamente os direitos já instrumentalizados. A dominação produzida pelo
Direito será doravante mais ideológica, e não tanto coercitivamente, porque a classe dominante
se vê obrigada a maquiar, esconder os reais propósitos da própria dominação econômica.
Essa situação, no entanto, lembra-nos de que essa artimanha de trazer o Direito para si é
uma tarefa ou iniciativa que sempre esteve a cargo dos oprimidos – porque o objetivo do Direito
se aproxima muito da dominação. Este é o caso preciso de toda a legislação social e trabalhista
188
Com isso, pode-se seguir uma real análise dialética do Direito, pois tendo sido elaborado para atender a fins
específicos de uma determinada classe ou grupo social, o Direito acaba sendo apropriado por outra classe que lhe é
antagônica e contrária: é o que se verifica hoje com os direitos liberais consoante o Estado Democrático de Direito.
212
(os direitos público-subjetivos) que, literalmente, foi arrancada do sistema capitalista sob a
intervenção estatal: a fim de que os anéis não fossem embora com os dedos. A própria fonte
original dessa legislação, portanto, é a política e não exatamente alguma racionalidade ou
objetividade embutida na atividade política legislativa. O que força a conquista do direito é a luta
política dos esquecidos pelo direito.
Mas não será só uma política indefinida, ou seja, trata-se sem dúvida de dominação: a
soma ou reunião de Estado de Direito, Constituição e burocracia independente resultará no que
Max Weber (1979; 1993) denominava de dominação legítima ou dominação racional-legal. É
certo que apregoava aqui uma forma de dominação justa, mas é ainda correto dizer que Weber
(1979; 1993) não se tenha dedicado a analisar detidamente o Direito como Liberdade, ou a
questionar a distância existente entre Direito e Justiça: seu foco será o Direito como Dominação.
Aliás, esse é o curso histórico do Estado de Direito que viria a substituir o predecessor Estado
Legal.
Nessa mesma linha, devemos recordar que quando Weber define o Estado como o
organismo político que detêm o monopólio estatal do uso legítimo da força física, está em
destaque a relação interna entre Direito e dominação estatal. Entretanto, naquele ambiente
conhecido do Estado Legal, os trabalhadores acabaram agrupados na realidade do chão de
fábrica, ou seja, para alimentar a linha de produção foi necessário o deslocamento de milhares de
trabalhadores para o interior das fábricas: o que também corresponde à fórmula da consciência
social em si, como descrita por Marx189, além de destacar o necessário exame das Leis de
Fábrica. Esse contato levou a que passassem a reconhecer as necessidades mais gerais e coletivas
da classe trabalhadora, compartilhando e comparando as dores do mundo do trabalho.
Desse modo, o trabalhador pode ampliar sua consciência individual pela comparação,
pelo diálogo, pela verificação dos problemas e mazelas comuns. Assim, de posse dessa
consciência social para si, quer dizer, a consciência individual do trabalhador que já perscruta as
relações sociais ampliadas pelo trabalho e todas as consequências daí decorrentes, o trabalhador
se tornou agente social. (Vai-se, portanto, da consciência individual em si, à consciência social
para si). De modo complementar, pode-se dizer que o Estado Legal favoreceu o
desenvolvimento da consciência global do trabalho, especialmente quanto ao respeito e ao uso
possível do Direito:
O Estado Legal, já mencionado como antecessor do Estado
Constitucional e do Estado de Direito, fora concebido como ordem
jurídica hierárquica. No vértice da pirâmide hierárquica situava-se a
Déclaration de 26 de agosto de 1789 consagrando os “droits naturels et
sacrés de l’homme”. Esta Déclaration era, simultaneamente, uma
“supraconstituição” e uma “pré-constituição”: supra-constituição porque
estabelecia uma disciplina vinculativa para a própria constituição (1791);
pré-constituição porque, cronologicamente, precedeu mesmo a primeira
lei superior. A constituição situa-se num plano imediatamente inferior à
Declaração. A lei ocupa o terceiro lugar na pirâmide hierárquica e, na
base, situam-se os atos do executivo de aplicação das leis (Canotilho, s/d,
p. 95).
189
O tema Direito como dominação, portanto, está dado seja pelo referencial marxiano – da dominação e da busca
da hegemonia de uma classe sobre outra -, seja pela premissa sociológica de Max Weber ao sinalizar a dominação
racional-legal. De um modo ou de outro, o Direito servirá à dominação e quer seja estatal, quer seja econômica.
213
Ressaltamos esse aspecto jurídico do Estado Legal porque no topo do ordenamento
estava a Declaração Francesa e ali repousava a declaração de interesses ditos universais e de
salvaguarda do direito ao trabalho: o reconhecimento do direito natural e a consciência social de
que o mesmo direito deveria ser considerado na prática e coletivamente, visto que o direito ao
trabalho é a garantia homogênea e concreta ao processo de hominização. De certo modo, a
primazia da lei, império da lei, não poderia se furtar a esta progressiva humanização da
legislação social:
O princípio da primazia da lei servia para a submissão ao direito do poder
político “sob um duplo ponto de vista”: (1) os cidadãos têm a garantia de
que a lei só pode ser editada pelo órgão legislativo, isto é, o órgão
representativo da vontade geral (cfr. Déclaration de 1789, artigo 6º); (2)
em virtude da sua dignidade – obra dos representantes da Nação – a lei
constitui a fonte de direito (Canotilho, s/d, p. 95).
Historicamente, de um modo ou de outro, os oprimidos sempre procuraram avariar os
impeditivos factuais à transformação do Estado e da sociedade. E não fosse pela resistência e
insistência dos adversários dos vários Estados absolutos, nada teria saído do lugar durante esse
tempo todo. Não fosse pela pressão dos que de alguma forma sempre acabavam oprimidos, e o
direito do opressor jamais se teria alterado substancialmente, a ponto de agasalhar os direitos e os
interesses deles que antes eram simplesmente oprimidos e relegados a um quinto plano da
cidadania. Por outro lado, o Estado Legal se mostrava um autêntico herdeiro do processo
revolucionário de 1789 e o Estado de Direito (liberal, formal) viria a interromper esse fluxo
histórico de reivindicação e de participação popular190:
A teoria do “Estado de Direito” [...] foi construída em grande parte contra
a de “Estado Legal”, o Estado do império da lei herdado da Revolução
Francesa, que dava preponderância ao Parlamento e aos eleitos pelo
sufrágio universal no sistema político e de elaboração de normas. A partir
do começo do século XX a doutrina desejou submeter a lei ao Direito e
confiar o Estado de Direito ao controle pelo Judiciário, para evitar os
“desbordamentos” dos Legislativos e dos eleitores. Isso porque se
confiava mais no juiz do que na norma escrita e no cidadão para controlar
o Estado [...] se refere a um período em que movimentos populares – os
cidadãos – começavam a gerar o temor da queda do edifício social
burguês [...] a teoria do Estado de Direito foi construída, em grande parte,
para barrar a possibilidade de extensão do papel dos cidadãos (Dallari,
2003, pp. 195-6).
Daí se conclui que o Estado Legal era mais afeto à participação popular e, portanto, mais
social do que o Estado de Direito. Mas, mesmo que o Estado de Direito viesse a ser postado
como instrumento conservador de privilégios de classes ou de grupos sociais, a luta pelo Direito
passaria a ter uma conotação de isonomia e equidade. Este foi e tem sido o papel e o desenlace
extremamente positivos demonstrados pelos princípios da igualdade formal e da legalidade, uma
vez que, ao equiparar juridicamente opressores e oprimidos, o Estado e sua lei permitiram – pela
190
E aqui se dá o mesmo processo dialético, de constante relação de oposição entre contrários, só que agora com um
revés para os adeptos da interpretação socializante do Direito, porque no Estado de Direito, sob a imposição da
igualdade formal, os direitos sociais acabaram solapados na sua base popular.
214
primeira vez na história do Direito – que os oprimidos requeressem para si o Estado de Direito,
em pé de igualdade, fazendo valer todas as consequências da isonomia, os direitos que antes só
serviam ao opressor. Agora em benefício do lado mais fraco, procurando-se equiparar/equilibrar
a balança jurídica, política e social.
O Estado Legal, portanto, foi um desses raros momentos em que a soberania legislativa
resgatou seus laços, seus elos com a soberania popular, sendo que aí repousara por instantes a
força social e jurídica legítima. Pois só assim a soberania popular seria capaz de legitimar a
soberania legislativa. Hoje, porém, sabemos que é necessário (urgente) ultrapassar os limites da
igualdade formal. Pois, se levada ao pé da letra, a igualdade jurídica acarretaria ainda mais
desigualdade, uma vez que se tratam os desiguais, igualmente, sem capacidade de diferenciação
em virtude das melhores condições ofertadas a uns do que a outros.
Esta situação é tão clara que a matemática nos auxilia a exemplificar essa questão:
imaginemos uma situação hipotética em que o sujeito A receba 100 unidades monetárias por
trabalho mensal realizado e que um sujeito B receba somente 10: é fácil constatar que a diferença
entre ambos é de 90 unidades. Pois bem, aplicando-se equitativamente a regra do reajuste de
10% aos dois envolvidos, o sujeito A passaria a receber 110 unidades monetárias mensais e o
sujeito B apenas 11 unidades. Ou seja, a partir do reajuste, a distância salarial entre ambos
chegaria a 99 unidades monetárias. No exemplo, a concentração de renda passou de 90 para 99
unidades salariais.
Enfim, é esta consciência do Direito Justo ou da Justiça Material que ainda nos resta
adquirir, a fim de percebermos que só haverá justiça quando se tratar os iguais igualmente, e os
desiguais, desigualmente. Essa consciência de justiça material é ausente no formalismo abstrato
do Estado de Direito, porque o modelo não fora preparado para recepcionar as medidas sociais de
discriminação positiva ou de ação afirmativa.
Por essa via, a igualdade formal, diante da lei, seleciona uma imensa desigualdade no
ponto de partida, diante das oportunidades e/ou condições materiais da vida social. De outro
modo, a igualdade material ou econômica pressupõe um forte igualitarismo no ponto de partida
mas, em compensação, admite uma também substancial desigualdade no ponto de chegada – de
acordo com as potencialidades e méritos próprios de cada um.
Por isso, da mesma forma como o Estado Legal rompeu com a estrutura dos privilégios
do Ancien Régime, ao Estado de Direito resta romper os diques capitalistas que represam a
justiça real. Desse modo, essa limitação burocrática formal do Estado de Direito realmente
reforça a validade das críticas de Marx, no Crítica ao Programa de Gotha e nos Manuscritos
Econômico-Filosóficos. Como diz Raymond Aron (2003), esta é uma das leituras possíveis do
jovem Marx analítico do Direito. Mesmo apropriado pela classe trabalhadora, o Direito tem seus
marcos na dominação social de classe, pois que seu objetivo inicial era este e não outro. Esta será
a matriz marxiana envolvendo Estado e Direito. Lembremo-nos de que a crítica de Marx ao
Estado e ao Direito é uma crítica dirigida ao que poderíamos chamar de Estado de Direito
Moderno. Trata-se, em suma, do Estado de Direito que se afirmou com as fundações políticas e
institucionais do próprio Estado Moderno.
O Direito Como Limitação à Liberdade Real
Aron (2003) cita literalmente Marx na Crítica ao Programa de Gotha, a fim de destacar
que Marx teria percebido os elementos formais de formação do Estado (como enunciado pelas
Teorias do Estado), e ainda que fosse em tom mais crítico:
“A ‘sociedade atual’ é a sociedade capitalista existente em todos os países
civilizados, mais ou menos livre dos elementos medievais, mais ou menos
215
modificada pela evolução histórica particular parcialmente desenvolvida
em cada país. O ‘Estado atual’, pelo contrário, muda com a fronteira (...)
O ‘Estado atual’ é uma ficção. “No entanto, os diversos Estados dos
diversos países civilizados, não obstante a múltipla diversidade de suas
formas, têm todos em comum repousar sobre o terreno da sociedade
burguesa moderna, mais ou menos desenvolvida do ponto de vista
capitalista. Isso faz com que certas características essenciais lhes sejam
comuns. Neste sentido, pode-se falar de ‘Estado atual’ como expressão
genérica, em contraste com o do futuro, quando a sociedade burguesa,
que hoje é sua raiz, não mais existirá” (Aron, pp. 461-2 – grifos do autor).
Por Estado Atual entende-se a forma possível do Estado, neste momento histórico. Já os
elementos do Estado em destaque são de ordem jurídica, administrativa, organizacional,
institucional. Outra questão derivada é: saberia a classe popular, proletária, trabalhadora se
apropriar desses instrumentos do Estado Burguês para redimensioná-los em seu favor?
Sem dúvida essa é uma questão das mais controversas e que acompanhou toda a história
do Socialismo Realmente Existente. Porém, de acordo com um Marx (1989) mais agudo, agora
na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, talvez encontremos algum ponto de
resposta no processo de surgimento e de formação do Estado Moderno. E a resposta não parece
ser muito satisfatória:
A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que teve a mais lógica,
profunda e complexa expressão em Hegel, surge ao mesmo tempo como a
análise crítica do Estado moderno e da realidade a ele associada e como a
negação definitiva de todas as anteriores formas de consciência na
jurisprudência e na política alemã, cuja expressão mais distinta e mais
geral, elevada ao nível de ciência, é precisamente a filosofia especulativa
do direito. Só a Alemanha poderia produzir a filosofia especulativa do
direito – este pensamento extravagante e abstrato acerca do Estado
moderno cuja realidade permanece no além (mesmo se este além fica
apenas no outro lado do Reno) -, o representante alemão do Estado
moderno, pelo contrário, que não toma em linha de conta o homem real, só
foi possível porque e na medida em que o próprio Estado moderno não
atribui importância ao homem real ou unicamente satisfaz o homem total
de maneira ilusória (Marx, 1989, p. 85).
É certo, então, que não teria vez uma Teoria Geral do Estado, pois que, a partir dessa
leitura filosófica do Estado, se privilegia por demais uma abstração do Estado e não
propriamente o homem real. A leitura do Direito como processo de dominação, portanto, parece
ainda mais forte. A condição do Direito que se espraia ao conjunto dos Direitos Humanos,
portanto, também não seria diferente e é isso que vemos em muitas passagens da Condição
Judaica. Mas tomemos uma como exemplo dessa acidez de Marx (1989): “Constatemos, em
primeiro lugar, o fato de que os chamados direitos do homem, enquanto distintos dos direitos do
cidadão, constituem apenas os direitos de um membro da sociedade civil, isto é, do homem
egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade” (p. 56).
É claro como o Direito é produto direto do homem egoísta, para satisfazer seus interesses
pessoais no tocante ao direito à propriedade. A ideia de que a propriedade é base da soberania do
216
Estado, aliás, principia com Hobbes (1983, p. 110), o clássico pensador político e formulador da
síntese do Estado Moderno. No mesmo sentido, no Manifesto do Partido Comunista, Marx
tornará explícita a relação entre burguesia e Estado: “O poder político do Estado moderno nada
mais é do que um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios comuns de toda a classe
burguesa” (1993, p. 68). Deste modo, será que as diferenças seriam assim tão sensíveis entre esse
tipo de Estado de Direito Moderno (substituto do Estado Legal) descrito por Marx, até o
chamado Estado Social, de inspiração popular, no século XX?
Com o Estado Social, já no século XX, esse procedimento de reapropriação do Direito
pela classe trabalhadora é ainda mais evidente – porque é um Estado quase-socialista (de
inspiração social-socialista, mas radicado na Europa capitalista e no México de economia rural).
Aliás, é o protótipo do Estado Capitalista que gera uma legislação específica para os
trabalhadores e inicia a compreensão coletiva do Direito. Metaforicamente, é como se o Estado
mudasse de lado ou, talvez, estivesse de cabeça para baixo. Essa mesma situação irá ocorrer no
transcurso do Estado Democrático, em meados do século XX e, posteriormente, com o chamado
Estado Democrático de Direito, em que a figura do Estado, paulatinamente, vai se distanciando
desse recorte ideológico que se mitifica no binômio Estado-coerção. A Comuna de Paris, então,
é uma fase ainda mais acirrada ou prelúdio popular do Estado Social.
Outra coisa é saber se o povo será capaz de tomar para si a racionalidade jurídica
capitalista, nos dias atuais e, se isso acontecesse, se seria uma espécie de reinvenção do Estado e
do Direito. Ou seja, trata-se de revelar esse Direito que se presta à dominação, à opressão, à mera
coerção, para não mais se relevar essa condição de injustiça e pobreza jurídica. Para que o
Direito não sirva só aos ricos, é preciso fortificar o socialismo jurídico presente no Princípio da
Justiça Social e que forma o eixo central do Estado Democrático de Direito Social.
Atualização do debate
Dois grandes julgamentos seguidos trazem à tona a história das “penas duras”. A pena de
antecipação da morte, bem como as penas cruéis e degradantes são proibidas
constitucionalmente no Brasil. Nenhum projeto de emenda constitucional ganhará êxito porque o
direito à vida, como direito fundamental, garante que essas penas sejam afastadas do cotidiano
jurídico nacional. Mas, o que garantiria que as próprias cláusulas pétreas são sofreriam mudanças
em sua substância a fim de que essas garantias fossem removidas e, em seu lugar, fossem
incluídas as tais penas duras e finalizadoras?
Ao contrário do que se debate em termos de impedimentos legais a essas mudanças
profundas na ordem constitucional, o que garante o direito à vida é o nível de profundidade
republicana que já alcançamos. Este alicerce republicano, estampado na defesa de um mínimo de
moralidade e de racionalidade evolutiva impediria que déssemos um passo atrás. O Brasil já
conheceu a pena de morte na época do Império, então, voltar a esta pena seria o equivalente de
retroagir. Juridicamente, republicanamente, seria um processo involutivo.
A moral republicana, descontados os debates ideológicos inesgotáveis, pode ser
sumariada como uma fase de amadurecimento dos valores públicos em que o Estado não mais se
resume a um aplicador da vingança pública. O Estado Republicano não mais se vê como refém
da cultura popular, como um microfone aberto ao queixume e ao senso comum. O Estado
Republicano é um profundo indutor de cultura pública, modificando o direito e a atividade
política. Este pensamento republicano tem um extenso papel modificador da sociedade, movido
por um princípio educativo. Este tipo de Estado tem um aporte civilizatório, socializador.
Herdeiro do jusnaturalismo, do Iluminismo, o Estado da República é elucidativo, esclarecedor da
217
condição humana. Não é, portanto, um mero extensor das práticas institucionais focadas no
controle social.
O Estado repressor – hoje aplica-se a pena de morte, amanhã haverá redução nos níveis
de liberdade política, sindical, social – é o oposto da perspectiva propriamente republicana da
política. Ao contrário de se estimular a inclusão social por meio do fortalecimento da autonomia,
invoca-se a heteronomia a ser impulsionada por esse tipo de Estado Penal. Um Estado Penal que,
como se estampa no nome, conhece sua sobrevida na paralisia e no represamento do
esclarecimento e da extensão da responsabilidade social. Essas penas, obviamente, não motivam
a consciência republicana, não aprofundam o senso de responsabilidade pública, logo, não
concorrem para a inclusão social.
Neste sentido, o Estado Penal lastreado nas penas cruéis e degradantes é um Estado de
Exceção, uma vez que são penas que seguem a lógica da exclusão social. Ninguém será
humanizado com a prática da tortura pública, do mesmo modo que ninguém será incluído pelo
banimento social ou pela execução autorizada pelo Estado. As penas definitivas, cruéis são uma
degradação da moralidade pública, constituem uma depreciação dos ganhos civilizatórios e
evolutivos que a duras penas conseguimos alcançar. Permitir este retrocesso seria pouco
inteligente e um desserviço à Humanidade. Essas penas são uma degradação moral do ponto de
vista do aprofundamento dos pressupostos do pensamento e das práticas sociais e institucionais
republicanas. Desse modo, não é difícil ver a lógica que se abriga na Teoria Jurídica da própria
soberania.
218
SOBERANIA JURÍDICA
Teoria Jurídica do Estado
Aceita-se que este item em exame na Teoria da Soberania já se sobrepõe àquela soberania
inaugural do Estado, como vontade geral da Nação. Isto é, há uma soberania jurídica com a
produção e aceitação de um ordenamento jurídico específico – se a soberania política já se
efetivou –, pois o político é pré-requisito do jurídico. Seria, portanto, a sustentação jurídica
ofertada à soberania popular ou originária. De certo modo, o direito positivo concederá solidez
defensiva à soberania política, mas não atuará só e isoladamente, pois a edificação de instituições
de suporte e de auxílio ao desenvolvimento do próprio Estado encontrará respaldo nesta
soberania jurídica.
Na Teoria Jurídica do Estado, o elemento jurídico prima sobre o social, quando o poder é
exercido sobre uma sociedade legalmente ordenada. Neste caso, há uma abstração de todo o
poder social, considerando-se a própria soberania como poder instituído, isto é, considerando-se
o poder como instituição. Neste caso, considera-se o poder como um dado de entrada no sistema
jurídico; observa-se o poder como instituição que se exerce e se pronuncia por meio dos órgãos
públicos. Estuda-se o poder sub specie juris (sob a visão do direito).
É possível formular o conceito jurídico do Estado, mas sem desmembrá-lo da Teoria
Social do Estado; afinal, a soberania sempre se encontra com o Poder Constituinte. De tal modo
que o Poder Jurídico é a força social institucionalizada. Esta normatividade transforma o outrora
poder arbitrário, do próprio Estado, em arbitragem social. É o que também pode-se definir como
competência soberana – o conceito jurídico que legitima e autoriza o Estado a tomar decisões
obrigatórias para os outros.
A obediência, portanto, transforma-se em dever jurídico – o dever que é desejável e
deduzível da lei anterior; como legitimidade racional, prescrita na Constituição, no direito
positivo e que estivesse de acordo com os corolários do direito internacional. Isto ainda baliza o
entendimento distinto entre força do Estado (monopólio da coerção) e autoridade do Estado;
sendo que esta deriva da confiança depositada pelo povo e que, por sua vez, decorre da
racionalidade das decisões políticas, da funcionalidade dos órgãos públicos, da integridade do
processo decisório democrático, popular, transparente, e das tradições e dos valores republicanos
(Reale, 2000). Esta é a base jurídica do poder (ou deveria ser): “O fundamento da soberania deve
pois ser a confiança do povo na legitimidade da atividade governamental” (Fleiner-Gerster,
2006, p. 248). A mais grave crise institucional, no entanto, ocorre quando a desconfiança no
governo é tão grande que se confunde este governo com o Estado.
Parte da literatura associa este tema à soberania, mas de uma forma especial, uma vez que
não se entende o poder limitado à condição de força e dominação, mas sim como
obrigatoriedade intrínseca do direito, dependente do reconhecimento e da convicção sobre a
Justiça e como se viesse a configurar uma soberania profunda. Com apoio em Hart (2012), podese dizer que o direito é convicção: “Assim, não é soberano aquele que possui o poder em sua
plenitude máxima, mas sim aquele que edita leis conforme regras prescritas, das quais o povo
aprova o caráter vinculante” (Fleiner-Gerster, 2006, p.242). A aprovação do caráter vinculante da
lei é essencial, uma vez que a lei acompanhará e regulará a vida comum do homem médio
indefinidamente.
Na soberania profunda, o Poder Político é limitado em sua capacidade de ação pelo
ideal de Justiça compartilhado pelo povo, portanto, quando o poder não se encontra acima do
219
direito – e quando a soberania não serve mais de retórica do poder abusivo, quando o direito
interno se alinha com o direito internacional.
Então, quais os direitos invioláveis da Humanidade? Não se definem propriamente esses
direitos, mas sim sua base moral: “Princípios que podem ser generalizados, que saem vitoriosos
de um debate público e, por conseguinte, são aplicáveis à realidade humana assim como
explicáveis à opinião pública resistem ao exame da razão prática” (Fleiner-Gerster, 2006, p.259).
Se os marcos reguladores são ou podem ser definidos pela comunidade internacional, na
forma de direitos humanos fundamentais, e se estes marcos se convertem em princípios diretivos
do direito interno, então, pode-se concluir que a soberania profunda tem os direitos humanos
como mecanismo de chancela de todo o direito positivo que consta do ordenamento jurídico.
Esta concepção de soberania jurídica é igualmente baseada na ideia irredutível da
prevalência de uma ordem jurídica democrática. Em suma, é a delimitação jurídica que se
alcançou com a instituição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e com a
Constituição de Bonn, na Alemanha de 1949.
Esta articulação entre direito e princípios sairia intacta do exame provocado pelo realismo
político – razão prática – uma vez que direito e justificação social estariam apontados para o
mesmo sentido. Ou seja, direito e princípios seriam móveis da contenção do Poder Político – da
soberania que se quer apenas como feição de força, comando e dominação.
Contudo, ainda que em meio ao positivismo jurídico, o Estado já terá contraído para si a
responsabilidade moral de agir com acuidade e distribuir as matérias de justiça: “Uma vez que o
Estado, pela sua própria força coercitiva, confere ao direito um caráter mais vinculante que o dos
princípios morais, assume uma responsabilidade em matéria de legislação” (Fleiner-Gerster,
2006, p.260).
A limitação do poder e do direito ao controle, dominação ou comando limita o Estado aos
seus pressupostos políticos iniciais (pela força, garantir a coesão social), como se não fosse
possível alcançar o pilar jurídico de sua sustentação: “Trata-se da afirmação de que a chave para
a compreensão do direito se encontra na noção simples de uma ordem apoiada por uma ameaça,
que Austin chamou de ‘comando” (Hart, 2012, p. 21).
Associa-se a imperatividade do direito à força proveniente do Estado, à coerção, à
capacidade efetiva de infligir dano nas hipóteses de desobediência do preceito legal. Contudo, a
imperatividade jurídica do Estado não está no estado latente do medo ou do dano que poderia ser
provocado, mas na autoridade que se possa construir como relação social (autoritas). Quando a
autoridade (autoritas) se baseia na qualidade moral que representa e que congrega e assim se
confunde com o comando (potestas): “A posição de comando se caracteriza pelo exercício da
autoridade sobre homens, e não pelo poder de infligir dano; e, embora possa se conjugar à
ameaça de dano, o comando é, antes de tudo, não um recurso ao medo, mas uma chamada ao
respeito pela autoridade” (Hart, 2012, p. 26).
De modo clássico, quando pensamos em figuras como o senador romano Cícero, ícone da
República, vem à memória que autoridade se inspira em autoritas, sendo esta uma legitimação
social amplamente reconhecida, empossada, empostada por sua qualidade e não pela força ou
corrupção dos valores: “Que é, pois, o Estado, senão uma sociedade para o direito?” (Cícero,
s/d, p. 44 – grifos nossos).
Diz-se que é uma qualidade que compete a quem ostenta a autoridade moral. O agente
semeado desse reconhecimento social e moral, o autor, não é autor apenas de obras e
manifestações particulares, mas figura como o autor da política pública – como autor da coisa
(Res) pública, da República. Por fim, ainda se pode ver a autoridade como reflexo do verbo
220
augere: crescer, fazer crescer, crescer junto. Então, autoridade tem que ver diretamente com
alteridade, pois, aquele que faz crescer, acresce algo ao momento inaugural, à obra inicial.
Esta não deixa de ser uma vertente da teoria finalista do Estado, erigindo-se fins claros e
seguros ao Poder Público. O que ainda nos ajuda a perceber que a concepção finalista do Estado
está longe de ter sido superada, assim como o próprio Estado enquanto forma e organização do
conteúdo do Poder Político. Por exemplo, na análise emprestada ao direito constitucional
português na definição das tarefas ou objetivos fundamentais do Estado.
Para alguns, são tarefas; para outros, objetivos. Em todo caso, essas são metas ou tarefas
destinadas à consecução de um fim comum, e que só serão alcançados quando o Estado se
organizar para as funções administrativas, políticas e jurisdicionais adequadas. Devemos
entender a satisfação de necessidades coletivas como o fim comum anunciado à coletividade. O
fim comum é garantido pelo Poder de Império.
221
PODER DE IMPÉRIO
O Poder de Império nos tempos hodiernos nos remete as várias outras indagações sobre o
“pacto federativo”, consubstanciadas em uma necessária agregação do que pode ser considerado
interesse público e os anseios por respostas públicas e soluções imediatas para suas
preocupações. Os movimentos que tomaram as ruas também refletiam a crítica às instituições
públicas e ao papel (como função social) desempenhado pelo Estado brasileiro.
O corte epistemológico de nossa abordagem se concentra no Poder de Império como um
dos elementos de formação do aparato estatal, presente desde a formação inicial do Estado
Moderno, assim como povo e território também o são. Pode-se inicialmente ser tratado como a
manifestação inequívoca da soberania interna, a exemplo do que aferimos neste julgado em Ação
Civil Pública:
RECURSO DE REVISTA RR 86 86/2006-653-09-00.0
(TST)
AÇÃO CIVIL PÚBLICA - GARIMPAGEM
CLANDESTINA - LIMINAR - CUMPRIMENTO
PELA UNIÃO FEDERAL - PODER DE IMPERIO.
1- Lídima a decisão judicial que determina à União
Federal, no âmbito de sua competência, cumprimento,
no prazo nela estabelecida, de liminar deferida a
terceiro em Ação Civil Pública por deter
intransferível poder de império. (grifos nossos)
O Poder de Império mostra-se sui generis, e como tal, representa a capacidade de o
Estado impor soberanamente sua vontade com vistas a atender ao interesse público. Segue,
assim, a teoria finalista do Estado e subsidia o ato administrativo. A doutrina tradicional destaca
como atributos do ato administrativo:
a) presunção de legitimidade e veracidade
b) auto-executoriedade
c) imperatividade
O Estado age com Poder de Império quando impõe seus atos administrativos a terceiros,
independentemente de sua vontade. Por seu turno, autoriza-se/legitima-se esta capacidade de
imposição unilateral da vontade do poder público por meio do Poder Extroverso.
Poder Extroverso
O Poder Extroverso consiste em permissão decorrente da imperatividade, sobre a qual
nos remetemos acima, para que o Estado interfira, por meio de seus atos administrativos, na
esfera jurídica dos cidadãos e criem para esses obrigações de ordem unilateral. Como diz
Sundfeld:
O Estado produz seus atos no uso de poder extroverso. No entanto, o
poder político seria arbitrário e despótico se os interessados não
pudessem expor suas razões, opiniões, interesses, antes de serem afetados
pelos atos estatais. Os comerciantes fazem seu lobby no Parlamento;
autor e réu apresentam suas pretensões e provas ao juiz; a empresa se
defende da suspeita de sonegação. São os processos legislativo e judicial
e o procedimento administrativo que permitem essa desejável
222
“participação” dos interessados nas decisões de autoridades públicas. O
processo é, então – em perfeita coerência com a ideia central do direito
público, de realizar o equilíbrio entre liberdade e autoridade -, a
contrapartida assegurada aos particulares pelo fato de serem atingidos por
atos estatais unilaterais (2004, p. 94).
Sinteticamente, o Poder Extroverso institui obrigações sociais, entenda-se como a
capacidade estatal de impor sua vontade legítima aos cidadãos, verticalmente, sem que haja
consulta popular – mesmo que possa haver recurso cabível, a exemplo da promulgação
legislativa de interesse público.
Sua estrutura funcional básica está lastreada em três condicionantes:
1) Estrutura proposicional enunciada por meio de conteúdos jurídicos
correlacionados;
2) Dever-ser onde a norma jurídica ou o sistema de disposições busca organizar o
âmbito de ação e distribuir competências entre os entes da Federação: União,
Estados, municípios e o Distrito Federal (“dever ser” respeitado);
3) Heteronomia em que o direito vale de modo heterônomo (Poder Extroverso) em
relação aos seus obrigados, impondo-se obrigações, com ou sem sua vontade, para
regras de conduta individual ou de grupos, e sem comportar alternativas no caso de
regras de organização do próprio Estado. As normas de organização do Estado, em
suma, possuem o objetivo de assegurar uma convivência juridicamente
coordenada, limitar os poderes do Estado, além de também possuírem um caráter
instrumental, destinado à estrutura e funcionamento dos órgãos e dos processos
técnicos e de aplicação das normas referentes ao Estado.
Decorrem do Poder Extroverso, determinados atributos próprios ao poder e à coerção,
quais sejam: soberano; superior; hierárquico; unilateral; imperioso; coercitivo; auto-regulador.
Disto decorrem atribuições próprias aos atos administrativos:
a) Imperatividade: qualidade que o ato administrativo possui de estar revestido da
vontade imperativa do Estado.
b)Presunção relativa de legitimidade: todo ato administrativo é presumido legítimo até
prova em contrário.
c) Auto-executoriedade: a Administração Pública não precisa se socorrer do poder
judiciário para executar seus atos. Ela mesma o faz.
d)Exigibilidade: qualidade que a Administração Pública possui de exigir o
cumprimento de seus atos, em contrapartida, só se cumpre o ato administrativo se ele
estiver de acordo com a lei.
Trata-se de monismo na fonte, na origem, e de pluralismo no resultado, nas
consequências. Portanto, o que evita que o poder público se transforme em poder tirano
utilizando-se abusivamente do chamado poder extroverso, é justamente essa condição elementar
da Justiça: a garantia do princípio do contraditório – principalmente se do outro lado estiver todo
o poder e aparato do Estado.
Com elementos semelhantes, Sundfeld (2004) ainda resume o desenvolvimento da ordem
jurídica sob o regime do Estado Moderno. Porém, irá colecionar a lógica e a ordem jurídica que
223
guiavam a política racionalizada sob o domínio do Estado Moderno. Esses elementos, em
número de cinco, são os seguintes:
a) O Estado, sendo o criador da ordem jurídica (isto é, sendo incumbido
de fazer as normas), não se submetia a ela, dirigida apenas aos súditos. O
poder Público pairava sobre a ordem jurídica. b) o soberano e, portanto, o
Estado, era indemandável191 pelo indivíduo, não podendo este questionar,
ante um tribunal, a validade ou não dos atos daquele. c) O Estado era
irresponsável juridicamente: le roi ne peut mal faire, the king can do no
wrong192. d) O Estado exercia, em relação aos indivíduos, um poder de
polícia. Daí referirem-se os autores, para identificar o Estado da época,
ao Estado-Polícia, que impunha, de modo ilimitado, quaisquer
obrigações ou restrições às atividades dos particulares. e) Dentro do
Estado, todos os poderes estavam centralizados nas mãos do soberano, a
quem cabia editar as leis, julgar os conflitos e administrar os negócios
públicos (Sundfeld, 2004, p. 34 – grifos nossos).
Porém, para alguns autores, mesmo no bojo do Estado Absoluto sempre há que se falar
do império da lei, como se persistisse um Estado de Direito mesmo naquele tipo de Estado, em
que mais se fez (ou se faz) uso da força física como meio de convencimento político. Não se
trata aqui da excessiva interferência do Estado na vida particular ou pública, mas em certas
situações pode haver a interferência quando houver comprometimento do bem-estar social:
não restringe nem limita o âmbito de tais direitos. Unicamente, acedendo,
como de seu dever, à vontade legal, procede, concretamente, à
identificação dos seus confins ou lhes condiciona o exercício,
promovendo, por ato próprio, sua compatibilização com o bem-estar
social, no que reconhece, in casu (sic), as fronteiras legítimas de sua
expressão. (Mello, 2011, p.835)
O Poder Extroverso, portanto, configura-se como supremacia do interesse público sobre o
interesse particular e é uma das principais garantias e prerrogativas do Poder Público. Quando
necessário para atender à sociedade, significa a supressão ou a eliminação de direito particular;
subjuga-se o interesse privado para se atender ao interesse coletivo.
Este é um princípio estritamente ligado à Administração Pública. Também conhecido
como principio da finalidade pública ou do interesse público ou coletivo, e está implícito na
Constituição Federal. O administrador, ao lidar com o interesse que não é seu, mas sim da
coletividade, deve interpretar a norma administrativa da maneira que melhor garanta as
necessidades públicas, o fim público a que se dirige. Exemplo: art. 5°, XXIII e XXIV, da
CF/88. Citaremos o XXXIII a título de esclarecimento:
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações
de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão
prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas
aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do
Estado (grifos nossos)
191
Quer dizer que o indivíduo não demandava contra o Estado, não promovia ações contra o Poder Público.
A regra da bilateralidade da norma jurídica (de que o Estado deve suportar o peso da lei criada por ele mesmo)
seria anunciada no Estado Liberal, mas só se veria atuante na vigência do Estado Constitucional.
192
224
Por fim, cabe ressaltar os demais princípios que tornam o Poder de Império muito mais
do que um atributo de salvaguarda do próprio Estado, posto que se configuram como poder a
serviço do interesse público, e não somente em defesa da Razão de Estado.
Princípios Decorrentes
Passamos a descrever de forma breve os princípios decorrentes do Poder de Império.
O Princípio da Legalidade se mostra como um princípio que decorre do próprio Estado
de Direito. No caso específico, a administração do poder exige que todas as ações públicas sejam
realizadas conforme a lei. Assim, o Estado só fará algo se houver base legal. Se não há lei, o
Estado não faz, visto que esse é o único caminho autorizado a percorrer.
O Princípio da Impessoalidade tem sua origem no princípio genérico do art. 5.º da
CF/88, qual seja: o Princípio da Igualdade. O Estado deve tratar o administrado de forma
isonômica, sem distinção, não podendo favorecer determinados grupos, sejam políticos,
econômicos, religiosos, organizacionais, ou quaisquer outros.
O Princípio da Moralidade é o que determina à Administração Pública que, na prática
de seus atos, observe-se criteriosamente o padrão de comportamento médio da sociedade.
Embora tenha certa carga de subjetividade na eventualidade de sua observância, o inconsciente
coletivo leva as pessoas a buscarem realizar o que é correto e ético, como parâmetro avaliativo.
O Princípio da Publicidade trás à tona a necessidade de democratização da informação,
seja por qual meio for possível. Os atos da Administração Pública devem ser transparentes, ou
seja, de conhecimento de todos os administrados. Nessa seara temos observado avanços ainda
que em velocidade menor do que se espera. De forma genérica fazemos menção às leis de acesso
à informação, iniciativas de novos espaços de comunicação e interação Estado/sociedade, às
ações de democratização do espaço digital, aos esforços conjuntos do Estado com a sociedade
civil organizada ou não, bem como junto às instituições de ensino no sentido de buscar
diversificar alternativas para a abertura do sigilo de informações que interessam ao povo.
O Princípio da Eficiência, instituído pela Emenda Constitucional n.º 19, busca um
comprometimento da chamada “máquina estatal” com a otimização da receita pública, em que a
relação custo-benefício seja positiva, com ganhos sociais e, obviamente, a fim de que se
ultrapasse a lógica da soma-zero. Os objetivos do Estado, desde então, perpassam pela melhoria
do serviço oferecido pelo Estado, buscando o menor custo, oferecendo um serviço mais perfeito
e qualificado.
Por derradeiro o Princípio da Finalidade, que é subprincípio do Princípio da Legalidade.
O fator que o caracteriza é o fim desejado pelo Estado, que deve ser normativo. Significa dizer
que o ato praticado pela Administração Pública tem por fim aquilo que a lei em sentido estrito
determina. Deve guardar consonância com a legalidade que outrora foi objeto de nossas
observações. Mas, o sentido, finalidade, objetivo decorre da tradicional teoria da finalidade, isto
é, pressupõe-se que o Estado age em prol do interesse público e que sua ação normativa deve ser
regulada por sua capacidade teleológica, em que se propugna pelo fim social.
Enquanto o Poder de Império legitima sua capacidade ativa diretamente da soberania
interna, o Poder Extroverso é condicionante recebido pelo poder de obrigar a “fazer ou deixar de
fazer” que decorre da própria estrutura política criada para atender à Administração Pública.
Como se vê, na ordem jurídica democrática, o Poder de Império é a capacidade ilimitada
que possui o Estado de impor o cumprimento das decisões, sobretudo as que afetem o interesse
público de modo que todos sejam envolvidos e responsabilizados pelo cumprimento das
225
normativas gerais e promovedoras da coisa pública. Portanto, cabe analisar o fundamento
jurídico do Estado Moderno.
226
ELEMENTOS JURÍDICOS DO ESTADO
Institucionalmente, o elemento jurídico mais efetivo do Estado Moderno é a
delimitação jurídica do próprio Estado. Mas, que delimitação é esta? Para a teoria
contratualista, o principal elemento jurídico de configuração do Estado é o próprio contrato
social e político que lhe deu origem: seja como vontade da maioria, seja como “vontade geral” –
dialeticamente, o Estado é um organismo político superior à mera soma das vontades individuais.
Historicamente, devemos lembrar das limitações jurídicas trazidas pelas declarações de
direitos, com início na Carta do Rei João Sem Terra, passando pelo Habeas Corpus (1679) e, é
óbvio, pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Portanto, se olharmos
pela história, veremos que os direitos civis transformaram o Ocidente no que conhecemos hoje
em dia. Sem os direitos civis não haveria cidadãos, apenas súditos obedientes ao rei. Com o
habeas corpus, ainda no Renascimento, como garantia de ir e vir, o cidadão comum não mais
poderia ser perseguido pelo Estado, sem fundamento e ordem legal. Os direitos civis nasceram
como direitos negativos do Estado; para o cidadão ter mais direitos era essencial retirar
atribuições de poder do Estado. Neste fluxo do liberalismo clássico, menos poder estatal e mais
liberdade individual.
Como direitos fundamentais, foram conclamados os direitos de liberdade e, ao mesmo
tempo, os direitos que impunham restrições ao poder do Estado. Para nós, olhando do presente
para o passado, asseguramos que são direitos de futuro, porque estão no presente (não apenas
como consciência) e do passado trazem uma sombra como inspiração. A partir do critério da
liberdade, para o Estado sempre foram “direitos negativos”, como obrigação de o Estado nãofazer: não-agir contra seu povo, não vilipendiar direitos e, positivamente, agir o próprio Estado
para impedir que indivíduos ou forças políticas atentem contra a liberdade. Primeiro, o Estado é
impedido de agir contra a liberdade, depois é estimulado para aprimorar a liberdade.
Os direitos de igualdade, já marcados na primeira geração dos direitos civis – igualdade
entre as classes sociais dominantes (aristocracia e oligarquia) e a burguesia ascendente –, teve de
esperar até a Revolução Francesa para se sagrar. Neste novo contexto insurgiu até uma
Declaração da Mulher e da Cidadã. Depois, teve continuidade o fluxo de “direitos negativos”,
restritivos em relação ao poder do Estado e aí já entramos no século XIX, com a proclamação do
Estado de Direito. Nesta nova roupagem, o moderno Estado de Direito tinha por obrigação acatar
e defender a divisão de seus próprios poderes. A maior segurança à liberdade do cidadão estaria
na divisão do poder central. É como se o Estado de Direito aplicasse a máxima de Maquiavel
(dividir para conquistar) e assim a divisão dos poderes serviria para a conquista da República e
aprofundamento da democracia parlamentar.
De acordo com o pensamento jurídico formulado na Alemanha, como regra que obrigava
ao Estado ser alvo de seus próprios direitos – além de trazer as cláusulas pétreas –, o Estado de
Direito formal/liberal logo se viu forçado pelos movimentos populares e socialistas. No início do
século XX, com a Revolução Russa – embalada pela Revolução Mexicana193 –, os direitos
sociais e de igualdade plena foram elevados à plena potência. Vejamos dois dos casos clássicos e
emblemáticos no direito constitucional.
193
A partir de 1919 o marco jurídico do Estado de Direito seria indelevelmente insculpido pelos estigmas jurídicos
da Constituição de Weimar, na Alemanha.
227
Direitos
Fundamentais
Primeira Dimensão194.
Proibição à escravidão
Princípio do juiz natural
proibição de juízo de exceção
Devido processo
de Constituição
Mexicana de 1917
Art 2º
e Art. 13
Art. 14 § 1º
Constituição
1919195
de
omissa
_
omissa
Acesso gratuito ao Poder Judiciário Art. 17 § 1º
_
Vedação de prisão por dívida
_
Princípio do "non bis in idem196" Art. 23
em matéria criminal
Weimar
_
Vedação ao exercício arbitrário Art. 17
das próprias razões
Art. 17, § 3º
de
omissa
A não-negação explícita aos juízos de exceção seria o prisma que se projetaria após a
vitoriosa campanha eleitoral do Partido Nacional-Socialista na Alemanha pré-nazista (1933)197.
Todo o século XX foi marcado por idas e vindas nas garantias e na afirmação histórica dos
direitos humanos; em todo caso, trata-se de um processo irreversível, próprio da condição
humana. Neste sentido, os “novos direitos” entraram para a história como conquista social. Uma
das diferenças para o passado é que a movimentação política em torno dos direitos era sempre
violenta, revolucionária e hoje são conquistas mais argumentativas (ainda que se enfrente a
violência da intolerância).
Atualmente, são conquistas argumentativas porque a “argumentação legal, racional,
legítima” transforma uma requisição limitada de direitos, muitas vezes vinculada a determinado
grupo de interesse, em conquistas coletivas de direito. A legitimação jurídica moderna, portanto,
é democrática, tem uma base muito melhor definida juridicamente, esclarecendo-se o que é o
direito. A movimentação social em torno do direito, como foi dito, não é revolucionária, é
espasmódica, fixa em torno de interesses bem definidos. Essa modificação do processo jurídico
coincide com a saída do povo das ruas, poucas são as mobilizações para a conquista de direitos
em que se ocupe a praça pública, mas grande é o debate sobre a validade e a posterior validação
desses direitos na ordem jurídica, sobretudo a partir das mídias e das universidades.
Genericamente, pode-se dizer que a Constituição Política, ao precisar uma definição ao
Poder Político, concomitantemente, delimita o alcance deste poder, sua divisão e distribuição de
funções administrativas e as competências internas, indica as fontes de sua legitimidade e os
objetivos gerais a que se presta.
194
Consulte-se, em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9014.
Como se sabe, a Constituição Mexicana, de 1910, a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado,
na Rússia revolucionária (socialista), de 1918, e a Constituição de Weimar, de 1919, constituem os ícones do Estado
Social.
196
Ninguém poderá ser punido mais de uma vez por uma mesma infração penal.
197
Ironicamente ou em busca de precisão cirúrgica para o dogmatismo nazista, a fim de se auto-referendar e também
como mecanismo de autodefesa, não é ninguém menos do que Carl Schmitt quem saiu em defesa da Constituição
alemã de 1919.
195
228
A institucionalização do Poder Político
A concepção jurídica definidora da regulação do Poder Político mais conhecida é
denominada de Teoria da Autolimitação do Poder, em que o poder é regulado, limitado pelo
direito criado pelo Estado, antes apenas como forma de dominação dos cidadãos e hoje, acima de
tudo, como fonte jurídica do poder. Isto é, a fonte jurídica do poder é uma lei anterior e se supõe
que esta lei esteja de acordo com o senso social de aceitação e de legitimação do poder. Se a lei
serve para limar a ânsia e a margem de ação dos indivíduos, deverá ainda mais regular o
exercício do poder. Em suma, o Direito deve proteger a sociedade do arbítrio:
Na fase atual da vida das sociedades, os dois elementos do Direito – a
coação e a norma198 – são insuficientes para criar o que chamaremos
o Estado Jurídico. Falta-lhe ainda um elemento – a norma
bilateralmente obrigatória – em virtude do qual o próprio Estado se
inclina diante das regras que editou e às quais de fato concede,
enquanto existirem, o império que por ato seu lhes atribuiu. É o que
chamaremos a ordem jurídica [...] O Estado ordena, o súdito obedece
[...] A linguagem compreendeu bem este fato, quando designou a
injustiça do Estado pelo nome de arbítrio (Willkür). O arbítrio é a
injustiça do superior; distingue-se da do inferior, porque o primeiro tem a
força a seu favor, ao passo que o segundo a tem contra si [...] Noção
puramente negativa, o arbítrio supõe como antítese o direito, de que é a
negação: não há arbítrio, se o povo ainda não reconheceu a força
bilateralmente obrigatória das normas jurídicas [...] Acompanha, pois, a
todo princípio de direito a segurança de que o Estado se obriga a si
mesmo a cumpri-lo, a qual é uma garantia para os submetidos ao Direito
[...] Não só se trata de conter a onipotência do Estado mediante a
fixação de normas para a exteriorização de sua vontade, senão que
trata de refrear-lhe mui especialmente, mediante o reconhecimento
de direitos individuais garantidos. Esta garantia consiste em outorgar
aos direitos protegidos o caráter de imutáveis (Menezes, 1998, p. 70-71 –
grifos nossos).
De modo claro, pode-se ver como a regulação jurídica da teoria contratualista, ou seja, o
contrato político que instigou a formação do Estado – como organização do poder –, seria em
seguida ele mesmo enxertado de normas jurídicas a fim de proporcionar limites ao Poder
Político, bem como definir com clareza os objetivos do Estado. Do contrato político ao contrato
jurídico; da política ao direito; da força política às Cartas de Direitos; do Poder Constituinte à
Constituição. A teoria finalista, ainda que sob o contrato, seria regulada pelo direito positivo e
não somente pela legitimação política – esta evidentemente inserida na teoria contratualista.
Enfim, será esse o maior ou melhor sentido exposto na própria suposição da
personalidade jurídica do Estado (ou fase atual em que se encontra a teoria da finalidade jurídica
do Estado de Direito) e que corresponde à capacidade ou condição suficiente para transformar as
pluralidades sociais em uma determinada unidade político-jurídica global (transportando as
individualidades ao social): do querer individual ao fazer pelo social (a República) e sem que se
198
É de se aceitar a análise de que o Direito realmente aceito – reconhecido como valor, partilhado nas práticas
sociais – acaba por afastar a incidência da coerção. Sob esse prisma, Direito e coerção são antagônicos, excludentes.
229
promova qualquer tipo de sujeição199. O transporte da personalidade (que é uma condição
individual prevista no Direito Privado – Direito Civil) para o Estado200 não subentende
exatamente a total abstenção ou ausência de ação individual:
O Estado, diz Lapradelle, é uma “realidade do mundo jurídico. Povo,
nação, são seres vivos. O Estado que nasce e morre com um povo, uma
nação, e que vive neles e por eles, não é senão o seu reflexo no mundo do
Direito, sua expressão no circulo das concepções jurídicas: ideia que
seria uma ficção se, atrás do Estado, não existisse essa realidade distinta,
o povo, a nação e essa necessidade não menos real de garantir-lhes a
segurança pelo Direito...Se o Estado é uma pessoa jurídica, não é porque
seja uma pessoa física, e sim porque a nação que ele representa e exprime
é uma pessoa social” (Azambuja, 2001, p. 118-119).
Ou ainda: se o Estado é a pessoa política (jurídica) organizada pela nação, pois, atribuiuse personalidade jurídica, então, o Estado passa a representar a nação e seu povo. Seguindo-se
isto, poder-se-ia concretizar a noção jurídica do Estado nesta dupla ideia fundamental: o Estado é
uma pessoa coletiva (ente político) e uma pessoa soberana (ente jurídico). No Estado de Direito,
portanto, o Direito já é resistência à opressão do(s) poder(osos) e ao abuso do(s) indivíduo(s), a
exemplo de que todo e qualquer direito individual não deve prevalecer quando em face dos
direitos públicos. A limitação do poder pelo direito implica, portanto, em que os elementos
políticos do Estado conhecerão efeitos limitadores por parte de elementos jurídicos que serão
agregados a este mesmo Estado.
A ciência social como teoria política
O Estado de Direito, sobretudo no modelo de Voh Mohl (Canotilho, 1999) seguido por
Malberg (2001), é uma forma de controle político e, mais especificamente, da chamada
institucionalização da “regra da bilateralidade da norma jurídica”. Esta concepção republicana do
poder é compartilhada pela ciência do direito de Jellinek (2000), ao expor a urgência de se
configurar a Teoria da Autolimitação do Estado. Na versão clássica de Zippelius corresponde ao
Estado de Direito: “a obrigação de criar e manter determinadas instituições públicas” (1997, p.
377). Em outras palavras, o mesmo será dito ao se definir a base jurídica da soberania popular:
“a ‘legalidade da administração’, e, como sua consequência, direito dos súditos contra o Estado
como tal, ‘direitos subjetivos, públicos’, e limites legais à administração” (Radbruch, 1999, p.
167-168).
Como se vê, o direito é uma teoria do poder ou uma apresentação especial da própria
teoria social e política, quando constrói modelos de Estados, organiza e delimita a ação política.
A questão está em diagnosticar, cientificamente (com o apoio de outras ciências), de que poder
se trata, o quão distantes estão Estado e Sociedade, a que se presta o poder estatal. Realmente
predomina o direito consensual como suporte da legitimidade da dominação?
Com isso, pode-se tramar a perspectiva complexa do poder social ou contentar-se com o
Leviatã (mesmo que modernizado pelo Estado de Direito). Será este Estado capaz de articular a
Justiça Social ou lhe basta definir conceitualmente, em pseudo-cientificidade, as instâncias do
Judiciário como poder? O que é Justiça, afinal, no século XXI? Qual será o objeto do direito, no
Estado Super Moderno: a Justiça ou a norma jurídica?
199
Aliás, diz-se acertadamente que, ao se remover toda forma de sujeição, promove-se automaticamente a iniciativa
e a busca do consentimento, da legitimidade.
200
Direito Público como corruptela do Direito Privado.
230
Enfim, se a política institui poder, o Estado subentende organização – e o direito será o
meio legítimo e efetivo dessa transformação da política no próprio direito (Heller, 1998). O
elemento jurídico de conformação do Estado, portanto, limita ou reestrutura a soberania interna
do Estado, à medida em que impõe juridicamente nova forma de relacionamento entre o Estado e
o cidadão. A ordem jurídica do presente-futuro é a que se resguarda com a democracia.
231
FORMAS DE GOVERNO E GOVERNABILIDADE
A política institui ou ajusta-se em meio às formas de governo, hora induz a esta ou àquela
forma, hora tem o alcance e as liberdades políticas delimitadas pela mesma forma de governo.
A referência clássica mais antiga às formas de governo é de Heródoto (século V a.C.), na
sua História (Livro III, § 80-82). Cem anos antes de Platão e de Aristóteles, as três formas
básicas já estavam definidas: democracia (governo de muitos); aristocracia (governo de alguns);
monarquia (governo de um só).
Esta classificação decorre de duas perguntas básicas: Quem governa? Como governa? A
monarquia (boa) pode levar à tirania (má); a aristocracia (boa) pode gerar a oligarquia (má); a
democracia (boa) pode induzir à oclocracia (má).
Outro aspecto relevante retrata o governo do povo ressaltando certos atributos de maior
racionalidade e presentes na isonomia que rege a democracia (liberdade + igualdade = governo
popular). De todo modo, o debate sempre esteve em torno de qual forma de organização das
relações políticas produziria maior estabilidade do poder.
Platão (428-347), em A República, trata do governo ideal, a República ideal, atribuindose as obrigações de acordo com as aptidões (Justiça). O Estado perfeito é imaginário, mas
pode/deve atuar como princípio (objetivo) e não como simples ideologia. Na visão de Bobbio
(1985), Platão é conservador e pessimista: o futuro reserva governos bem piores do que os do
presente. Em sua descrição tratou mais da timocracia (timé = honra)201. Todavia, pode-se dizer
que a timocracia é a forma original da meritocracia202?
A timocracia estaria entre a aristocracia e a oligarquia, e Platão tomou como exemplo o
governo de Esparta – e mesmo que criticasse a honraria cedida antes aos guerreiros, do que aos
sábios. No entanto, a aristocracia seria a forma de governo perfeita. Para Platão, a forma mais vil
de governo é a tirania (e a anarquia, sem regras).
“A corrupção de um princípio consiste em seu excesso”. A honra do homem timocrático
se corrompe com a avareza e a ânsia de poder. O homem democrático perde sua liberdade
(tirania) na licenciosidade (sem regramento). Mas, na democracia de homens honrados, os
magistrados parecem iguais aos cidadãos e os cidadãos são semelhantes aos magistrados, tanto
nas coisas púbicas (a ética na República) quanto nas privadas (moral).
A discórdia, portanto, é o que corrompe o Estado, levando-o à sedição. Para quem
examina a Polis, ex parte principis (de quem detém o poder), ou modernamente pela Razão de
Estado, o problema maior é o da unidade do Estado com o indivíduo: de governabilidade e não
só com o estabelecimento do governo203.
Como evitar a dispersão, controlar a rebelião e reprimir a sedição, sem anular a
liberdade? Tanto a tirania quanto a anarquia (como descontrole) são terríveis. Platão formula,
então, uma teoria orgânica do Estado: orgacinismo político (em que o Estado e a sociedade são
equiparados ao organismo, corpo humano).
201
É interessante a comparação deste governo dos homens de honra com a crítica formulada por Max Weber à
substituição dos homens notáveis (dignos de nota) pelos partidos políticos (partitocracia) a partir do século XIX.
202
Em Heródoto estão presentes algumas das regras modernas: os magistrados precisam prestar contas de seus atos;
todas as decisões são sujeitas ao voto popular. No entanto, diferentemente da moderna administração pública, em
que deve vigorar o regime da meritocracia (como governo dos melhores), lá na Grécia antiga os servidores eram
eleitos (como nos EUA, em que os juízes têm cargos eletivos).
203
Ao contrário da Teoria Política clássica, a democracia moderna é muito mais atenta às famosas regras do jogo
(com grande incidência burocrática), como se estivesse limitada à forma de uma democracia procedimental.
232
Às três classes que compõe o Estado (guerreiros, sábios e políticos ou filósofos, e
trabalhadores) correspondem três almas ou três estados de ânimo: passional, racional e apetitiva.
Por sua vez, correspondem a três necessidades: essenciais, supérfluas, ilícitas. A democracia
seria a pior das formas boas de política, mas também a melhor das formas más. As formas boas
de governo se baseiam no consentimento e na legalidade (opondo-se à violência e à ilegalidade).
Aristóteles
Enfim, esquematicamente, pode-se dizer que: O político é o Kybernets (o timoneiro da
sociedade). Portanto, a política não deveria gerar a corrupção. Só há política onde há isonomia.
Não há política sem equiparação ou Princípio da Igualdade. Pois, só se faz política entre iguais.
Corrompendo-se a isonomia (política), produz-se a opressão. Sem isonomia não há participação
política (autarquia). Afinal, a política é a arte da condução social (cibernética). No mundo
moderno esses ideais são expressos pela poliarquia e mais resumidamente na figura do vereador
(veredas). Isto é, a política é direção (para os antigos) e controle social (como querem os
modernos).
233
AS TRADIÇÕES DEMOCRÁTICAS
Associa-se tradição a concepções antigas, como se fossem envelhecidas, sem utilidade e
eficácia no presente, como meras heranças históricas. De fato, muitas tradições são amarelecidas
pela cultura e se tornam tradicionalismos, com apego a dogmas sem condição de edificação
social na modernidade política. Pois bem, com a tradição democrática, espera-se verificar
exatamente o contrário, que as tradições atuem a fim de salvaguardar a essência da democracia
inclusiva e participativa. Por esta tradição desfilam nomes (Benjamin Constant), povos
(franceses e suíços) e instituições (Parlamento e pluralismo político). Mas, pode-se dividir a
história política da democracia em duas partes:
 História Antiga: Grécia e Roma
 História Moderna: Thomas Paine, Federalista, Montesquieu, Rousseau.
I História Antiga
Iremos nos concentrar na história moderna, mas, sob o pensamento grego antigo, vimos
florescer o instituto da democracia direta – mecanismo ainda aplicado de forma clara (plebiscito
e referendo204) e de modo derivado (orçamento participativo). Desde Roma, com Cícero e a
formação da ideia de salus publica, temos gestado organismos e mecanismos que nos
impulsionam e exigem a máxima atenção na defesa e na promoção do Princípio Republicano,
como instrumento de calço da democracia institucional.
II História Moderna
O que é a democracia moderna? Em que se apoia?
Como diz Sartori (1994), um cientista político conservador, a democracia política requer (a)
espírito ou ethos público, solidariedade social e verdadeiro estilo de vida, além de (b) sentimento
de equidade e igualdade social - como apreciação latente do próprio status.
Dessa forma, a democracia política é entendida como a determinação das finalidades
públicas do Estado de forma soberana e popular, e em virtude da sociedade civil, isto é, trata-se
de um estágio em que o cidadão comum delibera, controla e redefine as ações governamentais e
o próprio desígnio do Estado - Sartori fala do controle popular das ações das autoridades, e não
só dos líderes político-partidários. Note-se aqui que, Estado difere de governo: este como
deliberação temporária de poder e aquele como estado permanente de organização do Poder
Político. Ou com Sartori (1994): “Se o sistema principal, o sistema político global, não é um
sistema político democrático, então a democracia social tem pouco valor [...] e a igualdade
econômica pode não diferir da igualdade entre escravos” (p. 28).
E mais, lendo os modismos de reengenharia administrativa a partir da dialética das
efemérides e da perenidade: “As coisas mais importantes vêm em primeiro lugar [...] Claro, ‘a
importância do método político democrático consiste principalmente em seus subprodutos nãopolíticos’. Mas os ‘bens’ pressupõem a maquinaria, o método que os produz” (idem, p. 29).
E quem está na base de todos esses postulados da democracia liberal?
MONTESQUIEU (1689-1755)
204
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular.
234
A injustiça que se faz a um, é uma ameaça que se faz a todos.
Liberdade é o direito de fazer tudo o que a lei permite.
A principal lembrança em relação a Montesquieu – em seu O Espírito das Leis – é o
apego à democratização do poder, notabilizando-se a separação e a tripartição dos poderes (como
sistema de freios e contrapesos ao poder) e os demais mecanismos político-administrativos
aditivados a fim de que se implementasse a autocontenção do poder. A regra da bilateralidade da
norma jurídica, como requisito do Estado de Direito, a partir do século XIX (com Robert Von
Mhol), é um derivado dessa propositura da política moderna.
A Constituição, portanto, seria um eficiente instrumento racional (o moderno contrato político e
jurídico205) de organização e de estruturação das relações políticas mais conflituosas. Isto é, a
origem da Constituição (Poder Constituinte) é o conflito político e não a pretensa harmonia
social. Eis a análise que vimos, por exemplo, com Konrad Hesse (1991).
Contratualismo
Então, no ato de contratar com outros homens, abrindo mão da liberdade natural, não nos
pomos a ferro, como ato deliberado de abandono da razão, e sim buscamos uma forma mais
legítima de organizar a sociedade e o poder: “As palavras escravidão e direito são contraditórias,
excluem-se mutuamente” (Rousseau, 1987, p. 29). O contrato é uma aposta social que os
cidadãos fazem em seu Estado: “Haverá sempre grande diferença entre subjugar uma multidão e
reger uma sociedade” (Rousseau, 1987, p. 30).
Esta ideia de legitimidade contratual é profundamente moderna e contemporânea, no
sentido de ser capitalista, pois os contratos a partir de então seriam estabelecidos entre duas
partes idôneas, autônomas (com objeto lícito) e com certa segurança jurídica de que um dos
envolvidos não obteria vantagens indevidas sobre os demais: as chamadas cláusulas draconianas
ou lenoninas, aliás, como as que foram estabelecidas no Fausto. Então, podemos dizer que
Rousseau queira ver estabelecidas as bases do contrato legítimo (privado ou público):
Vê-se, por essa fórmula, que o ato de associação compreende um
compromisso recíproco entre o público e os particulares, e que cada
indivíduo, contratando, por assim dizer, consigo mesmo, se compromete
numa dupla relação: como membro do soberano em relação aos
particulares, e como membro do Estado em relação ao soberano [...]
Desde o momento em que essa multidão se encontra assim reunida em
um corpo, não se pode ofender um dos membros sem atacar o corpo,
nem, ainda menos, ofender o corpo sem que os membros se ressintam.
Eis como o dever e o interesse obrigam igualmente as duas partes
contratantes a se auxiliarem mutuamente... (Rousseau, 1987, pp. 3435)206.
205
Mesmo antes do Iluminismo, em meio aos percalços e avanços institucionais e científicos do Renascimento,
Hugo Grotius (1583-1645) já indicava as bases contratuais da moderna racionalidade e que traria equilíbrio às
relações sociais e comerciais: “VII. Quais os atos chamados contratos. De resto, todos os atos proporcionando
utilidade aos outros, à exceção daqueles que são de pura beneficência, são chamados pelo nome de contratos. VIII.
A igualdade é requerida nos contratos, primeiro com relação aos atos que precedem. A natureza manda observar a
igualdade nos contratos até o ponto em que, da desigualdade deva surgir um direito em proveito daquele que obteve
menos [...] X. A liberdade da vontade. Os contratantes não devem somente observar entre eles alguma igualdade do
ponto de vista do conhecimento das coisas, mas ainda com relação ao uso de sua vontade” (2005, p. 572-592).
206
Talvez, a maior diferença entre o Contrato Social de Rousseau e o Fato Social, de Durkheim, seja o fato de que
para Rousseau há uma disposição em aceitar o que foi acordado e, assim, agir socialmente. Já para Durkheim, o
235
Outra passagem retrata a pressão da vontade geral:
A fim de que o pacto social não represente, pois, um formulário vão,
compreende ele tacitamente este compromisso, o único que poderá dar
força aos outros: aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto
será constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o
forçarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão
à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal. Essa condição
constitui o artifício e o jogo de toda a máquina política, e é a única a
legitimar os compromissos civis, os quais, sem isso, se tornariam
absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos (Rousseau, 1987, p.
36).
Isto fará de Rousseau também um precursor do pensamento social moderno: “para termos
uma sociedade, não basta que se agrupem os homens, sendo necessário que os liames entre eles
estabelecidos se tornem deles independentes e a eles venham a impor-se coercitivamente”.
(Machado, 1987, p. 30).
Estado de Direito e democracia
A democracia se fortalece com o Estado de Direito, porque a lei pune os privilégios e se
estende com as garantias – estas, por sua vez, fortalecem a liberdade e a igualdade entre os
cidadãos. Logo, o Estado de Direito que se bate pela liberdade política e pela igualdade jurídica
fortalece sobremaneira a democracia.
Com esses dados podemos reformular a questão clássica: todo Estado de Direito é um
Estado Constitucional? Há inúmeros pontos discordantes, mas há alguns de assemelhamento,
como a simetria que estabelecemos entre seus princípios ou postulados. Se tomarmos que o
Estado Constitucional tem por base o Iluminismo, o contratualismo e o individualismo, então,
não será difícil para relacionarmos tais princípios ao Estado de Direito.
O individualismo do Estado Constitucional está para a prevalência dos direitos
individuais, proposto no Estado de Direito, assim como o contratualismo (Locke, Rousseau) está
para a separação de poderes, em Montesquieu (também um contratualista). Aliás, é da vigência
do contrato social que deve ser formulado o Estado que sirva à sociedade, diferentemente do
Estado Absolutista (Leviatã) que se combatia desde então.
ROUSSEAU (1712-1778)
Em Rousseau, o contrato social é previsto para superar o pacto social e sua fragilidade,
como se vê claramente na necessidade de se instaurar um poder legítimo. No nascimento do
direito, já assinalava a necessidade da vigência do Princípio da Igualdade (+ isegoria +
Liberdade Negativa207). Por isso, ainda imersos no contexto do direito natural, podemos dizer
que a alteridade é o único sentimento capaz de motivar sistematicamente a todos; mas, a
alteridade ocorre melhor em Estados pequenos onde se vivifica mais correntemente a
commonwealth208. Em suma, esta é a concepção de direitos subjetivos de Rousseau, cuja negação
pacto é imposto pela presença anterior, superior (hierarquicamente, por exemplo do Estado), exterior da sociedade
em relação ao conjunto dos indivíduos. Então, neste caso, nem há a hipótese de algo ser acordado.
207
“Não há crime, sem prévia cominação legal”.
208
Comunidade Civil ou commonwealth: “Como a forma de governo depende da atribuição do poder supremo, ou
seja, do Legislativo, é impossível conceber que um poder inferior possa prescrever a um superior, ou que um outro
além do poder supremo faça as leis, a maneira de dispor o poder de fazer as leis determina a forma da comunidade
civil” (Locke, 1994, p. 160).
236
implica em negar a vida e a dignidade de todos os envolvidos. Apoiá-la significa enfrentar a
tirania e a intolerância em qualquer uma de suas manifestações.
Para o próprio Rousseau, a ideia de Justiça ou de reconhecimento era parte integrante do
direito natural, sendo marcada na consciência dos homens (por Deus e, depois, pelo nascimento
como ser racional209). Rousseau entendia que a formação da “personalidade moral” só se
complementaria com o reconhecimento e o respeito à dignidade daquela pessoa. A justiça,
portanto, era-lhe um constructo:
...que ninguém seja prejudicado em sua vida, liberdade, posses ou
personalidade moral, seja por deliberada má vontade, ou por negligência
ou indiferença. A “personalidade moral”, no entender de Rousseau, é a
necessidade humana fundamental para cada pessoa de ser reconhecida e
respeitada por outros como alguém que importa e que tem valor e
dignidade sem depender de ninguém (Dent, 1996, p. 149).
Assim, legitimidade e alteridade se complementam. A Justiça Social, por exemplo, requer
evidentemente a distribuição econômica e a possibilidade de participação do indivíduo no
Estado:
Obter justiça para todas e cada pessoa numa sociedade, em todos esses
aspectos, é a finalidade primordial da associação civil, do
estabelecimento do estado civil. Rousseau pensa que a VONTADE
GERAL é o meio pelo qual a justiça é obtida do modo mais
abrangente para todas as pessoas, não só por causa dos princípios que
daí resultarão (as leis), mas também por causa da maneira de
funcionamento da vontade geral, em que cada pessoa participa como
membro competente do CORPO SOBERANO (Dent, 1996, p. 149 –
grifos nossos).
O indivíduo é requerido como um membro legislativo do corpo soberano, em que deve
prevalecer o princípio da dignidade: “Um dos interesses primordiais de Rousseau é mostrar que
não existe conflito básico entre as exigências de justiça e o próprio bem de cada indivíduo”
(Dent, 1996, p. 149). A Justiça Social210, quando alcançada, traz o sentimento republicano de
volta e pacienta o povo.
THOMAS PAINE (1737-1794)
Além desses, Thomas Paine em seu Os direitos do homem (1989) será leitura obrigatória,
bem como a linha da desobediência civil interposta por Thoreau na Defesa de John Brow (1966).
Paine combateu na Revolução Americana e depois na Revolução Francesa. Seu lema pessoal era:
“Onde não há liberdade, aí está meu país”. Ainda dizia: “A Lei é o Rei”. Historicamente, pelo
pano de fundo, há a inicial Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lastro da
Revolução Francesa de 1789. Portanto, algumas das principais tentativas de enfocar a igualdade
e a isonomia datam do Iluminismo (“humanizar o direito”).
BENJAMIN CONSTANT (1767 - 1830)
209
Pelo viés do racionalismo, todo homem que nasce em condições normais, recebe a mesma dosagem de
possibilidades para se tornar um ser humano racional. A vida social cuidará do seu desenvolvimento, mas a potência
é natural: “todo homem é potencialmente racional”. O mérito e a sorte (condições) farão a diferença.
210
CF/88 - Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por
fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios...
237
Político francês de origem suíça, Benjamin Constant sistematizou em livro a Liberdade
dos Antigos Comparada com a dos Modernos. Depois, já em direção ao Iluminismo e por sua
inspiração, passou-se a tutelar a liberdade de forma negativa (Lafer, 1988). Portanto, temos aí
uma clara defesa do cidadão contra formas políticas tirânicas do Leviatã. Neste debate trazido
por Lafer é interessante reter a ideia de que a exceção, em sua própria confirmação, e para que se
respeite o “princípio democrático” (Canotilho, s/d), deve ser inevitável, “justificável” (para que
possa ser exclarecida ao público), limitada no tempo e restrita no alcance:
Numa democracia o sigilo como exceção à regra geral de publicidade
requer justificação [...] A justificação para o sigilo em função do tema da
segurança da sociedade e do Estado que limita, como mencionado, a
liberdade de participação na esfera pública, tem como base um juízo de
valor sobre oportunidade ou não oportunidade da divulgação de
documentos, à luz da conformidade ou não conformidade em relação a
um fim visado. Neste contexto o sigilo é uma atualização das diversas
vertentes da teoria da razão de estado (Lafer, 26/11/2004).
Nesta linha de argumentação, Lafer retomará uma distinção oportuna entre “segredos do
Estado” (arcana imperii) e “segredos de governo” (arcana dominationis): “Valho-me desta
distinção de Clapmar, no início do século XVII, para apontar que o sigilo argüido por conta da
segurança do Estado e da sociedade pode ser abusivamente utilizado e converter-se apenas num
método voltado para a dominação” (Lafer, 26/11/2004). Por fim, cita Bobbio (1986) quando
critica o exercício crescente do criptogoverno.
Lafer também irá reafirmar que o “direito de mentir” (sob os auspícios da Razão de
Estado) está identificado com o argumento da “necessidade política”: a necessidade de ocultar,
segredar, esconder para preservar o poder. Com isto, é óbvio, não ocorre um adensamento
democrático capaz de gerar confiança entre os cidadãos e destes em relação ao Estado. A luta
pelo reconhecimento da democracia, portanto, está em conter/inibir ao máximo tanto os arcana
imperii quanto os arcana dominationis — além de aclarar o quanto seja possível a “opacidade do
poder” (e debelar toda e qualquer tendência tirânica em defesa da “segurança nacional”).
Este seria o caminho de construção do exato oposto da tirania, em que vicejam “pessoas
injustas”. Pois bem, cometemos injustiças fazendo aos outros males fundamentais, por ação ou
omissão. Por outro lado, a alteridade é o único sentimento capaz de motivar sistematicamente a
todos; mas, a alteridade ocorre melhor em Estados pequenos onde se vivifica mais correntemente
a commonwealth (reunião, comunhão de Estados – ou sociedade civil multilateral).
FEDERALISTA (século XVIII)
Sob a batuta de James Madison, Thomas Jefferson, Alexander Hamilton, John Jay,
George Washington, a Revolução Americana gerou um dos pilares da moderna tradição
democrática. A formação do moderno Estado Constitucional, neste viés estadunidense, assegura
que a união dos Estados independentes (Confederação) deverá pactuar pelo controle da soberania
no poder central, com ressalvas e garantias à autonomia interna dos entes políticos (Federação).
Vedando-se, assim, o direito de sedição. No entanto, como se trata de Estado forjado em
revolução de independência, asseguraram constitucionalmente o direito de insurreição.
Do Renascimento ao Iluminismo
Outro autor dos mais vibrantes com a nova sociedade é Voltaire (1694-1778): tinha um
estilo crítico e irônico, escreveu profusamente, além de ser filósofo, poeta, dramaturgo e político.
238
Mais pela escrita do que pela militância política, esteve preso várias vezes — um de seus
clássicos é Tratado sobre a tolerância. Em resumo:
1. Considerava que seus livros eram armas e as palavras os projéteis usados contra as falsas
ideias e as tolices humanas.
2. A escrita211 era uma forma privilegiada de ação.
3. Em suas cartas, no lugar do nome, assinava “esmagai infame!”.
 Infame: tudo que se opunha ao “progresso das Luzes” e à “busca da felicidade”. Era
um monstro como Medusa212.
 Fanatismo: “febre violenta”, uma “gangrena do espírito”.
 O fanatismo levou às guerras religiosas, às fogueiras da Inquisição e à morte
em nome de Deus.
 O fanatismo é detestável porque leva à intolerância e à divergência, e isso
gera “menoridade do espírito”.
Fanatismo é para a superstição o que o delírio é para a febre, o que é a
raiva para a cólera [...] Há fanáticos de sangue-frio: são os juízes que
condenam à morte aqueles cujo único crime é não pensar como eles [...]
Quando uma vez o fanatismo tendo gangrenado um cérebro, a doença é
quase incurável [...] Não há outro remédio contra essa doença epidêmica
senão o espírito filosófico que, progressivamente difundido, adoça enfim
a índole dos homens, prevenindo os acessos do mal [...] As leis e a
religião não bastam contra a peste das almas [...] Que responder a um
homem que vos diz que prefere obedecer a Deus a obedecer aos homens
e que, consequentemente, está certo de merecer o céu se vos degolar? [...]
De ordinário, são os velhacos que conduzem os fanáticos e que lhes
põem o punhal nas mãos [...] Só houve uma religião no mundo que não
foi abalada pelo fanatismo, é a dos letrados da China (Voltaire, 2002, pp.
218-219 - grifos nossos).

Hoje seria um intelectual engajado (talvez na luta pelo reconhecimento). Entretanto, é
claro que se coloca como liberal em busca do Iluminismo.
Também há Fourier (1768-1830): um autor admirado e considerado o precursor do
socialismo, buscava a perfeição da “sociedade civilizada”, com “equilíbrio social” e “repartição
proporcional da riqueza”. Sua obra traçou um mundo imenso e burlesco, sem se preocupar
notadamente com as “provas irrefutáveis” ou com “verificações de verossimilhança”. Tinha uma
“perspectiva física” fabulosa, era metódico, meticuloso, lógico e audaz. No mundo utópico que
preconizou, estava estabelecida a prática da verdade e da Justiça, como via da “fortuna social”.
Neste novo regime societário proposto estaria o “novo mundo” ou o “mundo em sentido reto 213”.
Só essa transformação social seria capaz de conduzir a um estado civilizado (ou “Estado
Civilizatório”: a exemplo de Bacon), como meio da perfectibilidade e do destino humano.
Outros expoentes em áreas diversas seriam: Moliére (1622-1673): além de ator, é
considerado o grande mestre da comédia satírica. A partir da revitalização das formas
tradicionais da comédia, produziu num novo estilo, confrontando os contrários: a verdade oposta
211
Diferente de escritura.
Infame é o piolho, o que se move pela cabeça dos outros.
213
Pode-se pensar que o destino reto é o próprio direito.
212
239
à falsidade, a inteligência rivalizando com o pedantismo. Esse estilo ainda se completaria com
uma aguda percepção do absurdo da vida cotidiana.
Saint-Just (1767-1793): grande leitor de Rousseau, sonhava com uma democracia
igualitária sem pobres nem ricos, no âmbito de uma República virtuosa: "A paz, a abundância, a
virtude pública, a vitória, tudo está no rigor das leis". Fora das leis, tudo é estéril e morto. No
entanto, foi eleito membro do Comitê de Saúde Pública. Desenvolveu as bases teóricas do
governo revolucionário e fez a apologia do Terror. Morto aos 26 anos teria tempo de publicar um
livro impressionante, O Espírito da Revolução, em que apresentou suas ideias para uma
Constituição revolucionária francesa. Entre outras coisas, tratou da educação: “A França ainda
não promulgou leis sobre a educação no momento em que escrevo, mas provavelmente nós as
veremos sair do corpo dos direitos do homem. Tenho pois apenas uma palavra a dizer: a
educação na França deve ensinar a modéstia, a política e a guerra” (1989, p. 65). Ora, se a lei
existe para que não se tenha guerra (ou não se faça “justiça com as próprias mãos”), por que a
educação a ensinaria? Para que o povo pudesse se defender dos príncipes tiranos.
Mais alguns, como: Condorcet (1743-1794) que era Matemático, filósofo e ainda que
pertencente à nobreza, foi fortemente marcado pelos ideais em favor da liberdade econômica, da
tolerância religiosa, das reformas legais e educacionais e contra a escravidão. Escreveu sobre
política e se engajou na Revolução Francesa, além de ser considerado o fundador do sistema
educacional francês.
Cesare Beccaria (1738-1793): seu trabalho, suas teses foram fundamentadas no princípio
de que as políticas públicas devem procurar o maior bem para o maior número de indivíduos.
Condenou as práticas bárbaras de seu tempo: o uso comum da tortura e da instrução processual
secreta, o capricho e a corrupção dos juízes, as punições brutais e degradantes. O objetivo do
sistema penal, argumentou, deve ser encontrar penalidades severas o bastante somente para
conseguir as finalidades específicas de segurança e ordem; qualquer coisa além disso é tirania. A
eficácia da justiça criminal depende principalmente da certeza da punição, mais que de sua
severidade. As penas devem ser proporcionais à importância da ofensa.
Pietro Verri (1728-1797): foi discípulo de Beccaria e apresentou uma narrativa das
barbáries do Estado. Mas iria mais adiante, apostando que se trata de um livro que luta por um
quádruplo: razão, verdade, justiça, dignidade. Não há razão sem verdade, nem justiça sem
dignidade (não é digno de fé quem não age pela verdade; não tem razão quem não é justo). É
uma narração intensa, perturbadora, angustiante, lutando contra a barbárie praticada pela tortura,
pelo uso da força bruta, pelo obscurantismo, pela mediocridade, pela ignomínia, pela estupidez e
pela crendice. De outro modo, é uma aposta na razão, no conhecimento, na inteligência, na arte
do desvelamento. Como é fácil de se notar, a democracia requer muito mais substrato do que a
fórmula (ainda que necessária e óbvia) do “um cidadão, um voto”.
240
CONDIÇÕES DA DEMOCRACIA
São condições da democracia, como sinal de uma sociedade mais equilibrada social e
mentalmente, por óbvio, a melhor distribuição de poder e de renda. Medidas administrativas e
legislativas que controlem o poder econômico são parte essencial dessas condições. Também
reforçam a democracia alguns requisitos legais e formais, como rotatividade do poder, respeito
às minorias e acatamento às decisões da maioria. A defesa dos direitos fundamentais, como o
voto livre, secreto e universal.
Uma das regras básicas da democracia é a alternância no poder. Outro princípio
elementar alerta para o necessário pluralismo político. Somando as duas orientações, temos uma
conclusão óbvia: não basta haver troca de governantes – esta regra já foi maculada com a
reeleição –, é preciso alternar o grupo, o partido, o centro de interesses que arregimenta o poder.
Outra obviedade recomenda dividir o poder para assegurar a democracia, a liquidez política e
ética, e para garantir que as próximas eleições não seriam manipuladas por uma única fonte de
poder. É preciso dividir para dominar, mas neste caso seria para dividir o poder que nos quer
dominar. Trata-se de uma regra de autocontenção do poder político.
Outros aspectos fundamentais são a tolerância e a laicização, quer dizer, a tolerância aos
direitos e à inserção das minorias no jogo democrático, assim como a obrigatoriedade de o
Estado não ter religião oficial, constituindo-se verdadeiramente como Estado Laico. Mas, isto
vale apenas para o modelo de Estado ocidental, como fase derradeira do Estado Moderno, em
que o direito imporia uma articulação institucional – um controle social, político, administrativo,
jurídico – de toda forma de uso/abusivo do Poder Político. No Estado Teocrático, como no Irã, a
relação é inversa, sem tolerância ao pluralismo político e sem acolhimento de direitos
fundamentais à mulheres, por exemplo:
Uma jovem candidata a vereadora no interior do Irã foi impedida de
assumir o cargo por ser "bonita demais", segundo a imprensa local.
Candidata em Qazvin (norte), Nina Siahkali Moradi, 27, obteve 10 mil
votos na eleição ocorrida junto com o pleito presidencial, em junho. O
resultado a colocou na 14ª posição num ranking que qualificava os 13
primeiros entre 163 candidatos. Com a desistência do primeiro colocado,
Moradi entrou na lista dos vencedores. Mas conservadores barraram sua
ida à prefeitura. "Não queremos uma modelo desfilando na prefeitura",
disse um clérigo local214.
O Estado Laico foi definido como uma séria restrição de cunho religioso (obrigação de o
Estado não-fazer), exatamente para garantir que grupos religiosos ou o próprio Estado não
tornassem o poder um instrumento de manipulação e de dominação em favor de uma religião
específica. No caso citado, a maior ironia é que Moradi conquistou apoio popular e votos ao
defender direitos da mulher e incentivos culturais.
214
In: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/08/1326721-vereadora-e-impedida-de-assumir-cargo-no-ira-porser-bonita-demais.shtml.
241
A vereadora foi castigada e teve os direitos políticos cerceados não porque era bonita
demais, mas sim porque defendia os direitos das mulheres e do acesso à cultura, ou seja, por
defender a democratização de uma sociedade fechada em um Estado Teocrático. O fato de ser
bonita demais, como “modelo”, foi uma desculpa encontrada para abalizar a atitude autocrática.
É evidente que o líder religioso se utilizou de critérios absolutamente subjetivos, sem amparo na
própria religião para embasar seus argumentos.
Tolerância
Carta Sobre a Tolerância é o nome de um livro de John Locke: considerado o principal
pensador do liberalismo e do “individualismo possessivo”. É creditado a ele, por exemplo, o
desenvolvimento teórico que sustenta ainda hoje as garantias e os direitos individuais, como o
Habeas Corpus (“tenhas o corpo livre”).
Nessa carta sobre a tolerância, Locke expõe e argumenta de maneira lógica a necessidade
da separação entre Igreja e Estado, como constituição do Estado Laico. Uma vez exposta a
argumentação que garante a separação entre a “razão”, que envolve as agências políticas e os
“sentimentos” de foro íntimo, e que alimenta a crença na transcendência, Locke define-se pela
tolerância à diversidade de culto e de práticas (“Não se deve proibir em religião o que é
permitido na lei civil”). O que também acarretaria alguns princípios básicos da tolerância
religiosa, como a solidariedade e a generosidade. Pois, se “a fé age pelo amor e não pela força”,
deve-se esperar que haja respeito para que se seja respeitado. Ao que ainda se soma a caridade, a
mansidão e a benevolência.
Assim, é bom que se diga que o objetivo do livro é encontrar razões que demovam a
ortodoxia; em Locke, “cada qual é ortodoxo a seus próprios olhos” (1987, p. 89). Mal colocada,
a ortodoxia vira teimosia, assim como o radicalismo (buscar as coisas na raiz) acaba tido como
intransigente e, portanto, intolerante (o que, mais adequadamente, configura o
“fundamentalismo”). Certamente não combina com Locke e com os princípios do liberalismo,
uma vez que a tolerância estará presente tanto na religião quanto na educação, pois quem:
...se arroga o ofício de ensinar é obrigado a recordar os seus dois deveres
de paz e benevolência para com todos os homens; a todos, quer estejam
no erro ou na ortodoxia, sejam da sua opinião ou deles se diferenciem
pela política e pelos ritos, sejam particulares ou governantes, se é que
alguns deles se encontram na sua escola, a todos deve exortar à caridade,
à mansidão e à tolerância; devem apaziguar e abrandar o seu ódio e o
ardor da sua animosidade contra os heterodoxos (1987, p. 100).
242
É claro que também poderão dizer que a prática da política difere da tolerância política e
religiosa. Na verdade, a única intolerância que cabe discutir é aquela que se volta contra os
intolerantes, pois em relação a esses não se deve ter tolerância alguma.
243
ORDEM JURÍDICA DEMOCRÁTICA
Como ciência social voltada ao estudo da realidade entre os homens, mais do que sobre as
formalidades institucionais, A Antropologia ganha destaque na análise da ordem jurídica. Mais
do que força e coercibilidade, a Antropologia Jurídica terá por objeto estudar o direito como
manifestação cultural do homem. A forte presença dos costumes e da oralidade inclina esta
ciência social à análise da ordem jurídica e não exatamente à prática jurídica, porque
aparentemente se confundem.
Em sentido inicial, a ordem jurídica está apontada à legitimidade que se requer ao Poder
Político, sobretudo no sentido de conter o poder e de direcioná-lo diante das finalidades
atribuídas pela sociedade. Este teria sido o sentido indicado pelo jurista ao definir o Estado como
sendo a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em
determinado território (Dallari, p. 122). Na definição estariam contidas as noções de poder e de
soberania em referência à ordem jurídica, bem como a condição evidentemente política do
Estado, vinculando-se a um povo e a um determinado território. Este é um ideal platônico e
aristotélico frente às finalidades do Estado (como teleologia). É o sentido mais atualizado de uma
cidadania democrática que prosperou no pós-nazismo, como enfrentamento das piores formas de
perversidade e autocracia. Como ensinou Konrad Hesse, trata-se de impor garantias
institucionais que contenham o próprio direito que não seja democrático; trata-se de obstruir
qualquer possibilidade política de que o direito não seja democrático:
Colaboração ordenada, procedimentalmente ordenada, torna ordem
jurídica necessária, e, precisamente, não uma discricional, senão uma
ordem determinada, que garante o resultado da colaboração formadora
de unidade e o cumprimento das tarefas estatais e que exclui um abuso
das faculdades de poder confiados ou respeitados por causa daquele
cumprimento de tarefas – em que tal garantia e asseguramento é, não
só uma questão da normalização, mas, sobretudo, também da
atualização da ordem jurídica [...] A coletividade precisa da sua,
porque convivência humana sem ela não seria possível, de todo, na
situação da atualidade que fundamenta a necessidade de ordem e
coordenação objetiva ampla das condições e âmbitos da vida econômica
e social. Como o Estado, essa ordem não está determinada em um direito
supra-histórico, desprendido da existência humana e atividade humana
existente em si e por si, ou nas objetivações de uma “ordem de valores”
encontrada; senão ela deve, como ordem histórica, pela atividade humana
ser criada, posta em vigor, conservada e aperfeiçoada [...] Ordem
jurídica, nesse sentido amplo, não está dada como ordem por causa
da ordem, senão como ordem determinada materialmente, “exata” e,
por isso, legítima [...] Para poder determinar conduta humana, esse
direito histórico carece, fundamentalmente, da “aceitação” que, por
sua vez, assenta-se na concórdia fundamental sobre dação dos
conteúdos da ordem jurídica – também lá onde tal aceitação somente
contém o reconhecimento da obrigatoriedade de normalizações jurídicas,
não, porém, aprovação livre para elas (Hesse, 1998, p. 35-36 – grifos
nossos).
244
Para o jurista português, o direito deve ser uma salvaguarda do Princípio Democrático e,
como ordem jurídica, o próprio direito democrático deve ser entendido como defesa da
democracia – para nós brasileiros, seria uma cláusula pétrea que não se abalaria senão em golpe
constitucional (Canotilho, s.d, p. 286-287).
Na modernidade, a ordem jurídica traz uma coordenação objetiva e ampla das condições
sociais e econômicas no mais amplo âmbito institucional. Neste sentido, a ordem jurídica é uma
“ordem determinada materialmente”, exata, legítima. Portanto, a aceitação da ordem jurídica
democrática se assenta na “concórdia fundamental sobre a dação dos conteúdos da ordem
jurídica”. Assim, configura-se o reconhecimento da obrigatoriedade de normalização jurídica –
submetendo-se o Estado e os indivíduos à mesma ordem jurídica (Hesse, 1998).
A natureza política da ordem jurídica
Uma das características mais atuais e atuantes do Poder Constituinte originário é a força
política de inicializar, inaugurar uma nova ordem jurídica, revogando a Constituição anterior,
bem como as leis infraconstitucionais que se encontram em desacordo com a nova Constituição.
O Poder Constituinte pode se instaurar pela violência do processo revolucionário ou pelo
amadurecimento institucional que resulta na necessidade de se deflagrar uma ampla revisão
constitucional, como tivemos em 1986 no Brasil. Em todo caso, Kant (1990) é claro quanto à
ideia de que a paz é um preparativo para a guerra, ainda que seja uma guerra jurídica contra os
atentados aos direitos democráticos. Assim como, para o liberalismo clássico, este direito soa ao
soberano como uma advertência para a irrupção da guerra protagonizada pela insatisfação na
condução dos negócios públicos. Isto é, o resultado final é que pode haver reforma ou revolução
e há a tendência de termos uma nova ordem jurídica.
Seguindo-se a metodologia proposta, por reforma do Estado se entende o
desenvolvimento natural e progressivo das ideias e dos valores sociais: há uma
institucionalização gradual. Já por revolução compreende-se a destruição radical da ordem
jurídica por meios ilegais (porque são usados procedimentos não previstos na ordem jurídica
anterior e que acabara de ser removida). Nos dois casos, entretanto, são traços comuns:
legitimidade; utilidade; proporcionalidade. Bem como ainda ocorre um breve momento de
insegurança jurídica e de onde advém uma clara noção da necessidade da “nova” ordem jurídica.
Neste sentido, para que se afirme outra forma jurídica, deve haver contenção de qualquer
vingança pessoal, racial, social etc. Vendeta. São elementos do conceito de revolução: 1.
novidade215; 2. começo216; 3. violência217; 4. irresistibilidade218 (profundidade219;
radicalidade220; antagonismo221; contradição222). E, de certo modo, todos esses componentes da
força política deverão estar expressos na Constituição que se construa a seguir, bem como deve
marcar o eixo político inserido na ordem jurídica construída, com a ressalva, é óbvio, de que a
irrupção de força política deverá estar totalmente absorvida pela noção de ordem jurídica. À
força política interpõe-se a estabilidade jurídica.
História e Antropologia
215
A revolução irá imprimir o novo (esquerda) ou restaurar o anacrônico (direita). Não há certezas.
Há irrupção, apesar de ser um processo e de exigir maturação: às vezes, maior do que a maturidade.
217
Não há uma revolução da palavra, como se diz popularmente. Ordem e revolução são opostas.
218
Ninguém fica em cima do muro, como também não há segunda chance – execução em rito sumário.
219
É necessário que haja transformação da infraestrutura, do domínio sobre os meios de produção.
220
Busca-se a raiz, as últimas consequências.
221
A existência de polos opostos não implica em revolução (vide bicameralismo).
222
Entre si, as classes sociais são antagônicas, contraditórias e opostas.
216
245
Historicamente, pode-se ver Maquiavel dentro da história como parte de uma nova era do
materialismo e que passaria a vigorar entre o homem e o cosmos, entre o poder atemporal e a
instauração da ordem jurídica pelo Estado Moderno:
Sem a mediação das corporações, empresários e empregados situamse como indivíduos isolados na sociedade. Seus padrões de ajustamento
à realidade passam a ser as condições do mercado, a ordem jurídica
imposta e defendida pelo Estado e a livre associação com seus
companheiros de interesse [...] O sucesso ou o fracasso nessa nova luta
dependeria - segundo Maquiavel, o introdutor da ciência política
precisamente nesse momento - de quatro fatores básicos: acaso, engenho,
astúcia e riqueza (Sevcenko, 1994, pp. 11-12 – grifos nossos).
Por volta do fim da Idade Média, que os historiadores costumam fixar no ano de 1453,
data da tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, entramos no Renascimento e surgiu na
Europa o Estado Moderno. Essa nova entidade diferia das estruturas de poder que a antecederam
pelo exercício da soberania, que se desenvolveu no momento em que certos reis e príncipes, com
o apoio da burguesia e de parte da aristocracia feudal, subtraíram as competências normativas
dos vários centros de poder existentes na Idade Média, eliminando, assim, a poliarquia que
caracterizava a ordem política medieval. O Estado passou a constituir então a summa potestas
relativamente aos demais poderes que atuavam em seu território. Depois de adquirir a
supremacia no âmbito interno, o Estado livrou-se também das limitações que os governantes
medievais sofriam na condução de suas relações exteriores, representadas pelas ingerências da
Igreja Católica. A lei, que não se limita ao fato, não serve de elemento de diferenciação. Mas,
será retomando interpretação de Von Ihering que Aderson de Menezes (1998) sugerirá que na
Teoria da Autolimitação, a partir do século XIX, já se encontra a matriz doutrinária
condicionante das cláusulas pétreas. Vemos em sua análise que o Direito deve proteger a
sociedade do arbítrio e afirmar a ordem jurídica como anteposto da ordem pública223. Nesta
convivência entre direito e política, ainda é necessário ressaltar as gerações de direitos políticos
(geração positiva). Vejamos:
1. direito de resistência (no caso de o soberano atentar contra o povo);
2. direito de petição (para inquirir abuso de poder ou requerer novos direitos
junto ao poder soberano);
3. direito de participação e de reunião (além das corporações de ofícios);
4. direito de voto (para não ser censitário);
5. direito de associação (em partidos, sindicatos);
6. sufrágio universal (em que entre 80 e 90% da população têm condições de
intervir nos rumos do Estado);
7. direito de assembleia (democracia plebiscitária: decisão política, com
aceitação ou reprovação popular, sobre políticas públicas por meio de referendos
e plebiscitos);
8. direitos da democracia radical (exercício vigoroso da soberania popular
como controle do poder político).
223
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio ... (CF/88).
246
De acordo com José Afonso da Silva (1991), são três as finalidades do Estado de Direito,
com destacada garantia do(a): império das leis; divisão dos poderes; enunciado e garantia de
direitos individuais224. Para o sentido atual, podem-se acrescentar mais três finalidades de
ordem jurídica, além da ampla defesa das regras democráticas, e seriam: o enunciado e garantia
da dignidade da pessoa humana; enunciado e garantia dos direitos sociais; fruição e
efetivação dos direitos público-subjetivos. Observe-se, porém, que estes também constituem
princípios do Estado Democrático de Direito. Para melhor visualizar o sentido expresso, tome-se
como exemplo a Constituição italiana:
Todos os cidadãos têm paridade social e são iguais perante a lei, sem
discriminação de sexo, raça, língua, religião, opiniões políticas,
condições pessoais e sociais. Cabe à República remover os
obstáculos de ordem social e econômica que, limitando de fato a
liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno
desenvolvimento da pessoa humana225 e a efetiva participação de
todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do
país (Bobbio, 1995, p. 121 – grifos nossos).
Se no início a ordem jurídica está atrelada ao arbítrio, desde a primeira revolução jurídica
dos direitos humanos, com a proclamação dos direitos civis, o poder abusivo do Estado passou a
ser regulado pela ação política popular.
Estado Judicial e Estado de Direito
Das concepções deformadas do conceito de Estado de Direito derivou a
concepção/aplicação do Estado Judicial, como Estado que deve prover a moral oficial ao povo e,
por sua vez, nada tem a ver com a finalidade jurídica do Estado em prover a justiça:
Disso deriva a ambiguidade da expressão Estado de Direito [...] ou de um
“Estado de Justiça”, tomada a justiça como um conceito absoluto,
abstrato, idealista, espiritualista, que no fundo encontra sua matriz no
conceito hegeliano do “Estado Ético”, que fundamenta a concepção do
Estado fascista [...] Diga-se, desde logo, que o “Estado de Justiça”, na
formulação indicada, nada tem a ver com Estado submetido ao Poder
Judiciário, que é um elemento importante do Estado de Direito (Silva,
1991, p.100).
Diante da soberania, contudo, a questão da exceção se ressente toda vez que se quer saber
quem é o detentor do poder absoluto:
Em uma locução mais usual, perguntava-se quem teria a presunção, para
si, do poder ilimitado. Por isso, a discussão sobre o estado de exceção, o
extremus necessitas casus [...] Em razão disso, também se pergunta quem
decide sobre as competências constitucionais não regulamentadas, ou
224
Art. 60, § 4º , I, II, III e IV da C. F.
Como se vê no Art. 3 da Constituição italiana, traduzida para o espanhol: “Todos los ciudadanos tendrán la
misma dignidad social y serán iguales ante la ley, sin distinción de sexo, raza, lengua, religión, opiniones políticas ni
circunstancias personales y sociales. Constituye obligación de la República suprimir los obstáculos de orden
económico y social que, limitando de hecho la libertad y la igualdad de los ciudadanos, impiden el pleno desarrollo
de la persona humana y la participación efectiva de todos los trabajadores en la organización política, económica y
social del país”.
225
247
seja, quem é competente quando a ordem jurídica não oferece resposta à
questão da competência (Schmitt, 2006, p. 11).
Qual a melhor forma de se evitar o desvio autocrático do direito? Parece ser a defesa do
Estado de Direito e da própria democracia. Na moderna sociedade democrática, a ordem jurídica
é reduto da democracia e, mesmo não sendo um ativista da cidadania popular, é o que já nos
apontava Del Vecchio:
Quando este processo nos fatos e, sobretudo, nas consciências está
bastante adiantado e amadurecido, torna-se fácil também no aspecto
formal o estabelecimento da nova ordem pela qual o Estado instaura a
sua soberania sobre as várias organizações. Estas recebem, então, o seu
cunho e tornam-se seus instrumentos no exercício das dificuldades
normativas que lhes são reconhecidas ou atribuídas (Vecchio, 2005, p.3435).
Desde o pensamento jurídico marcado pela defesa do Estado de Direito, entre os séculos
XIX e XX, a ordem jurídica surgiria como retenção do Poder Político. A ordem jurídica como
retenção do arbítrio e redenção do direito, no entanto, ganhou amplo destaque no pós-Segunda
Guerra Mundial e para isto era preciso demarcar claramente o que é o Estado de Direito.
A revisão constitucional mundial
Em 1941, em cheio na 2ª Grande Guerra, o famoso jurista Hans Kelsen realizou palestras
nos EUA chamando a atenção para a natureza do Direito Internacional e o problema da paz
internacional. Ali formulou questões que podem nos guiar:
Como pode se organizar de uma maneira satisfatória a vida econômica
dentro da comunidade nacional, o Estado, sem abolir a liberdade pessoal
do indivíduo? Como pode se impedir a guerra ou qualquer outro uso da
força na comunidade internacional, nas relações entre os Estados?
(Kelsen, 1986, p. 49).
Kelsen colocava a questão nesses termos, inicialmente, porque também falava da
ambição de construir um Estado Mundial, unindo o maior número possível de Estados-membros
dentro de si. No Estado Mundial concentraria todos os meios de poder, submetendo todos a um
único governo central e os regularia por meio de uma mesma ordem jurídica. A partir de 1946, a
ONU não seria capaz de tal feito, mesmo tendo-se proclamado a Declaração Universal dos
Direitos Humanos em 1948. O jurista alemão, contudo, sabia da ambição que se escondia na
utopia e via no máximo, com sorte, a efetivação de um Estado Federal Descentralizado regido
por um direito comum e pela comunidade internacional. Para Kelsen, desde logo se colocava a
questão jurídica de se saber se este Direito Internacional teria ou não a mesma validade entre os
contratantes, que têm os seus respectivos ordenamentos jurídicos internos. A ordem jurídica
internacional substituiria a soberania interna? Desse modo, a centralização dos Estados, em uma
confederação desse tipo, não poderia ser tal que absorvesse todos os demais membros em um só
organismo (como fagocitose) e que transformasse o Direito Internacional em um direito de
ordem interna. Por isso, o jurista indaga acerca do caráter jurídico que envolve os compostos do
Direito Internacional e assim nos diz:
O preceito jurídico [...] é um juízo hipotético mediante o qual se fixa um
ato coercitivo, quer dizer, uma intervenção pela força na esfera de
248
interesses de um sujeito, como consequência de certa conduta desde. A
medida coercitiva, que institui o preceito jurídico como consequência, é a
sanção; a conduta do sujeito estabelecida como a condição é um ato
ilegal [...] O ato coativo, portanto, é ou bem um comportamento ilegal, o
delito, que constitui uma condição da sanção — e, portanto, está proibido
—, ou bem é uma sanção, a consequência da ilegalidade ou do delito —
e, portanto, está permitido [...] O Direito internacional será Direito neste
sentido se tão-só permitir uma medida coercitiva [...] Quer dizer,
podemos considerá-lo como Direito se a medida coativa que se levou a
cabo como reação contra o delito ou a ilegalidade pode se interpretar
como uma reação da comunidade jurídica internacional (Kelsen, 1986, p.
52 – livre tradução).
Desse modo, concluindo esta parte da argumentação, Hans Kelsen ainda dirá que o
Direito Internacional só terá eficácia (como se fora o direito nacional) se à violação do direito se
impuser uma sanção, de forma reativa e na mesma medida: “... juridicamente, uma determinada
conduta de um Estado pode ser considerada como delito tão-só se o Direito internacional vincula
a esta conduta uma sanção dirigida contra este Estado” (Kelsen, 1986, p. 54). Também não deixa
de ser interessante a relevância jurídica atribuída, ou seja, elevando a status de preceito jurídico
(como princípio basilar) o nexo entre direito/sanção/garantia. Dessa forma, a própria sanção
aplicada ao delito internacional (como infração clara de um direito, de um dos contratantes)
deveria ser recoberta de uma garantia de eficácia — só assim a própria sanção seria eficiente: “A
sanção específica de uma ordem jurídica somente pode ser uma medida coativa, estabelecida por
esta ordem, para o caso de que uma obrigação seja violada, e, assim se estabelece uma obrigação
substituta, então, para o caso de que também esta seja violada” (Kelsen, 1986, p. 55). Depois,
como se sabe, a ONU (1946) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) pretendeu
impor-se como um modelo de Estado-Nação. No período, triplicaram os movimentos de
descolonização e de reconhecimento da soberania de novos Estados. Mas, um pouco antes disso,
a fim de se configurar como independente, desde 1933, o Estado tem de obedecer ao artigo 1º da
chamada Convenção de Montevidéu226; o que significa que a entidade tem de apresentar as
seguintes qualificações: a) uma população permanente; b) um território definido; c) governo; e,
d) capacidade para manter relações com os outros Estados.
O revigoramento constitucional no pós-Segunda Guerra Mundial
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e os efeitos horripilantes do holocausto
(incluindo-se a chamada “revolução legal” de Hitler, que legaliza o descalabro), uma
possibilidade democrática real atentaria para se tentar uma síntese política, a partir da
constitucionalização dos conflitos sociais como equivalente do esforço pela maior efetividade
democrática da Constituição e, assim, da política e do Estado. Desse modo, a ordem jurídica
democrática do pós-Segunda Guerra primaria pela síntese constitucional que não esteriliza a
política ou as vontades dos participantes da vida pública. E devendo, então, como ensina Konrad
Hesse assegurar que:
Finalmente, a Constituição não deve assentar-se numa estrutura
unilateral, se quiser preservar a sua força normativa num mundo em
processo de permanente mudança político-social. Se pretende preservar a
226
A Convenção de Montevidéu sobre os Direitos e Deveres dos Estados (1933) estabelece prerrogativas e critérios
para que um Estado venha a integrar o Direito Internacional.
249
força normativa dos seus princípios fundamentais, deve ela incorporar,
mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária. Direitos
fundamentais não podem existir sem deveres, a divisão de poderes há de
pressupor a possibilidade de concentração de poder, o federalismo não
pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a Constituição
tentasse concretizar um desses princípios de forma absolutamente pura,
ter-se-ia de constatar, inevitavelmente – no mais tardar em momento de
acentuada crise – que ela ultrapassou os limites de sua força normativa
(1991, p. 21).
A Constituição deve assimilar os contrários, os dissensos, as demais possibilidades
sociais e políticas de sua sociedade, inaugurando um pluralismo e não monismo jurídico e
político (ou totalitarismo, de prevalência do pensamento único), adotando o ensino jurídico a
vertente em que o direito capta eficientemente a realidade e a dinâmica societária. Nessa trilha,
porém mais tecnicamente, deve-se tomar o direito na forma das garantias institucionais
(assegurando-se os direitos fundamentais), como seguridade jurídica necessária à livre fruição
das vontades políticas socialmente válidas, pois que o direito, assim considerado, figurará como
garantia da vida pública no bojo do Estado Democrático de Direito. Trata-se, em outras palavras,
de assegurar a função jurídica do Estado em que os direitos individuais fundamentais
(co)existam com a mesma inclinação de força devida aos deveres públicos. Por fim, da auto
regulação da política e da democratização do direito (Estado de Direito Democrático) podemos
extrair a necessária mediação entre o governo dos homens (da política) e o governo das leis (o
Telos, a finalidade projetiva da justiça social).
No plano interno, constata-se que os tratados internacionais de direitos humanos inovam
significativamente o universo dos direitos nacionalmente consagrados – ora reforçando sua
imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ou suspendendo preceitos que sejam
menos favoráveis à proteção dos direitos humanos. Em todas as hipóteses, os direitos
internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer,
nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo
constitucional. Neste sentido, os instrumentos internacionais de direitos humanos invocam a
redefinição da cidadania, a partir da incorporação, ampliação e fortalecimento de direitos e
garantias voltadas à proteção dos direitos humanos, a serem tutelados perante as instâncias
nacionais e internacionais. É fundamental a interação entre o catálogo de direitos nacionalmente
previstos e as conquistas de direitos internacionais, com vistas a assegurar a mais efetiva
proteção aos direitos humanos. Impõe-se ainda ao Estado o dever de harmonizar a sua ordem
jurídica interna à luz dos parâmetros mínimos de proteção dos direitos humanos – parâmetros
estes livremente acolhidos pelos Estados. Do que ainda decorre a necessidade de se definir, como
conceito mais abrangente, o Estado Democrático de Direito. Neste constructo jurídico, o Estado
Moderno na sua atual fase de transformação incorporou à ideia de ordem jurídica a proteção e as
garantias de fruição de direitos fundamentais, quer sejam individuais, quer sejam sociais,
coletivos e difusos.
Estado Democrático de Direito Social
Assim, trata-se de um Estado de legitimidade justa ou Estado de Justiça Material,
fundante de uma sociedade democrática e capaz de instaurar um processo de efetiva
incorporação de todo o povo nos mecanismos de ratificação do controle das decisões políticas e
na repartição dos rendimentos da produção social, cultural, econômica e educacional (cidadania
250
democrática)227, sob a salvaguarda institucional de que a ordem jurídica sempre se pautará pela
efetivação dos direitos fundamentais (individuais e sociais). Esse novo modelo de Estado se
impõe porque o Estado de Direito, quer como liberal quer como social, necessariamente não se
caracteriza como democrático. Pois a democracia funde-se no princípio da soberania popular, ou
seja, na participação ativa do povo na coisa pública (res pública), na República, e não só na
formação das instituições representativas por meio do voto (ainda que direto, livre e secreto). O
que, historicamente, deveria impor ao Estado Democrático de Direito a tarefa de corrigir e
assegurar a justiça social e garantir a autêntica participação do povo no processo político
(civitatis activae). Neste contexto, significa dizer que a lei não deve ser apenas instrumento de
arbitragem, mas precisa influir necessariamente na realidade social, já que esta vive em constante
mudança, não sendo, portanto, estática. Dado o pressuposto da democracia ser o diferencial
nesse modelo de Estado, cabe também indicar o que entendemos por cidadania democrática. É o
que se denominou de a ética como Justiça:
A ordem jurídica será mais estável e eficiente quando animada pelas
qualidades humanas, afetivas, psicológicas e morais [...] Viver
eticamente é viver conforme a justiça. A justiça ilumina, ao mesmo
tempo, a subjetividade humana (virtude de justiça) e a ordem jurídicosocial (justiça como princípio ordenador da sociedade) (Pegoraro,
1995, pp. 10-11 – grifos nossos).
Na combinação entre a leitura histórica e o conhecimento jurídico que veio se firmando
temos que a progressiva incursão do direito pela política resultou no fortalecimento de uma
ordem jurídica positiva, mas socialmente inclusiva e restritiva dos recursos abusivos do Poder
Político – aliás, de certo modo, denota a conversão do Poder Político em Poder Público:
a) O Estado, sendo o criador da ordem jurídica (isto é, sendo incumbido
de fazer as normas), não se submetia a ela, dirigida apenas aos súditos. O
poder Público pairava sobre a ordem jurídica. b) o soberano e, portanto, o
Estado, era indemandável228 pelo indivíduo, não podendo este questionar,
ante um tribunal, a validade ou não dos atos daquele. c) O Estado era
irresponsável juridicamente: le roi ne peut mal faire, the king can do no
wrong229. d) O Estado exercia, em relação aos indivíduos, um poder de
polícia. Daí referirem-se os autores, para identificar o Estado da época,
ao Estado-Polícia, que impunha, de modo ilimitado, quaisquer
obrigações ou restrições às atividades dos particulares. e) Dentro do
Estado, todos os poderes estavam centralizados nas mãos do soberano, a
quem cabia editar as leis, julgar os conflitos e administrar os negócios
públicos (Sundfeld, 2004, p. 34).
Na atualidade do que já se convencionou chamar de Estado Pós-Moderno, em que o povo
legitima a ordem jurídica, o Estado-Força, em que se aplica indiscriminadamente a força, a
coerção, a violência institucional não são mais sinônimos da segurança pública. É a superação do
227
José Afonso da Silva (1991) formula excelente análise teórica e conceitual a fim de definir e distinguir o Estado
Democrático de Direito, sendo, portanto, autor de primeira consulta para quem analisa o tema.
228
Quer dizer que o indivíduo não demandava contra o Estado, não promovia ações contra o Poder Público.
229
A regra da bilateralidade da norma jurídica (de que o Estado deve suportar o peso da lei criada por ele mesmo)
seria anunciada no Estado Liberal, mas só se veria atuante na vigência do Estado Constitucional.
251
momento de estática que caracteriza o Estado jus puniendi. É um tipo de Estado-Inteligente, pois
as ações políticas e as medidas institucionais devem ser as mais ajustadas às necessidades;
juridicamente, haveria um equilíbrio entre meios e fins, entre a celeridade político-social e a
segurança jurídica. O sistema político-institucional, como entrada (input) e saída (output) de um
amplo sistema que comunica e relaciona necessidades e oportunidades, meios e recursos, ainda
nos coloca duas questões complementares: há adesão popular ao modelo político? O desempenho
do Estado reflete a possibilidade de influência dos cidadãos? A primeira questão traz a armadilha
da política brasileira, ao se confundir Estado e Governo. Com esta confusão, não é ocasional que
alguns governos adotem o Estado para si, corrompendo a coisa pública em “coisa nossa” (cosa
mostra), utilizando o Estado para manter e inflar o poder do seu governo. A segunda questão
expressa o populismo como resposta política inerente à dominação tradicional, e isso decorre da
confusão entre Estado e Governo.
A ordem jurídica atual institui-se entre direito e democracia, porque o sistema de direitos
(a) institui os cidadãos simultaneamente como autores e destinatários da ordem jurídica e (b)
significa a institucionalização das condições gerais necessárias para o desenvolvimento de
processos democráticos no direito e na política. Se os cidadãos não são somente destinatários
mas autores das leis, então o Estado de direito pode ser representado como o conjunto de
instituições legais e mecanismos que governam a conversão do poder comunicativo dos cidadãos
em atividade administrativa legítima, sendo o direito a linguagem que pode transformar o poder
comunicativo em poder político. Para que a participação dos cidadãos na construção da ordem
jurídica faça a diferença, as condições de comunicação permitindo testar a legitimidade das
normas de direito por parte de organizações da sociedade civil e da opinião pública não devem
ser distorcidas nem manipuladas (Schumacher, 2003). Contudo, uma vez que a ordem jurídica
democrática está enraizada no “coração” e nas práticas sociais, pode-se ainda ver que o Poder
Político recupera e se mantém mais vivo com o livre fluxo do Poder Social.
O que fazer?
Quando se trata da ordem jurídica democrática, vale o preceito religioso: olhai e vigiai.
Não dá para relaxar a guarda. A reconstrução do Estado de Direito e a afirmação do humanismo
jurídico, atualmente, sofrem incursões que deslegitimam a ordem jurídica. Em nome da Razão de
Estado, alicerçada na segurança pública, o próprio Estado de Direito apresenta inversões nas
tutelas oferecidas historicamente pelos mecanismos de autocontrole. Então, o que fazer? Há
paradigmas ético-jurídicos do status quo que ainda precisam ser superados, como:
 Justificação de meros interesses liberal-individualistas.
 Estrutura estatal centralizada e de classe.
 Práticas jurídicas hegemônicas.
 Cultura étnica: eurocentrismo liberal-individualista.
 Negação do humanismo social-includente.
 Individualismo como expressão da moralidade burguesa; ideologia do indivíduo
como centro autônomo das escolhas econômicas e como porta-voz das relações
sociais.
 Racionalidade jurídica em que o indivíduo é um valor absoluto.
 Estatutos jurídicos proclamadores da vontade individual acima e independente da
realidade social.
 Formalismo retórico da igualdade formal que subverte a verdade material.
 Perspectiva de que o contrato é superior ao direito como fonte jurídica vinculante.
252




Vaga noção de que a lei é superior ao Direito – este como fonte jurídica vinculativa
ao/do social.
Conceito de sujeito de direito individual (abstrato, formalista, ideológico) como ente
moral, livre e igual – sobretudo diante das relações de mercado em que se vende a
autonomia como se vende a força de trabalho.
Princípio-fim do Direito se ainda restrito e limítrofe à segurança e certeza jurídica.
Noção de que a segurança jurídica limita-se exclusivamente pela manutenção da
ordem jurídica.
Em defesa da democracia
Pois bem, levando-se em conta que esses itens possam/devam ser superados pela ordem
jurídica efetivamente democrática, uma das principais atribuições da ordem jurídica, no sentido
moderno de que se trata incessantemente de proteger e aprofundar a cidadania como prática
social e democrática, é regulamentar o direito político. Como se sabe, a primeira geração de
direitos humanos foi “negativa”, pois era uma imposição de regra obrigatória ao Estado de nãofazer; proibindo-se, portanto, o próprio Estado de legislar contra a prática política popular. Além
de se ter no Estado uma proteção à democracia. Neste sentido, a ordem jurídica é uma regra de
proteção e deve assegurar o aprofundamento da cidadania democrática. Ocorre, porém, que é
preciso proteger os cidadãos de ingerências irregulares em sua manifestação política: uma dessas
restrições deve evitar que haja uma pressão desmedida sobre o direito de livre expressão política.
Assim, vejamos quando para a lei “o menos vale mais”, quando a lei atende à liberdade,
restringindo direitos de liberdade, mas para sejam assegurados no futuro imediato:
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto,
com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
(...)
§ 2º - Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço
militar obrigatório, os conscritos230 (CF/88 - grifos nossos).
A proibição dos militares conscritos de se alistarem estaria nessa abordagem dos direitos
políticos, porém, receberia duas orientações diferentes: 1) restringir o direito do militar conscrito
alistar-se eleitoralmente é uma proteção de consciência, a fim de que não sejam influenciados
por seus superiores, em claro voto de cabresto; 2):
No cumprimento dos deveres constitucionais, o processo eleitoral exige
que os membros das Forças Armadas, submetidos aos rígidos preceitos
de obediência, hierarquia e disciplina, fiquem em relativa prontidão
com o escopo de exercer as atribuições relativas à defesa nacional e a
garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem (artigo 142,
caput, CF), inclusive para atender a requisição do Tribunal Superior
Eleitoral por intermédio do Supremo Tribunal Federal. Em decorrência,
os militares deverão, no dia das eleições, permanecer aquartelados e, de
230
Item 5 do Art. 3° do Regulamento da Lei do Serviço Militar, Decreto n.º 57.654 (20/01/1966): conscritos são os
brasileiros que compõem a classe chamada para a seleção, tendo em vista a prestação do Serviço Militar inicial.
Conscritos são todos aqueles que estejam prestando o serviço militar obrigatório, os alunos dos órgãos de formação
da reserva, os médicos, odontólogos, farmacêuticos e veterinários que estejam prestando serviço militar inicial
obrigatório, enquanto durar, ainda que tenham sido alistados antes da matrícula ou convocação (Resolução TSE Nº
15.850/89).
253
antemão, são dispensados do serviço na Justiça Eleitoral conforme
prescreve o artigo 75 do Estatuto dos Militares231 (grifos nossos).
Em todo caso, nas duas hipóteses, trata-se de restringir os direitos políticos de alguns,
temporariamente, a fim de que todo o processo eleitoral receba a melhor condecoração políticoeleitoral. Ou seja, é necessário proteger o direito de voto como essência da liberdade política e,
neste caso, trata-se de algo congênere esta restrição ao militar conscrito de exercer o direito de
voto. Porque, mais ainda do que a ingerência exercida pelos pais sobre os filhos, será a
possibilidade de o superior cobrar/influenciar a livre escolha política do soldado. Assim, a
restrição do direito de voto do soldado se alinha à natureza dos direitos (civis) de primeira
geração. É um direito negativo, como impedimento de que o agente que representa o Estado (o
militar) execute ações negativas à cidadania e aos direitos humanos. A ordem jurídica
democrática protege a cidadania e impede a grave violação contra os direitos humanos, a
começar da defesa do direito à liberdade. Dessa forma, diz-se que a ordem jurídica é a porta de
entrada para o Estado Democrático de Direito Social, como o conjunto das instituições regulares
que sustentam a fase atual do Estado Moderno. Portanto, não se admite outra natureza política
que não seja a da Justiça Social no interior da ordem jurídica democrática. A democracia, sem
dúvida, é uma fonte privilegiada de legitimação do Estado.
231
http://www.paranaeleitoral.gov.br/artigo_impresso.php?cod_texto=211.
254
PODER POLÍTICO E LEGITIMIDADE
O que é poder? Digamos que há duas formas de se analisar o poder: relação diária;
organização institucional. Entre tantas tentativas de definição, ainda se fala do poder como:
 Capacidade (atributo individual)
 Potência (possibilidade: em analogia ao poder da natureza)
 Energia (em analogia às máquinas)
 Coerção - Poder Político (força física; virilidade: virtù)
 Violência (guerra)
 Fluxo/relação (poder econômico ou social: erga omnes)
 Função/organização (os três poderes clássicos)
 Crença (duas formas: dominação ou condição - “eu posso”)
Como relação diária, diz-se acertadamente que é deter o conhecimento sobre algo ou
alguma coisa. É conhecer, discernir fatos, pessoas e suas intenções e vontades. É não ter medo de
se posicionar, mesmo sabendo que pode ser arriscado. Também é um atributo social, mas como
consciência e decisão de participação: Poder é ter consciência social, política e econômica do
meio em que se encontra. Poder é ter segurança de sua capacidade de ser e de fazer em prol de si
e do outro. Ou é uma relação emocional: “Poder é jogar tudo para o alto e ter coragem de arriscar
o novo para ser feliz”.
Poder é um conceito político, social e econômico, talvez hoje mais econômico do que os
demais. Ainda é um conceito que se relaciona a nossa condição de seres humanos em processo
constante de crescimento, de busca de "coisas" que transcendem a razão. Por isso, crescem
formas de subjetividades e irracionalidades políticas, que não se atenham à lógica política e à
Razão de Estado, como: conhecimento de si, busca de respostas para esse tipo de sentimento
depressivo que toma conta das pessoas, respostas que as ajudem a sustentar as dificuldades
materiais e de relacionamento, de superação das deficiências do nosso caráter. Lembramos de
Sócrates: "conhece-te a ti mesmo", um tipo de poder que só o indivíduo pode ter. E que está
ligado diretamente à ideia e ao conceito de fé (não no transcendente, mas em si), capacidade de
ser e fazer. Esse é um dos maiores problemas relativos ao poder na Modernidade Tardia: de uma
forma generalizada, não se acredita na capacidade de realização. Porque vivemos numa
sociedade que nos mercantiliza, coloca os não-vencedores para baixo, vivemos atormentados por
uma baixa estima social generalizada, decorrente das dificuldades de toda ordem; falta de
segurança (social, política, econômica), falta de ética, de respeito, de amor, de cidadania, de
empregos, falta de perspectivas. Detém o poder quem acredita em si e, quem acredita em si
transporta montanhas. Em todo caso, neste momento, o que nos interessa é a análise do poder
como processo de institucionalização, como Poder Político. Então, o que é Poder Político?
Poder Político
Está correto afirmar que o Estado sintetiza o Poder Político, mas não é uma resposta
suficiente. Sabemos, razoavelmente, que a unificação do Poder Político (como fonte da
soberania) se deu sob o Estado Absolutista (tal qual descrito por Hobbes), seguido pelo Estado
Moderno, e que – na fase seguinte, como Estado Liberal – afirmou-se a liberdade como direito
fundamental (como instrumento de restrição do poder estatal, na esfera da liberdade negativa).
Também percebe-se que o Poder Político – na modernidade burguesa – está expresso
como organização das forças produtivas, do consenso (ideologia) e da coerção/coação. Portanto,
255
como superestrutura, o Poder Político se organiza em ideologia e em sistema político-jurídico.
Por seu turno, esta capacidade de servir à organização social confere com o Poder de Polícia.
Em suma, o Poder Político resulta da unificação da coerção, da capacidade estatal de
instituir sanções, definir a legalidade e exigir seu cumprimento pelo corpo social (força erga
omnes). Esta dinâmica é melhor percebida nos três principais elementos que compõem o Poder
Político: exclusividade, universalidade, inclusividade. Pela primeira ocorre insistente repressão
aos grupos armados que desafiam o Estado. Com a segunda, o Estado onera a si como o único
capaz de tomar decisões legais que afetem todo o grupo social (portanto, legitimando-se). Com a
terceira, o Estado obriga a todos a que sigam um complexo moral-legal comum, distraindo-os de
se agrupam em torno de ideais dissipativos:
O poder político, enfim, funda-se sobre a posse dos instrumentos através
dos quais se exerce a força física (armas de todo tipo e grau); é o poder
coativo no sentido mais estrito da palavra [...] Enquanto poder cujo meio
específico é a força –, que é o meio desde sempre mais eficaz para
condicionar os comportamentos, o poder político é em qualquer
sociedade de desiguais o poder supremo, isto é, o poder ao qual recorre
qualquer grupo social (a classe dominante de qualquer grupo social), em
última instancia, ou como extrema ratio232, para se defender dos ataques
externos ou para impedir, com a desagregação do grupo, a própria
eliminação (Bobbio, 2000, p. 163 – grifos nossos)233.
Em essência, não é o uso e nem sequer a possibilidade do emprego da força o que
caracteriza o Poder Político, mas é sim o monopólio exercido pelo Estado no manuseio e na
aplicação dos meios de coerção. Isto é feito de forma legítima (de acordo com fins coletivos) e
legal (expressamente constituído em lei anterior). Portanto, é uma condição de exclusividade;
além de que a legalidade (ou não) do uso da força ainda é estrita, ou seja, conceitua-se como
criminalização e penalização o uso indevido da força (que não esteja de acordo com o “estrito
cumprimento do dever legal”). Há uma nítida interseção entre Poder Político, Teoria da
Soberania (sobretudo interna) e Razão de Estado (a principal razão de o Estado existir). O que se
intitulou de Estado Livre.
Estado Livre: O Estado de Direito Pós-romano
Por Estado Livre, inicialmente, vamos entender o que (a exemplo de Hobbes) se definia
como um Estado de liberdade neo-romana (ou o que, como produtos da modernidade, podemos
olhar retrospectivamente e definir como pré-liberal). Não está errado dizer que, quando se pensa
em liberdade, logo vem à mente o liberalismo clássico e com ele, John Locke. Mas, Hobbes é,
neste sentido, um “liberal antes de seu tempo” — portanto, veja-se que a expressão Estado
Livre, usada por Hobbes, não é nova:
Mas o momento culminante na emergência de uma teoria integral
republicana de liberdade e governo na Inglaterra surgiu em 1656. Após
dois anos desastrosos de experiência constitucional, Oliver Cromwell
232
Último recurso ou “última razão dos reis” (Ribeiro, 1993), em que se defende a integridade da soberania
territorial.
233
Ainda cita Weber para distinguir o Poder Político da teoria finalística do Estado, uma vez que, o Estado só pode
ser percebido em virtude do uso dos meios aplicados ao poder: “Por Estado deve-se entender uma empresa
institucional de caráter político na qual – e na medida em que – o aparato administrativo leva adiante com
sucesso uma pretensão de monopólio da coerção física legítima, tendo em vista a aplicação das disposições”
(Bobbio, 2000, p. 165 – grifos nossos). Trata-se do Weber de Economia e Sociedade (1999).
256
resolveu, em maio, convocar um novo parlamento. A oportunidade para
denunciar o protetorado e pleitear um acordo autenticamente republicano
foi imediatamente aproveitada por Marchamont Nedham, que revisou
suas editorias anteriores e republicou-os como The Excellency of a Free
State (A Excelência de um Estado Livre) em junho de 1656 (Skinner,
1999, p. 25 – grifos nossos).
Contudo, o Estado Livre deveria instituir outros direitos frente ao Estado, a exemplo do
princípio da “liberdade negativa”, qual seja: “pode-se fazer tudo, desde que não seja proibido por
lei”. Como mostra Skinner:
Ao mesmo tempo, alcançava proeminência uma concepção associada
sobre a relação entre o poder do Estado e a liberdade de seus súditos. Ser
livre como um membro de uma associação civil, alegava-se, é
simplesmente estar desimpedido de exercer suas capacidades na busca de
seus fins desejados. Um dos deveres básicos do Estado é impedir que
você invada os direitos de ação de seus concidadãos, um dever que ele
cumpre pela imposição da força coercitiva da lei sobre todos igualmente.
Mas, onde a lei termina, a liberdade principia (Skinner, 1999, p. 18).
De certo modo, esses são os primeiros direitos liberais do Estado, mas ainda não são,
todavia, direitos fundamentais, como logo a seguir viriam a se tornar os chamados direitos civis
ou individuais (fundando a Primeira Geração dos Direitos Humanos). Vê-se que se trata da
liberdade negativa, pois a liberdade limitada pela lei seria o freio da ação. No fundo, um
processo que Hobbes ainda analisaria:
De acordo com isto a autonomia de um homem consiste em nada mais do
que no fato de que seu corpo não seja impedido de agir de acordo com
seus poderes. “Um HOMEM LIVRE é aquele que, naquelas coisas, que
por sua força e sagacidade ele é capaz de fazer, não é impedido de fazer
o que ele tem vontade”234 [...] Se a ação não está ao alcance de seus
poderes, sua carência não é da liberdade, mas da capacidade de agir
(Skinner, 1999, p. 19).
Note-se que liberdade e capacidade de agir são estágios diferentes da ação humana. O
não-impedimento do indivíduo no gozo do “seu direito de agir” (mais tarde - com o Bill of
Rigths, em 1689) seria regulado positivamente235 pelo próprio direito de liberdade (de ir, vir e
permanecer) e negativamente236 pelo Habeas Corpus: este como remédio jurídico, como
“garantia legal do direito de liberdade física”. Outros poderão indagar que o Princípio da
Liberdade como fonte reguladora do Estado, como limitação da ação soberana do Príncipe,
remonta ao Rei João Sem Terra e sua Magna Carta, de 1215. Então, como se enquadra a Magna
Carta neste contexto? Devemos lembrar que a experiência da Magna Carta se reduziu à
Inglaterra e como experiência histórica demandaria outros quatro séculos para ressurgir (a partir
234
Esta citação é do conhecido Leviatã – “o poder definido à imagem de um crocodilo imenso e invencível”.
Positivo no sentido de que afirma e destaca a ação.
236
Negativamente porque, como garantia ou remédio jurídico, só atuaria depois que o mal se instalou ou em sua
iminência, a exemplo do Habeas corpus preventivo – interposto justamente para evitar que haja dano ao direito.
235
257
da Revolução de Oliver Cromwell). No entanto, é claro que não era uníssono o Estado Absoluto,
como meio de poder e de coerção inquestionável e independente da lei:
Mais do que isso, porém, a Magna Carta deixa implícito pela primeira
vez, na história política medieval, que o rei acha-se naturalmente
vinculado pelas próprias leis que edita. Quinhentos anos antes, Santo
Isidoro (560-636), bispo de Sevilha, já havia defendido a ideia de que
o príncipe devia submeter-se às leis que ele próprio promulgara, pois
“só quando também ele respeita as leis, pode-se esperar que elas
sejam obedecidas por todos” (Sententiae III, 51.4) (Comparato, 2001.
p. 75 – grifos nossos).
Como se vê, a Magna Carta foi um antecedente histórico do Estado Liberal e do próprio
Estado Livre. É bem razoável que busquemos aí um primeiro “Estado de Direito”, pois, se
falamos da lei que deveria regular aos súditos, mas também ao rei, é porque “está em destaque o
princípio da legalidade”, ao menos em sua base e origem. Não se falava, obviamente, em
princípio da reserva legal, porém essa igualdade diante da lei e do poder é em si uma conquista
jurídica. A diferença em relação ao Estado Liberal, é que ali os “princípios legais da liberdade”
já se vinham construindo dentro do espírito absolutista que iria formar-se com/no Estado
Moderno. Mais do que isso, no pretenso Estado Medieval (portanto, antes do Estado Liberal) já
se acenava com o princípio da legalidade e sua relação com as bases da liberdade individual. O
princípio da legalidade pode ser assim resumido:
Nos teóricos clássicos alemães e italianos do Direito Público as noções
de Rechtsstaat ou de Stato di diritto, assim como em parte para a
doutrina inglesa a de Rule of law ou para a francesa as de Règne de la
loi ou Sèparation des pouvoirs, são consideradas como um modelo
teórico que pretende refletir ou explicar, no plano da Dogmática Jurídica,
os processos formais através dos quais discorre a dinâmica estatal (Luño,
2003, p. 238 – grifos nossos).
Em suma, o Estado Livre se destaca pela primeira conquista rumo à igualdade jurídica e,
no Estado Liberal, está no foco da busca pela liberdade, como proteção do indivíduo frente ao
Estado (aquele mesmo Estado descrito por Hobbes como supremo e inquestionável em sua
soberania). Assim, também podemos concluir que o Estado Livre é um tipo de Estado de
Direito Primário em que a conquista política se transformou em lei de alcance “mais”
geral. O que serve ao súdito, doravante também se aplica ao rei. Isto nos aclara o sentido de que
liberdade e igualdade são construções históricas renováveis e inesgotáveis, uma vez que a cada
fase ou bloco da história outra concepção pode se tornar homogênea. Este também é o caso
verificado ao longo do breve curso do chamado Estado Legal, na França pós 1789, mas agora
em defesa da igualdade de direitos, da Justiça Material. O Estado Legal é a estrutura políticojurídica construída logo após a Revolução Francesa — é exemplo de uma dessas fases de
inversão, subversão do direito. Isto é, o mesmo Direito que outrora tinha sido criado para o
estrito cumprimento do exercício legal (simples e direto) da dominação de uma classe social
sobre outras, agora permite ou deixa em aberto a possibilidade de os oprimidos utilizarem-se
daquele mesmo direito para a sua libertação. São tentativas de sedimentação da cidadania como
soberania popular, portanto, bem diferente do modelo (elitista):
258
No Antigo Regime, a experiência pública estava ligada à formação da
ordem social; no século passado, a experiência pública acabou sendo
ligada à formação da personalidade [...] O segundo traço da crise do
século XIX está no discurso político comum em nossos dias.
Tendemos a descrever como líder “confiável”, “carismático”, ou
“alguém em quem se pode acreditar”, aquele que for capaz de
atrair grupos cujos interesses são alheios às suas crenças pessoais,
ao seu eleitorado ou à sua ideologia. Na política moderna, seria
suicídio para um líder insistir em dizer: esqueçam a minha vida privada;
tudo o que precisam saber a meu respeito é se sou bom legislador ou um
bom executivo e qual a ação que pretendo desenvolver no caso. Ao
invés disso, ficamos alvoroçados quando um presidente francês
conservador janta com uma família da classe trabalhadora, embora
tenha, poucos dias antes, aumentado os impostos sobre os salários
industriais; ou então, acreditamos que um presidente americano é mais
“autêntico” ou confiável do que seu predecessor caído em desgraça
porque o novo homem prepara o seu próprio café da manhã. Essa
“credibilidade” política é a superposição do imaginário privado
sobre o imaginário público e, também neste caso, surgiu no século
passado, como resultado de confusões comportamentais e ideológicas
entre os dois âmbitos (Sennett, 1988, pp. 40-41 – grifos nossos).
Em nossa atual indefinição quanto aos limites/liames entre público-privado, como “esfera
pública burguesa”, olhamos o mundo político a partir da janela dos problemas pessoais,
domésticos: “A linha entre a esfera privada e a esfera pública passa pelo meio da casa”
(Habermas, 2003, p. 62). A autonomia se dá – pelo indivíduo – em face do Estado, mas não se
trata de um indivíduo amorfo, sem identidade ou materialidade; devendo ser visto como produto
da vida civil, do trabalho, do entrechoque com o Poder Político e em meio às ideologias e
mentalidades:
À autonomia dos proprietários no mercado corresponde uma
representação pessoal na família aparentemente dissociada da coação
social, é o carimbo autenticador de uma autonomia privada exercida na
concorrência. Autonomia privada que, negando a sua origem econômica,
exerce-se unicamente fora do domínio em que aqueles que participam do
mercado se acreditam independentes, conferindo à família burguesa essa
consciência que ela tem de si mesma. Tal consciência parece ser
espontânea, parece ter sido fundada por indivíduos livres e manter-se sem
coação; ela parece repousar na permanente comunhão amorosa dos
cônjuges; ela parece resguardar aquele livre desenvolvimento de todas as
faculdades que distinguem uma personalidade culta. Os três momentos
— do livre arbítrio, da comunhão de afeto e da formação —
conjugam-se num conceito de humanidade que se pretende que seja
inerente a todos os homens, definindo-os certamente enquanto seres
humanos: a emancipação que ainda ressoa quando se fala do puramente
ou simplesmente “humano”, uma interioridade a se desenvolver segundo
leis próprias e livre de finalidades externas de qualquer espécie [...] A
259
família desempenha exatamente o papel que lhe é prescrito no
processo de valorização do capital (Habermas, 2003, p. 63 - grifos
nossos).
Portanto, este público-burguês não pode escapar a seus limites:
A esfera pública burguesa desenvolvida baseia-se na identidade
fictícia das pessoas privadas reunidas num público em seus duplos
papéis de proprietários e de meros seres humanos [...] A fórmula
básica de Locke quanto à preservation of property subsume, numa só
linha e de um só fôlego, sem qualquer constrangimento, sob o título
“propriedade”, life, liberty and estate: tão fácil conseguia ser, naquela
época — segundo uma distinção do jovem Marx, identificável a
emancipação política com a emancipação “humana” (Habermas, 2003, p.
74 – grifos nossos).
O público é espectador da política institucional: o liberalismo aproxima-se, mas também
choca-se com muitos movimentos sociais e/ou populares: feminismo, trabalhismo.
Historicamente, entretanto, o Poder Político tem grande amparo no liberalismo político
inaugurado por Locke, ainda que antes dele já o Parlamento havia delimitado contornos de
legitimidade ao Estado (como capacidade administrativa de gerir a força física e política).
Liberalismo clássico e Poder Político
Pois, outra face desse mesmo Estado Liberal será revelada pelo Estado Laico, que é de
ideologia liberal, mas que agora emprega um maior efetivo na defesa intransigente da liberdade
religiosa, na separação clara entre Estado e Igreja e na defesa do que o próprio Locke chamará de
tolerância religiosa. O liberalismo clássico de Locke, quando voltado a esta relação EstadoDireito, pressupõe uma relação objetiva entre o Poder Extroverso do soberano e seus súditos. Por
exemplo, ao indagar acerca do que é o Poder Político:
Por poder político, então, eu entendo o direito de fazer leis, aplicando a
pena de morte, ou, por via de consequência, qualquer pena menos severa,
a fim de regulamentar e de preservar a propriedade, assim como de
empregar a força da comunidade para a execução de tais leis e a defesa
da República contras as depredações do estrangeiro, tudo isso tendo em
vista apenas o bem público (Locke, 1994, p. 82 – grifos nossos).
Ou quando trata diretamente do que entende pelo que seja ou deva ser o Poder
Legislativo: “A lei civil, sendo o ato de todo o corpo político, tem a primazia sobre cada parte do
mesmo corpo” (Locke, 1994, p. 138). Para em seguida nos revelar a fonte do próprio direito
consuetudinário, aquele baseado nos costumes — a Comunidade Civil ou commonwealth:
Como a forma de governo depende da atribuição do poder supremo, ou
seja, do Legislativo, é impossível conceber que um poder inferior possa
prescrever a um superior, ou que um outro além do poder supremo faça
as leis, a maneira de dispor o poder de fazer as leis determina a forma da
comunidade civil (Locke, 1994, p. 160).
Em seguida ainda nos traça um panorama do alcance e dos limites ao Poder Legislativo:
260
Primeiro: ele não é exercido e é impossível que seja exercido de maneira
absolutamente arbitrária sobre as vidas e sobre as fortunas das pessoas
[...] Segundo: O Legislativo, ou autoridade suprema, não pode arrogar
para si um poder de governar por decretos arbitrários improvisados, mas
se limitar a dispensar a justiça e decidir os direitos do súdito através de
leis permanentes já promulgadas e juízes autorizados e conhecidos [...]
Terceiro: O poder supremo não pode tirar de nenhum homem qualquer
parte de sua propriedade sem seu próprio consentimento [...] Quarto: O
poder legislativo não pode transferir para quaisquer outras mãos o poder
de legislar; ele detém apenas um poder que o povo lhe delegou e não
pode transmiti-lo para outros (Locke, 1994, pp. 163-164-166-168).
Lembrando-se que o parlamentarismo foi construído com a incumbência de limitar o
poder do Estado soberano, aproximando o Poder Político da representação popular (Parlamento).
Acredita-se, de algum modo, que o Parlamento representava a vontade geral. Tais limites, pois,
são demarcados por deveres e por obrigações peculiares às funções requeridas ao próprio
Poder legislativo:
Primeiro: Ele deve governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas,
e se abster de modificá-las em casos particulares, a fim de que haja uma
única regra para ricos e pobres, para o favorito da corte e o camponês que
conduz o arado. Segundo: Estas leis só devem ter uma finalidade: o bem
do povo. Terceiro: O poder legislativo não deve impor impostos sobre a
propriedade do povo sem que este expresse seu consentimento,
individualmente ou através de seus representantes [...] Quarto: O
legislativo não deve nem pode transferir para outros o poder de legislar, e
nem também deve depositá-lo em outras mãos que não aquelas a que o
povo o confiou (Locke, 1994, p. 169).
O que, em tese, a fim de que o poder controlasse o poder, deveria desembocar na
hierarquia entre os poderes:
Em uma sociedade política organizada, que se apresenta como um
conjunto independente e que age segundo sua própria natureza, ou seja,
que age para a preservação da comunidade, só pode existir um poder
supremo, que é o Legislativo, ao qual todos os outros estão e devem estar
subordinados; não obstante, como o legislativo é apenas um poder
fiduciário e se limita a certos fins determinados, permanece ainda no
povo um poder supremo para destituir ou alterar o Legislativo quando
considerar o ato legislativo contrário à confiança que nele depositou [...]
Deste modo, a comunidade permanece perpetuamente investida do poder
supremo de se salvaguardar contra as tentativas e as intenções de quem
quer que seja, mesmo aquelas de seus próprios legisladores, sempre que
eles forem tão tolos ou tão perversos para preparar e desenvolver projetos
contra as liberdades e as propriedades dos súditos (Locke, 1994, p. 173).
Por fim, mas o que talvez devesse constar do princípio, porque tudo isto só faria sentido
se prevalecesse o interesse público, surge como um dos temas centrais do Segundo Tratado sobre
261
o Governo Civil, o princípio da moralidade: “A regras salus populi suprema lex é certamente
tão justa e fundamental que aquele que a segue com sinceridade não corre um risco grande de
errar” (Locke, 1994, p. 179). Portanto, a partir de Locke, o Estado Liberal clássico ainda
produziu o substrato do princípio da tolerância (antes religiosa e depois política). Mas, o que é
Estado Laico e tolerância religiosa e política?
Escorço histórico: Estado Laico
A secularização da política no âmbito do próprio Estado Moderno já antecipava o Estado
Liberal. Porém foi somente no Estado Liberal que se (a)firmou o princípio da liberdade religiosa,
e que se desdobrou com o tempo no princípio da tolerância religiosa. Assim, gradativamente,
continuamente transformou-se no princípio da liberdade e da tolerância política. E por isso
abordaremos também este aspecto a seguir.
O liberalismo erigido à época da formação do chamado Estado Liberal (pelo menos entre
a Revolução Inglesa, 1689, e a Francesa, 1789) desenvolveu, articulou e angariou novas
dimensões para a própria ideia e prática da liberdade. E assim é que esse longo processo de
desenvolvimento e de formação do Estado Liberal viria assegurar teoricamente que: ou todos são
livres ou ninguém o é; se um não é livre, nenhum é. O capitalismo necessitava de mão-de-obra
livre e, em regra, não poderia conviver com o trabalho escravo. Por isso, essa profunda e radical
dimensão liberal da liberdade também estabeleceu uma relação com a igualdade formal237 – ou
seja, só é igual (em direitos) quem é livre (para usufruí-los)238. No capitalismo vigente, o cidadão
é livre para vender força de trabalho (mas, quem compra tem o poder de dizer sim ou não).
A liberdade que se entendia, tomando por base esse processo histórico, era justamente a
liberdade religiosa e certamente a mais complicada de ser tomada, uma vez que o poder
absolutista (essa fase de pré-liberação do Estado) foi, acima de tudo, um poder religioso. Em
vários momentos anteriores à laicização do Estado (separação do Estado, da política, e da
religião), o poder do Papa (papado) era o símbolo maior do poder terreno. A secularização da
política demandou a geração e a aceitação da crença de que os homens eram capazes de se
organizar socialmente, sob o controle do Estado, para viverem: Deus deve cuidar do céu e os
homens e sua política se incumbirão da Terra. Porém, dita há mais de 200 anos, essa frase
levaria qualquer um à fogueira. Como ensina Locke, a liberdade religiosa precedeu qualquer
noção ou prática da liberdade, pois a liberdade de credo pressupõe a liberdade de pensamento e
só depois a liberdade de expressão, que acompanha o direito de reunião, de associação, de
participação política. O livre arbítrio denota a exteriorização da própria consciência, pois a ação
política consciente é decorrente da livre formação do pensamento:
É que o Estado não pode atribuir nenhum novo direito à igreja como
também não, inversamente, a igreja ao Estado. Assim, a igreja, quer o
magistrado a ela adira ou a abandone, permanece sempre a mesma que
antes, uma sociedade livre e voluntária [...] O poder civil é o mesmo em
toda a parte e não pode conferir uma autoridade eclesiástica maior a um
príncipe cristão do que a que pode conferir a um príncipe pagão, isto é,
não pode conferir nenhuma [...] Ninguém, nenhuma igreja e até nenhum
Estado tem, pois, qualquer direito de atentar contra os bens civis de
237
Veja-se o art. 5º, I, da CF/88: homens e mulheres são iguais perante a lei.
É fácil notar, então, como se erige a conquista dessa liberdade irrestrita: da liberdade decorre a igualdade, uma
vez que entre senhores e escravos não pode haver igualdade alguma, pois só os primeiros são livres. Portanto, todos
serão iguais em direito apenas quando todos forem livres para usufruí-los.
238
262
outrem nem, sob pretexto da religião, de o despojar das suas posses
terrestres. Quem pensar de outra maneira, gostaria que pensasse no
número infinito de processos e de guerras que assim proporciona ao
gênero humano; no incitamento à pilhagem, ao assassínio, aos ódios
eternos: em nenhum lado a segurança ou a paz e menos ainda a amizade,
poderão se estabelecer e conservar entre os homens, se houvesse de
prevalecer a opinião de que a soberania se funda na graça e que a religião
deve propagar-se pela força e pelas armas (Locke, 1987, pp. 97-99).
A necessidade de o Estado se tornar laico, portanto, exige tanto destronar o poder quanto
assegurar que o Estado não vá regular a religião. O Estado deve ser reprimido para não se arvorar
como detentor de uma religião oficial, ao mesmo tempo em que desautoriza outras práticas
religiosas ou opções ideológicas. O Estado deve ser ateu, independentemente do que o governo
ou o próprio governante confesse. O Estado Laico, por fim, deveria encontrar respaldo, reflexo
na própria lei que regula o Poder Político em torno do Estado Liberal. Ainda é importante frisar
que o Estado Laico também concorre para a secularização do direito:
A passagem dos comportamentos pelo crivo da inocência e da
culpabilidade foi separada da gestão das almas e do policiamento das leis
de Deus para ser confiada às instituições de uma justiça humana
responsável pelo direito criado por cidadãos para reger suas interações;
pode-se qualificar essa passagem de secularização (Assier-Andrieu,
2000, p. 305).
Fora do contexto liberal e religioso inglês (que ainda se debatia em defesa do
protestantismo), sob forte influência de Rousseau, na França, a liberdade política ganharia mais
peso e densidade, ao se equiparar liberdade e democracia ou liberdade e participação. Então, em
Rousseau, de modo mais contundente, a liberdade virá associada a um projeto político mais
radical, mais profundo, uma vez que não bastava a ideia da liberdade vigiada pela lei. Aliás, a
esta liberdade negativa, Rousseau irá propor a democracia radical, a democracia de raízes mais
profundas. Por fim, ainda cabe destacar que – hoje mais do que nunca – precisamos resgatar o
conceito de Cultura Jurídica para entrelaçar o poder à legitimidade, pois a legitimidade do poder
é a legalidade aplicada ao poder, mais a adesão no substrato da consciência (cultura política). O
poder legal é a essência da cultura jurídica do século XXI.
Cultura Jurídica
A expressão cultura jurídica sempre esteve atrelada à ideia de dogmática jurídica, como
conteúdos e conceitos legais alçados à condição de dogmas. Também devemos distinguir de
outras locuções, a exemplo de pensamento jurídico e doutrina jurídica. Pensamento Jurídico é
uma hipótese ou conjunto de hipóteses oriundas das técnicas profissionais próprias do meio
jurídico e dizem respeito a uma possível natureza e condições específicas ou características
provindas deste conjunto técnico – além de se destacar uma função precípua do direito.
Dogmática Jurídica expressa uma determinada fase histórica da cultura jurídica
ocidental. Mais especificamente a partir da influência alemã, a locução passou a expressar
maneiras de tratar e de expor o direito positivo, relacionando e de forma a se embasar a partir de
categorias conceituais (dogmas), tais como “negócio jurídico”, “ato jurídico”, “Estado de
Direito”, “Segurança Jurídica”. Dogmática Jurídica ainda expressa um conjunto de técnicas
operacionais e interpretativas do direito, baseadas em conceitos e dogmas. Doutrina Jurídica
263
constitui uma parte significativa da cultura jurídica, valendo-se de especificações e de
interpretações dos grandes sistemas dogmáticos do direito. Por fim, todas essas locuções devem
ser diferenciadas da ciência jurídica:
Essa expressão é empregada de duas formas: (a) uma utilização ideológica
em que as formulações dos juristas correspondem, ou devem corresponder
a uma sistematização racional inteiramente análoga à das “ciências
sociais”; (b) e uma utilização mais fraca, própria da linguagem corrente
com a qual “ciência jurídica” é sinônimo de “doutrina jurídica” (Arnaud,
1999, p. 197).
Porém, a fim de que tanto a perspectiva de cultura jurídica correspondesse às
necessidades modernas, quanto a ideia de segurança jurídica estivesse adaptada ao capitalismo,
foi preciso que a experiência da dogmática jurídica se alterasse.
Cultura Jurídica e Direito Moderno
Não bastava mais o Estado Guarda-Noturno desse segurança aos seus súditos, era
necessário o tal Estado Empreendedor, não apenas conquistador como no passado bárbaro, mas
sim de bases racionais, ou seja, plausíveis, críveis e confiáveis diante da margem de acerto e
erro. Este Estado erigiu um porto-seguro no direito, ou melhor, num sistema jurídico unificado
(ao revés do pluralismo jurídico medieval), nas palavras de Antonio Carlos Wolkmer:
A questão jurídica irá ser tratada de forma distinta pelos dois expoentes
da Reforma. Enquanto o teólogo Lutero desprezava o jurídico e detestava
os juristas tanto quanto a filosofia de Aristóteles e a escolástica
metafísica, Calvino, formado em Direito, aplica no estudo da Bíblia o
método exegético do mundo jurídico. Trata-se de um jurista que, em
Genebra, incorpora e leva adiante os propósitos da Reforma naquilo que
Lutero desconsiderava: a organização da Igreja reformada [...] A
orientação humanista incidiu, como não poderia deixar de ser, no âmbito
da teoria e da prática jurídica. Assim, o humanismo no Direito contribuiu
para uma natural e clássica revisão crítica da cultura jurídica produzida
pela Idade Média. O próprio eixo explicativo de sustentação da doutrina
do Direito Natural começa a se deslocar para a sociedade humana e para
a natureza racional do homem, antecipando-se, assim, o que seria mais
tarde a proposição filosófica do contrato social [...] Algumas
características da época, como a secularização, a racionalização, a
individualidade e o antropocentrismo, marcam a passagem para a
construção e consolidação de um novo mundo que legitima também uma
nova forma de produzir, pensar e praticar o Direito. Assim, a “nova
consciência jurídica europeia” nasce da convergência histórica do
naturalismo, da individualidade e da centralização política burocrática. A
par de toda essa dinâmica específica, a nascente cultura jurídica
eurocêntrica está profundamente afetada por fenômenos radicais e
criadores que têm suas raízes no Humanismo renascentista e na Reforma
Protestante. Tanto um quanto o outro, desses movimentos, exerceram
uma influência direta nas instituições jurídicas e na moderna doutrina dos
direitos fundamentais239.
239
Veja-se em: http://www.buscalegis.ufsc.br/busca.php?acao=abrir&id=24571.
264
Posteriormente à centralização do Estado-Leviatã de Hobbes (1983), o único capaz de dar
segurança e, ao mesmo tempo, reunir recursos para as grandes navegações, desembarcamos no
jusnaturalismo de John Locke. Com isto chegamos à ideia da liberdade e das relações
construídas de forma real e duradoura, como reino terrestre, e o papel da educação na sua
elaboração. Depois de Comenius, um passo decisivo rumo ao Homem Novo, primeiro foi dado
por Helvétius e, posteriormente, por Diderot:
Ocorrerá, a partir de meados do século XVIII, uma intensificação do
pensamento pedagógico e da preocupação com a atitude educativa [...] Das
relações mestre e discípulo às determinações políticas do ato pedagógico,
tudo isso seria considerado decorrente de um fator preliminar, concernente
à identificação dos mecanismos propulsores do aprendizado humano [...]
Da Ilustração à Revolução, a pedagogia desloca-se do terreno filosófico
para incursionar pela prática política, pelo lugar institucionalizado na
escola propugnada; deixa de ser objeto privilegiado do indivíduo para ser
concebida como direito e capacidade inerentes à espécie [...] Advogar ou
não a escola para todos foi, desde logo, estratégia política de matriz
iluminista (Boto, 1996, pp. 21-23).
Este é um marco histórico do apreender a aprender a política. Neste aspecto, diverge
bastante do Renascimento e sua clara intenção pela matematização das relações humanas e com a
natureza. Assim, a laicidade fortaleceu o sentido de responsabilidade pública e com isto também
chegamos à legitimidade como foi pensada desde o contratualismo.
A Liberdade ao alcance da Democracia - Rousseau
Em busca de uma liberdade participativa do povo na sociedade e na definição do Estado,
é que se diz que em Rousseau a liberdade aparece associada à democracia. Por isso, em
Rousseau, a temática da soberania não aparece isolada, exigindo a legitimidade do poder
constituído, ou seja, o Estado passaria gradativamente a ser submetido às regras criadas por ele
mesmo. No contexto do Estado Liberal, afirmava-se outra objetividade e racionalidade do
Direito, porque no bojo do Estado Liberal, segundo Rousseau, o cidadão é o portador pleno
dos direitos público-subjetivos (o Poder Político deve ser garantidor de sua fruição).
Primeiramente, porque o cidadão deve reunir dois atributos: a) capacidade jurídica:
requer-se pleno funcionamento das capacidades mentais, um razoável senso de proporção, uma
mínima adequação à realidade a fim de obter o julgamento moral; b) competência política: deve
reunir condições de projeção de suas posições e concepções políticas pessoais, além de
demonstrar certa liderança capaz de repercutir politicamente no todo, mediante suas ações, e
assim resultando na transformação do status quo, em modificações na ordem e na vida política.
Depois, porque essas garantias dos direitos políticos serão asseguradas pelo Estado (o
produtor dessas mesmas regras políticas) e, com isso, o cidadão poderá usufruir, gozar dos
mesmos direitos quando julgar interessante, relevante, oportuno. Isto é, dependerá de sua
vontade. A fruição dos direitos políticos, portanto, depende da garantia real e formal do Estado, e
da iniciativa do cidadão em querer participar ativamente, plenamente, da política, dos negócios
públicos. Trata-se da facultas agendi, a faculdade ou a capacidade individual de agir em nome
próprio, destacada pelo direito privado, mas que agora será aplicada à vida pública.
Veja-se que só neste aspecto Rousseau já é referência para a democracia, além de ser bem
mais radical do que Locke. Em Rousseau, portanto, pode-se buscar uma liberdade mais radical,
265
mais profunda, em comparação com os clássicos do liberalismo. A liberdade do Estado Liberal é
a liberdade do liberalismo e não exatamente o modelo de liberdade preconizada pela democracia.
Importa ressaltar a liberdade dos indivíduos e que nem sempre coincide com a vontade geral. Em
certo sentido, entre o liberalismo e a democracia há uma grande distância: “Aquele designa a
liberdade do status negativus, ou seja, o espaço de liberdade de atuação individual face ao
Estado. Este refere-se à liberdade do status activus, ou seja, à liberdade de participação na
formação da vontade comum” (Zippelius, 1997, p. 375). É importante ressaltar este aspecto
porque a estrita observância da vontade da maioria, sem respeito ou garantia às liberdades e aos
direitos individuais, pode facilmente degenerar em tirania da maioria – quando a maioria decide
pela supressão dos direitos das minorias. No livro O Contrato Social há uma boa pista do que é
este cidadão não limitado pelas negatividades do liberalismo: Cidadão é o portador pleno dos
direitos público-subjetivos (em busca de sua fruição) e como associado, da sociedade e do
Estado, recebe a designação de povo, coletividade (livro I, cap. VI – grifos nossos). Portanto,
para os dias atuais, dessa sua contribuição política, tiramos três possíveis níveis de participação:
— cidadão simples: participa da autoridade soberana do Estado (é só um indivíduo, sem
grandes projeções).
— Cidadão ativo: recebe determinadas atribuições conferidas pelo próprio Estado.
— Cidadão participativo: interfere diretamente nas atribuições e na dinâmica da Pólis
(participa da formulação da política).
Desta forma saímos do campo liberal para o democrático, para iniciar o debate sob a
forma do Estado Constitucional. Contudo, o Estado Democrático é uma realidade do século XX
e por isso deve ser tratado em outro momento. O que nos cabe aprofundar são os conceitos de
legalidade e de legitimidade que se articulam na constituição do Poder Político.
Legalidade
Legalidade em estrito senso pode ser resumida como “fazer ou deixar de fazer algo em
virtude da lei”, mas em sentido lato, podemos ver que a moderna legitimidade do corpus
político-jurídico atual (como regulação legal-democrática do Poder Político240) já se apresentou
simplificadamente como soberania.
A formação do Estado-Nação, superando diferenças e divergências culturais, de língua e
de credo, propiciou o sentimento de unidade necessário à nação. Portanto, no Ocidente, uma
intensa e intrínseca relação entre nacionalidade e legitimidade (inicialmente, como legalidade),
formulou mecanismos que se voltavam ao controle ou legitimação do Poder Político241. Em
seguida, outras razões jurídicas foram atribuídas ao Estado de Direito. Na Europa Ocidental, a
exigência do poder central (em disputa com barões e senhores feudais) levou à adoção de leis
universais, abstratas e gerais. O que fortaleceu o surgimento de uma autoridade central e a
imposição de leis nacionais. Vem daí, também, nossa confusão entre legalidade e legitimidade.
Quando se unificou, por exemplo, a metragem na Lei de Pesos e Medidas, em 1349, o
esforço de racionalização econômica se projetou no corpo legal. A necessidade econômica se
portou como legalidade. No fundo, trata-se de duas faces do mesmo curso racional. Em 1439
outra lei iria conferir ao rei a legalidade necessária para exercer o monopólio legítimo da força
física, por meio do controle das armas (Santos, 2013).
240
Este que talvez fosse o sentido expresso pelo Estado de Direito Democrático. Não basta a legalidade, é preciso
que se fortaleça a legalidade democrática.
241
O Parlamento e o sistema de freios e contrapesos foram alguns desses meios, ao mesmo tempo que propiciaram a
sedimentação do Estado-Nação.
266
Gradativamente, foi-se instituindo (institucionalizando-se) o direito como sistema, ao
menos a percepção de que deveria funcionar como sistema orgânico: conjunto de leis
concatenadas, como sistema legal, em sentido próprio e aplicado ao todo (social), em caráter de
abrangência nacional, evoluindo paulatinamente para a imparcialidade, impessoalidade e
neutralidade. Enfim, constituíram-se processos, recursos e resultados inerentes ao fluxo de uma
racionalização progressiva, gradativa.
Por meio do direito, a autoridade central foi paulatinamente estabelecida e reconhecida.
Primeiro se estabeleceu o Poder Político (estabilizando-se o centro de controle), para em seguida
reconhecer-se (legitimando-se) o poder com amparo na própria lei. O chamado Poder de Polícia
– como capacidade regulamentar e disciplinar – foi (e é) outro recurso aplicado ao crescente
poder de coerção/sanção. A monetarização da economia, o sistema simplificado de cobrança de
impostos, o exército regular e a fixação de um corpo de funcionários especializados (burocracia)
solidificaram os primeiros passos do Poder Político (nesta fase primária do Estado Moderno).
Legitimidade
Aquele sentido impetrado por Rousseau, para a legitimidade conferida pela vontade geral
à lei (na verdade: a lei como expressão da vontade geral), foi (e de certo modo ainda é)
empregado na determinação dos parâmetros da legitimidade que cerca o Poder Político como um
todo. No entanto, quando se aborda a legitimidade do Poder Político, é imperioso articular o
sentido estrito da legalidade com o direito como um todo, o que inclui a ética e a convivialidade.
Então, há o espaço do direito e da ética:
 DIREITO – Há crescente positivação dos princípios éticos, exigindo-se que o
Poder Público se espelhe na maior objetivação dos critérios morais. Desse modo,
a ética social é parte ativa no interior do moderno Estado de Direito, atribuindolhe regras republicanas e democráticas (Canotilho, 1999). Como vimos, mas não
custa relembrar, por Estado de Direito entenda-se o complexo arcabouço jurídico
formado pelo(a):
1. Império da Lei: quer dizer que a lei deve ser imposta a todos, a começar
pelo Estado – o Poder Público tem personalidade jurídica e por isso é
objeto do Direito que ele próprio produz. Define-se como a regra jurídica
de autocontrole do poder: “a regra da bilateralidade da norma jurídica”.
Tenha-se claro ainda que a legitimidade não se limita à legalidade242.
2. Separação dos Poderes: significa que o Poder Executivo não pode anular
o Poder Legislativo, além do que deve ser acompanhado e julgado pelo
Poder Judiciário – trata-se de assegurar a interdependência dos poderes
por meio da aplicação do sistema de freios e contrapesos.
3. Prevalência dos Direitos Individuais Fundamentais: fazia referência
aos direitos individuais, até os anos 20 do século XX, porque somente
nesse período é que entraram em cena os direitos sociais e coletivos. Daí
por diante, no entanto, cercou-se de legitimidade o próprio Estado
Democrático de Direito Social (Martinez, 2005)243.
242
No sentido legal, o que está mais perto desse contexto ideológico é realmente o conceito de vontade geral, uma
vez que – com a soberania popular por base – a legalidade tem origem no poder social, o que lhe atribui
legitimidade. Mas esta é apenas uma miríade do Estado Liberal.
243
Este também é um contexto melhor abordado a partir do conceito de ordem jurídica democrática.
267


CULTURA – A cultura deve permitir o oferecimento de regras de ação
(controle social), sem as quais não haveria retração das vontades individuais e o
decorrente convívio coletivo. O homem é iminentemente cultural porque a
humanização consiste na passagem da mera adaptação biológica ao meio, a um
processo de adaptação cultural em busca de alternativas para satisfazer suas
necessidades e objetivos de realização individual e coletiva. Portanto, a cultura
prova a capacidade humana de fabricar soluções inteligentes para problemas
complexos – a exemplo do direito e da ética.
HUMANISMO – A cultura humanista permite pensar a unidade da humanidade
na diversidade: “A diversidade é possível porque os seres humanos aprendem
a partir de meios culturais” (Laraia, 2009, p. 163). Pode-se dizer que este é o
eixo de condução dos direitos humanos.
Pois bem, este conjunto complexo (complexus: como rede social que se tece em
autopoiese244), que se forma entre legalidade e legitimidade e entre Estado e sociabilidade
(ética), condiz com os pressupostos de um Poder Político legítimo ou dominação racional-legal,
no dizer de Max Weber (1999).
Weber e a dominação legítima
Dominação racional-legal, dominação moderna, dominação legítima ou dominação pelo
saber245, são denominações que muito bem expressam o sentido válido, atualmente, para a ideia
de dominação e de legitimação do poder estatal. No caso específico da dominação legal, como
veremos, a crença na lei expressa uma forma de dominação legítima, ou seja, há um anseio pelo
Poder Político, e a dominação pela via legal é esperada, consentida e até requerida246.
Acredita-se que a lei será utilizada como mecanismo legítimo de controle social e que a
força (física) será o último recurso manejado pelo Estado — e não o primeiro como no exemplo
da última razão dos reis. Em Weber, toda dominação pressupõe “vontade de obedecer”
(interesse individual na organização social) e “crença na sua legitimidade”. Portanto, toda
dominação deve estar pautada em algum tipo de legitimidade, como “pretensões típicas da
legitimidade” ou o que: “...chamamos ‘dominação’ a probabilidade de encontrar obediência para
ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas [...] Certo mínimo de
vontade de obedecer, isto é, de interesse (externo ou interno) na obediência, faz parte de toda
relação autêntica de dominação” (Weber, 1999, p. 139).
O que diferencia “autênticas relações de dominação” de outras relações meramente
autoritárias é a existência deste “interesse na obediência”. Mas a isto ainda deve ser somada uma
“crença na legitimidade”: “Mas nem o costume ou a situação de interesses, nem os motivos
puramente afetivos ou racionais referentes a valores da vinculação poderiam constituir
fundamentos confiáveis de uma dominação. Normalmente, junta-se a esses fatores outro
244
Humberto Maturana e Francisco Varela, na década de 1970 designaram autopoiese como um processo de auto
criação, em analogia à célula enquanto algo "auto-criado": mas isso poderia ser apenas idiossincrasia. Porém, se “o
sujeito é – e somente é – quando se encontra no Outro” (sem os outros não há o Eu e não há educação, nem
sociabilidade e nem política), logo, complementa-se pela ontologia: tem o foco no ser e não no objeto, sem perder-se
na divisão “positivista” entre sujeito e objeto. A Ontologia trata da natureza do ser, de sua realidade, da existência
dos entes: ontos+logoi = "conhecimento do ser". A ontologia tem por objeto o estudo das propriedades mais gerais
do ser, apartada da infinidade de determinações e não procura qualificá-lo particularmente. Sentido que se
complementa com o de autarquia e autonomia.
245
Afinal, desde Bacon, “saber é poder”.
246
É preciso relembrar que Hitler foi eleito, antes de se glorificar como Füher.
268
elemento: a crença na legitimidade247” (Weber, 1999, p. 139). Como indica Weber, só a razão ou
a necessidade não justificariam a dominação (como influências externas), pois é preciso alguma
forma de legitimidade: “Conforme ensina a experiência, nenhuma dominação contenta-se
voluntariamente com motivos puramente materiais ou afetivos ou racionais referentes a valores,
como possibilidades de sua persistência. Todas procuram disputar e cultivar a crença em sua
‘legitimidade” (Weber, 1999, p. 139). Na montagem dos tipos ideais de dominação, Weber se
utiliza do método comparativo (mas também do trabalho histórico-empírico), iniciando a análise
pelo tipo mais recente, mais moderno, para, então, retroagir na formação histórica mais distante.
A dominação, de qualquer tipo, portanto, pressupõe elementos básicos, tais como: obediência
imediata; aceitação acrítica248; pretensão de legitimidade válida e relevante; consolidação dos
meios de dominação249. Em Weber:
A “legitimidade” de uma dominação — já que guarda relações bem
definidas para com a legitimidade da “propriedade250” — tem um alcance
que de modo algum é puramente “ideal”. Nem toda “pretensão”
convencional ou juridicamente garantida pode ser chamada “relação de
dominação” [...] Quando um grande banco é capaz de impor a outros um
“cartel de condições”, isto não se pode chamar de “dominação” enquanto
não exista uma relação de obediência imediata, de forma que sejam dadas
e controladas em sua execução instruções por sua direção, com a
pretensão e a probabilidade de que sejam respeitadas pura e
simplesmente como tais [...] A obediência de um indivíduo ou de grupos
inteiros pode ser dissimulada [...] O decisivo é que a própria pretensão
de legitimidade, por sua natureza, seja “válida” em grau relevante,
consolide sua existência e determine, entre outros fatores, a natureza
dos meios de dominação escolhidos (Weber, 1999, p. 140 – grifos
nossos).
Vê-se em Weber, como, em determinada época, a forma “predominante” de dominação
corresponde à forma predominante de propriedade; tal qual em Marx, em que a “ideologia
dominante” corresponde à forma dominante de propriedade. Porém, em Weber, movido pela
ação do “individualismo metodológico”, é preciso que se destaque certa “psicologia da
dominação”, ou seja, que haja uma “obediência total” ou “resignação absoluta do indivíduo”
entregue à dominação: “Obediência significa, para nós, que a ação de quem obedece ocorre
substancialmente como se este tivesse feito do conteúdo da ordem e em nome dela a máxima de
sua conduta, e isso unicamente em virtude da relação formal de obediência, sem tomar em
consideração a opinião própria sobre o valor ou desvalor da ordem como tal” (Weber, 1999, p.
140). Sem dúvida, todo e qualquer “subjetivismo” analítico e interpretativo, diante da ordem
expressa e válida (regra), deve ser afastado de pronto e desconsiderado. Desse modo, a
dominação deve produzir efeitos duradouros, trazendo influências para além da relação
247
Em Rousseau corresponderia a uma tomada de consciência (individual) acerca do corpo social.
Nos mesmos moldes em que Parsons definia a aceitação dos grupos sociais (Cardoso, 1977).
249
Sem dúvida, há um clima de ameaça, o que decorre da coerção – como já dissera Durkheim (1999).
250
No capitalismo tanto é legítimo ser proprietário que a propriedade se tornou direito fundamental na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
248
269
específica, para além da relação espaço-temporal estabelecida originalmente. Portanto,
dominação é como sucumbir sem resistência à ordem legítima251.
Pode-se dizer que, atualmente, a dominação legal se baseia em todos os princípios de
direito e em todo o ordenamento jurídico de um determinado Estado de Direito, mas Weber irá
detalhar essas atribuições. Enfim, em Weber: Estado = amálgama sócio-político que tem o
direito (na verdade, monopólio) de usar da coerção e da violência; contexto em que a lei positiva
é a própria legitimidade legal. Em sentido complementar, pelo aferimento do contrato social, o
homem abandonaria o estágio primitivo de sua organização social e aí passaria realmente a
experimentar o sabor/dissabor político. Contemporaneamente, só há sentido em se falar da ordem
jurídica que se constrói na esteira democrática e em que o Poder Político seja efetivamente
legitimado (inclusive com a garantia constitucional de novos atores sociais, como legitimados
legalmente). Este é o eixo básico do Estado sob a democracia.
Estado Democrático de Direito
Em Portugal, com a Revolução dos Cravos252, a primeira grande frente de luta popular
contra a ditadura foi o movimento operário. A classe operária intervinha como vanguarda em
toda a luta antifascista, em todo o processo popular em prol dos direitos e das garantias
democráticas253. Note-se, enfim, que aqui popular é sinônimo de operário (ou de trabalhador,
como se requer atualmente). É de fundamental importância reter essa imagem da gradativa
constitucionalização dos direitos fundamentais, das garantias democráticas e das liberdades
públicas, pois este é o fermento ou estopim do quadro institucional e jurídico do Estado
Democrático de Direito. Para Paulo Napoleão Nogueira da Silva (2002, p. 28), trata-se de
controlar o arbítrio governamental ou abuso de poder:
O “Estado Democrático de Direito” ao qual alude a Constituição Federal
brasileira, assim, é algo mais do que o simples “Estado Democrático”;
destina-se a limitar o poder político, tornar em qualquer hipótese
garantido o exercício dos direitos substanciais que consagra a todos os
membros da sociedade, a tornar impossível o arbítrio governamental, e a
tornar – tanto quanto possível, antecipadamente – previsíveis quaisquer
consequências do exercício do seu poder pelos cidadãos, assim como as
consequências dos atos do Poder Público genericamente considerado.
No plano político-constitucional brasileiro, para além dessa importantíssima questão do
controle do poder institucional254, temos que analisar a materialidade da justiça. Mais
especificamente, temos a análise consagrada de José Afonso da Silva, para quem trata-se agora
de um Estado Material de Direito. Tecnicamente, teríamos um “modelo jurídico-estatal” menos
dogmático e menos injusto, ou o perfil de um Estado que pudesse colocar a dogmática a serviço
da justiça social. Com isto em mente, citando e reinterpretando Verdú (2007), José Afonso da
Silva ressalta que:
Mas o Estado de Direito, que já não poderia justificar-se como liberal,
necessitou, para enfrentar a maré social, despojar-se de sua neutralidade,
integrar, em seu seio, a sociedade, sem renunciar ao primado do Direito.
251
A obediência à ordem ilegítima traz a tirania e, obviamente, não coaduna com a dominação consensual.
Tendo o cravo vermelho como símbolo, fez-se essa revolução político-institucional a 25 de abril de 1974.
253
Para um breve histórico: http://www.utopia.com.br/cc25a/25abril/historico.html.
254
Já em destaque, diga-se de passagem, desde a fundação do Estado de Direito clássico: a) império da lei; b)
direitos e garantias individuais; c) separação constitucional dos poderes.
252
270
O Estado de Direito, na atualidade, deixou de ser formal, neutro e
individualista, para transformar-se em Estado material de Direito,
enquanto adota uma dogmática e pretende realizar a justiça social (1991,
p.102).
Então, a partir da constatação de que as máximas e os dogmas do liberalismo eram
insuficientes para regular a crescente diacronia social, surge o Estado Social primeiro na forma
do Estado do Bem Estar Social. Aliás, essa dinâmica social deverá expandir as cortinas do
Estado de Direito Liberal255:
Mas ainda é insuficiente a concepção do Estado Social de Direito, ainda
que, como Estado Material de Direito, revele um tipo de Estado que
tende a criar uma situação de bem-estar geral que garanta o
desenvolvimento da pessoa humana. Sua ambigüidade, porém, é
manifesta. Primeiro, porque a palavra social está sujeita a várias
interpretações. Todas as ideologias, com sua própria visão do social e do
Direito, podem acolher uma concepção do Estado social de Direito,
menos a ideologia marxista que não confunde o social com o socialista
[...] Em segundo lugar, o importante não é o social qualificando o Estado,
em lugar de qualificar o Direito. [...] a expressão Estado Social de Direito
manifesta-se carregada de suspeição, ainda que se torne mais precisa
quando se lhe adjunta a palavra democrático como fizeram as
Constituições da República Federal da Alemanha e da República
Espanhola para chamá-lo Estado Social e Democrático de Direito. Mas
aí, mantendo o qualificativo social ligado a Estado, engastasse aquela
tendência neocapitalista e a petrificação do Welfare State [...],
delimitadora de qualquer passo à frente no sentido socialista (Silva, 1991,
p.102/103).
O que nos leva à análise ou diagnóstico clássico de que apenas o social não qualifica
legitimamente o direito quanto aos aspectos democráticos e humanitários. Aliás, um traço que
ressaltado quando se analisa o fenômeno do nazismo e de alguns documentos que regularizaram
a condição do detento e do preso sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Isto se deve ao fato
de que tanto os Estados totalitários quanto a democracia liberal podem priorizar o social.
O conceito de Estado Democrático de Direito, como forma estatal legitimada pela
legalidade democrática e cidadania participativa é apenas uma síntese que precisa ser esmiuçada,
mais especificamente a partir de seus pressupostos.
Pressupostos Históricos e Conceituais
4. Estado de Direito:
 Divisão dos poderes; direitos individuais; império da lei.
— legalidade (r)estrita
255
“a)submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato
emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representante do povo, mas do povo cidadão; b) divisão
de poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como
técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos
demais e das pressões dos poderosos particulares; c) enunciado e garantias dos direitos individuais”. (Silva, 1991, p.
100).
271
5.

6.

Estado Constitucional:
Direitos políticos; Iluminismo; contratualismo; individualismo.
Estado Social:
Democracia Social: princípio da dignidade da pessoa humana; direitos sociais e
trabalhistas.
7. República e Federação:
 Predomínio dos direitos público-subjetivos; publicidade; responsabilidade; legitimidade;
salus publica - saneamento da estrutura do Estado (contas públicas) implica em melhoria
da saúde pública do Estado e do povo.
8. Sociedade Democrática:
 Democracia Política - formalização e defesa das “regras do jogo”: a) predomínio da
vontade da maioria, b) defesa das minorias, c) alternância no poder, d) sufrágio universal
(coincide com uma dimensão do Estado Democrático).
— legalidade democrática ampliada: deferência e consentimento à autoridade, e não
autoritarismo ou simples culto ao poder.
9. Socialismo Democrático: Trata-se de uma forma de governo e de gestão da economia
em que vige a Democracia Econômica, e em que imperam determinados elementos
sociais, jurídicos e políticos com força imperiosa, tais como:
 constitucionalização dos direitos difusos e coletivos; inclusão social; distribuição de
renda; socialização do consumo; socialização progressiva dos meios de produção
(nacionalização e estatização do capital estrangeiro – diminuição do controle patronal
sobre o fluxo econômico); socialização da renda da terra e/ou do lucro das empresas;
respeito aos direitos e interesses dos trabalhadores; poder popular; mobilidade e
dinamismo social; desenvolvimento tecnológico e econômico; elevação dos níveis de
consciência pública (do egoísmo ao social, do privado ao público, do indivíduo à
cidadania) – maturidade/embasamento lógico-racional da crítica social. O que exige
atributos constitucionais na ordem da liberdade política.
Elementos Para uma Definição Constitucional
 Elementos Gerais: Poder Judiciário Independente; imprensa livre; pluralismo social
(ONGs, associações de bairro, sindicalização) e político (partidário); participação e
envolvimento popular na luta pela conquista e pela manutenção das liberdades públicas;
reconhecimento e defesa da integralidade dos direitos humanos; atuação firme do Estado
no desenvolvimento social.
 A Democracia é entendida como um artefato perfectível: um instrumento de ação popular
que busca a perfeição democrática. Portanto, a democracia é instrumental e processual –
trata-se de um instrumental político que se aperfeiçoa conforme o uso e a checagem
constante de sua validade.
 Poder Popular: incorporação real, efetiva do povo nos mecanismos de controle político e
ideológico do Estado. Por fim, é preciso recordar que o Estado Democrático de Direito é
uma elaboração teórico-constitucional que busca a edificação democrática do Estado.
 Sociedade Civil Organizada: só neste sentido é que a sociedade, hoje, seria capaz de
requerer direitos com força suficiente e para redirecionar o Estado ao cumprimento dos
preceitos constitucionais da justiça social e da igualdade real.
 Um fato agravante ainda a ser investigado é que vivemos numa sociedade civil
massificada pelo consumo e por todo tipo de símbolos e de valores capitalistas
272
(hedonistas, egoístas, narcisistas). Porém, à diferença do comunismo, no Estado
Socialista presume-se logicamente a existência e a atuação zeladora do Estado.
Componentes Decisivos do Estado Socialista
 Império da lei; garantias individuais; universalidade da lei; uniformidade legal; controle
popular do Estado; estímulo e respeito ao trabalho (o trabalho é a principal força motriz
do processo civilizatório e humanizador); punição das infrações; responsabilização
extensiva pela coisa pública; planejamento econômico.
 Definição legal:
A teoria soviética do Estado estabelece como exigências fundamentais da
legalidade socialista um quadro muito semelhante ao que temos
mencionado aqui como próprias do Estado de Direito. Escreve, por
exemplo, N.G. Alexandrov em 1959: ‘um traço fundamental da
legalidade socialista consiste, antes de tudo, em assegurar a supremacia
da lei em respeito a todas as decisões dos órgãos de administração e os
órgãos judiciais e de instrução (Díaz, 1998, p. 138).

Definição socialista:
Voltando ao tema central, resume Alexandrov, os traços fundamentais da
legalidade socialista são: direitos dos cidadãos, o caráter universal do
cumprimento das leis, a constante vigilância estatal e o controle social do
seu cumprimento, a uniformidade na interpretação e aplicação das leis, a
análise correta e no seu devido tempo das queixas dos trabalhadores, a
correção oportuna das infrações da lei e o caráter inelutável da
responsabilidade que deriva dessas infrações (Díaz, 1998, p. 140).
O Estado Democrático de Direito, entretanto, é capaz reunir elementos aparentemente
conflitantes do liberalismo, da democracia e do socialismo, como se percebe em seus princípios
mais gerais.
Características Gerais - Princípios
 Da democracia formal à democracia real; desvelamento das ideologias predominantes;
desenvolvimento tecnológico e econômico; reiterada constitucionalização dos direitos
público-subjetivos; garantias institucionais e constitucionais da efetividade das políticas
sociais, das políticas públicas {Estado Garante + Estado Juiz}.
 Estado Garante: passagem do binômio direito-dever (coerção) para direito-garantia
(liberdades). Da liberdade negativa à liberdade positiva - humanismo democrático,
humanismo de bem estar ou autonomia altruísta:
Sem renunciar a este, sem retornar a ascetismos medievais, partindo
disto, porém vendo uma verdadeira superação de ambos, o humanismo
democrático aspira a ser, em compensação, um humanismo real e, por
sua vez, mais fundamentalmente um humanismo de todos os homens. É
sobre este humanismo que quer precisamente fundamentar-se o Estado
Democrático de Direito (Díaz, 1998, p. 153).
273
Em certo sentido, quando se aplica a legalidade à própria funcionalidade do Estado, isto
é, quando se notabiliza que o Estado assenta toda sua legitimidade a uma legalidade pressuposta
(legitimada pela vontade geral), é possível auferir pela instituição do Estado-Juiz.
Estado-Juiz
O Estado-Juiz tem a responsabilidade de exercer o monopólio da jurisdição, que implica
na ação soberana do Estado em desvendar e corrigir uma situação social conflituosa, de modo
legítimo e condizente com os interesses globais, compondo e comandando de forma imperiosa e
derradeira a litigiosidade entre seus jurisdicionados. Esse modelo de Estado apresenta vantagens,
como: imparcialidade (burocracia); defesa dos direitos da sociedade (direitos difusos e
coletivos); autoridade e capacidade de impor a decisão tomada pelo Estado (legalidade e
legitimidade democrática).
Desde a afirmação da tripartição dos poderes, na Europa Ocidental, o Estado-Juiz traz
como elementos: o acesso à Justiça (democratização da Justiça); a lide (ajuizamento de uma
demanda perante o Estado, em função de uma pretensão jurisdicional); a inércia (o juiz só age
quando provocado pelas partes, ou pela negatividade: o direito não socorre a quem dorme); a
substantividade (o próprio monopólio da função e da tutela jurisdicional que derivam da
centralização do poder político: dizer o direito); a imparcialidade do juiz natural (quando se vê
incapaz de ser imparcial, o próprio juiz deverá declarar sua incompetência para aquela ação); a
definitividade (cabe ao Estado dar a palavra final às situações conflituosas, dizendo o remédio
jurídico aplicável). Para o Brasil do século XXI, por sua vez, ainda cabem ressalvas que se fazia
aos países em geral do assim chamado Terceiro Mundo.
Para o Terceiro Mundo
 Erradicação da miséria e da pobreza (fome crônica); restrição de direitos ou penalização
mais rigorosa contra aqueles que pratiquem ou estimulem formas de exclusão social,
como manutenção de trabalho escravo, prostituição infantil e os chamados crimes do
colarinho branco (corrupção política e institucional).
 Elevação urgente/urgentíssima de todos os níveis sociais, como: erradicação do
analfabetismo; diminuição da natalidade e da mortalidade infantil; diminuição das
desigualdades sociais e regionais.
 Elevação dos níveis de saúde pública e crescente escolarização.
— o conhecimento revela, traz esclarecimento sobre a realidade e propicia maior
autonomia, altruísmo e relações humano-societárias-republicanas: afastando o egoísmo,
o individualismo.
 Desenvolvimento de todas as formas possíveis de inclusão: social, econômica,
profissional, educacional, digital, política, cultural.
 Não importa a ordem em que se dê a inclusão, não há preferência por uma ou outra
forma, mas importa sim que se produza inclusão em escala. Pois, por exemplo, a inclusão
pelo trabalho deve melhorar os níveis de renda e de vida familiar, bem como a inclusão
digital pode propiciar novas fontes de renda (inclusão econômica) e assim por diante.
Superação do Capitalismo
 “A quem já tem – diz Hegel – é a quem mais se dá. Esta desigualdade da riqueza e da
pobreza constitui – insiste Hegel – o maior esgarçamento da vontade social, e se
transforma em rebelião e ódio” (Díaz, 1998, p. 156 – grifos nossos). Curioso notar que a
consciência política anticapitalista, antes de Marx, já está em Hegel.
 No Capitalismo, a riqueza só produz pobreza. Pela lógica da acumulação, é incapaz de
ser diferente. Assim, é necessário superar o sistema capitalista. O Estado de direito
274

democrático, português, teve essa pretensão, sem flertar ou soçobrar com os perigos do
totalitarismo.
No entanto, é preciso descartar completamente a ingenuidade de se acreditar que a mera
modificação legal, do conjunto das leis seria suficiente para alterar ou transformar o
sistema político e produtivo, ou seja, não podemos incorrer no erro de crer neste milagre
já proposto pelo socialismo jurídico no passado e já denunciado por Engels (1991).
Para Aprofundamento Conceitual-Institucional
 cidadania participativa – incremento dos meios de participação nos moldes da
democracia direta (plebiscito, recall e veto popular, a exemplo dos EUA).
 socialismo democrático: deve-se afastar o “centralismo democrático” e o estatismo,
próprios dos regimes comunistas de outrora.
 valorização de meios e recursos da chamada “democracia radical” (orçamento
participativo; controle externo do Poder Judiciário).
 cidadania interativa: democracia virtual – utilização de recursos e meios virtuais
(telemática) que aprofundem a participação popular, como: governo eletrônico,
quiosques virtuais.
 Democratização dos meios de comunicação.
Outra questão complementar refere-se à constante necessidade de revisão e atualização
conceitual, uma vez que a construção jurídica (cultura e dogmática jurídica) se ater ao contexto
de transformações sociais, políticas, culturais.
Contexto e diferenciação atual
 Sociedade Civil massificada: da Sociedade Civil organizada, da Socialdemocracia à
sociedade de massas.
 A globalização ameaça desintegrar toda a base de soberania que restava do antigo
Estado-nação.
 Direitos Difusos e Coletivos: a produção em escala gerou um consumo na mesma ordem
e, com isso, problemas sociais e técnicos da mesma dimensão.
 Inclusão: a ideia da inclusão social e econômica é recente, pois atende às necessidades
do próprio sistema capitalista no Brasil. Ao incluir milhões de pessoas, o sistema eleva
substancialmente o consumo, que estimula novo ritmo de produção e, com isso, eleva as
taxas de juros. Esta inclusão também tende a diminuir a criminalidade. Enfim, é uma
medida do capitalismo pragmático e não a não exatamente a construção de novas bases
de solidariedade social.
 O ideal e a busca do socialismo democrático: não se trata de retomar as experiências do
centralismo democrático, mas sim de fomentar novas formas de solidariedade social –
diminuindo as mediações humano-societárias do capital. Esta que talvez seja a
característica mais marcante e diferenciadora do Estado Democrático de Direito.
No curso da realidade brasileira, no pós-CF/88, a relação entre Poder Político e
Legitimidade sofreu com as muitas mudanças sociais, estruturais e com a depuração ou
adaptação da Constituição Federal, após 25 anos. Por fim, cabe uma última observação ao
denominado Poder Extroverso, como normalização do Poder Político, mas nem sempre
impulsionado de acordo com a vontade geral.
O Poder Extroverso como realidade da força política
275
O Estado se utiliza do monismo ou do monopólio da produção legislativa exatamente
para impor, alegando as funções clássicas ou tradicionais do “Poder Extroverso”, com nítida
arrogância instituída em nome de todos, um Direito que, em primeiro lugar, atende aos próprios
interesses dos administradores do Estado (e não, democraticamente, dos administrados). Desse
modo, não soa estranha a identificação, forjada entre Direito/Lei/Justiça, forçada pelo próprio
Estado porque tem de passar a ideia (ideologicamente arranjada no/pelo Estado) de que o Poder
Extroverso (impresso na/pela lei) não pode acarretar injustiças sociais:
A identificação entre Direito e Lei pertence, aliás, ao repertório
ideológico do Estado, pois na sua posição privilegiada ele desejaria
convencer-nos de que cessaram as contradições, que o poder atende ao
povo em geral e tudo o que vem dali é imaculadamente jurídico, não
havendo Direito a procurar além ou acima das leis [...] Repare o leitor na
arrogância com que todo governo mais decididamente autoritário repele a
“contestação” (como se as remodelações institucionais não fossem uma
proposta admissível e até parcialmente reconhecida em leis — no caso
das emendas constitucionais, por exemplo); na pretensão do poder que,
cedendo à “abertura” inevitável, quer, depois, controlar o diâmetro, a seu
gosto; na irritação com que fala em “radicalismo” de toda oposição que
ameace trocar, mesmo pelas urnas, o estado de coisas presente; nas
“salvaguardas” com que pretende garantir o status quo (isto é, na
estrutura implantada, os esquemas vigentes); na astúcia que procura
separar os “confiáveis” (isto é, os grupos e pessoas que são vinho da
mesma pipa) e os “não confiáveis” (isto é, os grupos e pessoas que
propõem alguma forma de reestruturação social, mesmo quando o fazem
com a recomendação de meios pacíficos) (Lyra Filho, 1999, p. 08-09).
Assim, vemos ainda como em nome desse chamado Poder Extroverso, o Poder Político
Absoluto (como Poder Total ou totalizante) tende a esvaziar o conteúdo propriamente político
que deveria representar em função, em razão da soberania popular – sob pena dos interesses da
própria Administração Pública sobreporem-se ao interesse público e à soberania popular, e,
assim, sobreporem-se à legitimação democrática do Direito e da representação mínima dos
interesses da República e do povo.
Desse modo, vemos nesse abuso, nesse excesso de manifestação e de julgamento do
Poder Extroverso, nada mais do que a manifestação ideológica, corporativa e interesseira dos
gestores que se apoderam do aparelho de Estado como se formassem verdadeira classe social
dominante: ao menos são predominantes de acordo com os interesses corporativos, e
administrativamente falando representam os seus valores, os valores corporativos que serão
apregoados como benéficos para toda a coisa pública.
Sob o manto do Poder Extroverso também está o princípio da pacificação jurídico-social.
Tivemos a oportunidade de grafar como um dos princípios instauradores do Estado de Direito
este que:
 Estabeleceu a função estatal pacificadora (Jurisdição): poder do Estado de estabelecer e
impor a Justiça; capacidade jurídica (institucional) do Estado em definir e decidir
imperativamente, de impor decisões peremptórias (categóricas).
276
Portanto, essa tese atua como demonstração de uma dominação racional-burocrática
corporativa e não racional-legal (como queria Max Weber). Neste caso, sob a dominação
corporativa, a máquina administrativa e a burocracia estatal estão a serviço dos próprios
interesses. A legitimação do uso da força física é uma das atribuições da Justiça que mais
garantem as liberdades em face das ameaças ou dos ataques do Estado de (não)Direito.
Dessa forma, fica claro que nesta articulação jurídica, Bobbio busca a preservação do
monopólio do uso legítimo da força física, tal qual a definição clássica de Weber para as funções
que são próprias ao Estado. A segurança do cidadão e do Estado deve ser levada a cabo com o
uso moderado, regulado, definido (juridicamente) e de forma legítima (com aval do povo). É
óbvio que tudo isso é discutível, mas esta é a visão clássica que se requer para a força política
reinante no próprio Estado de Direito, ao menos desde Weber. Já o Estado de não-Direito
aparece associado ao chamado poder oculto, às sombras:
O máximo da corrupção corresponde ao máximo do segredo. O
pagamento de um contrato regular deve ocorrer sob a luz do sol; o
dinheiro dado ao corrupto é dado nas sombras. O contrato juridicamente
legal é público; a relação de corrupção acontece em segredo. Mais os
corruptos sentem-se protegidos dos olhares, mais sentem-se seguros para
cumprir atos ilícitos (Bobbio, 2002, p. 111).
Vimos como a escuridão do poder esconde a outra face do Estado de não-Direito, que é a
corrupção pública: a privatização da República. Um problema extremamente grave tanto na Itália
de Bobbio, quanto ao longo da história política no Brasil. Esse fator obscuro da corrupção do
Poder também tem o efeito perverso de transformar as funções administrativas do Estado em
mero abuso ou uso indevido da corporação.
Poder Extroverso ou Usurpação Corporativa?
Por fim, resta-nos dizer que além da produção classista do Direito, a serviço de um
determinado interesse, privilegiando-o, em detrimento do interesse mais global, também
entendemos que o antidireito é uma espécie de institucionalização da injustiça. A
institucionalização da injustiça ocorre quando, por qualquer meio, o Estado pode/vê-se na
condição de aplicar o Direito (utilizar-se da força institucional) contra alguns ou, então, para
proteger uns poucos; de qualquer modo, sempre com claras intenções de produzir tratamento
institucional desigual. Assim, o Estado de (não)Direito está posto a serviço dos interesses
corporativos de uma fração de classe: os administradores públicos que atuam como gestores dos
interesses pessoais, de seus grupos e da classe maior a que pertencem. Aliás, quando o próprio
Estado impõe uma quarentena a seus ex-gestores, antes que se empreguem novamente na
iniciativa privada, não estará reconhecendo exatamente isso?
277
LEGITIMAÇÃO DO ESTADO
A legitimidade requerida ao Poder Político não é um item abordado nem na Declaração
de Montevidéu (1933), nem na de Bogotá (1948), mas, em conjunto com a justificação
(incluindo aí a aceitação político-ideológica e as instituições de direito), seriam requisitos de
afirmação do Estado independente. De modo simples, ocorre que se o governo é veementemente
checado, obstruído pela falta de legitimidade política interna, isto pode acirrar uma crise
institucional de governabilidade e, no limite, levar ao questionamento interno do Poder Público e
de sua soberania. Sendo assim, a ingovernabilidade se transforma em assunto de Estado – do
maior interesse – e, portanto, tem assento na agenda política dos Estados. Trataremos da
legitimação do Estado, mas inicialmente cabe investigar o que se pode entender genericamente
por legitimação.
O que é legitimação
Veremos a justificação como critério que autoriza a existência do Estado e valida suas
intervenções; o que supera, portanto, o critério de legalidade do próprio Estado. Por isso, logo de
início é importante ter clareza quanto aos fatos políticos e ideológicos: o que autoriza a
existência do Estado não é – ou pode não ser – o mesmo fundamento que virá autenticar sua
funcionalidade. O Estado pode ter surgido em resposta à necessidade de organizar a segurança e
os meios de sobrevivência a um grupo social (justificativa); porém, sua permanência,
legitimando-se em termos de continuidade, dependerá de quanto essas necessidades forem
satisfeitas e da sua capacidade de adequação a outros desafios e ao exercício político contínuo. A
justificativa assinala o fim, o conjunto de objetivos para que se organize e centralize o Poder
Político; enquanto a legitimidade coleciona os meios, os recursos, os instrumentos acionados a
fim de que o Poder Político se mantenha estruturado.
No senso hipotético da justiça, como diriam nossas esposas ou amigos(as): o Estado é
legitimado pelo estabelecimento de um mínimo de igualdade formal e real, o cuidado e a
proteção aos hipossuficientes, e a harmonia social em todos os seus aspectos. Sob o critério da
governabilidade e da legitimidade, como requisitos de validação do aparato estatal, é crucial
afirmar que o critério da valoração dos regimes políticos decorre da legitimidade. O problema
crucial da política, porém, é o da legitimidade que se liga aos procedimentos e resultados. Daí
que o regime político se identifica com a noção de Estado (status-stare = estar firme).
De qualquer forma, porém, esta relação conceitual será tensa, porque: enquanto o Estado
tem por característica a permanência; o governo é provisório. A estrutura do Estado é impessoal
e o governo exerce provisoriamente o Poder Político, com inclinações pessoais, representativas
de uma parte das concepções ideológicas (partidos políticos). Assim, será correto dizer que o
governo faz parte do Estado, que é mais abrangente. De todo modo, é correto afirmar que o
Estado se legitima com a ação producente, diligente do seu governo. A legitimação do Estado
tem por desafio explicar e convencer as pessoas da existência legítima, necessária, apropriada do
Estado e do Direito. Mas, por que obedecemos ao Estado e seguimos suas leis?
Da avaliação à validação
O que fundamenta a legitimidade, de certo modo, herdada por todos nós como critério de
avaliação? Genericamente, pode-se dizer que seja a busca de felicidade, da justiça, do bem-estar
social, da liberdade e igualdade, da paz social, da segurança individual e social (jurídica). O mais
seguro é afirmar que o Estado é legítimo se é capaz de utilizar da própria razão de ser, da Razão
de Estado, com a finalidade da pacificação social. Mas, nesse caso, a validação do Estado não
decorre de uma avaliação negativa, ou seja, de que a sociedade incorre em um estado tal de
278
instabilidade que necessita urgentemente da presença reguladora, tutorial do Estado? (Doehring,
2008, p. 144).
Primeiros passos
Confunde-se justificativa com legitimação, mas há que se entender que toda justificação
(como fundamentação) precede a explicação (legitimação). Caberia esta indagação: por que o
Estado é necessário? A justificativa é uma argumentação baseada nos pressupostos, nos
argumentos que solidificam as pretensões do Estado. Com vistas à legitimação, cabe perguntar:
por que manteremos o Estado organizado desse modo ou com este fim? A justificativa é inicial e
a legitimação é decorrente.
O que justifica o Estado é a necessidade de uma organização do social a fim de que as
forças políticas sejam exploradas de modo coletivo, como organização efetiva, e para que
nenhuma das partes se insurja com energia maior do que o poder central que deveria representar
todas as partes em disputa. O que legitima o poder central unificado é a necessidade de se manter
a base legal do Estado – com a pretensão de que o Estado atue como poder legal; um Poder
Político juridicamente organizado para atender à sociedade.
Assim, pode-se ver uma correlação entre legalidade e legitimidade, sobretudo a partir da
perspectiva de um complexo de relações sociais organizadas sistematicamente em uma unidade
de poder e que seja passível de conversão em um conjunto de relações jurídicas ordenadas: o
poder como unidade de ordenação. A legitimação está além da legalidade técnico-jurídica,
necessitando de uma justificação moral. Esta legitimidade engendra poder, assim como o poder
do Estado é tanto maior quanto mais forte é o reconhecimento voluntário prestado pelos
cidadãos: “Só goza de autoridade aquele poder de Estado a que se reconhece que seu poder está
autorizado” (Heller, 1998, p. 309). A autoridade do poder central até pode se basear na
legalidade, contanto que se fundamente na legitimidade. Por sua vez, a legitimidade está baseada
em critérios políticos relevantes – pelo prisma da Realpolitik –, sejam os critérios adotados pelo
Estado para infundir as políticas públicas, sejam os critérios de motivação política adensados
pelos cidadãos ao julgar o êxito ou o fracasso do Estado. Portanto, não deixa de haver uma
relação entre Estado e Governo.
A legitimação mais óbvia que se requer para o Estado decorre da argumentação de que
devemos proteger valores integrais da vida comum do homem médio (segurança, liberdade) e
instituições formativas (família), além de grupos sociais normativos, como os decorrentes das
demais atividades sociais (trabalho, política, sindicalização). Isto ainda não incorpora em
definitivo a presença e o desenvolvimento da ideia de que o Estado expressa o Poder Público –
visto que, para este caso, será necessário que se produza um direito especial –, no entanto, o ato
de vontade inaugural ou de consentimento posterior já terá sido dado. Isto é, se o Estado já se
formou, o que assegurará sua existência e permanência, com um mínimo de aceitação, respeito
institucional e cumprimento de sua designação normativa, social, produtiva, cultural? Há um
momento – na série de fatos históricos – que desembocará na formação do Estado, como poder
central, e há uma argumentação (lógica, jurídica, ideológica ou religiosa) ou imposição de meios
(força física, dominação carismática – quase mágica do governante) que deve se seguir a este ato
de vontade inaugural do aparato estatal. Muitos Estados têm no mito o elemento agregador das
vontades individuais, todavia, será na racionalização do poder que encontrará forças para
sobreviver.
A primeira parte da equação se refere ao suposto pacto ou contrato social que daria
fomento ao Estado (contrato político) e do qual ainda decorre um contrato jurídico (norma
fundamental, poder constituinte, Constituição). A segunda parte do problema se refere à
279
legitimação essencial ao Poder Político unificado, seja pelo discurso de que o Estado é o único
capaz de organizar a sociedade, operacionalizando-se o melhor desenvolvimento das habilidades
e capacidades humanas, seja pela mera imposição da vontade do mais forte. De qualquer forma,
na paz ou na conquista, o Estado precisa ser apresentado aos súditos ou cidadãos como algo
necessário, oportuno e as pessoas precisam acreditar piamente nisso, a ponto de abrirem mão de
direitos fundamentais (a liberdade em tempos de paz) e a vida (durante a guerra, defendendo
exatamente este Estado). Em suma, a legitimação do Estado trata da justificativa (como desculpa
necessária) acerca da urgência e relevância de sua existência. Neste sentido, o Estado Legítimo é
aquele que não admite a existência de facções políticas internas que rivalizem com o próprio
Estado.
O Estado é necessário ao funcionamento da sociedade
A legitimação do exercício da dominação do Estado, como requisição do ordenamento
jurídico, estabelece como tarefa política a promulgação de normas jurídicas vinculantes para
outros homens. Para estabelecer regras jurídicas que estabeleçam limitações aos interesses dos
indivíduos e ser cumprido neste dispositivo, sem dúvida, é preciso que haja disposição para ser
dominado, limitado nas ações. Esta chamada “dominação suprafamiliar” não é legítima em si e a
disposição para ser cumprida precisa ser “fabricada”. A dominação é fabricada, efetivamente, e
nos resta saber se será efetiva, porque decorre de uma construção política.
O Estado não nasce de um contrato social inevitável, como se fosse um ato único, pois
desenvolve-se progressivamente de baixo para cima. As relações de poder se estabelecem
porque os homens tornam-se dependentes um dos outros. Esta falibilidade humana leva ao
Estado, mas o Estado será controlado a fim de que o poder seja justificado. A divisão em funções
e órgãos coincide com este objetivo. Assim, o Estado racionaliza o poder – para atender a
necessidade de se justificar – e a justiça corrige o próprio Estado. É importante que no interior da
sociedade o poder seja distribuído e ordenado para que as pessoas que exercem o poder sejam
controladas por elas mesmas.
Para esta corrente do funcionalismo institucional, o Estado resulta da divisão social do
trabalho e da interdependência entre os homens: “O Estado deve garantir que o poder
existente seja exercido racionalmente, quer dizer, de acordo com a justiça, ele deve racionalizar o
poder” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 85). Nesta linha também racionalista, o Estado é resultado da
socialização do homem, de sua capacidade de organização e do sentido comunitário. Em suma,
como parte do processo civilizatório, trata-se do Estado Racional (Weber, 1985).
A dominação estatal também deriva de um contrato original fictício, como se decorresse
de uma norma fundamental. De todo modo, o Estado se formou para o livre desenvolvimento; é
difícil imaginar que o Estado tenha sido gerado para produzir o Mal. Mesmo a crítica marxista
verá no Estado um Mal porque atua como instrumental de opressão/espoliação utilizado
ditatorialmente pela burguesia como classe dominante (Engels, 1984). Em todo caso, há uma
distância entre nascer mal e ser usado para o Mal.
A crítica que se pode fazer é só no sentido de que há uma espécie de recurso político
latente, inerente, como zoon politikón, até mesmo como se esperássemos por um tipo de Estado
latente ou em potencial, gestacional. Agora, assegurar que o germe do Estado está na família é
certamente um exagero, pois nem todo aglomerado de tribos ou famílias – por maiores que sejam
ou que tenham sido – irá dar lugar a algum Estado. A origem da família, da propriedade
privada e do Estado, na trilogia proposta por Engels (1984), estaria em desacordo com a
Antropologia Política.
280
Por isso também, a legitimação do Estado ocorre com o reconhecimento popular e que
autoriza o exercício do poder. Considera-se, portanto, que a comunidade deve ser guiada por leis
comuns, como se fosse um sentimento comunitário. A sociedade precisa ser/estar convencida de
que o poder está sendo exercido para o seu bem: o Estado não pode figurar apenas como
ideologia ou projeto de poder, uma vez que acabaria confundido com o governo. No Estado
Legítimo, a obediência consentida é básica, não porque se teme as sanções, mas sim porque se
considera a obrigação de obedecer disposições legítimas, moralmente defensáveis.
Na história da Humanidade, o direito e a justiça antecedem ao Estado: “Há princípios
jurídicos elementares, reconhecidos por todos os povos, que não podem ser violados nem mesmo
pelo soberano [...] Assim, o soberano não está acima do direito, mas inserido no direito”
(Fleiner-Gerster, 2006, p. 89). Ao formular o ordenamento jurídico, nem o Estado nem o
soberano podem violar os princípios gerais reconhecidos. Esta seria, inclusive, uma das garantias
de que a soberania não seria transformada em tirania da maioria. Tanto o soberano quanto o
Estado (na verdade, trata-se da mesma realidade) devem observar sempre e de maneira geral os
princípios jurídicos racionais e justificáveis. A dominação do Estado será legítima se for
explicada racionalmente, se for justificável pela razão. Como Princípio de Autoridade, o Estado
tem de ser crível; mais do que verossímil. A razão, portanto, para o funcionalismo jurídico
(iluminista) é determinante.
O abuso do Estado, quando confrontado à razão, autoriza a perda do direito de governar:
um governo irracional, não-razoável, não é digno dos homens. Já liberto da ignorância, o homem
moderno sabe perfeitamente o que é e para que serve o poder. A capacidade de aprendizado dos
governados condiz com a necessidade de se corrigir constantemente a efetividade do Poder
Político. Neste sentido, a justificação do Estado é uma constante que decorre de uma maior
adequação do poder aos anseios sociais, isto é, a legitimação advém da justificação do poder
obtida em conformidade com as relações sociais; também por isso, o poder é uma relação social:
“O Estado diferencia-se de uma quadrilha de ladrões pelo fato de que deve administrar, no
interesse dos homens, a parte de autonomia humana que lhe foi confiada” (Fleiner-Gerster, 2006,
p. 90-91)
A legitimidade é uma ficção política e jurídica
Uma forma típica de se entender a legitimação do Poder Político é a partir da própria
consciência com que pautamos a produção/existência do direito positivo como marco na vida
civil da imensa maioria das pessoas. O Estado é uma abstração jurídica – tal qual é o direito uma
ficção256 – que decorre de uma realidade política efetiva. Diante da necessidade de se organizar
politicamente uma realidade social prévia, criou-se a abstração jurídica (a ideia) de que seguindo
as regras a vida comum seria mais fácil. Neste sentido, a legitimação a partir da norma
fundamental proposta por Kelsen ganha destaque:
A norma fundamental tem numa teoria normativa do Direito a mesma
função que a soberania numa teoria política ou, caso se queira,
potestativa do direito: tem a função de fechar o sistema [...] Enquanto o
poder soberano é o poder dos poderes, a norma fundamental é a norma
das normas [...] o tema kelseniano da norma fundamental é perfeitamente
simétrico ao tradicional do poder soberano [...] Exemplificando, para a
teoria normativa é a norma fundamental que institui o poder de produzir
normas jurídicas válidas num determinado território e em relação a uma
256
O direito existe porque acreditamos que assim é melhor e que sem o direito as regras sociais poderiam ser
fragilizadas na coordenação da vida comum do homem médio.
281
determinada população. Para a teoria política, é o poder constituinte que
cria um conjunto de normas capazes de vincular o comportamento dos
órgãos do Estado e, em segunda instância, dos cidadãos (Bobbio, 2008, p.
210-211).
A norma fundamental é potestativa (potestas, poder) do direito porque lhe confere força,
combustível para se tornar realidade, para intervir com eficácia; além disso, como visto, tem a
função de fechar o sistema, dar contornos de reconhecimento ao que é legítimo, reivindicativo e
por vezes limitativo. Se a norma fundamental é a norma que não precisa de justificação, a própria
justificativa para a legitimação do Estado é fictícia, quase uma lenda. Acreditar, creditar, dar
credibilidade ao Estado, à soberania, ao direito é o que asseguraria sua efetividade, ou seja, a
realidade política e jurídica do Estado e do Direito decorre da aceitação de que a ficção jurídica –
a crença no direito – é melhor, mais acertada à condução das relações políticas. De tal modo que
o Estado e o direito existem, são eficazes, porque acreditamos em sua existência. O Estado é uma
razão que se fia na convicção, crença; o Estado é uma concretude política construída sobre uma
ficção jurídica. De nossa crença, a ficção do direito se torna realidade. Da ficção jurídica de que
o caminho do direito é o mais correto, o mais adequado, ou seja, o único caminho a seguir,
decorre a própria ideia de poder reinante no Estado de Direito257. Portanto, trata-se de um ato de
boa-fé que assegura a existência do Estado e a efetividade do direito ou, em sua ausência e
descrença, o que incrementa o surgimento de formas sociais proto-jurídicas, como o crime
organizado e o chamado Estado Paralelo. Como racionalidade do Poder Político, a justificação
do Estado está em garantir que a razão regulamente a vida comum e as relações políticas: a
Razão de Estado.
Em outro exemplo concreto, pode-se dizer que o Estado como Poder Público confere fé
pública a seus órgãos e servidores – como pretensão de legitimidade – para agir de acordo com o
melhor interesse público. Assim, a fé pública é uma atribuição conferida pelo Estado a fim de se
manter a atuação dentro de níveis de credibilidade adequados. A fé pública é uma espécie de
longa manus, em que o próprio Estado se vê representar, atribuindo-se, portanto, direitos e
deveres inerentes a esta função pública que é derivada, mas própria, do poder central. O servidor
deve agir de acordo com o interesse público e suas ações – como reflexo da fé pública – deverão
espelhar o que o “soberano/Estado dirá” ser o mais adequado para aquela situação. Com a fé
pública ainda se atesta a veracidade, a autenticidade, a confiabilidade das informações ofertadas
e dos documentados produzidos. A fé pública atribuída ao Poder Político é a chancela de que o
Estado propugna agir bem, como ente racional. A fé pública não é mitológica, é racional, nascida
das necessidades de auto regulação e de padronização das ações públicas. A Razão de Estado,
sob este prisma, é um ato de fé, sem dúvida, mas como fé pública construída sobre as bases da
razão. A fé pública, como derivação da Razão de Estado, é parte da razão cartesiana do poder.
Não deixa de ser curioso, irônico (uma ironia jurídica), o fato de que o positivismo esteja
pautado em uma crença, no subjetivismo, na convicção de que o direito (como ficção) será
realidade se acreditarmos na primazia da norma fundamental e na soberania do Poder Político:
257
Quantos bilhões de pessoas mantém essa crença no Estado e no direito? Quantas pessoas são descrentes do
Estado e do direito porque essas ficções político-jurídicas não estão presentes em seu dia a dia? Tanto é verdade que,
no caso concreto, para se instalar uma unidade da política pacificadora, no Estado do Rio de Janeiro, os policiais
fincaram uma bandeira nacional, como se dissessem: “A partir de agora, acreditem, o Estado brasileiro será parte da
realidade de todos. <Retomamos o território perdido!>”.
282
tão supremo que não admite superlativos. Na vida prática, não será difícil verificar que, para
muitas pessoas, o Estado é uma ironia política e jurídica. Em todo caso, é uma ficção jurídica
que se confirma pela incidência da razão prática e isso atesta legitimidade ao Estado e ao direito
– não obstante o fato de que, nesse panorama, a legitimação do Estado seja um problema não
resolvido em toda a sua complexidade.
Teoria culturalista do Estado
Em termos de funcionalidade, o Estado é menos poder de império e mais poder de
decisão. Veja-se que nas últimas décadas do século XX surgiram a teoria cibernética (sistema de
auto-regulação), o tecnicismo neopositivista e a teoria dos modelos. O que sugere um Estado
Cibernético. Mas, mesmo sob a avalanche de concepções estatais funcionalistas, organicistas,
neopositivistas, pode-se assegurar que o Estado e seus direitos formam realidades distintas que se
comunicam e se distanciam, mas que são realidades culturais que se entrecruzam na linha do
tempo. O direito é tomado em contato direto com as relações sociais, uma vez que o direito não
se limita a preceito normativo ou como mera coordenação de normas reguladas e expelidas pelo
Estado. Quando se diz que o direito é norma, diz-se apenas como ele surge, quais são as
técnicas empregadas ou como está o sucesso ou recesso da consciência coletiva. O direito não
é produto da mente, nem extensor de princípios axiomáticos; o direito é um organismo vivo com
história: direito é norma, mas não apenas norma positiva. O direito é norma eivada de cultura e
decorre da seiva socializada pelas criações humanas.
Quando se diz que o Estado é norma, esvazia-se de conteúdo, de ação, de razão prática,
da própria existência como poder; portanto, desautoriza-se a requisição material de que o Estado
deve ser legitimado no mundo da vida e diante das demais instituições que conformam
determinada sociedade. O Estado é um organismo com história e o governo é apenas uma de
suas atribuições. O Estado não é mera técnica de resultados e, assim, sua legitimidade exige mais
do que a descrição das conexões e funcionalidades do poder administrativo. Para a justificação
do Estado é preciso considerar o momento normativo, porque não se pode ser indiferente ao
conteúdo das valorações (e das validações, como os critérios utilizados para a autorização moral
para o próprio Estado existir). Até porque, as valorações suportam e efetivam o aparato do poder
e ao mesmo tempo é a excelência do homem.
Por outro lado, a conotação axiológica (a Ideia de que o Estado é Absoluto) ou a visão
estritamente teleológica (realização dos fins sociais) não são suficientes e mesmo que tais valores
sejam reconhecidos racionalmente como fonte de sua conduta. Contudo, apenas como relação
hierárquica de normas, o Estado se esvazia da própria justificação, da realidade fática e da
valoração axiológica, simbólica e ideológica e que precisam ser explicadas, justificadas para
serem aceitas e empregadas.
Desse modo, o que explica e garante o Estado NÃO é apenas o poder; NÃO é o fim da
convivência; NÃO é o ordenamento jurídico. O Estado encontra legitimidade na orquestração
entre fato/valor/norma. Neste sentido, o Estado se expressa por um sistema normativo obtido a
partir do nexo de complementariedade entre fato (poder) e valor (os próprios critérios de
justificação): “...atualização dos valores comunitários por intermédio do Poder, e da legitimação
concomitante do Poder graças à atualização dos valores vividos pela comunidade” (Reale, 2000,
p. 375-6).
O Estado se legitima em torno dessa unidade sistemática (sistêmica: como um sistema
entre Estado, Sociedade e Direito), devendo-se pensar a razão de ser do Estado como assentada
numa unidade coerente de co-implicação ou complementariedade. Isto ainda condiz com sua
realidade histórico-cultural e com a compreensão dos fatos enquanto normatividade
283
referente a valores. A legitimação do poder, nesses termos, refere-se a relações entre autoridade
e obediência, com vista a fins comuns – como uma conexão entre:
a) Relações de autoridade: o poder precisa ser de fato, mas igualmente requer explicações
lógicas.
b) Subordinação a fins: a própria atribuição de fins irá determinar o quanto o Estado está
próximo ou distante das metas, promessas e critérios de aprovação.
c) Estabilidade e regularidade administrativa: em parte, os critérios de aprovação são
também critérios de validação. Entretanto, é necessário remeter ao elemento normativo, à
regra de direito aplicada pela Administração Pública a fim de que o Poder Político seja
compreendido em sua função.
Por fim, para que o Estado melhor se legitime, não é demais esperar pela execução das
funções precípuas, inerentes a todo Estado. Isto porque o Estado tanto mais se autoriza, quanto
mais próximo da realização efetiva de suas principais funções/atribuições. Sumariamente
definidas como funções do Estado:
1. Legislar  O Legislativo é o responsável pela formalização do direito, enquanto poder que
oficializa, formaliza, institucionaliza o direito vivo, aquele experimentado em primeiro lugar
na origem social258.
2. Resolver litígios  O Judiciário interpreta e aplica o direito previamente definido,
estipulado, escrito de acordo com a vontade soberana (mas, nem sempre em sintonia com a
aspiração social).
3. Administrar  o Executivo organiza e garante meios de operacionalização aos órgãos
públicos, como extensores do poder central, portadores da fé pública que secreta a soberania
institucional, mas também para se converterem em serviços públicos que legitimem a
atividade estatal.
4. Representar a Nação  a Diplomacia é a continuação da atividade política no âmbito
externo. Portanto, a Diplomacia atua como extensão da soberania, uma vez que referenda o
poder central mediante o reconhecimento externo e de acordo com o direito internacional.
5. Defender a Nação  o papel institucional reservado às Forças Armadas não é mais o atuar
como mecanismo de controle social, como outrora na ditadura militar.
6. Manter a Ordem Pública  a ideia de ordem pública suplanta a preservação da
propriedade privada, sendo essencial a dignidade humana. Em todo caso, a polícia vem da
Pólis, como politia.
7. Organizar a Vida Coletiva  é necessário debater as formas de governo, na procura do
melhor meio de se administrar o bem público.
A lei como substrato da legitimidade
Quer seja como ideário político, pessoal ou amplamente ideológico, quer seja como
objetividade jurídica, a legitimidade depende da aferição valorativa quanto à relação entre as
proposições e programas frente à efetividade das ações políticas. Neste sentido, mesmo sob a
base valorativa, a razão prática será um item objetivo da avaliação. E assim a própria legalidade
poderá ser um critério de atribuição de legitimidade ao Estado; um Estado que segue leis
258
Senado: garante o equilíbrio da federação: é um órgão de representação do Estado e não do povo - há três
Senadores, para cada Estado. A Câmara Federal representa o povo brasileiro distribuído pelos Estados. Por exemplo,
os senadores paulistas representam os interesses do Estado de São Paulo e os deputados federais de São Paulo
representam o povo de São Paulo — que não é necessariamente paulista.
284
(consideradas legítimas pelo seu povo) é a encarnação do Governo das Leis. O poder legal,
definido pelo domínio de critérios formais, técnicos e jurídicos, é suporte da legitimidade
política.
A legalidade procura estabelecer regras claras e duradouras, como obras da razão, a fim
de que sejam normas jurídicas razoáveis, lógicas, coerentes – de acordo com um estado geral de
confiança – para dissipar o sentimento de intranquilidade, dúvida, desconfiança e sujeição. Neste
que seria o Governo das Leis. E não será mais legítimo o Governo das Leis, preferível, então, ao
Governo dos Homens? Em suma, legalidade e legitimidade traçam a linha de acomodação do
poder ao direito que o regula, como poder legal em harmonia com os postulados jurídicos. Com
o que se vê no direito legítimo a própria crença, a ficção jurídica posta a serviço da Sociedade:
“A legitimidade é a legalidade acrescida de sua valoração” (Bonavides, 2012, p. 121 – grifos
nossos). Portanto, a legitimidade – ainda que acrescida da valoração pessoal – é muito mais do
que um teorema do poder. A legitimação do poder não é um penduricalho da democracia, é a
essência de todo o poder consentido. Sem legitimidade, o poder pode até se prolongar, mas será
defenestrado no primeiro sinal de fraqueza. Em outras formas de exercício do poder, uma
fraqueza até moral do dirigente, pode ser corrigida, contornada, mas em regime político ilegítimo
a menor mentira do poder terá força de reconvenção de todo o pacto jurídico. Até a mais cruel
forma política derivada da mais implacável divisão social do trabalho terá de ter bases de
acomodação/legitimação políticas, morais e jurídicas que ultrapassem a repressão e o uso da
força física. Por fim, há algumas distinções de forma e de conteúdo que devem ser refeitas:
1) A legalidade é mais uma questão de forma; a legitimidade é uma questão de fundo, mais
substancial.
2) A legitimidade é uma noção ideológica; a legalidade, noção jurídica.
3) A legalidade forja um conceito formal; a legitimidade força um conceito material
(Bonavides, 2012).
Isto recoloca a legitimidade diante da necessidade e da finalidade do Poder Político.
Especialmente quando tomamos o Estado como o instrumento máximo de institucionalização
de todo o Poder Político. Ou seja, qual a finalidade do Poder Político?
285
FINALIDADE DO PODER PÚBLICO E TELEOLOGIA POLÍTICA
A teoria finalista nos apresenta os fins do Estado de forma diversificada: manutenção do
poder; segurança pública; preservação da liberdade individual; coesão social; pacificação social;
ordem e progresso; governo independente; estabilidade social e econômica; promoção da
dignidade da pessoa humana; capacidade de organização; unidade política e ordem jurídica
estável. A finalidade do Estado que se entendia restrita à segurança pública foi totalmente
modificada e substituída política e juridicamente pela chamada Defesa Social – e isto inclui
a convivência social acima da proteção do Estado259. O Estado Gendarme, lastreado pelo jus
puniendi foi gradativamente ordenado, controlado pelo direito, pela capacidade de racionalização
e de normatização dos atos de poder.
Na antiguidade clássica, sob uma determinada Filosofia do Estado, a finalidade do Estado
era traçada em termos de um ideal político. Para Aristóteles, o Estado se definia como uma
“multidão de partes ou a “universalidade dos cidadãos”: “Portanto, o que constitui propriamente
o cidadão, sua qualidade verdadeiramente característica, é o direito de voto nas Assembleias e de
participação no exercício do poder público em sua pátria” (Aristóteles, 1991, p. 36 – grifos
nossos). Para Aristóteles, a finalidade do Estado não era a perseguição política, mas sim a Pólis:
o Estado também não tinha o sentido de status ou poder estável, como em Maquiavel. Pode-se
dizer, metaforicamente, que Aristóteles já se indagava sobre a Razão de Estado, ao diferenciar o
Chefe da República do chefe de família — organizar o Estado não era o mesmo que cuidar de
uma família numerosa. O grego vivia a totalidade de sua Cidade-Estado, pois fora dos limites
geográficos, físicos de seu Estado já não seria cidadão. Portanto, na antiguidade, o território era
contínuo e contíguo ao direito de pertencimento ao Estado, onde terminava o território terminava
a soberania e a cidadania (vale dizer, fora daí não havia direito). Ou seja, o território deveria ter
uma contiguidade em termos de espaço físico, não se admitindo por falta de lógica que o Estado
terminasse aqui, para continuar ali. No passado remoto e no presente, entretanto, o Bem Público
seria sempre o objetivo do Estado. Excluindo-se a interpretação marxista, de que o Estado atende
a interesses de classe e se preta à opressão social, o Bem Público é tido como objetivo fixo pela
teoria finalista.
Entre meios e fins
Em todo caso, politicamente, cabe indagar, o Estado é um meio ou fim em si mesmo? O
Estado serve à paz social ou só atua para preservar a propriedade privada? O homem serve-se do
Estado, para sua segurança, ou o homem serve à Razão de Estado?
Juridicamente, “o Estado tem fins, não é um fim” (Azambuja, 2001, p. 122 – grifos
nossos). Esta compreensão é fundamental para se saber que o benefício público pode ter no
Estado um meio ou recurso valioso para sua operacionalidade, mas este pensamento não autoriza
uma idolatria, uma estatolatria (ainda que esta também seja uma concepção estatal bastante
arraigada na traição da Teoria Política).
A finalidade do Estado é uma constante, não se modifica abruptamente – há muito mais
permanência do que mudança em suas atribuições –; o que se modifica mais rapidamente é sua
competência, como espécie de atividade, os meios empregados e os objetos tomados para este
fim. Portanto, a competência é a atividade do Estado que se reflete como exercício do poder e
tendente a executar o Bem Público260. Para este fim, deve o Estado utilizar da prestação de certos
serviços públicos e assim é de sua competência mobilizar ações para alcançar os fins de interesse
259
260
Ultrapassando, evidentemente, o próprio objeto da Lei de Segurança Nacional.
A rigor, nem mesmo o Estado mais autocrático e injusto dirá que seu objetivo não é o Bem Público.
286
comum. O Bem Público há que se entender como missão do Estado, mas é tarefa de todo
indivíduo, como obrigação moral e política. Seja como obrigação negativa (de não-fazer), de
não-substituir ou prejudicar o direito individual, seja como obrigação positiva (de fazer) e
consolidar os direitos sociais, o Estado deve expressar com clareza a finalidade maior de sua
administração. Em boa medida, equacionar os conflitos de interesse determina alcançar ou não
esta finalidade. Interna e externamente, estão em choque elementos materiais e morais na
determinação da finalidade do Estado, como a segurança pública frente à liberdade, e a
prosperidade econômica frente à preservação ambiental. A finalidade poderia ser reduzida como
em nossa bandeira nacional: “Tal é sua dupla função: 1º Proteção: é a função de justiça de que é
o guardião: Custos justi; é missão tutelar. 2º Assistência: é a função de utilidade pública, sua
missão civilizadora” (Azambuja, 2001, p. 127).
Já quando se interpreta a Finalidade do Estado, como competência, resta a questão – O
que fazer? Para a teoria absenteísta, o Estado Gendarme não-deve fazer, deve deixar o máximo
de espaço aos indivíduos. Na concepção socialista, o Bem Público está em defender o indivíduo
da sanha do capital, dever-de-se-fazer às vezes do cidadão indefeso. Para a teoria eclética do
Bem Público, trata-se de ensinar e ajudar a fazer. Neste sentido, o Estado teria uma competência
supletiva. Por isso, o Estado nunca deve suprimir o direito individual, para definir o Bem
Público, mas suprir as necessidades mais gerais e deslegitimar, em compensação, as regras do
egoísmo, do individualismo exacerbado e do consumismo.
O governo realiza a soberania
Ao contrário da soberania, alguns autores preferem nomear o governo como elemento de
formação do Estado. Neste caso, a finalidade, o fim comum, o elemento espiritual de formação
do Estado é de ordem teleológica. O governo é o elemento diretor, como aparelho de mando e
de coerção mantido pelo Estado. Para Pedro Calmon – citado por Menezes (1998) –
metafisicamente, governo é a vontade de realizar os fins do Estado e, positivamente, é o conjunto
de instituições que permitem a governança. Sob o controle do direito, o governo exercita a
soberania do Estado. O governo resulta de uma quotização de vontades. Se, inicialmente, o
governo decorria do instinto, hoje é fruto do instituto da razão que move o direito; atuando como
“investidura num mandato” ou “representação de conteúdo legal”. Como órgão de autoridade, o
governo revela a soberania do Estado. Por isso, o governo independente é a expressão diretora
que se impõe soberanamente.
Objetivos materiais e morais do Estado
Para alguns Estados, o objetivo fundamental é garantir a sobrevivência e por isso admitese que seja absorvido por outro que lhe é muito superior (Porto Rico); para outros, trata-se da
luta pela descolonização a tarefa precípua do Estado frente a seu povo (Timor Leste).
No âmbito do Estado Moderno, sobretudo contemporaneamente, não há necessidade de
que o território seja contínuo para ser considerado como um “todo” que faz parte do Estado: são
exemplos de descontinuidade Alaska, Hawaí261, Ilhas Malvinas262, Porto Rico263. De todo modo,
261
Em 1894 o arquipélago do Hawaí tornou-se República, mas em 1898 foi invadido militarmente pelos EUA e em
1990 foi anexado como território em definitivo.
262
Em 1765 o britânico John Byron firmou uma base em Egmont (Malvina/Falkland Ocidental). Em 1833 a fragata
britânica HMS Clio retomaria a posse das ilhas. A colonizaçao das ilhas se daria com escoceses, galeses e
irlandeses. Em 1982, o governo argentino requereu militarmente a retomada do território, na Guerra das Malvinas.
263
Em 1917, os porto-riquenhos se tornaram cidadãos americanos. Porto Rico é parte integrante do território dos
EUA, o 51º Estado, e não tem personalidade jurídica. O território foi conquistado em 1493 pela Espanha e em 1898
foi cedido aos EUA. Sob o status de Estado Livre Associado, a partir de 2012, por meio de um referendo, Porto Rico
tornou-se parte integral do território dos Estados Unidos.
287
o reconhecimento se torna um elemento constitutivo e de legitimação da soberania sobre o poder
de império exercido em seu território, como no caso de Timor Leste 264 e da Palestina265. No caso
de Timor Leste, o objetivo ou finalidade da constituição daquele determinado Estado era a
descolonização e a proclamação de sua independência política. A independência e a
descolonização são parte constitutiva das finalidades do Estado que se quer erigir por uma razão
clara, porque sem a libertação do povo não há autonomia, quanto mais soberania. O que reforça,
uma vez mais, a necessidade de se pontuar a finalidade como componente do Estado266.
Historicamente, o fortalecimento do Estado como recurso de direito (como atividade
humana racional que não promulga o Mal), e não só de poder, foi possível apenas com a
determinação de certos objetivos éticos; em suma, a promoção da vida humana (e social) com
dignidade. Por sua vez, este preceito ético – lógico (uma vez que não poderíamos criar algo tão
forte para o nosso Mal) – não se confunde com a objetivação de algum tipo de Estado Ético:
“Somente no e por meio do Estado o homem poderá se realizar, o que, então, deve ser
entendido como fim precípuo do Estado” (Doehring, 2008, p. 144 – grifos nossos). Aliás, esta
conjugação de poder acabou por se revelar como antidireito – e como antidireito não poderia
justificar ou legitimar o Estado267.
Para Maquiavel, o fato mais notório referente ao Poder Político, como dominação, é o
fato de que a Razão de Estado está baseada no poder predominante, com um sentido de unidade
e de permanência das instituições (um sentimento popular de pertencimento) como segurança à
própria conquista e manutenção do poder centralizado. Portanto, não foi por acaso que
Maquiavel retomava a Roma como exemplar: um Império de mil anos. Este poder deve ser
soberano. Nesta lógica pagã que justifica e estabelece os fins do Estado, pode-se usar da força,
da violência, mas não quebrar o contrato firmado com os súditos: “O príncipe pode/deve ser
violento, mas não deve fraudar suas próprias leis” (Maquiavel, 1979).
Com Cícero, elevando-se o Estado à condição de idealidade presente no espírito público,
os fundamentos da República estão no consentimento jurídico e na utilidade comum:
1. Para governar, é preciso estudar sem descanso, trabalhar sem trégua, ser um espelho
aberto.
2. A República é uma sociedade de homens formada pelo império do direito (Cícero, s/d).
264
Em 1945 a administração portuguesa foi retomada em Timor. Pela Resolução 1514 (XV), de 1960, a ONU
considerou o Timor Português como território não-autônomo e assim foi mantido sob administração Portuguesa.
Porém, em 1975 o Timor-Leste foi ocupado por forças militares da Indonésia. Já em 1999, os timorenses votaram
pela independência, no entanto, o resultado do referendo gerou outros conflitos. Esse confronto só foi resolvido com
a Missão das Nações Unidas de Apoio no Timor-Leste. Por fim, em 2002 a independência de Timor-Leste foi
restaurada e se formou o primeiro Governo Constitucional de Timor-Leste.
265
O Estado da Palestina foi proclamado em 1988, sob o comando de Yasser Arafat, e atualmente é reconhecido
como Estado Soberano por mais: o que reforça a teoria do reconhecimento. Os palestinos controlam apenas a Faixa
de Gaza e reivindicam a soberania territorial. Em 2012, a ONU atribui-lhe o estatuto de Estado Observador nãoMembro. A resolução A/67/L.28, sobre o estatuto da Palestina, recebeu 138 votos favoráveis.
266
Outro exemplo bastante evidente desse argumento é perceptível na análise que possamos fazer de um Estado
como o Irã. O que era e o que se tornou, depois da Revolução Muçulmana, quando se modificaram radicalmente as
finalidades do Estado? O que se propagou como forma de vida social, após a revolução, com o fim do Estado Laico
e o que se proibiu totalmente?
267
Como exemplo, o nazismo “justificou-se” substituindo valores como do próprio direito, a virtude da moral, por
outros fins determinados pela etnia, sangue e território. De todo modo, é evidente como a validação decorre da
avaliação perpetrada e esta implica na definição de critérios mais ou menos claros, sejam éticos ou com fundamento
no antidireito. O nazismo não demarcou os objetivos do Reich, como construção estatal, marcados na verdade, na
virtude, na moral transcendental, mas sim na raça, no sangue, no código da morte, no sangue que fertilizaria o
território.
288
Desse modo, a razão aplicada à política levaria à condição de que o fim do Estado é a
justiça. Para Marsílio de Pádua, o Estado deveria propugnar pela paz mundial. Porém, se o
“homem é lobo do homem” (Hobbes), o Estado deve ser organizado como técnica de poder que
domine os anseios egocêntricos. Para Locke, o Estado seria necessário para se superar a condição
primitiva e para garantir a fruição dos direitos individuais. Com Montesquieu, a divisão dos
poderes surge como recurso de limitação à própria concentração do poder. Em Rousseau, o ideal
presente na prescrição da finalidade do Estado é garantir a liberdade no interior da coletividade:
o objetivo do Estado é assegurar a “vontade geral”. Para Kant, o Estado deve defender a
liberdade, mas sob firmes mandamentos/fundamentos morais, observando-se uma consonância
entre liberdade e subordinação. Os fins do Estado devem ser imperativos e categóricos. Para
algumas correntes do pensamento socialista/marxista, o ethos do Estado atual está em subordinar
o interesse privado ao interesse público (Doehring, 2008).
Em termos nacionais, basta-nos pensar no fim proposto pela ditadura militar de 1964 e no
Estado Democrático de Direito, entreaberto com a CF/88. De lá para cá, a sociedade assegurouse direitos e instrumentos eficazes para se defender do Estado, a começar pela definição
democrática dos fins do Estado brasileiro. A doutrina brasileira, em geral, desde seus momentos
iniciais, até os mais contemporâneos, associa a finalidade à concepção contratualista na origem
dos pressupostos do Estado. A finalidade decorreria da aprovação popular, direta ou
indiretamente (pela aceitação resignada), consciente ou não, com maior ou menor
acompanhamento ou manipulação política e engajamento popular nos principais debates públicos
(Júnior, 2011).
A finalidade constitucional
Os primeiros direitos humanos tinham natureza negativa (Habeas corpus), ou seja,
constituíam na obrigação do Estado de não-fazer ou deixar de cometer o arbítrio (Tavares, 2007).
Neste sentido, uma finalidade do Estado – como obrigação positiva, de fazer – é criar meios para
a construção da sociedade justa. Inicialmente, os objetivos do Estado eram de se coibir ações
autoritárias do Estado. Para Loewenstein, citado por Tavares, a própria divisão dos poderes
deveria ser revista, substituída por novas atribuições propriamente políticas, estatais: 1. A
decisão política conformadora ou fundamental; 2. A execução desta decisão política; 3. O
controle político. O que certamente imporia nova orientação aos objetivos estatais destilados na
Carta Constitucional.
A Constituição deriva a Teoria do Estado, define e articula os preceitos e as finalidades
do Estado; por isso, pela Constituição desfila a essência política do Estado: “O objeto da
Constituição consiste na estrutura fundamental do Estado e da sociedade” (Moraes, 2003, p. 68).
Nesta sequência, a definição ou restrição jurídica do tema, sobretudo no que se aplica ao direito
brasileiro, consta da previsão constitucional:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
Para o constituinte brasileiro, as finalidades do Estado coincidem com seus objetivos. O
artigo 3º da CF/88 confirma as chamadas “proclamações emblemáticas”, com evidente valor
289
literário (libertário) e simbólico, no mesmo sentido que já vinha expresso no preâmbulo. Na
utopia do art. 3º está enraizada uma “consciência do amanhã”, como dialética entre a crítica do
presente e a proposição do futuro. Propõem-se uma consciência emancipadora. Nesta utopia do
possível está clara a intenção do constituinte em asseverar pela construção de uma sociedade
mais justa; há no texto constitucional uma proposição sociológica como “pensamento político
dinâmico”. O aplicador da lei constitucional deve ter uma atuação concreta na realidade. Uma
vez estabelecida a superioridade hierárquica dos objetivos do Estado brasileiro no texto legal,
evita-se qualquer conflito entre a lei e o justo. Neste afã, os objetivos fundamentais são
enunciados de forma objetiva (construir, garantir, erradicar, reduzir, promover). Ademais, nos
títulos VII e VIII – ordem econômica e social – estão previstos os meios e instrumentos de
realização dos objetivos do Estado (Carvalho, 2009).
Entretanto, no exemplo da Constituição Portuguesa, que serviu de lastro para a CF/88, o
rol de tarefas precípuas ou finalidades previstas ao Poder Público é mais amplo (Artigo 9.º):
a) Garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas, sociais e
culturais que a promovam;
b) Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado
de direito democrático;
c) Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos
cidadãos na resolução dos problemas nacionais;
d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os
portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e
ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e
sociais;
e) Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o
ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do
território;
f) Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão
internacional da língua portuguesa;
g) Promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em
conta, designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da
Madeira;
h) Promover a igualdade entre homens e mulheres.
Os manuais portugueses trazem a recomendação de separarmos os fins de Estado entre
tarefa e atividade: “Enquanto tarefa encontramos a sua consagração constitucional no disposto no
artigo 9.º da CRP, que se refere às principais tarefas do Estado Português [...] Enquanto
atividade, as funções do Estado podem definir-se como um conjunto de atos destinados à
prossecução de um fim comum ou semelhante” (Fontes, 2009, p. 30-31).
Muito antes disso, entretanto, o bem comum como bem público já fora anunciado. Na
percepção religiosa, mas vocacionada para o infinito social é clara a orientação provinda da ética
social como compromisso com a coisa pública. Isto é, a finalidade do bem comum coincide com
os objetivos do Estado Republicano:
Hoje em dia se crê que o bem comum consiste sobretudo no respeito
aos direitos e deveres da pessoa humana. Oriente-se, pois, o empenho
dos poderes públicos sobretudo no sentido de que esses direitos sejam
reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos,
290
tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres. A
função primordial de qualquer poder público é defender os direitos
invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus
deveres. Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer os direitos da
pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as
suas injunções perdem a força de obrigação em consciência (Bombo,
1993, p. 33 – grifos nossos).
A Encíclica Pacem in Terris, de João XXIII, também é definida como a Encíclica da Paz.
Por outro lado, definindo-se o Estado como capacidade política organizada para o exercício do
governo, apesar das dificuldades já apontadas por Reale (2000), cabe ressaltar que a finalidade
precípua do governo é “assumir” o desenvolvimento nacional através da intervenção econômica
(que pode ter como finalidade o bem estar social). Finalizando, tudo o que não é Estado, mas que
se configura como agente político, é da ordem da socialmente civil. Desse modo, a legitimação
decorre do sentido atribuído ao próprio Estado; quando se harmonizam o poder do Estado com a
finalidade do Estado.
Diante da dificuldade de se definir o que é paz social ou até onde este objetivo deve se
curvar à sobrevivência objetiva do Poder Político acabou por restringir o alcance dessa
concepção. Por isso, para muitos, a principal finalidade do Estado é a pacificação social a fim de
se assegurar a Razão de Estado como última instância ou reserva de poder. Isto é, a única
finalidade em comum a todos os Estados seria unicamente a manutenção do poder. O que ainda
não corresponde à plena verdade, se pensarmos nos protetorados em que há divisão do poder ou
governos de soberania conjunta (na formação do Congo, por exemplo) e/ou na aquisição de
porções territoriais e abdicação integral da soberania, como é o caso de Porto Rico, inserindo-se
como Estado-membro dos EUA.
A finalidade do Estado é a Ordem Jurídica
Por essas razões publicistas, para o Estado Moderno em sua fase atual, mas desde o fim
da Segunda Guerra Mundial, estabelecer uma ordem jurídica democrática e impenetrável ao
uso/abusivo do poder de exceção passou a ser uma fixação constitucional. Todavia, além de
suplantar a tese de “ordem e progresso”, como finalidade estatal, a questão passaria a definir o
que se entende pela ordem jurídica como finalidade do Estado.
Neste âmbito, a cultura e a política tornam-se instituições públicas, mas essencialmente
como vivência pública, no sentido de que passa a haver um controle popular, além do domínio
político-institucional dos aparelhos ideológicos e repressores do Estado. Na modernidade
clássica, do Estado Moderno até fins do Estado Social nas décadas de 60-70, o Estado de Direito
transbordou de princípios e de valores (Canotilho, 1999). Porém, mesmo com esse
transbordamento de princípios humanizantes, o direito público não se desapegou do privatismo
que tem por base o direito à propriedade. Portanto, nem mesmo o chamado Welfare State foi
capaz de bloquear o privado em razão do público — ao contrário, estimulou-o:
A Lei Fundamental268 contém, em primeiro lugar, condições para a
efetividade real de importantes institutos jurídico-privados e os protege
de uma supressão ou de um esvaziamento por meio da própria lei,
oferece assim um seguro aos fundamentos do Direito Privado que, por si
mesmo, não poderia produzir, de atualidade por exemplo às garantias do
268
Hesse refere-se à Constituição de Bonn, de 1949, portanto, logo no pós-guerra e no auge do período de
reconstrução européia.
291
matrimônio e da propriedade [...] produz assim uma certa
concordância objetiva entre a ordem do Estado social de Direito e o
conteúdo do ordenamento jurídico-privado [...] A liberdade privada da
pessoa [...] é requisito para as decisões responsáveis [...] Na
autodeterminação e na própria responsabilidade se manifesta em parte
essencial o tipo de pessoa de que parte a Lei Fundamental e do que
depende a ordem constitucional [...] O Homem como pessoa livre,
autodeterminada e responsável só pode existir onde o ordenamento
jurídico abre possibilidades para a autonomia do pensamento e de ação
(Hesse, 2001, pp. 83-87 – grifos nossos).
Mas, persiste a questão de se saber com mais clareza de que indivíduo está se falando —
se mais público ou mais privado:
Só em homens que pensam, julgam e atuam por si mesmos descansa o
potencial de novas ideias, concepções e iniciativas irrenunciáveis para a
comunidade, sem as quais esta com o tempo haverá de se empobrecer, se
não fossilizar-se, cultural, econômica e politicamente, e das quais
dependerá de forma crescente em um tempo de trocas fundamentais
como é o nosso (Hesse, 2001, p. 88).
Assim, depois de sofrer uma restrição jurídica aos caprichos do Poder Político,
concluindo-se essa transformação na tese do Bem Público, agora, politicamente, legitima-se o
mecanismo instrumental autotransformador do Estado Moderno (Kliksberg, 1993, pp. 7677 – grifos nossos). Quando as bases sociais se desestruturam, também revelam as evidências de
problemas emocionais e de condutas antissociais. Precisamos recuperar a ética e relacioná-la
com a economia, nessa visão abrangente do direito ao desenvolvimento humano. Foi com esta
perspectiva que a ordem jurídica como defesa da unidade política foi elevada à condição de
tarefa do Estado.
Todo Estado define objetivamente e põe em prática os fins a que aludiu em sua
organização política e constitucional. No entanto, podem estar evidentemente em conflito com os
“fins subjetivos” indicados por seus cidadãos. Desse modo, o Estado tem uma função objetiva e
isto congrega uma função social, como ação social objetiva: “o Estado não é possível sem uma
atividade conscientemente dirigida a um fim, a partir de certos homens em seu interior. Os fins
estabelecidos por esses homens atuam causalmente sobre outros homens como elementos
indutores de sua vontade” (Heller, 1998, p. 258). O Estado existe unicamente em seus efeitos. O
poder não é, pois, o fim do Estado.
Portanto, a função (como finalidade) do Estado consiste na organização socialterritorial fundada na necessidade histórica de um status vivendi comum, que harmonize
todas as oposições de interesses dentro de um território, e que seja limitado em soberania
pela existência de outros Estados de natureza semelhante. A finalidade do Estado
Democrático, enfim, é garantir a liberdade material como recurso da Justiça Social. Esta é a
República que queremos.
292
O PODER PÚBLICO
que nós gostaríamos
De modo simples, Poder Público significa que o poder organizado – pode-se entender o
Estado e o conjunto de suas instituições – está a serviço do povo, que o poder não serve a
interesses escusos. No senso comum, ainda pode-se dizer que representa e sintetiza o governo,
pois o conjunto das instituições e dos órgãos públicos permite que o Estado efetue sua atividademeio, que é a administração dos bens, recursos e interesses públicos. A atividade-fim é a
preservação da Razão de Estado, isto é, a luta por conservação do próprio Estado.
De modo mais técnico, significa que o poder é regido e limitado por um conjunto de
regras jurídicas. Deve-se lembrar que a fonte das leis é a política, seja na forma da política social,
seja como organização do espaço público e na representação parlamentar. O Poder Público
também pode ser entendido como o poder organizado e que deriva sua força da fonte/origem
(legítima e legal) da unidade global. O sentido maior de Poder Público, no entanto, é como
continuidade institucional, normativa, da Razão de Estado. Assim, por Poder Público tem-se o
poder organizado para atender uma determinada finalidade pública de organização
(controle social), coesão política e prestação de serviços públicos necessários à vida comum
do homem médio. É o conjunto de órgãos e instituições públicas que deve prestar os serviços
públicos e realizar a principal tarefa do Estado, como organizador/prestador da Administração
Pública.
Origem e legitimidade do Poder Público
Na sua origem grega269, cidadão era todo aquele indivíduo que participasse do poder
público, e a quem caberia o direito de jurisdição e de deliberação, e que tivesse riqueza suficiente
para viver de modo independente. Cidadão, portanto, era aquele que participasse da cidade. De
modo semelhante, para designar as virtudes da cidadania, Aristóteles comparou o cidadão ao
marinheiro: com a preocupação em dar rumo e segurança ao navio (kibernetiké – Kybernets:
timoneiro). O Poder Público, neste caso, seria sinônimo de “interesse comum”. Já a “bondade
intrínseca do Estado” provém do fato de que todos devem ser bons cidadãos, e mesmo que o que
dá forma e força ao Estado seja a dessemelhança e a “desigualdade de mérito”. Assim, do
governante é esperada a prudência e a sinonímia na arte de bem governar: “Talvez tenha sido
isso que fez Jasão dizer: Só conheço uma arte e só sei reinar” (Aristóteles, 1991, p. 42). Para o
governo civil, entretanto, o bom governante é aquele que aprendeu a administrar. Quanto ao
Estado, a segurança será o objetivo inicial.
Além de organizar a célebre coletânea de mais de uma centena de constituições do mundo
antigo (que se perdeu), Aristóteles recomendava o uso de “tratados redigidos por escrito”.
Àqueles que se dedicavam a organizar essas constituições, Aristóteles era enfático: a cidade
deveria ser protegida com a virtude. Também é isso que deveria diferenciar uma cidade de uma
“liga de armas”. Para a concepção de Poder Público que guarda traços da Grécia clássica,
além da segurança, a cidade deve ser um lugar para se viver bem, mas esta felicidade não se
resume à boa-fortuna, do mesmo modo como ao Estado só deve interessar a honestidade270.
No caso, o melhor seria reunir virtudes e riquezas para poder usufruí-las. Daí também vem o
melhor governo — em que se possa “viver bem”: o Estado da sabedoria é o que propugna
pelo melhor fim.
269
270
A cidadania era limitada pela forma de governo, se democrática ou aristocrática.
Relembrando: os princípios que devem guiar os homens e o Estado, são: prudência, coragem, justiça e virtude.
293
Para Aristóteles, há um princípio de “dignidade política” (vida ativa) que não se resume à
dominação política: “Mas muitos parecem considerar a dominação como o objeto da política, e
aquilo que não cremos nem justo nem útil para nós não temos vergonha de tentar contra os
outros” (Aristóteles, 1991, p. 51). Assim, o Poder Público é aquela forma de governo que
propugna pela civilidade e que é capaz de produz leis virtuosas: as virtudes devem secundar
o governo civil e aquele que manda deveria ter projetos honestos. Afinal, só há semelhantes se há
justiça e honestidade: “Entre semelhantes, a honestidade e a justiça consistem em que cada
um tenha a sua vez271. Apenas isto conserva a igualdade. A desigualdade entre iguais e as
distinções entre os semelhantes são contra a natureza e, por conseguinte, contra a honestidade”
(Aristóteles, 1991, p. 53 – grifos nossos). Isto é o que nos conduz ao “bom governo da vida
ativa” e que abarca, além da ação, a necessária meditação para sua melhor execução. O bom
governo é o que se define por Poder Público.
O Renascimento do Direito Público
Muito tempo se passou desde a Filosofia Política grega, mas no Renascimento surgiria
outra concepção de direito e de poder. Em certo sentido, há em Grotius (2005) uma mescla entre
governante e soberano, entre a Razão de Estado e o Príncipe, entre o indivíduo e o poder público.
Porém, em outra situação parece apontar para uma equivalência única que deveria reger a luta
por conservação, mesmo diferindo público de privado: “A causa eficiente principal numa
guerra é geralmente a pessoa cujos interesses estão em jogo. Na guerra privada, o privado; na
guerra pública, o poder público, sobretudo o poder soberano [...] cada um é naturalmente
defensor de seu direito. É a razão pela qual as mãos nos foram dadas” (Grotius, 2005, pp.
234-5 – grifos nossos)272. Na ausência significativa da autoridade constituída e do poder
reconhecido, que evitem que os conflitos se degenerem em guerra ou luta por sobrevivência
entre Estados – dado que não há um Estado dos Estados –, a luta pelo poder entre indivíduos é
muito semelhante a que se dá entre Estados:
Afirmando a permanência do conflito, rejeitando a ideia de uma forma
política que carregue em si a estabilidade, o pensador reconhece a
permanência dos acidentes e, consequentemente, designa a função do
príncipe como a de um sujeito que adquire a verdade num
movimento contínuo de racionalização da experiência (Lefort, 2003,
pp. 46-47 – grifos nossos)273.
Este pensador a que se refere Lefort é Maquiavel. Outra definição permite-nos entender o
Poder Público como a normatização do poder (a regulação da política) de acordo com os
princípios legitimadores. A partir do século XIX firmou-se outra instituição do direito público
ainda mais clara e, efetivamente, normatizadora da ação do Poder Público. Política e direito
andariam juntos.
Estado de Direito
A esta relação entre norma e poder, define-se como Estado de Direito: o Estado em que o
poder público é definido/limitado/controlado por uma Constituição. Portanto, no contexto do
271
É óbvio que se refere apenas aos cidadãos, excluídos os escravos, as mulheres, os estrangeiros e os demais nãocidadãos. A democracia grega era formada por não mais do que 10% da população.
272
O Poder Público, portanto, nada mais é do que a extensão da sociabilidade humana: “nada é mais útil ao homem
que outro homem. Os homens são, com efeito, unidos entre eles por diversos laços que os empenham a
prestar-se auxílio recíproco” (Grtoius, 2005 – grifos nossos).
273
Exatamente porque os dados não cansam de mudar, é que é preciso pensar e repensar a prática.
294
Poder Público há uma maior judicialização do poder político. Ou como nos diz o filósofo
americano:
O Estado de Direito implica sobretudo o papel determinante de certas
instituições, bem como das práticas judiciais e legais que a elas estão
associadas. Ele existe enquanto as instituições desse tipo são governadas
de maneira razoável, de acordo com os valores políticos que a elas se
aplicam: a imparcialidade e a coerência, a adesão à lei e o respeito pelos
precedentes (Rawls, 2000, p. 377 – grifos nossos).
Contudo, o próprio Estado de Direito deve assegurar-se de que garantias serão ofertadas a
fim de que o poder conheça as fontes da legitimação e não encontre facilidades para a usurpação.
A formação do Estado Constitucional foi essencial para que fossem ofertadas garantias ao poder
legítimo, a fim de que o “poder do povo”274 não se visse vitimado por forças tirânicas,
oportunistas: “Estado Constitucional significa Estado assente numa Constituição reguladora
tanto de toda a sua organização como da relação com os cidadãos e tendente à limitação do
poder” (Miranda, 2000, p. 86). O Poder Público, de ali em diante, como Estado Constitucional,
surge então claramente como poder limitado pelo direito que regula os objetivos da
Administração Pública275. Ou seja, desde o início, pressupunha-se que o Estado de Direito
estivesse mais próximo do lado prático da vida social e não abreviado pelo cumprimento cego da
lei:
Robert Von Mohl, considerado o autor que lançou o conceito, dizia que a
ideia em que se fundamentava o Estado de Direito se resumia nisto: o
desenvolvimento o mais humano possível de todas as forças humanas em
cada um dos indivíduos (Polizei, 1841, Concepto de policia y Estado de
Derecho, in Liberalismo aleman em el siglo XIX – 1815-1848, coletânea
de estudos, trad., Madrid, 1987, p. 141). E acrescentava: <Ninguém pode
se sacrificado como um meio ou como uma vítima à ideia de todo> (pág.
142); <nenhum direito deve ficar sem proteção, porque seja demasiado
insignificante para o Estado> (pág. 143); <Estado de Direito exige
proteção jurídica> (pág. 144) (Miranda, 2000, p. 86 – grifos nossos).
Ora, se há igualdade, o governo não deve ser investigado? Certamente, por isso, neste
meio caminho, entre a política e a normatização, oscilando ora numa extremidade ora noutra,
uma forma de poder popular expressa ações e conotações sociais, mas na ânsia de se ver
hipostasiado, como sedimento e substância da ordem jurídica democrática. Em suma, o Poder
Público requer um Estado de Direito que oferte proteção jurídica ao mais simples dos seus
cidadãos.
Hoje em dia, no interior do Estado Democrático, Poder Público implica em controlar o
poder como majestas a fim de que o potestas in populo seja expressivo na ordem jurídica, a fim
de que a soberania popular não seja dizimada em regime autocrático ou tornada inócua pela
corrupção e ideologias de um poder usurpado. Com destaque para todos os órgãos, instituições e
servidores públicos que labutam contra a corrupção do Estado. Quanto mais justo e democrático,
274 Poder Público como herança constitucional do potestas in populo.
275
Como forma organizada do potestas in populo e como limitação do poder supremo, perpétuo, ilimitado
(majestas, imperium), o Poder Público implica em responder positivamente aos anseios presentes no poder popular.
295
mais facilmente o Estado será reconhecido em sua soberania interna, assim como terá amplo
reconhecimento internacional.
296
O RECONHECIMENTO INTERNACIONAL
Independentemente do debate teórico ou axiológico acerca do reconhecimento ser ou não
um dos fundamentos da afirmação geopolítica de um Estado nascente, os casos concretos são
uma realidade inegociável: a Palestina é um exemplo.
Para muitos autores, o reconhecimento externo da soberania dos Estados independentes
ou em formação não é um elemento essencial de sua afirmação soberana. Portanto, o
reconhecimento seria dispensável, uma vez que o mais importante seria a viabilidade políticoadministrativa interna a fim de que se pudesse sustentar a soberania internamente. A própria
política internacional, a qualidade de sua ação diplomática, a partir de uma política exterior
atuante, seria mais eficiente na busca por reconhecimento. Neste sentido, contariam mais a
Independência em si (soberania stritu sensu); a Ordem Jurídica eficaz (império da lei) e a
garantia de uma Legitimidade obtida internamente.
Mas, há que se considerar o reconhecimento – como requisito e formalidade jurídica –
entre os elementos de formação do Estado e a sua decorrente capacidade de manter relações
com outros Estados, a começar pelo respeito à Convenção Interamericana sobre Direitos e
Deveres dos Estados, de 1933276:
Artigo 1º. O Estado, como pessoa de Direito Internacional, deve reunir os seguintes requisitos:
a) População permanente.
b) Território determinado.
c) Governo.
d) Capacidade de entrar em relações com os demais Estados277.
Pode-se indagar porque os Estados não definiram a soberania como elemento essencial ao
Estado e isto se deve ao fato de que, ao constatar-se a soberania, sobretudo internamente, o
próprio governo constituído irá em busca do reconhecimento. Assim, a soberania seria inerente,
até mesmo óbvia ao governo, que só teria capacidade administrativa, governabilidade,
capacidade de controle social e político, à medida em que tivesse sua soberania atestada. Se a
soberania é contestada, ainda mais veementemente, confundindo-se governo e Estado, a crítica
ao governo ameaça a segurança da Razão de Estado.
Por isso, no texto da lei, a soberania é implícita, inerente. Juridicamente, para o
reconhecimento do Poder Político, a soberania é conditio sine qua non. Desse modo, para o
direito internacional seriam elementos fundacionais de todo Estado: povo, território, governo e
reconhecimento. Depois, explicitamente, em seus artigos 6º e 7º, a Convenção de Montevidéu, a
convenção dos Estados soberanos (anexo 01), trata do reconhecimento como fonte da
legitimidade do Poder Político:
 Artigo 6º. O reconhecimento de um Estado meramente significa que o que o reconhece
aceita a personalidade do outro com todos os direitos e deveres determinados pelo Direito
Internacional. O reconhecimento é incondicional e irrevogável.
 Artigo 7º. O reconhecimento de Estado poderá ser expresso ou tácito. Este último
resulta de todo ato que implique a intenção de reconhecer o novo Estado278.
276
Recepcionada no Brasil pelo DECRETO Nº 1.570, DE 13 DE ABRIL DE 1937, de Getúlio Vargas.
Veja-se que a lei define os elementos básicos de composição do Estado, nas letras a, b e c, além de consignar o
reconhecimento internacional.
278
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D1570.htm.
277
297
Há duas correntes predominantes quanto ao reconhecimento:
a) teoria constitutiva: quando o Estado recebe o status afirmativo de sua inclusão no cenário
internacional, com o reconhecimento da condição de que a partir do ato institucional de
efetivação do Poder Político, pode ser considerado como um sujeito de Direito Internacional
Público. Aqui, subentende-se a ocorrência de uma legitimidade advinda das principais potências
internacionais, como se outros Estados declarassem ser reais as intenções e a própria existência
daquele determinado Estado. Necessita-se de declaração formal.
b) teoria declaratória: apenas observa-se que o Estado é um novo ente jurídico de relações
internacionais. Sem que haja a emissão de uma declaração formal acerca da existência do novo
Estado, porque se entende que uma declaração significaria uma espécie de concessão por parte
dos demais Estados membros. A luta pela descolonização, por exemplo, sofreria graves
restrições por parte do Direito Internacional Público se as colônias ficassem à espera desse
direito concedido, dessa concessão para afirmar a legitimidade de sua existência.
A ideia do reconhecimento internacional da soberania tem uma necessidade e urgência
mais ou menos evidentes, a exemplo do que se passa com a Palestina em busca da afirmação de
sua existência independente, junto à ONU. A declaração do Presidente dos EUA Barak Obama,
em visita a Israel em 2013, reafirmando a legitimidade da pretensão palestina é outro indicativo
de que o reconhecimento é um elemento politicamente, estrategicamente muito relevante para a
delimitação da geopolítica:
"Os palestinos merecem ter seu próprio Estado. Os Estados Unidos
estão completamente comprometidos para ver um Estado da
Palestina independente e soberano", afirmou Obama, que também
defendeu a "solução de dois Estados" para os conflitos entre Israel e
Palestina. Segundo Obama, esse é um objetivo que só pode ser alcançado
"através de negociações diretas"279.
Ou seja, a necessidade do reconhecimento, além de quesito jurídico na ordem
internacional, ainda corrobora e fortalece o Princípio da Autodeterminação dos Povos, como
consta de nossa CF/88:
Art. 4º: A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios:
I. independência nacional;
II. prevalência dos direitos humanos;
III. autodeterminação dos povos;
IV. não-intervenção;
V. igualdade entre os Estados;
VI. defesa da paz;
VII. solução pacífica dos conflitos;
VIII. repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX. cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X. concessão de asilo político.
Dependendo da opção teórica ou ideológica, pode-se entender que a afirmação do
princípio proposto no artigo 4º da nossa Carta Política tanto eliminaria a necessidade do
279
http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2013/03/21/obama-chega-de-helicoptero-em-ramallah-ee-recebido-por-abbas.htm, acesso em 21/03/2013.
298
reconhecimento, quanto veríamos aí um complemento afirmativo, como dado de segurança
jurídica, de que o Estado brasileiro é atento à necessidade do reconhecimento da livre-convicção
dos povos.
Sem dúvida, sob o alcance do Princípio da Autodeterminação dos Povos, o
reconhecimento à formação e independência do Estado está relacionado à soberania. Pois,
obviamente, sem soberania não haveria reconhecimento; do mesmo modo como se busca pelo
reconhecimento para fortalecer a soberania. Como visto, vale o mesmo raciocínio elaborado para
se destacar a relação intrínseca entre soberania e legitimidade do governo (se há um governo
operante é porque há aceitação, logo, há soberania).
Como atributo fundamental, a soberania faz do Estado o titular de competências políticas
especiais – limitadas tão-só pela equiparação encontrada nas relações internacionais. A soberania
tem forte impacto jurídico externo: “Ela é hoje uma afirmação do direito internacional positivo,
no mais alto nível de seus textos convencionais” (Rezek, 2011, p. 260). Em todo caso, de acordo
com abordagem diversa, o reconhecimento não é de caráter constitutivo, mas unicamente
declaratório da qualidade estatal.
Para tanto, a Carta da OEA (Bogotá, 1948) é esclarecedora:
Artigo 13: A existência política do Estado é independente do seu reconhecimento pelos
outros Estados. Mesmo antes de ser reconhecido, o Estado tem o direito de defender a sua
integridade e independência, de promover a sua conservação e prosperidade, e, por conseguinte,
de se organizar como melhor entender, de legislar sobre os seus interesses, de administrar os seus
serviços e de determinar a jurisdição e a competência dos seus tribunais. O exercício desses
direitos não tem outros limites senão o do exercício dos direitos de outros Estados, conforme o
direito internacional.
Alega-se contra o reconhecimento o fato de se apoderar de ideologia colonialista, como
se os Estados imperiais precisassem autorizar outros a existir. O que leva ao tema do
reconhecimento de governo: neste caso, a ruptura da ordem institucional, como golpes de
Estado, quarteladas, golpes institucionais, revoluções280, implicam em governos diferentes
daqueles com os quais já se mantinham relações diplomáticas.
Neste caso, em tese, como houve quebra de continuidade na manutenção das intenções
diplomáticas, as tratativas com o “novo” governo partiriam do zero e este início de conversações
poderia (ou não) evoluir para o reconhecimento do governo golpista. Outro aspecto a se
diferenciar nesta abordagem é o fato de que se reconhece o governo, não há propriamente
reconhecimento de Estado. Isto haveria em se tratando de formação de Estado – e não de
governo – por desmembramento (seria o exemplo da descolonização) ou anexação.
Há para isso uma forma tácita e outra expressa. Na primeira, expressa-se a simples
manutenção das relações diplomáticas anteriormente assumidas; na segunda, expressa-se juízo
de valor sobre os novos governos. A prática contemporânea valoriza a legitimidade, não se
relacionando abertamente com os governos golpistas até que o processo democrático seja
restabelecido, mas também exime-se do escárnio público contra os golpes perpetrados (Rezek,
2001). O direito internacional, hoje em dia, é fonte de legitimação do direito interno; no entanto,
no passado, o Estado de Direito tinha uma posição mais restritiva.
280
Pode-se lembra aqui a Revolução Islâmica, no Irã de 1979. Na década de 1970, o governo era exercido pelo xá
Reza Pahlevi, com forte concentração de poderes em um pequeno grupo de apaniguados. O ativista com maior
expressão política, aiatolá Khomeini, vivia exilado em Paris. Com forte clima de enfrentamento político-religioso,
no dia 1º de abril, o Irã foi declarado uma República Islâmica, com a ascensão ao poder do aiatolá Khomeini.
299
ESTADO RACIONAL
a necessária racionalização do Poder Político
Como vimos, o Estado Moderno é resultado de um longo processo de racionalização das
relações políticas, como se fosse um produto da cultura política refinado pelo uso crescente da
razão, da intencionalidade na produção de significados políticos de natureza “superior”,
organizada e, portanto, racionalizada.
Racionalização da política e razão de Estado
É bastante conhecido e difundido o modelo que Max Weber criou para o Estado racional
e, portanto, da própria racionalização. Mas, relembremos que o Estado Racional é um modelo ou
tipo de Estado que só se desenvolve no Ocidente, pois sua estrutura de sustentação e
funcionamento está calcada nas burocracias especializadas e no direito racional. É aí que o
capitalismo prospera, porque é aí que a racionalidade deve incrementar a produção e, portanto, a
arrecadação estatal. Nesse sentido pragmático é que se diz que o Estado Racional não suporta
que o funcionário venha a aprender a fazer, fazendo: o dispêndio é grande e os riscos de erros
são maiores do que o desejado. O que implica na colocação de funcionários especializados
(técnicos) e na afirmação de que a burocracia é funcionária do Estado e não do governo.
No sentido propriamente jurídico, pode-se dizer que temos um modelo que faz remontar
este Direito racional ao direito romano (ou ao Estado Municipal de Roma), modelo que
desenvolveria algumas características ainda mais precisas, como:
i)
direito sistematizado, estabilizado, estável e acessível (escrito);
ii) racionalização procedimental, do processo político-decisório: sucessão de atos que
regula a concatenação entre começo, meio e fim de todo processo de organização
ou dos procedimentos adotados;
iii) formalismo: não comporta o erro formal - quanto à forma;
iv) predominância de aspectos burocráticos do direito “o que não está nos autos, não
está no mundo”;
v) justiça formal: no mundo moderno, desembocou no Estado-Juiz;
vi) garantias do contrato, do processo (pacta sunt servanda): o próprio direito está
subordinado aos autos do processo;
vii) demandas reduzidas a fórmulas judiciais: o excessivo apego burocrático reduz,
condiciona ou subordina o conteúdo jurídico à forma judicial;
viii) dupla racionalização: secular e temporal (o comportamento católico foi estruturado
da forma mais racional possível, regras morais de conduta, como também não foi
mais permitido que as ações/relações jurídico–mercantis estivessem reguladas por
procedimentos de luta, como nos duelos);
ix) direito calculável, mecânico e maquínico (como se toda relação humana ou social
pudesse ser programada e, assim, programável, previsível: no Renascimento,
chamou-se de Mecanismo);
x) se há demanda judicial, obrigatoriamente, tem de haver resposta processual;
xi) pensamento jurídico formal: cada direito abriga (obriga) um princípio jurídico
formal;
xii) direito formalmente desenvolvido – a relação jurídica não pode admitir
imprevistos, sobretudo de natureza extra-processual;
300
xiii) numa fórmula: Estado + Direito (jurisprudência formal) = capitalismo. No Brasil,
ainda contamos com a excessiva codificação e a crescente onda de criminalização
das relações sociais.
Num exemplo mais singular, já aventado e que exemplifica bem o excesso do
racionalismo, tomemos a relação forma-conteúdo. Em resenha do 6º volume dos Cadernos do
Cárcere, de Antonio Gramsci, José Luís Jobim destaca justamente a dinâmica e a mobilidade que
deve haver nessa relação. Em princípio:
... (“pode-se falar de uma prioridade do conteúdo sobre a forma”),
Gramsci deu uma resposta positiva, no sentido de que a obra de arte é um
processo e as modificações de conteúdo são também modificações de
forma, já que o conteúdo pode ser “resumido” logicamente: “Quando se
diz que o conteúdo precede a forma, quer-se simplesmente dizer que, na
elaboração, as sucessivas tentativas são apresentadas com o nome de
conteúdo e nada mais. O primeiro conteúdo que não satisfazia era
também forma e, na realidade, quando se atinge a ‘forma’ satisfatória,
também o conteúdo se modifica” (Jobim, 3 nov. 2002).
Desse processo histórico, retenhamos como exemplo geral a adequação dos meios aos
fins e como exemplos específicos a relação custo-benefício e a planilha de contabilidade por
partida dobrada – passos dados em direção a uma Política Econômica Estatal (iniciada como
base do mercantilismo). A outra base de sustentação desse Estado de Direito é a burocracia e,
em suma, suas condicionantes ainda podem ser vistas da seguinte forma:
A burocracia é, como vimos, o exemplo mais típico do domínio legal.
Repousa nos seguintes princípios: 1º, a existência de serviços definidos e,
portanto, de competências rigorosamente determinadas pelas leis ou
regulamentos, de sorte que as funções são nitidamente divididas e
distribuídas [...] 2º, a proteção dos funcionários no exercício de suas
funções, em virtude de um estatuto (efetivação dos juízes, por exemplo)
[...] 3º, a hierarquia das funções281, o que quer dizer que o sistema
administrativo é fortemente estruturado em serviços subalternos e em
cargos de direção, com possibilidade de recurso da instância inferior à
instância superior; em geral, esta estrutura é monocrática e não-colegiada
e manifesta uma tendência no sentido da maior centralização; 4º, o
recrutamento se faz por concurso, exames ou títulos, o que exige dos
candidatos uma formação especializada. Em geral, o funcionário é
nomeado (raramente eleito) com base na livre seleção e por contrato; 5º,
a remuneração regular do funcionário sob a forma de um salário fixo e de
uma aposentadoria quando ele deixa o serviço público [...] 6º, o direito
que tem a autoridade de controlar o trabalho de seus subordinados,
eventualmente pela instituição de uma comissão de disciplina; 7º, a
possibilidade de promoção dos funcionários com base em critérios
objetivos e não segundo o livre arbítrio da autoridade; 8º, a separação
completa entre a função e o homem que a ocupa, pois nenhum
281
Equivale a ressaltar a divisão de funções que, classicamente, decorre da separação de poderes – dado de
precedência que também subordina a divisão à separação.
301
funcionário poderia ser dono de seu cargo ou dos meios da administração
(Freund, 1987, p. 170-171).
Com o que podemos concluir que se trata, realmente, de um modelo que se constitui de
maneira peculiar no Ocidente, revelando traços e características precisas e bem distintas das
outras formas de organização burocrática dos Estados Antigos.
A negação do Estado Mágico
Pois, bem tendo em conta estes pressupostos do Estado Racional, vejamos o porquê de
nos reportarmos ao Estado Moderno (saibamos que se trata de um Estado moderno, porque é
racional), sobretudo como Estado soberano, centralizado (e centralizador) e apto a realizar os
próprios interesses comerciais expansionistas. Porém, iniciemos pela contradição, pelo
pensamento mágico que já continha laivos de racionalidade. Na definição de Max Weber (1985),
procuremos o sentido da negação no próprio conteúdo do pensamento mágico que, por sua vez,
revela a essência do mandarinato:
O mandarim é geralmente um literato de formação humanista, que possui
uma prebenda282, mas carece de todos os conhecimentos em matéria de
administração; ignora a jurisprudência, mas, em compensação, é
calígrafo; sabe fazer versos; conhece a milenária literatura dos chineses,
sendo capaz de interpretá-la [...] um funcionário desta natureza não
administra por si mesmo. A administração encontra-se em mãos dos
funcionários de sua repartição. O mandarim é mandado de um lugar para
outro, a fim de que não consiga se erradicar em nenhum. A ele é vedado
desempenhar o cargo em sua terra natal. Em virtude de não compreender
o dialeto da província em que serve, torna-se para ele impossível lidar
com o público. Um Estado com empregados desse gênero é algo muito
diferente de um Estado ocidental (Weber, p. 157).
A partir dessa definição de mandarinato (governo de mandarins) de Max Weber, é
possível antecipar que o Estado Racional, portanto, é em tudo diferente do Estado arcaico,
mitológico, assentado sobre alguma forma de pensamento mágico (a exemplo do Estado Antigo
e até do Estado Romano e, depois, do Absolutismo). É aquele Estado de Direito que não pode
ficar ao sabor das interpretações mágicas, que necessita desprender-se das limitações religiosas
ou divinas da sociedade, que necessita de interpretações razoáveis, racionais, lógicas, coerentes,
possíveis (mais do que verossímeis), técnicas (tecnicistas e tecnológicas, a exemplo da total
informatização eleitoral), especializadas, mecânicas, maquínicas (veja-se a expressão máquina
do Estado), “blindadas”283.
Em síntese, trata-se da caracterização e categorização do Estado que pode ser reduzida à
matemática (se preferirmos o navegar é preciso) à relação de custo-benefício que há em projetos
sociais em que só a estatística define os níveis admissíveis para a mortalidade infantil. Quando a
este modelo fundem-se algumas bases legais e democráticas, teremos, então, o Estado
282
Farta remuneração, em detrimento de pouca ou quase nenhuma implicação laboriosa. No popular: mamata,
emprego de barnabé.
283
A arquitetura imponente, os pórticos e portais do Estado tendem a blindar os segredos da estrutura estatal, aliás,
mais e mais carros de autoridades já vêm, de fábrica, equipados com vidros fumê e blindagem especial. Sem vitrais,
o Estado é indevassável, nebuloso, opaco e ainda que muitos vitrais chamem a atenção para si, mas não permitam
que o conteúdo do poder seja devassado.
302
Democrático de Direito. Contudo, em Weber, trata-se da dominação baseada na lei, na
dominação legal ou estatutária (também chamada de dominação legal/racional):
Dominação legal em virtude de estatuto. Seu tipo mais puro é a
dominação burocrática. Sua ideia básica é: qualquer direito pode ser
criado e modificado mediante um estatuto sancionado corretamente
quanto à forma. A associação dominante é eleita ou nomeada, e ela
própria e todas as suas partes são expressas [...] Obedece-se não à
pessoa em virtude de seu direito próprio, mas à regra estatuída, que
estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se deve obedecer.
Também quem ordena obedece, ao emitir uma ordem, a uma regra: à
“lei” ou “regulamento” de uma norma formalmente abstrata [...] a
burocracia constitui o tipo tecnicamente mais puro da dominação legal.
Nenhuma dominação, todavia, é exclusivamente burocrática, já que
nenhuma é exercida unicamente por funcionários contratados [...] É
decisivo todavia que o trabalho rotineiro esteja entregue, de maneira
predominante e progressiva, ao elemento burocrático. Toda a história do
desenvolvimento do Estado moderno, particularmente, identifica-se com
a da moderna burocracia e da empresa burocrática, da mesma forma que
toda a evolução do grande capitalismo moderno se identifica com a
burocratização crescente das empresas econômicas [...] Na época da
fundação do Estado moderno, as corporações colegiadas contribuíram de
maneira decisiva para o desenvolvimento da forma de dominação legal, e
o conceito de “serviço”, em particular, deve-lhes a sua existência. Por
outro lado, a burocracia eletiva desempenha papel importante na história
anterior a da administração burocrática moderna (e também hoje nas
democracias) (Weber, 1989, p. 128-129, 130-131).
Pode-se dizer que, atualmente, a dominação legal se baseia em todos os princípios de
direito e em todo o ordenamento jurídico de um determinado Estado de Direito, mas Weber irá
detalhar essas atribuições:
1.que todo direito, mediante pacto ou imposição, pode ser estatuído de
modo racional – racional referente a fins ou racional referente a
valores284 (ou ambas as coisas) – com a pretensão de ser respeitado pelo
menos pelos membros da associação, mas também, em regra, por pessoas
que, dentro do âmbito de poder desta (em caso de associações territoriais
dentro do território), realizem ações sociais ou entrem de determinadas
relações sociais, declaradas relevantes pela ordem da associação; 2. que
todo direito é, segundo sua essência, um cosmos de regras abstratas,
normalmente estatuídas com determinadas intenções; que a judicatura é a
aplicação dessas regras ao caso particular e que a administração é o
cuidado racional de interesses previstos pelas ordens da associação,
dentro dos limites das normas jurídicas [...] 3. que, portanto, o senhor
legal típico, o “superior”, enquanto ordena e, com isso, manda, obedece
por sua parte à ordem impessoal pela qual orienta suas disposições; 4.
que [...] quem obedece só o faz como membro da associações e só
284
É de se lembrar que no início do texto há exatamente esta discussão.
303
obedece ao “direito”285; 5. [...] que os membros das associação, ao
obedecerem ao senhor286, não o fazem à pessoa desse, mas, sim, àquelas
ordens impessoais e que, por isso, só estão obrigados à obediência dentro
da competência objetiva, racionalmente limitada, que lhe for atribuída
por essas ordens (Weber, 1999, p. 142)287.
Já a dominação racional, em complemento aos quesitos da dominação legal, pode ser
assim descrita:
1. um exercício contínuo, vinculado a determinadas regras, de funções
oficiais, dentro de 2. determinada competência288, o que significa: a) um
âmbito objetivamente limitado, em virtude da distribuição dos serviços, de
serviços obrigatórios, b) com atribuição dos poderes de mando
eventualmente requeridos e c) limitação fixa dos meios coercivos
eventualmente admissíveis e das condições de sua aplicação [...]
autoridade instituída 3. o princípio da hierarquia oficial, isto é, de
organização de instâncias fixas de controle e supervisão para cada
autoridade institucional, com o direito de apelação ou reclamação das
subordinadas às superiores [...] 4. As “regras” segundo as quais se procede
podem ser: a) regras técnicas; b) normas. Na aplicação destas, para atingir
racionalidade plena, é necessária, em ambos os casos, uma qualificação
profissional [...] uma especialização profissional, e só estes podem ser
aceitos como funcionários [...] 5. Aplica-se o princípio da separação
absoluta entre o patrimônio (ou capital) da instituição (empresa) e o
patrimônio privado (da gestão patrimonial), bem como entre o local das
atividades profissionais (escritório) e o domicílio dos funcionários. 6. Em
caso de racionalidade plena, não há qualquer apropriação do cargo pelo
detentor289 [...] 7. Aplica-se o princípio da documentação dos processos
administrativos, mesmo nos casos em que a discussão oral é, na prática, a
regra ou até consta no regulamento [...] (Weber, 1999, pp. 142-143).
Weber ainda chama atenção para a necessidade de detalhar a compreensão da dominação
burocrática, dentro do quadro administrativo, mas quem deve tomar parte neste quadro
burocrático?
1. são pessoalmente livres; obedecem somente às obrigações objetivas de
seu cargo; 2. são nomeados (e não eleitos) numa hierarquia rigorosa dos
cargos; 3. têm competências funcionais fixas; 4. em virtude de um
contrato, portanto, (em princípio) sobre a base de livre seleção segundo 5.
a qualificação profissional — no caso mais racional: qualificação
285
No Estado de Direito descrito por Weber, deve-se obediência às regras estabelecidas e adotadas e não ao sujeito,
como ocorre na dominação tradicional e/ou carismática.
286
Neste caso, seriam as autoridades e os superiores hierárquicos do próprio gestor e/ou servidor público.
287
Há que se ressaltar que o Estado de Exceção inseriu medidas de exceção no coração da regra, mas o fez
legitimando-se passo a passo como Estado de Direito.
288
Refere-se ao direito de agir que alguns têm, em razão da atividade específica que desempenham, a exemplo da
magistratura — não se refere a conhecimento, mas sim a esta possibilidade técnica, a esta autorização.
289
Isto deveria evitar o “culto à personalidade”, a síndrome do pequeno poder, bem como o corpo administrativo
não deveria gerar formas de poder pessoal.
304
verificada mediante prova e certificada por diploma; 6. são remunerados
com salários fixos em dinheiro [...] 7. exercem seu cargo como profissão
única ou principal; 8. têm a perspectiva de uma carreira [...] 9. trabalham
em “separação absoluta dos meios administrativos” e sem apropriação do
cargo; 10. estão submetidos a um sistema rigoroso e homogêneo de
disciplina e controle de serviço (Weber, 1999, p. 144).
Em seguida, o próprio Weber se encarrega de ratificar a tese central sobre a forma de
dominação mais desenvolvida racionalmente, para depois externar seu pensamento em uma
fórmula:
A administração puramente burocrática, portanto, a administração
burocrático-monocrática mediante documentação, considerada do ponto
de vista formal, é, segundo toda a experiência, a forma mais racional de
exercício de dominação, porque nela se alcança tecnicamente o máximo
de rendimento em virtude de precisão, continuidade, disciplina, rigor e
confiabilidade — isto é, calculabilidade tanto para o senhor quanto para
os demais interessados —, intensidade e extensibilidade dos serviços,e
aplicabilidade formalmente universal a todas as espécies de tarefas
(Weber, 1999, p. 145).
Neste sentido, ainda cabe ressaltar que tanto os partidos quanto os sindicatos e os
movimentos sociais organizados, hoje, têm são enormes bases e/ou estruturas administrativas e
burocráticas. Daí também dizer-se que a política foi burocratizada: na história política que nos
trouxe da ágora ao palanque eletrônico, há a interposição de planilhas e programas de controle
desenvolvidos unicamente para tentar projetar e prognosticar a conduta do eleitor: especialmente
com o uso de pesquisas de opinião pública. Para o marketing, pouco importa se na embalagem
deve-se encaixar ou embalar um sabonete ou um candidato290.
De outra forma, pode-se dizer, justamente, que a crítica está em que a razão, a própria
lógica, (para ser útil e boa) deve gerar receita e não necessariamente produzir reflexão,
conhecimento e postura crítica: na teoria e na prática, é razoável o que é lucrativo, pois o restante
é especulativo, é mera interrogação e esta bem pode ser uma interrogação indesejável sobre a
pretensa validade da verdade lucrativa e acumulativa291. A crítica diz que a razão deixou de ser
crítica e que lógico é o que é lucrativo.
Mas será a mesma burocracia – apta à organização racional – a origem das mazelas de
uma dominação tão grave quanto outra qualquer? Vejamos se é possível falar-se de um Estado
Político não-Público (irracional).
Estado Irracional
No Estado Racional, visualizamos que há um Estado Político (não público) que pratica a
apropriação econômica de forma exclusiva, monopolista – resumidamente: Capitalismo
Monopolista de Estado. Afirmativamente, esse Estado baseia-se em numeração que impressiona:
retumbante, reverberante, pois em todos os continentes a política será quantificada. As maiores
democracias do mundo, China e Índia, em números absolutos, têm mais de um bilhão de
290
Novamente a relação forma-conteúdo. E ainda que já se saiba, há muito tempo, que quem vê cara não vê coração
ou por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento (o epitáfio do próprio sepulcro caiado).
291
Teoricamente (vale dizer, de forma lógica), um povo não pode concluir que o melhor para si é afastar-se do
capitalismo?
305
eleitores, e não são necessariamente qualificadas (são as mais intensas numericamente, mas sem
diferenças substanciais nas proposições, temáticas, programas ou projetos de poder).
De forma mais crítica, é um Estado que controla (desenvolve, articula) a economia de
forma extremamente racional, produtiva, lucrativa e rentável, mas em meio a um mercado
irracional, ilógico, frenético, incontrolável. É o Estado em que a lógica e a razão econômica,
acumulativa (de apropriação individual ou de classe), prepondera no interior de sua própria
máquina administrativa; mas, já no limite, nem mesmo o Estado é mais capaz de socializar para
melhor arrecadar, pois a massa tributária pode tornar inviável a produção. Transformando, por
fim, a própria administração ou burocracia em novo tipo ou fração de classe social dominante,
uma vez que a burocracia se encontra encastelada no Estado e imprime a seus interesses o status
ou a condição de interesse de classe predominante, pois que suas próprias ações são de extrema
eficácia quando se trata de satisfazer os próprios interesses.
É um Estado rentável, sobretudo para aqueles que se intitulam governantes, para aqueles
que se locupletam da própria máquina do Estado (nesse aspecto, sem dúvida, trata-se de uma
expressão de conteúdo e funcionamento do Estado Patrimonial). Sob a ordem econômica há uma
razão específica (subjacente, mas viva) e que torna a burocracia, ela mesma, tecnicamente
financeirizada. Vejamos isso ainda em Freund (1987):
A burocracia moderna desenvolveu-se sob a proteção do absolutismo real
no começo da era moderna. As antigas burocracias tinham caráter
essencialmente patrimonial, isto é, os funcionários não gozavam das
garantias estatutárias atuais, nem de remuneração em espécies. A
burocracia que conhecemos desenvolveu-se com a economia financeira
moderna, sem que se possa, entretanto, estabelecer um vínculo unilateral
de causalidade, pois outros fatores entram em jogo: a racionalização do
direito, a importância do fenômeno de massa, a centralização crescente
por causa das facilidades de comunicações e das concentrações das
empresas, a extensão da intervenção estatal aos domínios mais diversos
da atividade humana e sobretudo o desenvolvimento da racionalização
técnica (p. 171-172).
Deste modo, vê-se, é um Estado em que a razão oferece as bases da própria dominação e
não mais configura os limites, os obstáculos ou as restrições ao jugo do príncipe, do soberano,
quando se supunha que houvesse a passagem das marcas pessoais e individuais para a
administração pública, baseada na impessoalidade, neutralidade, abstinência em relação ao
privado e (re)afirmativa do interesse público. E, assim, a dominação faz-se de cunho racional e
de base legal, pois que direito público e administração pública, nesse marco histórico, coincidem
na definição dos termos das finalidades da produção em massa, mas de apropriação cada vez
mais individualizada. É óbvio, enfim, que o interesse público acaba submetido à força da
apropriação privada ou classista, mas é menos claro como se opera essa lógica de apropriação
econômica e de poder – daí a necessidade, a insistência, em focar a burocracia política dos
tecnocratas.
A dívida social é quantificável, mas e as soluções também são? É óbvio que não há passe
de mágica ou só bem-querer e dever-ser, porém, não há regra ou fórmula econômica
(economicismo) que se auto-aplique. Isto é, se a Justiça Social não é auto-aplicável e, por isso,
depende tanto de recursos quanto de planejamento, estratégia, projeto e programa político e
econômico, é ainda mais óbvio que todo plano econômico responde a condicionantes político-
306
ideológicos. É de se lembrar que há razões que o coração desconhece, porque a razão é
pluridimensional. Da mesma forma, sempre é oportuno ter em mente que a razão já produziu o
Holocausto e a Bomba H292.
Até mesmo como mecanismo complementar da tripartição dos poderes, os concursos,
especialmente para a magistratura, deveriam vir embutidos de especial atenção ao social,
exigindo dos novos juízes mais sensibilidade para o espírito da lei, para a subjetividade – para a
formação da livre convicção baseada na função e na relevância social da lei e não na atenção
limitada à eficácia normativa, pois que não há norma eficaz sem reconhecimento e acolhimento
social. Trata-se da subjetividade que agrega valor (objetivamente, portanto), a exemplo do
trabalho voluntário/comunitário/social, pois a melhoria da qualidade das relações humanas
(genéricas) transforma o profissional em uma pessoa melhor. Há incremento na produção, (o
social é produtivo) porque se o indivíduo é capaz de se doar ao social (genérico, coletivo e difuso
por definição) ele também será capaz de se doar à produção (limitada ao fazer laborioso e ao
consumo imediato), aliás, diz a regra da lógica formal, quem pode o mais (investir no social),
pode o menos (incrementar a produção individual). Mas, mesmo nesse caso, em que se está
voltado de coração à solução dos problemas sociais, as medidas tópicas devem ser
racionalizadas, equilibradas, pois não há milagres econômicos que se preste à multiplicação dos
pães.
Estado Latente: potência natural?
O Fato é que, se a administração é fundamental ao Estado, assim como o direito, é
preciso recobrar a consciência de que sem a atividade política, a militância popular, social,
sindical, não há vida pública. Historicamente, por exemplo, encontramos a passagem do idiotes
(no grego clássico) ao cidadão como forma ou processo dessa intensa racionalização da atividade
política. Por isso, até mesmo para que a política não quede burocratizada, insossa, é preciso
ativar a potência que há em todos nós, no dizer de Canivez (1991):
Por um lado, pode-se dizer com Kant que a liberdade é o único direito
inato que o indivíduo possui. Mas é um direito absolutamente
fundamental, no sentido de ser a condição de aquisição de todos os outros
direitos: não há direitos (propriedade, livre comunicação etc) a não ser
para um ente livre. Por outro lado, o homem em estado de natureza
define-se como ser razoável, isto é, não como um ser que já desenvolveu
seu raciocínio, inteligência etc, mas que pode desenvolve-los. Define-se,
para retomar a expressão de Rousseau, por sua perfectibilidade; é o
animal que é razão em potência, animal dotado de razão. O direito natural
repousa pois sobre a consciência que o indivíduo tem de sua natureza de
ser racional (p. 88).
Dessa forma, ainda podemos visualizar que a formalidade (impessoalidade,
imparcialidade), desenvolvida no interior da burocracia, é resultado ela mesma de longo processo
histórico da própria razão (ou do engenho humano em criar artefatos e artifícios de certa forma
controlados e com certa dose de previsibilidade – o mesmo se daria com a política). Este tipo de
292
O Estado acaba uma sombra do que era, miríade em que suas imagens vão se apagando e suas inscrições
sobrevivem somente através das metáforas. Vejamos em Debray (1994): “É precisamente porque o Estado é, em si
mesmo, invisível e inaudível que ele deve se fazer ver e ouvir, custe o que custar, por metáforas. Chamar a atenção
de todos através de sinais combinados, observáveis e tangíveis. Sem essa sinalização, a crença não teria objeto, nem
meios de transmissão” (p. 61).
307
engenhosidade, portanto, acabou fornecendo insumo à política cotidiana e ao Estado que se
organizava como instituição política. Pois bem, pode-se dizer que a chamada razão de Estado é a
primeira construção, mais direta, simplificada e de relativa compreensão, que resultou desse
cruzamento entre política e institucionalização. Pois que aí se entendem as motivações do Estado
em manter algum sigilo sobre sua base de dados. Na República, por exemplo, a política é
racional, lógica, na exata proporção em que há defesa do interesse público (e há dados que se
forem revelados podem comprometer a segurança pública).
Mas a racionalidade humana, inicial e fundante, pode-se dizer, está na potência, como
capacidade de analisarmos racionalmente a política, visto que somos potencialmente racionais e
essencialmente políticos. Como animais sociais e políticos, gerando intencionalidade para o
grupo e objetivando a vida social, destacamo-nos dos outros animais sociáveis. A racionalidade
política é potencialmente humana, ainda poderíamos dizer, tendo em conta que nem todos
participam da política (da vida pública) com efervescência – é de se lembrar que a política para
muitos não passa de rumor e, via de regra, de maus rumores. Mas, seja como for, a política
implica na condição de criarmos condições públicas, gerais (seguindo o princípio da
universalidade), em que se desenvolva o dever de respeitarmos o direito à possibilidade de cada
um desenvolver sua potencialidade racional. Isto é, o direito de um implica no dever do outro e
vice-versa, e nessa base de universalidade estão, enfim, erigidos os direitos humanos de natureza
política. Os direitos humanos são aqui enunciados como concurso histórico do processo de
desencantamento e de racionalização infindável do ser político. Para se afirmar, o Estado
Moderno precisaria encontrar fontes de financiamento.
308
P A R T E II
ESTADO DE DIREITO
309
ESTADO DE DIREITO
A racionalidade aplicada ao poder, como forma de obter controle, pode ser uma definição
de Estado de Direito. Pois, o Estado de Direito talvez seja a expressão mais propalada no mundo
jurídico, mas será que temos uma compreensão adequada do conceito? Desde o século XIX,
Estado de Direito significa a impostação de direitos afirmativos para a cidadania e de leis
restritivas ao poder de império do Estado (como direitos negativos ou obrigações de não-fazer).
Mas, o que é afinal Estado de Direito?
Inicialmente, devemos indicar que o conceito de Estado de Direito não é homogêneo, não
se constituindo num conjunto jurídico orgânico, neutro, estático, mas sim político e atuante de
acordo com o aprofundamento das demandas sociais por mais direitos. Porém, o nível de
politização imposto ao direito deve ter limites estabelecidos pelo próprio direito e pela
democracia. Afinal, não é possível conviver o Estado de Direito com a alucinação comum aos
regimes de exceção. Após um atentado nos EUA, gestos banais do cotidiano passaram a ser
criminalizados:
Uma jornalista entrou para a lista de suspeitos de terrorismo em Nova
York, nos Estados Unidos, após ter comprado uma panela de pressão pela
internet [...]“Ela acaba de contar que anteontem, quarta-feira, um grupo
de seis agentes do FBI, com revólveres na cintura, estacionou dois carros
em frente à casa que ela vive, mostraram os distintivos e pediram para
fazer uma busca. Durante a batida, fizeram perguntas do tipo: de onde
você é? De onde são seus pais? Onde você trabalha? E finalmente: você
tem uma panela de pressão em casa?”293
Quando investigamos do ponto de vista jurídico, entretanto, apesar dos acréscimos de
direitos, identificamos uma base conceitual que sempre se repete; o que implica obviamente que
há um núcleo duro, estável, quase que permanente e que já se estruturou como doutrina, como
dogmática, ou seja, como conjunto orgânico irrefletido na/da realidade. O núcleo duro do
Estado de Direito vem se mantendo desde o século XIX, apenas recebendo notáveis acréscimos,
mas não modificações nas suas cláusulas pétreas. Por outro lado, este fator impossibilita ao
investigador perceber muitas das nuances ou dos indicativos históricos e políticos que cercam a
própria investigação do conceito.
Não há uma posição ou leitura politizada ou suficientemente precisa atualmente acerca
dessa amarração e do fluxo do ordenamento jurídico, que é o Estado de Direito; infelizmente,
seus clássicos também não têm sido publicados. Isso torna qualquer pesquisa sobre o conceito
(essencial ao Direito moderno) um trabalho monótono, de leitura indireta dos clássicos (hoje
inacessíveis) porque os autores e manuais contemporâneos também não reúnem proposições
críticas ou leituras minimamente investigativas. Nosso objetivo, portanto, é basicamente
conceitual e pautou-se pela revisão bibliográfica das principais teorias e conceitos jurídicos e
políticos relacionados. É certo que, a luta política pelo reconhecimento jurídico nunca deixou de
ser uma luta por conservação, mas agora supõe-se a conservação dos demais institutos já
anunciados, em face dos direitos apregoados. É, sem dúvida, uma luta pela “autoconservação
moral” de todo o grupo humano relacionado:
Portanto, a defesa do direito é um dever de autoconservação moral: o
abandono total do direito, hoje impossível, mas que já foi admitido,
293
http://noticias.band.uol.com.br/mundo/noticia/100000619234/megale-jornalista-compra-panela-e-vira-alvo-dofbi.html
310
representa o suicídio moral. E o direito nada mais é do que a soma dos
seus intuitos. Cada um destes tem um pensamento peculiar, físico ou
moral, que condiciona sua existência (Ihering, 2002, p. 41 – grifos
nossos).
A fórmula do Estado de Direito, como o conhecemos hodiernamente, é um produto
acadêmico provindo do século XIX (arquitetado pelo jurista Robert von Mohl), a partir da
Alemanha, como sinônimo de imperatividade, impessoalidade, neutralidade processual e
defesa constitucional dos direitos individuais conquistados.
Em algum ponto da história ou da convergência entre os anseios “mais populares” e os
“meios necessários à sua realização”, a luta pelo direito se converteu em luta pelo Estado de
Direito, fase em que o direito passou a regular/limitar a ação dos poderes estatais (a fim de que
realmente pudessem ser chamados de públicos). O alcance do instituto, no século XIX, ainda se
limitava a três aspectos jurídico-institucionais: a) império da lei: b) separação dos poderes: c)
prevalência dos direitos individuais fundamentais. Por tudo isso, o Estado de Direito (se) impõe
por meio da Ratio legis (“em razão da lei”). Como descreve Canotilho, resgatando a tradição
alemã de Von Mohl:
A expressão Estado de direito é considerada uma fórmula alemã
(Rechtsstaat) [...] O Estado domesticado pelo direito é um Estado
juridicamente vinculado em nome da autonomia individual ou, se se
preferir, em nome da autodeterminação da pessoa [...] Contra a ideia
de um Estado de polícia294 que tudo regula a ponto de assumir como
tarefa própria a felicidade dos súditos, o Estado de direito perfila-se como
um Estado de limites, restringindo a sua ação à defesa da ordem e
segurança públicas. Por sua vez, os direitos fundamentais liberais – a
liberdade e a propriedade – decorriam do respeito de uma esfera de
liberdade individual e não de uma declaração de limites fixada pela
vontade política da nação (Canotilho, 1999, p. 27 – grifos nossos).
Guiando-se por esta tradição, mas na versão de um jurista francês indignado com o
descalabro da Primeira Guerra Mundial, Carré de Malberg sempre esteve pronto a defender a lei
contra a violência. Como nos legou o autor:
Por Estado de Direito se deve entender um Estado que, em suas
relações com seus súditos e para a garantia do estatuto individual,
submete-se ele mesmo a um regime de direito, porquanto encadeia
sua ação em respeito a eles, por um conjunto de regras, das quais
umas determinam os direitos outorgados aos cidadãos e outras
estabelecem previamente as vias e os meios que poderão se empregar
com o objetivo de realizar os fins estatais: duas classes de regras que
têm por efeito comum limitar o poder do Estado subordinando-o à
ordem jurídica que consagram [...] Isto implica duas coisas: por um
lado, quando entra em relação com os administrados, a autoridade
administrativa não pode ir contra as leis existentes, nem se apartar delas,
ela está obrigada a respeitar a lei. Por outro lado, no Estado de Direito em
que se tenha alcançado seu completo desenvolvimento, a autoridade
294
Trata-se de um tipo estatal precursor do nazismo.
311
administrativa não pode impor nada aos administrados se não for em
virtude da lei, e não pode aplicar, com respeito a eles, senão as medidas
previstas explicitamente pelas leis ou ao menos implicitamente
autorizadas por elas; o administrador que exige de um cidadão um feito
ou uma abstenção deve começar por mostrar-lhe o texto da lei de onde
toma o poder para dirigir-lhe esse mandamento295 [...] Por conseguinte,
em suas relações com os administrados, a autoridade administrativa não
deve somente abster-se de atuar contra legem senão que ademais está
obrigada a atuar somente secundum legem, ou seja, em virtude das
habilitações legais. Finalmente, o regime do Estado de Direito implica
essencialmente que as regras limitantes que o Estado impôs a si mesmo,
em interesse de seus súditos, poderão ser alegadas por estes da mesma
maneira que se alega o direito, já que somente com esta condição terão de
constituir, para o súdito, verdadeiro direito [...] O regime do Estado de
Direito significa que não poderão impor-se aos cidadãos outras medidas
administrativas, que não sejam aquelas que estejam autorizadas pela
ordem jurídica vigente, e, por conseguinte, exige-se a subordinação da
administração tanto aos regulamentos administrativos quanto às leis
(Malberg, 2001, p. 449-461 – tradução livre – grifos nossos).
Já às margens do século XX, o sociólogo Max Weber descreveu alguns dos tópicos em
que o Estado de direito se afirma como mecanismo de contenção do Poder Político. O Estado de
Direito, entretanto, na primeira fase de sua construção jurídica, corresponde à imposição de
direitos negativos, como obrigação de não-fazer do Estado; mais especificamente, a proibição
jurídica de governar fora dos limites estabelecidos pela lei, contra a sociedade ou de forma a
aniquilar os direitos do cidadão (como se vê no democídio296).
Pode-se dizer que, atualmente, a dominação legal se baseia em todos os princípios de
direito e em todo o ordenamento jurídico de um determinado Estado de Direito, tendo-se no
direito o reflexo da racionalização da política (Weber, 1999). Outra reivindicação é quanto à
ética ou o ethos público, em que o direito é reflexo da moral elevada de um determinado povo e
atua como substrato de consciência em cada cidadão moralmente estabelecido; contudo, essa
conversão do direito com uma natureza modificada qualitativamente pela moral (ou pela ética)
só se efetivou a partir de meados do século XX, com a vigência da ordem jurídica democrática.
Um demonstrativo dessa reflexão está posto nas investigações de Jean Piaget. Para o
educador suíço, a principal diferença entre moral e direito está no fato de que a primeira se
estabelece de pessoa a pessoa e o “jurídico” nos obriga, como seres sociais, a orientar nossos
sentimentos e ações a transcender em direção ao impessoal. Trata-se do próprio sentimento de
pertencimento à Humanidade, como Princípio Civilizatório, de se reconhecer como membro da
sociedade humana apenas se e, tão-só, quando nos reconhecemos como sujeitos de direito a
partir da relação que estabelecemos com os demais sujeitos que compõem o meio social. Quando
temos a maturidade intelectual e moral para entender que somos sujeitos de direitos apenas se os
295
Ou seja, há ilegalidade e ilegitimidade no Estado de Exceção, à medida em que o soberano ou Füher produz uma
normatividade em que ele será o primeiro beneficiário.
296
Quando o Estado entra em combate interno contra uma parcela significativa do seu povo, por motivação políticoideológica e não exatamente por razão étnica ou racial.
312
outros ao nosso redor têm o mesmo status jurídico, ou seja, quando superamos a primeira
infância do individualismo jurídico, do egoísmo social e da menoridade moral:
A moral, assim como o direito, supõe um poder ou uma autoridade
inicial, com passagem possível desta heteronomia para uma autonomia
gradual e, aliás, sempre relativa. Amas repousam sobre uma construção
criadora feita ao mesmo tempo de aplicação e de publicação em éditos
contínuos das normas. Ambas implicam relações bilaterais imperativoatributivas e ambas oscilam entre as relações assimétricas ou de
hierarquia e as relações simétricas ou de reciprocidade [...] Quando [...]
Gurvitch fala de “emoções-leis”, de “convicções legais” ou de “fatos
normativos”, trata-se de sentimentos interindividuais [...] o sentimento
interindividual mais característico da vida moral é o “respeito” [...] O
respeito é o sentimento complexo, formado por medo e afeição
combinados [...] os autores que procuraram descrever as fontes do direito
em termos psicológicos ou sociais [...] concordam todos ao falar do
“reconhecimento” dos direitos, como se o fato de “reconhecer” sua
validade constituísse o essencial do respeito à lei [...] para uns, é o
reconhecimento que acarreta a validade de uma norma e,
consequentemente, seu caráter normativo ou obrigatório, enquanto para
outros é a norma dada em si mesma que desperta nas consciências o
sentimento de seu reconhecimento [...] a experiência jurídica imediata
deveria ser interpretada não em linguagem individualista, mas em termos
de relações comunitárias no sentido da “comunhão” interindividual [...]
não podemos viver com outra pessoa sem “reconhecer” seus direitos
[...] O reconhecimento é, pois, o sentimento jurídico elementar; é um “ato
intuitivo” e não “refletido”, isto é, um dado e não uma construção [...]
Em outras palavras, uma coação bruta, que seria força pura, não reveste
por si mesma um “valor jurídico” [...] O que é, com efeito, uma norma
fundamental que assegura sua validade primeira às normas de Estado
supremas (às constituições), a não ser justamente a expressão abstrata do
fato de que a sociedade “reconhece” válida a ordem jurídica reconhecida?
(Piaget, 2001, p. 139-143).
A partir disso, temos que a conclusão de que reconhecer o direito é a essência da
interação social, como reconhecimento da Humanidade. De todo modo, no Direito (ou mais
especificamente no Estado de Direito), essa mesma alteração/transformação individual da
consciência acarreta uma rotação institucional, apartando-se (teórica e historicamente) do eixo
estático da relação direito/dever (um mecanismo de tipo mecânico, sistemático, de puro reflexo).
E em troca, consubstancia-se uma dinâmica de composição/relação entre direitos e garantias
desses mesmos direitos297.
O Estado de Direito reconhece a personalidade jurídica estatal, mas não deixa de ser a
apostação de certas características individualistas da própria personalidade (antes abrigada sob o
império do direito de propriedade). Será esse o maior ou melhor sentido exposto na própria
suposição da personalidade jurídica do Estado (ou fase atual em que se encontra a teoria da
finalidade jurídica do Estado de Direito) e que corresponde à capacidade ou condição suficiente
297
As próprias garantias individuais, depois constitucionais e, por fim, as institucionais.
313
para transformar as pluralidades sociais em uma determinada unidade jurídica global, sem anular
as mesmas particularidades que lhe deram vantagem inicial (transportando as individualidades
ao social): do querer individual ao fazer pelo social (a República) e sem que se promova
qualquer tipo de sujeição298 ou sob o disfarce de uma ditadura da maioria (Bobbio, 2000).
O transporte da personalidade (que é uma condição individual prevista no Direito
Privado – Direito Civil) para o Estado299 não subentende exatamente a total abstenção ou
ausência de ação individual – pois, tanto é verdade que quem cala, consente, quanto é visível que
nem todos sentem da mesma forma, e assim não podem ser também unânimes no consentimento:
uns sentem mais que outros e, assim, alguns (con)sentem menos ao Estado (porque mais
exatamente sentem menos a presença do Direito).
Para milhões de pessoas, sem exagero algum, o Estado de Direito é mera ficção e é isto o
que torna alguns mais iguais do que outros, ou seja, na vida prática de milhares de excluídos, a
personalidade jurídica do Estado não tem um dado mínimo de realidade. É isto, por exemplo, que
também legitima a ação contra o Estado, na aposta democrática da desobediência civil contra as
leis injustas ou na requisição do direito de revolução (Menezes, 1998). Veja-se que, mesmo
limitadamente, é possível falar-se em termos da composição entre Direitos e Garantias.
Já no binômio restrito a Direito/dever só há o Direito do mandatário e o dever da
obediência. Portanto, como salienta Lyra Filho (2002), aí não há Direito, só há antidireito300, só
há dever. E hoje, em relação à própria institucionalização das garantias, ainda há o dever de
opor-se ao antidireito301 ou, simplesmente, há a garantia do/ao próprio Direito: diz-se,
acertadamente, do direito de resistência a todo dever imposto pelo antidireito. Para Bobbio, em
suma, o binômio Direito/dever perde toda relevância após a experimentação dos períodos
revolucionários:
O homem tem deveres, mas enquanto pessoa com valor em si próprio,
independentemente das circunstâncias de tempo e de lugar em que vive,
em primeiro lugar tem direitos, como o direito à vida, à liberdade (às
várias formas de liberdade), e à igualdade (pelo menos à igualdade dos
pontos de partida). Só lhe podem ser atribuídos deveres quer em relação
aos outros individualmente considerados quer em relação à comunidade de
que ele próprio faz parte, enquanto é em primeiro lugar centro de
imputação dos direitos fundamentais302 (Bobbio, 1999, p. 232 - grifos
nossos).
Até mesmo porque o(s) Direito(s) de alguns deveria(m) importar em deveres aos demais,
bem como, por essa lógica restritiva do direito, seria possível ver que as garantias e a segurança
298
Aliás, diz-se acertadamente que, ao se remover toda forma de sujeição, promove-se automaticamente a iniciativa
e a busca do consentimento, da legitimidade.
299
Direito Público como corruptela do Direito Privado.
300
Neste sentido vai nossa discordância em relação a um certo multiculturalismo cultural, pois a análise crítica da
história política deveria destacar (para afirmar) as categorias universais do Estado de Direito e não as idiossincrasias,
os regionalismos (tal qual a desclitorização), pois essa distância do todo é o que mais agride a consciência das
particularidades (uma vez que estimula o não-respeito ao dissenso).
301
Entendido como dever moral, constitucional e republicano de, por exemplo, descumprir e de se opor a qualquer
ordem injusta.
302
Essa passagem se deve às “revoluções americana e francesa e pelo reconhecimento dos direitos do homem,
quando foi derrubada a antiga relação de primado entre os direitos e deveres, que tinha caracterizado as épocas
anteriores” (Bobbio, 1999, p. 232).
314
(jurídica) de um exige a limitação/restrição de direitos dos demais. No limite, pensando
historicamente, não teríamos desenvolvido uma consciência social ou coletiva dos direitos
humanos, limitando-nos à incipiente visão individualista/egoísta da própria liberdade.
Como diz Juan Ramón Capella, em texto intitulado Os cidadãos servos: “No mundo
moderno – há que repeti-lo – afirmar com sentido que alguém tem um direito, implica que
alguém distinto dele tem um dever. Um dever de fazer ou de não fazer, ou de respeitar o que faça
quem tem o direito” (Capella, 1998, p. 136). Portanto, aquele que só tem direitos declarados, mas
sem garantias efetivas desse Direito, acaba por só ter deveres – principalmente o dever de não
interferir no direito de propriedade alheio: e esta é a fonte da luta de classes, entre proprietários e
não-proprietários, como se o direito fosse criado apenas para a primeira categoria.
Desse modo: “A frágil liberdade moderna não implica igualdade de deveres” (Capella,
1998, p. 139). Seguindo o exemplo anterior, o direito de propriedade (real) dos poucos
proprietários e a garantia de sua propriedade são assegurados pelo dever de obediência pelos
demais, ou seja, pela negação do mesmo Direito aos não-proprietários303. De forma direta, no
Estado de (não)Direito: para poucos, há muitos direitos; para muitos, há muitos deveres.
Do Estado de não-Direito
Uma das maiores dificuldades na afirmação do Estado de Direito, na atualidade, está em
negar todas as formas jurídicas e sociais que neguem o direito como inclusão social. A categoria
central do Estado de (não)Direito, como figura política ou categoria (anti)jurídica em que se
destacam tanto o que chamamos de Estado de Direito Injusto, quanto o mais próprio e específico
Estado de não-Direito304, como negação explícita de um Direito que promova Justiça, é um
exemplo. Nessa mesma linha ainda se pode tratar da transmutação da lógica entre poder/sujeição
e poder/organização, da mesma forma que o binômio Direito/pretensão seria oposto ao respeito
de outrem. Pois, na verdade, sob a ótica do Direito (até mesmo do Direito Positivo), não se trata
de um respeito, mas sim da possibilidade jurídica de uma ação própria e necessária305. Ou, dito
de outra forma, ainda se pode entender, como sugere Miranda, que se encaminha da ação
individual à ação social, das estruturas formais do Estado de Direito306 ao (hoje, sobrevivente)
Estado Social de Direito307:
Do que se trata é de articular direitos, liberdades e garantias (direitos cuja
função imediata é a proteção da autonomia da pessoa) com direitos sociais
(direitos cuja função imediata é refazer as condições materiais e culturais
em que vivem as pessoas); de articular igualdade jurídica (à partida) com
igualdade social (à chegada) e segurança jurídica com segurança social; e
ainda de estabelecer a recíproca implicação entre liberalismo político [...] e
democracia, retirando-se do princípio da soberania nacional todos os seus
corolários (com a passagem do governo representativo clássico à
democracia representativa). Do que se trata é ainda, para tornar efetiva a
tutela dos direitos fundamentais, de reforçar os mecanismos de garantia da
Constituição; e daí a afirmação de um princípio da constitucionalidade
303
Dessa forma retomamos a crítica de que o Direito se limita à regra simples de que o direito de propriedade de
uns poucos implica no dever de aceitação de todos os não-proprietários.
304
Tanto na forma do Estado Paralelo, quanto sob a bandeira do Estado Nazi-fascista.
305
Nenhuma pretensão de direito ficará sem resposta jurídica – donde o suposto mandado de injunção.
306
Visto como reserva das garantias, liberdades e direitos individuais (chamados, propositalmente, de
fundamentais).
307
Em outro momento, analisamos como sendo o Estado Democrático de Direito Social. Mas, para Jorge Miranda,
trata-se de uma segunda fase do Estado Constitucional (2002, p. 53).
315
acrescido ao princípio da legalidade da atividade administrativa e a
instituição de tribunais constitucionais ou de órgãos análogos. Para já,
diga-se apenas que as Constituições que servem de diretriz são a mexicana
de 1917 e, sobretudo, a alemã de 1919 (chamada de Constituição de
Weimar) e que, entre as Constituições vigentes que as seguem, reporta-se à
italiana de 1947, à alemã de 1949, à venezuelana de 1961, à portuguesa de
1976, à espanhola de 1978 e à brasileira de 1988308 (Miranda, 2002, p. 53 grifos nossos).
Pois é exatamente esta transmutação do Direito egoísta em Direito global o que não
ocorre no Estado de (não)Direito. Trata-se, então, de uma ação possível e que pudesse ser
interposta como garantia do próprio Direito requerido (as garantias institucionais do Direito), a
exemplo dos remédios jurídicos: essa seria a fase ativa e corresponderia à consciência do Direito
para si 309. Ou seja, a transposição do meu direito de requerer em favor do nosso direito de agir;
do maniqueísmo clássico (Direito-dever) ao pluralismo (Direito-garantias); da gramatura
(formalidade) e da ranhura (históricas) à gramática (a escrita do novo direito) e às gravuras
universais do direito; da (in) consciência do Direito em si à (cons) Ciência do Direito para si.
Dessa forma, ainda deveremos ler o artigo 144 da Constituição Federal (ordem e
segurança pública) de acordo com um horizonte ampliado, mas que hoje ainda é dado como
mero reflexo de um tipo de Estado Hobbesiano310 (com um significado nem tão atual311).
Sobretudo porque a chamada Ordem Pública requer exatamente o direito de consentimento e não
a mera acomodação cega às instituições – ou, mais simplesmente, porque não há República
possível sem consciência inevitável. Esta que seria a consciência inevitável e criada pelo direito
de consciência e não só pelo dever de obediência.
Assim é que na opulência do Poder Absoluto, presente no Estado de (não)Direito, não
há terreno viável para essa consciência possível da Justiça. Na melhor tipologia de um Estado de
Direito Injusto, acaba se tornando Estado de não-Direito quando aplica a lei injustamente,
persecutoriamente. Será Estado de não-Direito quando regular a abordagem e a implicação
institucional de forma desnivelada entre amigos e inimigos, quando estiver em vigor a máxima
de aos amigos, tudo; aos inimigos a lei! Isto se verifica porque, em nome da institucionalização
do Poder Político, perdeu-se de vista a legitimidade popular que deveria ser auferida à aplicação
do Direito e à consecução da Justiça Social. É como se disséssemos que se perdeu a mobilidade
do Direito, pois suas raízes mais sociais estão soterradas por um imenso processo de
burocratização e de despersonalização.
O Estado de (não)Direito desconhece a legitimidade normativa, se entendermos que esta
legitimidade advenha da cultura da vida em sociedade e não unicamente das estruturas oficiais
do Estado. No caso, é óbvio que estaríamos tratando de um Estado Leviatã. Neste caso, os
adversários políticos são tratados como inimigos de Estado e esta não deixa de ser uma
característica do chamado Estado Total. Vemos como o lado positivo do direito (da “negação da
308
Trata-se de uma adaptação livre do português luso ao português nacional.
Outra clara evidência de que não se trata do Direito como mandamento e sim da consciência do Direito – o que é
bem diferente da afirmação de que ninguém pode alegar ignorância da lei (uma aberração, se pensarmos que temos
milhões de leis).
310
Esse Estado Hobbesiano tem dois significados unificados em sua expressão maior: a) no ambiente descrito pelo
Estado Paralelo, estimula o estado de natureza; b) é um Estado Policialesco para a grande maioria da população
mais pobre.
311
Direito de mando; dever de consentimento/obediência.
309
316
negação” do Direito) pode ser reformado/transformado num eficiente Direito Proposto, projetivo
de uma sociedade mais justa e igualitária – tal qual previsto pelas promessas do Estado
Democrático de Direito Social. Por fim, em uma demonstração mais simplificada, ainda
podemos dizer:
A premissa política312 da finalidade organizativa do Estado de Direito assegura que:
 o poder político deve estar conformado segundo as medidas do Direito313
 o governo dos homens é um governo sob leis e por meio de leis
(direitos — garantias — liberdades314)
De certo modo, o objetivo maior é desconstruir o conceito exposto de Estado de nãoDireito, ou seja, afirmar uma certa condição popular. Nessa tentativa de síntese,
podemos/devemos reconstruir o conceito de Estado de Direito sob um prisma mais popular,
cultural e atuante. Quando o Poder Político não encontra limitações éticas facilmente se converte
em Estado de Sítio.
312
Destaca o raciocínio e a argumentação que tenha validade lógica, portanto, que seja verdadeiro.
É o caso de se afirmar, mais uma vez, a condição democrática desse pressuposto: “Estado de direito é
democrático e só sendo-o é que é Estado de direito; o Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é
democrático” (Canotilho, s/d, p. 230).
314
Quanto à reserva das garantias na Constituição Portuguesa, Canotilho ainda dirá que: “acrescente-se a isto o
regime garantístico dos direitos, liberdades e garantias [...] o direito de acesso aos tribunais [...] a reserva de lei em
matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias [...] No seu conjunto, estes princípios e regras concretizam a
ideia nuclear do Estado de direito – sujeição do poder a princípios e regras jurídicas -, garantindo às pessoas e
cidadãos liberdade, igualdade perante a lei e segurança” (s/d, p. 231 - grifo nossos).
313
317
ESTADO DE DIREITO E GOVERNABILIDADE
O poder regulado pelo Estado de Direito terá (ou não) condições de
governabilidade. No Estado Liberal, por exemplo, o poder é menos disciplinado do que no
Estado Desenvolvimentista ou de fundo socialista.
Inicialmente, entendemos o Estado de Direito como o conjunto de regras que
disciplinam o poder e a vida comum do homem médio. Também em resumo, diz-se que a
Governabilidade representa o conjunto de condições que margeiam e determinam o exercício
do poder. Isto é, o Estado de Direito interfere, regulariza, juridicamente, as condições de
governabilidade.
Atualmente, mesmo que sob o modelo liberal-conservador, a análise da estreita relação
entre Estado de Direito e governabilidade tem de considerar que o papel do cidadão no século
XXI – após longo aprendizado no século anterior – é decisivo e legitimador. Este é um dos
desafios do chamado Poder atual, aquele que os atores políticos já efetivaram (independente de
sua legitimidade). Chamado de cidadão governante (Canivez, 1991), está no próprio nome o grau
de legitimidade que se auferiu para o presente-futuro.
No texto, o objetivo geral será definir e relacionar o conceito de Estado de Direito à ideia
de governabilidade, contudo, a democracia e a cidadania serão tomadas como garantias desta
capacidade de gerir o Poder Político, como governabilidade institucional. De modo geral, sem
prever os momentos de exceção histórica, pode-se verificar que o Estado de Direito é condição
ou prerrogativa da governabilidade.
Estado de Direito
O que é Estado de Direito?
Pode-se definir o Estado de Direito como conjunto de regras do poder e de normas
jurídicas de caráter universalista. Normas de contenção do poder (atribuindo-se direitos aos
cidadãos), mas também normas de regulação e de controle social (o direito de um não pode ferir
o direito de outrem). Também podemos dizer que o Estado de Direito estabelece limites à relação
entre liberdade e poder.
Na estrutura clássica do racionalismo, desde Hobbes, o Estado de Direito é uma
racionalização das subjetividades políticas. É esta “reta razão” que converteu a “necessidade
natural” em organização política: “Existe um paralelo entre o estado natural ou estado de guerra
e o estado de linguagem ou estado racional, depois entre o estado de linguagem e o estado de
direito ou estado civil” (Angoulvent, 1996, p. 26).
A reta razão implica no uso do cálculo racional (objetividade, previsibilidade) orientada
pelo concatenamento que há entre premissas e conclusão (lógica formal). No caso específico,
trata-se da aplicação da racionalidade à política, a exemplo da própria Razão de Estado. Também
se fala de uma soma-zero, como uma equação do poder, em que, para um ganhar, o outro tem de
perde. Logo, na relação de poder, como conquista, não há a figura do Outro (como se a
autoridade do poder aniquilasse a alteridade social, moral).
Enfim, como se depreende de Hobbes, é possível articular a moral à política (com lógica)
– novamente, esta é a Razão de Estado. Esta foi a responsabilidade atribuída à engenharia
jurídica do século XIX, primeiro como segurança do Estado e do governo e, só depois, mais
acentuadamente a partir da Constituição de Weimar, como conquista da cidadania.
A expressão Estado de Direito foi cunhada pelo jurista alemão Robert von Mohl, no
século XIX, ao procurar sintetizar a relação estreita que deve haver entre Estado e Direito ou
318
entre política e lei. Segundo o jurista português, por oposição a Estado de(não)Direito, podemos
entender o Estado de Direito como o Estado propenso ao Direito:
Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização políticoestatal cuja atividade é determinada e limitada pelo direito315. ‘Estado de
não direito’ será, pelo contrário, aquele em que o poder político se
proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos
indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito
(Canotilho, 1999, p. 11 – grifos nossos).
Se o Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-estatal cuja
atividade é determinada e limitada pelo direito, então, é claro que se estabelecem limites à
governabilidade, ao exercício do Poder Político, por meio do direito que já se infiltrou,
internalizou nas entranhas e em todo o contorno do poder de Estado. Enfim, não há poder que o
direito desconheça e que se preste a sua regulação. Em uma frase simples, podemos definir
Estado de Direito a partir da estrutura estatal em que o poder público é definido/limitado ou
controlado por uma Constituição. Portanto, há uma maior judicialização do poder político.
Também inicialmente, podemos afirmar que seus principais elementos são:
a) IMPÉRIO DA LEI: quer dizer que a lei deve ser imposta a todos, a começar do Estado –
o Estado tem personalidade jurídica e por isso é objeto do Direito que ele próprio produz.
b) SEPARAÇÃO DOS PODERES: significa que o Poder Executivo não pode anular o
Poder Legislativo, além do que deve ser acompanhado e julgado pelo Poder Judiciário –
trata-se de assegurar a interdependência dos poderes por meio da aplicação do sistema de
freios e contrapesos.
c) PREVALÊNCIA DOS DIREITOS INDIVIDUAIS FUNDAMENTAIS: refere-se
notadamente aos direitos individuais, até os anos 20 do século XX, porque somente nesse
período é que entraram em cena os direitos sociais e coletivos.
No entendimento de Miguel Reale:
Por Estado de Direito entende-se aquele que, constituído livremente com
base na lei, regula por esta todas as suas decisões. Os constituintes de
1988, que deliberaram ora como iluministas, ora como iluminados, não
se contentaram com a juridicidade formal, preferindo falar em Estado
Democrático de Direito316, que se caracteriza por levar em conta também
os valores concretos da igualdade (Reale, 2000, p. 37).
Nesta passagem, Reale acentua diretamente a necessidade de abordarmos temas
espinhosos como o da personalidade jurídica do Estado - do que decorre, por exemplo, a citada
regra da bilateralidade da norma jurídica.
315
O Estado de Direito é a própria regulação jurídica do Poder Político – como regra da bilateralidade da norma
jurídica (propensa ao cidadão e ao Estado) –, isto é, equivale ao direito interposto à governabilidade.
316
Sabe-se que nossa inspiração veio do constitucionalismo português, da inversão da denominação lusa do Estado
de Direito Democrático. O direito democrático é a garantia necessária ao poder democrático e não o contrário. A
crença no direito, como regulação do Poder Político, portanto, é acentuada, como se o direito se sobrepusesse à
política.
319
Já para Bobbio, para melhor conceituar Estado de Direito, é preciso distinguir entre: 1.
Limites dos poderes do Estado; 2. Limites das funções do Estado. Esta divisão nos ajudaria a
compreender algumas diferenças entre liberalismo e Estado de Direito:
O liberalismo é uma doutrina do Estado limitado tanto com respeito aos
seus poderes quanto às suas funções. A noção corrente que serve para
representar o primeiro é Estado de direito; a noção corrente para
representar o segundo é Estado mínimo [...] Enquanto o Estado de direito
se contrapõe ao Estado absoluto entendido como legitibus solutus, o
Estado mínimo se contrapõe ao Estado máximo: deve-se, então, dizer que
o Estado liberal se afirma na luta contra o Estado absoluto em defesa do
Estado de direito e contra o Estado máximo em defesa do Estado
mínimo, ainda que nem sempre os dois movimentos de emancipação
coincidam histórica e praticamente (Bobbio, 1990, p. 17-8).
O Estado mínimo317 aqui definido pode ser entendido como a antítese do máximo de
concentração de poder no Estado – além da diminuição da intervenção na área econômica como
temos hoje em dia. Mas, analisemos melhor a questão do controle ou do excesso de poder:
Por Estado de direito entende-se geralmente um Estado em que os
poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais
ou constitucionais) e devem ser exercidos no âmbito das leis que os
regulam, salvo o direito do cidadão de recorrer a um juiz independente
para fazer com que seja reconhecido e refutado o abuso ou excesso de
poder. Assim entendido, o Estado de direito reflete a velha doutrina [...]
da superioridade do governo das leis sobre o governo dos homens,
segundo a fórmula lex facit regem (Bobbio, 1990, p. 18).
Bobbio ainda irá ressaltar que o Estado de Direito é entendido como a fase em que houve
a necessária positivação do chamado direito natural, mas com uma substancial defesa dos
direitos individuais. Vejamos:
Por outro lado, quando se fala de Estado de direito no âmbito da doutrina
liberal do Estado, deve-se acrescentar à definição tradicional uma
determinação ulterior: a constitucionalização dos direitos naturais 318, ou
seja, a transformação desses direitos em direitos juridicamente
protegidos, isto é, em verdadeiros direitos positivos. Na doutrina liberal,
Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos de
qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas
também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de
alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente, e
portanto em linha de princípio “invioláveis” (Bobbio, 1990, pp. 18-19).
Em Bobbio, também vemos algumas diferenças entre o Estado em sentido forte (Estado
Constitucional), Estado em sentido fraco (Estado não-despótico: governo das leis) e Estado em
sentido fraquíssimo (a partir de Kelsen, com a máxima resolução do Estado no Direito, no
317
Não se refere ao Estado Neoliberal, como ausência de participação estatal na área social e econômica.
Sob esse sentido estrito, talvez o melhor fosse dizer que houve uma progressiva constitucionalização dos direitos
políticos.
318
320
sentido de que todo Estado é Estado de Direito). O mais importante, no entanto, é que Bobbio
destacará os mecanismos de controle e de juridicidade do poder do Estado:
Do Estado de direito em sentido forte, que é aquele próprio da doutrina
liberal, são parte integrante todos os mecanismos constitucionais que
impedem ou obstaculizam o exercício arbitrário e ilegítimo do poder e
impedem ou desencorajam o abuso ou o exercício ilegal do poder. Desses
mecanismos os mais importantes são: 1) o controle do Poder Executivo
por parte do Poder Legislativo; ou, mais exatamente, do governo, a quem
cabe em última instância o Poder Executivo, por parte do parlamento, a
quem cabe em última instância o Poder Legislativo e a orientação
política; 2) o eventual controle do parlamento no exercício do Poder
Legislativo ordinário por parte de uma corte jurisdicional a quem se pede
a averiguação da constitucionalidade das leis; 3) uma relativa autonomia
do governo local em todas as suas formas e em seus graus com respeito
ao governo central; 4) uma magistratura independente do poder
político319 (Bobbio, 1990, p. 19).
As garantias institucionais dos direitos constitucionais constituem os melhores
mecanismos de frenagem do poder e de garantia da liberdade – neste caso, as garantias referentes
à liberdade negativa. Como analisa Bobbio:
Os mecanismos constitucionais que caracterizam o Estado de direito têm
o objetivo de defender o indivíduo dos abusos do poder. Em outras
palavras, são garantias de liberdade, da assim chamada liberdade
negativa, entendida como esfera de ação em que o indivíduo não está
obrigado por quem detém o poder coativo a fazer aquilo que não deseja
ou não está impedido de fazer aquilo que deseja [...] nas relações entre
duas pessoas, à medida que se estende o poder (poder de comandar ou de
impedir) de uma diminui a liberdade em sentido negativo da outra e,
vice-versa, à medida que a segunda amplia a sua esfera de liberdade
diminui o poder da primeira (Bobbio, 1990, p. 20).
Destacamos, por fim, que esta apresentação do Estado de Direito, como o faz Bobbio, é
uma interpretação de fundo liberal (aliás, o próprio título do livro já identifica: Liberalismo e
Democracia), com suas vantagens, mas também com suas limitações ideológicas e até
jurídicas320. Contudo, há toda uma dinâmica social, condição intelectual de época que precisam
ser observadas. Além do instituto jurídico podemos/devemos ressaltar que o Estado de Direito
propenso à governabilidade é daquele tipo que se organiza em torno da democracia participativa
e da cidadania plena/inclusiva.
Inicialmente, entendemos como parte da condição de que a democracia deve ser a
sustentação do poder, tal como o poder do governante é submetido às mesmas regras
democráticas, constituindo-se em crime de responsabilidade política (suspensão ou perda dos
direitos políticos) o agir independente do que dispõem os cânones da democracia. O governante
deve se eleger por meio dos regulamentos da democracia, mas, uma vez eleito, não pode
319
Hoje, certamente, poderíamos falar da necessidade desses dados e de uma imprensa livre, crítica e investigativa.
Foi este o sentido que desenvolvemos na dissertação Estado de (não)Direito: quando há negação da Justiça
Social, da Democracia Popular, dos Direitos Humanos (Martinez, 2010).
320
321
dispensá-los, sob pena de perder o mandato, pois, a democracia é instrumento e fim, e não mero
meio ou regra de obtenção do poder (nem mesmo sob a alegação de uma tirania da maioria).
É, assim, a mais fundamental regra de sustentabilidade do poder (limitando-se,
justificadamente, os recursos do realismo político) e não simples recurso de ascensão ou
legitimação semântica daqueles que detêm o poder: não haveria, dessa forma, a mínima
condição de se eleger pelas vias democráticas e, em seguida, transformar-se em déspota,
alegando-se a mesma sustentabilidade do poder. No Brasil, não há previsão constitucional
específica, nesse sentido, mas é possível pensarmos em cominar abuso de poder atentatório ao
Estado Democrático de Direito (art. 5º, XLIV da C.F.) com ato lesivo à probidade administrativa
(art. 37, § 4º da C. F.).
Aliás, pode-se afirmar que o Estado de Direito é uma forma de governabilidade,
especialmente sob a democracia, uma vez que pode ser definido como o governo das leis versus
o governo dos homens (quando predomina a política).
Governabilidade
O que é governabilidade?
Como instância organizativa, operativa, pode-se dizer que a governabilidade é a
capacidade político-jurídica, institucional e administrativa que o Estado (Poder Político) e seu
governo de momento encontram para efetivar as políticas públicas (como atos decisivos do
poder), entendendo-se este como a capacidade de organização do poder de acordo com as
relações conjunturais entre o próprio Estado e a sociedade. Implica, portanto, no conjunto de
condições globais, sistêmicas, necessárias e determinadas ao exercício do poder. Governança é a
capacidade de executar as medidas já fixadas anteriormente (ou tomadas) na ação de
governabilidade. Por isso, a governabilidade é o exercício do Poder (regulado pelo Estado de
Direito) em determinadas condições objetivas extraídas da relação entre Estado e sociedade. No
contexto da Constituição Federal de 1988, trata-se de avaliar a governabilidade de acordo com o
Princípio Democrático e sua disposição inerente à salvaguarda dos direitos da cidadania.
Princípio Democrático
Retomaremos o sentido de governabilidade amparado pelo Princípio Democrático, como
expresso pelo jurista português: O princípio democrático é um princípio normativo que atua
como impulso dirigente de uma sociedade, como se fosse um processo de continuidade
transpessoal, irredutível a qualquer vinculação do processo político a determinadas pessoas.
Ainda oferece aos cidadãos a possibilidade de desenvolvimento integral, liberdade de
participação crítica no processo político, condições de igualdade econômica, política e social
(Canotilho, s.d, p. 286 e ss.). O Estado de Direito é o governo das leis. Ainda com Canotilho (s/d
p. 286 e ss.), é preciso reforçar dois aspectos interligados entre política e direito: em primeiro
lugar, acolhe os mais importantes postulados da teoria democrática; em segundo lugar, implica
na democracia participativa. E aqui ainda se desdobra em sentido e alcance:
 Estruturação de processos
1. Efetivar possibilidades de apre(e)nder a democracia
2. Participar nos processos de decisão
3. Exercer controle crítico na divergência de opiniões
4. Produzir inputs político-democráticos
 Exercício democrático do poder
1. Participação democrática dos cidadãos
2. Reconhecimento constitucional da participação direta e ativa
3. Consolidação do sistema democrático
322
4. Aprofundamento da democracia participativa
Como Princípio jurídico-constitucional, a democracia tem dimensões materiais e
dimensões organizativo-procedimentais:
1. Normativo-substancialmente
 Condiciona a legitimidade do domínio político à persecução de
determinados fins
 Realiza determinados valores e princípios
 Prevalece a soberania popular, garantia dos direitos fundamentais,
pluralismo de expressão e organização política democrática
2. Normativo-processualmente
 Legitimação do poder deve observar regras e processos.
Subentende-se que os direitos fundamentais têm uma função democrática, e isto ainda
nos revela que:
(1) Significa a contribuição de todos os cidadãos para seu exercício (princípiodireito da igualdade e da participação política).
(2) Implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade
desse exercício (o direito de associação, de formação de partidos, de liberdade de
expressão, são, por exemplo, direitos constitutivos do próprio princípio
democrático).
(3) Co-envolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos
sociais, econômicos e culturais, constitutivos de uma democracia econômica,
social e cultural.
Por sua vez, os direitos fundamentais atuam:
1. como direitos subjetivos de liberdade criam um espaço pessoal contra o
exercício de poder antidemocrático;
2. como direitos legitimadores de um domínio democrático asseguram o
exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização;
3. como direitos subjetivos a prestações sociais, econômicas e culturais
constituem dimensões impositivas para o preenchimento intrínseco
direitos.
Portanto, o princípio democrático aponta, no sentido constitucional, para um processo de
democratização extensiva: a democracia é, no sentido constitucional, garantia pela à
democratização da democracia. Realce-se, portanto, esta dinâmica dialética entre os direitos
fundamentais e o princípio democrático. Pois bem, por este modelo de Estado Democrático,
especialmente no pós-Segunda Grande Guerra, propôs-se positivar os meandros, os meios de
mudança e de transformação do antigo Estado de Direito Liberal. Por isso, ainda devemos
assegurar as regras do jogo democrático. No caso de Espanha e Portugal, a década de 1970, com
a finalização dos regimes autoritários e a revisão constitucional, seria de especial escolha para
entender a análise.
Já no sentido mais liberal da discussão, Denis Rosenfield (1992, p. 32), comentando o
livro Qual Socialismo, de Bobbio (2002b), sintetiza as regras do jogo da seguinte maneira:
“...regras estas que se caracterizam pela rotatividade do poder, pelo sufrágio universal, pelo
323
respeito às decisões da maioria, pela defesa dos direitos da minoria...” (grifos nossos).
Entretanto, para além das regras do jogo (imprescindíveis, mas não suficientes), o Estado
Democrático tem de ser real, efetivo, não apenas formal ou eficaz; tem de ser político e social, e
não apenas jurídico, dogmático ou doutrinário. Em resenha do filósofo italiano Antonio Negri –
ao livro Qual Socialismo? – lemos que:
Se tudo que dissemos for verdade, segue-se que o pensamento jurídico e
político de Bobbio beira (ou talvez decididamente pertença a) mais uma
variedade das teorias da 'razão de Estado': uma teoria do Estado que não
é ameaçador, despojado de toda ressonância germânica, e que no entanto
re-impõe-se como uma razão de Estado revisada e como uma teoria de
democracia talmúdica. Para salvar o Estado e para manter um mínimo de
democracia, Bobbio nos diz que: "nós devemos, dada a falta de
alternativa, defender as regras do jogo: democracia formal, apesar de suas
falhas e contradições, ou seja, sua garantia do direito à liberdade, eleições
periódicas através do sufrágio universal, governo de maioria, ou como
quer que o mesmo seja interpretado de parte a parte. Todas as demais
promessas a respeito da soberania popular, igualdade, transparência do
poder, equidade etc, são simplesmente promessas excessivas e vãs que
não poderiam ser cumpridas... Em outras palavras, vamos ficar com essa
democracia pelo que ela é, um mal menor. Portanto não podemos fazer
mais do que um apelo a certos valores, tais como os ideais de tolerância e
de fraternidade, aquela fraternidade que une todos os homens num
destino comum, ainda mais compulsoriamente hoje, dada a ameaça das
armas nucleares"321.
Para Bobbio, por exemplo, em sua definição, é essencial esta parte procedimental da
democracia. Contudo, já em Aron (no livro Estudos políticos), a definição teoricamente alcança
a todos, mas historicamente é incompleta. Não sendo uma democracia permanente, o sociólogo
acaba por priorizar a luta política organizada:
Uma tal definição da democracia — competição organizada dos
candidatos a exercer o poder, de tal forma que os vencedores
provisórios aceitam dar uma oportunidade aos adversários, alguns anos
depois, ficando o exercício do poder e a própria competição sujeitos a
regras precisas — deriva de J. Schumpeter, aceitas com variações
secundárias, pela maioria dos sociólogos ocidentais (1985, p. 306-7 –
grifos nossos).
É como se disséssemos que para os “perdedores” a democracia se restabeleceria “alguns
anos depois”, enquanto para os vencedores seria um processo permanente. Contudo,
perguntamos: pode-se registrar perdas na democracia quando os envolvidos são de fato
democráticos e quando o objetivo seria alcançar metas favoráveis ao povo? As minorias não
possuem nenhum tipo de salvaguarda jurídico-política? Veremos que as respostas a essas
questões são próprias da cidadania ativa.
Deve-se ressaltar, porém, que na descrição surge um ponto de singular importância para
essa discussão: é a possibilidade da rotatividade do poder, isto é, com a alternância dos
321
http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/3publ/90negri/.
324
mandantes, temos na verdade de um imperativo categórico do regime democrático. Por outro
lado, tais limites formais da definição de democracia e inserção da cidadania já poderiam ter sido
superados, inclusive pelo liberalismo. Pois, historicamente, já se produziu uma série de outros
conteúdos sociais322. O que impede sua absorção? Parece-nos que é o apego às formulações
clássicas, abstraídas de seu tempo. Em outros casos, nem mesmo a cidadania é tema de
referência. Basta-nos novamente o exemplo dado por Raymond Aron (em Da Condição
Histórica do Sociólogo), baseando-se no conceito de nação que empresta de Marcel Mauss — o
famoso sobrinho de Durkheim —, para se ver que o cidadão está fora de seu horizonte político:
Uma nação, escrevia ele, é por excelência a sociedade integrada pela
abolição de toda segmentação, clã, cidade, tribo, reino, domínios feudais.
Ela crê na sua língua, que ter seus comerciantes, seus juristas, seus
banqueiros, seus mestres, seus jornais, sua arte, ela quer criar para si uma
moral, uma tradição, um ensino, sinal da necessidade da verdadeira
independência, da total liberdade à qual aspiram tantas populações até
aqui desprovidas destes bens (1981, p. 20).
Nesse texto, juristas, comerciantes e banqueiros são os mestres da nação. Os profissionais
são exaltados, mas é como se o cidadão não lhes tivesse aparecido nenhuma vez — nem mesmo
para encomendar seus serviços. É certo que o cidadão e a nação não nascem sob um contexto
estritamente correlato, mas quando Aron comenta as observações de Mauss o cidadão já era fato
presente. Quando o próprio Mauss desenvolve seu ensaio, o cidadão bem que poderia ser um de
seus leitores. Evidentemente que tal omissão não é proposital — quando se trata do liberalismo
—, uma vez que, em outro momento, Aron abordará o tema. Mas revela a noção generalizada de
que não é necessário aprofundar a discussão. O que, aliás, não é o pior dos pecados do
liberalismo, porque também o marxismo não lhe dedica muita atenção. Umberto Cerroni –
pesquisador do marxismo e preocupado com a elaboração de uma “ciência política marxista” e
“democracia socialista” (Bobbio, 1987, p. 21) – em (Política...) seu dicionário e/ou manual de
ciência política (1992, p. 9) sequer menciona no índice, ainda que como intertítulo, os conceitos
de cidadão e/ou cidadania. Ralf Dahrendorf (em A nova liberdade), faz a defesa de um
liberalismo participativo e para tanto, há várias fórmulas. Dentre as quais, emprega a que
apresenta a noção de cidadão como indivíduo crítico: “O que precisamos para converter o
potencial de sociedades avançadas em realidade é um público político geral, que permita a
indivíduos críticos expressarem sua impaciência e seu desejo por liberdade num mundo novo”
(1979, p 35). Porém, Dahrendorf, ao invés de avançar esta noção, parte do conceito legal e aqui
não se sabe muito bem qual é a participação dos indivíduos críticos.
Pois, sabe-se perfeitamente que estes indivíduos podem ter seus direitos políticos e
sociais suspensos. E o direito, por definição, não é crítico — sendo antes, uma disciplina
axiológica. O que por sua vez pode não assegurar a validade de tal status legal, uma vez que:
“Os direitos legais dos cidadãos têm de ser suplementados, primeiro, por direitos políticos, que
incluem o direito de associação tanto quanto o de sufrágio, depois por direitos econômicos e
322
Eric J. Hobsbawm (em Mundos do Trabalho) comenta o paradoxo que há entre o tratamento individualista dado
pela lei e o fundamento político universalista, imposto pelos movimentos operários: “Mais do que qualquer outra
força, o movimento operário ajudou a romper a camisa-de-força individualista de natureza político-jurídica, que
confinava os direitos humanos do tipo da Declaração francesa e da Constituição norte-americana [...] Se a
Declaração das Nações Unidas inclui direitos econômicos, sociais e educacionais — e ao fazê-lo aproxima-se mais
de Tom Paine do que de Madison —, este fato se deve primordialmente à intervenção histórica dos movimentos
operários.” (1988, p. 426).
325
sociais que dão às pessoas um mínimo de garantia de status” (Dahrendorf, 1979, p. 35). Mas
também Bobbio (et.al.) em seu Dicionário de Política, que reúne mais de 1.300 páginas, não
reserva um verbete sequer aos conceitos de cidadania ou de cidadão. Um problema sério, por
conseguinte — não só deste liberalismo de que Aron faz parte —, é o limite curto das propostas
de democracia e cidadania como garantias da governabilidade. Justamente porque há uma
estreiteza de possibilidades para a grande maioria dos cidadãos323. Canivez (1991) empresta de
Weil (1979) o termo governante potencial para caracterizar o cidadão moderno e para defender a
ideia de que, na democracia moderna, o cidadão não pode se contentar em depositar o voto a
cada quatro anos como afirmava J. Schumpeter, e como se queixava Marx (1979)324.
Schumpeter e as regras do jogo
Schumpeter procurou definir a democracia de modo simples, como se procurasse por
uma fórmula diretiva, que sintetizasse sua dinâmica na realidade da imensa maioria dos países
ocidentais: organizar eleições e trocar os mandantes a cada quatro anos. Como se sabe, as
tentativas de sistematização raramente são frutíferas, porque a realidade é sempre mais complexa
do que a nossa percepção. Contudo, todo esforço de racionalização é benéfico por buscar
esclarecimento. Uma das limitações das racionalizações em Teoria Política se refere a não
apreender todas as potencialidades envolvidas. Exatamente neste sentido, pode-se dizer que a
política do real é, antes, uma potencialidade, tanto mais aberta quanto maior o número de opções,
atores e sujeitos envolvidos. Da escolha se faz o novo: a política do real é a arte da criação e da
expansão. Daí também se poderia concluir que o processo eleitoral será tanto mais democrático
quanto maior a possibilidade de escolha e maior a participação dos atores sociais envolvidos (a
fórmula de Schumpeter levada ao sem limite). E o que garante a subsunção da violência, inerente
ao realismo político, num novo contrato mais tolerante?
Este propósito de regulação da democracia ainda reforça a tese geral da governabilidade e
nos aproxima da cidadania, como governabilidade democrática. Num sentido bastante
genérico, pode-se dizer que em torno da questão da cidadania se alinham duas correntes: a
“legalista” e a “ativa”. A primeira, define-a abstratamente, juridicamente, como “a somatória dos
eleitores que dispõem de direitos e deveres”. O que a esvazia de seu caráter conflituoso,
participativo e até violento. A segunda, ao contrário, privilegia o aspecto da conflituosidade e até
da violência (principalmente o que se evidencia na luta de classes, entre grupos privados, entre o
público e o privado). Não pressupõe um cidadão conformado e ausente, mas ativo e de
participação constante. E uma vez que participe entrará em conflito com outros valores e
interesses, configurando a “cidadania ativa”. Em torno dessa linha de ação desfilam autores das
mais diversas correntes e pontos de vista, como vemos em Bobbio e Sorel. O conceito de
323
Também definido como liberal, Ralf Dahrendorf diz da necessidade de uma segurança social mínima, ou seja,
acaba admitindo a desigualdade na base da cidadania: “Por outras palavras, nada há intrinsecamente errado sobre as
desigualdades de renda, de status adquirido em qualquer sentido. É verdade que a cidadania efetiva requer a criação
de uma rede de segurança abaixo da qual a ninguém é permitido cair, na verdade um status comum básico; é
também verdade que a cidadania requer a diminuição do status daqueles poucos cujas fortunas, com frequência
herdadas, permite-lhes ameaçar os direitos de cidadania dos outros; mas há, e precisa existir, muito espaço entre o
chão comum dos direitos e o teto comum do poder privado.” (1979, p 43).
324
A história da política brasileira é marcada por essa corrida ao sufrágio, principalmente em relação ao Executivo.
Weffort (em O Populismo na Política Brasileira) analisa a política de 45: “Trata-se, com efeito, de uma situação
em que a expressão política popular é, no essencial, individualizada através do sufrágio (fenômeno que se associa a
estas duas outras características da política brasileira, a hipertrofia dos executivos e o elevado grau de
personalização do poder governamental) [...] Do mesmo modo, era manifesto que a participação eleitoral das massas
se orientava predominantemente para os pleitos executivos: como diria Marx, o Presidente ‘é o eleito da nação e o
ato de sua eleição é o trunfo que o povo soberano lança uma vez em cada quatro anos’.” (1980, p. 21).
326
cidadania ativa não requer necessariamente o voto direto, isto é, a democracia direta como se
verificava na Grécia antiga. Requer antes de tudo a participação, como se vê com G.D.H. Cole
(em La organización política):
Na Grécia clássica, a cidadania ativa, e não meramente passiva, era
considerada como um dever normal e um privilégio de todos e de cada
um dos cidadãos; e a consciência política aparecia amplamente
difundida na comunidade inteira, a qual considerava a atividade pública
um de seus interesses mais constantes e agudos (1987, p. 14).
A consciência pública é o traço distintivo entre a cidadania ativa dos “antigos” e a
consciência dos direitos individuais do cidadão moderno. Entre os modernos, a cidadania é
resgatada por Sorel na primeira década deste século e sua teoria previa um cidadão ativo, além
do mero eleitor. Procurava ultrapassar a tese do “um voto para cada homem” do liberal John
Locke. É bom ressaltar que não há cidadão sem uma formação social, e nem cidadania sem
garantias de direitos. Porém, pode-se depositar certo peso em um ou outro aspecto. O que
decorre da visão política específica que cada um tenha. Portanto, diz-se ativa porque a cidadania
deve ser constante e não temporária, como prevê Schumpeter com sua fórmula de “organizar
eleições a cada quatro anos”. Isto é, uma ação consciente que desvela o estado anterior da
passividade. Entretanto, toda democracia e cidadania precisam ser esclarecidas, dimensionadas,
reguladas, como nos diz Javier Villate e ainda que contrariamente a todo o pensamento até aqui
desenvolvido (por e-mail):
Soy partidario de una democracia participativa, pero este término tiene
acepciones muy diversas. Algunos acercan esta concepción a la
democracia directa o a una concepción del hombre como ser
esencialmente político, considerando que es la esfera política la propia de
un individuo liberado. Yo no estoy de acuerdo. Hay quienes reducen la
democracia a un mecanismo de mercado: elección por parte del pueblo
de unos candidatos que compiten por sus votos, es decir, un mecanismo
de selección de las élites. Es la idea de Schumpeter. Esta concepción, por
cierto, refleja bastante bien la realidad actual, pero no es admisible como
un ideal. En el otro extremo, hay quienes operan una reducción de signo
inverso, reduciendo la democracia a un mecanismo puramente político.
Antes he dicho que la democracia es un sistema de gobierno y nada más.
Y ahora parece que me contradigo. Pero lo que digo es que la
democracia es un mecanismo político para tomar decisiones COMO
PARTE del conjunto de interacciones sociales que desarrollamos, sin
privilegiar su esfera por encima de otras. O dicho de otra forma, la
esfera política no es, como quería Arendt y los participacionistas, la
esfera donde se realiza la libertad del hombre, sino un mecanismo de la
sociedad para tomar decisiones. La plena realización del hombre precisa
de la ACCIÓN (la "vita activa" de Arendt) en el conjunto de las esferas
que conforman la sociedad. Y el cemento de esa acción diversa en
diversas esferas es la moral. La política, la democracia y la participación
son herramientas, básicas y esenciales, pero herramientas al fin y al cabo.
Esto tampoco lo ha comprendido satisfactoriamente, en mi opinión,
Habermas. Obsesionado por el logro de un consenso, ha subordinado la
327
plural y diversa acción social al sistema político. Con otras palabras, ha
reducido la moral a la política. El objetivo no es lograr la participación
política de los individuos, sino el establecimiento de unas relaciones
sociales equitativas y cooperativas basadas en las libertades y la
justicia. Y esas relaciones tienen lugar en la escuela, la fábrica, el
centro de trabajo, el barrio, el mercado, la ciudad, la familia, etc.
Cuando nos volvemos conscientes de que debemos regular esas
interacciones sociales, nos convencemos de que debemos hacerlo a través
de la deliberación pública..., entonces entramos en la esfera política. Pero
no como un ideal o una obligación, sino como el resultado de la
conciencia de que debemos resolver colectivamente los asuntos públicos,
lo cual no deja de ser un mecanismo más. Hasta tal punto es un
mecanismo que no estamos (no debemos estar) dispuestos a sacrificarle
nuestras libertades individuales. No sé si me he extendido indebidamente,
pero he intentado explicar cómo entiendo la política y la participación
política y qué lugar le otorgo en una concepción más global del individuo
y la sociedad, que es, en última instancia e inevitablemente, una
concepción moral (grifos nossos).
Partindo-se da tentativa de ausência de juízo de valor, no sentido dado por Schumpeter,
também a democracia é a busca pela eficácia (jurídica) ou eficiência (social). Isto é, partindo da
eficácia (nem bom, nem mau, nem neutro, mas resultante do político), a democracia é o melhor
regime não porque a partir dela se destaque o melhor jogador (meritocracia), mas porque é o
melhor jogo político — com destaque para a fixação das regras do jogo (Bobbio, 1986). Alguns
dizem que é o menos pior, mas o importante é que se constitui num jogo eficaz para não
sucumbir e se diluir em formas autoritárias. Tal expectativa, na verdade, enfrentará uma série de
dificuldades conceituais e concretas. Canivez (1991) diz que a definição liberal de cidadania é
parte destes obstáculos, quando a define como portadora de direitos e deveres. Outra dificuldade
advém da própria motivação individual em participar da política, com ou sem eleição. Daí a
pergunta: será a educação política suficiente para se ultrapassar esses limites?
Democracia e igualdade
Será uma questão meramente educacional ou a simples definição formal de cidadania é
suficiente à necessidade de motivação política? Mesmo constatando a limitação da proposta
educacional, Canivez afirma a necessidade de uma educação voltada para um cidadão ativo e não
mais contemplativo do poder. Retomando a cidadania ativa, diz que há o momento da educação:
Porque a igualdade dos cidadãos implica a igualdade dos indivíduos em
relação ao saber e à formação. Surge enfim, a questão do tipo de
educação do cidadão assim definido. Essa educação não pode mais
simplesmente consistir numa informação ou instrução que permita ao
indivíduo, enquanto governado, ter conhecimento de seus direitos e
deveres, para a eles conformar-se com escrúpulo e inteligência. Deve
fornecer-lhe, além dessa informação, uma educação que corresponda à
sua posição de governante potencial (1991, p.31).
Na verdade, a cidadania ativa é marcada pelo Princípio Pedagógico, uma vez que,
aprende-se ao fazer política. Em todo caso, Canivez deixa claro que não se trata de educação
328
formal, de bancos escolares, mas pelo contrário, de uma educação engajada e direcionada à
formação deste cidadão, que deve ser não só ativo (governante potencial) como também ter
escrúpulos. Esta questão dos escrúpulos parece-nos apontar menos para uma orientação moral de
conduta do que para uma definição clara das regras em jogo. Para ser democrático o cidadão só
poderia alterá-las com a anuência dos demais. No projeto Iluminista, portanto, o Estado de
direito obedeceria à vontade geral.
Desse modo, conclui-se que o Estado de Direito (como poder legal) é legítimo se atua
como fim e objetivo do Estado, tomando-lhe como parte de sua substância, como conteúdo
integrado entre direito e política, e não como mero recurso prodedimental que adorna o Poder
Político. Em citação de Kant, vemos o imperativo moral do princípio da igualdade: “É justa toda
ação que queira estabelecer a coexistência da liberdade do arbítrio de cada um com a
liberdade de qualquer outro, segundo uma lei universal, ou cuja máxima permite essa
coexistência” (Alland, 2012, p. 710 – grifos nossos). Afinal, a liberdade deve ser preservada a
todo custo, a fim de que a própria legalidade seja sua maior expressão (simplesmente porque não
há legalidade, isonomia, na relação senhor-escravo). Ainda como nos diz Kant, pela doutrina do
direito, se há legitimidade, a coerção é necessária ao estabelecimento da norma jurídica:
Denomina-se doutrina do direito (ius) a soma daquelas leis para as quais
é possível uma legislação externa [...] O direito é, portanto, a soma das
condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de
outrem de acordo com uma lei universal de liberdade [...] Assim, a lei
universal do direito, qual seja, age externamente de modo que o livre
uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos de acordo
com uma lei universal, é verdadeiramente uma lei que me impõe uma
obrigação [...] Ora, tudo que é injusto é um obstáculo à liberdade de
acordo com leis universais. Mas a coerção é um obstáculo ou
resistência à liberdade [...] Portanto, ligada ao direito pelo princípio de
contradição há uma competência de exercer coerção sobre alguém que o
viola [...] o direito estrito se apóia no princípio de lhe ser possível usar
constrangimento externo capaz de coexistir com a liberdade de todos de
acordo com leis universais [...] Direito e competência de empregar
coerção, portanto, significam uma e única coisa [...] Analogamente, não é
tanto o conceito de direito quanto, ao contrário, uma coerção plenamente
recíproca e igual trazida sob uma lei universal e compatível com esta que
torna possível a exposição desse conceito (Kant, 2003, pp. 75-78 –
negritos nossos).
A diferença entre obstáculos ou ofendículos à liberdade e a coerção praticada pelo
Poder Público (ética como salus publica), ou seja, como limitação à mesma liberdade, decorre
da lógica de que, segundo Kant, a coerção corresponde à ética social já regulada e
positivada pelo Direito (como Lei Universal). De tal sorte, a indicação da liberdade (fazer ou
deixar de fazer) é dosada pela coerção que estabelece os limites e os parâmetros éticos
(costumeiros) da convivência social em determinado momento histórico e em cada sociedade.
Weber (1979) foi um atento leitor de Kant e isto fica claro em sua distinção ao assegurar que o
Estado detém o “monopólio legítimo da força física”, como fundamento de seu Estado Racional.
Assim, os limites éticos impostos pelos direitos de liberdade regulam e balizam a liberdade.
Portanto, a ética social postula por porções iguais e equilibradas de liberdade. Este equilíbrio
329
entre liberdade e igualdade é justo porque trata os iguais, igualmente; e, os desiguais,
desigualmente. Entrelaçamento que ainda nos revela a base filosófica e jurídica em que
convergem Justiça e Ética a fim de formar o Princípio da Isonomia. O que demonstra que
não se trata de uma educação política maquiavélica, no sentido de que as regras pudessem
emanar do poder soberano e de que o próprio escrúpulo seria por ele definido325. Apesar da
própria ação do cidadão ser regulada pelas regras estabelecidas anteriormente, restaria a dúvida
sobre a maneira como se formariam as próprias intenções do cidadão. O que faz a discussão
retornar ao âmbito da educação, pois, como diz Canivez, a informação e a instrução não são
suficientes. Por fim, há que se frisar esta articulação intrínseca entre política como participação,
educação e os requisitos da governabilidade, pois que se as regras são importantes – para o jogo
democrático – são ainda mais relevantes tanto a consciência quanto o consentimento popular ao
governo: como forma de equilíbrio do poder e mecanismos de mediação e efetivação da
governabilidade.
325
Vale ressaltar que se as normas devem ser democratizadas e não outorgadas pelo soberano, é porque — através
de um julgamento moral — os príncipes acabam por se corromper ainda mais. É o que se lê com Padre Antônio
Vieira (em Sermão do Bom Ladrão): “Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se Laterones.
E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamavam-se Latrones. E que seria se assim
como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa?” (1993, p. 39).
330
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO SOCIAL (revisão conceitual)
O chamado Estado Democrático de Direito, como adotado no Brasil, na CF/88, é uma
conjunção bastante clara do Estado de Direito e da democracia. Como resultante do processo
histórico do pós-Segunda Grande Guerra, tem na Constituição de Bonn (1949) a definição
democrática para a definição do Estado. Inicialmente, podemos resgatar o Estado de Direito que
assevera como princípios (cláusulas pétreas, no Brasil) o insuperável império das leis, assim
como destaca a necessária divisão do poder e o enunciado e as garantias dos direitos
individuais.
Democracia e Direito
Na luta pela limpeza do fascismo de Franco, na Espanha, e de Salazar, em Portugal326,
foram editadas as duas principais constituições europeias de consagração democrática, ética e
com impeditivos claros aos regimes autocráticos. Daí chegarmos a um Estado de Direito
Socialista, depois que este foi democratizado (2ª geração do Estado de Direito – quando se
assegurou a democracia entre as cláusulas pétreas). É como se fosse um caminho político
necessário, determinado, legítimo, independente, e previsto anteriormente, neste que seria o
curso histórico presente no ideal socialista. Portanto, as garantias institucionais serão também
garantias contra a degeneração do Estado de Direito, a produção social da injustiça institucional
e social, ou em desfavor da formação do Estado de não-Direito. O conceito de Estado
Democrático de Direito (como empregado usualmente no Brasil) deriva de uma
(re)interpretação do Estado de Direito Democrático327. Como se vê na Constituição Portuguesa:
Artigo 2.º
(Estado de direito democrático)
A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na
soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política
democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e
liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes,
visando a realização da democracia económica, social e cultural e o
aprofundamento da democracia participativa (ortografia original).
De acordo com Manuel Cavaleiro Ferreiro (1997), há uma relação mais orgânica,
estrutural entre Estado de Direito e Direitos Humanos. Para o professor português:
A positivação de direitos fundamentais torna-os mais precisos, e permite
a sua garantia pela força dos Estados, ou da sociedade internacional. Mas
a proliferação constante do seu número suscita novos problemas, em
especial o da sua coordenação e hierarquização. Qualquer novo direito
implica a limitação ou contenção de outro direito. A falta dessa
coordenação e hierarquia pode conduzir à diminuição da sua vitalidade,
326
No dia 25 de abril de 1974, teve início a conhecida Revolução dos Cravos, em Portugal. À meia-noite, uma
emissora de rádio tocou a música Grândula Vila Morena, e esta era a senha para a saída às ruas. Marcelo Caetano foi
deposto e o general Antônio de Spínola assumiu o poder. Para comemorar o fim da ditadura, o povo saiu às ruas e
distribuiu cravos (a flor nacional) aos soldados rebelados. O processo revolucionáro foi conduzido pelo Movimento
das Forças Armadas (MFA), composto por capitães que tinham participado na Guerra Colonial e que foram
apoiados por outros oficiais, estudantes e pessoas comuns. Em 1973, tiveram início reivindicações corporativistas
como a luta pelo prestígio das forças armadas e isto se estendeu ao regime político vigente.
327
Observe-se que no Brasil inverteu-se o sentido dos termos, de Estado de direito democrático, para Estado
Democrático de Direito. Em Portugal, entende-se que é preciso reforçar a atenção institucional à produção do direito
democrático; no Brasil, construiu o sentido de que um Estado democrático produz o direito que se requer.
331
ou ao abuso anárquico, que se traduz no pessimismo, hoje já tão
florescente, e em que os homens como as sociedades são frequentemente
vítimas do eufórico entrechoque dos seus direitos e funções [...] O direito
ao trabalho, à habitação, à cultura, à saúde, não são direitos que o Estado
deve respeitar; são missões ou tarefas que deve prestar. Mais do que
direitos do homem, são fins que o Estado se propõe ou deve propor.
Esses fins, avassalando cada vez mais a organização da sociedade e o seu
controle, soergueram e inflaram o Estado de tal guisa que já não é a
espontaneidade social que move ou pode mover, a não ser tímida e
brandamente, o Estado, mas o Estado que se arroga a onipotência de
modelar projetos de sociedade, de destruir a recriar instituições e
estruturas de vida coletiva (Ferreiro, 1997, p. 92-93).
A judicialização dos direitos sociais, portanto, deve impulsionar o Estado na busca da
prestação do serviço público e à sociedade como primeira interessada. Ainda com Bonavides
(1985):
O problema da “juridicização” dos direitos sociais se tornou crucial para
as Constituições do Estado Social. Cumpre, pois, na busca de uma
solução, observar toda essa seqüência: reconhecer a vinculação
constitucional do legislador a tais direitos, admitir que se trata de direitos
de eficácia imediata, instituir o controle judicial de constitucionalidade e,
por fim, estabelecer mecanismos suficientes que funcionem como
garantias efetivas de sua aplicabilidade (p. 347)328.
De certo modo, esse caminho constitucional já foi percorrido, mas apesar da CF/88
assegurar educação e saúde públicas, por meio das garantias sociais constitucionais (efetuandose a juridicidade) e ainda responsabilizar os maus gestores públicos, resolveu-se somente o
aspecto quantitativo do problema (ao invés do ensino público, obrigatório e gratuito, por
exemplo) e sem que discuta a qualidade de tais serviços (educação e saúde públicas de
qualidade). O problema, nesta ordem de argumentação, portanto, não se restringe a questões
teóricas, jurídicas, constitucionais ou dogmáticas, mas se dirigem sim aos movimentos e
sinalizações perpetradas pelo Estado. Assim, alegar que os direitos fundamentais perdem
efetividade em virtude do seu próprio florescimento (dos direitos individuais aos direitos
sociais) é superestimar questiúnculas jurídicas sem observar a realidade. É preciso, pois, arejar
pelo caminho da democracia, pela intensificação da participação popular, porque o Direito é,
antes de tudo, uma abertura produzida na estrutura estatal pelas demandas sociais. Como vimos,
o Estado Democrático de Direito é resultado de longas e profundas transformações históricas e
políticas, ao mesmo tempo em que deveria produzir, cotidianamente, uma cultura jurídica
baseada na mediação e na conciliação dos conflitos – especialmente os conflitos sociais, quando
se propõe a realização da Justiça Social.
O Estado Democrático de Direito Social deveria estar fortemente marcado pelo sentido e
pelo emprego do que se chama de ethos público: isto é óbvio, mas apenas em regimes de
governo realmente democráticos e republicanos, tanto na observância real do Estado de Direito
quanto na prática política derivada da verificação das regras mínimas do Estado Democrático.
Por isso, entendemos que o ethos público cria vínculos sociais efetivos e só assim, portanto,
328
É bom lembrar que o texto de Bonavides foi produzido às vésperas da Assembleia Nacional Constituinte.
332
haverá significado material no uso da expressão “Estado Democrático de Direito Social”. Como
se vê, só haverá alguma realidade na apreciação do conceito se a finalidade em destaque for a
própria sociedade e não o Estado no sentido formal e burocrático, tão presente na visão monista
do direito: como um fim em si mesmo e regulador de todo o Direito. Não há Estado Democrático
de Direito sem a vivência constante e natural da República, da mesma forma que o Estado
Democrático de Direito Social tem uma finalidade social estampada em sua origem: a sociedade
é sua marca registrada e não uma Razão de Estado petrificada em laços de sangue
nacionalistas329. Nas bases históricas do Estado Democrático de Direito há uma força dialética
que, acredita-se, possa transformá-lo novamente – agora, de conceito de Estado mais bem
elaborado de todos os tempos em práxis política popular. Realmente, a história é feita de nexos e
convergências, no sentido que adotamos no texto, podemos dar como exemplo uma convergência
que veio se tecendo ao longo de todo o século XX. Mas, é bom saber que esta ampla
convergência não implica na ausência de divergências, às vezes, tão grandes que somos levados
a visualizar somente o antagonismo e as rupturas – não é o caso também de irmos à frente nesta
linha de abordagem. Por sua vez, como Estado Democrático de Direito Social, temos o mesmo
sentido expresso pelas constituições de Portugal (1976) e da Espanha (1978), com destaque para
o ganho de humanização do direito, o reflexo do processo de aprofundamento civilizatório e a
inculcação de valores jurídicos que exigem a eficácia jurídica (eficiência, fruição social) dos
direitos fundamentais sociais.
Direitos fundamentais sociais
No Estado Democrático de Direito Social, os procedimentos institucionais e jurídicos,
que nada mais são do que os processos institucionais legítimos e regulados pelo Estado, mas
exigidos pelo povo, passam por mudanças qualitativas quando comparáveis ao Estado Liberal.
Uma vez que no chamado “individualismo jurídico” a legitimidade se dá por meio de processos
individuais (“um conflito, um processo; uma ação, um autor”); não obstante, as necessidades
sociais apontem para uma “coletivização dos conflitos” (direitos e ações coletivas).
No Estado Democrático de Direito Social os direitos fundamentais também têm natureza
negativa (para conter o abuso de poder), mas procura-se acima de tudo afirmar a dignidade da
pessoa humana. Na acepção filosófica Iluminista (Kant), o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana é perquirido com o respeito à tolerância religiosa (Locke), e à liberdade de expressão e
de propriedade. Com Rousseau, no entanto, a propriedade privada, deslocada de sua função
social, pode ser um impedimento da concretização da soberania popular. Para que a lei seja
legítima, limpa de ranços classistas, o povo precisa não apenas participar de sua feitura, mas,
além disso, ter capacidade intelectiva (educação) para compreender a característica teleológica
do direito: quais os efeitos jurídicos possíveis? Que impacto as novas leis terão em minha vida e
na organização da sociedade? Como ter consciência para lutar pelo direito sem liberdade para
cultivar a razão?
Entre natureza e cultura, Rousseau (1712-1778) conseguiu atar moral e política: o homem
é livre e essa liberdade é radical — nisto somos todos iguais. Só pode haver igualdade entre
homens livres para cultivar a razão. Sua base é a igualdade política e educacional:
Porque a igualdade dos cidadãos implica a igualdade dos indivíduos em
relação ao saber e à formação. Surge enfim, a questão do tipo de
329
No Estado Democrático, de fato, a democracia é tão marcante da natureza jurídica estatal que se assegurou que a
própria Razão de Estado estivesse contida por uma noção de soberania profunda, popularmente conduzida e
regulada por meios democráticos, inclusivos, tolerantes e participativos. O que implica em dizer que os “fins
democráticos não justificam os meios autocráticos”.
333
educação do cidadão assim definido. Essa educação não pode mais
simplesmente consistir numa informação ou instrução que permita ao
indivíduo, enquanto governado, ter conhecimento de seus direitos e
deveres, para a eles conformar-se com escrúpulo e inteligência. Deve
fornecer-lhe, além dessa informação, uma educação que corresponda à
sua posição de governante potencial (Canivez, 1991, p.31).
Uma proposta de educação para a tolerância deve privilegiar o regime jurídico do Estado
Democrático de Direito, e alertar, sobretudo, para a dificuldade que se impõe para a manutenção
do mesmo Estado Democrático de Direito, incluindo o coletivo dos Direitos Humanos (art. 4º - II
da CF/88). Teórica e historicamente, essa perspectiva consensual (ética) de ver a política, Bobbio
(1992) analisa como sendo a que deu origem ao Estado Democrático de Direito. Coincide
também com o aparecimento do cidadão moderno, único objeto da defesa das regras
democráticas, na verdade como sujeito de direitos não disponíveis pela força do Estado, enfim, o
reino do status legal e da legitimidade popular330. Pois, basta mencionar que não há o menor
sentido em se falar de tolerância no plano da política (ética consensual) se não se promove e
garante de forma plausível a participação popular. E se é certo que a tolerância só se dá em face
da existência do Outro, instituída por meio de sua intervenção, o mais difícil é verificar em sua
estrutura interna o que há de educacional.
Afinal, não se pode esquecer que, para Rousseau, na natureza, o homem é inocente331:
desconhece o bem e o mal332. A própria bondade exige muita maturidade, pois o sujeito precisa
literalmente colocar-se no lugar do Outro: a alteridade. Compreendê-lo é um esforço máximo
exigido pela alteridade: “A consciência é a voz da alma, a paixão é a voz do corpo” (Huisman,
2001, p. 841). Por sua vez, esta dualidade resultou do “ter que fazer-se como homem”, de nosso
precedente histórico-antropológico na busca pela perfectibilidade333. De qualquer modo, o devir
exige o Outro, e isto induz ao devir social: nada somos, senão em sociedade. Porém, este nosso
aprimoramento moral ainda não ocorreu porque nós carregamos uma falta grave, um transtorno
que nos impele como um “funesto acaso” (a propriedade). Mas, Rousseau dirá que não há
perversidade original, intrínseca no coração humano: nossa natureza está tão-somente
adormecida no coração. Portanto, é como reconciliar-se com o Outro: “Qualquer um que tenha
coragem de parecer o que é torna-se cedo ou tarde o que deve ser” (Huisman, 2001, p. 842).
330
Essa imagem do cidadão participativo, apesar de parecer nova, na verdade é uma tradição que veio da Grécia
clássica (mais precisamente de Aristóteles). Porém, como se vê na seqüência da nota, diferentemente da Grécia, a
cidadania moderna engloba as mulheres: “Para ser cidadão, diz ele, não basta habitar o território e poder pleitear seu
direito diante dos tribunais. Porque os estrangeiros também têm essa possibilidade. O cidadão autêntico (em
oposição às mulheres, às crianças e aos que são atingidos por atimia — degradação cívica total ou parcial por faltas
graves) é quem exerce uma função pública: que ele governe, ou que tenha uma função no tribunal, ou que participe
das assembléias do povo. A cidadania é, pois, a participação ativa nos assuntos da Cidade. É o fato de não ser
meramente governado, mas também governante (Canivez, 1991, p. 30).
331
Kant foi contemporâneo, profundo leitor e admirador de Rousseau. Kant herdou a ideia da fraternidade, e pensou
diminuir a distância entre o papel do intelectual e a vida real do povo: o direito à educação.
332
Rousseau parece ter aprendido com os

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