Teorias da Justiça

Transcrição

Teorias da Justiça
Temas de Jurisdição Constitucional e Cidadania
(Teorias da Justiça)
Org. Prof. Dr. Alvaro Luis de A. S. Ciarlini
1
Organização
Alvaro Luis de A. S. Ciarlini
Temas de Jurisdição Constitucional e
Cidadania
(Teorias da Justiça)
2º Vol.
Autores:
Gabrielle Tatith Pereira
Eitel Santiago de Brito Pereira
Adriana da Fontoura Alves
José Wilson Ferreira Lima
Ana Carolina Figueiró Longo
Vick Mature Aglantzakis
Flávia Martins Affonso
Roberto Carlos Martins Pontes
IDP
Brasília
2013
2
CIARLINI, Alvaro Luis de A. S..
Título / Organizadores Alvaro Luis de A. S Ciarlini,
– Brasília : IDP, 2013.
143 p.
ISBN 978-85-65604-14-7
DOI 10.11117/9788565604147
1. Teoria das Justiças 2. Direitos Fundamentais.
I
CDD 341.2
3
Apresentação
A presente obra representa o esforço de pesquisa dos alunos do
Programa de Mestrado Acadêmico em “Constituição e Sociedade” do Instituto
Brasiliense de Direito Público, na disciplina “Teorias da Justiça”, ministrada no
segundo semestre do ano de 2012.
Os artigos acadêmicos abordam topoi de grande relevo para o atual
estágio de compreensão do Direito Constitucional no Brasil, notadamente em
virtude da elevada complexidade e densidade das questões que lhe são afetas,
a
revelar
a
insuficiência
do
uso
das
ferramentas
teóricas
usuais,
fundamentadas na dogmática constitucional, para a análise desses temas.
No mesmo momento em que a crescente complexidade gerada pela
dinâmica social produz a diversificação e o aumento da produção de novos
fatos e diferentes relações e situações jurídicas examinadas diariamente pelos
tribunais, a implicar na igualmente variada e crescente demanda em torno da
descoberta e da afirmação de inovadoras posições jurídico-políticas dos
cidadãos e dos correlatos direitos fundamentais passíveis de reconhecimento e
proteção, instaura-se uma crise em relação aos meios de fundamentação e
justificação das correlatas decisões judiciais aptas a subsidiar essas novas
descobertas.
As teorias da justiça estudadas cumprem a função de trazer a exame
uma série de diversificados e abundantes esquemas conceituais e estruturas
cognitivas a respeito dos tópicos centrais persistentes no trato dos direitos
fundamentais, auxiliando na elaboração de novas linhas discursivas de
fundamentação, inclusive ao propor distintos critérios valorativos e ao convidar
à reflexão a respeito de temas concernentes à ética e à moralidade política.
Atentos a esse desiderato, nossos articulistas trataram dos temas
centrais em curso nas Teorias da Justiça, notadamente ao versar a respeito da
igualdade, liberdade e também da conceituação do justo, abordando ainda os
três eixos axiológicos das sociedades democráticas, quais sejam, a equidade,
o bem-estar e o reconhecimento.
4
A leitura deste compêndio, portanto, é indispensável aos interessados na
iniciação e no aprofundamento dos assuntos concernentes às Teorias da
Justiça.
Prof. Dr. Alvaro Luis de A. S. Ciarlini
5
SUMÁRIO
CAPÍTULO
EDUCAÇÃO:
1:
PLURALISMO,
UMA ANÁLISE
IGUALDADE
E
DA APLICAÇÃO
JUSTIÇA SOCIAL
DAS
POLÍTICAS
NA
DE
REDISTRIBUIÇÃO E DE RECONHECIMENTO AOS BENS EDUCACIONAIS . 7
Gabrielle Tatith Pereira ......................................................................... 7
CAPÍTULO 2: Justiça e Reconhecimento. ....................................................... 28
Eitel Santiago de Brito Pereira ........................................................... 28
CAPÍTULO 3: O modelo de justiça distributiva de Dworkin e a saúde pública na
República Federativa do Brasil......................................................................... 40
Adriana da Fontoura Alves ................................................................. 40
CAPÍTULO 4: O PENSAMENTO DE RAWLS APLICADO À REALIDADE
CONSTITUICIONAL BRASILEIRA: A QUESTÃO DO PLURALISMO .............. 56
José Wilson Ferreira Lima.................................................................. 56
CAPÍTULO 5: ORDEM DE CADASTRO DE ADOÇÃO CEDE DIANTE DO
MENOR INTERESSE DA CRIANÇA ................................................................ 73
Ana Carolina Figueiró Longo .............................................................. 73
CAPÍTULO 6: Ações Afirmativas: A integração social através da conexão entre
o direito e a moral............................................................................................. 90
Vick Mature Aglantzakis ..................................................................... 90
CAPÍTULO 7: Breves esboços na busca de um conceito de justiça, nas
perspectivas de John Rawls e Ronald Dworkin.............................................. 106
Flávia Martins Affonso ...................................................................... 106
CAPÍTULO 8: REFLEXÕES ACERCA DA CONCEPÇÃO DE DEMOCRACIA DE
DWORKIN E O MODELO DE SUPREMACIA JUDICIAL ............................... 127
Roberto Carlos Martins Pontes ........................................................ 127
6
CAPÍTULO 1: PLURALISMO, IGUALDADE E JUSTIÇA SOCIAL
NA EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DA APLICAÇÃO DAS
POLÍTICAS DE REDISTRIBUIÇÃO E DE RECONHECIMENTO
AOS BENS EDUCACIONAIS
Gabrielle Tatith Pereira1
DOI 10.11117/9788565604147.01
Introdução
O momento político-constitucional vivenciado pelo Estado Democrático
brasileiro com as discussões acerca das cotas raciais, étnicas e sociais para
ingresso nas universidades públicas cria um ambiente acadêmico propício para
se discutir a justiça social na educação.
Em sociedades altamente complexas e pluralistas, a problemática da
igualdade deve abranger políticas de reconhecimento tanto quanto políticas
distributivas. A igualdade deve ser compreendida de forma complexa, como
uma igualdade na diferença.
Nesse contexto, pretende-se analisar a legitimidade das políticas de
redistribuição e de reconhecimento aplicadas a bens educacionais, no ensino
obrigatório e no ensino especializado, a partir das contribuições de Michael
Walzer, Nancy Fraser, Ronald Dworkin e John Rawls em suas teorias de justiça
distributiva.
2 Pluralismo, igualdade simples e igualdade complexa
Em sociedades complexas e pluralistas, o ideal de igualdade política
merece uma reflexão crítica. Uma sociedade que iguala seus cidadãos constrói
uma falsa aparência e produz um resultado de conformismo e monotonia.
As pessoas não são apenas fisicamente diferentes, mas também
possuem origens, interesses, capacidades, necessidades e valores diferentes.
Nenhum tratamento político igualitário será capaz de apagar ou diminuir a
1
Graduada em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Federal de Santa Maria/RS e
mestranda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP.
7
pluralidade; a imposição da igualdade, nesses termos, instituirá mecanismos de
dominação e de violência.
Contrariamente, o papel das sociedades democráticas é permitir que as
pessoas desenvolvam-se na diversidade sem violência. A igualdade não
consiste no nivelamento do ser humano, mas na necessidade que ele tem de
ser reconhecido como merecedor de igual consideração e respeito pelos seus
semelhantes. A igualdade é uma igualdade de reconhecimento, apesar das
diferenças.
É nesse sentido que Michael Walzer afirma que a raiz do significado da
igualdade é negativa, porque a igualdade é, em sua origem, uma política
abolicionista. Ou seja, não pretende eliminar todas as diferenças entre os seres
humanos, mas apenas um determinado conjunto de diferenças, variáveis em
cada contexto e lugar, como os privilégios, a riqueza, o poder burocrático, a
supremacia racial ou sexual, etc.. A igualdade destina-se a evitar a dominação
de um grupo por outro, a afastar a superioridade.2
Uma sociedade igualitária não pode pretender que todos sejam iguais e
possuam as mesmas coisas, porque esse é um objetivo inalcançável. Em
termos políticos e morais, todos são iguais quando estão livres dos
mecanismos de dominação e podem, livremente, viver segundo os seus
interesses e capacidades.
Nesses termos, tem-se uma forma de igualdade complexa, que
reconhece e respeita as diferenças entre os seres humanos e cuja pretensão
de igualdade tem como cerne o reconhecimento de igual consideração e
respeito.
Disso não resulta que a justiça social possa ser produto exclusivamente
do reconhecimento, prescindindo-se da redistribuição.3 As sociedades
2
WALZER, Michael. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. Trad.
Jussara Simões. São Paulo : Martins Fontes, 2003. p. XV.
3
Nancy Fraser refere-se criticamente ao fenômeno da globalização como o grande
responsável por transferir o centro de gravidade da justiça social da redistribuição para o
reconhecimento. Segundo ela, a viragem para o reconhecimento representa um alargamento
da contestação política e um novo entendimento da justiça social, incluindo a diferença sexual,
a raça, a etnicidade, a sexualidade, a religião e a nacionalidade. Assim, a justiça social não se
restringe apenas a questões de distribuição, mas também de representação, de identidade e
8
igualitárias devem distribuir os seus bens de modo que eles não sirvam como
instrumentos de dominação.
Todo o bem social, inclusive (e especialmente) a educação, deve ser
distribuído de modo a promover a justiça social, num sistema que congregue o
reconhecimento, ou seja, a afirmação de identidades, e a redistribuição, ou
seja, a eliminação de privilégios.
3 Educação e justiça social: reconhecimento e redistribuição de bens
educacionais
As mais diversas lutas por reconhecimento fortalecem-se (ainda que
paradoxalmente) num contexto de significativa desigualdade social e devem
ser empregadas como instrumento de reforço das políticas distributivas.
Reconhecimento e redistribuição são as duas faces da igualdade, formando o
que Nancy Fraser denominou de concepção bidimensional de justiça.4
Significa que a justiça é tanto uma questão de distribuição justa, quanto
uma questão de reconhecimento recíproco. Nenhuma das políticas, por si só,
basta. Por meio da distribuição, pretende-se eliminar as desigualdades sociais
e todas as formas de privilégio e exploração. Por meio do reconhecimento,
pretende-se eliminar a hierarquia institucionalizada de valor cultural, toda a
forma de falso reconhecimento em sentido lato, abrangendo a dominação
cultural, o não reconhecimento e o desrespeito.
O grande desafio da justiça social está em fazer com que as suas duas
esferas promovam-se conjuntamente.
Nas sociedades atuais, é cada vez maior a consciência das múltiplas
identidades étnicas, sexuais, filosóficas, religiosas, entre outros. Entretanto, o
reconhecimento e o respeito à diversidade nem sempre contribuem para a
redistribuição de bens.
de diferença. A autora observa, contudo, não ser evidente que as atuais lutas pelo
reconhecimento estejam a contribuir com a redistribuição, já que aparentemente se está a
trocar um paradigma por outro: um economicismo truncado por um culturalismo igualmente
truncado. In: A justiça na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista
Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2002, p. 09.
4
FRASER, Nancy. A justiça na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação.
Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2002, p. 11.
9
Nesse sentido, Nancy Fraser afirma que a concretização da justiça
bidimensional demanda um princípio normativo que inclua as reivindicações de
reconhecimento e de distribuição, sem reduzi-las uma às outras. Esse princípio
é o da paridade de participação, segundo o qual a justiça requer arranjos
sociais que assegurem aos membros da sociedade agir como pares, mediante
as seguintes condições: distribuição de recursos de modo a garantir um mínimo
de independência e “voz” aos participantes; institucionalização de padrões
culturais que exprimam igual respeito e iguais oportunidades para a obtenção
de consideração social.5
A primeira condição demanda um mínimo de recursos materiais, um
mínimo de igualdade que permite o exercício da liberdade e da participação. A
segunda condição exige um mínimo de igual consideração e respeito entre os
indivíduos e grupos sociais.
Partindo
desses pressupostos,
tem-se
como
inegável
o
papel
fundamental da educação no desenvolvimento da concepção bidimensional de
justiça social. Não apenas a educação é um bem que deve ser distribuído de
modo a reduzir a superioridade e a dominação sociais, como também é o
espaço destinado a formar cidadãos conscientes da diversidade e da
necessidade de se reconhecerem como iguais.
A educação é o primeiro – e talvez o mais importante – espaço para o
fomento da justiça social, por meio da conjunção de políticas de redistribuição e
reconhecimento.
4 Educação, distribuição e igualdade
As sociedades humanas educam as suas crianças, os seus novos e
futuros membros, como um programa de sobrevivência social. A educação
expressa o mais profundo desejo das sociedades de progredirem, de
continuarem, de perseverarem no tempo. Nesse sentido, a educação relaciona-
5
Ibidem, p. 13.
10
se com cada sociedade em particular e destina-se a formar o caráter dos seus
cidadãos.6
Mas a escola não deve ser um espaço de reprodução da sociedade tal
como ela é, com suas ideologias e hierarquias, porque isso implicaria afastar
qualquer possibilidade de justiça na distribuição de bens educacionais.
As escolas, os professores e as ideias revelam-se intermediários entre a
família e a sociedade e preenchem um espaço entre a infância e a maturidade.
Oferecem um contexto importante, embora não único, para o desenvolvimento
do entendimento crítico e para a produção de críticos sociais. Nas sociedades
complexas e pluralistas, as escolas possuem autonomia relativa, a qual lhes
possibilita uma distribuição também independente dos bens educacionais.7
As escolas preparam para o presente e para o futuro, para o exercício da
cidadania.
Devem
ser
um
espaço
relativamente
livre
das
pressões
socioeconômicas e devem educar as crianças independentemente da sua
origem social, econômica, étnica, racial, entre outros.
O propósito do ensino básico é formar os alunos de modo a lhes
assegurar (tanto quanto possível) o mesmo rendimento. A igualdade simples
que se pretende na fase inicial da formação dos indivíduos implica
desconsiderar as diferenças de interesse e de capacidade dos alunos,
garantindo-lhes democraticamente uma vaga no sistema educacional (uma
criança/uma vaga), porque todos os cidadãos precisam de educação.8
É inegável que, na prática, os alunos distinguem-se segundo o seu
interesse e a sua capacidade e a resposta que a escola oferece a essas
diferenças dependerá do seu currículo e de suas finalidades institucionais.
Deve-se ressaltar que a finalidade da escola não é reprimir diferenças, mas
apenas retardá-las, para que as crianças aprendam primeiro a ser cidadãs.
Significa que, nessa fase inicial, há uma presunção de que os alunos tenham o
mesmo interesse e a mesma capacidade.
6
WALZER, Michael. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. Trad.
Jussara Simões. São Paulo : Martins Fontes, 2003. p. 269.
7
Ibidem, p. 270-271.
8
Ibidem, p. 277.
11
Contudo, cumprida a fase inicial e obrigatória de formação das crianças,
esse sistema de igualdade simples torna-se inadequado, pois, alcançada a
finalidade comum da educação democrática, o ensino deve ser adaptado aos
interesses e às capacidades de cada um.9
Significa, primeiramente, que os cidadãos devem dispor de liberdade para
escolher continuar ou não o seu aperfeiçoamento intelectual. O livre-arbítrio é
fundamental, uma vez que há inúmeras atividades importantes na sociedade
que podem ser desempenhadas apenas com a formação educacional
obrigatória.
Havendo interesse, a sociedade deve decidir em que termos financiará os
estudos para que os alunos desenvolvam-se segundo as suas capacidades.
Essa decisão é de natureza política e já é praticada em muitos países, inclusive
no Brasil, por meio das universidades públicas.
Num plano ideal, todos aqueles que tivessem interesse deveriam ter
acesso às universidades públicas. Como não há vagas para todos, critérios
devem ser fixados para o preenchimento das vagas. O processo seletivo é uma
contingência. O critério comumente adotado para a seleção é o meritório, ou
seja, aqueles que tiverem o melhor desempenho escolar ingressam na
universidade.
O mérito é certamente um critério objetivo e seria muito adequado se
estivéssemos numa sociedade em que todos, independentemente de aspectos
sociais, econômicos, étnicos, raciais, entre outros, possuíssem a mesma
formação básica, a mesma educação para a democracia.
Essa não é, entretanto, a realidade de muitos países e do próprio Brasil,
em que as escolas públicas têm (como regra) qualidade inferior às escolas
particulares. A disparidade na formação básica dos alunos torna inadequada a
seleção exclusivamente calcada no mérito para o fim de se promover a
educação especializada dos jovens e dos adultos.
A ausência de uma igualdade simples na formação fundamental dos
alunos acaba por reforçar as ideologias e as posições hierárquicas da
9
Ibidem, p. 282.
12
sociedade no momento de promoção do estudo especializado. Em sua maioria,
alcançam as universidades aqueles alunos que, provenientes de classes mais
elevadas, tiveram condições familiares de cursar as melhores escolas,
comumente particulares.
Em tal sistema, a distribuição de bens educacionais revela-se um
instrumento de dominação e não um instrumento de justiça distributiva. Por
isso, numa sociedade em que a formação fundamental é excessivamente
dispare, o critério meritório, isolado, tem como resultado a concentração de
poder e riqueza.
Assim, até que a formação fundamental dos alunos seja semelhante,
outros critérios devem ser congregados ao meritório para que se possa
promover justiça social com bens educacionais.
5 Educação, reconhecimento e igualdade
O ensino fundamental é um espaço de formação dos cidadãos para o
exercício da democracia. A escola encontra-se num intermediário entre a
ideologia (temporariamente) predominante do Estado e da sociedade e os
valores morais, políticos e religiosos cultivados no seio das famílias.
Em decorrência de sua autonomia relativa, as escolas constituem um
espaço de reunião das diferenças e, consequentemente, um espaço em que
todos devem ser destinatários da mesma consideração e do mesmo respeito,
independentemente de suas características físicas, de suas capacidades ou de
suas opções morais, políticas ou religiosas.
O propósito da escola é conscientizar os alunos de que todos são
igualmente destinatários de reconhecimento, sem enfraquecer a formação e o
desenvolvimento
das identidades culturais
individualmente. Em outras
palavras, o objetivo é formar os cidadãos para a igualdade na diferença,
permitindo que eles consolidem suas próprias identidades, mas sejam capazes
de reconhecer as identidades dos demais.
Nesse papel, a escola está em permanente tensão com outros atores,
especialmente com a família e com a sociedade, porque neutraliza (embora
não anule) as influências e as hierarquias preestabelecidas nestas. Tanto é
13
assim que, se a educação compulsória fosse abolida, essa tensão
desapareceria e as crianças tornar-se-iam meros súditos de suas famílias e da
hierarquia social na qual se inserem.10
A educação fundamental é obrigatória porque é instituída no interesse da
comunidade. É por isso que a formação para o exercício da cidadania tem uma
relação indispensável com as políticas de reconhecimento. A escola deve ser,
por excelência, o locus em que os alunos aprendem a conviver com as
diferenças sociais, raciais, étnicas, culturais, religiosas, etc., e, mesmo assim,
iniciam a formação de suas identidades individuais.
E essa experiência será mais rica quanto mais diversificado o ambiente
escolar. Por consequência, a distribuição de vagas e de turmas não deve se
orientar por critérios que (justamente) inviabilizem a convivência na diversidade
e/ou fomentem a dominação.
Contudo, a experiência de muitos países demonstra o contrário, inclusive
no Brasil, porque as escolas não representam um local de diversidade. Em
regra, os alunos das classes média e alta frequentam escolas particulares, que
oferecem melhor formação, e os alunos da classe baixa frequentam escolas
públicas, que oferecem uma formação precária.
Nesse contexto, o fato de a distribuição de bens educacionais ser
desigual sob o prisma da qualidade do ensino, fazendo com que as escolas
meramente reproduzam as hierarquias sociais, também conduz a um processo
de falso reconhecimento, porque a ausência de diversidade no momento da
formação do aluno não permite o desenvolvimento do senso crítico necessário
ao respeito à diferença.
Esse problema, criado ainda no ensino fundamental, repercute igualmente
no acesso à educação especializada, que se torna cada vez mais elitizada e
que, em nenhuma medida, reproduz a pluralidade existente na sociedade.
10
WALZER, Michael. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. Trad.
Jussara Simões. São Paulo : Martins Fontes, 2003. p. 295.
14
Em contextos tais, questiona-se se as políticas de reconhecimento devem
ser reforçadas na educação especializada, por meio de ações afirmativas, no
intuito de compensar o lapso na formação fundamental dos cidadãos. Em
outras palavras, questiona-se se o ingresso nas universidades deve associar
critérios econômicos, de nacionalidade, de origem geográfica, de raça, de etnia
e de religião aos critérios meritórios tradicionais.
A questão central de estender ao ensino especializado as políticas de
reconhecimento está em desvirtuar a própria característica do ensino
especializado, que é a distribuição de bens educacionais segundo os
interesses e as capacidades de cada um. Num plano ideal, é admissível que o
ingresso nas universidades dê-se por critérios exclusivamente meritórios, já
que a educação universitária não atende apenas ao interesse da comunidade
(como no ensino obrigatório), mas especialmente ao interesse do indivíduo.
Assim, ao utilizar-se de um critério não meritório para o acesso ao ensino
especializado, a comunidade amplia seu poder de participação no processo
seletivo, fazendo sobrepor o seu interesse em detrimento do interesse
individual, já que a facilidade de ingresso de indivíduos menos preparados
(menos interessados e/ou capacitados) atende ao propósito da comunidade de
promover (tardiamente) políticas de reconhecimento e de redistribuição.
É evidente que essa interferência seria desnecessária se a sociedade
investisse mais seriamente na formação fundamental de seus cidadãos,
assegurando, nesse momento inicial, adequadas políticas de redistribuição e
de reconhecimento em face dos bens educacionais. Aperfeiçoar o ensino
obrigatório é a melhor forma de se garantir justiça social em sociedades
democráticas, ainda que os custos sejam elevados e os resultados apareçam a
médio e longo prazo.
Como alternativa, pode-se legitimamente compensar as deficiências na
formação obrigatória dos cidadãos com políticas de redistribuição e de
reconhecimento no ensino especializado?
6 Justiça social no ensino especializado: uma análise a partir da teoria
da igualdade de recursos de Ronald Dworkin
15
A fábula da formiga e da cigarra tem sido frequentemente citada para
ilustrar a principal crítica às teorias de justiça distributiva. Enquanto a formiga
trabalha incessantemente no verão para armazenar alimento para o inverno
rigoroso, a cigarra canta o verão inteiro e, consequentemente, passa fome no
inverno. Sob o prisma das teorias da justiça, essa fábula reforça que a
igualdade absoluta na distribuição de bens releva a responsabilidade que as
pessoas devem assumir por suas próprias escolhas como, por exemplo, entre
o lazer e o trabalho.11
Ronald Dworkin, ao desenvolver uma teoria de justiça distributiva, afirma
que uma sociedade somente atingiria o ideal de igual consideração e respeito
entre os cidadãos por meio de uma igualdade de recursos (e não por meio de
uma igualdade de bem-estar). A partir de um leilão hipotético (um mercado em
condições ideais), em que todos os participantes dispusessem inicialmente do
mesmo poder aquisitivo e tivessem à disposição os mesmos bens para
aquisição, a igualdade de recursos seria alcançada quando todos tivessem
adquirido os bens segundo o valor que possuíssem para si e para os demais,
sem cobiçar os recursos adquiridos pelos demais.12
Nesse sistema, desde o princípio as pessoas seriam responsáveis pelas
suas escolhas pessoais e pelo modo como decidem viver suas vidas (ou seja,
pelos bens que decidem comprar no leilão e pelas transações futuras no
mercado), assumindo os riscos decorrentes de suas opções.
Considerando, entretanto, que algumas pessoas possuem deficiências
físicas e mentais que lhes reduzem os recursos iniciais, comparativamente aos
11
FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Justiça distributiva para formigas e cigarras. Crítica. p. 243.
Segundo Dworkin: “nenhuma divisão de recursos será uma divisão igualitária se, depois de
feita a divisão, qualquer imigrante preferir o quinhão de outrem a seu próprio quinhão. (...)
Agora a distribuição passou no teste da cobiça. Ninguém cobiçará as compras de ninguém
porque, hipoteticamente, poderia ter comprado tal porção com suas conchas, em vez da
porção que comprou. (...) Na igualdade de bem-estar, as pessoas devem decidir que tipo de
vida querem, independentemente das informações pertinentes para decidir o quanto suas
escolhas reduzirão ou aumentarão a capacidade de outros terem o que querem. (...) Na
igualdade de recursos, porém, as pessoas decidem que tipo de vida procurar munidas de um
conjunto de informações sobre o custo real que suas escolhas impõem a outras pessoas e,
consequentemente, ao estoque total de recursos que pode ser equitativamente utilizado por
elas. As informações que sob a igualdade de bem-estar passam a um nível político
independente são, sob a igualdade de recursos, levadas ao nível inicial da escolha individual.”
In: A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2ª ed. São Paulo : Martins Fontes,
2012. p. 81-86.
12
16
demais, admitir-se-ia, nesses casos, uma compensação da sociedade (uma
espécie de responsabilidade coletiva). Para deficiências físicas e mentais
supervenientes (posteriores ao leilão), criar-se-ia uma espécie de seguro, como
um bem disponível para a compra e cujo risco de sinistro deveria ser
individualmente avaliado.
Um dos aspectos centrais a teoria da igualdade de recursos está em
determinar os limites da responsabilidade consequencial dos indivíduos. Até
que ponto é correto que os cidadãos carreguem sozinhos os fardos dos seus
infortúnios e desvantagens e até que ponto os membros da comunidade devem
atenuar ou aliviar as consequências dessas desvantagens?13
A resposta de Dworkin é que os indivíduos devem ser eximidos da
responsabilidade consequencial pelas características de sua situação que
decorrem de puro infortúnio, mas não pelas que decorrem de suas próprias
escolhas. Segundo exemplifica o autor, se alguém nasceu cego ou sem os
talentos que outros possuem, uma sociedade justa deve compensá-lo por isso.
Mas se possui menos recursos porque anteriormente os gastou com
preferências luxuosas ou porque resolveu não trabalhar ou trabalhar num
emprego de remuneração mais baixa, a sociedade não possui qualquer
responsabilidade.14
Para Dworkin, o que impede a maioria das pessoas de ter felicidade,
autorrespeito e um papel razoável na comunidade é a falta de recursos, tanto
de recursos impessoais (riqueza e outros bens materiais, como a educação)
como de recursos pessoais (saúde e capacidade física e mental). Assim,
garantir aos cidadãos uma adequada redistribuição de recursos impessoais e
um mecanismo de amenização das diferenças de recursos pessoais, como o
mercado hipotético de seguros, implicaria a igualdade de recursos, sem impedir
que esses cidadãos realizassem escolhas pessoais sobre suas vidas e se
responsabilizassem por essas escolhas.15
13
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2ª ed. São Paulo
: Martins Fontes, 2012. p. 402.
14
Ibidem, p. 402.
15
Ibidem, p. 425-426.
17
O relevante da teoria da igualdade de recursos de Dworkin, para este
trabalho, é a distinção entre circunstâncias e escolhas. A comunidade não pode
ser chamada a responder pelas escolhas e pelas consequências das escolhas
dos indivíduos. Entretanto, a comunidade pode ser chamada a responder pelas
circunstâncias de vida de certos indivíduos, não decorrentes de escolhas, que
reduzam seus recursos e os coloquem em situação de desvantagem em
relação aos demais.
Segundo defendido por Dworkin, a educação é um recurso impessoal,
que deve ser distribuído segundo um critério distributivo adequado e que esteja
em conformidade com as consequências das escolhas individuais.
Essa compreensão do autor não parece contrariar o quanto defendido em
tópicos anteriores, acerca da formação fundamental dos cidadãos. Parece
inegável que, numa comunidade, a preparação para o exercício da cidadania
deve ser obrigatória e igualmente assegurada a todos (igualdade simples),
porque se presume, no interesse da coletividade, que todos os alunos possuem
iguais interesses e capacidades.
Em relação ao ensino especializado, contudo, o acesso dos cidadãos
estaria a depender, num plano ideal, das suas próprias escolhas e
capacidades, ou seja, do quanto se dedicaram no período de educação básica
e do rendimento escolar obtido. E se a primeira fase escolar fosse um espaço
também de diversidade, como o deveria ser, a adoção de políticas adequadas
de redistribuição e de reconhecimento na fase inicial da educação asseguraria
o ingresso no ensino especializado com justiça social.
Mas como antes afirmado, as deficiências na formação fundamental dos
alunos impõem à sociedade considerar a adoção de políticas de redistribuição
e de reconhecimento na também em relação à educação especializada.
Dworkin reconhece expressamente que a educação superior de elite nos
Estados Unidos é um recurso valioso e escasso e que, embora esteja
disponível a pouquíssimos alunos, é paga por toda a comunidade, mesmo nos
casos de universidades particulares, as quais recebem verbas públicas e cujas
doações são objeto de deduções tributárias. Desse modo, afirma que as
18
universidades, públicas ou particulares, possuem uma responsabilidade pública
e devem escolher metas que beneficiem a comunidade como um todo e não
apenas os seus corpos discente e docente.16
Isso significa que, ao lado do critério meritório (rendimento escolar), as
universidades podem adotar como critério de seleção outros aspectos que
sejam relevantes para a concretização dos seus fins institucionais e dos fins da
própria comunidade. Nesse sentido, o critério de seleção estaria mais centrado
nas potencialidades de contribuição futura do universitário, comparativamente
aos demais alunos, em face das metas da universidade e da comunidade.
Mas como compatibilizar essa ideia com a base da sua teoria da
igualdade de recursos, ou seja, com a responsabilidade individual pelas
escolhas e com a responsabilidade coletiva pelas circunstâncias?
Considerando que circunstâncias raciais e étnicas, por exemplo, não são
decorrentes de opção e que, em determinados contextos históricos e políticos,
infligem a alguns indivíduos uma desvantagem inicial de recursos, é legítimo
esperar que a sociedade responsabilize-se por tais circunstâncias. O mesmo
em relação às deficiências físicas e mentais.
É evidente que há outros aspectos que podem infligir desvantagem inicial
de recursos aos indivíduos, como o próprio critério econômico, nos casos em
que as escolas públicas possuam qualidade inferior às escolas particulares.
Sendo assim, esse critério pode ser considerado, juntamente com critérios
meritórios, raciais, étnicos, de nacionalidade, etc., como relevantes para o
processo seletivo do ensino especializado.
Contudo, a teoria da justiça como igualdade de recursos parece
compatível com a ideia de que as deficiências no ensino fundamental dos
cidadãos podem ser compensadas com a adoção de políticas de redistribuição
e de reconhecimento no ensino especializado, ainda que temporárias, visando
à promoção de maior justiça social.
Isso não significa desvirtuar a própria natureza do ensino especializado,
que deve estar disponível aos alunos mais interessados e capacitados.
16
Ibidem, p. 569.
19
Significa apenas ampliar a noção de interesse e capacidade, de modo a
abranger aspectos outros que não apenas o critério meritório. A seleção dos
alunos mais interessados e mais capacitados incluirá as potencialidades que
eles têm de contribuir futuramente com a justiça social, a partir de uma análise
que congrega o mérito escolar a critérios raciais, étnicos, de nacionalidade, de
origem, de classe social, entre outros.
Para que essa realidade torne-se plausível, o ideal de justiça social não
pode se restringir à tradicional ideia de políticas de redistribuição, mas deve
abranger igualmente as políticas de reconhecimento. Em outras palavras,
justiça social não significa apenas redistribuir bens sociais, mas redistribuir
bens sociais considerando a diversidade presente na sociedade e permitindo
que esse processo contribua para a afirmação das identidades dos indivíduos e
dos grupos17 e para assegurar suas participações paritárias na vida social.
7 Justiça social no ensino especializado: uma análise a partir da teoria
da justiça como equidade de John Rawls
A problemática da justiça social no ensino especializado também pode ser
analisada à luz da teoria da justiça como equidade, de John Rawls.
Segundo o autor, a teoria da justiça como equidade é concebida para
uma sociedade democrática, que se constitui a partir de um sistema equitativo
de cooperação social entre cidadãos livres e iguais e que se rege por dois
princípios básicos: o princípio da igualdade de liberdades básicas (cada pessoa
tem o mesmo direito a um esquema plenamente adequado de liberdades
básicas iguais que seja compatível com o esquema de liberdade dos outros) e
17
Embora não seja propósito deste trabalho, vale ressaltar a crítica de Nancy Fraser acerca da
necessidade de se buscar uma política não-identitária de reconhecimento. Afirma a autora que
muitas lutas pelo reconhecimento tomam a forma de um comunitarismo que simplifica e reifica
as identidades de grupo, de modo que não promovem o respeito à diferença em contextos
multiculturais, mas o separatismo e a formação de enclaves grupais. Assim, ao não pretender a
valorização da identidade de grupo, propõe um modelo de estatuto voltado à superação da
subordinação, à introdução da parte subordinada como membro pleno da vida social, capaz de
interagir paritariamente com os outros. Em outras palavras, propõe desinstitucionalizar padrões
de valor cultural que impedem a paridade de participação e substituí-los por padrões que a
fomentem. In: A justiça na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista
Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2002, p. 14-16.
20
o princípio da igualdade equitativa de oportunidades (as desigualdades sociais
e econômicas devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos
em igualdade de oportunidades e devem beneficiar ao máximo os membros
menos favorecidos da sociedade – aplicação específica do princípio da
diferença).18
Esses princípios mantêm entre si uma relação de precedência, no sentido
de que, ao aplicar um princípio, presume-se estarem atendidas as condições
ideais do princípio anterior.
O princípio da igualdade de liberdades básicas pode ser representado
pelo conjunto de direitos e liberdades assegurados numa constituição, escrita
ou não, os quais resultam do consenso sobreposto numa sociedade pluralista e
complexa, permeada por doutrinas abrangentes conflitantes. São questões
fundamentais em face das quais é mais urgente a formulação de um acordo
político.
Trata-se de um princípio prioritário, ou seja, o segundo princípio somente
pode ser aplicado no contexto de instituições de fundo que satisfaçam as
exigências de se assegurar o valor equitativo das liberdades políticas, o que,
segundo definição de Rawls, acontece numa sociedade bem ordenada.
Significa que os cidadãos similarmente dotados e motivados têm praticamente
uma chance igual de influenciar a política governamental e de ocupar posições
de autoridade independentemente de sua classe social e econômica.19
O segundo princípio, o da igualdade equitativa de oportunidades, exige
que os cargos e as posições sociais estejam igualmente acessíveis a todos e
que as desigualdades sociais e econômicas sejam tratadas segundo o princípio
específico da diferença.20 A igualdade de oportunidades relaciona-se com a
capacidade que a sociedade tem prover instituições de fundo da justiça social e
econômica na forma mais adequada a cidadãos considerados livres e iguais. É,
portanto, o princípio mais afeto à justiça social.
18
RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Trad. Claudia Berliner. São
Paulo : Martins Fontes, 2003. p. 60.
19
Ibidem, p. 65.
20
Ibidem, p. 67.
21
Numa
sociedade
bem
ordenada,
em
que
os
cidadãos
agem
cooperativamente e estão asseguradas as liberdades políticas básicas e a
igualdade equitativa de oportunidades, a distribuição de renda e de riqueza
atende ao que Rawls denomina de justiça procedimental pura de fundo. Isso
porque, quando todos seguem as normas publicamente reconhecidas de
cooperação, as distribuições de bens resultantes presumem-se justas.21
Desde que observadas as normas das instituições (o procedimento de
fundo), não se analisam as distribuições individualmente, porque decorrentes
das opções e dos esforços de cada um dentro do sistema de cooperação
social.
É que as normas de fundo impostas pelos dois princípios básicos
destinam-se a manter a cooperação social equitativa ao longo do tempo. As
normas pretendem evitar que, a longo prazo, as transações e as associações
entre indivíduos produzam concentrações de riqueza capazes de esvaziar as
condições de igualdade e liberdade iniciais. Assim, a justiça distributiva, na
visão do autor, é entendida como uma justiça procedimental pura.22
Entretanto, o autor reconhece que mesmo as sociedades bem ordenadas
possuem desigualdades que deveriam ser evitadas ou minimizadas e a teoria
da justiça como equidade considera essas desigualdades em termos de
perspectivas de vida dos cidadãos, que são afetadas por três tipos de
contingências: a classe social de origem, os talentos naturais
(em
contraposição aos talentos adquiridos) e; a boa ou má sorte ao longo da vida
(doenças, acidentes, desemprego involuntário, etc.).23
Essas contingências sociais, naturais e fortuitas são relevantes para o
alcance das metas de uma sociedade baseada num sistema equitativo de
cooperação social. São desvantagens que se contrapõem à ideia de cidadãos
livres e iguais e que inviabilizam a concretização dos princípios básicos da
justiça como equidade.
21
Ibidem, p. 71.
Ibidem, p. 73.
23
Ibidem, p. 78.
22
22
Nesse sentido, o autor reconhece que primeiramente as sociedades bem
ordenadas devem educar seus cidadãos para que se reconheçam como livres
e iguais e como igualmente merecedores de participação paritária. Significa,
em outras palavras, que as sociedades equitativas devem promover políticas
de reconhecimento como parte indispensável da formação (obrigatória) de seus
membros para o exercício da cidadania. O reconhecimento recíproco deve
fazer parte da cultura política pública.
Mas isso não se mostra suficiente. A sociedade cooperativa deve tratar
das contingências acima mencionadas, especialmente da econômica, já que
ela é capaz de influenciar positivamente as consequências das duas outras
(com o emprego dos recursos adequados, aquele que não tem talentos
naturais pode desenvolver talentos, bem como eliminar ou remediar os efeitos
de doenças, acidentes e desempregos).
Os menos favorecidos são, portanto, os cidadãos que pertencem à classe
de mais baixas expectativas. Nesse contexto, o princípio da diferença,
subordinado ao princípio das liberdades iguais e ao princípio da igualdade
equitativa de oportunidades, deve nortear a justiça distributiva segundo um
critério público de justificação e no interesse das instituições de fundo.24
Segundo esse princípio, as desigualdades de renda e riqueza, por
maiores que sejam e por mais que as pessoas trabalhem para ampliar sua
parcela da produção, devem sempre beneficiar os menos favorecidos. Ou seja,
as desigualdades econômicas são admitidas desde que elas efetivamente
beneficiem os menos favorecidos. O princípio da diferença é um princípio de
reciprocidade.
A título exemplificativo, seria como dizer que o aumento da desigualdade
social entre empregador e empregados é admissível, segundo a teoria da
justiça como equidade, se o incremento da riqueza do empregador possibilitar
o aumento do salário de seus empregados, colocando-os, portanto, em
situação mais vantajosa.
24
Ibidem, p. 88.
23
Mas Rawls reconhece que, ao lado das contingências de natureza
econômica, há outras que podem ser consideradas bens primários na estrutura
básica das sociedades, como as distinções de raça e gênero.
A ênfase à renda e à riqueza justifica-se porque, na teoria ideal, os dois
princípios de justiça são aplicados à estrutura básica de uma sociedade
cooperativa, em que os cidadãos usufruem de liberdades básicas e de
oportunidades equitativas, de modo que as diferenças econômicas assumem
uma posição relevante.25
Não obstante, outras posições relevantes podem ser consideradas, seja
porque não são asseguradas as liberdades básicas dos cidadãos, seja porque
não são asseguradas oportunidades equitativas, a depender do contexto
histórico, econômico e político da sociedade em questão.
Portanto, as posições relevantes devem ser determinadas segundo a
estrutura básica de cada sociedade, podendo incluir questões raciais, étnicas,
de origem ou de nacionalidade, e o princípio da diferença deverá ser aplicado
como um instrumento de justiça distributiva.
A partir de tais considerações, pode-se testar a teoria da justiça como
equidade em face dos bens educacionais, a fim de responder à pergunta antes
formulada, sobre a legitimidade de se compensar as deficiências na formação
obrigatória dos cidadãos com políticas de redistribuição e de reconhecimento
no ensino especializado.
Como já afirmado, a teoria da justiça como equidade sustenta-se nos
princípios da igualdade de liberdades políticas e da igualdade equitativa de
oportunidades, os quais, num plano ideal, pressupõem uma formação
fundamental dos cidadãos para o exercício da democracia, ou seja, um ensino
básico obrigatório que desconsidere os interesses e as capacidades e que
promova a diversidade e o reconhecimento recíproco.
Em tese, satisfeitas essas condições ideias, o acesso ao ensino
especializado dar-se-ia segundo os interesses e as capacidades de cada um,
porquanto seria resultado do esforço individual, e o critério exclusivamente
25
Ibidem, p. 92.
24
meritório (rendimento escolar) seria suficiente para assegurar a equidade. As
contingências econômicas presentes na sociedade seriam admissíveis em
relação aos bens educacionais se, pelo princípio da diferença, esse critério
seletivo permitisse um ingresso cada vez maior de menos favorecidos nas
universidades, ainda que o acesso dos mais favorecidos fosse predominante.
Ocorre que, na prática, as contingências econômicas, raciais, étnicas, de
origem e de nacionalidade, entre outras, impedem a concretização do princípio
da igualdade equitativa de oportunidades em muitas sociedades. Essa
circunstância, por si só, justificaria a consideração de tais posições como
relevantes e merecedoras de normatização.
Para Rawls, as distinções de raça e de gênero são desigualdades que
somente se justificam se trouxerem vantagens para os negros e para as
mulheres, por exemplo, e se forem aceitáveis do ponto de vista dos mesmos.
Mas o próprio autor reconhece que historicamente essas desigualdades
originaram-se de desigualdades de poder político e econômico e que nunca
parecem ter sido vantajosas para os menos favorecidos.26
Numa sociedade bem ordenada, o autor espera que as distinções de raça
e gênero não sejam consideradas posições relevantes. Entretanto, se
constituírem fator de desigualdade em prejuízo dos menos favorecidos, a elas
deve ser aplicado o princípio da diferença, como um instrumento de justiça
social.
Nesse sentido, a teoria da justiça como equidade também parece
compatível com as políticas de distribuição e de reconhecimento destinadas a
minimizar desigualdades econômicas, raciais, étnicas, de origem e de
nacionalidade, inclusive em relação ao ingresso no ensino especializado, como
forma de compensar as deficiências da formação fundamental dos cidadãos e
assegurar-lhes futuramente iguais oportunidades de participação paritária nas
mais diversas esferas da vida social.
Conclusão
26
Ibidem, p. 92-93.
25
A justiça social na educação não pode prescindir da conjugação de
políticas de redistribuição e de reconhecimento. A educação, enquanto bem
social, deve ser distribuída com o propósito de reduzir a superioridade e a
dominação sociais, bem como de formar cidadãos conscientes da diversidade
e da necessidade de se reconhecerem como iguais.
É por isso que uma sociedade democrática e igualitária deve investir
seriamente na formação fundamental dos seus cidadãos, mediante a adoção
de políticas de redistribuição e de reconhecimento adequadas.
Quando a formação obrigatória é excessivamente dispare, o processo
educacional reforça a concentração de poder e riqueza e os meios de
exclusão. Assim, aperfeiçoar o ensino obrigatório é a melhor forma de se
garantir justiça social para o presente e para o futuro, ainda que os custos
sejam elevados e os resultados apareçam a médio e longo prazo.
Alternativamente, tem-se como legítimo compensar as deficiências na
formação obrigatória dos cidadãos com políticas de redistribuição e de
reconhecimento no ensino especializado.
As teorias da justiça analisadas são perfeitamente compatíveis com a
extensão dessas políticas ao ensino universitário, ainda que temporariamente,
visando à promoção de justiça social a curto e médio prazo. A utilização de
critérios raciais, étnicos, econômicos, de origem e de nacionalidade juntamente
com o critério meritório não releva a responsabilidade dos indivíduos pelas
suas escolhas. Ao contrário, permite a assunção coletiva da responsabilidade
por fatos históricos, políticos e econômicos, passados ou presentes, que não
resultam de opção e que infligem desvantagens e exclusão a indivíduos e
grupos.
Nesse sentido, as ações afirmativas para o ingresso no ensino
especializado têm a finalidade (tardia) de redistribuir bens educacionais
considerando a diversidade social e permitindo que esse processo contribua
mais efetivamente para a afirmação pacífica das identidades dos indivíduos e
dos grupos e para a suas participações paritárias na vida social, mostrando-se,
portanto, instrumentos importantes de justiça social.
26
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igualdade. Trad. Jussara Simões. São Paulo : Martins Fontes, 2003.
27
CAPÍTULO 2: Justiça e Reconhecimento.
Eitel Santiago de Brito Pereira
DOI 10.11117/9788565604147.02
1. Justiça como virtude e como valor assegurado pelo Estado.
Que se deve compreender por justiça? É difícil retorquir. Há diversas
doutrinas apontando os fundamentos das normas que avaliam os atos
humanos. A procura por uma definição ocupa filósofos, políticos, juristas e
sociólogos. Todos buscam, em suas diferentes áreas de atuação, a resposta
adequada, pondo o vetusto problema na conta das questões mais árduas a
respeito dos fundamentos das leis que disciplinam a vida coletiva.
Segundo José Flóscolo da Nóbrega, o conceito atual da justiça “é
em substância o mesmo dos antigos filósofos”27, que perceberam cedo a
impossibilidade de sobrevivência do ser humano fora do justo convívio com
seus semelhantes.
Em reforço da opinião esposada por Nóbrega, outros juristas, como
Tércio Sampaio Ferraz Jr, sustentam a impossibilidade de conservação da
própria sociedade “numa situação em que a justiça, enquanto sentido
unificador do universo moral,” viesse a ser destruída, porque a vida gregária,
em semelhante contexto, perderia o sentido e ficaria insuportável.28
Parece evidente que a justiça desdobra-se em duas dimensões: ora
se revela, no plano subjetivo, como virtude que ornamenta a personalidade do
indivíduo em suas interações; ora se mostra, no plano objetivo, como valor
assegurado pelo Estado no espaço do seu domínio, onde convivem as pessoas
submetidas à respectiva soberania.
Importa, no entanto, memorar que a justiça se caracteriza como um
valor escorado na alteridade, porquanto somente se manifesta nos atos sociais.
27
NÓBREGA, J. Flóscolo da. Introdução ao Direito. O direito como princípio. O direito
como norma. O direito como poder. O direito como garantia. 8ª edição revista e atualizada.
João Pessoa/PB: Edições Linha d’Água, 2007. P. 50.
28
FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito. Técnica, decisão,
dominação. 4ª edição. São Paulo/SP: Atlas, 2003. P. 352.
28
Dela não se cogita sem a existência de duas ou mais pessoas se relacionando.
Com essa convicção, explicita COMTE-SPONVILLE que:
(...) A justiça só existe na medida em que os homens a querem,
de comum acordo, e a fazem. Portanto, não há justiça no
estado natural, nem justiça natural. Toda justiça é humana,
toda justiça é histórica; não há justiça (no sentido jurídico do
termo) sem leis, nem (no sentido moral) sem cultura – não há
justiça sem sociedade.”29
Aristóteles dizia que a justiça corresponde a um dote ético superior,
englobando “a excelência moral inteira”. Para o sábio heleno, a referida virtude
é a expressão mais elevada da moralidade, de modo que “nem a estrela
vespertina nem a matutina é tão maravilhosa” quanto aquela disposição para a
prática do bem.30
Com base nos ensinamentos do famoso filósofo da Antiguidade,
conclui-se que a justiça se entrelaça com tudo o que é bom e capaz de
impulsionar as ações humanas, sendo a virtude absolutamente boa, porque
congrega outras qualidades positivas.
Comte-Sponville, pensador francês da Modernidade, concorda com
a visão aristotélica. Defende, inclusive, que as demais qualidades visíveis nas
personalidades das pessoas “só são virtudes a serviço do bem, ou
relativamente a valores”, que as superam e as motivam. Assim, por exemplo,
não passam de “simples talentos ou qualidades do espírito ou do
temperamento” a prudência, a temperança e a coragem postos “a serviço do
mal, ou da injustiça”.31
Tais opiniões evidenciam que a noção de justiça repousa no domínio
da moral, mesclando-se ao conceito de boa vontade de que nos fala Kant, em
sua “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”. Eis como se expressa o
sábio de Königsberg:
29
COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Tradução de
Eduardo Brandão. São Paulo/SP: Martins Fontes, 2010. P 84.
30
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. (Livro II). Tradução do grego, introdução e notas de
Mário Gama Kury, 3ª edição. Brasília/DF: Editora Universidade de Brasília, 1985,1999, p. 41.
31
COMTE-SPONVILLE, André. Obra citada. P. 69.
29
Não há nada em lugar algum, no mundo e até mesmo fora
dele, que se possa pensar como sendo irrestritamente bom, a
não ser tão-somente uma boa vontade. Entendimento,
engenho, poder de julgar e como quer que se possam chamar,
outrossim, os talentos da mente, ou coragem, decisão,
persistência no propósito, enquanto propriedades do
temperamento são, sem dúvida, coisas boas e desejáveis sob
vários aspectos; mas podem também tornar-se extremamente
más e nocivas, se não é boa a vontade que deve fazer uso
desses dons da natureza e cuja qualidade peculiar se chama
por isso caráter. Com os dons da fortuna dá-se o mesmo.
Poder, riqueza, honra, a própria saúde e o completo bem-estar
e contentamento com o seu estado, a que damos o nome de
felicidade, dão coragem e destarte também, muitas vezes,
soberba, quando não há uma boa vontade para corrigir sua
influência sobre o ânimo e, ao mesmo tempo, sobre todo o
princípio do agir, tornando-os assim conformes a fins
universais; para não mencionar o fato de que um espectador
imparcial e racional jamais pode se comprazer sequer com a
vista da prosperidade ininterrupta de um ser a quem não
adorna traço algum de uma vontade boa e pura e, assim, que a
boa vontade parece constituir a condição indispensável até
mesmo da dignidade de ser feliz..32
Os estudos a respeito da justiça realçam todos, ou apenas alguns
dos traços que marcam a aludida virtude.
Em certo momento, o escritor enaltece seu aspecto comutativo,
observável na vida privada. A justiça então aparece atuando na determinação
de direitos e obrigações decorrentes de contratos ou de atos ilícitos, para
resguardar a igualdade nas relações entre as pessoas.
Noutra ocasião, o autor privilegia a característica distributiva da
justiça, que se manifesta na vida social. Aqui, a virtude emerge repartindo os
encargos e vantagens da vida social, segundo critérios de proporcionalidade, a
fim de que cada um receba os benefícios de acordo com suas necessidades, e
dê, por outra banda, a sua contribuição de conformidade com a respectiva
capacidade.
Numa terceira oportunidade, o jurista exalta o sistema legal. A justiça
movimenta-se, nesta nuança, regendo as condutas dos governantes e
32
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução com introdução
e notas por Guido Antônio de Almeida. São Paulo/SP: Discurso Editorial : Barcarolla, 2009.
Págs. 101 a 103.
30
governados, como membros da sociedade, para prescrever à obediência à lei e
aos deveres impostos em mercê do interesse coletivo.
Por fim, os filósofos dão especial relevo aos fundamentos dos
comportamentos humanos. Nas avaliações deles, a justiça exibe-se através de
elucubrações
profundas
sobre
as
ideias
de
liberdade,
igualdade
e
solidariedade, que informam o seu conceito e vêm estimulando, no curso da
História, as lutas contra as injustiças do mundo.
Virtude aglutinadora de outras qualidades que enfeitam o caráter do
ser humano, a justiça também é um valor supremo, afiançado pelo próprio
Estado. Atesta o último aspecto o texto preambular da Constituição Federal, ao
proclamar que o povo brasileiro, por seus representantes, instituiu uma ordem
destinada a garantir a justiça como um dos “valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social
e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias”.33
2. Elogio à permanente e necessária luta dos justos.
Por causa da evidente interligação entre as duas, convém que a lei e
a justiça caminhem sempre na mesma direção. Contudo, nem sempre isso
acontece. A legislação algumas vezes distancia-se da liberdade, da igualdade,
da solidariedade ou de outros princípios integrados na noção daquela virtude.
Nestas situações, advém a pergunta: a lei injusta deve ser obedecida ou é
legítimo resistir à sua aplicação? Não é fácil responder. Especialmente porque
surgem, na prática, dificuldades para se dizer com precisão o que é justo, ou
injusto. Aliás, a justiça, esclarece Michael J. Sandel, também “diz respeito à
forma certa de avaliar as coisas.”34
Consciente dessa dificuldade de avaliação, Comte-Sponville invoca
lições aristotélicas e afirma, com muita propriedade, que “não é a justiça que
33
Dizeres contidos no Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil,
promulgada em 05 de outubro de 1988.
34
SANDEL, Michael J. Justiça. O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e
Maria Alice Máximo. 8ª edição. Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 2012. P. 323.
31
faz os justos, são os justos que fazem a justiça”35. Elogia, assim, a disposição e
a rebeldia dos que pelejam contra as injustiças. Para o filósofo francês, um
justo
É alguém que põe a sua força a serviço do direito, e dos
direitos, e que, decretando nele a igualdade de todo homem
com todo outro, apesar das desigualdades de fato ou de
talentos, que são inúmeras, instaura uma ordem que não
existe, mas sem a qual nenhuma ordem jamais poderia nos
satisfazer. O mundo resiste, e o homem. Portanto, é preciso
resistir a eles – e resistir antes de tudo à injustiça que cada um
traz em si mesmo, que é si mesmo. É por isso que o combate
pela justiça não terá fim. Esse Reino, pelo menos, nos é
proibido ou, antes, já estamos nele só quando nos esforçamos
por alcançá-lo. Felizes os famintos por justiça, que nunca serão
saciados!36
Qualquer ato (inclusive o proveniente da função legislativa), que se
dissocia da liberdade, da igualdade, ou da solidariedade, afasta-se do padrão
da justiça. Em tais circunstâncias, justifica-se a resistência e o combate, para
mudar o curso dos acontecimentos, restaurando o valor supremo da vida
coletiva.
Por mais complexa que possa ser a avaliação a respeito de um ato
ou de uma conduta, a justiça não é um objeto inatingível. Ninguém tem
dificuldade para encontrá-la por meio da emoção. Nóbrega registra isso,
anunciando que:
A justiça é elemento moral do direito, moral no sentido de
espiritual, de teleológico; e é seu princípio e fim, pois sem ela
não se conceberia o direito, que existe tão só como meio, ou
técnica de realizá-la. Não é possível defini-la com precisão,
pois como todo conceito limite, escapa à formulação lógica.
Podemos alcançá-la, como valor, através da via emotiva; mas
a emoção não é redutível ao pensamento. Mesmo o homem do
povo tem o sentimento claro do que é justo, como sente o
encanto de um pôr de sol, a doçura de uma melodia, embora
lhe escapem o significado da justiça e da beleza.
A justiça ‘é o horizonte na paisagem do direito’, horizonte que é
ao mesmo tempo um limite para a paisagem e um ponto de
referência para apreciá-la. A paisagem é penetrada de
horizonte e vive da claridade que dele flui; o direito é
35
36
COMTE-SPONVILLE, André. Obra citada. P.75.
COMTE-SPONVILLE, André. Obra citada. Págs. 94 e 95.
32
encarnação da justiça e só tem vida e sentido quando visto à
sua luz.37
A permanente e necessária luta contra as injustiças merece elogios.
Tem servido, ao longo do tempo, para concretizar o direito na sua inesgotável
dimensão de “luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos
indivíduos.” Em tal contexto, Rudolf Von Ihering ressalta que:
(...) O Direito não é uma simples ideia, é uma força viva. Por
isso a justiça sustenta numa das mãos a balança com que
pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por meio da
qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a
balança sem a espada, a impotência do direito. Uma completa
a outra, e o verdadeiro estado de direito só pode existir quando
a justiça sabe brandir a espada com a mesma habilidade com
que manipula a balança.38
3. Combates em defesa da liberdade e da igualdade.
No Estado Moderno, que superou o estágio primitivo do poder
arbitrário,
colocando-se
como
uma
organização
fundada
no
Direito,
transformou-se a justiça num valor constitucional a ser protegido pelas
autoridades. Mas esse modelo não surgiu espontaneamente. Proveio das lutas
do movimento constitucionalista39, dos embates travados nas conflagrações
liberais, vitoriosas na segunda metade do século XVIII.40
Naquela quadra da história da civilização, os homens brigaram
contra os que praticavam injustiças exercendo o poder de forma absoluta. Os
justos pretenderam e conseguiram sujeitar as autoridades à vontade do povo,
expressa nas leis feitas por seus representantes. Nos embates que travaram,
plantaram as sementes da democracia e do pluralismo, que se desenvolveu
37
NÓBREGA, J. Flóscolo. Obra citada. P. 49.
IHERING, Rudolf von. A Luta pelo direito. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo/SP:
Editora Martin Claret, 2002. P. 27.
39
O constitucionalismo “visa estabelecer em toda parte regimes constitucionais, quer dizer,
governos moderados, limitados em seus poderes, submetidos a Constituições escritas.” –
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 36ª edeição revista
e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 33.
40
As conflagrações referidas são os movimentos políticos que desaguaram na Revolução
Gloriosa da Inglaterra, na Independência Americana e na Revolução Francesa.
38
33
nos países onde foram partilhadas as funções do poder e declarados os
direitos individuais e as liberdades civis.
Apesar do histórico entrelace entre os direitos humanos e a natureza
democrática da organização advinda das lutas do liberalismo, o modelo político
proveniente daquelas pelejas se desgastou com o correr dos anos.
Algumas
Soberanias
não
dispuseram
de
outros
atributos
indispensáveis para formar governos legítimos, dando origem a autocracias
ditatoriais e totalitárias. Outras, embora obedientes às principais diretrizes do
regime representativo, assumiram feições acentuadamente abstencionistas.
Mesmo enaltecendo os direitos de primeira geração (vida, liberdades,
propriedade, segurança, nacionalidade e cidadania), não tiveram sensibilidade
para interferir nas questões econômicas. Assim, apegados à ideia de uma
igualdade formal, permaneceram indiferentes aos dramas provocados pela
injustiça dos desníveis sociais.
O Estado Moderno, no modelo liberal clássico, deixou de atender às
aspirações da maioria do povo, perdendo paulatinamente a legitimidade.
Estouraram, então, as pugnas das classes menos favorecidas pela fortuna, em
defesa da justiça representada no princípio da igualdade substancial das
pessoas. As reivindicações socialistas se tornaram intensas. Os justos
pelejaram na defesa das prerrogativas fundamentais de segunda geração, nas
quais se colocam os direitos sociais referentes ao trabalho e lazer, como
também os relacionados à educação, saúde, moradia, previdência e
assistência
social.
Era
necessário
garantir
a
igualdade
de
maneira
proporcional, tratando desigualmente os desiguais na medida de suas
desigualdades. Exigia-se a interferência do poder estatal nos processos
econômicos, para corrigir os desequilíbrios e garantir um mínimo de dignidade
às pessoas mais pobres.
Triunfaram as rebeliões do socialismo na primeira metade do século
XX41, fomentando o aparecimento de outro padrão de organização política. Em
nome da igualdade e proporcionalidade, surgiu o chamado Estado Social,
41
As mais importantes vitórias do Socialismo, na versão comunista, aconteceram com o triunfo
da Revolução Russa, em 1917, e da Revolução Chinesa, em 1949.
34
impondo aos governos atuações positivas contra as injustiças decorrentes das
desigualdades sociais.
No cadinho daquelas sublevações, compôs-se o arcabouço do
Estado Social, que se concretizou em dois padrões distintos conforme as
necessidades de adaptação às exigências das sociais democracias e dos
comunismos autocráticos. Os dois modelos se propuseram a desencadear
ações destinadas a erradicar ou, pelo menos, abrandar as desigualdades.
Nos países que preservaram as liberdades civis e não eliminaram a
propriedade privada dos meios de produção, surgiram as sociais democracias.
Os que mais se afastaram dos valores democráticos provenientes do
liberalismo, deram origem às autocracias comunistas.
Enquanto as sociais democracias ajustaram o padrão liberal clássico
de Estado às novas exigências decorrentes da afirmação dos direitos sociais,
as autocracias comunistas suprimiram liberdades civis, consagradas no Estado
liberal. Nos dois casos, os governantes passaram a intervir na ordem
econômica para garantir maior igualdade aos seres humanos. Todavia, as
experiências do comunismo demonstram que, nos países em que prevaleceu
tal regime, os dirigentes não hesitaram em eliminar a propriedade privada dos
meios de produção, anulando o pluralismo, sufocando as liberdades civis,
silenciando as minorias, amordaçando a imprensa e impedindo o povo de
fiscalizar os atos do governo.
Funcionou
o
Estado
Social,
nos
comunismos,
de
maneira
antidemocrática, abrigando a ditadura do proletariado, que logo se transformou
num sistema totalitário, intolerante e cruel com as minorias dissidentes.
Esgotou-se, assim, a esperança de igualdade preconizada pelo socialismo com
a implantação das autocracias comunistas, que se debilitaram mergulhadas no
lamaçal da prepotência de seus dirigentes e findaram soçobrando no lodaçal
da corrupção administrativa, dos privilégios da burocracia e da falta de
transparência dos respectivos governos.
Foi muito importante a contribuição que as lutas do socialismo
trouxeram para a afirmação e o reconhecimento dos direitos de segunda
35
geração. Apesar disso, o Estado Social representou um tremendo retrocesso
político, em sua versão comunista da ditadura do proletariado. Retrocesso que
gerou insatisfações, que foram reprimidas por algum tempo, mas terminaram
eclodindo nas revoltas coletivas que provocaram a extenuação e posterior
ruína daquele tipo de organização política.
Nas sociais democracias, o Estado Social esvaziou-se por outras
razões. Concorreu para isso a chegada de uma terceira geração de direitos
fundamentais, ainda pouco mencionados na época da consolidação daquele
modelo. Esta concausa estimulou o engenho dos políticos, que idealizaram
outro protótipo de organização política: o Estado Democrático de Direito.
A evolução da doutrina dos direitos e garantias fundamentais traz à
discussão uma terceira geração dessas prerrogativas, agora voltadas para
atender as necessidades de fortalecimento dos laços de solidariedade entre as
pessoas, nos planos interno e internacional. Em documentos internacionais (a
Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, de 1981, e a Carta de
Paris para uma nova Europa, de 1990) existem referências a direitos humanos
de terceira geração, entre os quais os concernentes à paz, à autodeterminação
dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
ao usufruto do patrimônio comum da humanidade, etc.
Dos escombros dos dois arquétipos de Estado procedentes do
liberalismo e do socialismo, germinou o Estado Democrático de Direito. Esse
novo padrão resultou das lutas do pós-socialismo e carrega consigo uma noção
ampliada da justiça. Com efeito, se submete o poder à ordem constitucional,
preservando as liberdades civis, impõe, por outro lado, a adoção de ações
governamentais positivas e indispensáveis à proteção dos direitos sociais,
visando diminuir as desigualdades. Ademais, não descura dos direitos de
terceira geração nem despreza as reivindicações de grupos minoritários, que
querem afirmar suas identidades e diferenças, que se rebelam contra as
injustiças das discriminações, exigindo reconhecimento. É o que explicaremos
no próximo tópico do presente trabalho.
4. Justiça e reconhecimento.
36
Antes de sua dissolução, a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas interferia numa parte do mundo, enquanto a outra se submetia à
influência dos Estados Unidos da América. Naquele tempo da chamada Guerra
Fria, as relações entre os povos não era tão grande, apesar do sempre
crescente desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação.
O quadro acima descrito se transformou no final do século XX, a
partir do desmantelamento do protótipo comunista de Estado. A queda do
império soviético não apenas revitalizou o padrão liberal adotado nas sociais
democracias, mas aprofundou as interações entre os povos, produzindo o
fenômeno da globalização, com seus processos de integração econômica,
social, cultural, e política dos países do mundo.
No mundo globalizado, a noção de justiça se alargou. Já não
envolve somente as exigências de contenção do poder, para que sejam
reprimidos os abusos e assegurados os direitos à vida, à propriedade, à
segurança e à liberdade. Nem se contenta apenas em abrigar as pelejas
fundadas na igualdade dos seres humanos, que reivindicam a proporcional
redistribuição dos recursos e das riquezas, de modo a suavizar os sofrimentos
das classes mais necessitadas. Vai além, acolhendo as lutas apoiadas na
solidariedade, e exigindo o reconhecimento dos direitos de terceira geração e a
afirmação das diferenças culturais de pessoas e grupos minoritários, carentes
de proteção contra as injustiças decorrentes de quaisquer tipos de
discriminação.
Há, com anota Nancy Fraser42, apenas um aparente antagonismo
entre as lutas do movimento socialistas, que pleiteavam eliminar, ou, pelo
menos, diminuir as desigualdades entre as pessoas, e as novas pelejas
patrocinadas por grupos minoritários raciais, étnicos, sexuais, religiosos ou
culturais, que postulam demonstrar suas diferenças e exigem respeito por suas
identidades, proscrevendo quaisquer discriminações.
42
FRASER, Nancy. A Justiça social na globalização: Redistribuição, reconhecimento e
participação. Artigo traduzido por Teresa Tavares e publicado na Revista Crítica de Ciências
Sociais nº 63, Outubro de 2002. Págs. 7/20.
37
Os justos, presentes nestes grupos minoritários, combatem,
principalmente, as injustiças decorrentes do não reconhecimento de quem os
avalia sem considerar suas diferenças. No entanto, as suas pelejas não
substituem nem esvaziam os combates dos que pedem mais igualdade, como
insinuam os neoliberais. Pelo contrário, muitas vezes as duas pretensões
ajuntam-se no mesmo grupo, como ocorreu com os negros estadunidenses,
que
precisaram
de
reconhecimento
mediante
políticas
afirmativas,
e
necessitaram, igualmente, de redistribuição através de políticas sociais
inclusivas.
Fraser destaca, como muita lucidez, a inexistência de antinomia
entre as reivindicações por redistribuição das encetadas por reconhecimento.
Ao seu sentir, ninguém deve se impressionar com a falácia do argumento
neoliberal, que sustenta o antagonismo entre as duas posições. Do ponto de
vista da pensadora estadunidense, é recomendável olhar a justiça
(...) de modo bifocal, usando duas lentes diferentes
simultaneamente. Vista por uma das lentes, a justiça é uma
questão de distribuição justa; vista pela outra, é uma questão
de reconhecimento recíproco. Cada uma das lentes foca um
aspecto importante da justiça social, mas nenhuma por si só
basta. A compreensão plena só se torna possível quando se
sobrepõem as duas lentes. Quando tal acontece, a justiça
surge como um conceito que liga duas dimensões do
ordenamento social – a dimensão da distribuição e a dimensão
do reconhecimento.43
Dessa forma, se a injustiça decorre de desigualdades semelhantes
às de classe, se provém de qualquer forma de exploração do trabalhador, o
remédio será a luta por uma melhor redistribuição dos recursos sociais e
econômicos. Mas se a injustiça se revestir sob a forma de um falso
reconhecimento, que implique na dominação cultural, no não-reconhecimento e
no desrespeito, a solução será o combate em prol da revalorização da
identidade desrespeitada ou do produto cultural do grupo discriminado, visando
o seu reconhecimento e a valorização de sua diversidade. Finalmente, se a
43
FRASER, Nancy. Obra citada. P. 11.
38
injustiça decorre simultaneamente das duas situações, a luta deve se dá nos
dois sentidos. Somente, assim, se combaterá a iniqüidade.
Nem o Estado de Direito, no modelo do liberalismo clássico, nem o
Estado Social, nos padrões do comunismo e da social democracia, se
mostraram capazes de atender todas as aspirações de organização política da
sociedade no momento atual. Foi por isso que se modelou o Estado
Democrático de Direito, com o objetivo de suplantar aqueles protótipos de
organização, através da incorporação e a harmonização dos valores
consagradas pela civilização.
Em conclusão, percebe-se que, além de ser uma virtude e um valor
supremo que precisa ser protegido pelo Estado, a justiça é, também, liberdade,
igualdade, proporcionalidade, solidariedade e reconhecimento.
Referências Bibliográficas
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e notas de Mário Gama Kury, 3ª edição. Brasília/DF: Editora Universidade de
Brasília, 1985,1999.
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Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo/SP: Martins Fontes, 2010.
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decisão, dominação. 4ª edição. São Paulo/SP: Atlas, 2003.
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edeição revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2010.
FRASER, Nancy. A Justiça social na globalização: Redistribuição,
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publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais nº 63, Outubro de 2002. Págs.
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com introdução e notas por Guido Antônio de Almeida. São Paulo/SP: Discurso
Editorial : Barcarolla, 2009.
NÓBREGA, J. Flóscolo da. Introdução ao Direito. O direito como princípio.
O direito como norma. O direito como poder. O direito como garantia. 8ª
edição revista e atualizada. João Pessoa/PB: Edições Linha d’Água, 2007.
SANDEL, Michael J. Justiça. O que é fazer a coisa certa. Tradução de
Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 8ª edição. Rio de Janeiro/RJ: Civilização
Brasileira, 2012.
39
CAPÍTULO 3: O modelo de justiça distributiva de Dworkin e a
saúde pública na República Federativa do Brasil
Adriana da Fontoura Alves44
DOI 10.11117/9788565604147.03
Resumo
A justiça distributiva aplicada à assistência à saúde, na perspectiva de
Dworkin, em A virtude soberana, envolve a implementação do que ele chama
de seguro-prudente, através do qual cada cidadão gastaria, de forma justa e
ideal, para garantir sua própria assistência à saúde, apartado da participação
do Estado. A realidade atual do sistema de assistência à saúde nos Estados
Unidos
demonstra
um
quadro
adverso,
no
sentido
de
seu
custo
insensatamente elevado, em paralelo a sua baixa eficácia e cobertura, em
termos populacionais. Nesse contexto, a Suprema Corte norte-americana
considerou constitucional a reforma no sistema de assistência à saúde
proposto pelo presidente Barack Obama - o Affordable Care Act, que inclui a
previsão da “obrigação individual” a exigir que os cidadãos adquiram um plano
de saúde privado, caso não sejam enquadrados como beneficiários de um dos
programas do sistema público de saúde. O Sistema Único de Saúde brasileiro,
principal forma de prestação de serviços na assistência à saúde em nosso
país, possui características bastante diversas daquelas observadas nos
Estados Unidos, reduzindo a pertinência da aplicabilidade do modelo de
Dworkin colocado em relevo.
Palavras-chave: justiça distributiva; liberdade; Dworkin; saúde; Brasil.
Abstract
Distributive justice applied to health care, from the perspective of
Dworkin in The Sovereign Virtue, involves the implementation of what he calls
44
Mestranda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, advogada
especialista em Direito do Estado, em Ciências Penais e em Direito Civil e Direito Processual
Civil. Médica, com título de especialista em Clínica Médica, Neurologia e Medicina Intensiva.
Plantonista da Unidade de Terapia Intensiva de Neurotrauma do Hospital de Base do Distrito
Federal e analista de saúde lotada na Promotoria de Defesa da Saúde do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios.
40
the prudent insurance, through which every citizen would spend in a fair and
ideal to ensure their own care health, apart from the state's participation. The
current reality of the health care system in the United States demonstrates an
adverse situation, to their insanely high cost, in parallel to its low efficacy and
coverage, in terms of population. In this context, the Supreme Court considered
constitutional the reform in the health care system proposed by President
Barack Obama - the Affordable Care Act, which includes provision of “individual
mandate” to require citizens acquired a private health plan, unless they are
classified as one of the beneficiaries of programs of public health. The Brazilian
Public Health System, main form of service delivery in health care in our
country, has characteristics very different from those observed in the United
States, reducing the relevance of applicability of the model Dworkin.
Keywords: distributive justice, freedom, Dworkin, health, Brazil.
Introdução
Ronald Dworkin, em A virtude soberana: a teoria e a prática da
igualdade, composta de escritos datados dos últimos anos do século passado,
delimita sua concepção de igualdade distributiva e explicita seu modelo de
aplicabilidade prática em políticas públicas de governo. Tal obra servirá como
paradigma para as análises a seguir descritas, com foco na sua interface com
aspectos de saúde pública.
Preliminarmente, através de elaborações imaginativas como o “leilão
hipotético” e o “teste da cobiça”, Dworkin conduz ao arcabouço do que designa
como a “igualdade de recursos”, a qual pressupõe que “os recursos dedicados
à vida de cada pessoa devem ser iguais”45 e remete à ideia de que essa
concepção aproxima-se do segundo princípio de justiça de Rawls – o “princípio
da diferença”.46
Nesse contexto, cabe destacar que John Rawls vai mais além, em seu
primeiro princípio de justiça, e adverte que “cada pessoa possui uma
inviolabilidade na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um
45
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 86.
46
Ibidem. p. 148.
41
todo pode ignorar”, portanto, em uma sociedade justa os direitos da cidadania
“não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais”. 47
A chamada justiça distributiva, no sentido moderno, insta o Estado a
garantir que a propriedade seja distribuída para toda sociedade, de tal forma
que se assegure o suprimento de um “certo nível” de recursos materiais a
todas as pessoas.48
Sob a perspectiva de tais concepções, aspectos particulares que
ilustram a realidade hodierna dos sistemas de assistência à saúde nos Estados
Unidos da América e no Brasil serão cotejados.
2 Princípio do “seguro prudente” nos Estados Unidos da América
No capítulo intitulado A justiça e o alto custo da saúde, Dworkin explica
seu ideário de justiça distributiva aplicado à política de saúde, direcionado à
realidade do sistema norte-americano existente à época da publicação de sua
obra.
As premissas estabelecidas são de que os Estados Unidos da América
“gastam demais em saúde” e têm uma “distribuição injusta” dos serviços
médicos, com exclusão da assistência de significativa parcela da população.49
Na sequência, diante da declarada perspectiva de que, nos próximos
cinco anos, um quarto da população do país estaria excluída de qualquer
cobertura de seguro-saúde, de forma absoluta, o autor afirma: “não podemos
oferecer a todos a assistência médica que os mais ricos dentre nós podem
comprar para si”.50
O plano apresentado por Bill Clinton ao Congresso norte-americano, em
1993, e não aprovado, é citado como uma forma de racionamento da
assistência médica naquele país, garantindo para “quase todos” um “pacote
básico” que excluía “alguns tipos específicos de tratamento”. Seria criado o
47
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 2. ed. p. 4.
FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. p. 8.
49
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 431.
50
Ibidem.
48
42
Conselho Nacional de Saúde, com a função de decidir “quais tipos de
tratamentos seriam necessários e apropriados e em que circunstâncias”. O
autor, todavia, demonstra sua inquietação sobre o plano quando questiona:
“como um órgão do governo com tamanha responsabilidade deveria tomar tais
decisões?”51
Nesse contexto, é consignada a existência de uma posição divergente,
no sentido da desnecessidade de racionamento da assistência médica, sob a
justificativa de que “se fossem eliminados os desperdícios e a ganância no
sistema de saúde dos Estados Unidos”, seria economizado o suficiente para
“dar às pessoas todos os tratamentos necessários”.52
Dworkin, entretanto, registra sua discordância desta posição e atribui os
gastos excessivos na assistência à saúde dos norte-americanos, de forma
preponderante, à avançada tecnologia dos meios diagnósticos e terapêuticos
incorporados ao sistema e afirma: “não podemos evitar a questão da justiça: o
que é um tratamento médico “apropriado” depende do que seria injusto
restringir com a desculpa do custo”.53
Então, é introduzido o conceito do “princípio do resgate”, segundo o qual
os médicos, na opinião do autor, ao fazerem “apologias a uma justiça ideal na
Medicina”, reforçam a premissa cartesiana de que a vida e a saúde são “os
bens mais importantes: todo o resto tem menor importância e deve ser
sacrificado em favor desses dois bens”.54
Dworkin estabelece que tal princípio ensejaria gastos até que não fosse
“mais possível pagar nenhuma melhora de saúde ou na expectativa de vida” e
“nenhuma sociedade sadia tentaria alcançar esse padrão”, sendo necessário
outro padrão de “justiça ideal na assistência médica”.55
Ao analisar a questão do seguro-saúde, Dworkin declara que ele “torna
as pessoas insensíveis” ao custo da assistência médica, e o “verdadeiro preço
51
Ibidem. p. 432.
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 433-434.
53
Ibidem.
54
Ibidem. p. 435-436.
55
Ibidem.
52
43
do seguro é subsidiado pela nação”. E assim conclui seu pensamento, sobre o
tema:56
Nossas despesas médicas são, portanto, irracionais: o sistema
faz para as pessoas as escolhas que elas não fariam sozinhas,
e o resultado é que há um exagero no cálculo de nossos
gastos coletivos, como deveria haver, com relação à
quantidade de assistência médica que realmente queremos,
em conjunto, pelo preço que queremos pagar.
O autor completa dizendo que os economistas conservadores
“aproveitam-se” desse fato e preconizam um “mercado livre” de assistência,
“para que as pessoas só possam ter a assistência médica que puderem pagar”.
Porém, discorda desse posicionamento, em virtude da realidade social dos
Estados Unidos: a distribuição de riquezas é “injusta”; as pessoas, em geral,
têm “informações insuficientes” sobre os riscos à saúde e a tecnologia médica
disponível e as companhias de seguro cobram prêmios mais altos (até
“proibitivos”) de pessoas com maiores riscos de saúde.57
Diante de tal análise, Dworkin anuncia seu ideal de justiça “mais
satisfatório” na assistência médica - o “seguro prudente” -, retomando seu
exercício de imaginação do início do livro: seu país seria transformado, de
forma a corrigir as distorções sociais supracitadas e a comunidade
transformada se ajustaria gastando de forma ideal e justa para obter sua
assistência à saúde, sem qualquer influência do Estado. Como decorrência
desse exercício, ele estabelece que a aplicação “justa” de recursos na saúde é
aquela que as pessoas “bem informadas” criam para si, desde que a
distribuição de riquezas na comunidade seja “justa”.58
Através do resultado obtido nesse modelo ideal, o autor crê ser possível
especular sobre qual assistência médica deve ser oferecida a todos “na nossa
comunidade imperfeita e injusta”. Enumerando várias possibilidades de
situações reais, em que aplicaria sua teoria do “seguro-prudente”, Dworkin
56
Ibidem.. p. 437.
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 437.
58
Ibidem. p. 438-440.
57
44
conclui que, então, os limites impostos à cobertura universal da assistência
médica não seriam “transigências da justiça, mas exigidos por ela”.59
E resume assim sua teoria:60
O princípio do seguro prudente equilibra o valor estimado do
tratamento médico com outros bens e riscos: presume que as
pessoas talvez pensem que levam uma vida melhor quando
investem menos em medicina duvidosa e mais para tornar a
vida bem sucedida ou agradável, ou para proteger-se contra
outros riscos, inclusive econômicos, que também possam
arruinar sua vida.
Ele complementa esclarecendo que o órgão estatal com prerrogativa
para decidir “quais tipos de tratamentos seriam necessários e apropriados e em
que circunstâncias” deveria ser composto por médicos e especialistas da área
da saúde e por “leigos de diversas idades, de diversas partes do país e, se
possível, de estilos de vida diferentes” e suas decisões teriam que ser
periodicamente revistas. Adicionalmente, enfatiza a necessidade de consultar a
opinião pública sobre sua noção de prioridade, antes de serem tomadas as
decisões de racionamento.61
Em síntese, Dworkin sustenta que o “teste do seguro prudente” ajudaria
a responder as perguntas-chave da justiça: “quanto os Estados Unidos devem
gastar, no geral, em seu sistema de saúde? Quanto desse sistema deve ser
distribuído entre os cidadãos?” E arremata, com convicção: “o plano de saúde
elaborado para respeitar as decisões dos cidadãos como seguradores
prudentes é, de fato, igualitário”.62
A esta altura é interessante anotar que uma crítica frequentemente
dirigida ao modelo supra descrito é que ele só pode ser considerado válido
para sociedades “justas”, uma vez que estando presentes desigualdades
econômicas, elas se traduzem em inequidades nas condições de saúde: o
status econômico adverso de uma pessoa amplia seu risco de adquirir doenças
59
Ibidem. p. 444.
Ibidem. p. 446.
61
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 447-448.
62
Ibidem. p. 446-449.
60
45
associadas a inadequações da dieta, a deficiências de saneamento básico, à
falta de acesso à atenção básica de saúde, entre outras circunstâncias, que
somente agravam a situação de injustiça material pré-existente.63
3. Breve análise do atual sistema de saúde dos Estados Unidos
Considerando que a obra de Dworkin, em relevo, tem como referencial o
sistema norte-americano de assistência à saúde, sob um viés notadamente
econômico, torna-se oportuna uma análise, ainda que perfunctória, de sua
realidade atual.
A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
é
uma
entidade
internacional que
congrega
trinta
e
quatro
países
industrializados, com economia do mercado, da qual os Estados Unidos fazem
parte desde 1961.64
Segundo dados da OCDE, o sistema de saúde dos Estados Unidos, que
se caracteriza como um dos poucos países com predomínio da assistência
privada, é o mais caro do mundo e 31° melhor em cobertura e assistência à
população65. Em 2009, os gastos com o sistema somaram quase US$
8.000/habitante, equivalentes a 17,4% do Produto Interno Bruto (PIB) do país,
o que corresponde a mais de 2,5 vezes a média de investimentos de todos
países membros da Organização, superando em mais de um terço os gastos
da Noruega – segunda colocada no ranking.66
As causas para esses gastos exorbitantes foram analisadas pela OCDE
e os resultados foram extravagantes: em 2007, por exemplo, o custo de um
parto normal era 50% mais caro e uma prótese de quadril era 45% mais cara,
nos Estados Unidos, em relação à França e ao Canadá. Paralelamente, o custo
63
KURTULMUS, A.F.. Dworkin’s prudent insurance ideal: two revisions. Journal of Medical
Ethics, 2012. v. 38. p. 243-246.
64
OECD.
Members
and
partners.
Disponível
em:
<
http://www.oecd.org/about/membersandpartners/>. Acesso em 04 nov. 2012.
65
GLOBO.COM. Dez fatos sobre o sistema de saúde americano. Disponível em
<http://oglobo.globo.com/mundo/dez-fatos-sobre-sistema-de-saude-americano5342414#ixzz2BJC6heji>. Acesso em 04 nov. 2012.
66
OECD. Why is health spending in the United States so high? Disponível em:
<http://www.oecd.org/els/healthpoliciesanddata/49084355.pdf>. Acesso em 04 nov. 2012.
46
dos medicamentos nos Estados Unidos foi de, pelo menos, 60% acima dos
cinco grandes países europeus.67
A partir de tais dados, inclusive considerando que o sistema de saúde
norte-americano não demonstra eficácia sequer proporcional à desmesurada
magnitude de seus gastos, torna-se possível a ilação de que tal sistema
congrega características extremamente peculiares que fogem ao padrão geral
de gastos no setor, como o observado em outros países, com realidades e
demandas sociais comparáveis, bem como análogo aparato tecnológico
médico / hospitalar.
Entre essas características específicas do sistema de saúde dos
Estados Unidos, podem-se colocar questões mais amplas e intangíveis,
histórica e ideologicamente definidas, associadas ao âmbito da política
econômica liberal e, até mesmo, vinculadas a práticas capitalistas extremadas.
Sendo assim, a proposta de Dworkin, em A virtude soberana, precisaria
ser cuidadosamente revista, sob a óptica de uma justiça distributiva
contextualizada para o sistema de saúde atualmente disponível nos Estados
Unidos, para que não reforce, de forma simplista, o liberalismo econômico,
valorizando o individualismo, em detrimento da assistência à saúde oferecida a
todos os cidadãos daquele país, que ainda vive, hodiernamente, uma grave
crise econômica, com escassez de empregos e de eficácia do Estado, na
medida em que as estimativas são de 50 milhões de pessoas não são
assistidas por nenhum seguro-saúde.68
É interessante, também, observar que em Justice for Hedgehogs,
publicado em 2011, Dworkin enquanto declara que, nos Estados Unidos, a
distância entre pobres e ricos têm aumentado de forma implacável e que as
teorias de justiça distributiva precisam ser reformuladas em sociedades
capitalistas “avançadas”, não deixa de ressaltar sua discordância quanto à
67
Ibidem.
GLOBO.COM. Dez fatos sobre o sistema de saúde americano. Disponível em
<http://oglobo.globo.com/mundo/dez-fatos-sobre-sistema-de-saude-americano5342414#ixzz2BJC6heji>. Acesso em 04 nov. 2012.
68
47
caracterização feita por Amartya Sen, no sentido do “transcendentalismo” das
teorias da justiça descritas por autores como ele próprio e Rawls.69
Talvez, não por acaso, é fato que em 28 de junho de 2012, a Suprema
Corte norte-americana decidiu, em apertada maioria, pela constitucionalidade
da reforma no sistema de sáude proposta pelo presidente Barack Obama - o
Affordable Care Act. A principal questão analisada foi a previsão da “obrigação
individual” (individual mandate) que, a partir de 2014, exige que os cidadãos
(observadas exceções) adquiram um plano de saúde privado, caso não sejam
enquadrados como beneficiários de um dos programas do sistema público de
saúde, tornando compulsória uma cobertura médica mínima, pública ou
privada, com previsão do pagamento de multas progressivas para o cidadão
que não cumprir sua “obrigação”.70
Neste ponto torna-se pertinente uma digressão sobre o poder do Estado,
em um contexto liberal democrático, no que tange à liberdade individual e ao
próprio ideal de igualdade.
A doutrina liberal entende que a igualdade não é somente compatível
com a liberdade, como é por ela solicitada. Desde as origens do Estado liberal,
a igualdade inspira dois princípios fundamentais: a igualdade perante a lei e a
igualdade dos direitos. Este último, inclusive, é enunciado no art. 1º da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.71
Paulo Bonavides, todavia, salienta que o liberalismo contemporâneo,
“realmente democrático”, não pode ser aquele da Revolução Francesa,
devendo ser acrescido de “elementos de reforma e humanismo com que se
enriquecem as conquistas doutrinárias da liberdade”, assim explicando:72
Recompô-lo em nossos dias, temperá-lo com os ingredientes
da socialização moderada, é fazê-lo não apenas jurídico, na
69
DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Harvard University Press, 2011. p.
350-352.
70
BALIARDO, Rafael, MELO, João Ozorio de. Obamacare é constitucional, diz Suprema
Corte dos EUA. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-jun-28/suprema-corte-euamantem-lei-reforma-sistema-saude>. Acesso em 06 nov. 2012.
71
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. 6. reimp. São Paulo: Brasiliense,
2006. p. 39-40.
72
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 8. ed. São Paulo: Malheiros,
2007. p. 62.
48
forma, mas econômico e social, para que seja efetivamente um
liberalismo que contenha a identidade do Direito com a Justiça.
Bobbio prossegue enfatizando que “a igualdade nos direitos compreende
a igualdade em todos os direitos fundamentais enumerados numa Constituição”
e, portanto, “são fundamentais os direitos que numa determinada Constituição
são atribuídos a todos os cidadãos indistintamente, em suma, aqueles diante
dos quais todos os cidadão são iguais”.73
Sobre a liberdade, como um direito negativo, Canotilho descreve que,
através dela, “visa-se defender a esfera dos cidadãos perante a intervenção do
Estado”.74
No mesmo sentido, Bobbio explica que, na doutrina liberal, liberdade é
entendida em relação ao Estado, protegendo o indivíduo dos abusos do
poder.75 E complementa:” (...) Estado liberal é aquele no qual a ingerência do
poder público é a mais restrita possível (...)”.76
Ante o exposto sobre o binômio liberdade - igualdade, faz-se mister
refletir sobre a legitimidade da posição do Estado definindo, de forma
compulsória, que o cidadão “contrate” um seguro-saúde.
Nesse contexto, o editor do periódico norte-americano The Washington
Times escreveu que “os amantes da liberdade estão em pânico” com a decisão
da Suprema Corte dos Estados Unidos, na medida em que respaldou o poder
do Estado em relação ao cidadão, obrigando-o a adquirir um produto ou
serviço, justamente naquela que costumava ser a “Terra da Liberdade”.77
Diante de tal situação fática, torna-se inevitável apresentar algumas
indagações, ou mesmo inquietações: como será viabilizado o acesso à
73
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. 6. reimp. São Paulo: Brasiliense,
2006. p. 41.
74
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed.
Coimbra: Almedina, 2003. p. 395.
75
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. 6. reimp. São Paulo: Brasiliense,
2006. p. 20.
76
Idem. Teoria Geral da Política. A filosofia política e as lições dos clássicos. São Paulo:
Elsevier, 2000. p. 101.
77
DECKER, B. M.. Obamacare and the death of liberty. Disponível em:
<http://www.washingtontimes.com/news/2012/jun/28/obamacare-and-the-death-ofliberty/#ixzz2ByzdZ6jR>. Acesso em 12 nov. 2012.
49
assistência à saúde daquele que não dispuser dos meios para cumprir tal
determinação?
Não
seria
cabível
a
consideração
acerca
de
corresponsabilidade do Estado na gênese de tal indisponibilidade? Em caso
positivo,
é
razoável
aceitar como
justa
a
simples
transferência
da
responsabilidade do Estado para o cidadão, exigindo que ele disponha de
meios próprios para assegurar seu direito? Quais seriam os parâmetros de
racionamento do direito à assistência à saúde aceitáveis perante a justiça
distributiva?
4. Aplicabilidade da teoria de Dworkin ao sistema de assistência à
saúde no Brasil
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, ao estatuir o conceito de
saúde como um direito fundamental, assim o fez:78
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas públicas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao
acesso universal igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação. (g.n.)
Portanto, a Constituição Federal definiu o protagonismo do Estado na
assistência à saúde dos cidadãos brasileiros, reservando às instituições
privadas uma participação, tão somente, complementar ao sistema único de
saúde (SUS), conforme o estatuído no art. 198.79
O SUS consolidou-se nas últimas duas décadas como a maior política
de Estado nesse país de dimensão territorial ímpar, com o princípio da
universalidade assegurando a todos, sem nenhum tipo de restrição, ou
“racionamento”, o direito à saúde.80
Entre os mais recentes resultados viabilizados pelo SUS pode-se citar a
redução da mortalidade infantil; a ampliação do número de consultas de prénatal; a erradicação do sarampo; a interrupção da transmissão da cólera e da
78
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 04
nov. 2012.
79
Ibidem.
80
BRASIL. Sistema Único de Saúde. Brasília: CONASS, 2011. p. 28.
50
rubéola. O SUS também se consolidou como o principal fornecedor de
medicamentos e realizou mais de 90% do total de cerca de 20.000 transplantes
de órgãos realizados em 2009, colocando o Brasil em segundo lugar no
mundo, nesse ranking, em números absolutos.81
Entre
as
políticas
desenvolvidas
pelo
SUS,
inclusive
com
reconhecimento internacional, destacam-se o Programa Nacional de Doenças
Sexualmente Transmissíveis e Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
(AIDS), além de um dos mais completos e bem sucedidos programas de
imunização do mundo, garantindo elevados índices de cobertura vacinal, em
todos os segmentos populacionais.82
Não obstante todo esse desenvolvimento na assistência pública à saúde
no Brasil, nos últimos anos, os gastos totais com o sistema são bem distantes
daqueles descritos para os países desenvolvidos, notadamente dos Estados
Unidos, significando, em 2009, valores de US$ 943/habitante - o equivalente a
menos de um terço da média da OCDE.83
Nesse intervalo de tempo, o Brasil, que chegou a se consolidar como a
sexta economia do mundo, ultrapassando a do Reino Unido, 84 manteve
investimentos da ordem de 9% de seu PIB (inferior à média da OCDE) no setor
de assistência à saúde.85
De forma adicional, ainda convivemos com reiterados flagrantes
escabrosos de situações que evidenciam a inconsistência dos argumentos de
escassez de recursos financeiros para manter o SUS no Brasil, que
frequentemente ensejam alusão à ficta pertinência da denominada “teoria do
possível”, tão somente comprovando a magnitude da prática de má gestão, no
âmbito do Poder Executivo pátrio.
81
Ibidem. p. 28-29.
Ibidem. p. 29.
83
OECD. Why is health spending in the United States so high? Disponível em:
<http://www.oecd.org/els/healthpoliciesanddata/49084355.pdf>. Acesso em 04 nov. 2012.
84
COSTA, Ana Clara. PIB fraco faz Brasil perder posto de 6ª economia do mundo.
Disponível em: <http://exame.abril.com.br/economia/noticias/pib-fraco-faz-brasil-perder-postode-6a-economia-do-mundo>. Acesso em 05 nov. 2012.
85
OECD. Why is health spending in the United States so high? Disponível em:
<http://www.oecd.org/els/healthpoliciesanddata/49084355.pdf>. Acesso em 04 nov. 2012.
82
51
Apenas a título de exemplo, conforme publicação datada de 11 de
novembro de 2012, segundo dados do Ministério da Saúde, desde 2003 foram
transferidos R$ 1,03 bilhão aos Estados e municípios brasileiros para
programas de tratamento e prevenção da AIDS, porém, R$ 161 milhões (15,6%
do total) não foram usados. Deve ser enfatizada a informação de que, a cada
ano, mais de 11 mil soropositivos morrem em nosso país e o número de mortes
por AIDS no Brasil tem se mantido estável desde 1998, enquanto no mundo
todo caiu, em média, 24% entre 2005 e 2011. Também é de se notar a
“simplicidade” da solução proposta para o caso em tela:86 “a partir de outubro
deste ano, a Comissão Intergestora Tripartite do SUS, que reúne 21
representantes do Ministério da Saúde, Estados e municípios, passou a discutir
o que fazer com o dinheiro que não foi usado”, como se a referida verba não
tivesse destinação juridicamente pré-estabelecida, de forma compulsória.
Outro aspecto a ser analisado, diante do pensamento de Dworkin sobre
a justiça distributiva, em relação ao seguro-prudente, é a questão da escolha.
Ele define que as pessoas “bem informadas” devem ser “responsáveis por suas
escolhas”. Nesse contexto, parece haver espaço para uma reflexão sobre a
real possibilidade de uma massa de cidadãos sem acesso à educação mínima,
muitas vezes portadores de sérias restrições cognitivas, tomarem decisões
embasadas
em
avaliações
minimamente
conscientes,
sopesando
adequadamente a relação risco / benefício acerca do seu investimento pessoal.
Segundo dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), no Brasil há cerca de 14 milhões de analfabetos (taxa de
9,6%), na faixa etária acima de 15 anos de idade.87 Apenas para efeito de
raciocínio sobre a magnitude da tragédia educacional / cognitiva em nosso
país, cabe o registro de que, de acordo com dados do Banco Mundial, em
86
BALZA, Guilherme. Em 10 anos, Estados e municípios deixam de usar R$ 160 milhões
em
programas
de
combate
à
Aids.
Disponível
em:
<
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/11/11/em-10-anos-estados-emunicipios-deixam-de-usar-r-160-milhoes-em-programas-de-combate-a-aids.htm>. Acesso em
12 nov. 2012.
87
BRASIL. Censo 2010: cai taxa de analfabetismo no país. Disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2011/11/16/censo-2010-cai-taxa-de-analfabetismono-pais>. Acesso em 09 jul 2012.
52
2009, a taxa de analfabetismo no Zimbábue, país africano com PIB per capita
igual a 5% do brasileiro, era de 8,14%.88
Tal situação é bem diversa daquela descrita nos Estados Unidos, onde
foi descrita, em 2011, uma taxa de analfabetismo de 1%.89
Assim, a simples transferência da responsabilidade sobre a assistência à
saúde do Estado para o cidadão, no Brasil, pode ensejar consequências
funestas e até irreversíveis para nossa sociedade como um todo.
Conclusão
Dworkin, ao tensionar os parâmetros de justiça distributiva preconizados
por Rawls, pode ter se afastado do bem-estar social a ser alcançado pelo
Estado, em um contexto de equidade, cabível no âmbito das políticas públicas
de saúde, admitindo, inclusive, restrições a diretos de cidadania, como a
liberdade, por exemplo.
O modelo proposto através de uma concepção do “seguro prudente”
parece ter sido considerado apropriado ao sistema do liberalismo norteamericano, a se considerar a posição adotada pela Suprema Corte daquele
país.
Todavia, é inequívoca a percepção de que não há nenhum parâmetro
comparativo racional que permita uma aproximação entre o sistema de
assistência à saúde vigente nos Estados Unidos e aquele praticado no Brasil,
atualmente.
Portanto, resta claro que seria necessário, de fato, um real esforço
“hercúleo” para visualizar alguma eventual pertinência da aplicabilidade direta
da tese de Dworkin, descrita no presente texto, à política de assistência à
saúde da República Federativa do Brasil.
Referências
88
MONTEIRO, André. Analfabetismo cai no Brasil, mas ainda é maior que no Zimbábue.
Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/saber/1007173-analfabetismo-cai-no-brasil-masainda-e-maior-que-no-zimbabue.shtml>. Acesso em 06 nov. 2012.
89
ESTADOS
UNIDOS
DA
AMÉRICA.
População.
Disponível
em:
<http://www.portalbrasil.net/americas_estadosunidos.htm>. Acesso em 06 nov. 2012.
53
BALIARDO, Rafael, MELO, João Ozorio de. Obamacare é constitucional, diz
Suprema Corte dos EUA. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-jun28/suprema-corte-eua-mantem-lei-reforma-sistema-saude>. Acesso em 06 nov.
2012.
BALZA, Guilherme. Em 10 anos, Estados e municípios deixam de usar R$
160 milhões em programas de combate à Aids. Disponível em:
<http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/11/11/em-10-anosestados-e-municipios-deixam-de-usar-r-160-milhoes-em-programas-decombate-a-aids.htm>. Acesso em 12 nov. 2012.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. 6. reimp. São Paulo:
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BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 8. ed. São Paulo:
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54
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RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 2. ed.
708 p.
55
CAPÍTULO 4: O PENSAMENTO DE RAWLS APLICADO À
REALIDADE CONSTITUICIONAL BRASILEIRA: A QUESTÃO DO
PLURALISMO
José Wilson Ferreira Lima90
DOI 10.11117/9788565604147.04
RESUMO
O presente artigo aborda aspectos pontuais da Teoria de Rawls
aplicados à Constituição Federal brasileira. Em especial, traça uma linha de
abordagem a partir da perspectiva política da justiça tratada em "Uma Teoria
da Justiça" (1971), de John Rawls, como também analisa e aponta como a
teorização de Rawls encontra ressonância, em parte, com a realidade
constitucional brasileira, notadamente quanto à diretriz que assegura o
pluralismo político, como um preceito fundamental.
Palavras-chave:
Teoria
Constitucional.
Pluralismo.
Preceito
Fundamental.
ABSTRACT
This article discusses specific aspects of Rawls's Theory applied to the
Brazilian Federal Constitution. In particular, it draws a line of approach from the
perspective of political justice addressed in "A Theory of Justice" (1971), John
Rawls, as well as analyzes and points of Rawls theory resonates in part with
reality Brazilian Constitution, particularly regarding its guideline that ensures
political pluralism as a fundamental precept.
Keywords: Constitutional Theory. Pluralism. Fundamental Precept.
INTRODUÇÃO
90
Aluno do Curso de Mestrado Acadêmico do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP.
56
A Constituição Federal brasileira é genericamente explícita quanto aos
princípios e fundamentos adotados, que regem as relações do Estado, interna
e externamente, com os seus cidadãos e também com todos os demais entes
públicos e privados com os quais a República Federativa do Brasil mantém
vínculos.
Chamados de "Princípios Fundamentais", eles se desdobram em
fundamentos (art. 1º e 4º) e em objetivos (art. 3º), e são seguidos por um
catálogo de direitos e de garantias fundamentais (art. 5º), que foram
positivados pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro (BRASIL, 2011).
A Constituição Federal, considerada em sua inteireza, reúne outros
vários princípios que se prestam à caracterização do perfil do Estado e da
sociedade brasileira, o que decorre não só da compreensão do texto (análise
literal), como também do contexto constitucional em que se encontram
inseridos. Entre eles, há de se destacar o pluralismo político (art. 1º, V), a
liberdade de crença (art. 5º, VI) e a liberdade de convicção filosófica ou política
(art. 5º, VIII),91 como importantes vetores de política do Estado, que disciplinam
as relações públicas para com os indivíduos e garantem seus direitos mais
essenciais.
Neste artigo, algumas reflexões sobre esses princípios evidenciarão a
correlação que guardam, a partir da dimensão constitucional que ocupam, com
a linha de abordagem na perspectiva política da justiça tratada em "Uma Teoria
da Justiça" (1971), de John Rawls, onde o autor enfoca o Estado organizado a
partir de uma visão de equidade e de justiça social, considerados como seus
parâmetros fundamentais:
A teoria da justiça como eqüidade foi apresentada por John
Rawls em 1971, com a publicação da obra A Theory of Justice,
que estabeleceu um novo marco em filosofia política na
91
Não apenas estas, mas também outras várias disposições constitucionais consagram e
reafirmam o pluralismo, de que são exemplos: o princípio da autodeterminação dos povos (art.
4º, III), o do repúdio ao terrorismo e ao racismo (art. 4º, VIII), o da concessão de asilo político
(art. 4º, X), a livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV), a liberdade de expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, IX), a de reunião (art. 5º,
XVI), a de associação para fins lícitos (art. 5º, XVII), a de criação de associações (art. 5º, XVIII),
a não extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião (art. 5º, LII), a liberdade de
associação profissional ou sindical (art. 8º) e a de filiação (art. 8º, V), a liberdade de
comunicação social (art. 220) etc.
57
segunda metade do século XX, no mundo ocidental. Sua teoria
da justiça como equidade parte de um pressuposto ético
motivacional, com a pergunta pelas razões para o
compromisso enquanto membro de uma comunidade moral,
defendendo a tese da co-originalidade de liberdade (liberty) e
igualdade (equality) em uma sociedade marcada pelo
pluralismo razoável (reasonable pluralism) de doutrinas
abrangentes (compreensive doctrines), visando fornecer uma
orientação filosófica e moral para as instituições democráticas
(SILVEIRA, 2007, p.169-170).
O que Rawls propôs em seus estudos filosóficos foi a conformação de
um modelo estatal baseado na justiça e na equidade, capaz de se opor às
violações às liberdades fundamentais, propiciar a eliminação das diferenças
entre os indivíduos e permitir o desenvolvimento e a prosperidade de todos.
Como questão central, Rawls lançou uma nova proposta de abordagem
ao modelo político, com o envolvimento participativo mais intenso da sociedade
na seara política. Ele buscou estabelecer princípios que formariam a base de
todo o Estado. No passo seguinte, com esses princípios e mais um catálogo
abrangente de direitos e deveres, entendeu ser possível a organização de uma
sociedade mais justa. Com o passar do tempo, Rawls (2000, p. 201) fez
algumas "atualizações" na sua proposta original: "[...] farei algumas
observações gerais sobre a maneira pela qual encaro atualmente a concepção
de justiça que eu havia denominado 'teoria da justiça como equidade' em meu
livro Uma teoria da justiça".
Rawls produziu, posteriormente, entre outros novos trabalhos, dois
importantes artigos: a) A teoria da justiça como equidade: uma teoria política, e
não metafísica (2000, p. 197-241) e b) O campo do político e o consenso por
justaposição (2000, p. 333-372), os quais deram suporte à ideia central do
presente artigo, cujo objetivo é analisar e apontar como a teorização de Rawls
encontra ressonância, em parte, com a realidade constitucional brasileira,
notadamente quanto à diretriz que assegura o pluralismo político, como um
preceito fundamental.
2 PLURALISMO: UM CONCEITO
É intuitivo o sentido positivo que o termo pluralismo encerra,
especialmente porque sugere a reunião ou a aproximação de muitos
58
indivíduos. O pluralismo é, por assim dizer, uma concepção, uma forma própria
de enfocar e qualificar a sociedade:
Na linguagem política chama-se assim a concepção que
propõe como modelo a sociedade composta de vários grupos
ou centros de poder, mesmo que em conflito entre si, aos quais
é atribuída a função de limitar, controlar e contrastar, até o
ponto de o eliminar, o centro de poder dominante,
historicamente identificado com o Estado (BOBBIO, 1998, p.
928).
O pluralismo, enquanto expressão de pensamento, atua de modo a se
opor às formas de concentração e de unificação do poder. Sua importância
revela-se na medida em que se reconhecem as inúmeras formas e atividades
presentes no meio social, que disputam o poder, buscando fazer prevalecer
suas próprias doutrinas, como as políticas, religiosas, filosóficas, econômicas e
sociais, entre outras.
É importante pontuar que, embora diversas, as várias doutrinas
existentes podem se compatibilizarem e coexistirem, formando uma sociedade
plural:
[...] as propostas das doutrinas pluralistas são perfeitamente
compatíveis, já com as propostas da doutrina constitucionalista,
uma vez que a divisão horizontal do poder não obsta, mas
integra a divisão vertical, já com as da doutrina liberal, visto a
limitação da ingerência do poder estatal constitui, de per si,
condição de crescimento e desenvolvimento dos grupos de
poder diversos do Estado, já com as da doutrina democrática,
pois a multiplicação das associações livres pode constituir um
estímulo e uma contribuição para o alargamento da
participação política. Todas elas são compatíveis, porquanto
visam ao mesmo alvo comum: o Estado como único centro de
poder (BOBBIO, 1998, p. 928).
3 PLURALISMO POLÍTICO
Um sistema com vários partidos políticos é um sistema que adota o
regime do pluralismo político, ou pluripartidarismo, que correspondente,
portanto, à existência de vários partidos, todos legítimos representantes do
povo, na perspectiva do Estado democrático. Sendo assim, pode-se dizer que
os partidos políticos devem representar a vontade popular. E é nisso que
consiste
a
essência
da
democracia:
permitir
que
todos
participem
igualitariamente dos rumos da política, da sociedade e do próprio Estado.
59
No Estado democrático, como o é a República Federativa do Brasil, a
Constituição é o instrumento que permite a realização da democracia, o que
guarda perfeita adequação à noção de justiça política delineada por Rawls
(2008, p. 273), segundo o qual a Constituição "deve ser um procedimento justo
que satisfaça as exigências da liberdade igual", como também "deve ser
estruturada de modo que, dentre todos os arranjos justos viáveis, seja aquele
que tem maiores probabilidades de resultar num sistema de legislação justo e
efetivo".
No regime democrático, onde a democracia pode ser entendida como
"um sistema de organização política em que a direção geral dos interesses
coletivos compete à maioria do povo" (MALUF, 1988, p. 289), o interesse da
maioria (vontade) deve mesmo ser representado por grupos ou associações
(partidos), que mantenham uma linha de pensamento ou de ideologia comum
(internamente), mas que, ao mesmo tempo, permita a coexistência de várias
linhas distintas de pensamento (externamente), equalizáveis por meios
razoáveis de entendimentos, evitando-se que haja conflitos violentos.
Objetivamente, na República Federativa do Brasil, exige-se que os
partidos políticos, representantes da vontade popular, tenham caráter nacional
(art. 17, I) (BRASIL, 2011), o que confirma e reforça a pretensão de que sejam
representantes do povo em toda extensão do território nacional, vedando-se,
portanto, a representação de pequenos grupos ou facções com pretensões
políticas oligárquicas. Lembre-se: "Se oligárquicos, os partidos deformarão
completamente o sistema" (FERREIRA FILHO, 2001, p. 124).
Digno de registro, é que o pluralismo partidário corresponde ao ideal
democrático de iguais oportunidades para todos os indivíduos, na medida em
que, fomentando a produção de novas ideias de cunho político, permita os
avanços sociais almejados, senão por todos, mas ao menos pela maioria.
Desse modo, o pluralismo há de ser considerado um "sistema político
dentro do qual se permite a criação de inúmeros partidos" (NETO, 2006, p.
204) e, para além de um mero sistema, há de ser também o meio por
intermédio do qual as pessoas que tenham as mesmas "concepções" sobre
questões de interesse geral, possam se expressar.
60
Conceitualmente, partido político pode ser entendido como:
[...] associação voluntária de pessoas,
ideologia e programa, com a intenção de
parcialmente o poder, possivelmente
constitucionais, e satisfazer os interesses
(FERREIRA, 1989, p. 320).
com determinada
conquistar total ou
mediante meios
de seus membros
Para Rawls (2008, p. 8), a justiça deve ter como principal objeto "o modo
como as principais instituições sociais92 distribuem os direitos e os deveres
fundamentais e determina a divisão das vantagens decorrentes da cooperação
social". Nessa ordem de ideias, é perceptível que o sistema de justiça que
propõe somente pode se tornar viável na esfera de um ambiente social
ajustável às diferenças, a partir do reconhecimento da necessidade de se dar a
todos o tratamento mais igualitário possível. Naturalmente, esse ambiente
social somente pode ser alcançável no contexto de um regime constitucional
democrático, assim considerando que: "Democracia é o império da opinião
pública" e ainda que "Democracia sem liberdade participativa, democracia não
é; democracia sem justiça social de massas, democracia não pode ser"
(FERREIRA, 1989, p. 36).
A justiça em questão deverá não apenas zelar pela proteção dos direitos
dos iguais, mas ao mesmo tempo permitir que os indivíduos considerados
"desiguais" possam também fruir de todos os benefícios propiciados pelo
sistema. Vale dizer: "A justiça de um arranjo social depende, em essência, de
como se atribuem os direitos e os deveres fundamentais e também das
oportunidades econômicas e das condições sociais dos diversos setores da
sociedade" (RAWLS, 2008, p. 9).
Por assim entender, Rawls (2008, p. 73) lançou mão de dois princípios
que formam a essência de seu pensamento quanto à justiça:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema
mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja
compatível com um sistema similar de liberdades para as
outras pessoas.
92
Rawls relaciona a proteção jurídica da liberdade de pensamento e da liberdade de
consciência, mercados competitivos, a propriedade privada dos meios de produção e a família
monogâmica como exemplos de instituições sociais importantes.
61
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar
dispostas de tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente
esperar que se estabeleçam em benefício de todos como (b)
estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos.
Esse dois princípios formam a base de uma especial concepção política
de justiça, que se pode explicar da seguinte maneira: "Todos os valores sociais
– liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais do autorespeito – devem ser distribuídos de forma igual, a não ser que uma
distribuição desigual de um ou de todos esses valores seja vantajosa para
todos" (RAWLS, 2008, p. 75).
Mas porque o interesse numa concepção política de justiça? Para Rawls
(2000, p. 274), concepção política é um "quadro que guia a deliberação e a
reflexão" e "ajuda a alcançar um acordo político que incide pelo menos sobre
as exigências constitucionais essenciais.". Desse modo, pode-se extrair que a
concepção política de justiça deve albergar todo um regime de deliberações e
reflexões, que podem ser seguidas – ou não – de um acordo político, forjado
sempre em atendimento aos valores constitucionais mais fundamentais, entre
os quais se destacam: a liberdade e a igualdade.
Essa percepção quanto ao trato da justiça social, conduzida a partir de
uma visão mais igualitária dos indivíduos, se ajusta perfeitamente aos
delineamentos da democracia moderna, notadamente por se encontrar
lastreada por um conjunto de ideias e propostas de acordos, seladas entre
vários partidos que formam a base política do Estado brasileiro 93, mesmo
considerando a carência de unanimidade de entendimento em inúmeras
questões ligadas aos interesses gerais do Estado, da sociedade e dos
indivíduos.
De forma ampla, e ainda que não unânime, as aspirações sociais e
individuais, traduzidas sob a forma de acordos políticos, têm se concretizado
de modo a atender os interesses dos blocos que formam a maioria política,
mas sem desprestigiar os interesses da minoria. Nessa linha de entendimento,
portanto, há que se acolher a democracia como "o governo constitucional das
93
Atualmente, existem 30 (trinta) partidos políticos registrados no Tribunal Superior Eleitoral
(Cf. http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos).
62
maiorias, que, sobre a base da liberdade e igualdade, concede às minorias o
direito de representação, fiscalização e crítica no Parlamento" (FERREIRA,
1989, p. 37).
A possibilidade de participação das minorias, às vezes determinando a
direção do acordo em favor do bloco político de centro, de esquerda ou de
direita, às vezes lançando apenas novas propostas para discussão, já se
mostra uma vantagem bastante considerável, na perspectiva de que em todos
os casos as minorias têm assegurado o direito de participação no debate
político. Entretanto, o que não se pode é confundir o justo direito das minorias,
com a ilusória representação de partidos oligárquicos:
Dominados por pequenos grupos, servirão eles, sobretudo,
para propiciar uma influência desmedida aos militantes que os
controlam. Esses políticos, por assenhorearem-se da máquina
partidária, poderão a seu bel-prazer e segundo seus
interesses, raramente coincidentes com o interesse comum,
escolher candidatos, predeterminando forçosamente a escolha
popular, impor diretrizes cujo cumprimento a fidelidade
partidária tornará obrigatório (FERREIRA FILHO, 2001, p. 124).
Na dicção de Rawls (2000, p. 204), a concepção da justiça, enfocada
pelo viés político: "[...] deve ter em conta uma diversidade de doutrinas e a
pluralidade das concepções do bem que se defrontam e que são efetivamente
incomensuráveis entre si, sustentadas pelos membros das sociedades
democráticas existentes".
Por certo o pluralismo, diante do cenário atual da organização do Estado
e da sociedade brasileira, é o mecanismo que melhor se adéqua e responde
aos propósitos do regime constitucional democrático, inclusive fortalecendo-o.
Naturalmente, por óbvio, pode a decisão da maioria, tomada num ambiente
pluralmente concebido, em que há ampla liberdade de opções políticas,
religiosas e filosóficas, não ser a melhor decisão ou a decisão mais justa.
Todavia, o ambiente livremente plural permite, aos menos, a exposição e a
discussão mais aprofundada de importantes questões que tenham sido
apresentadas por todos os segmentos sociais, inclusive os que representam os
grupos minoritários.
63
Nesse contexto, é de grande relevância ter em consideração que a
pluralidade política requer que igualmente se tenha assegurada a liberdade à
pluralidade religiosa e à filosófica, de modo a conferir o igual respeito a que
todos os atores sociais possam participar do processo decisório, em quaisquer
das instâncias públicas, que exerçam alguma forma de controle social.
Pensar de maneira diversa, como inadmitir, por exemplo, manifestações
de apreço a teses religiosas diversas daquelas professadas pela maioria,
conduziria, forçosamente, à negação do pluralismo político, como preceito
fundamental consagrado na Carta Política do Estado brasileiro. Diga-se o
mesmo quanto a qualquer forma de restrição ou de negação a posições
ideológicas ou filosoficamente opostas àquelas adotadas pela maioria.
A título de exemplo, é suficiente destacar a ausência de concordância
sobre qual o sentido da democracia, embora esteja ela extraordinariamente em
alta em todo o mundo (DWORKIN, 2005, p. 501). Considere, portanto, que a
discordância geral sobre democracia num ambiente plural nada mais é que
uma específica forma de manifestação da própria democracia e também um
exercício da liberdade, que pode se desdobrar nas vertentes físicas, de
expressão, de pensamento, de arte etc.
Seguindo por esse viés, o que se poderia entender por democracia
noutro ambiente, que fosse, por exemplo, unipartidário, avesso à liberdade
religiosa e às convicções filosóficas diversas, senão aquelas professadas
unicamente pelo partido ou pelo grupo que controlasse o Estado? (considere,
neste caso, por exemplo, o momento em que a igreja atuou como agente
inquisidor).
Importante pressuposto para a compreensão da democracia é o de que
ela "significa governo exercido pelo povo, e não por alguma família, classe
social, tirano ou general", do que resulta claro que o "ideal democrático
repousa na compatibilidade entre a decisão política e a vontade da maioria, ou
pluralidade de opinião" (DWORKIN, 2005, p. 502).
Tudo isso conduz à possível conclusão de que o "Estado é democrático,
[...], até o ponto em que o governo aprova as leis ou procura exercer a política
64
que tenha, na época, a aprovação do maior número de cidadãos" (DWORKIN,
2005, p. 502).
O "fato do pluralismo", a que Rawls (2000, p. 252) concebe como
diversidade de doutrinas, não é, para ele, uma simples condição histórica, na
medida em que ele a tem como característica permanente da cultura pública
das democracias modernas: "Nas condições políticas e sociais garantidas
pelos direitos fundamentais e pelas liberdades historicamente associadas a
esses regimes, a diversidade das opiniões é chamada a durar ou até mesmo a
se desenvolver."
Nesse contexto, Rawls (2000, p. 252) enfatiza que um "acordo público e
efetivável, baseado numa única concepção geral e abrangente, só poderia ser
mantido pelo uso tirânico do poder". No cerne desse debate, ao buscar uma
concepção da justiça, segundo a perspectiva política, Rawls (2000, p. 255).
adverte: "Esta não pode ser formulada nos termos de uma doutrina religiosa,
filosófica ou moral geral e abrangente, mas antes nos de certas intuições
fundamentais latentes no seio da cultura política pública de uma sociedade
democrática". Segundo Rawls (2000, p. 346), uma "doutrina é totalmente
abrangente se ela cobre todos os valores e virtudes reconhecidos no seio de
um mesmo sistema relativamente bem estruturado".
É dentro desse cenário que emerge do núcleo fundamental da
Constituição brasileira o pluralismo partidário, como forma ou instrumento hábil
a preservar a igualdade, reduzir as desigualdades e, sobretudo, permitir que os
mais diversos setores da sociedade se interrelacionem e se comuniquem,
independentemente das diversidades de suas doutrinas políticas, religiosas ou
filosóficas.
4 LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA
Como consectário lógico do pluralismo político, ex-surge da construção
constitucional a liberdade de crença religiosa, que está moldada no texto
normativo sob a forma de garantia da inviolabilidade de crença e do exercício
dos cultos religiosos, assim como a proteção aos locais onde se praticam os
cultos e suas liturgias (art. 5º, VI) (BRASIL, 2011).
65
Esse dispositivo assegura a justa e necessária garantia de que se ao
indivíduo foi consagrado o direito de participar ativamente dos rumos da
política, mediante a livre escolha de uma ideologia partidária, de modo a
exercer a vida política no meio social, com mais razão há de ser assistido
também do direito de livremente professar e praticar a religião de sua escolha,
ou ainda não estar obrigado a professar crença alguma. Sob esse enfoque,
pode-se "sustentar, numa certa medida, a doutrina da liberdade religiosa com o
apoio da liberdade de consciência igual para todos" (RAWLS, 2000, p. 270).
Doutrinariamente, a "liberdade religiosa consiste na liberdade para
professar fé em Deus" (MENDES; BRANCO, 2012, p. 365). Nessa perspectiva,
faz-se mister esclarecer: "A Constituição assegura a liberdade dos crentes,
porque toma a religião como um bem valioso por si mesmo, e quer resguardar
os que buscam a Deus de obstáculos para que pratiquem os seus deveres
religiosos" (MENDES; BRANCO, 2012, p. 364).
Rawls (2008, p. 260) entende que a "justiça com equidade oferece, [...],
argumentos fortes a favor da igual liberdade de consciência". Essa "igual
liberdade de consciência", como se pode inferir, é muito mais abrangente que
uma simples consciência política, projetando efeitos também no campo da
religião:
Parece que a liberdade igual de consciência é o único princípio
que as pessoas presentes na posição original podem
reconhecer. Não podem correr riscos que envolvam sua
liberdade, permitindo que a doutrina religiosa ou moral
predominante persiga ou reprima outras doutrinas se assim o
desejar (RAWLS, 2008, p. 254).
Consequentemente, a justiça como equidade irradia efeitos para além
dos limites físicos, objetivamente determináveis, para ter ingresso no campo
metafísico, em que permite que o indivíduo possa ter paz espiritual,
professando ou não religião: "O Estado não se ocupa de doutrinas religiosas ou
filosóficas, e sim regula a busca de interesses espirituais e morais dos
indivíduos, de acordo com os princípios com os quais eles próprios
concordariam em uma situação inicial de igualdade" (RAWLS, 2008, p. 261).
66
Assim, considerando que há uma separação de finalidades entre o
Estado e o segmento religioso, é imperativo ter resguardado e bem
compreendido que o "Estado não pode favorecer nenhuma religião específica e
nenhuma penalidade ou incapacitação legal pode estar vinculada a uma dada
afiliação religiosa ou ausência dela" (RAWLS, 2008, p. 260-261). Entretanto,
ainda que assim se considere, não se pode olvidar que a atividade religiosa
sempre teve algum contato ou influenciou, de alguma maneira, o modo de ser
do Estado:
As condições históricas e sociais dos regimes democráticos
modernos encontram sua origem nas guerras de religião que
se seguiram à Reforma, no desenvolvimento do princípio de
tolerância que ela acarretou e, por outro lado, na extensão da
modalidade de governo constitucional e das economias ligadas
a um vasto mercado industrial (RAWLS, 2000, p. 251).
Diante do atual cenário da organização política brasileira, é possível
constatar que há um considerável envolvimento de diversos segmentos
religiosos não apenas de forma difusa na sociedade, mas também com intensa
atuação na política e, diretamente, na própria estrutura do Estado. A propósito,
tem-se o caso do Partido Social Cristão, cujo estatuto encontra-se registrado
no Tribunal Superior Eleitoral, dispondo que se rege com fundamento na
doutrina Cristã:
[...] o Cristianismo, mais do que uma religião, representa um
estado de espírito que não segrega, não exclui, nem
discrimina, mas que aceita a todos, independentemente de
credo, cor, raça, ideologia, sexo, condição social, política,
econômica ou financeira (PCS, 2007, não paginado).
Referido partido político é um dos que têm representação no Parlamento
brasileiro e participa, entre outros vários, da Frente Parlamentar Evangélica do
Congresso94, a qual tem natureza jurídica de associação civil, não
governamental, e representa as diversas denominações evangélicas no
Congresso Nacional, sendo integrada por deputados federais e senadores.
Com efeito, tanto quanto é reconhecida a pluralidade partidária como um
dos fundamentos do Estado brasileiro, é igualmente reconhecido em favor do
94
Sobre a Frente
Parlamentar Evangélica
http://www.mjcp.com.br/noticia.php?id=162
do
Congresso
confira-se
em:
67
indivíduo, diretamente, em nome da democracia, a liberdade de alguém ter e
manter sua fé, segundo uma doutrina religiosa qualquer, ou mesmo sem fé
alguma:
A lei protege o direito de imunidade no sentido de que a
apostasia não é reconhecida e muito menos punida como uma
transgressão, assim como não o é o fato de não se ter religião
nenhuma. É dessas maneiras que o Estado preserva a
liberdade moral e religiosa (RAWLS, 2008, p. 261).
5 LIBERDADE DE CONVICÇÃO FILOSÓFICA
Também a liberdade de convicção filosófica apresenta-se como um
importante direito positivado e resguardado em nível constitucional, na medida
em que possibilita o desenvolvimento de ideias dentro de um ambiente plural e
ao mesmo tempo livre de opressões.
A adoção de um sistema livre, que permite que o debate de questões
polêmicas possa se realizar sem prejuízo aos direitos individuais fundamentais,
reforça significativamente os valores da liberdade e da igualdade, a que todos
aspiram.
Em verdade, nenhuma garantia de liberdade física seria autêntica e útil
se não acompanhada, também, da liberdade de expressão de ideias, de
pensamento e de defesa de pontos de vistas. Uma convicção filosófica que não
pudesse ser expressada e defendida não permitiria qualificar o Estado como
"de Direito"; de igual modo, não haveria "Estado de Direito" se os
antagonismos e as divergências não pudessem ter espaço livre para o debate.
Modernamente,
existem
"espaços"
suficientemente
abertos
e
qualificados para a exposição de novas propostas filosóficas, como o são, por
exemplo, o ambiente acadêmico, o artístico e o religioso. Com efeito, o "espaço
público", onde se desenvolvem os diversos acordos políticos, não poderia se
furtar da responsabilidade de garantir não apenas a formal liberdade das
manifestações filosóficas, mas também garantir meios adequados ao pleno
exercício dessa liberdade, traduzida constitucionalmente como uma variante do
direito real de expressão.
68
O direito à livre convicção filosófica, tratado no catálogo constitucional de
direitos fundamentais (art. 5º, VIII), não é condicionado, mas permite que o
Estado possa, por exemplo, atribuir serviço alternativo aos que invocarem o
imperativo de consciência, na perspectiva religiosa, filosófica ou política, para
se eximirem da prestação de atividades militares (art. 143, § 1º) (BRASIL,
2011). Nesse tópico, a Constituição resguardou a "objeção de consciência",
que, segundo Rawls (2008, p. 459), "não se fundamenta obrigatoriamente em
princípios políticos", podendo "fundamentar-se em princípios religiosos ou em
princípios que diferem da ordem constitucional".
Nessa ordem de ideias, é salutar que não se imponha ao indivíduo
nenhuma obrigação da qual possa resultar violações às suas próprias
convicções religiosas, filosóficas ou políticas. Mas, ao contrário, na medida em
que o indivíduo livremente aceite participar e integrar as ações do Estado, ele
deve observar e cumprir todas as diretrizes do encargo assumido, ainda que
isso venha em oposição às suas convicções, sejam elas quais forem.
O que pode parecer paradoxal, verdadeiramente não o é. A "livre
adesão" do indivíduo a qualquer tipo de atividade estatal ou privada, ainda que
isso venha em oposição à sua convicção filosófica, por exemplo, é mais uma
expressão de sua liberdade de escolha.
A rigor, convicções filosóficas, religiosas e políticas podem não ser
ajustáveis entre si, e quase sempre não são, o que impõe o cuidado de se
observar que "ao defender uma concepção política da justiça, corremos os
risco de ter de afirmar alguns aspectos, pelo menos, da nossa própria doutrina
religiosa ou filosófica abrangente" (RAWLS, 2000, p. 270).
Todavia, a liberdade de escolha, dentro de um conjunto de opções,
permite ao indivíduo adotar uma ou outra postura política, ainda que não
atenda plenamente aos seus preceitos religiosos, ou mesmo às suas
convicções filosóficas. Mesmo assim, o exercício da escolha conduz à
satisfação pessoal dentro de uma medida razoavelmente possível. Trata-se,
nesse caso, de uma opção adotada numa visão democrática de liberdade:
69
Numa sociedade livre, ninguém pode ser obrigado, como os
primeiros cristãos o eram, a realizar atos religiosos, o que
representa uma violação à liberdade moral, nem deve um
soldado obedecer a comandos de inerente malignidade
enquanto aguarda um recurso a uma autoridade superior
(RAWLS, 2008, p. 462).
Nesse sentido, Rawls (2000, p. 202) enfatiza que "numa democracia
constitucional, a concepção pública de justiça deveria ser, tanto quanto
possível, independente de doutrinas religiosas e filosóficas sujeitas a
controvérsias", embora ressalve, mais adiante, que "a concepção política não é
considerada incompatível com os valores religiosos, filosóficos ou morais
básicos" (RAWLS, 2000, p. 276). Dentro desse campo de visão, percebe-se
que o instrumental constitucional brasileiro encontra-se afinado com a
perspectiva traçada por Rawls, uma vez que positivou e consagrou com o título
de direito fundamental, o direito ao livre exercício das ideais, num ambiente
plural, que permite a coexistência de várias doutrinas políticas, religiosas e
filosóficas, ou permite, ainda, o desinteresse por qualquer uma delas.
Um exemplo singular e bastante pragmático desse preceito e de sua
aplicação, encontra-se identificado na lei que fixou as diretrizes e bases da
educação brasileira, a qual apregoou que o ensino será ministrado tendo como
base o "pluralismo de idéias" (art. 3º, III) e o "respeito à liberdade e apreço à
tolerância" (art. 3º, IV) (BRASIL, 1996).
CONCLUSÃO
No contexto da temática aqui enfrentada, percebe-se que a Constituição
Federal (1988) encontra perfeita ressonância com o pensamento desenvolvido
por Rawls, na parte em que ela assegura, objetiva e expressamente, o direito
ao regime do pluripartidarismo político, assim como garante a liberdade
individual quanto às escolhas de doutrinas religiosas e filosóficas.
Se para Rawls (2008, p. 462) o regime democrático é "algo que
pressupõe a liberdade de expressão e de reunião e liberdade de consciência e
pensamento", para a Constituição Federal brasileira estes são princípios que
asseguram a existência e a manutenção do regime dos direitos fundamentais
do indivíduo.
70
Sem mais, considerando, ainda, que a "democracia é a ideologia do
nosso tempo, talvez não por convicção, nem por hábito, mas por falta de
alternativas" (ZAGREBELSKY, 2011, p. 36), não se pode deixar de concordar
que nestas poucas palavras há muita verdade, mas, ainda que se tenha em
vista a precariedade dos regimes constitucionais democráticos, estes são
sumamente necessários e ainda indispensáveis.
Verdadeiramente, seguindo na linha do pluralismo proposto por Rawls
(2000, p. 344), um regime democrático, duradouro e estável, que conte com o
apoio da maioria dos cidadãos "deve ser uma doutrina aceitável por uma
diversidade de doutrinas abrangentes, morais, filosóficas e religiosas". Com
efeito, o regime democrático brasileiro, constitucionalmente alicerçado, é o
melhor regime que se apresenta para o povo, em especial por ser um povo de
muitas culturas, muitas religiosidades, com diversos padrões morais,
intelectuais e políticos.
REFERÊNCIAS
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Varriale et al. 11 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
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Paulo: Saraiva, 2011.
BRASIL. Lei 9.394, de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>.
Acesso em: 6 nov. 2012.
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade.
Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 27.
ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
FERREIRA, Pinto. Comentários à constituição brasileira. São Paulo:
Saraiva, 1989.
MALUF, Sahid. Teoria geral do estado. 19. ed. São Paulo: Sugestões
Literárias, 1988.
71
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de
direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
NETO, Manoel Jorge e Silva. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006.
PCS. Partido Social Cristão (2007). Estatuto do partido social cristão.
Disponível
em:
<http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tse-estatuto-do-
partido-psc-de-1o-10-2007.2007>. Acesso em: 26 out. 2012.
RAWLS, John. Justiça e democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
SILVEIRA, Denis Coitinho. Teoria da justiça de John Rawls: entre o
liberalismo
e
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Disponível
em:
<http://www.scielo.br/pdf/trans/v30n1/v30n1a11.pdf>. Acesso em: 23 out. 2012.
ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. Tradução de
Monica de Sanctis Viana. São Paulo: Saraiva, 2011.
72
CAPÍTULO 5: ORDEM DE CADASTRO DE ADOÇÃO CEDE
DIANTE DO MENOR INTERESSE DA CRIANÇA
Ana Carolina Figueiró Longo95
DOI 10.11117/9788565604147.05
Introdução
Este é um trabalho reflexivo que resultou das discussões ocorridas no
curso de Teoria das Justiças, oferecido pelo Professor Álvaro Luis de A. S.
Ciarlini, no Programa de Mestrado em Constituição e Sociedade da Escola de
Direito do IDP.
As pesquisas e debatas em sala procuraram dar uma visão ampla e
panorâmica do problema da Justiça. Por isso, a bibliografia incluiu Hans
Kelsen, John Rawls, Ronald Dworkin e Habermas e dentro deste contexto
buscou-se o sentido do justo.
A reflexão que proponho, aqui, fundada nesta análise dos textos
consultados durante o curso e a respeito da justiça das decisões judiciais.
Refletir sobre a possibilidade de se atribuir o valor de justiça a um provimento
jurisdicional. Refletir se há um ideal de justiça a que a atuação jurisdicional está
vinculada e se é possível definir, a priori, a justiça ou injustiça.
Relevante registrar, que o presente artigo não tem a pretensão de
esgotar o conteúdo da doutrina de cada um dos autores apresentados, mas
apenas conciliar os principais conceitos discutidos em sala de aula e refleti-los
com base no caso concreto apresentado.
2 Da apresentação do problema
Em novembro de 2012 o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão
que determinou a quebra da ordem cronológica de inscrição no Cadastro
Nacional de Adoção, sob o argumento de que deve prevalecer o princípio do
melhor interesse da criança.
95
Mestranda em Constituição e Sociedade pelo IDP. Analista Processual do MPF e Assessora
da Diretoria Acadêmica do IDP.
73
No caso analisado um casal acolheu uma criança desde o nascimento e
com ela conviveu por dois anos. A criança foi entregue ao casal pela genitora
porque não tinha condições de mantê-la. E o casal passou a cuidar dela como
se filha fosse, independentemente de qualquer anuência estatal.
O casal já pretendia adotar uma criança e havia se habilitado para
adoção, nos termos do procedimento previsto no art. 197-A do Estatuto da
Criança e do Adolescente. Da habilitação decorreu, pois, a inscrição do casal
no Cadastro Nacional de Adoção,
Art. 197-E. Deferida a habilitação, o postulante será inscrito
nos cadastros referidos no art. 50 desta Lei, sendo a sua
convocação para a adoção feita de acordo com ordem
cronológica de habilitação e conforme a disponibilidade de
crianças ou adolescentes adotáveis, (BRASIL, 1990).
Dez dias após a acolhida, o casal ajuizou o pedido de adoção junto à
Vara da Infância e Adolescência de seu domicílio. A decisão de primeira
instância determinou o afastamento da criança da família que a acolheu e a
internação em uma unidade de acolhimento. A decisão do Tribunal de Justiça,
na apelação apresentada pelos adotantes confirmou a sentença, mantendo a
institucionalização da criança.
A decisão da apelação levou cerca de um ano para ser proferida e neste
ínterim o juiz da vara da infância e adolescência determinou a inserção da
criança em outra família, que estava numa posição mais privilegiada na lista do
Cadastro Nacional de Adoção. Nesta nova família, a criança permaneceu por
menos de dois meses, até retornar à família inicial, em cumprimento a decisão
cautelar proferida pelo Superior Tribunal de Justiça.
A decisão do STJ levou em consideração o disposto no parágrafo
primeiro do referido art. 197-E do Estatuto da Criança e do Adolescente,
segundo o qual “a ordem cronológica das habilitações somente poderá deixar
de ser observada pela autoridade judiciária nas hipóteses previstas no § 13 do
art. 50 desta Lei, quando comprovado ser essa a melhor solução no interesse
do adotando” (BRASIL, 1990). E o art. 50, § 13, do Estatuto assim dispõe:
74
§ 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de
candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente
nos termos desta Lei quando: (Incluído pela Lei nº 12.010, de
2009)
I - se tratar de pedido de adoção unilateral; (Incluído pela
Lei nº 12.010, de 2009)
II - for formulada por parente com o qual a criança ou
adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade;
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda
legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde
que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de
laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a
ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos
arts. 237 ou 238 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de
2009)
Verificou-se que a legislação de modo expresso determina que não se
pode seguir a ordem cronológica do cadastro estritamente, se isso
representará situação jurídica menos favorável para a criança e a adolescente
a ser adotado. Segundo o ministro relator, a institucionalização do menor, após
a retirada da companhia da primeira família, enquanto não colocado em outra
família “evidencia interregno absolutamente nocivo de vida em estabelecimento
de internação, que deve a todo custo ser evitado” (Coordenadoria de Editoria e
Imprensa, 2012).
Segundo a decisão do Tribunal Superior não havia impedimento para
que a primeira família acolhesse a criança, já que habilitados para adoção e já
convivendo com ela desde seu nascimento. Os únicos óbices apontados para
contraditar a adoção referem-se exclusivamente à ordem cronológica do
Cadastro de Adoção. “Conclui-se, assim, que só a inobservância da ordem
estabelecida no cadastro de adoção competente não constitui obstáculo ao
deferimento da adoção quando isso refletir o melhor interesse da criança”
(Coordenadoria de Editoria e Imprensa, 2012).
Além disso, constatou-se da narrativa do oficial de justiça que cumpriu a
ordem de busca e apreensão do menor, que o menor parecia estar inserido
naquela família, tratando os adotantes por “papai” e “mamãe”, e se recusando
a deixá-los. Ainda segundo o oficial de justiça, a criança precisou ser levada a
força.
75
Aqui nos deparamos com duas decisões diametralmente opostas, sob o
mesmo fato, ambas alegadamente fundadas na legislação positivada, mas com
interpretações diversas do que seria “o melhor interesse da criança” de que
trata o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Se cabe ao Poder Judiciário, na repartição dos Poderes do Estado, a
tarefa de dizer o direito, temos uma situação de fato em que dois magistrados,
imbuídos desta tarefa, o fizeram, entretanto, chegando a soluções opostas para
a mesma situação de fato.
O juiz de primeiro grau teve acesso mais próximo às partes, lhe foi
oportunizado ouvir seus relatos e conhecer de perto as circunstâncias que
justificaram suas ações, além de contar com uma equipe técnica de caráter
multidisciplinar para auxiliá-lo no momento da decisão. De outro lado, o
Superior Tribunal de Justiça é um órgão colegiado, formado por magistrados de
notável saber jurídico e com idade suficiente para ter a experiência de vida
necessária para formular um juízo coerente com os ditames do ordenamento
jurídico vigente e com os ideais de justiça que pautam a atuação dos
magistrados.
A pergunta que se coloca, pois, é qual das duas decisões representa o
ideal de justiça que deve viger no momento da atuação do Poder Judiciário? E
a resposta, necessariamente, deve levar em consideração que nem sempre a
última decisão é aquela mais justa, mas apenas aquela que transitará em
julgado e que a atividade jurisdicional envolve buscar a solução mais justa
levada a conhecimento do magistrado. E finalmente se pode indagar se, neste
contexto a ideia de Justiça que se busca é apenas aquela que favorecerá as
crianças envolvidas, já que o princípio norteador é o “melhor interesse da
criança”, ou se seria preciso encontrar uma Justiça que contemplasse
igualmente todos os demais envolvidos no processo?
3 DA ATIVIDADE JURISDICIONAL
Na lição de Gomes Canotilho, o Estado de Direito é um conceito
constitucionalmente caracterizado que se conjuga com os seguintes elementos:
(1) o princípio da constitucionalidade e correlativo princípio da
supremacia da constituição; (2) divisão dos poderes, entendida
76
como princípio impositivo da vinculação dos actos estaduais a
uma competência, constitucionalmente definida e da ordenação
relativamente separada de funções; (3) princípio da legalidade
da administração; (4) independência dos tribunais (institucional,
funcional e pessoal) e vinculação do juiz à lei; (5) garantia da
proteção jurídica e abertura da via judiciária para assegurar ao
cidadão o acesso ao direito e aos tribunais. (CANOTILHO p.
255)
A existência de ordem superior contendo os princípios eleitos como mais
importantes por aquela sociedade constituída é garantia de um Estado de
Direito. Isso porque é da decisão do povo a eleição dos princípios
fundamentais que guiarão a ordem interna do Estado e, nessa sorte, devem ser
imutáveis pelo sistema ordinário, sob pena de completa instabilidade e
desestruturação. Por tal razão, é de se considerarem nulas todas as normas
editadas em desconformidade com o ordenamento superior, visto que a ordem
constitucional vincula o legislador. Assim como também é função do juiz, ao
defrontar-se com situação em que há incidência tanto de norma quanto da
Constituição no caso concreto, ambas incompatíveis entre si, determinar que é
a primeira a incidir, visto ser esta a lei suprema do Estado (CANOTILHO) .
No mesmo sentido, Karl Larenz explicita que “o Estado de Direito só se
realiza plenamente quando também o legislador permanece vinculado aos
princípios jurídicos fundamentais” (LARENZ, 1985 p. 172). Prossegue o jurista
alemão, no mesmo texto, afirmando que a constituição de um Estado não é
apenas o somatório de regras estruturais, mas também tem sentido de Lei
Fundamental, de Direito Justo, de superdireito, no qual estão contidos, além
dos princípios jurídicos informadores, o capítulo de direitos fundamentais, e, é
por tal razão que o legislador está vinculado ao texto constitucional.
Ressalte-se que a vinculação do legislador à Constituição não está
fundada apenas no sistema jurídico constituído, mas na prevalência positivada
de normas fundamentais que estão acima de qualquer ordenamento jurídico,
tais como a preservação da dignidade humana ou da autodeterminação dos
povos.
Para que se caracterize o Estado de Direito, é preciso, igualmente, que
exista divisão entre os Poderes do Estado, de modo que a Administração
proceda de forma equilibrada e garanta efetividade da atividade pública voltada
77
para a busca do bem comum, e não no interesse do titular do Poder. O controle
exercido entre os Poderes, pois, é essencial para evitar os abusos, nos termos
do que já disse Karl Larenz:
A primeira exigência de um Estado de Direito é a limitação do
poder, a prevenção de possível abuso do poder que
eventualmente venha a dominar e a sua vinculação ao Direito.
O primeiro princípio que o Estado de Direito trata de realizar
com sua própria constituição é por isto o princípio da limitação
e do controle do poder, do qual este tipo de estado não pode
estar afastado totalmente, porque nele, junto aos ímpetos
associativos, existem outros autoritários e de dominação. (...) O
poder ilimitado contradiz o Direito. Para limitar o poder na
medida necessária, existem os controles do poder, porque,
sem esses controles, existe em acréscimo o perigo de abuso
de poder. Limitação e controle de poder se coordenam
mutuamente. (LARENZ, 1985 p. 159)
O
Estado,
constituído
como
Estado
de
Direito,
está
limitado
especialmente pela lei. É a norma escrita e positivada que irá ordenar a
atividade do governante e toda a estrutura estatal, tudo com o escopo de
preservar a estrutura de segurança e estabilidade que se adquire com a
ordenação do Estado sob o manto do direito.
A vinculação da Administração à lei é de vital importância para se
evitarem abusos e desrespeitos aos princípios que conformam um Estado de
Direito, exatamente porque é essa a relação mais direta que o cidadão tem
com o Estado, seja mediante ordens que abranjam grande número de pessoas,
seja mediante comandos de caráter individual, seja, ainda, por meio de
concessões ou autorizações de atividades e, em muitos casos, no exercício do
poder de polícia – coação direta sobre o cidadão, impedindo-o de tomar certas
atitudes ou , ao contrário, obrigando-o a isso. O cidadão fica, pois,
especialmente vulnerável a qualquer classe de arbítrio ou tratamento desigual.
Por essa razão, no Estado de Direito, é somente dentro da lei positivada que
está o limite de atuação da Administração, mesmo quando se confere certa
margem de discricionariedade (LARENZ, 1985) .
A garantia da preservação dos direitos fundamentais e da ordem
constitucional vigente e, por conseguinte, do Estado de Direito é a existência
de tribunais livres e independentes. Para isso, conferem-se aos juízes
78
garantias tais como a inamovibilidade, a vitaliciedade e a irredutibilidade de
salários, bem como a própria independência entre as esferas de julgamento. A
nomeação dos magistrados por meio de concurso e a existência de regras
claras para as promoções também são prerrogativas para que se preserve a
ordem jurídica da forma como ela se estabeleceu.
Por fim, reveste-se da forma de Estado de Direito o Estado que permite
que os cidadãos tenham amplo acesso à Justiça, de modo que possam
reclamar direitos sem retaliação e resolver controvérsias sob a proteção do
Estado. Tudo com a garantia de que o sistema será acessível a todos,
indistintamente, e passível de fornecer resultados socialmente justos
(CAPPELLETTI, et al., 2002) .
Com a garantia da ordem jurídica e a preservação dos princípios do
Estado de Direito, a Constituição brasileira pretendeu resguardar o patrimônio
cultural de toda a sorte de agressão, com o intuito de assegurar sua
preservação para as gerações futuras.
A função primordial do Estado é garantir a paz e a segurança para a
sociedade que o compõe, as quais são alcançadas justamente pela
manutenção da ordem pública e das normas legitimamente criadas para
regular a vida em sociedade. “A rigor, pode-se dizer que o cumprimento das
leis pelo Estado encerra a razão de sua própria existência, haja vista que
constitui o bem comum, assim entendida a ordem social que atenta aos
anseios e expectativas dos indivíduos componentes da sociedade, o
fundamento último do Direito. Trata-se do caráter imperativo do ordenamento
jurídico” (CHAMI, 1997 p. 93).
Contemporalizando as teorias contratualistas sobre a origem do Estado,
pode-se dizer que os indivíduos membros da sociedade relegam parcela de
sua liberdade ao Estado, que se torna investido da responsabilidade de garantir
a harmonia nas relações sociais. Isso implica a possibilidade de que os
conflitos existentes entre os membros da sociedade sejam pacificados por um
ente especialmente constituído para esse fim. Assim, é preciso que tal ente
seja dotado de poder e legitimidade para impor e fazer respeitar as normas
indispensáveis para a convivência entre as pessoas.
79
É imprescindível que o Estado tenha força imperativa para fazer valer as
normas que edita. Se consideramos que todos os indivíduos são iguais – o
que, de fato, faz a Constituição brasileira de 1988, em seu art. 5º –, em caso de
conflito de interesses, é necessário existir um meio de solução do dissídio, para
que a isonomia possa manter-se e, assim, perpetuar-se a paz social. Do
contrário, o indivíduo mais forte, seja pela força física, seja pela força
econômica ou política, imporá sua vontade aos demais, tornando insubsistente
a norma que garante a igualdade a todos.
Por outro lado, o poder do Estado também precisa ser legítimo. A
sociedade que o compõe precisa reconhecer nele o poder pacificador dos
conflitos de interesses. E o faz quando submete ao Estado suas controvérsias,
aguardando que ele as resolva, com base na legislação previamente
estabelecida e tornada pública.
Assim, dotado de força e legitimidade, o Estado exerce sua função
essencial de preservação do bem comum, garantindo a paz dentro da
sociedade por meio do estabelecimento de normas impositivas e da
prerrogativa da solução das controvérsias entre os particulares.
Se a função do Estado é precisamente evitar que o mais forte domine o
mais fraco e permitir que haja harmonia nas relações sociais, não pode ser ele
o responsável por desequilibrar essas relações, sob pena de se dissipar sua
própria razão de ser.
Nesse sentido, mostra-se precisa a doutrina de Darcy Azambuja:
O Estado, por meio de seus diversos serviços de govêrno e de
administração, faz reinar a paz e a justiça, procura coordenar
as atividades particulares e auxiliar as iniciativas privadas.
Todos êsses benefícios, que formam o bem público, são
oferecidos a todos e não a indivíduos determinados, são
distribuídos entre os membros da coletividade política. O
Estado, pois, produz e distribui os benefícios do bem público,
mas essa distribuição não deve ser arbitrária, ao bel-prazer e
caprichos dos titulares do poder. Deve estar subordinada a
uma regra obrigatória, que será uma regra de justiça social,
pois se trata da distribuição de benefícios sociais; será uma
regra de justiça distributiva. Não só os benefícios, como
também os encargos, devem obedecer a uma norma de justiça
distributiva, que, assim, compreende a admissão aos
80
empregos, o gôzo dos serviços, os impostos, etc (AZAMBUJA,
1963 p. 386)
Dessa forma, por segurança, criam-se mecanismos para evitar que os
governos pervertam a função essencial do Estado de repartir igualitariamente o
bem comum. E o sistema de freios e contrapesos decorrente da divisão de
poderes permite as limitações que evitam abusos.
4 DA JUSTIÇA DE KANT
A Justiça é uma norma de natureza moral, porque referente à conduta
de outra pessoa, num contexto intersubjetivo, e “o juízo segundo o qual uma
conduta é justa ou injusta representa uma apreciação, uma valoração da
conduta” (KELSEN, 1998)
Daí ser possível indagar a conduta de ambos os magistrados envolvidos
no problema posto, em relação às partes que foram afetadas por suas
condutas, ou, diga-se, decisões. E, portanto, ser possível valorar como justa ou
injusta cada decisão tomada na função jurisdicional.
Para Kelsen, justo é aquele que se comporta de acordo com as normas
propostas na sociedade, até porque o não cumprimento de uma regra implica
uma sanção (1998). A relação de justiça, para Kelsen, é uma relação de
obediência.
Uma norma de direito positivo não pode ser injusta. Ela é sempre justa.
E o descumprimento da norma deve ser considerado como desvalor. Mas se
uma decisão judicial se pauta sempre pela norma positivada, é possível
reconhecer injustiça em decisões contrárias entre si?
Pode-se completar esse quadro para afirmar que o direito positivado é
justo porque derivado de uma norma justa. “o fundamento de validade do
direito positivo é essencialmente vinculado ao seu conteúdo” (KELSEN, 1998)
Por essa razão, busca um critério para definir essa justiça contida na
norma, do que decorre um direcionamento no sistema que determina
comportamentos socialmente legítimos. Prêmios e punições, por condutas
justas ou injustas, guiará as ações dos cidadãos. E a justiça deverá ser
81
mensurada, pois, por um critério de igualdade, pela proporcionalidade e
igualdade na lei.
É possível uma decisão judicial injusta? E para quem a decisão judicial
deve ser justa? para as partes? para a sociedade?
No caso descrito, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que a
ordem cronológica das habilitações somente poderá deixar de ser observada
pela autoridade judiciária nas hipóteses previstas no § 13 do art. 50 desta Lei,
quando comprovado ser essa a melhor solução no interesse do adotando.
Se é a própria lei quem autoriza quebrar a ordem cronológica das
habilitações, dentro dos parâmetros da justiça kelseniana, seria preciso
investigar, qual é a solução que atenta para o melhor interesse do adotando,
chega-se a uma primeira conclusão no sentido de, na lei, a justiça perseguida é
aquela que atinge, em primeiro lugar, a criança a ser adotada.
Entretanto, ainda não é possível resolver em que consiste o interesse
adotado e como sopesar este interesse para verificar qual se adequa melhor ao
conteúdo da justiça.
5 DA JUSTIÇA DE RAWLS
John Rawls parte de um pressuposto diferente. Para ele não é possível
chegarmos a um conceito único e unitário do que seja a Justiça, mas um
conceito decorrente do consenso e, por esta razão, relativo.
Além disso, são as liberdades públicas ou direitos fundamentais que
pautam o que se pode entender por norma justa (RAWLS, 2003). Se direitos
fundamentais se sobrepõe a qualquer norma – ainda que a norma positivada –
não há como ser reconhecer justiça em qualquer conduta que se perpasse por
pressupostos contrários aos direitos fundamentais. Depois, as liberdades
públicas e as intervenções obrigatórias do Poder Público são o alicerce do
Estado de Direito, o que, por decorrência lógica afasta da Justiça decorrente da
ação estatal, condutas contrárias aos direitos fundamentais.
Vale dizer, de outro lado, que a desobediência civil sustentada por Rawls
só é possível se se pensar que as normas que determinam os comportamentos
82
dos súditos daquele Estado estão contrárias àquele ideal de justiça descrito.
Implica dizer, só se pode considerar válidas as ações de desobediência civil a
partir do momento em que são condutas que se guiam pela noção de justiça da
sociedade e, portanto, de direitos fundamentais.
Ainda que uma lei considerada socialmente injusta não tenha sua
inconstitucionalidade, ou incompatibilidade com os direitos fundamentais
declarada por um ente dotado de jurisdicionalidade, ainda assim, em razão do
desuso deixaria de viger, sob pena de descrédito das instituições (HECK).
Há que se diferenciar, pois, justiça substantiva, ou de resultado, da
justiça procedimental, sem embargo da conclusão que o processo conduz a um
resultado justo.
Para se atingir o conceito de justiça em Rawls, deve-se partir de um
modus vivendi, segundo o qual os integrantes da sociedade convivem num
estado de tolerância. Neste contexto, é por meio da negociação política que se
atinge um consenso que beneficiará toda a comunidade (RAWLS, 2003).
Observe-se, entretanto, que este equilíbrio somente se atinge em razão
da posição egoísta de cada integrante da sociedade, que aceita ponderar
acerca de seus direitos porque com isso conseguirá melhores condições de
vida em sociedade, ou seja, o ponto de equilíbrio depende de cada indivíduo
considerar que aquela negociação política seja boa para sua doutrina
abrangente.
Deste equilíbrio consensual, do modus vivendi de cada indivíduo dentro
da sociedade é que obtemos um consenso constitucional (RAWLS, 2003).
Consenso que se baseia em princípios liberais, que não são apenas
procedimentais,
que
vão
gerar
um
consenso
mínimo
sobre
valores
constitucionais. Se dentro de uma sociedade com doutrina abrangente
minimamente razoável, a sociedade pode chegar a um consenso sobreposto,
no qual os valores de justiça, ou os direitos fundamentais, se sobreporão.
Da reunião que temos das vontades individuais e diversas concessões
políticas individuais, visualizamos o consenso sobreposto, que pode ser
reduzido ao respeito aos princípios liberais e aos princípios constitucionais.
83
Nunca se chega ao consenso sobreposto, mas se pode chegar a uma
aproximação (HABERMAS, et al.). O acordo entre os cidadãos de que a
formação de sua vontade obedecerá um senso de razoabilidade, ainda que
esta liberdade acordada não possa ser pleiteada (HABERMA, et al., 2001)
Ele pode ser avaliado com base na ideia de razão pública. A razão
pública é resultado do consenso sobreposto e uma forma de analisar e manter.
O que Rawls propõe é que conceito de justiça decorre da legitimidade
(RAWLS, 2003).
Controle de constitucionalidade é um caso exemplar de razão pública. O
procedimento segue as regras de um critério racional político para enfrentar a
questão do consenso sobreposto. O controle mantém a racionalidade do
consenso sobreposto, de modo que o processo tem por objetivo assegurar que
a legitimidade se converta em justiça.
Desta forma, o conteúdo da justiça dependerá da legitimação que se dá
às condutas sociais e às normas que as conformam.
No caso aqui analisado, temos que o conjunto de consensos individuais
a norma que se positivou determina que se busque o melhor interesse da
criança ou adolescente que está sendo adotado.
E este princípio se conforma à teoria acima descrita no ponto em que
identifica que há uma infinidade de variáveis a ser considerada para a definição
do conteúdo deste princípio e, por consequência, qualquer decisão judicial que
possa se afirmar justa.
Definir o melhor interesse do menor em processo de adoção implica
reconhecer os elementos que a sociedade considera significativos para definir
como a criança teria melhor seus direitos interentes preservados. Depois, há
que se fazer um juízo de ponderação.
Observe-se, contudo, que esta ponderação dependerá do estado atual
da sociedade, que possui valores mutáveis ao longo dos tempos – nem sempre
o que se considera justo, hoje, o poderia ser há cinquenta anos atrás e
possivelmente não o será em cinquenta anos.
84
6 DAS LEITURAS DE DWORKING E HABERMAS
A decisão a ser tomada pelo Estado, na função de garantidor dos
direitos fundamentais de seu súditos não é simples. Visto que é necessário
optar entre a liberdade e a igualdade e o limite de tensionamento entre estes
valores que asseguram a democracia.
Há sempre o risco de a democracia conflitar com direitos individuais,
uma vez que cada vez que a Corte é instada a se pronunciar acerca de direitos
individuais, ela está usurpando a função da maioria e pondo em perigo a
democracia. De outro lado, numa postura liberal, sempre que se decide em
favor dos direitos individuais acaba-se por negligenciar o direito de escolha e a
responsabilidade que cada indivíduo tem dentro da sociedade.
É verdade que uma nação não pode oferecer a mesma atenção para a
vida de cada um de seus cidadãos, e o conflito se torna trágico quando se
torna apenas uma questão de escolha (DWORKIN, 2004). Como na hipótese
aqui sob análise, segundo a qual o magistrado precisa escolher qual é a
posição que melhor atende o interesse do menor a ser adotado.
Se protegemos os direitos, ampliando a jurisdição, em seguida, fazemos
batota na democracia, que não é apenas uma questão de ter tudo o que
queremos, mas de fazer algo por si só errado. Se proteger a igualdade,
negando a liberdade, então, uma vez que a liberdade é um direito fundamental,
ou em qualquer caso de algo de fundamental importância, fizemos algo de
muito errado. Esta sugestão assustadora - que fazemos de errado tudo o que
fazemos - é a sede da ideia moderna de conflito inevitável.
Contudo, Dworking chega a uma hipótese na qual não há conflito, visto
que a Igualdade é preservada quando ninguém inveja o pacote de trabalho e
recompensa que alguém alcançou.
Ele imagina um leilão hipotético que ocorrerá numa sociedade que parte
do zero, sem pressupostos, e que todos possuem igualdade de recursos e
talentos. Neste contexto, a liberdade é a possibilidade de dispor como quiser
de bens ou recursos que lhe foram concedidos sob um sistema razoavelmente
justo da propriedade e outras leis, livre de interferência de outros, desde que
85
você não viole direitos de ninguém. “a distribuição das riquezas sociais deve
expressar de algum modo as escolhas das pessoas e que, portanto, uma
distribuição idêntica de riquezas não é necessariamente uma distribuição
justa ou igualitária” (FERRAZ, 2005 p. 455).
Para Dworking, liberdade, igualdade, democracia, comunidade e demais
conceitos são conceitos interpretativos. A existência de um conflito entre
liberdade e igualdade decorre não da circunstância de que é necessário fazer
uma escolha, mas de que em razão desta escolha de valores há sempre uma
perda, independentemente de qual escolha foi feita.
Ainda, todo governo deve mostrar igual cuidado pelo destino de cada
pessoa sob seu domínio, contudo, deve respeitar as esclhas e as
consequências destas, eleitas por cada indivíduo.
Temos aqui, por outro lado, um outro conflito difícil de ser resolvido. que
vem primeiro? a liberdade individual dos membros da moderna sociedade de
mercado? ou o direito dos cidadãos democraticamente organizados de
participação
política?
(HABERMA,
et
al.,
2001).
Isso
porque
a
autodeterminação do indivíduo depende na igualdade no que toca à
possibilidade de escolha. Nestas condições apenas as normas que pressupõe
direitos igualitários para cada um irá ao encontro da aceitação de todos.
Dentre as atribuições estatais, a função jurisdicional atuará justamente
na interferência entre a autodeterminação dos indivíduos que bucam o Poder
Judiciário, e a manutenção da ordem democrática. A questão é que os
magistrados não possuem a legitimidade do povo, visto que a lei é feita pela
acordância do povo e não dos expertos. Entretanto sua interpretação é técnica.
A participação popular nas decisões da Corte, aumenta a legitimidade e
aceitabilidade do povo, bem como fornece ao juiz as bases jurídica para suas
decisões.
Vale dizer, por outro lado, que esta legitimação não precisa
necessariamente perpassar pela participação direta do povo no processo
decisório, mas as decisões se legitimam ao usar o discurso popular, que deve
estar temporal, social e materialmente especificado em relação à opinião
86
política e a formação de vontade nas arenas públicas ou corpos legislativos e
relação à correção da lei e a materialidade das decisões tomadas nas cortes
administrativas (HABERMA, et al., 2001).
A legitimidade do resultado de qualquer discurso depende da
legitimidade das regras sob as quais aquele tipo de discurso foi especificado e
estabelecido sob o ponto de vista temporal, social e material.
No caso aqui proposto, indaga-se, apesarde divergentes, é possível
verificar justiça nas decisões judiciais que orientaram a demanda por adoção.
O ponto central de discussão é descobrir o melhor interesse do menor, que a
lei determina seja o norteador das decisões onde haja dúvida acerca de qual
seria a destinação da criança ou do adolescente.
A criança, cuja decisão descrevemos, foi retirada de uma família, com
quem vivia desde o nascimento, mas cujo acolhimento não obedeceu os
ditames da
legislação
ordinária.
De
outro
lado, há a
situação
de
institucionalização e, postariormente, colocação em uma nova família
substituta.
A criança começou a viver em companhia de uma família que a acolheu
desde o nascimento. Contudo, com a intervenção do Estado a criança deixou
aquela família para passar a viver num abrigo. A primeira vista, pode-se
concluir que se trata de uma conduta aprubta e injusta, que coloca em estado
de vulnerabilidade a estrutura de segurança na qual a criança vivia.
Há que se olhar com especial atenção as circunstâncias que envolvem o
caso. Se o conceito de justiça está no conjunto da ponderação das diversas
variáveis que envolvem cada decisão.
O Estado é a entidade constituída para assegurar a melhor posição para
seus súditos, garantindo o equilíbrio entre a democracia e as decisões
individuais de cada pessoa. Daí a necessidade de se buscar compreender que
ao Estado, na figura do Poder Judiciário, não é adequado permitir que uma
criança seja adotada de modo enviesado, inobservando os ditames legais.
A decisão de primeira instância observou o que diz a lei e,
cautelarmente, afastou a criança de seu primeiro lar, com receio de que a
87
adoção sem a intervenção do Judiciário poderia significar um prejuízo grande
para a criança. Observe-se que, nesta fase, o magistrado não decide sem
antes consultar a equipe multidisciplinar que o auxilia, e sem que tenha havido
ao menos uma visita ao local onde a criança vivia. Sob estes argumentos e,
com a ponderação destes valores, esta parece ter sido a decisão mais
condizente com os princípios de justiça.
De outro lado, a decisão do STJ levou em consideração outros
pressupostos, porque verificou que a primeira família já estava habilitada para
acolher uma criança, ou seja, o Estado, dentro de sua função jurisdicional já
havia avaliado a capacidade para adotar. Além disso, a relação de confiança
que se estabeleceu entre a primeira família e a criança deve ser considerada,
sendo o melhor intersse do menor permanecer junto com aqueles com quem
sempre viveu.
Há que se buscar quais das duas decisões alcançam maior legitimação
e, portanto, é justa. Vai se buscar qual é o discurso popular que legitimaria a
decisão para verificar qual atinge o ideal de Justiça.
CONCLUSÃO
Em todas as teorias aqui destacadas, o conteúdo interpretativo é sempre
destacado. Há que se fazer um diálogo entre as diversas variáveis que
envolvem cada situação posta a apreciação do Poder Judiciário. A Justiça será
encontrada no momento em que a interpretação conseguir inferir qual é
discurso que melhor atende aos anseios popular.
A mera quebra da ordem cronológica do cadastro nacional de adoção
não é justificativa suficiente para determinar o abrigamento de uma criança. De
fato a criança foi acolhida em desacordo com a norma vigente, o que afastaria
a justiça deste acolhimento pela doutrina kelseniana.
Entretanto, sob a ótica das demais teorias, é preciso analisar as
circunstâncias e haverá justiça pela legitimação dos argumentos usados pelo
magistrado.
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88
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Mar t ins. São Paulo : Martins Fontes, 2003.
89
CAPÍTULO 6: Ações Afirmativas: A integração social através da
conexão entre o direito e a moral
Vick Mature Aglantzakis
DOI 10.11117/9788565604147.06
RESUMO: O presente estudo trata das ações afirmativas como forma de
inclusão social das categorias menos favorecidas na sociedade, tendo por base
o julgamento da ADPF 186 e a doutrina de Ronald Dworkin. Passaremos por
um breve resumo histórico a respeito das ações afirmativas ocorridas nos
Estados Unidos da América e no Brasil. Veremos que enquanto fenômeno de
proteção dos menos favorecidos esta não é tão recente. Pretendemos
demonstrar o acerto desta política de inclusão social e de distribuição de
justiça, que tem por objetivo diminuir os excessivos desníveis sociais de nossa
sociedade e a conexão entre o direito e a moral.
PALAVRAS-CHAVES: ação afirmativa, Dworkin, direito e moral.
ABSTRACT: This study deals with affirmative action as a means of social
inclusion of disadvantaged categories in society, based on the judgment of
ADPF 186 and the doctrine of Ronald Dworkin. We pass by a brief history about
affirmative action occurring in the United States and Brazil. We will see that
phenomenon while protecting the less fortunate this is not so recent. We intend
to demonstrate the correctness of the policy of social inclusion and distribution
of justice, which aims to reduce excessive social inequality in our society and
the connection between law and morality.
KEYWORDS: affirmative action, Dworkin, law and morality.
Introdução
A igualdade material, implementada através de ações afirmativas,
passou a adquirir forte conotação doutrinária a partir de 1965, quando aquelas
passaram a ser debatidas nos Estados Unidos da América, após discurso
proferido pelo Presidente Lyndon Johnson, em 04 de junho na Howard
University, e após a expedição da Ordem Executiva (EO 11246). Esta tinha por
90
objetivo estabelecer metas de inclusão de minorias suplantando o marco civil
para que a igualdade deixasse de ser apenas de direito e vigorasse como
realidade substancial, como informa a ministra Carmém Lúcia96.
Em 1978, no caso Bakke97, a Corte Suprema Norte-Americana
referendou a constitucionalidade no uso das ações afirmativas para cotas no
sistema de ensino, desde que as mesmas não fossem fixas e que não se
adotasse apenas o critério racial.
Contudo, a Suprema Corte Americana pode mudar de posição
jurisprudencial, o que representaria um retrocesso em termos de avanços
sociais. Está sob julgamento o caso Fischer versus University of Texas at
Austin, que poderá dar uma guinada de cunho negativo em termos de políticas
de ações afirmativas para ingresso em suas instituições de ensino. As
sustentações orais ocorreram em 10 de outubro de 201298.
A Constituição Federal de 1988, também denominada cidadã, já em seu
preâmbulo, assevera que a Assembleia Nacional Constituinte criou um Estado
Democrático não nos moldes clássicos, também dito liberal, mas uma
Democracia marcada por forte cunho social que objetiva resguardar os valores
e princípios máximos da sociedade brasileira. Para tanto, erige já em seu art.1º
e incisos, seus princípios fundamentais, ressaltando a cidadania e a dignidade
da pessoa humana (II e III).
A Constituição ao realçar o valor cidadania, tem por objetivo a exclusão
da cidadania de 2º grau ou marginal. Esta se caracteriza por excluir os menos
favorecidos (sejam por questões raciais, culturais, religiosas, entre outras).
Para tanto, o Poder Público e os agentes privados devem voltar-se a efetivar
ações concretas de inserção do indivíduo na comunidade da qual participe,
proporcionando-lhes oportunidades de inclusão social.
Esse é o pensamento de José Afonso da Silva, para quem a cidadania:
96
Rocha, C. L. A. Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, 33 nº 131 jul/set 1996, pág. 285.
97
Regents of the University of California versus Bakke, 438 U.S.265 (1978).
98
Pereira, T. H. J. Ação afirmativa: uma jurisprudência em evolução. Disponível em
http://www.conjur.com.br/2012-out-13/observatorio-constitucional-licoes-eua-acoes-afirmativas
91
É um signo de nosso tempo que a cidadania se tenha
convertido em um conceito de moda em todos os setores da
política. Isso nos põe diante da necessidade de reelaborar o
conceito de “cidadania”, a fim de lhe dar sentido preciso e
operativo em favor da população mais carente da sociedade e
de modo a retirá-lo da pura ótica da retórica política, que, por
ser formal, tende a esvaziar o conteúdo ético valorativo dos
conceitos, pelo desgaste de sua repetição descomprometida99.
As diversas espécies de ações afirmativas no Direito Brasileiro, em face
de inúmeros diplomas legislativos que contém alguma regra sobre o tema e as
recentes decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186, Ação Declaratória de
Inconstitucionalidade nº 3.330 e no Recurso Extraordinário nº 597.285/RS,
reafirmaram e consolidaram o entendimento da constitucionalidade das ações
afirmativas entre nós.
É de se indagar se as mesmas tem conseguido cumprir o seu papel de
efetivar a justiça social, dando oportunidades aos menos favorecidos? As
ações afirmativas tem conseguido ocupar o papel que a doutrina as situam, ou
seja, são formas de igualar as desigualdades que ocorrem no âmbito do
princípio da igualdade? É o que iremos procurar demonstrar neste trabalho,
com amparo na doutrina de Ronald Dworkin e no pensamento das
possibilidades levadas a cabo pelo Supremo Tribunal Federal.
O tema não se trata de modismo passageiro. Ao contrário. As ações
afirmativas como forma de desigualar o acesso a diversos segmentos (escolas,
universidades, empregos públicos e privados, cargos de livre nomeação), bem
como instrumentos para ascender uma posição na sociedade, vêm sendo
corriqueiramente aceitas pelos tribunais e implementadas pelo Poder Público
(Executivo, Legislativo e Judiciário), como forma de pagamento de uma dívida
do passado ocorrida em virtude da escravidão dos negros e dos índios, da
diferenciação negativa quanto as pessoas com algum tipo de limitação física,
econômica ou do desprezo pela minoria dominante.
2 Conceito e natureza jurídica da ação afirmativa
99
Silva, Jose Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 3ª Ed, Malheiros editores, São
Paulo, SP 2007, pág.35.
92
O prof. Paulo Gonet, citando Anne Peters, define as ações afirmativas
na seguinte indução: “... a locução alcança uma gama larga de políticas,
públicas e
mesmo privadas, que buscam amparar grupos mais fracos na
sociedade.”100
O entendimento do min. Joaquim Barbosa preconiza que as ações
afirmativas se definem como “políticas públicas (e privadas) voltadas à
concretização
do
princípio
constitucional
da
igualdade
material
e
à
neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de
origem nacional e de compleição física 101”.
Já a min. Carmen Lúcia em artigo sobre o tema entende que ação
afirmativa significa:
a exigência de favorecimento de algumas minorias socialmente
inferiorizadas, vale dizer, juridicamente desigualadas, por
preconceitos arraigados culturalmente e que precisavam ser
superados para que se atingisse a eficácia da igualdade
preconizada
e
assegurada
constitucionalmente
na
102
principiologia dos direitos fundamentais .
No plano jurisprudencial, o STF, no voto condutor do min. Ricardo
Lewandowski, proferido na ADPF nº 186, assentou o conceito das ações
afirmativas como “medidas especiais e
concretas para assegurar o
desenvolvimento ou a proteção de certos grupos, com o fito de garantir-lhes,
em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das
liberdades fundamentais103”.
Dos conceitos vistos acima, extrai-se que as ações afirmativas possuem
natureza jurídica de direito fundamental, alojando-se no princípio da igualdade,
tanto no seu desdobramento formal quanto material. Trata-se de instrumento
para assegurar a igualdade substancial de diversos grupos marginalizados no
100
Branco, Paulo Gustavo Gonet, Ação Afirmativa e Direito Constitucional. Exposição no V
Congresso de Direito Constitucional do IDP – 19.11.2002.
101
Barbosa, Joaquim B. Gomes, O debate constitucional sobre as ações afirmativas
102
Rocha, Carmen Lucia A., em revista de informação legislativa, Brasília 33n, 131 jul/set 1996,
pág.285. Acesso em 17 de novembro. Site: http:// www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/176462
103
Informativo do STF nº 663. ADPF nº 186, Rel. Min. Ricardo Lewandowski.
93
seu sentido mais amplo. Isso acaba por reverberar no próprio centro do
princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto considerado como tal.
Assim, têm se que as ações afirmativas são gênero, do qual as cotas
para ingresso nas instituições de ensino federal superior são espécies,
cabendo aos três poderes a sua implementação dentro das possibilidades
aceitáveis moralmente por uma sociedade.
Essa foi a conclusão que chegou o Supremo Tribunal Federal, por
ocasião do julgamento da ADPF 186, no qual o relator Min. Ricardo
Lewandowski, acentuou que:
... para efetivar a igualdade material, o Estado poderia lançar
mão de políticas de cunho universalista – a abranger número
indeterminado de indivíduos – mediante ações de natureza
estrutural; ou de ações afirmativas – a atingir grupos sociais
determinados – por meio da atribuição de certas vantagens,
por tempo limitado, para permitir a suplantação de
desigualdades
ocasionadas
por
situações
históricas
particulares. Certificou-se que a adoção de políticas que
levariam ao afastamento de perspectiva meramente formal do
princípio da isonomia integraria o cerne do conceito de
democracia. Anotou-se a superação de concepção estratificada
da igualdade, outrora definida apenas como direito, sem que
se cogitasse convertê-lo em possibilidade104
3 Ação Afirmativa no Brasil.
Antes mesmo de se falar em ações afirmativas nos Estados Unidos, o
Brasil, por intermédio do Governo Provisório de 1930 editou o Decreto nº
19.482, de 12.12.1930, conhecido como Lei da Nacionalização do Trabalho, ou
Lei dos Dois Terços. O mencionado diploma legal estabeleceu que dois terços
dos trabalhadores tinham de ser
brasileiros natos, desde que a empresa
estivesse em funcionamento no Brasil. Essa lei procurou evitar a discriminação
contra os nacionais, que não tinham a preferência, face a mão-de-obra
estrangeira que aqui estava estabelecida devido o fluxo do processo
imigratório.
104
Informativo STF nº 663 de 03 de maio de 2012.
94
A Lei nº 5.463, de 03 de julho de 1968105, também pode ser considerada
a primeira lei que instituiu o sistema de cotas no âmbito do ensino brasileiro.
Pelo mencionado diploma, 50% (cinquenta por cento) das vagas destinadas em
estabelecimentos de ensino médio e nas escolas superiores de Agricultura e
Veterinária, desde que mantidos pela União, eram destinadas a candidatos
agricultores ou aos seus filhos, proprietários ou não de terra, desde que
residissem em zona rural. Destinou-se ainda 30% (trinta por cento), na forma
estabelecida acima, àqueles que residissem em vilas ou cidades sem
estabelecimentos de ensino médio. Esta lei veio a ser revogada em 1985, ao
argumento que beneficiava somente os filhos dos grandes latifundiários e
fazendeiros mais abastados economicamente.
O constituinte brasileiro também inseriu no texto maior uma série de
disposições voltadas para o âmbito da ação afirmativa, tais quais: o contido nos
artigos 3º, IV (promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação); 7º, XX (proteção do
mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos) e 37, VIII (a
lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas
portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão)106. Após a
promulgação da Constituição, tivemos a edição das Leis 8.666/93, art.24, XX
(assegurou à dispensa da licitação para associações de portadores de
deficiência física), a 8.112/90 (art.5º§2º assegura a inscrição de até 20% das
vagas para vagas em concurso público de pessoas portadoras de deficiência),
a, 9504/97, art.10§3º, (prescreve que no mínimo 30% das vagas para
candidatos a cargos proporcionais são destinadas para as mulheres, a
10.558/02 que estabeleceu o programa de diversidade na universidade,
10.678/03, a 12.288/10, que instituiu o ordenamento da igualdade racial e a
recente lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, que dispõe sobre o ingresso nas
universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível
médio). Esta lei foi regulamentada pelo Decreto nº 7.824, de 11 de outubro de
2012.
105
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L5465.htm. Acesso em
30.nov.2012
106
Brasil, Constituição Federal do de 1988. Brasília, 34ª Ed. Edições Câmara, 2011.
95
Com isso, observa-se que no Brasil o instituto da ação afirmativa foi
sendo aplicado na prática sem que houvesse uma ampla discussão doutrinária
sobre o tema, o que ocorreu posteriormente, em especial, com a criação das
cotas universitárias advindas de etnias ou cor de pele. Trilhamos o caminho
inverso efetuado nos Estados Unidos, em que primeiro houve amplo debate
sobre as mesmas, para depois serem efetivadas no âmbito legislativo.
4 Critério de validade das ações afirmativas no Brasil
Outro aspecto bastante controvertido quando se trata de ações
afirmativas é quanto aos critérios que devem nortear o legislador na elaboração
destas. Os grupos selecionados a serem beneficiados com as medidas não
devem se sentir “menores” em relação aos demais, em especial quando se
tratar do sistema de cotas no sistema de ensino universitário.
Em passagem de brilhante artigo já citado, a min. Carmén Lúcia 107
ensina que:
É importante salientar que não se quer ver produzidas novas
discriminações com a ação afirmativa, agora em desfavor das
maiorias, que sem serem marginalizadas historicamente,
perdem espaços que antes detinham face aos membros dos
grupos afirmados pelo princípio igualador no Direito. Para se
evitar que o extremo oposto sobreviesse é que os planos e
programas de ação afirmativa adotados nos Estados Unidos e
em outros Estados primaram sempre pela fixação de
percentuais mínimos garantidores da presença das minorias...
Há uma nota característica nas ações afirmativas, tanto no Brasil quanto
em outros países. É o fator temporalidade. Com efeito, como as mesmas tem o
objetivo de ofertar condições para todos, mesmo que com a admissibilidade de
critérios variados, elas devem perdurar até que haja efetividade concreta e
diminuição dos abismos sociais existentes. Em outras palavras: a concreção da
justiça distributiva.
107
Rocha, C. L. A., Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, 33 nº 131 jul/set 1996, pág. 286.
96
Em estudo específico sobre o tema, o prof. Manoel Gonçalves Ferreira
Filho, enumera as condições jurídicas de validade das ações afirmativas, que
são:
Primeira, a identificação do grupo desfavorecido, e seu âmbito,
deve ser objetivamente determinado. Regra de Objetividade.
Segunda, a medida do avantajamento decorrente das regras
deve ser ponderada em face da desigualdade a ser corrigida.
Regra de Medida. Ou, como se usa dizer, deve ser
proporcional o avantajamento à desigualdade a reparar. Por
isso, alguns, a chamam de Regra de Proporcionalidade. Do
contrário, haverá um privilegiamento do grupo beneficiado em
relação aos demais grupos e à sociedade como um todo.
Isto se explicita na terceira condição. As normas de
avantajamento devem ser adequadas à correção do
desigualamento a corrigir. Regra de Adequação. Tal
adequação se exprime na sua racionalidade. Por isso, é
também esta uma Regra de Razoabilidade.
Quarta condição, a finalidade dessas normas deve ser a
correção de desigualdades sociais. Regra de Finalidade.
Quinta, enfim. As medidas, como aponta a Convenção
Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial, devem ser temporárias. Regra de
Temporariedade108.
Os critérios acima enumerados foram acolhidos pelo Supremo Tribunal
Federal, conforme se depreende da passagem do voto do min. Ricardo
Lewandowiski:
...o Estado poderia lançar mão de políticas de cunho
universalista — a abranger número indeterminado de
indivíduos — mediante ações de natureza estrutural; ou de
ações afirmativas — a atingir grupos sociais determinados —
por meio da atribuição de certas vantagens, por tempo limitado,
para permitir a suplantação de desigualdades ocasionadas por
situações históricas particulares...109
5 Necessidade da concretização da justiça social nas ações
afirmativas
O acolhimento das ações afirmativas não vem destituído de objetivos.
Ao contrário, estas medidas buscam, no seu sentido mais amplo, a realização
108
Filho, M.G.F. Aspectos Jurídicos das ações afirmativas. Revista TST, Brasília, vol.69, nº2,
jul/dez 2003, pág.76.
109
STF. Informativo nº 663. Trecho do voto do Min. Ricardo Lewandowski na ADPF 186.
97
da justiça social visando aproximar os menos favorecidos dos mais
afortunados. Em síntese: é a busca por iguais oportunidades.
Nesse desiderato, a política das ações afirmativas deve priorizar a
apresentação das exposições de motivos que convençam a população a
aceitá-las. É necessário eliminar as possíveis consequências de uma
discriminação reversa das mesmas, as quais sem a aceitação da sociedade
poderiam por em cheque o próprio convívio social, por acabar elevando os
antagonismos sociais.
Esse alerta é feito por Dworkin, que ressalva “...a raça está tão
intimamente
ligada
a
arbitrariedade
e
ao
favoritismo
que
algumas
classificações raciais que pareçam benignas a olho nu podem revelar-se, após
exame minucioso, agressivas à Constituição110”.
Além do mais, arremata Dworkin , com pensamento exposto abaixo, com
enfoque na sociedade americana, porém, plenamente aplicável ao Brasil:
As justificativas compensatórias presumem que a ação
afirmativa é necessária, conforme explicou Scalia, para
“compensar” as minorias pelos danos a sua raça ou classe no
passado, e estava certo ao assinalar o erro de se supor que
uma raça “deve” compensação a outra. Mas as universidades
não aplicam os critérios de admissão sensíveis à raça para
compensar indivíduos nem grupos: a ação afirmativa é um
empreendimento voltado para o futuro, e não retroativo, e os
alunos minoritários a quem ela beneficia não foram,
obrigatoriamente, vítimas, individuais, de nenhuma injustiça no
passado111.
É no dizer do min. Celso de Mello112:
O presente tema deveria ser apreciado não apenas sob a
estrita dimensão jurídico-constitucional, mas, também sob
perspectivas moral, pois o racismo e as práticas
discriminatórias representam grave questão de índole moral
com que defrontada qualquer sociedade, notadamente, as
livres e fundadas em bases democráticas.
110
Dworkin, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª
Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011. Pág.587.
111
Dworkin, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª
Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011. pág. 606
112
STF. Informativo nº 663
98
Com base nos argumentos até aqui expostos, o Pretório Excelso adotou
plenamente a validade do conceito de justiça distributiva com enfoque no
princípio da igualdade material e com o estabelecimento de regras. O mais
interessante foi a aproximação entre o direito e a moral, ficando nítido pontos
de intercessão como forma de resgatar e dotar oportunidades para os menos
aquinhoados.
Atento aos reclamos da doutrina e ao posicionamento jurisprudencial, o
Parlamento Brasileiro aprovou e a Chefe do Poder Executivo sancionou a Lei
no 12.711, de 29 de agosto de 2012, a qual estabeleceu um sistema misto de
cotas para o ingresso nos cursos de graduação e instituição federal de ensino
superior, de ensino técnico de nível médio, e regulamentou a mesma lei por
intermédio do Decreto nº 7824, de 11 de outubro de 2012, ampliando o seu
alcance através dos resultados obtidos pelos estudantes no exame nacional de
ensino médio (Enem).
É interessante frisar que a legislação criou um sistema misto de cotas
baseado em renda, em etnia- nos casos em que houver autodeclaração de
pretos, pardos e indígenas -, e por aqueles que tenham cursado integralmente
em escolas públicas. Verifica-se a existência de um critério triplo de inclusão
em decorrência do princípio da igualdade material.
A grande questão é como definir critérios para aferir a equação justa da
desigualdade material dos negros, pobres, marginalizados pela raça, pelo sexo,
por opção religiosa, por condições econômicas inferiores, por deficiência,
idade, etc??
Nessa seara, indaga-se em que dimensão podem e devem intervir os
planos e programas de governo e das instituições privadas no universo de
cidadãos usuários de algum serviço público, emprego em disputa em face dos
grupos que o Estado entende necessário tutelar em face do principio da
igualdade material113? A sugestão otimizada pela ministra Carmem Lúcia é no
sentido de utilizar-se da experiência decorrente dos Estados Unidos, em que
consignou a seguinte afirmação:
113
Rocha, C. L. A., Ação afirmativa. O conteúdo democrático do princípio da igualdade
jurídica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, 33 nº 131 jul/set 1996, pág. 286
99
É importante salientar que não se quer ver produzidas novas
discriminações com a ação afirmativa, agora em desfavor das
maiorias, que , sem serem marginalizadas historicamente,
perdem espaços que antes detinham face aos membros dos
grupos afirmados pelo princípio igualador do direito. Para se
evitar que o extremo oposto sobreviesse é que os planos e
programas de ação afirmativa adotados nos Estados Unidos e
em outros estados primaram sempre pela fixação de
percentuais mínimos garantidores da presença das minorias
que por eles se buscavam igualar, com o objetivo de se
romperem os preconceitos contra elas, ou pelo menos
propiciarem-se de condições para a sua superação em face da
convivência juridicamente obrigada.
No mesmo sentido arremata o prof. José Nicolau Heck, para quem “ O
estabelecimento dos sistemas de cotas para negros é um mecanismo
adequado do Estado Democrático de Direito para compensar injustiças de
longa duração contra a população negra em todo o território brasileiro (...).
Democracia é um preceito e não um boné social”114 .
Por fim, é interessante a observação feita por Dworkin 115 quando ele
apropriadamente distingue a política de princípio:
Denomino “política” aquele tipo de padrão que estabelece um
objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum
aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda
que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem
que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças
adversas). Denomino “princípio” um padrão que deve ser
observado, não porque vá promover ou assegurar uma
situação econômica, política ou social considerada desejável,
mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma
outra dimensão da moralidade”.
6 A conexão entre o direito e a moral nas ações afirmativas
Os direitos individuais são prerrogativas, trunfos, que os seres humanos
possuem e que fazem valer quando as justificativas apresentadas para
negarem os mesmos se mostram insuficientes, dezarrazoadas ou imorais.
114
Heck, J. N. Sistema de cotas versus exclusão social. Disponível em
http://www2.ucg.br/flash/artigos/0308cotas.html. Acesso em 29 de out de 2012.
115
Dworkin, R. Levando os direitos a sério. Trad: Nelson Boeira. 2ª ed. São Paulo. Edição
Martins Fontes, 2007.
100
Entende-se o conceito imoral em um dado tempo espaço-cultural de uma
determinada sociedade.
Dworkin116 defende que os indivíduos podem ter outros direitos, ainda
que não expressados pela lei ou por qualquer decisão judicial, mesmo que
venham a se tratar de casos difíceis:
O capítulo 4 sugere uma teoria conceitual alternativa que
mostra como os indivíduos podem ter outros direitos jurídicos
além daqueles criados por uma decisão ou prática expressa,
isto é, que eles podem ter direitos ao reconhecimento judicial
de suas prerrogativas, mesmo nos casos difíceis, quando não
existem decisões judiciais ou práticas sociais inequívocas que
exijam uma decisão em favor de uma ou outra parte.
A questão das ações afirmativas está revestida não raro de aspectos
morais. Não há como negar isso. Na fundamentação dos argumentos
favoráveis e contrários, encontramos expressões de como ocorrerá violação ao
critério meritório (como entender o mérito se não há igualdades na disputa), tal
como: busca da necessária compensação por um passado infame e elitista que
subtraiu oportunidades a diversos segmentos sociais nos dias de hoje (não há
como compreender se não revestirmos de moral, uma vez que ninguém
pertence a esse passado já não tão recente).
Seria correto dizer que as ações afirmativas prejudicam os que delas
são beneficiados, em virtude de seus critérios estigmatizantes que por ventura
possuem nas instituições de ensino? Existirão sempre duas opiniões
doutrinárias: as favoráveis e as contrárias. Não obstante, esta divergência
prevalece ainda entre aqueles inseridos como aptos a participarem das ações
afirmativas. Contudo, não se pode afirmar a inferioridade dos ingressantes
deste sistema. Não se pode também cotejar que será bem ou mais sucedido no
plano profissional. Apenas o tempo revelará. O expressivo número de
preenchimento através das cotas no sistema de ensino superior está a
demonstrar, em um primeiro momento, o êxito das ações afirmativas.
116
Dworkin, R. Levando os direitos a sério. Trad: Nelson Boeira. 2ª ed. São Paulo. Edição
Martins Fontes, 2007 Pág. XVI
101
A ação afirmativa imprime duplo papel: a diversidade e a justiça social. A
diversidade acaba por permitir a troca de valores, culturas, costumes e
realidades socioeconômicas, a seu turno, a justiça social aproxima aqueles que
por infortúnio estão distantes da camada econômica mais desenvolvida e
permite, para servirmos de um linguajar comum, uma oportunidade ao sol.
Essa aproximação entre o direito e a moral na jurisprudência pátria
decorre do próprio pluralismo encartado na Carta Magna, que de resto é
possível verificar em grande parte do mundo ocidental. Lapidar a lição de
Gustavo Zagrebelsky117, ao enfatizar que:
Las sociedades pluralistas actuales – ES decir, las sociedades
marcadas por la presencia de uma diversidad de grupos
sociales com intereses, ideologias y proyectos diferentes, pero
sin que ninguno tenga fuerza suficiente para hacerse exclusivo
o dominante y, por tanto, establecer la base material de la
soberania estatal em el sentido del pasado -, esto es, las
sociedades dotadas em su conjunto de um cierto grado de
relativismo, asignam a la Constitución no la tarea de establecer
directamente um proyecto predeterminado de vida em común,
sino la de realizar las condiciones de posibilidad de la misma.
Acreditamos que não é equivocado dizer que a Constituição acaba por
irradiar diversos valores morais que não excluem, nem tampouco incluem
nenhuma categoria: permitem a integração dos diversos segmentos sociais
através da multifocalidade abrangente, sem que haja exclusão de nenhum,
dentro de possibilidades morais abertas no trato da interpretação do Texto
Maior, ou seja, dentro de uma proposição de uma interpretação moral.
A velha dicotomia direito e moral não tem mais razão para subsistir, ao
menos no plano concebido da superada dogmática jurídica, na qual o direito
válido era o posto e não o suposto. É que aos poucos as normas já não se
faziam suficientes por si só para responderem aos anseios sociais. As
demandas sociais e jurídicas que não encontravam solução no ordenamento
positivado fizeram com que os tribunais utilizassem os princípios, os valores e
o aspecto moral contido na Carta Magna.
117
Zagrebelsky, G. El derecho dúctil. Trad: Marina Gascón.10ª ed. Editorial Trotta. Madrid,
2011, pág.13.
102
Nesse diapasão, as diversas partes integrantes ou plurais, acabam por
modelar o seu conceito de justiça, de forma que as suas aspirações estejam
encartadas e no centro da discussão do direito. Isso acaba por permitir uma
variedade de interpretações sem que se possa dizer que uma é melhor do que
a outra, pois o que se está em busca é a plena efetividade constitucional.
Acentua Gustavo Zagrebelsky118, que:
En estas condiciones, la pluralidad de métodos y su
equivalência no es um defecto, sino uma posibilidad de êxito
cuando se interpreta la ley buscando la regla adecuada. La
interpretación legislativa abierta no es um error que la actual
ciência Del derecho deba corregir, sino um aspecto
irrenunciable a la vista de su objetivo.
Las posibilidades de la interpretación dependem además de la
actitud del proprio legislador. La discrecionalidad de que goza
el intérprete para reconduzir a la ley las exigências de
regulación que presenta el caso no sólo depende de lós
métodos de interpretación y de su número, sino tambien de la
estructura de la propia ley. A veces, incluso, El derecho, por así
decirlo, no presenta resistência a ser interpretado de acuerdo
com estas exigências <<casuísticas>>. Esto sucede sobre todo
com las normas <<elásticas>> o <<abiertas>>, es decir, las
que utilizan las llamadas <<clausulas generales>>...
Conclusão
Dworkin, em sua obra a Virtude Soberana119, reporta-se a um estudo
levado a cabo nos 30 anos de ações afirmativas nos Estados Unidos para
ingresso
nas
instituições
de
ensino
denominado
“A
forma
do
rio”,
demonstrando que os mesmos foram exitosos, em especial nas universidades
mais exigentes, e que também não houve nenhum grande constrangimento ou
arrependimento dos que cursaram a faculdade, sendo igual as diversas
possibilidades de participação de negros e brancos nos mais variados campos
profissionais ou políticos.
No Brasil, não obstante não possuirmos nenhum estudo científico
comparativo sobre as ações afirmativas e suas consequências sociais, não é
118
Zagrebelsky, G. El derecho dúctil. Trad: Marina Gascón.10ª ed. Editorial Trotta. Madrid,
2011, pág.136.
119
Dworkin, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª
Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011
103
errado afirmar o êxito destas medidas, pois permitem o acesso ao ensino de
qualidade para aqueles que ficam a margem da sociedade brasileira.
Contudo, frisa-se que as ações afirmativas não devem ser eternas.
Dessa forma teríamos uma espécie de discriminação odiosa, que não atingiria
o efeito preconizado por elas, que é buscar a igualdade material enquanto as
mesmas persistirem, ou seja, a temporalidade é a sua marca mais forte.
O confinamento social ao qual alude Dworkin120, acaba sendo superado
pela implementação das políticas de ações afirmativas, e ao traçar a linhas
mestras de sua obra á pouco citada, afirma:
O argumento deste livro – a resposta que oferece ao desafio da
consideração igualitária – é dominado por esses dois princípios
agindo em conjunto. O primeiro princípio requer que o governo
adote leis e políticas que garantam que o destino dos seus
cidadãos, contanto que o governo consiga atingir tal meta, não
dependa de quem eles sejam – seu histórico econômico, sexo,
raça ou determinado conjunto de especializações ou
deficiências. O segundo princípio exige que o governo se
empenhe, novamente se o conseguir, por tornar o destino dos
cidadãos sensível às opções que fizeram.
Os abismos sócio-econômicos existentes no Brasil ainda são gritantes.
Porém, muito já foi feito, em especial com a construção pretoriana do Supremo
Tribunal Federal que reconheceu a constitucionalidade das ações afirmativas
nas instituições de ensino superior federal no País e estabeleceu balizas para
que as mesmas não transbordem no abuso e no desrespeito ao cidadão.
A própria interpretação das ações afirmativas, não obstante estar
revestida do caráter hermenêutico, não só admitem como reclamam uma
interpretação aberta, em que há pontos de contatos na sua argumentação
entre o direito e a moral como forma de validar o instituto de favorecer os
menos favorecidos.
Em síntese, as ações afirmativas são justas, e de certa forma, tem
conseguido levar a cabo a efetividade da justiça social promovendo a justiça
120
Dworkin, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: Trad: Jussara Simões. 2ª
Ed. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2011
104
distributiva. A discussão colocada com êxito por Ronald Dworkin reflete a
importância que este instituto analisado possui no cenário jurídico e moral da
comunidade jurídica contemporânea.
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afirmativas.
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ZAGREBELSKY, G. El derecho dúctil. Trad: Marina Gascón.10ª ed. Editorial
Trotta. Madrid, 2011.
105
CAPÍTULO 7: Breves esboços na busca de um conceito de
justiça, nas perspectivas de John Rawls e Ronald Dworkin
Flávia Martins Affonso121
DOI 10.11117/9788565604147.07
RESUMO: Buscando o trabalho demonstrar que a justiça de um não representa
necessariamente a do outro, e muito menos a de todos, vem apresentar um
pequeno esboço das correntes doutrinárias de John Rawls e Ronald Dworkin,
tentando realizar um cotejo de suas visões.
Palavras-chaves: Justiça. Conceito indeterminado. Teorias. John Rawls.
Ronald Dworkin.
ABSTRACT: Seeking to demonstrate that the job of a justice does not
necessarily represent the other, much less all, is to present a brief outline of the
current doctrinal John Rawls and Ronald Dworkin, trying to make a comparison
of their views
Keywords: Justice. Concept undetermined. Theories. John Rawls. Ronald
Dworkin
Introdução
Em sendo a “Justiça” um conceito indeterminado e metafísico, muito
vem se discutindo na doutrina a respeito de sua abrangência. Clássicas são as
discussões, na Grécia Antiga, a respeito do termo.
Apesar de Sócrates não ter formulado nenhum sistema sobre o Direito,
deixando considerações esparsas sobre lei e justiça, estabeleceu a ideia de
121
Mestranda no Instituto Brasiliense de Direito Público- IDP, Curso Constituição e Sociedade.
Especialização em Processo Civil, pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e pela
Universidade do Sul de Santa Catarina. Especialização em “Globalização, Justiça e Segurança
Humana”, pela Escola Superior do Ministério Público da União- ESMPU. Advogada da União
106
justiça ligada a lei, classificando de justo quem obedecesse às leis do
Estado122.
Contudo, acabou vindo influenciar seu aluno, Platão, no sentido de
acreditar ser possível expressar as essências designadas pelos termos morais,
sustentando a necessidade de se conhecer o que fosse justiça ou virtude para
que uma ação fosse praticada sem dúvidas123.
Assim, toda a filosofia de Platão passa a ter uma conotação ética, sendo
o longo diálogo da República inspirado pelo tema fundamental da justiça. No
livro II da República, Platão declara que a partir do momento em que as
pessoas começaram a cometer injustiças uma para outras que se originou o
estabelecimento de leis e convenções entre elas.
Assim, para o filósofo, a cidade justa seria aquela em que todos os seus
cidadãos desempenham a função que melhor condiz com a natureza e talento,
exercendo cada um suas atividades conforme suas aptidões naturais. Tendo
uma doutrina exclusivamente moral, vem defender que as pessoas, ao fazerem
mal a alguém, estariam fazendo mal a si mesma. Não vem confundir, então, a
justiça com a lei.124
Aristóteles, ex-aluno de Platão, em Atenas, veio desenvolver o conceito
de justiça, que afirma ser a virtude por excelência, afirmando ser justo aquele
que obedece à lei. Contudo, preocupado com a dificuldade de aplicação da lei
abstrata em cada caso particular, assinala a importância do uso da equidade,
para fins de evitar seu uso de forma rígida e inumana.
Para tanto, vem desenvolver o conceito de justiça em seu aspecto
distributivo, deixando pressupor que a igualdade ou a desigualdade entre as
pessoas se acham já fixadas em harmonia com um certo ponto de vista que
não pode ser dado pelo princípio da justiça. Contudo, vem reconhecer que nem
122
NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002.
DURANT, Will. História da Filosofia. 2ª ed. São Paulo: Record, 1996.
124
BORGES, Arnaldo. Origens da Filosofia do Direito. 1ª edição. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor,1999.
123
107
os homens nem as coisas são iguais entre si, sendo a igualdade sempre uma
abstração, um ponto de vista.125
Apesar de Aristóteles ser apontado como expoente da doutrina
comunitarista, ao proclamar o valor da comunidade, buscando reconciliar o
homem ao seu mundo (Hegel), e reprovando qualquer pensamento que dê
prioridade ao indivíduo, ao reconhecer que homens e coisas não são iguais
entre si, inaugura os primeiros caminhos para os correntes que, apesar de
liberais e contratualistas, por partirem do pensamento de Kant e Locke de
valorização do indivíduo e acordo de vontades para estabelecer uma ordem,
reconhecem que as desigualdades econômicas e sociais são inevitáveis, por
diferenças entre os homens.
Contudo, até o presente século, inexiste um consenso sobre o conteúdo
da Justiça, muito contribuindo, para cada visão, o lugar que o crítico pertence
na sociedade.
Como menciona Jeremy Waldron, em sua Introdução feita à sua obra
“Law and Disagreement”126, desde a publicação, em 1971, do livro de John
Rawls, “A Theory of Justice”127, “Uma Teoria da Justiça”, cientistas políticos
vêm contribuindo, muito mais do que estabelecer um significado, para as
discussões, com o não entendimento a respeito do tema, apresentando como
ponto principal de teoria o oferecimento de uma coerente e persuasiva visão de
uma sociedade bem ordenada por princípios de justiça e direito.
Apesar das críticas recebidas por Rawls, não há como se partir para
definição de um conceito moderno da Justiça sem conhecer seus estudos.
Nesse sentido, o artigo buscará abordá-los, pela leitura da obra “Justiça como
Equidade”128, em que, contudo, o próprio autor menciona existir mudanças da
teoria, bem como avançará no estudo da teoria da justiça, pelo ponto de vista
125
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Coimbra: Arménio Amado Editor – Sucessor,
1997, p. 90.
126
WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. New York: Oxford University, 1999, p. 1.
127
RAWLS, John. A Theory of Justice. Londres: Harvard University Press, 1971.
128
RAWLS, John. Justiça como Equidade. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
108
de Ronald Dworkin, estabelecido em sua obra “A virtude soberana: a teoria e a
prática da igualdade”129, que estabelece críticas àquele.
2. A teoria da justiça para Rawls
John Rawls, um dos mais conhecidos filósofos políticos norteamericanos, falecido aos 81 anos, em 2002, é tido como o principal teórico da
democracia liberal dos dias de hoje. Em sua obra “Uma teoria da justiça”, tem
diretamente compromisso histórico com o liberalismo igualitário e o repúdio ao
utilitarismo (funcionalismo), que também marcará os trabalhos de outros
autores de importância, como Ronald Dworkin. No pensamento de Rawls, para
o utilitarismo, as ideias de igualdade e de reciprocidade somente seriam
consideradas indiretamente, como aquilo que normalmente seria necessário
para maximizar o total de bem-estar social.
Rawls, em seu percurso, buscou debater quais seriam os fundamentos
de uma sociedade justa. Em “A Theory of Justice”, propôs uma concepção de
justiça que denominou de “justiça como equidade”. Por essa concepção, “os
princípios de justiça mais razoáveis seriam aqueles que fossem objeto de
acordo mútuo entre pessoas em condições equitativas”130. E esses princípios,
apesar de afirmarem uma concepção liberal ampla de direitos e liberdades
básicos, só admitiriam desigualdade de rendas e riquezas que fossem
vantajosas para os menos favorecidos.
Para Rawls, a Justiça seria a primeira virtude das instituições sociais.
Nesse sentido131:
Justice is the first virtue of social institutions, as truth is of
systems of thought. A theory however elegant and economical
must be rejected or revised if it is untrue; likewise laws and
institutions no matter how efficient and well-arranged must be
reformed or abolished if they are injust.
129
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. 2ª ed. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
130
RAWLS, John. Justiça como Equidade. Op. cit., introdução feita por Erin Kelly.
131
RAWLS, John. A Theory of Justice. Op. cit., p. 3. Tradução livre: A justiça é a primeira
virtude das instituições sociais, como a verdade é dos sistemas de pensamento. Uma teoria,
porém elegante e econômica, deve ser rejeitada ou revista se é falsa, do mesmo modo as leis
e instituições, não importa quão eficientes e bem-dispostas, devem ser reformadas ou abolidas
se forem injustas.
109
No seu entender, alguma medida de acordo na concepção da justiça
seria requisito prévio para uma comunidade humana viável.
Em seu trajeto, contudo, Rawls realizou mudanças em sua teoria, nos
dois princípios de justiça usados como equidade, na organização do argumento
a favor desses princípios na posição original e em como a própria teoria da
equidade deve ser entendida, como uma concepção política de justiça e não
como parte de uma doutrina moral abrangente, respondendo a críticas de
outros juristas.
Partindo da ideia de fornecer uma base filosófica e moral aceitável para
as instituições democráticas e assim responder a questão de como entender as
exigências da liberdade e igualdade, estabelece que a ideia mais fundamental
nessa concepção de justiça é a da sociedade como um sistema equitativo de
cooperação social que se perpetua de uma geração para outra. Para tanto,
aponta duas ideias que lhe estão associadas, a de pessoas livres e iguais, e de
uma sociedade bem-ordenada, ou seja, efetivamente regulada por uma
concepção pública de justiça132.
Assim, para o pensador, a função dos princípios da justiça seria definir
os termos equitativos de cooperação social.
Por outro lado, dizer que uma sociedade é bem ordenada significaria
primeiro, e implícito na ideia de justiça, tratar-se de uma sociedade na qual
cada um aceita, e sabe que os demais também aceitam, a mesma concepção
política de justiça; segundo, e implícito na ideia de regulação efetiva por uma
concepção de justiça, todos sabem, ou por bons motivos acreditam que a
estrutura base da sociedade- suas principais instituições políticas e sociais e a
maneira como elas interagem como sistema de cooperação- respeita esses
princípios da justiça e, terceiro, os cidadãos têm um senso normalmente efetivo
de justiça.
Aponta Rawls que, na justiça como equidade, a questão da justiça entre
os povos é preterida, privilegiando-se uma definição de justiça política para
132
RAWLS, John. Justiça como Equidade. Op. cit., p. 7.
110
uma sociedade democrática bem-ordenada. Contudo, vem afirmar que, talvez a
melhor maneira de conceber uma ordem mundial justa seja como uma
sociedade de povos, cada povo com um regime político (doméstico) bem
ordenado e decente, não necessariamente democrático, mas que respeite
plenamente os direitos humanos básicos. Todavia, a teoria da justiça como
equidade é uma concepção política de justiça para o caso especial da estrutura
básica de uma sociedade democrática contemporânea.
Como partiu Rawls da ideia organizadora de sociedade como um
sistema equitativo de cooperação entre pessoas livres e iguais, veio apresentar
a questão de como determinar os termos equitativos de cooperação, dando a
solução de que proviriam de um acordo celebrado por aqueles comprometidos
com ela. Assim, um acordo válido, do ponto de vista da justiça política, deve
exigir pessoas livres e iguais, não devendo permitir que alguns tenham
posições de negociação mais vantajosas do que as de outros. Na posição
original, com a sua característica de “véu da ignorância”, não se permitiria que
as partes conhecessem as posições sociais ou as doutrinas abrangentes
específicas das pessoas que elas representam, também ignorando a raça e
grupo étnico, sexo, ou outros dons naturais como força e inteligência das
pessoas. Nesse sentido, é conferir133:
Um dos motivos pelos quais a posição original tem de abstrair
contingências- as características e circunstâncias particulares
das pessoas- da estrutura básica é que as condições para um
acordo equitativo entre pessoas livres e iguais sobre os
princípios primeiros de justiça para aquela estrutura têm de
eliminar posições vantajosas de negociação que, como o
passar do tempo, inevitavelmente surgem em qualquer
sociedade como resultado de tendências sociais e históricas
cumulativas.
Rawls descreve os agentes da ‘posição original’ como indivíduos que
desconhecem os traços básicos de suas biografias, vindo afirmar que uma
teoria justa não merece ser reconhecida como tal se permite que as pessoas
sejam beneficiadas ou prejudicadas por circunstâncias alheias às suas próprias
escolhas.
133
Ibidem, p. 22.
111
Assim, vistos exclusivamente como pessoas livres e iguais, deveriam
concordar com os termos equitativos de cooperação que devem reger a
estrutura básica.
A teoria de Rawls vem ser considerada contratualista, por Gargarella,
em sua obra “As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de
filosofia política”134, que chama a atenção para o forte igualitarismo nela
implícito.
Contudo, utilizando no seu conceito a necessidade de cidadãos livres e
iguais, tem que apontar igualdade em quê, uma vez ser da essência das
pessoas essa diferença. Assim, vem dizer que são vistas como iguais na
medida em que considera que todos têm, num grau mínimo essencial, as
faculdades morais necessárias para envolver-se na cooperação social a vida
toda e participar da sociedade como cidadãos iguais. Assim, a base da
igualdade consistiria, no grau mínimo necessário, as capacidades morais e
outras que nos permitem participar da vida cooperativa da sociedade. A
igualdade dos cidadãos na posição original seria formalizada pela igualdade de
seus representantes, direitos iguais no tocante aos procedimentos que adotam
para chegar a um acordo,
Por sua vez, os cidadãos seriam livres na medida em que consideram a
si mesmos como aos demais detentores da faculdade moral de ter uma
concepção do bem. Em segundo lugar, os cidadãos consideram a si mesmos
como livres na condição de fontes de reivindicação legítimas que se autenticam
por si mesmas.
Apesar de Rawls se determinar como um procedimentalista, vem afirmar
que nenhuma justiça procedimental pode se basear só no procedimento. Para
ele, toda teoria da justiça é substancial e procedimental- passa do
procedimento para, a partir dele, estabelecer várias concepções abrangentes.
Existiria um mínimo ético comum de todos os círculos, o mínimo do consenso,
contudo, um consenso comum, adotando como modus vivendi a tolerância.
134
GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de
filosofia política. Tradução Alonso Reis Freire; revisão da tradução Elza Maria Gasparotto;
revisão técnica Eduardo Appio. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
112
Rawls, admitindo que o procedimentalismo pensado por ele nem sempre
vai levar a um resultado justo, apresenta a justificação pública como crítica a
essa legitimidade que pode levar à injustiça. Por exemplo, o Estado social
nazista era legítimo, em razão de coincidir com o consenso, mas tão injusto,
que corrompe.
A justificação pública originaria de um consenso, sendo característica de
uma sociedade bem-ordenada que sua concepção pública de justiça política
estabeleça uma base comum a partir da qual os cidadãos justificam, uns para
os outros, seus juízos políticos. Assim, para que a justiça como equidade tenha
sucesso, ela tem de ser aceitável, não só em termos de nossas convicções
bem-ponderadas, mas também para a dos outros, em todos os níveis de
generalidade, num equilíbrio reflexivo mais o menos amplo e geral.
Introduz Rawls a ideia de consenso sobreposto como forma de tornar a
sociedade bem-ordenada mais realista e ajustá-la às condições históricas e
sociais das sociedades democráticas, que incluem o fato do pluralismo
razoável135.
Assim, diz que, embora numa sociedade bem-ordenada todos os
cidadãos afirmem a mesma concepção política de justiça, não se deve supor
que façam pelas mesmas razões. Isso porque cidadãos têm opiniões
religiosas, filosóficas e morais conflitantes, e, portanto, afirmariam a concepção
política a partir de doutrinas abrangentes diferentes e opostas, mas isso não
impediria que a concepção política seja um ponto de vista comum a partir do
qual
podem
resolver
questões
que
digam
respeito
aos
elementos
constitucionais essenciais.
Procurou Rawls uma concepção política de justiça que possa granjear o
apoio de um razoável consenso sobreposto razoável para servir de base
pública de justificação.
Também, no seu capítulo 5 do livro A Theory of Justice, Rawls vem dizer
ser natural que a vida humana envolva múltiplos valores e que, em razão disso,
as pessoas discordem em como balanceá-los e priorizá-los. Que maiores que
135
RAWLS, John. Justiça como Equidade. Op. ci, p. 44.
113
sejam as diferentes posições e perspectivas e experiências de vida darão
diferentes bases para diferentes julgamentos. Contudo, se espera que pessoas
conscientes, após um livre discurso, cheguem à mesma conclusão, apesar de
continuarem a discordar sobre termos básicos e princípios de sua associação.
Busca Rawls estabelecer, em sua obra, quais os princípios de
justificação seriam mais apropriados para determinar direitos e liberdades
básicos e para regular as desigualdades sociais e econômicas das
perspectivas de vida dos cidadãos. Para tentar responder a pergunta, Rawls se
utiliza de dois princípios de justiça discutidos em Teoria, §§12 e 14, que são,
em ordem de precedência, os seguintes136:
Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema
plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja
compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; e
As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas
condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e
posições acessíveis a todos em condições de igualdade
equitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de
beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da
sociedade (o princípio da diferença).
Assim, a igualdade equitativa de oportunidades exigiria não só que
cargos públicos e posições sociais estivessem abertos no sentido formal, mas
que todos tivessem a chance equitativa de ter acesso a eles.
Ademais, a igualdade equitativa de oportunidades significaria a
igualdade liberal, quando seria preciso estabelecer um sistema de mercado
livre no contexto das instituições políticas e legais que ajuste as tendências de
longo prazo das forças econômicas a fim de impedir a concentração excessiva
da propriedade e da riqueza, sobretudo aquela que leva à dominação política.
Nos dois princípios transcritos, verifica-se que o primeiro abarca os
elementos constitucionais essenciais; já o segundo exigiria que a igualdade
equitativa de oportunidades e as desigualdades sociais e econômicas sejam
governadas pelo princípio da diferença.
136
Ibidem, p. 60.
114
Isso porque, segundo Rawls137:
Mesmo que o estado inicial tenha sido justo, e as condições
sociais subsequentes também tenham sido justas durante
algum tempo, os efeitos cumulados de muitos acordos
separados e aparentemente equitativos celebrados por
indivíduos e associações tendem, num período de tempo
longo, a minar as condições de fundo necessárias para
acordos livres e equitativos.
Assim criando o princípio da diferença como uma fórmula para ajustar
esses desequilíbrios sociais, Rawls o representa como um acordo que
determina que a distribuição dos talentos naturais seja considerada um bem
comum e que os benefícios dessa distribuição sejam compartilhados, sejam
eles quais forem. E, o que deveria ser considerado um bem comum seria a
distribuição dos talentos naturais, isto é, as diferenças entre as pessoas.
E, considerando a forma mais simples do princípio da diferença, os
menos favorecidos seriam aqueles que usufruem em comum com os outros
cidadãos das liberdades básicas iguais e oportunidades equitativas, mas têm a
pior renda e riqueza.138
Resumindo, para Rawls, o princípio da diferença somente deve vigorar
quando os princípios de justiça prioritários estiverem satisfeitos. Defende que
ele pressupõe um contínuo aproximado de estruturas básicas praticáveis e que
exemplos numéricos arbitrários podem facilmente ser enganosos se não
prestarmos atenção ao pano de fundo institucional comumente aceito. O
princípio da diferença seria um princípio de justiça e não uma resposta a
interesses próprios a um determinado grupo; e, por fim, as posições sociais
relevantes têm se de ser especificadas corretamente139.
O princípio da diferença exigiria um mínimo social que, junto com todo o
conjunto de políticas sociais, maximizaria as perspectivas de vida dos menos
favorecidos ao longo do tempo. Para o filósofo, a educação e saúde deveriam
ser encaradas de acordo com as diretrizes do princípio da diferença. A
137
Ibidem, pp. 74/75
Ibidem, p. 92.
139
Ibidem, p. 101.
138
115
assistência médica assim como os bens primários em geral devem satisfazer
às necessidades e exigências dos cidadãos livres e iguais, devendo ser
assegurado um nível básico para todos e, na medida do possível, disposições
para realizar a igualdade de oportunidades na educação e em treinamento de
vários tipos.
Defendendo uma democracia de cidadãos-proprietários, onde se
colocaria nas mãos de todos os cidadãos, e não só de uns poucos, meios
produtivos suficientes para que eles possam ser membros plenamente
cooperativos da sociedade em pé de igualdade, afirma Rawls que, ao
assegurar os direitos básicos, as liberdades básicas e as oportunidades
equitativas iguais, a sociedade política garante para as pessoas o
reconhecimento de sua condição de livres e iguais.
3. A teoria da justiça de Dworkin
Tomando por base os ensinamentos de Ronald Dworkin, na sua obra “A
virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade”140, buscarei esboçar o
conceito de justiça, sob o enfoque distributivo, do jurista, notadamente no que
se prende ao conceito de igualdade.
Para Dworkin, a igualdade se baseia em dois postulados: igual cuidado e
o princípio da responsabilidade, que indica que cada um vem ser responsável
por sua escolha. Salienta Dworkin, também, que as pessoas não podem ser
apenadas por suas circunstâncias naturais, para as quais não escolheram.
Sustenta o autor que nenhum governo legítimo pode negar a igualdade
de consideração. Consideração igualitária seria a virtude soberana da
comunidade política. Sem ela, o governo não passaria de tirania.
Aponta Dworkin que a igualdade absoluta e indiscriminada não seria um
valor. Segundo o mesmo141:
...a igualdade absoluta e indiscriminada não é apenas um valor
político fraco, ou um valor que seja facilmente sobrepujado por
outros valores. Não é de modo algum um valor: não há nada
que se possa dizer em defesa de um mundo no qual aqueles
140
141
DWORKIN, Ronald. Op. cit.
Ibidem, p. x
116
que optam pelo ócio, embora pudessem trabalhar, são
recompensados com o produto dos trabalhadores.
Apresenta o jurista a igual consideração como pré-requisito da
legitimidade política. A igual consideração requer que o governo aspire a uma
forma de igualdade material que chama de igualdade de recursos.
Conforme acima já afirmado, para ele, dois princípios do individualismo
ético são fundamentais: princípio da igual importância e da responsabilidade
especial.
O princípio da igual importância exige que o governo adote leis e
políticas que garantam que o destino de seus cidadãos, contanto que o
governo consiga atingir tais metas, não dependa de quem eles sejam, seu
histórico econômico, sexo, raça ou determinado conjunto de especializações ou
deficiências.
Já, pelo princípio da responsabilidade especial, embora devamos
reconhecer a igual importância objetiva do êxito na vida humana, uma pessoa
tem responsabilidade especial e final por esse sucesso. A pessoa como
responsável por suas próprias escolhas.
Assim, a resposta que Dworkin oferece ao desafio da consideração
igualitária é a combinação de dois princípios agindo em conjunto. O princípio
da igual importância requer que o governo adote leis e políticas que garantam
que o destino de seus cidadãos, contanto que o governo consiga atingir tais
metas, não dependa de quem eles sejam, seu histórico econômico, sexo, raça
ou determinado conjunto de especializações ou deficiências. Por sua vez, o
princípio da responsabilidade especial exige que o governo se empenhe por
tornar o destino dos cidadãos sensíveis às opções que fizeram.
Dworkin vem ser expoente do igualitarismo liberal, corrente que aceita a
premissa liberal de que a distribuição de riquezas sociais deve expressar, de
algum modo, as escolhas das pessoas e, que, portanto, uma distribuição
idêntica de riquezas não é necessariamente uma distribuição justa ou
igualitária. Todavia, vem sustentar que, em direção oposta, deve-se concluir
que as desigualdades materiais que não poderiam ser atribuídas às escolhas
117
das pessoas, ou seja, as que se devem a circunstâncias fora de seu controle,
não são justificadas. Assumimos responsabilidades por nossas escolhas de
variadas maneiras. Todavia, as desigualdades resultantes de circunstâncias
são moralmente arbitrárias e merecem alguma forma de correção.
Ao falarmos de igualdade, devemos sempre perguntar de quê? Para
Dworkin, a igualdade é de recursos e não de bem-estar.
A palavra bem-estar envolveria uma indeterminabilidade de conceito (o
que seria felicidade?). Assim como dependeria da subjetividade, das diferenças
entre as pessoas, bem como existente a dificuldade de comparação dos seus
níveis.
Aponta como críticas ao conceito de bem-estar, para balizar a ideia de
igualdade, as deficiências142 e gostos dispendiosos143.
Como ponto problemático do bem-estar, sob o enfoque do gosto
dispendioso, indica Dworkin o gosto pelo champanhe. Contudo, salienta que se
a comunidade resolver desencorajar os gostos dispendiosos, pode gerar uma
sociedade conformista, sem imaginação e, por outro lado, sem atrativos. Quem
escolhe uma vida dispendiosa, por outro lado, não merece compensação.
Também temos as deficiências. Em muitos casos, os deficientes têm
renda inferior e, portanto, não têm nem recursos materiais iguais aos dos
outros. E algumas pessoas, com deficiências gravíssimas, precisam de renda
extra só para sobreviver. No entanto, muita gente com deficiências graves tem
alto nível de bem-estar em qualquer conceito. Também,
uma
pessoa
com
deficiência muito séria, mesmo que recebesse muito recurso, não teria um
bem-estar maior, como um tetraplégico.
Dworkin, para usar a igualdade de recursos como critério para a
igualdade, estabelece que deve ser sensível às escolhas e insensível às
circunstâncias.
142
143
Ibidem, pp.70-74.
Ibidem, pp.55-69;
118
Requer, para tanto, uma estratégia de filosofia, da situação hipotética, de
um leilão hipotético em uma ilha deserta, em que os indivíduos devem decidir,
como se fosse a primeira vez, regras justas de convivência.
O leilão hipotético representaria um mercado em condições ideias,
levando em conta as diversidades de preferências entre as pessoas e as
escolhas implicadas por essas diversidades. Nesse leilão, os náufragos
participariam com poder paritário de aquisição. O melhor lance representaria as
preferências e planos de vida. Escolhas voluntárias, mas não as circunstâncias
pessoais.
Dworkin acaba por reafirmar a importância do mercado como
instrumento de alocação justa de custos de oportunidade, mas enfatizando a
necessidade de corrigi-lo com medida retributiva para que a divisão de riqueza
seja efetivamente sensível ao critério de escolha. Nesse sentido144:
Assim, se a justiça exige um leilão igualitário quando chegam,
deve exigir um novo leilão igualitário de vez em quando a partir
de então, e se a justiça exige o laissez-faire dali em diante,
deve exigir quando chegam.
Pelo seguro hipotético, as pessoas se tornariam iguais em face do risco.
Assim, se é impossível, em alguns casos indesejáveis, equalizar todas as
desigualdades materiais atribuíveis às circunstâncias, é possível equalizar as
oportunidades que as pessoas têm para se proteger dos riscos de possuir
menos riquezas por razões aleatórias, isto é, circunstâncias.
Aponta que, no seguro, haveria um poder aquisitivo paritário, mais o não
conhecimento da predisposição do risco (véu da ignorância), representando
medida correta para redistribuir na sociedade os recursos entre quem ganha e
quem perde. O mecanismo do seguro não eliminaria as desigualdade materiais
produzidas em decorrência das circunstâncias, mas as minimizaria.
Inclusive, para a saúde, defenderia um seguro hipotético, com a
cobertura que as pessoas médias da comunidade teriam contratado em um
mercado de seguro competitivo.
144
Ibidem, p, 111.
119
Na igualdade de recursos, as pessoas decidem que tipo de vida procurar
munidas de um conjunto de informações sobre o custo real que suas escolhas
impõem a outras pessoas e, consequentemente, ao estoque total de recursos
que pode ser equitativamente utilizado por elas.
Para Dworkin, a igualdade requer que aqueles que escolhem meios mais
dispendiosos de viver, o que inclui a escolha de ocupações menos produtivas
avaliadas pelo que os outros querem, tenham como consequência menores
rendimentos residuais, mas também requer que ninguém tenha menos
rendimentos simplesmente por ter menos talento inato145.
Então precisamos procurar, em outra parte, o fundamento para
rejeitar a ideia de levar o trabalho como recurso ao leilão. Não
precisamos procurar muito longe, de fato, pois o princípio de
que não se deve punir as pessoas pelo talento simplesmente
faz parte do mesmo princípio em que nos baseamos para
rejeitar a ideia obviamente oposta, de que se deve permitir que
as pessoas conservem os benefícios do talento superior.
Dworkin apresenta a hipótese no sentido de que admitamos um mundo
imaginário no qual, embora a distribuição de habilidades por toda a
comunidade fosse, no conjunto, o que realmente é, por algum motivo todas as
pessoas
tivessem
as
mesmas
oportunidades
prévias
de
sofrer
as
consequências da falta de determinado conjunto de habilidades, e estivessem
todas dispostas a comprar um seguro contra essas consequências na mesma
estrutura de preço. Apólice do tipo, seguro contra a ausência de oportunidade
de alcançar qualquer nível de rendimentos escolhido pelo segurado, dentro da
estrutura projetada, e, nesse caso, a companhia de seguros pagará ao
segurado a diferença entre o nível de cobertura e a renda que ele de fato tem a
oportunidade de receber.
Para o cálculo do valor do prêmio e cobertura, aponta o seguinte critério:
embora a perda financeira na queda em rendimentos, digamos dos 70% para
os 60%, seja muitíssimo maior do que a perda na queda dos 40% para 30%, as
consequências do bem-estar provavelmente seriam, em média, muito piores
para a segunda queda.
145
Ibidem, p. 115.
120
Quando o nível de cobertura e, por conseguinte, do prêmio cai, essas
desvantagens especiais de bem-estar não são mitigadas, mas, na verdade,
desaparecem completamente. Isso por gerar maiores opções de emprego e
diminuição do risco de ser escravizado em uma carreira que não goste, em
razão de ter escolhido um prêmio mais caro. Aponta um exemplo hipotético do
caso Deborah, a artista de cinema, cujo talento era reconhecido por todos, mas
que detestava a profissão, porém estava presa e escravizada por seu talento
por ter um nível de cobertura de seguro muito alto.
Aponta Dworkin que a tributação colocada como prêmio, com base no
mercado hipotético, tem defeitos graves. Isso porque, além de injusto que tanto
ricos e pobres paguem o mesmo imposto, como risco de trapaceamento de
habilidades.
4. Das críticas de Dworkin a Rawls
Para Dworkin, o princípio da diferença de Rawls não estaria
suficientemente aprimorado em diversos aspectos146.
Para ele, existiria um grau de arbitrariedade concedido na escolha de
qualquer descrição de grupo baseado na pior situação, pois, de qualquer
forma, seria um grupo cujas fortunas só poderiam ser registradas por meio de
uma média mítica ou de um membro representativo daquele grupo.
Em especial, aponta que a estrutura se mostra insuficientemente
sensível à posição das pessoas com deficiências naturais, físicas ou mentais,
que não constituem em si um grupo em pior situação, pois este, para Rawls, é
definido economicamente, não podendo contar com um representante ou um
membro médio de tal grupo.
O próprio Rawls indicaria que, nesse caso, deveria ser usado o princípio
da reparação, que não estaria contido no da diferença, que funcionaria de
maneira similar ao descrito no princípio da igualdade de Dworkin.
Contudo, afirma Dworkin que Rawls indicaria que o princípio da
diferença se encaminharia no mesmo sentido do da reparação, na medida em
146
Ibidem, pp.148-156.
121
que a educação especial para os deficientes acabaria por privilegiar a classe
economicamente mais desprivilegiada, criticando esse pensamento, afirmando
não haver motivo para pensar que funcionaria, pelo menos em circunstâncias
normais.
Dworkin aponta também que tem sido assinalado, com frequência, que o
princípio da diferença não teria sensibilidade suficiente para variações na
distribuição acima da classe econômica em pior situação. Para tanto, nos
apresenta o exemplo da catástrofe. Para Dworkin, alguma catástrofe iminente
obrigaria as autoridades a escolher, agindo de modo que o representante da
pequena classe dos mais pobres piore muito pouco, enquanto a dos outros
piore drasticamente e ele se tornem quase tão pobres quanto os mais pobres.
Apesar de entender, contudo, ser uma hipótese rara, critica que, em
todas as circunstâncias, seria realmente a situação do grupo mais pobre que
determinaria o que é justo.
Já, ao defender a sua teoria, em contraposição, Dworkin nos explica que
a igualdade de recursos não isola qualquer grupo, mas pretende oferecer uma
descrição de igualdade de recursos pessoa por pessoa, propondo que a
igualdade é na questão do direito individual e não de grupo. Assim, mesmo
quando a teoria emprega a ideia de curva média de utilidade, como faz no
mercado hipotético de seguros, toma em consideração, para os juízos de
probabilidade, os gostos e aspirações de determinadas pessoas, sob o ponto
de vista individual e não de grupos. Já o princípio da diferença, de Rawls,
vincularia a uma classe, pois, para ele, a justiça, na posição original, estaria
organizada, por motivos práticos, em classes desde o início.
Também indica o jurista que a igualdade de recursos apontaria para uma
igualdade absoluta maior no que Rawls chamaria de bens primários, dando o
exemplo de um imposto necessário para oferecer a cobertura aos deficientes e
aos desempregados que tenha, a longo prazo, a possibilidade de reduzir os
investimentos, bem como as perspectivas de bens primários para o membro
representativo da classe mais pobre. Enquanto o princípio da diferença
condenaria o imposto, a igualdade de recursos o recomendaria assim mesmo.
122
Também, pelo princípio da diferença, de Rawls, deve haver a igualdade
generalizada nos bens primários, sem contemplar as diferenças em aspirações,
ocupações, consumo, etc. Para Dworkin, essa análise unidimensional da
igualdade seria simplesmente insatisfatória se aplicada pessoa a pessoa.
Também, como crítica, vem apontar que o contrato social de Rawls
pretende isolar a moralidade política dos pressupostos éticos e das
controvérsias a respeito do caráter da vida boa.
Por fim, como uma diferença marcante entre as teorias vem dizer
Dworkin que, enquanto a teoria da igualdade permite às pessoas um
autoconhecimento suficiente, como indivíduos, para manter relativamente
intacta a noção de suas próprias personalidades, é essencial à posição original
de Rawls que seja exatamente esse conhecimento que falte às pessoas. Para
Dworkin, a posição original exigiria alguma teoria da igualdade para poder ser
utilizada como dispositivo das argumentações pela justiça. Assim, seria
necessária alguma teoria da igualdade para explicar porque a posição original
é um dispositivo útil.
Conclusão
O artigo, por um método descritivo, vem traçar as linhas básicas dos
pensamentos de Rawls e Dworkin, ambos considerados liberais igualitários,
naquilo que os seus ensinamentos abordam a justiça distributiva.
Ambos os juristas, partindo da ideia liberal de liberdade, buscam conter
os desequilíbrios do mercado por meio de uma cooperação social embasada
em uma concepção de justiça.
Enquanto para Rawls, a socidade deve garantir os meios mínimos que
permitam aos indivíduos realizar seus projetos de vida, para tanto se utilizando
do conceito filosófico da posição original, onde os indivíduos deliberariam,
nesse grande contrato, sob o véu da ignorância, situação hipotética em que
desconheceriam as particularidades do grupo que representam, Dworkin vem
criticar esse conceito, aduzindo desprezar as particularidades individuais e,
criando, por outro lado, a sua teoria do leilão hipotético, onde todos os
náufragos, também em posição original, ganhariam um mesmo número de
123
conchas que possibilitassem escolher, no leilão, a parte do território de uma
ilha ainda não habitada.
Nesse sentido, cada um, conforme as suas particularidades, poderia
investir naquilo que correspondesse seus desejos e aspirações.
Depois do leilão realizado, seria promovida a conferência do seu acerto,
ou seja, da distribuição ideal, por meio do teste da cobiça, que, mesmo assim,
já demonstraria desigualdades, não só provocadas por circunstâncias
pessoais, como talento, como pelas naturais, como catástrofes.
Por sua vez, Rawls admite que, ao valorizar as liberdades, acaba por
reconhecer que produzem desigualdades sociais, para tanto se utilizando de
um método corretivo do princípio da diferença.
Para fins de entender as exigências da liberdade e igualdade e
harmonizá-las, Rawls estabelece como ideia mais fundamental na concepção
de justiça a da sociedade como um sistema equitativo de cooperação social
que se perpetua de uma geração para outra, para tanto, sendo necessárias
pessoas livres e iguais e uma sociedade bem-ordenada.
Está na base do pensamento de Rawls a ideia de acordo. Assim, como
já afirmado, na posição original, com a sua característica de “véu da
ignorância”, não se permitira que as partes conhecessem as posições sociais
ou as doutrinas abrangentes específicas das pessoas que elas representam,
também ignorando a raça e grupo étnico, sexo, ou outros dons naturais como
força e inteligência das pessoas.
Por sua vez, através da justificação pública, introduz Rawls a ideia de
consenso sobreposto como forma de tornar a sociedade bem-ordenada mais
realista e ajustá-la às condições históricas e sociais das sociedades
democráticas, que incluem o fato do pluralismo razoável.
Para Rawls, pela igualdade equitativa de oportunidades, seria preciso
estabelecer um sistema de mercado livre no contexto das instituições políticas
e legais que ajuste as tendências de longo prazo das forças econômicas a fim
de impedir a concentração excessiva da propriedade e da riqueza, sobretudo
124
aquela que leva à dominação política. Daí o princípio da diferença, sendo
considerado bem comum a distribuição dos talentos naturais.
Dworkin, por sua vez, vem nos conceder a ideia do seguro hipotético
como mecanismo para corrigir as distorções do mercado, representando a
simbologia de um reavivamento do leilão igualitário. Esse seguro hipotético
permitiria que as pessoas se tornassem iguais em face do risco, defendendo
um nível de cobertura não alto, para fins de se evitar a escravização do talento
assim como permitir a participação de todos.
Ao defender a sua teoria, em contraposição a Rawls, Dworkin nos
explica que a igualdade de recursos não isola qualquer grupo, mas pretende
oferecer uma descrição de igualdade pessoa por pessoa, propondo que a
igualdade é na questão do direito individual e não de grupo. Assim, mesmo
quando a teoria emprega a ideia de curva média de utilidade, como faz no
mercado hipotético de seguros, toma em consideração, para os juízos de
probabilidade, os gostos e aspirações de determinadas pessoas, sob o ponto
de vista individual e não de grupos. Já o princípio da diferença, de Rawls,
vincularia a uma classe, pois, para ele, a justiça, na posição original, estaria
organizada, por motivos práticos, em classes desde o início.
Assim, para Dworkin, pelo princípio da diferença, de Rawls, deve haver a
igualdade generalizada nos bens primários, sem contemplar, contudo, as
aspirações, ocupações consumos, etc, o que seria simplesmente insatisfatória.
Assim como também aponta que existiria um grau de arbitrariedade na escolha
de qualquer descrição de grupo baseada na pior situação, bem como o
princípio da diferença não teria sensibilidade suficiente para variações na
distribuição acima da classe econômica em pior situação.
Por fim, como uma diferença marcante entre as teorias, vem dizer
Dworkin que, enquanto a teoria da igualdade permite às pessoas um
autoconhecimento suficiente, como indivíduos, para manter relativamente
intacta a noção de suas próprias personalidades, é essencial à posição original
de Rawls que seja exatamente esse conhecimento que falte às pessoas.
125
Referência Bibliográficas
BORGES, Arnaldo. Origens da Filosofia do Direito. 1ª edição. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor,1999.
DURANT, Will. História da Filosofia. 2ª ed. São Paulo: Record, 1996.
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade.
2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve
manual de filosofia política. Tradução Alonso Reis Freire; revisão da
tradução Elza Maria Gasparotto; revisão técnica Eduardo Appio. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2008.
NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2002.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Coimbra: Arménio Amado Editor –
Sucessor, 1997.
RAWLS, John. A Theory of Justice. Londres: Havard University Press, 1971.
______. Justiça como Equidade. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. New York: Oxford University,
1999.
126
CAPÍTULO 8: REFLEXÕES ACERCA DA CONCEPÇÃO DE
DEMOCRACIA DE DWORKIN E O MODELO DE SUPREMACIA
JUDICIAL
Roberto Carlos Martins Pontes
DOI 10.11117/9788565604147.08
Resumo:O presente artigo objetiva examinar as bases conceituais da
democracia, conforme os estudos de Ronald Dworkin, constantes de sua mais
recente e derradeira obra Justiça para Ouriços. Além de discutir as concepções
de democracia, também se discute a adequação da concepção majoritária, e a
regra da maioria, às questões políticas, com especial atenção ao judicial
review, e o modelo de supremacia judicial. Além dos aspectos teóricos, o artigo
faz considerações sobre o contexto brasileiro, especialmente sobre propostas
de aperfeiçoamento do modelo institucional atual, e sobre decisões recentes do
STF que foram objeto de controvérsias também relativas ao nosso peculiar
modelo de supremacia judicial.
Palavras-chaves: Democracia – Jurisdição Constitucional – Escrutínio
Judicial -Democracia Majoritária – Democracia de Parceria - Regra da Maioria Supremacia Judicial - Separação de Poderes – Diálogo Institucional.
Introdução
O debate acerca da tensão entre a jurisdição constitucional e o regime
democrático tem sido cada vez mais intenso, seja na academia e até no
quotidiano brasileiro.
Casos recentes decididos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de
grande repercussão, tais como a perda de mandatos de parlamentares
condenados criminalmente147 e a determinação de apreciação sequencial de
vetos presidenciais, aqueceram o debate sobre o monopólio da última palavra
nas questões constitucionais.
147
STF – Ação Penal nº470 – caso popularmente conhecido como “Mensalão”.
127
O cerne desse debate reside na crença de que o Parlamento expressa a
vontade popular no processo de elaboração de leis e na possibilidade de um
grupo de juízes nomeados (não eleitos) e vitalícios decidirem anular algumas
das leis elaboradas por tais representantes eleitos.
Nesse ambiente de tensão entre democracia e jurisdição, começamos
examinando as bases conceituais da democracia, e suas vertentes. Nesse
artigo, seguiremos o estudo de Ronald Dworkin sobre democracia, contido em
sua mais recente obra “Justiça para Ouriços”.
Nessa obra, de título curioso148, Dworkin aborda entre tantos temas, a
Política. Nessa parte (Parte V), dedica um capítulo ao exame da Democracia. É
manipulando os conceitos e concepções de Dworkin sobre democracia e temas
correlatos – A Representação Política - que avançamos para o exame do
modelo supremacia judicial e como a jurisdição constitucional pode contribuir
ou comprometer a democracia.
Naturalmente, as considerações acadêmicas de Dworkin não se
restringem ao seu país – os Estados Unidos – ou à Europa – onde viveu parte
de sua vida, e desenvolveu estudos sobre o Direito -, mas procuramos trazê-los
ao contexto brasileiro.
2 Democracia - Concepções
Uma comunidade política não pode prescindir da imposição coercitiva de
decisões tomadas coletivamente sobre justiça e moral. O desafio posto é, em
síntese, definir o procedimento de tomada das decisões coletivas.
Em face do conteúdo interpretativo do conceito de democracia (as
pessoas discordam sobre o seu sentido e significado) e de suas faces, há que
se levar em conta sempre o contexto institucional dos países considerados no
estudo.
148
Ronald Dworkin se autodenominava um “ouriço”, na perspectiva do que disse o poeta grego
Arquíloco: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante”. Em
sua obra “Justiça para Ouriços”, Dworkin trata entre tantos assuntos, da integridade de valores,
que em sua concepção, não se põem em conflito.
128
Sem dúvida, influenciam a democracia a indeterminação do conjunto de
votantes, o sistema eleitoral em vigor (distrital ou proporcional 149), o sistema de
governo (presidencialismo ou parlamentarismo), a forma do Estado (o grau de
federalismo150), a frequência na realização de eleições, e outros fatores.
Por influenciar a determinação do conjunto de votantes, bem como do
modo de participação nas tomadas de decisões, tais fatores interferem
claramente no conteúdo (teor democrático) das leis. É justamente nesse tópico
que Dworkin lança várias indagações: seria um sistema mais democrático que
o outro? O controle judicial de constitucionalidade de atos legislativos e
executivos feito por juízes nomeados e vitalícios seria um corretivo necessário
ou desejável para a democracia? Ou ainda uma prática indispensável para se
experimentar uma democracia genuína?
Tais indagações são cruciais, tendo em vista o conceito indeterminado e
interpretativo de democracia. Trataremos de responde-las ao longo do artigo.
Dworkin propõe, e contrapõe em diversos momentos ao longo de seu
texto, dois modelos de democracia: a majoritária e a de parceria (partnership),
a partir do quais examina as questões postas.
Na concepção majoritária, as estruturas do governo representativo são
concebidas para fazer refletir nas leis e políticas públicas as preferências do
grupo que traduz a maioria da comunidade. Presume-se, por óbvio, a
realização frequente de eleições.
Dworkin alerta também para o cuidado de não se confundir a concepção
majoritária de democracia com modelos agregativos de justiça, como o
utilitarista – que entende as leis como justas quando produzem a “maior
quantidade possível” de bem estar médio (geral) em dada comunidade. É bem
149
Em linhas gerais, o sistema proporcional visa a representar o mosaico social, assegurando
às minorias uma representação parlamentar compatível com sua dimensão. O sistema distrital
majoritário é acompanhado sempre do desafio relacionado ao desenho dos distritos e da
distribuição da população em tais distritos. Sua definição é até intuitiva: o mais votado no
distrito conquista a vaga parlamentar. Tal sistema, segundo estudos de ciência política, pode
gerar subrepresentação de minorias.
150
DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços. Coimbra: Almedina, 2012. Tradução: Pedro Elói
Duarte. p. 389. Dworkin sustenta que o federalismo e a descentralização propiciam,
normalmente, decisões políticas “mais racionais e fornecem um maior sentido de participação
no governo democrático”.
129
possível (como já ocorreu) de a maioria produzir leis que causem graves
prejuízos ao bem estar médio, assim como o inverso também é possível: uma
distribuição justa de recursos ser realizada por um autocrata.
Por essas razões os defensores da concepção majoritária de
democracia enfatizam a distinção entre democracia e justiça.
A concepção de parceria da democracia, por sua vez, não encontra seu
significado central no governo da maioria, que exerce sua autoridade sobre o
conjunto de todas as pessoas, mas nas próprias pessoas, quando agem como
parceiras.
Evidentemente, parceria não significa unanimidade, mas a aceitação das
condições de legitimidade, assim como o compromisso de agir com respeito e
igual consideração com todos os parceiros (integrantes) da comunidade.
Estabelecidas as bases conceituais de cada concepção de democracia,
Dworkin indica, então, a diferença mais relevante entre elas. A concepção
majoritária é naturalmente um “procedimento”, enquanto a concepção de
parceria está ligada ao grau de legitimidade alcançado - é um ideal buscado
pelas comunidades, com êxito variável -.
O contraste entre as concepções é ilustrado no debate acerca da
compatibilidade entre a democracia e jurisdição constitucional (judicial review),
sobretudo nos Estados Unidos.
A concepção majoritária não é, necessariamente, incompatível com o
judicial review, desde que sua incidência seja limitada a assegurar a
permanência da livre manifestação do pensamento. Em geral, é o que
defendem os procedimentalistas, como John Hart Ely.
Outras matérias, no entanto, enfrentam a oposição de adeptos da
concepção majoritária. Referimo-nos a questões como aborto ou casamento
homossexual151. Dada a natureza controversa dessas questões, em vez de
151
No Brasil, as questões controversas, com evidente custo eleitoral, em face da divisão da
sociedade, tais como a união homoafetiva, têm sido levadas diretamente ao Poder Judiciário,
sob o argumento de que o Parlamento não enfrenta a questão. Observa-se, assim, um
verdadeiro “atalho” de setores da população que buscam o STF para decidir questões
130
“delegar” a decisão a um pequeno grupo de juízes isentos de eventual
“afastamento” pela via eleitoral, a decisão deveria caber à maioria.
Na concepção de parceria, há que se observar o pré-requisito de
legitimidade das instituições que decidem em nome da maioria, para
obediência de todos. Nesse modelo, a maioria só tem autoridade moral para
decidir questões controversas se forem suficientemente legítimas.
Nesse contexto, Dworkin considera o judicial review uma estratégia
possível que reforça tanto a legitimidade do governo – pela proteção que deve
exercer em relação à minoria –, quanto o direito moral da maioria para impor
sua vontade à minoria.
Ao analisar mais detidamente o instituto do judicial review no contexto
norte-americano, Dworkin nega que seja um instituto inevitável na democracia,
embora não proponha outro modelo alternativo. Mais adiante voltaremos a
examinar o escrutínio judicial sob a ótica de Dworkin, que sinaliza não mais
estar aberto à “acusação” de defendê-lo.
2.1 Qual o melhor modelo?
Dworkin se manifesta claramente favorável à concepção de parceria da
democracia, mas é essencial que analisemos os fundamentos de sua
preferência.
O regime democrático, além de tornar menos provável a atuação de
governos corruptos, por conta de uma imprensa livre e forte (requisito
obrigatório), apresenta outras vantagens, entre elas, a estabilidade política.
Essa estabilidade política, observado e respeitado o Estado de Direito, é que
deve induzir as alianças e a troca legítima de favores na busca pela satisfação
dos interesses dos grupos constituídos na comunidade.
Contudo, não há respostas razoáveis e assertivas quanto ao modelo que
produziria maior estabilidade política e prosperidade econômica. Dworkin situa
essa questão da escolha do modelo como sendo de princípio e não de
“ignoradas” pelo Paramento. Em outras nações, como a França e a Inglaterra, o Parlamento
tem sido a instância decisória.
131
resultado, por conta da dependência de circunstâncias políticas e econômicas
de cada país.
O foco de sua atenção é o modo de participação das pessoas no
governo (exigência do princípio da dignidade). Nesse aspecto, a concepção
majoritária responde com a regra da maioria, que trata todos os participantes
de forma igualitária, atribuindo idêntico peso aos seus votos.
Dworkin vê esse modelo como uma equidade “processual”, e se revela
surpreso com a popularidade do argumento do princípio majoritário (método de
contagem de cabeças), por não ser esse um princípio fundamental de
equidade. É necessário, no entanto, que a comunidade a qual pertença o grupo
majoritário seja a comunidade “certa”, com poder moral sobre os demais.
É nesse ponto que surge o debate com Jeremy Waldron, com direito a
réplica e tréplica, em torno do exemplo do bote salva-vidas, com repercussão
no debate sobre o judicial review.
2.2 O Caso do Bote Salva-Vidas
A alegoria do bote salva-vidas motivou o debate, com direito a réplica e
tréplica, entre dois importantes jusfilósofos – Dworkin e Waldron – em torno da
aplicação da regra da maioria.
A situação exemplo consiste em um bote salva-vidas que está com
excesso de peso, e portanto, com risco de naufrágio e de morte para todos os
passageiros. A solução seria, então, sacrificar um passageiro, atirando-o na
água, para salvar os demais.
A questão consiste, em princípio, em como decidir quem deve ser
atirado na água.
No exemplo, em rápida passagem152, Dworkin rejeita a aplicação da
regra da maioria e aponta uma solução óbvia: a realização de um sorteio.
152
Embora Dworkin tenha qualificado seu próprio exemplo como “singelo”, Waldron localizou
um caso real, cujos contornos são muito semelhantes: United States v. Holmes, de 1842.
Nesse caso particular, 14 passageiros foram jogados ao mar para evitar o naufrágio do bote,
levando-se em conta alguns critérios: casais não seriam separados e mulheres não seriam
atiradas ao mar antes de homens. O juiz que condenou Holmes por homicídio culposo por
participar da expulsão dos passageiros do bote, cogitou de outro critério (class principle), no
132
Waldron, segundo Dworkin, afirmara inicialmente que na hipótese de os
passageiros discordarem do sorteio, o mais justo seria fazer uma votação para
escolher o método a ser adotado. Dworkin critica o aspecto recursivo da
sugestão, uma vez que se propõe uma votação majoritária para escolha de um
método majoritário.
Uma votação majoritária, nesse caso, seria evidentemente injusta, e
tampouco se pode deduzir do exemplo que o sorteio seja uma boa escolha em
decisões políticas (aliás, Dworkin rejeita claramente seu emprego nessa seara).
Em nova resposta, escrita em um artigo153, Waldron levanta questões
importantes acerca do critério da maioria, relacionando-o, inclusive, ao controle
de constitucionalidade exercido pelas Cortes Constitucionais, que muitas vezes
decide pelo apertado resultado de 5x4. Esse resultado pode causar relevante
impacto na vida de toda a população. Indaga Waldron: se a regra da maioria
não é intrinsecamente justa, por que seria apropriada para as Cortes Supremas
decidirem casos complexos com a diferença mínima de um voto?
Em seu artigo escrito, Waldron afirma ainda que os passageiros do bote
deveriam escolher, por maioria, o método de exclusão de algum deles, mas o
critério majoritário não mais deveria fazer parte das alternativas. E reconhece:
“Of course, majority decision is not necessarily democratic”.
Na verdade, Waldron defende o critério majoritário para decidir o
princípio da decisão de quem sacrificar, e não diretamente a quem sacrificar.
Ao cabo, Waldron concorda com Dworkin quanto à oposição ao uso do critério
majoritário para decidir quem será sacrificado, e declara seu objetivo com o
debate, qual seja, de levantar complicações que levam à reflexão acerca de
questões políticas análogas (ex: judicial review).
qual apenas o número suficiente de marinheiros aptos a conduzir o bote deveria ser
preservado, e os demais deveriam ser “sacrificados” antes dos passageiros.
153
WALDRON,
Jeremy.
A
Majority
in
the
Lifeboat.
http://www.bu.edu/law/central/jd/organizations/journals/bulr/documents/WALDRON.pdf
133
Sobre o uso de critérios apropriados em decisões políticas, Dworkin,
comentando as considerações de Waldron, também deixa consignados
importantes pontos sobre a questão154:
é claro que não se trata de dizer que o governo da maioria
nunca é um método justo de decisão. Pelo contrário, insisto
que é apropriado na política quando as condições de
legitimidade são satisfeitas. (...) Concordo que o caso do
salva-vidas não em força para negar os argumentos que ele
oferece; certamente que não vejo esse exemplo, como ele
receia que eu faça, como um argumento ‘arrasador’ contra a
concepção majoritária da democracia.
(...) As razões evidentes por que uma votação majoritária seria
injusta no caso do bote salva-vidas aplicam-se,também, pelo
menos, a algumas decisões políticas. Tal como as tendências e
as antipatias pessoais de uma maioria não devem ser levadas
em conta na decisão sobre que passageiro deve ser atirado
para fora de bordo, também não são relevantes quando uma
comunidade política decide sobre os direitos de uma minoria
identificada pouco apreciada. No caso do bote salva-vidas, há
uma solução óbvia: a sorte. No entanto, a sorte não seria um
processo adequado de decisão na política. Quando as
decisões têm grandes conseqüências na vida das pessoas,
deixar essas decisões para a sorte ou para qualquer outra
forma de oráculo é uma má ideia; pode ter funcionado durante
algum tempo para os Atenienses, mas não funcionaria para
nós. A opinião de uma maioria sobre ir para a guerra pode não
ser melhor do que a opinião de uma minoria, mas é provável
que seja melhor do que uma decisão tomada por meio do
lançamento de dados
Nesse ponto, é possível assentar algumas conclusões de Dworkin sobre
sua concepção de democracia:
a) A democracia favorece a estabilidade política e proteção
contra corrupção.
b) Os cidadãos, em vez de receber tratamento de acionistas ou
membros de orquestra, devem desempenhar papel relevante
em sua própria governação, como requisito de sua dignidade.
c) A concepção de maioria é apropriada para uso na área política
quando as condições de legitimidade são satisfeitas.
154
DWORKIN, Ronald. Ob. cit. p. 492.
134
d) O governo da maioria não é um processo de decisão
intrinsecamente justo.
3 A Representação Política
Já de início, Dworkin estabelece uma condição básica para que haja
legitimidade de governos representativos: a rejeição às discriminações
eleitorais formais. O direito de voto universal parece ter prevalecido, pelo
menos nas democracias maduras155.
Um segundo aspecto a ser considerado no governo representativo é o
poder que é conferido ao governante, muito maior do que o do cidadão comum.
Dada a inevitabilidade desse desenho, diz-se que a concepção majoritária de
democracia vê o governo representativo como um mal necessário. Os
mecanismos de correção seriam representados por uma imprensa livre e forte
e pela realização frequente de eleições.
Dworkin defende156, ainda, a limitação quantitativa de mandatos,
imprimindo, aparentemente, um viés negativo ao instituto da reeleição – os
governantes assumem compromissos às vezes desconectados do interesse
público em busca da preservação de suas possibilidades de reeleição -.
A concepção majoritária, em síntese, não responde satisfatoriamente
aos argumentos de supressão da decisão de questões políticas relevantes dos
governos representativos e a transferência para os referendos populares. Essa
concepção de democracia valoriza demasiadamente o valor da igualdade de
impacto político.
A concepção de parceria oferece uma justificativa mais bem sucedida do
governo representativo. Uma vez que está apegada ao respeito e igual
consideração por todos, e não à matemática da maioria, haveria maiores
possibilidades de proteção a mudanças perigosas na opinião pública, e
consequentemente, maior proteção aos direitos individuais.
155
No caso brasileiro, parece-nos não haver maiores problemas nesse ponto específico. Há
outros, relacionados à captação ilícita de sufrágio, abuso de poder econômico e político, mas
não há exclusão de pessoas do universo eleitoral em face de condição econômica, racial,
religiosa, ou outra qualquer.
156
DWORKIN, Ronald. Ob. cit. p. 401
135
No tocante aos mecanismos eleitorais, Dworkin faz duras críticas ao
sistema de eleição presidencial norte-americano: “A eleição do presidente por
um colégio, em vez de por voto direito, distorce as eleições presidenciais; os
candidatos concentram a sua atenção, e concebem as suas políticas
para
157
atraírem os estados ‘oscilantes’ e esquecem os demais”
.
Também é objeto de crítica de Dworkin o diferenciado impacto político
decorrente dessa votação indireta, assim como a composição do Senado norteamericano. Tais mecanismos teriam sido úteis na consolidação da nação, com
o fim de proteger as minorias dos interesses das regiões mais ricas do país.
Essas desigualdades, no entanto, não mais encontrariam justificativas
plausíveis nos dias atuais.
O contexto brasileiro apresenta diferenças e semelhanças. Parece-nos
natural a desigualdade do impacto político de alguns eleitores em relação a
outros, no tocante à composição do Senado. Está em jogo a Federação, e
nesse campo, deve prevalecer a igualdade das unidades federativas. Como o
sistema representativo brasileiro é bicameral, a representação popular é
refletida na Câmara dos Deputados, e aí não deveria haver diferencial. Ocorre
que a Constituição de 1988 estabeleceu quantitativos mínimos e máximos de
Deputados para as unidades federativas, o que acaba por gerar desigualdades
do impacto político entre os cidadãos. Por exemplo, os pequenos estados
dispõem de oito representantes, independentemente de sua população,
enquanto o mais populoso, como São Paulo, alcança o limite máximo de
setenta representantes. O resultado é que o “peso específico” do voto de um
eleitor de São Paulo é menor do que o de um eleitor de Roraima.
4 O Controle Judicial de Constitucionalidade
A questão principal do presente artigo, assim como do debate entre
Dworkin e Waldron sobre democracia, é refletir sobre o eventual caráter
antidemocrático do controle judicial de constitucionalidade.
Essa tensão entre jurisdição constitucional e democracia é, de fato,
antiga, mas, ao mesmo tempo, é atual. Pode-se resumir a questão relativa na
157
DWORKIN, Ronald. Ob. cit. p. 403
136
possibilidade de juízes não eleitos poderem negar à maioria o que esta decidiu
por meio de seus representantes legitimamente eleitos.
Afora as tentativas ilegítimas de perpetuação no poder, e de modo geral,
de subversão do processo participativo em que todos possam ter vez e voz, a
concepção majoritária rejeita a intervenção judicial substantiva.
Dworkin não discute o evidente impacto político do judicial review
substantivo, mas entende que a visão de juízes vitalícios que anulam decisões
de representantes eleitos constitui uma simplificação grosseira e desvia a
atenção do essencial.
Analisando o contexto norte-americano, Dworkin entende que a
sociedade, dada a ampla divulgação das audiências no Congresso, exerce
maior influência sobre o candidato a juiz do que sobre certos Senadores de
pequenos estados que, depois de eleitos, podem assumir importantes e
poderosos cargos, como presidentes de comissões do Congresso. Embora
reconheça que nada pode ser feito após a nomeação do juiz, Dworkin
argumenta no sentido de que vários outros detentores de cargos dispõem de
enorme e incomparável poder, como o próprio Presidente. Por outro lado, um
juiz, individualmente, tem limitações de impor suas idéias no sentido de anular
leis e comprometer políticas públicas.
Por outro lado, reconhece que no exercício desses poderes as Cortes
podem cometer graves erros. Menciona casos que “prejudicaram a
democracia”. Cita o caso Citizens United158 – que liberou o limite de gastos
eleitorais realizados por pessoas jurídicas.
Discordamos, no entanto, dos argumentos de Dworkin quando recorre
ao potencial negativo de decisões de membros de outros Poderes: “Os
presidentes, os primeiros-ministros e os legisladores que dirigem comissões
importantes podem fazer, sozinhos, mais mal do que os juízes coletivamente”.
Tais argumentos são aproveitáveis apenas na perspectiva de que o
judicial review, segundo Dworkin, não figura como o agente mais danoso de um
158
Citizens United v. Federal Election Comission. 558 US 310 (2010).
137
complexo
governo
representativo.
Aqui,
discordamos
frontalmente
do
jusfilósofo norte-americano.
Embora não o faça claramente, Dworkin afirma que a defesa do judicial
review como um instituto democrático deve comprovar que a legitimidade geral
das decisões da comunidade resta aumentada. Particularmente, entendemos
uma tarefa muito difícil.
Mesmo não propondo qualquer modelo alternativo ao judicial review,
Dworkin parece dar sinais de esgotamento na defesa vigorosa do perfil
democrático desse instituto. Chega a classificar de um “fiasco” a atuação
recente da Suprema Corte, em que pese considerar positivo o saldo de sua
atuação histórica. Manifesta-se, ainda, favorável à adoção de mandatos para a
Suprema Corte dos Estados Unidos (onde os Presidentes estão nomeando
juízes cada vez de menos idade a fim de maximizar o tempo de vida do viés
ideológico que representa), e afirma159:
A história não é decisiva quanto à questão de saber se o
escrutínio judicial pode, no futuro, reforçar a legitimidade. Mas
a história deve ser levada em conta. Nego aquilo que juristas e
politólogos dizem: que o escrutínio judicial é inevitável e,
automaticamente, um defeito na democracia. Mas daí não
decorre que alguma democracia tenha realmente beneficiado
com essa instituição. Se o Supremo Tribunal dos Estados
Unidos melhorou ou não a democracia deste país, isso
depende de um juízo que eu e o leitor podemos fazer de modo
diferente. Durante anos, fui acusado de defender o
escrutínio judicial porque aprovava as decisões que o
Supremo Tribunal tomava. Mas já não estou aberto a essa
acusação. Se tivesse de julgar o Supremo Tribunal dos
Estados Unidos pelo seu registro ao longo dos últimos
anos, considerá-lo-ia um falhanço. No entanto, penso que o
saldo geral do seu impacto histórico é positivo. Tudo depende,
agora, do caráter das futuras nomeações do Supremo Tribunal.
Temos de fazer figas.
Apesar de reconhecer avanços no espírito crítico, especialmente em
relação ao caráter “inevitável” do judicial review, e a não “sacralização” das
decisões da Suprema Corte, entendemos que um instituto posto à disposição
de Cortes com atuações sofríveis representa, sim, risco à democracia (mesmo
159
DWORKIN, Ronald. Ob. cit. p. 406
138
a sólida democracia norte-americana). A partir do momento em que reconhece
a dependência das nomeações, e que é necessário “fazer figa”, é porque esse
instituto deve ser visto com desconfiança pela população.
5 O Contexto Brasileiro
Nos Estados Unidos, o judicial review decorre de uma construção
jurisprudencial e não tem previsão constitucional expressa. Esse fato acirra os
debates.
Ao contrário do contexto constitucional norte-americano, que é objeto
dos estudos de Ronald Dworkin, a Carta Política brasileira foi assertiva em
atribuir ao Supremo Tribunal Federal a definição do papel de guardião da
Constituição.
Assim, a princípio, o modelo de supremacia judicial é menos
questionável. Não obstante, pode e deve ser objeto de discussão e
aperfeiçoamento.
Para além das fronteiras jurídicas, a questão da supremacia judicial
chegou ao quotidiano das pessoas. Alguns casos concretos contribuíram para
esse quadro. Um deles foi a decisão de perda do mandato de parlamentares
condenados criminalmente (no caso conhecido como “Mensalão” – Ação Penal
470).
Trata-se de um caso de difícil análise, em face dos contornos políticos e
da pressão da opinião pública para que fosse superada a histórica sensação de
impunidade dos crimes de corrupção. Assim, as análises críticas da atuação do
STF são, por vezes, vistas como tentativas de desqualificação da mais alta
Corte do país, por motivação política. Não é esse o presente caso.
Referimo-nos especialmente à questão da declaração da perda do
mandato
de
parlamentares
condenados
criminalmente.
Embora
seja
respeitável a solução engendrada pelo STF, em apertada maioria de 5x4, e
ainda sujeita, possivelmente (a depender do cabimento de embargos
infringentes), a alteração por meio de recursos, parece-nos mais correta a
interpretação que reconhecia o regime constitucional especial conferido pelo
139
legislador constituinte originário aos congressistas, dando à Casa a que
pertence o Parlamentar o juízo sobre a perda de seu mandato.
Na prática, figura de um lado um Parlamento desgastado, de outro a
Suprema Corte que vem resgatar o espírito da devida seriedade, da
moralidade, da decência e da retidão na vida pública, impondo as devidas
reprimendas aos transgressores. A quem deve caber a razão?
Nesse contexto, parece-nos um preço até módico a pagar para ver
sepultada a histórica sensação de que aos “poderosos” não incidem punições.
De qualquer modo, correremos o risco de uma análise contra a correnteza.
Sob o aspecto constitucional, da separação de Poderes, e até no intuito
de preservação do modelo de supremacia judicial responsável, entendemos a
decisão do STF como equivocada.
O mesmo ocorreu quando o STF, por decisão monocrática cautelar,
determinou ao Congresso Nacional a apreciação seqüencial de vetos
presidenciais a leis aprovadas pelo próprio Congresso. Fundamental analisar o
contexto da decisão. O tema de fundo não era o respeito à Constituição, tendo
em vista que havia vetos pendentes há mais de dez anos, os quais nunca
suscitaram qualquer incômodo. O que estava, de fato, em jogo era a
possibilidade de rejeição do veto da lei que redefinia a partição de recursos
oriundos dos royalties decorrentes da exploração de petróleo. Os estados
prejudicados eram o Rio de Janeiro e o Espírito Santo.
Pois bem, um Deputado Federal do Rio de Janeiro impetrou um
Mandado de Segurança no STF, e o feito ficou, por coincidência, sob a relatoria
de um ministro também do Rio de Janeiro. Sua decisão: os vetos tinham que
ser apreciados em seqüência. Tal decisão atingia o objetivo de impedir, até
aquele momento, a rejeição do veto presidencial e a conseqüente repartição
dos recursos oriundos dos royalties. Ocorre que os vetos passaram a figurar na
pauta do Congresso Nacional e, por conseqüência imediata – mesmo com a
negativa do ministro que concedera a liminar -, a pauta do Congresso restava
sobrestada, impedindo a votação do orçamento geral da União. Aparentemente
140
se tratava de um efeito colateral indesejado e imprevisto na decisão que
interferia na dinâmica parlamentar.
Sem considerar o mérito da decisão cautelar, ainda a ser apreciada pelo
plenário do STF, entendemos descabida a intervenção do Supremo no
funcionamento do Parlamento. Não nos parece que tal decisão engrandeça a
democracia, por mais desgastada que se encontre a Legislatura. Há que se
analisar a Instituição, e não o comportamento individual, muitas vezes
reprovável, de certos membros.
5.1 As Possibilidades de Aperfeiçoamento do Modelo
Como já dito, o legislador constituinte originário deixou consignado no
texto constitucional as ações de inconstitucionalidade aptas a anular leis
aprovadas no Parlamento. Ainda que os instrumentos postos à disposição da
jurisdição constitucional tenham sido significativamente ampliados desde a
aprovação da Carta, entendemos que é o momento de se promover ajustes e
aperfeiçoamentos.
O primeiro aperfeiçoamento é o estabelecimento de mandatos fixos para
os membros do Supremo, seguindo a sugestão de Dworkin, o exemplo da
expressiva maioria das Cortes Constitucionais europeias, de alguns ministros
da composição atual do STF. Sobre a indagação que se costuma colocar: o
que fazer com um ministro que, ainda de pouca idade, for forçado a deixar a
Corte em face do termo de seu mandato? Ora, trata-se de uma questão menor,
de cunho personalista, que não merece ser considerada na reavaliação do
cenário democrático e de equilíbrio entre os Poderes.
Persistindo nas hipóteses de aperfeiçoamento, vislumbramos espaço
para a instituição de mecanismos de diálogo institucional - não de revisão de
decisões judiciais por instâncias parlamentares (override clause) -, mas sim de
atos não jurisdicionais emanados do Poder Judiciário, os quais têm servido,
frequentemente, de veículo para excessos do Poder Judiciário (mormente no
campo político-eleitoral).
Referimo-nos à possibilidade de sustação pelo Parlamento de atos
normativos (infralegais) editados pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público
141
(por exemplo, Resoluções). Atualmente, a Constituição Federal prevê
expressamente essa possibilidade apenas para atos do Poder Executivo que
exorbitem do poder regulamentar.
Outra hipótese de aperfeiçoamento do modelo de separação dos
Poderes, e, de certo modo, da supremacia judicial, embora se relacione com
um ato de natureza não jurisdicional, é a reavaliação das súmulas vinculantes.
Defendemos que o efeito vinculante somente deva ser aposto às súmulas após
a manifestação do Poder Legislativo, que teria prazo fatal para fazê-lo, sob
pena de aprovação tácita e perda do argumento de usurpação de suas
prerrogativas legislativas.
Conclusão
O excepcional “Justiça para Ouriços” que encerrou o ciclo de obras do
jusfilósofo Ronald Dworkin – talvez o mais brilhante de sua geração – trouxe
importantes contribuições sobre o estudo da democracia.
O objetivo central do artigo era o exame do instituto do judicial review,
em um contexto de suprema judicial. Seria esse instituto compatível com a
democracia?
Waldron é forte opositor dessa possibilidade, justamente por violar o
pressuposto básico da soberania popular por um grupo de juízes, não sujeitos
ao crivo de eleitor, sem mandatos, com cargos vitalícios.
Dworkin vê o judicial review como uma estratégia possível, mas nega
sua inevitabilidade. Ademais, considera a concepção majoritária de democracia
possível, desde que assegurada e atendida as condições de legitimidade.
Como vimos, o debate acerca da revisão judicial de leis emanadas do
Poder Legislativo não é expressa na Constituição norte-americana, o que de
certo modo, energiza o debate, justamente por se tratar de uma construção
jurisprudencial.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 prevê expressamente as
ações e a competência do Supremo Tribunal Federal. Assim, trata-se de um
debate em que não mais cabe uma revisão radical do modelo.
142
Com efeito, a leitura do texto original da Constituição revela um modelo
mais simplificado do que o vigente. Mas consideramos, para o bem da
democracia,
mesmo
que
contemos
com
um
Congresso
Nacional
desprestigiado perante a própria sociedade, que sejam realizados ajustes.
Propomos, de início, a possibilidade de sustação de atos normativos do
Poder Judiciário, sobretudo na seara eleitoral, onde a deferência ao legislador
deveria ser a regra. Entendemos que são necessárias alterações no modelo
das súmulas vinculantes, condicionando o efeito vinculante a uma apreciação
do Congresso Nacional, em prazo certo, sob pena de aprovação tácita.
Além disso, consideramos inadequadas certas decisões recentes do
STF, especialmente a que trata da perda do mandato dos parlamentares
condenados criminalmente, e a que determinou a apreciação seqüencial dos
vetos presidenciais. Não qualificamos, nem de longe, a atuação do STF como
um “fiasco” (como fez Dworkin em relação à atuação recente da Suprema
Corte norte-americana), mas há evidentes excessos e equívocos, os quais não
contribuem para o desejável fortalecimento democrático.
Somos favoráveis, ainda, ao estabelecimento de mandatos fixos para os
ministros do Supremo Tribunal Federal, seguindo a recomendação de Dworkin,
o exemplo europeu e a opinião de vários dos membros da composição atual do
STF.
Por fim, somos de opinião o controle judicial de constitucionalidade é
inevitável no Brasil, mas passível de ajustes e aperfeiçoamentos, todos
passando pelo fortalecimento do papel da Legislatura, para o bem da
democracia, seja qual a concepção empregada.
Referências:
ACKERMAN, BRUCE. A Nova Separação de Poderes. Rio de Janeiro: Ed.
Lumen Júris, 2009.
BRANDÃO. RODRIGO. Supremacia Judicial versus Diálogos Institucionais. A
quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição. Rio de Janeiro:
Lumen Júris, 2012.
143
DWORKIN, RONALD. Justiça para Ouriços. Coimbra: Almedina, 2012.
Tradução: Pedro Elói Duarte.
FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. “O Judiciário frente à divisão dos poderes: um
princípio em decadência?”
QUEIROZ, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial. Coimbra
Editora: 2000.
TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of Judicial Power.
New York University Press. New York. 1997.
WALDRON,
Jeremy.
A
Majority
in
the
Lifeboat.
http://www.bu.edu/law/central/jd/organizations/journals/bulr/documents/WALDR
ON.pdf
144