Cristine Koehler Zanella1 e Maria Carolina Silveira Beraldo2 Se for

Transcrição

Cristine Koehler Zanella1 e Maria Carolina Silveira Beraldo2 Se for
O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS E A SUPERAÇÃO DO
PARADIGMA DA IRRESPONSABILIDADE JURÍDICA DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS:
UM MOVIMENTO A PARTIR DO CASO HAITIANO
Cristine Koehler Zanella1 e Maria Carolina Silveira Beraldo2
1. Introdução 2. A construção jurídica do mito da infalibilidade da ONU
3. O aumento potencial do risco 4. A exceção como normalidade 5. A
produção científica da normalidade da exceção 6. A fortaleza da
irresponsabilidade organizada 7. Quando a fortaleza jurídica mantém
viva uma dinâmica corrosiva do próprio sistema que se propõe a
resguardar. 8. É chegado o momento da contra-hipótese: a fortaleza se
abre para as ideias 9. Pelo não desperdício da oportunidade: a atuação
do Sistema Interamericano de Direitos Humanos
Se for correto que o presente nada mais é que uma
hipótese que não pudemos superar, então chegou o
momento da contra-hipótese (BECK, 2010, 272).
1. INTRODUÇÃO
O surgimento das organizações internacionais políticas marcou um novo período na
coexistência dos Estados modernos. Após lamentar o insucesso da Liga das Nações ante o
jogo geopolítico de potências que os Estados europeus insistiram em manter no pós-1ª Guerra
Mundial, as sociedades assistiram - esperançosas e aliviadas - ao nascimento da Organização
das Nações Unidas (neste trabalho também referida como ONU, Organização ou Nações
Unidas) em 1945. Com os mesmos objetivos, mas de uma forma até então inédita, os Estados
buscaram institucionalizar politicamente a paz e a segurança internacionais. A
representatividade dos membros que compõem a Organização inaugurou, finalmente, uma
nova etapa das relações entre Estados: pela primeira vez na história moderna uma instituição
internacional de alcance universal, diferente dos Estados em si, mas operante no mesmo
cenário internacional que esses, foi incumbida de equacionar o problema da paz mundial.
A construção de um novo paradigma – com o estabelecimento de limites e controles
à atuação internacional dos Estados – implicou o reforço de alguns pilares garantidores de sua
boa atuação. Por um lado, a expectativa ante a importância e nobreza dos objetivos de que foi
incumbida a ONU fez com que os Estados garantissem imunidade a seus agentes e seu
1
Professora do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) e Doutoranda em Estudos Estratégicos
Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Contato: [email protected].
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Professora da Faculdade Cantareira e Doutoranda em Direito Processual Civil na Universidade de São Paulo
(USP). Contato: [email protected].
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patrimônio de eventuais constrições que pudessem ser óbice à efetividade de suas ações. Tal
imunidade foi garantida juridicamente por meio da Convenção sobre Privilégios e Imunidades
das Nações Unidas de 1946 (também conhecida por Convenção de Londres). Por outro, a
ONU, mais do que o gozo de imunidades e privilégios, teve reconhecida pelos tribunais, a
partir do caso Bernadotte, a legitimidade para demandar dos demais atores do sistema
internacional indenizações por danos decorrentes de ilícitos sofridos. Trata-se de reforços
institucionais que asseguram margem de ação à ONU e a reconhecem como sujeito de direito
internacional. O curioso é notar que na esteira do reconhecimento da importância da ONU
esteja ausente o paralelo reconhecimento de sua responsabilidade internacional. Em outras
palavras: criou-se um sujeito dotado de direitos sem que se reconhecesse, igualmente, que a
esse sujeito são atribuídos deveres.
Algumas situações concretas, reflexos da atuação da ONU e não da sua ausência nos
cenários de crise internacional, tem soprado verdadeiros ares de perplexidade sobre a
forma de atuação da Organização e a blindagem de sua responsabilidade, ameaçando
levar ao perigoso questionamento de sua própria existência. Situações como a denegação de
justiça confirmada pela Suprema Corte holandesa em abril de 2012 a sobreviventes do
genocídio de Srebenica3, ou negações de responsabilidade e posteriormente afirmações de
imunidade da Organização em relação à introdução de cólera no Haiti4, escancaram uma
ausência de tratamento das causas dos efeitos colaterais de uma irrestrita imunidade. Se, por
um lado, a formação desse quadro de imunidade aparentemente reflete a força da instituição,
certo é que uma leitura mais acurada demonstrará a verdadeira corrosão interna de um sistema
que não reflete sobre as próprias condutas e, com essa negação, torna-se incapaz de assumir
responsabilidades e aprender com os próprios erros.
É justamente a partir desse último caso – a introdução do cólera no Haiti – que o
presente trabalho busca refletir sobre a necessidade de uma profunda transformação no plano
internacional: a importância do reconhecimento da responsabilidade da Organização das
Nações Unidas por ilícitos internacionais. O mapa a guiar o trajeto deve valer-se de – mas
não poderia se reduzir aos – documentos jurídicos internacionais: a letra dura da lei
pode conter em si a armadilha de tão somente refletir uma ordem que necessita de
3
Em 13 de abril de 2012 a Suprema Corte holandesa formou entendimento de que a ONU não pode ser
processada e julgada na Holanda. A demanda consistia no pedido de responsabilização da organização por não
ter impedido o massacre de Srebenica, ocorrido em 1995, perto do fim da Guerra da Bósnia, no qual cerca de 8
mil homens e meninos foram mortos por forças sérvias em uma área guardada por tropas de paz holandesas e
declarada pela ONU como ‘refúgio seguro’ (DEUTSCH, 2012).
4
A introdução do cólera no Haiti, por tropas nepalesas a serviço da ONU, foi responsável, até o momento, por
mais de 7,4 mil mortos e mais de 580 mil pessoas contaminadas no país (PAHO, 2012).
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superação e, portanto, apegar-se a ela é admitir, ab initio, o reinado absoluto do passado
sobre as necessidades presentes e as escolhas futuras. Daí a opção pelo desenvolvimento
do trabalho a partir da teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck e os postulados dela
decorrentes, tais como aquele da irresponsabilidade organizada.
Se é verdade que uma boa tese consegue superar argumentos vindos de várias
frentes, como propõe Amartya Sen em seu livro A ideia de justiça (2011), a demanda pela
absoluta imunidade da ONU – e sua decorrente irresponsabilidade – se sustentará também
nesta análise. Caso contrário, podemos ter chegado – como desafia a insolente epígrafe – no
momento de elaborar uma contra-hipótese.
2. A CONSTRUÇÃO JURÍDICA DO MITO DA INFALIBILIDADE DA ONU
As primeiras décadas do século XX foram encerradas, uma após a outra, sob o
flagelo do medo. Muitas das mentes que se preocupavam com os destinos da humanidade e
acreditavam na possibilidade de contenção da escalada mundial da violência sustentavam a
necessidade de que a sociedade internacional erigisse uma instituição que limitasse o direito
dos Estados de recorrer à guerra para concretizar seus interesses ou para solucionar
controvérsias com outros Estados – um direito até então compreendido como soberano. As
vozes provinham de variados pontos: já na segunda década do século, Woodrow Wilson, da
política, exortava perante o Senado estadunidense a necessidade de que se criasse “uma lega
perpetua de tutte le nazioni pacifiche, cosi forte da imporsi a tutte le tentazioni beliciste” (DI
NOLFO, 2002, p. 10). Uma década mais tarde, Einstein, que também acreditava no potencial
de uma organização tal qual descrita por Wilson, lamentava a inexistência de apoio do
Congresso estadunidense para o ingresso desse país na Liga das Nações5 (EINSTEIN, 2006,
p. 22).
Dito de outra maneira, os espíritos idealistas do início do século passado nos legaram
a esperança de que uma organização permanente à qual se submetessem os Estados, guiada
pela proscrição da guerra enquanto instrumento recorrente - e legítimo - da política
internacional, seria capaz de conter a violência e assegurar a paz mundial. Depois de mais
uma guerra que envolveu a humanidade, e após os impactos e amadurecimentos desta
experiência decorrentes, a Organização das Nações Unidas foi a herança concreta que esses
homens nos deixaram.
5
“No debe permitirse que la juventud crea que es posible la seguridad mediante el aislamiento político. En
particular hay que hacer compreender a los jóvenes la gran responsabilidad que asumieron los políticos
norteamericanos al no apoyar los planes liberales del presidente Wilson” (EINSTEIN, 2006, p. 22).
3
A partir do aprendizado decorrente da experiência com a Liga das Nações, a ONU
foi estruturada e organizada por meio de um robusto aparato normativo . Após sua criação6, os
Estados julgaram necessário assinar, em 1946, a Convenção de Londres, para garantir a
autonomia e liberdade da atuação da Organização - sem que sofresse constrições por parte dos
Estados e deles não se tornasse refém. Esse documento dispôs sobre a imunidade de seus bens
e agentes e reconheceu a capacidade da Organização para agir e pleitear judicialmente
indenização por danos eventualmente sofridos7. Pensada justamente para assegurar a paz e
segurança mundiais, a estrutura normativa que deu vida e forma à instituição foi criada
sem mirar no horizonte a possibilidade de que esta, quando atuante, pudesse violar
direitos e ser responsabilizada por tanto.
Este processo de consolidação institucional fez com que se erigisse a construção
jurídica do mito da infalibilidade da ONU. Criou-se um ponto intangível no qual as ações da
ONU se legitimam independentemente de quais sejam seus impactos – a letra dura da lei,
imortalizada na Convenção de Londres, e a inexistência de foros nos quais essa
imunidade possa ser questionada têm impedido que se reflita sobre a responsabilidade
internacional da Organização.
A demanda pelo reconhecimento de que a ONU pode vir a atuar de forma lesiva,
causando danos a serem por ela reparados, tem sofrido as críticas de que tal compreensão
implicaria em advogar contra as causas da Organização e, no limite, contra a Organização
mesma. Chega-se até a aventar a falaciosa hipótese de que tal reconhecimento enfraqueceria a
atuação da ONU. Nessa perspectiva, a imunidade tem sido vista não como instrumento
juridicamente construído para garantir a efetividade das ações da Organização acima dos
interesses dos Estados, mas como um fim em si mesmo. Na medida em que a imunidade deixa
de servir para assegurar o cumprimento dos objetivos da ONU e passa a servir de óbice para
que se questione um ato lesivo– que viola o direito internacional de que a própria Organização
é guardiã - a razão da existência da imunidade se perde, razão esta que se justifica não para
blindar a organização de responsabilidade por ilícitos cometidos, e sim garantir a sua
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A ONU foi criada em 26 de junho de 1945, por ocasião da Conferência de São Francisco, e tem na Carta das
Nações Unidas (Carta da ONU) seu ato constitutivo.
7
A Carta da ONU prevê em seus Artigos 104 e 105 que a Organização goza da capacidade jurídica necessária ao
exercício de suas funções e à realização de seus propósitos, bem como dos privilégios e imunidades para tanto.
Não obstante, a Assembleia-Geral de 13 de fevereiro de 1946 houve por bem aprovar a Convenção sobre
Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, também conhecida como Convenção de Londres, para explicitar
em minúcias a extensão de tais privilégios e imunidades. Restaram fixadas nesse documento não apenas a
personalidade jurídica da Organização, mas também a imunidade de seus bens e fundos, bem como os
privilégios e imunidades de seus oficiais e representantes membros.
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liberdade de ação frente a eventuais limites que poderiam ser impostos pelos Estados em que
atuam.
Quando nada pode ser questionado, ergue-se, intocável, o tabu da infalibilidade
da ONU. Tabu de sustentação normativa, decorrente da crença na necessidade e
inalterabilidade de uma imunidade que se tornou fim em si mesma. A imunidade,
compreendida como fim em si, faz com que eventuais efeitos colaterais da atuação da ONU
sejam apresentados não como deficiências na organização, mas como efeitos colaterais
normais, esporádicas constrições naturais. Os danos, porque supostamente insindicáveis, são
recobertos pelo manto de uma imunidade que os deixa invisíveis juridicamente, mas latentes e
vivos para quem os sofre. Como em todo tabu, a ausência de questionamento não apaga a
existência dos problemas daí decorrentes – pelo contrário: faz com que eles se tornem ainda
maiores.
3. O AUMENTO POTENCIAL DO RISCO
A impossibilidade jurídica de reflexão sobre a responsabilização da ONU em
decorrência de ilícito internacional eleva os riscos de suas intervenções para outro patamar8.
A aceitação sistemática da não-sindicabilidade de danos acaba fazendo com que eles
sejam aceitos como uma decorrência natural. O paradoxal é que o risco de catástrofes se
multiplica a partir desta corrente: enquanto a inexistência jurídica do problema impedir a
reflexão e a correção dos rumos, reforça-se a imagem de infalibilidade da Organização e esta
amplia seus campos e instrumentos de atuação, sem que com isso tenha corrigido as possíveis
causas dos problemas gerados. Os riscos, neste processo, aumentaram: uma nova falha, agora,
significará uma lesão no mínimo mais abrangente e, talvez, também mais profunda.
Imagine-se a situação, por exemplo, do genocídio de 8 mil homens e meninos entrar
para a história apenas como uma infeliz tragédia. Ainda pior do que o fato de ter a ONU
declarado equivocadamente que a zona de Srebenica, guardada por 400 capacetes azuis, era
um refúgio seguro para os bósnios muçulmanos que buscavam sua proteção e foram ali
dizimados pelos sérvios, foi a ausência de uma resposta jurídica às vítimas do episódio que
ficou conhecido como massacre de Srebenica9.
Situações como esta evidenciam uma dolorosa ironia que se retroalimenta na
medida em que ignorada: a ONU torna-se parte do problema para o qual fora criada
para resolver. Uma vez que não se aperfeiçoam os processos de sua atuação, os erros voltam
8
9
Existem atualmente 17 Missões de Paz da ONU em curso (UN, 2012).
Sobre a participação da ONU no massacre de Srebenica, conferir nota 1.
5
a acontecer e, portanto, os riscos da atividade não diminuem. Pelo contrário: eles vão se
revelando cada vez maiores, já que um erro não evidenciado – tornado invisível – faz
reproduzir a ideia de uma organização infalível.
A importância universal atribuída à organização, somada à crença de sua
infalibilidade, conduz a um aumento exponencial em seus campos e instrumentos de atuação.
Cite-se, como gritante exemplo, a recente discussão sobre a necessidade de legitimação
normativa da realização de intervenções humanitárias, ocasião em que o ex-secretário geral da
Organização, Koffi Annan, chegou a exortar os Estados a que tentassem encontrar, de uma
vez por todas, consenso a respeito de tal legitimidade, tendo assim colocado a questão:
…if humanitarian intervention is, indeed, an unacceptable assault on
sovereignty, how should we respond to a Rwanda, to a Srebrenica – to
gross and systematic violations of human rights that offend every
precept of our common humanity? (ANNAN, 2000, p. 48).
A partir dessa ponderação criou-se a doutrina da “responsabilidade de proteger”
(“responsibility to protect”), adotada pela Organização em sua Resolução 60/1, em 2005 (UN,
2005). Nos termos da Resolução, de forma a legitimar a ampla atuação da ONU, deixou-se
assentado que a Organização “aceita” a responsabilidade de proteger as populações dos
Estados contra genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade10.
Como se de responsabilidade se tratasse – de forma a atenuar os rigores da constatação de
que se estava, em verdade, atribuindo ilimitados poderes de atuação à Organização em
missões humanitárias – a legitimidade foi reconhecida e, sua suposta infalibilidade,
potencializada. Confira-se, ainda, mais uma desastrosa consequência do mito da
infalibilidade: dez anos depois do massacre de Srebenica, mesmo cientes de que sua atuação
da Organização contribuíra culposamente para o genocídio de 8 mil homens, adotou-se
Resolução legitimando-a a atuar de forma ampla, sem que limites fossem estabelecidos.
Ocorre que, como visto, quando se amplia o campo de atuação sem que haja
qualquer previsão normativa quanto aos limites e quanto à recomposição dos danos
colaterais dela advindos, a doutrina da “responsabilidade de proteger” se converte,
inexoravelmente, na doutrina da irresponsável proteção.
O aumento potencial da catástrofe fica, então, difícil de prever e, depois de
deflagrado, quase impossível de conter. A demonstração mais próxima e recente que se tem
dos danos de um ilícito internacional cometido pela ONU desenvolve-se em solo latino10
Conforme itens 138 a 140 da Resolução.
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americano: são milhares de mortos e centenas de milhares de infectados pelo cólera no Haiti,
naquela que já é a maior crise sanitária do continente americano. Se a presença de bases da
Missão para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), autorizada, estruturada e mantida pela
ONU, lançando dejetos humanos sem tratamento nos cursos dos rios já é, em si, lesiva,
quando estes dejetos transportam intercontinentalmente o vibrião de uma variedade virulenta
e letal do cólera, o dano se torna incontrolável. Resultado da irresponsável – mesmo que não
dolosa - proteção da ONU11.
Essa epidemia de cólera que atinge o Haiti teve início em outubro de 2010. Hoje,
passados 22 meses, os haitianos lutam para sobreviver à epidemia que se espalhou pelo país e
que já vitimou de morte mais de 7,4 mil pessoas e contaminou mais de 580 mil. Diversos
estudos e relatórios produzidos por especialistas apontam inequivocamente para a base da
MINUSTAH em Mirebalais como o foco de origem da contaminação, e para os soldados
nepaleses que nela chegaram dias antes do surto ter início no país como os transportadores da
doença. Mesmo diante das reiteradas evidências que apontam a responsabilidade da
Organização das Nações Unidas (ONU), esta permanece resistente quanto à sua assunção.
Os riscos autogerados durante uma atuação que está previamente imunizada contra
qualquer sindicância são potencializados em uma Organização de atuações cada vez mais
abrangentes – como esta que ocorre no Haiti. Aceitar conviver com a irresponsabilidade
jurídica é aceitar, com naturalidade, o potencial crescentemente catastrófico de eventuais
falhas. No caso da virulenta contaminação a partir da base de Mirebalais, no Haiti, perdeu-se
o controle territorial sobre a disseminação da epidemia e já foram registrados casos de cólera
ligados ao surto haitiano na Venezuela, no Chile, em Cuba e até mesmo nos Estados Unidos.
4. A EXCEÇÃO COMO NORMALIDADE
Com o totem da imunidade intangível assim construído, as falhas – nos seus efeitos
já materializados em catástrofes não só ambientais mas sobretudo humanas – passam para a
história como tragédias incidentais. Os riscos – cada vez maiores - decorrentes de uma
atuação insindicável, por sua vez, são produzidos como inexistentes. Essa construção não é
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A Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), em dezembro de 2011, ofereceu à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos denúncia contra a ONU em virtude de sua responsabilidade por atos e
omissões com relação à disseminação da cólera no Haiti a partir da base militar da MINUSTAH em Mirebalais.
O texto completo da demanda, em quatro diferentes idiomas (português, francês, inglês e espanhol), está
disponível no site www.fadisma.com.br/acaopelohaiti. A denúncia foi protocolada em 15 de março de 2012 sob
o número 1929/11.
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espontânea: ela é o resultado de um jogo de poder no qual o acesso à mídia, às pesquisas e aos
dados científicos são peças-chave.
Não se trata da impossibilidade de rastreamento das causas, não se trata de uma
impossibilidade de saber ou vir a conhecer, mas sim do não desejar saber. No caso haitiano,
dois meses após a eclosão do surto de cólera, as Nações Unidas ainda se recusavam a
investigar a origem da epidemia, tendo afirmado por reiteradas vezes que era mais
importante tratar os pacientes do que procurar por causas (THE GUARDIAN, 2011).
Apelando para o drama humano, essa postura, ao encobrir as origens da contaminação,
comprometeu o pronto e efetivo enfrentamento do cólera e violou o direito de informação dos
povos atingidos. Daí a solicitação explícita na demanda formulada à Comissão Interamericana
de Direitos Humanos pela responsabilização da ONU pela contaminação, adoecimento e
morte de dezenas de milhares de pessoas infectadas pelo vibrião do cólera no Haiti e na
República Dominicana, porque, dentre outros:
d. ao reiteradamente negar-se a realizar uma investigação minuciosa
sobre a origem da cólera, não contribuiu para uma resposta pronta e
efetiva ao problema e potencializou danos, colocando em risco vidas
e provocando perdas irreversíveis às pessoas contaminadas, às suas
famílias e, devido às proporções e características da epidemia, a toda
a ilha que abriga o Haiti e a República Dominicana” (FADISMA,
2011).
A operacionalização do não desejar que as causas fiquem a descoberto envolve um
jogo no qual os “bombeiros argumentativos” – para utilizar feliz expressão de Ulrich Beck –
são acionados para rapidamente lançarem jatos de contrainterpretação na tentativa de apagar e
salvar o que ainda for possível. No Haiti, quando as evidências levantadas por estudos
sanitários e epidemiológicos impediram a manutenção do silêncio ante a imputabilidade
do surgimento do cólera aos nepaleses sob comando e responsabilidade da ONU, o “jato
argumentativo” da “confluência de circunstâncias” foi lançado.
Em relatório, os especialistas do painel convocado pelo Secretário Geral da ONU
confirmaram não apenas a origem humana da contaminação, a zona geográfica de
contaminação no Haiti, a proveniência da bactéria, mas sobretudo a coerência entre os casos
confirmados e a origem da propagação da contaminação. O documento também denunciou as
condições sanitárias deficientes do acampamento da MINUSTAH em Mirebalais, confirmou
que os dados de análise molecular indicam a identidade genética das cepas encontradas no
Haiti e a semelhança com as cepas de Vibrio cholerae O1 do sul da Ásia - o que fornece uma
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ponte para a detecção da origem do surto - e, por fim, alertou para o risco de transmissão de
agentes patogênicos pelo pessoal mobilizado pela ONU (FADISMA, 2011). Mesmo diante
dessas irrefutáveis constatações, paradoxal e surpreendentemente, o relatório concluiu que “o
surto de cólera no Haiti foi causado pela confluência das circunstâncias descritas
anteriormente e não pela culpa ou pela deliberada ação de um grupo ou de um indivíduo”
(UN, 2011a, p. 29). A partir de então, a interpretação da Organização para escapar à
imputação quanto à introdução e disseminação do cólera aferrou-se a esta tese – tornada
oficial.
Se a epidemia de cólera não foi causada pelo transporte intercontinental do vibrião
lançado negligentemente em ambiente haitiano, o problema não está na Organização. Tal
pensamento se tornou de tal forma cortesão do poder que foram lançados jatos argumentativos
com perversas construções, como a de culpar as vítimas por não conseguirem resistir ao mal
que lhes foi infligido, ao dizer que “um tal surto” não seria possível “sem deficiências
simultâneas do sistema de adução de água, saneamento e assistência médica” (UN, 2011a, p.
29).
A “confluência de circunstâncias” compõe o escudo por detrás do qual riscos são
minimizados e ocultados e, em decorrência, potencializados e disseminados.
Toda essa construção faz com que um estado excepcional de falha e catástrofe não
seja enfrentado enquanto tal. Pelo contrário, produzem-se os efeitos colaterais não como
exceção, decorrentes de eventuais erros, falhas e negligências que serão detectados e
enfrentados, mas sim como decorrências inescapáveis às quais estarão eventualmente
submetidas populações sobre as quais incidirem – por azar da coincidência – determinadas
“confluências de circunstâncias”. A exceção foi construída, assim, como normalidade.
5. A PRODUÇÃO CIENTÍFICA DA NORMALIDADE DA EXCEÇÃO
Depois de estruturar as inflexões que, na modernidade, levaram à construção de uma
sociedade de risco, Ulrich Beck faz uma advertência mandatória: “Não é possível continuar a
aceitar o mito da imprevisibilidade [e naturalidade] dos efeitos. Não é a cegonha que traz os
efeitos – eles são feitos” (grifo no original) (2010, p. 261).
Enquanto se considerar que os danos são algo dado – efeitos colaterais lógicos e
necessários da atuação da ONU -, a exceção será construída como normalidade quando, na
realidade, estes danos são produzidos. Neste contexto, as ciências naturais, com a sua dúvida
9
metódica, têm o poder de jogar no campo da controvérsia qualquer resultado indesejado
obtido pela própria ciência:
Basta ler um pouco mais, incluindo as investigações no sentido
contrário. (...) Um par de objeções (metodológicas) de base para
todos os casos e na ponta da língua fazem com que qualquer indócil
novidade científica desmorone (BECK, 2006, p. 264).
Com a pretensão de precisão matemática contra as evidências científicas, basta
levantar um questionamento para que se invalide o resultado de uma indigesta investigação
acadêmica. Dessa forma, assim como o acesso à mídia, também o acesso à ciência torna-se
fundamental. Novamente escancara-se que “a definição dos riscos é, essencialmente, um jogo
de poder” (BECK, 2006, p. 333).
A ciência também contribui, assim, profissionalmente, para bloquear a visibilidade
dos riscos. No caso haitiano, em julho de 2012, após estudos epidemiológicos, sanitários,
ambientais e genéticos apontando para a introdução do cólera no país via soldados
nepaleses a serviço da ONU, a pesquisadora Rita Colwell, da Universidade de Maryland,
sugeriu que “fatores ambientais ativaram uma cepa local” ou, mais precisamente, que
“uma cepa nativa haitiana estaria também envolvida no surto” (grifo não original)
(KUPFERSCHMIDT, 2012, p. 1493). O poder da ciência reside no fato de que a dúvida
aventada sobre a existência de “também” outra cepa, apesar de não comprovar a ausência de
participação da ONU em relação à introdução do cólera no Haiti, já serviu para que
construções lógicas duvidosas concluíssem que “agora um estudo ‘absolve’ os soldados da
ONU” (DANIEL, 2012).
A dúvida metódica que a pesquisadora levantou (do coenvolvimento de uma cepa
local que teria sofrido mutações em função do verão quente, furacões e saneamento
deficitário), em nada contribuiu para a compreensão da origem de uma virulenta epidemia de
cólera que, pelos mais diversos canais, provou-se ter sido transportada por soldados a serviço
da ONU. Por outro lado, sua contribuição tornou ainda mais densa a cortina de fumaça
que encobre a responsabilidade pela introdução do cólera no Haiti.
O fato de Colwell insistir que “não foi irrefutavelmente demonstrado que o cólera foi
introduzida no Haiti” (KUPFERSCHMIDT, 2012, p. 1493) veste-se do cinismo de pretender
considerar como evidência somente a certeza matematicamente irrefutável. Ironicamente essa
postura tem o poder de – porque justamente sobre o manto da verdade científica
10
pretensamente neutra – desconstruir profissionalmente um conjunto de argumentos
incômodos de serem reconhecidos.
O império da ciência e, ao mesmo tempo, a sua dúvida metódica, acabam por tornála subserviente ao poder sempre e quando a ciência se apresentar como a objeção neutra à
qual se der a possibilidade de dispor sobre a verdade. No que se refere às condições naturais
do Haiti, é imperioso considerar que a natureza e os contextos existentes – em toda sua
dramaticidade - são a própria sociedade haitiana. Agir no Haiti é, portanto, agir naquela
natureza.
6. A FORTALEZA DA IRRESPONSABILIDADE ORGANIZADA
O mito da infalibilidade da ONU - revelado pela construção jurídica de uma
imunidade que a isenta de toda e qualquer responsabilidade por danos derivados de seus atos , aliado ao aumento dos riscos inerentes à insindicabilidade dos ilícitos que pode vir a
cometer, acaba por fazer com que a Organização atue de forma – mesmo que
involuntariamente - irresponsável. Não se quer com tal afirmação questionar o papel de
garantidora e implementadora universal da paz mundial que a Organização vem exercendo,
mas apenas registrar a simples constatação de que sua atuação – boa ou má - é respaldada pela
fortaleza de uma irresponsabilidade institucionalmente organizada.
Se, por um lado, a ONU tem imunidade juridicamente garantida pela sua carta
constitutiva12 e reforçada pela Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações
Unidas13 (também conhecida como Convenção de Londres), por outro tem tido sua blindagem
chancelada pelos Tribunais Internacionais, que não lhe vêm reconhecendo legitimidade para
que possa ser responsabilizada pelos danos causados por ilícitos cometidos.
Ilustra-se a afirmação com emblemáticos casos julgados em 2007 pela Corte
Europeia de Direitos Humanos, Behrami and Behrami vs. France14 e Saramati vs. France,
12
Conforme Artigos 104 e 105 da Carta da ONU.
Aprovada pela Assembleia-Geral de 13 de fevereiro de 1946.
14
O caso Behrami diz respeito à negligente atuação de tropas da ONU na cidade de Mitrovica, em Kosovo,
República Sérvia, em março de 2000. Enquanto brincavam, algumas crianças encontraram bombas não
detonadas que foram lançadas durante bombardeamentos da OTAN em 1999. Dentre as crianças estavam dois
filhos de Agim Behrami, Gadaf e Bekim. Uma das bombas encontradas pelos meninos explodiu, matando Gadaf
e ferindo seriamente Bekim, que perdeu a visão. Agim Behrami ajuizou demanda perante a Corte Europeia de
Direitos Humanos responsabilizando as tropas a serviço da ONU por terem sido negligentes quanto à interdição
da área em que se encontrava o armamento, bem como por terem falhado em sua obrigação de desarmar as
bombas (ECHR, 2007).
13
11
Germany and Norway15, em que se reconheceu a responsabilidade da ONU em tese, por ações
e omissões de suas forças de paz, mas rechaçou-se o julgamento por incompetência ratione
personae, chancelando sua irrestrita imunidade. Conforme trecho final do julgado,
“For these reasons, the Court . . . Declares, by a majority,
inadmissible the application of Behrami and Behrami and the
remainder of the Saramati application against France and Norway
[because the UN is in principle responsible, but this regional court is
unable to command the UN to comply with its judgment]. Christos
ROZAKIS. President (ECHR, 2007, p. 44).
Não se olvide, ainda, do já citado episódio de Srebrenica, em que a Corte holandesa
recentemente declarou inadmissível a demanda contra a ONU por incompetência para julgála.
Assim vai sendo construída, paulatinamente, a fortaleza da irresponsabilidade
organizada, devidamente guardada por soldados normativos garantidores de imunidade
e murada por Tribunais renitentes que não hesitam em fechar as portas de acesso à
possibilidade de questionar tal imunidade.
O caso haitiano, recentemente levado à apreciação da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, representa concreta possibilidade de se debater seriamente sobre o tema e
dar início à desconstrução da fortaleza da irresponsabilidade institucional.
7. QUANDO A FORTALEZA JURÍDICA MANTÉM VIVA UMA DINÂMICA
CORROSIVA DO PRÓPRIO SISTEMA QUE SE PROPÕE A RESGUARDAR
A impossibilidade de sindicância de qualquer ação leva à perda dos critérios pelos
quais os sujeitos pautam sua atuação. Os riscos, porém, persistem. Não são eliminados por
serem ignorados. Quando se materializa em catástrofes – algo cada vez mais provável tendo
em vista a escalada potencial dos riscos anteriormente apresentada – a blindagem de
imputabilidade do agente causador do dano provoca indignação e revolta. Testadas no seu
limite, as pessoas passam a demandar não mais por uma correção do erro: a demanda passa a
ser pela própria extinção do causador – no caso haitiano, a saída imediata da MINUSTAH do
território do país:
15
Saramati foi preso indevidamente em Kosovo em Abril de 2001, suspeito da prática de homicídio e porte
ilegal de armas. Saramati acionou a Corte Europeia de Direitos Humanos pela ilegalidade de sua prisão, levada a
cabo por forças a serviço da ONU (ECHR, 2007).
12
Fonte: Dady Cherry, 2011.
O hermetismo, que - supunha-se -, preservaria a instituição e sua boa atuação - acaba,
assim, por levar ao seu colapso. A instituição acaba por se perder porque se tornou causadora
justamente daquilo que deveria evitar: a catástrofe no país.
Fonte: Dady Cherry, 2011b.
Onde são vividos, os problemas se desenvolvem por meio de uma integração entre
cultura, estruturas de poder e racionalidades vigentes. Assim, ao não promover de pronto a
investigação das causas da epidemia e assumir a sua responsabilidade quando esta foi
comprovada, abriu-se espaço, na sociedade haitiana, para um fenômeno de imputação dessa
responsabilidade a sacerdotes praticantes do vodu. No mínimo 45 pessoas foram linchadas por
13
terem sido acusadas de espalhar a epidemia (UN, 2011b, p. 9) numa clara relação de
desespero pela virulência da epidemia e ausência de diagnóstico e informação sobre a sua
origem e seus responsáveis.
Ao tardar em investigar as causas da epidemia, a ONU comprometeu a própria
compreensão do quão virulenta poderia ser a contaminação e do quão urgente e especializada
era a resposta necessária para enfrentar a epidemia tanto em termos de tempo quanto em
dimensão e alocação de recursos (JOHNSTON e BAHTT, 2011). É assim que ocorre a
potencialização do risco decorrente da ausência de escrutínio dos atos encastelados pelos
muros da imunidade (que organiza juridicamente a fortaleza da irresponsabilidade).
Mencionar que existem registros de que continuou a prática de lançamento de dejetos fecais
humanos sem tratamento, no ambiente, quase um ano após o surto (AP, 2011) é apenas mais
um exemplo do aumento dos riscos que decorrem da certeza de não se dever responder pelas
consequências de seus atos - sejam elas quais forem.
Novamente é de Beck que vem o alerta que serve perfeitamente à situação que nos
serve de exemplo: "não é a falha que produz a catástrofe, mas os sistemas que transformam a
humanidade do erro em inconcebíveis forças destrutivas" (2010, p. 8). Os riscos aos quais as
pessoas se sentem expostas, a partir do momento que as responsabilidades aparecem, levam à
violação da confiança e à certeza de que se perdeu qualquer horizonte normativo. Assim é
com a ONU. Ao não se permitir que sejam discutidas as causas dos problemas que suscitou,
potencializa-se a sensação de que emanam de sua atuação riscos cada vez maiores, mais
imprevisíveis e menos controláveis. Com a perda da confiança passa-se a questionar não
mais apenas os efeitos colaterais das ações, mas as ações em si e, no limite, a própria
Organização. A fortaleza jurídica se tornou a protetora esquizofrênica de um sistema
auto-corrosivo.
8. É CHEGADO O MOMENTO DA CONTRA-HIPÓTESE: A FORTALEZA SE ABRE
PARA AS IDEIAS
O contexto que se apresenta, se quisermos salvar as organizações internacionais e, no
caso aqui analisado, a ONU, de uma dinâmica auto corrosiva, há que se instituir freios no
desgoverno da irresponsabilidade institucionalmente organizada. É necessário que a
estrutura da ONU, no que tange às suas imunidades, passe por um tratamento sob pena
de se afogar em suas próprias anomalias. Daí porque os efeitos danosos decorrentes de atos
14
ilícitos da Organização devem ser colocados no centro da discussão – e não produzidos como
inexistentes.
A contra-hipótese que, conforme aqui se advoga, é preciso levantar, não se traduz em
extinções ou condenações sumárias. Pelo contrário, o que é necessário é trazer ao debate as
consequências dos atos, investigar e reconhecer a responsabilidade por ilícitos quando
ocorrerem e o decorrente dever de reparação de danos. Isso porque, quando o fortalecimento
normativo de uma organização internacional criou condições que converteram a própria
organização em problema, é chegada a hora de se refletir sobre o sistema. Nesse processo –
por paradoxal que seja - as perspectivas de futuro da ONU e suas oportunidades de
reforço e consolidação estão vinculadas diretamente à crítica da ONU.
Nesse processo, seguindo pistas apontadas Beck em “A sociedade de risco” com
relação à redução de inseguranças externas, é preciso, em primeiro lugar, a supressão das
causas e não apenas dos tratamentos dos sintomas. A desconfiança crescente em relação à
ONU deve ser tratada em suas causas, nos processos que criam e sustentam a impossibilidade
de responsabilização da Organização por danos decorrentes de sua atuação falha.
Em segundo lugar, é necessário criar condições que superem o mito da infalibilidade
e tornem possível o aprendizado a partir do erro. A fortaleza jurídica existente, tal qual
descrita acima contribui, porém, exatamente para o contrário. Ela engessa o futuro e gera
dinâmicas de irreversibilidades ao invés de desenvolver uma capacidade de aperfeiçoamento
construído pelo aprendizado a partir das falhas.
Por fim, é necessário aprender a se especializar no contexto. Trata-se da capacidade
de ir além de soluções isoladas e pontuais que estão postas e redescobrir e desenvolver uma
especialização contextualizada. Esta é a porta de oportunidade que se abre para o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos com a catástrofe da introdução do cólera no Haiti. É
chegado o momento de, a partir do sistema interamericano e do seu contexto, formular a
contra-hipótese.
9. PELO NÃO DESPERDÍCIO DA OPORTUNIDADE: A ATUAÇÃO DO SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS DE CÓLERA
A discussão a respeito da possibilidade jurídica de responsabilização da ONU pela
prática de atos ilícitos deve passar necessariamente não só pelo enfrentamento – e
reformulação - das normas jurídicas que lhe garantem imunidade, mas sobretudo pela
15
identificação dos órgãos que sobre ela terão jurisdição para garantir a efetividade da reparação
dos danos causados.
Os ventos sopram cada vez mais em direção à formulação de uma verdadeira teoria
da responsabilidade das Organizações Internacionais, e caberá ao direito ajustar suas velas
para não se perder no embate jurídico-científico que deve ser de uma vez por todos
solucionado em prol da efetiva responsabilização.
Assim é que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos é chamado a tomar
parte na desconstrução da fortaleza jurídica da irresponsabilidade erguida em torno da
ONU: a catástrofe do cólera em solo latino-americano foi levada à apreciação da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que se vê agora diante da possibilidade
de tratar o problema a partir de suas causas, e não de seus sintomas.
A denúncia apresentada baseou-se na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos que, a par de enunciar os direitos por ela protegidos, municiou o Sistema
Interamericano de dois órgãos encarregados de sua proteção e garantia, de forma tanto
preventiva quanto repressiva: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Nos termos do Regimento Interno da Comissão16, está
ela autorizada a receber e examinar petição que contenha denúncia sobre presumidas
violações dos direitos humanos consagrados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres
do Homem com relação a Estados-membros da Organização que não sejam parte da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
A partir desse dispositivo desenvolveu-se, na denúncia, raciocínio lógico que conduz
à possibilidade de colocação da ONU no pólo passivo de demandas por responsabilização
perante a Comissão: considerando-se que os Estados Americanos pretenderam fossem as
normas de direito internacional respeitadas em todo o espaço regional, o principal critério
determinante da jurisdição da Comissão diz respeito à dimensão espacial do território
americano, não se restringindo à adesão formal do sujeito de direito internacional a um
documento específico (FADISMA, 2011). Assim,
Se a Comissão pode conhecer até mesmo de denúncias com relação a Estadosmembros da OEA que não fazem parte da Convenção Americana pode, com
maior razão, fazê-lo se a denúncia versar sobre violação cuja responsabilidade
recai sobre um sujeito internacional derivado que atua em território regional e
16
Artigo 51: “A Comissão receberá e examinará a petição que contenha denúncia sobre presumidas violações
dos direitos humanos consagrados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem com relação aos
Estados-membros da Organização que não sejam partes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.”
16
em uma dimensão espacial sob soberania de um Estado-membro da OEA (grifo
nosso) (FADISMA, 2011, p.16).
Acenderam-se assim, portanto, as luzes do caminho que possibilitará à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos examinar o caso e, juridicamente, outorgar a resposta
adequada, atribuindo responsabilidade à ONU pela introdução – ainda que culposa – do
vibrião do cólera no Haiti, e condenando-a a reparar todos os danos daí advindos.
O reconhecimento de jurisdição das Cortes e Tribunais internacionais é o primeiro
passo a ser dado em direção à construção de um novo paradigma em tema de
responsabilização das Organizações Internacionais pela prática de atos ilícitos. É muito
importante que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos se dê conta de que não
pode desperdiçar esta importante oportunidade, que permitirá à América Latina legar
ao mundo uma nova perspectiva de construção do direito internacional.
Além do reconhecimento de jurisdição e competência para julgamento da
Organização, imperioso sejam revistas as bases que dão sustentação à imunidade material de
atuação que lhe é garantida especificamente pela já citada Convenção de Londres. Como se
sabe, as Organizações Internacionais são associações de sujeitos de direito internacional que
praticam atos ligados às suas atividades-fim, determinadas por objetivos comuns
estabelecidos por seus membros constituintes. Embora não pratiquem atos de gestão ou
império – próprios dos Estados soberanos – atuam nos territórios nacionais como qualquer
sujeito de direitos.
Não obstante, são disciplinadas, em suas relações com os Estados em que atuam, por
normas escritas consubstanciadas nos tratados de sede, que lhes conferem privilégios e
imunidade jurisdicional, o que tem se justificado ao longo do tempo em nome da liberdade de
atuação necessária para cumprirem suas finalidades, livres de pressões internas dos Estados
que as recebem.
Embora se diga que, em realidade, não se trate de privilégios mas, sim, de
prerrogativas e imunidades para uma boa atuação, a verdade é que, como visto, tal raciocínio
leva inexoravelmente ao mito da infalibilidade da ONU, resguardado por uma
irresponsabilidade oficialmente institucionalizada. Não faz sentido algum, na atualidade,
autorizar uma Organização a atuar e isentá-la da responsabilização jurídica de seus atos. Há
situações-limite, como as violações a direitos humanos, que não podem ser ignoradas, como
se inexistentes ou invisíveis. Pensada que foi justamente para assegurar a paz e segurança
17
mundiais, a estrutura normativa que deu vida e forma à instituição tem que ser reformulada
para refletir a adequada coerência entre seus fins e meios responsáveis de atuação.
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Disponível
em:
Nota de fim:
Minutos antes de este artigo ser enviado à LASIL (na noite de 03 de agosto de
2012), as autoras tiveram conhecimento de que a Faculdade de Direito de Santa
Maria, autora da denúncia mencionada neste texto, a qual pretendia-se que
fosse analisada pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, recebeu email apócrifo, destinado ao seu diretor geral, de endereço institucional da
Comissão Interamericana, nos seguintes termos:
“Estimado senhor, tenho a satisfação de dirigir-me a Vossa Senhoria, em
nome da Comissão Interamericana de Direitos Humanos com o objetivo de
19
acusar recebimento nesta Secretaria Executiva de sua correspondência de 15
de Março de 2012, mediante a qual solicita informações relacionadas à
competência deste organismo. A esse respeito, cumpre-me informar a Vossa
Senhoria que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos é competente
para conhecer de petições interpostas contra Estados membros da
Organização dos Estados Americanos. Encontrará em anexo a cartilha Como
apresentar petições ao Sistema Interamericano. Saudações cordiais,
Secretaria Executiva, Comissão Interamericana de Direitos Humanos”
20

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