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A DEFINIÇÃO DA INCIDÊNCIA DO IPVA A PARTIR DO MÉTODO DO DIREITO
COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN1
Luciano Cavalcante de Souza Ferreira2 (FCAT/CESUPA)
RESUMO: No julgamento do Recurso Extraordinário nº 134.509/AM, o Supremo Tribunal
Federal (STF) definiu se o imposto sobre propriedade de veículos automotores (IPVA), de
competência dos Estados, incidia ou não sobre embarcações e aeronaves (veículos nãoterrestres). O debate, durante o julgamento, girou em torno do sentido da expressão “veículo
automotor”, prevista no inciso III, do art. 155, da Constituição. Dois argumentos foram
apresentados: um que levou em conta o conteúdo semântico da expressão, baseando-se em
definições dadas por dicionários, enquanto que o outro argumento tratou da necessidade de se
verificar qual o contexto em que estava inserida a tributação da propriedade de veículos na
sociedade brasileira. Definindo-se pela impossibilidade de tributar, via IPVA, a propriedade
de veículos automotores aéreos, marítimos ou anfíbios, isto é, que não se configurem como
de circulação terrestre, o STF aplicou o método dworkiniano de interpretação conhecido
como integrity ou Direito como Integridade, ao analisar, no momento do julgamento, o
contexto histórico-institucional no qual se inseria a tributação pelo IPVA, verificando que: a)
este imposto é legatário da Taxa Rodoviária Única, a qual incidia apenas sobre a propriedade
de veículos terrestres; b) a expressão “veículos automotores” tomada na acepção técnica se
referia apenas aos veículos terrestres, conforme a legislação, tratado internacional e julgados
do próprio STF; c) os veículos aéreos são designados como aeronaves e os marítimos de
navios; d) a maioria dos Estados, ao instituírem o IPVA, tributam a propriedade de veículos
de transporte terrestre; e, e) o texto constitucional confere competência aos Estados para
legislar e fiscalizar supletivamente o tráfego e trânsito nas vias terrestres, enquanto que o
espaço aéreo e marítimo está sob o manto da competência da União.
PALAVRAS-CHAVE: IPVA. Aeronaves. Embarcações. Integrity. Direito como integridade.
RE 134.509/AM. Ronald Dworkin.
ABSTRACT: Brazilian Supreme Court (Supremo Tribunal Federal), judging the Recurso
Extraordinário nº 134509/AM, ruled about the states’ taxation on ownership of motor
vehicles. The Court was claimed to define the meaning of the expression “motor vehicles”,
written in brazilian constitution. If the sense of “motor vehicle” include ships and planes,
instead of only cars, trucks or motorcycles. Two main arguments were held during the
judgement: firstly justices considered about the dictionary meaning of “motor vehicule”.
Secondly they found a better way to solve the indefinition considering the history and the
brazilian institutional practices concerning the taxation of ownership of motor vehicles. The
justices interpreted the meaning of “motor vehicle” by its context in brazilian judicial and
legislative experience. This kind of method of interpretation was lectured by Ronald
Dworkin, known as integrity. According to this method, STF ruled that brazilians’ states
1
Artigo recebido em 30/07/2015 e aprovado em 26/08/2015.
2
Professor de Direito Tributário I e II, da Faculdade de Castanhal (FCAT). Mestrando em Direito, Políticas
Públicas e Desenvolvimento Regional no Centro Universitário do Pará – CESUPA. Membro da Associação
Brasileira de Direito Tributário (ABRADT) e do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
(CONPEDI).
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A definição da incidência do Ipva a partir do método do direito como integridade de Ronald Dworkin
could not tax planes or ships, but only cars, trucks and motorcycle, because they uses roads to
transport people and goods, as it’s common to tax it in brazilian experience.
KEY-WORDS: IPVA. Planes. Ships. Integrity. STF. RE 134.509/AM. Ronald Dworkin.
1 INTRODUÇÃO
A tributação da propriedade de veículos no Brasil é feita a partir da competência
tributária dada aos Estados e ao Distrito Federal para que instituam imposto sobre a
propriedade de veículos automotores (IPVA), conforme inciso III, do art. 155, da
Constituição.
Partindo dessa competência tributária, alguns Estados instituíram o IPVA incluindo na
materialidade de suas hipóteses de incidência a relação de propriedade de veículos que
circulam tanto pelas vias terrestres, como pelas aéreas, marítimas ou anfíbias, isto é,
estipularam em suas leis de criação do IPVA a possibilidade de tributação sobre o domínio de
carros, caminhões, motos, embarcações, navios, aviões, helicópteros, inclusive submarinos.
Diante dessa possibilidade, questiona-se se os sujeitos proprietários de embarcações,
aeronaves e quaisquer outros veículos que não circulem pelo meio terrestre, podem ser
enquadrados como contribuintes desse IPVA, uma vez que para determinar quais relações de
propriedade podem constar das leis instituidoras do imposto, é necessário que se alcance qual
o sentido dado à expressão constitucional “veículos automotores”.
O alcance desse sentido, de acordo com Ronald Dworkin, faz parte de uma atividade
interpretativa, na qual as práticas sociais pretéritas da comunidade jurídico-política em que se
vive devem ser levadas em consideração no momento dos julgamentos realizados pela função
judiciária, bem como na elaboração das regras pelo legislativo.
Trata-se da aplicação do método de interpretação chamado por Dworkin de Direito
como Integridade ou integrity, segundo o qual deve-se primeiro conhecer do contexto
histórico-institucional vinculado à questão que se pretende decidir ou legislar, como atividade
pré-interpretativa, para, posteriormente, firmar juízos valorativos sobre a matéria na fase
interpretativa, isto é, para decidir.
Sendo assim, a definição do sentido da expressão “veículos automotores”, de acordo
com a aplicação do método de interpretação dworkiniano, deverá contemplar análise do
contexto histórico-institucional da tributação da propriedade de veículos na sociedade
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brasileiro, a fim de que seja possível o exercício legítimo do poder de tributar por parte dos
Estados.
2 DEFINIÇÃO DA INCIDÊNCIA DO IPVA A PARTIR DO RECURSO
EXTRAORDNIÁRIO Nº 134.509/AM
Em maio de 2002, julgando o Recurso Extraordinário nº 134.509/AM, o Supremo
Tribunal Federal (STF) decidiu que o imposto sobre a propriedade de veículos automotores
(IPVA) não incide sobre a propriedade de aeronaves e embarcações, tributando apenas
veículos automotores terrestres.
Durante a discussão, perante o Tribunal Pleno do STF, o embate argumentativo foi
travado no âmbito do sentido da expressão “veículos automotores”, que consta do inciso III,
do art. 155, da Constituição de 1988.
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos
sobre:
(...)
III – propriedade de veículos automotores
De acordo com o relatório do julgamento, o Estado do Amazonas, regulamentando a
tributação do IPVA no âmbito de seu território, incluiu como sujeitos à inscrição no cadastro
de contribuintes do imposto, os proprietários de qualquer veículo aéreo, terrestre, aquático ou
anfíbio dotado de força motriz própria, ainda que complementar ou alternativa de fonte de
energia natural.
O fundamento dessa regulamentação assentou-se no texto do inciso III, do art. 155, da
Constituição, que prevê a competência tributária dos Estados para alcançarem a riqueza
gerada a partir da propriedade de veículos automotores, sem fazer qualquer delimitação sobre
o âmbito de circulação desses veículos, se somente terrestre, se pela via aérea, marítima ou
anfíbia.
Desse modo, o Estado do Amazonas passou também a exigir o IPVA dos proprietários
de aeronaves e embarcações.
O proprietário de uma embarcação, sentindo-se tributado duplamente (pelo IPVA e pela
taxa paga em razão da licença de trânsito de embarcação, cobrada pela União), recorreu à
função judiciária para livrar-se da tributação do imposto estadual, uma vez que a partir da
expressão “veículos automotores”, contida no inciso III, do art. 155, da Constituição, não é
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A definição da incidência do Ipva a partir do método do direito como integridade de Ronald Dworkin
possível, segundo o proprietário da embarcação, inferir a tributabilidade pelos Estados de
embarcações ou aeronaves, pois esta expressão estaria limitada ao sentido “veículos
automotores terrestres”.
Durante os debates nas sessões de julgamento no STF, dois argumentos foram postos
em choque, a fim de definir se o IPVA incide ou não sobre aeronaves e embarcações.
O primeiro argumento era o de que a expressão “veículos automotores” indica todo e
qualquer veículo terrestre, aéreo, aquático ou anfíbio, desde que dotado de propulsão motriz
destinado ao transporte de pessoas ou cargas, uma vez que não há, no texto da Constituição,
qualquer restrição a esta definição.
O argumento perpassou pela análise vernacular da expressão “veículo automotor”, que,
nesse caso, indicaria que o vocábulo “veículo” abrange qualquer dos meios utilizados para
transportar ou conduzir pessoas e objetos de um lugar para outro, considerando não existir
limitações a esse sentido no texto constitucional.
O relator do Recurso Extraordinário (RE 134.509/AM), Ministro Marco Aurélio, em
seu voto, afirmou que “a incidência abrange a propriedade de todo e qualquer veículo, ou
seja, que tenha propulsão própria e que sirva ao transporte de pessoas e coisas”, sem
limitação acerca do meio de circulação do veículo (terrestre, aéreo, marítimo ou anfíbio).
Prendeu-se, pois, o relator no sentido semântico, de dicionário, da expressão “veículo
automotor” para compreender que o texto do inciso III, do art. 155, da Constituição, refere-se
à possibilidade de tributação, por meio do IPVA, dos proprietários de veículos automotores
terrestres, aéreos, aquáticos e anfíbios.
O segundo argumento consistiu na afirmação de que o inciso III, do art. 155, da
Constituição, trata exclusivamente de veículos automotores terrestres, considerando que o
IPVA, desde que introduzido na competência tributária dos Estados, pela Emenda
Constitucional nº 25, de 28 de novembro de 1985, ainda sob a vigência da Constituição de
1967, decorre da substituição da Taxa Rodoviária Única3, a qual incidia apenas sobre
veículos terrestres.
O Ministro Francisco Rezek, divergindo do relator, entendeu não ser possível fincar-se
no conteúdo semântico da expressão “veículo automotor”, ignorando-se “a trajetória histórica
da norma”. Para o Ministro:
O que se espera do doutrinador, quando escreve sobre direito tributário,
não é que nos diga aquilo que pensa sobre o significado das palavras. Sua
3
Instituída pelo Decreto-Lei nº 999, de 21 de outubro de 1969.
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especialidade reclama dele, aos olhos do leitor da sua obra, algo mais. Por
exemplo, o histórico do tributo. A que textos sucede aquele que está sendo
examinado? Do quê aquele tributo é legatário na marcha histórica da
Constituição? O que existe no âmbito dos trabalhos preparatórios do texto
constitucional a indicar uma intenção de mudança? Se um imposto
singelamente sucede a outro, o que existe, no registro dos trabalhos
preparatórios do novo texto, a evidenciar que o constituinte derradeiro
resolveu, de algum modo, aumentar ou restringir o escopo tradicional de
determinado imposto? Mas espera-se sobretudo que o autor diga também ao
leitor ‘o que está acontecendo’ e, ao interpretar a expressão ‘veículos
automotores’ de modo ampliativo, dizendo que no seu entender ela inclui
navios e aviões, diga qual o legislador estadual que tomou esse caminho – e,
dentre aqueles que o tomaram, qual o que não foi contestado, qual que
conseguiu fazer valer sua opção legislativa4.
Coube ao Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto, realizar o apanhado históricoinstitucional do IPVA, a fim de que pudesse decidir pelo provimento ou não do recurso. Em
seu voto, o Ministro apontou que:
a) com base nos trabalhos preparatórios para a elaboração da emenda constitucional à
Constituição de 1967, de nº 27, o IPVA foi criado em substituição à Taxa
Rodoviária Única;
b) a expressão “veículos automotores” tomada na acepção técnica dada pela Taxa
Rodoviária Única se referia apenas aos veículos que percorrem as vias terrestres,
conforme a legislação de tráfego e trânsito da época, a Convenção sobre Trânsito
Viário, celebrada em Viena, em 1968, e julgados do STF sobre a taxa;
c) os veículos aéreos sempre receberam pela legislação a designação de aeronaves
(mecanismo com aptidão para transportar pessoas ou coisas no espaço aéreo) e os
marítimos de navios;
d) a maioria das unidades federadas, ao instituírem o IPVA, no âmbito de suas
respectivas competências, apenas descrevem em suas hipóteses de incidência a
possibilidade de tributação de veículos de transporte terrestre;
e) o texto constitucional confere competência aos Estados para legislar e fiscalizar
supletivamente o tráfego e trânsito nas vias terrestres, enquanto que o espaço aéreo
e marítimo está sob o manto da competência da União.
Após os debates, decidiu-se que o campo de incidência do IPVA não inclui
embarcações e aeronaves, prevalecendo o entendimento de que, para o exercício da
4
RE 134509, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE,
Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2002, DJ 13-09-2002.
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A definição da incidência do Ipva a partir do método do direito como integridade de Ronald Dworkin
competência dos Estados, com relação ao IPVA, deve-se levar em conta o contexto históricoinstitucional.
IPVA - Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (CF, art. 155,
III; CF 69, art. 23, III e § 13, cf. EC 27/85): campo de incidência que não
inclui embarcações e aeronaves5.
Ao se deparar com questões semelhantes, o STF manteve o mesmo posicionamento,
como se depreende dos julgamentos dos Recursos Extraordinários nºs 255.111-2/SP6,
379.572-4/RJ7 e do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 525.382/SP8.
3 APLICAÇÃO DO MÉTODO DWORKINIANO DIREITO COMO INTEGRIDADE
PARA
DEFINIÇÃO
DO
SENTIDO
DA
EXPRESSÃO
“VEÍCULOS
AUTOMOTORES”
Percebe-se no julgamento da matéria (incidência do IPVA sobre a propriedade de
aeronaves e embarcações) perante o STF a aplicação do método dworkiniano de interpretação
do direito conhecido como integrity ou Direito como integridade9.
Vê-se, pois, que a existência de texto normativo de significado incontroverso, como,
aparentemente, seria o caso da expressão “veículos automotores”, não se constituiu “uma
específica zona de luz não passível de reconstrução (e reformulação) global dentro do sistema
jurídico” (PALOMBELLA, 2005, p. 333).
O método interpretativo do Direito como integridade é construído desde o livro
Levando os Direitos a Sério, em que Ronald Dworkin apresenta os princípios (modelo de
regras II) como construções histórico-institucionais da moralidade que servem de base para
5
RE 134509, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE,
Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2002, DJ 13-09-2002 PP-00064 EMENT VOL-02082-02 PP-00364.
6
IPVA - Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (CF, art. 155, III; CF 69, art. 23, III e § 13, cf.
EC 27/85): campo de incidência que não inclui embarcações e aeronaves (RE 255111, Relator(a): Min.
MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em
29/05/2002, DJ 13-12-2002)
7
Recurso Extraordinário. Tributário. 2. Não incide Imposto de Propriedade de Veículos Automotores (IPVA)
sobre embarcações (Art. 155, III, CF/88 e Art. 23, III e § 13, CF/67 conforme EC 01/69 e EC 27/85).
Precedentes. 3. Recurso extraordinário conhecido e provido (RE 379572, Relator(a): Min. GILMAR MENDES,
Tribunal Pleno, julgado em 11/04/2007, DJe-018 DIVULG 31-01-2008 PUBLIC 01-02-2008)
8
Processual civil e tributário. Ipva. Aeronaves e embarcações. Não incidência. Jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal. Vício formal. Ausência de indicação da hipótese autorizadora do recurso. Superação do vício,
quando da leitura das razões for possível inferi-la. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 525382
AgR, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 26/02/2013, ACÓRDÃO
ELETRÔNICO DJe-047 DIVULG 11-03-2013 PUBLIC 12-03-2013)
9
“‘Direito como integridade’, assim, expressa, em primeiro plano, a alternativa dworkiniana às concepções
convencionalista e pragmática do direito” (SGARBI, 2009, p. 188).
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tomada de decisões, ou seja, considerar que determinado julgamento é (ou não) apropriado
independe de qualquer decisão particular e contemporânea ao sujeito (legislador ou
judiciário), pois, segundo Dworkin (2010, p. 64) “a compreensão do que é apropriado [é]
desenvolvida pelos membros da profissão e pelo público ao longo do tempo”.
Quando Dworkin menciona que a análise, a partir dos princípios, deve se dar “ao longo
do tempo”, quer dizer que as decisões tomadas precisam observar a história institucional de
determinada sociedade10. As práticas sociais e a forma como as instituições se comportam
diante dela têm peso nos juízos que são realizados pelos sujeitos.
A ideia expressa no capítulo “modelos de regras II”, de Levando os Direitos a sério tem
por finalidade afastar a posição de que o positivismo jurídico cria direitos retroativamente 11,
pois, diante de “casos difíceis”, a decisão a ser tomada não buscará substrato de forma
estática no exato momento de decidir, mas terá amparo nas práticas histórico-institucionais.
As práticas, assim, serão aperfeiçoadas ao longo do tempo, respeitando-se o substrato
social já constituído e se garantindo coerência nos julgamentos, evitando inovações sem a
devida justificação12.
O professor Grant Lamond, tratando do método Direito como integridade, mais
elaborado por Dworkin no livro O Império do Direito, afirma:
(…) Ronald Dworkin proposes a theory of adjudication spanning the
common law, statute and constitutional documents which he claims
both fits existing judicial practice well enough to be seen as an
improvement on that practice rather than an invention of a new one,
and provides the best overall justification for that practice (LAMOND,
1988, p. 2).
A justificação para a tomada de decisões, a partir desse método dworkiniano, de acordo
com Andrei Marmor (2013, p. 12), é derivada de uma combinação de fatos e considerações
morais – os princípios. As decisões judiciais passadas correspondem aos fatos, enquanto que
os modos pelos quais essas decisões podem ser bem explicadas pelos princípios morais,
correspondem às considerações morais e políticas.
“(...) a história institucional age, não como uma restrição do juízo político dos juízes, mas como um
componente de tal juízo, pois a história institucional faz parte do pano de fundo que qualquer juízo plausível
sobre os direitos de um indivíduo deve levar em consideração. Os direitos políticos são criações tanto da
história, quanto da moralidade: aquilo a que um indivíduo tem direito, na sociedade civil, depende tanto da
prática quanto da justiça de suas instituições políticas” (Dworkin, 2010, p. 136).
11
“O juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não
de inventar novos direitos retroativamente” (Dworkin, 2010, p. 127).
12
“A justificativa não precisa ajustar-se a todos os aspectos ou características da prática estabelecida, mas deve
ajustar-se o suficiente para que o intérprete possa ver-se como alguém que interpreta essa prática, não como
alguém que inventa uma nova prática” (Dworkin, 2014, p. 81).
10
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Os princípios, assim, representam uma “consistência articulada” (DWORKIN, 2010, p.
137) para as decisões. São, para Ronald Dworkin (2010, p. 182) uma “justificação coerente a
todos os precedentes do direito costumeiro e, na medida em que estes devem ser justificados
por princípios, também um esquema que justifique as disposições constitucionais e
legislativas”.
Os princípios serão guias para a tomada de decisão, representando, de forma objetiva,
os limites plausíveis para determinados juízos, retirados, como já afirmado, da prática
observada13.
Essa prática poderá ser observada institucionalmente a partir de decisões tomadas em
casos símiles anteriormente apreciados. Essas decisões anteriores exercerão uma “força
gravitacional sobre as decisões posteriores, mesmo quando se situam fora de sua órbita”
(DWORKIN, 2010, p. 174), como forma de garantir a equidade no tratamento de questões
semelhantes14.
Ter-se-á, assim, uma resposta certa a priori para “casos difíceis”, uma vez inexistentes
regras (modelo de regras I) possíveis de serem utilizadas nos juízos realizados.
A resposta a priori configura a objetividade do Direito que é alcançada em razão da
construção de seus valores ser firmada por meio do comportamento da sociedade e das
instituições no decorrer do tempo. Quer-se dizer que as decisões tomadas hoje não poderão,
salvo justificadas exceções, ser tomadas ignorando-se aquelas do passado15. Aqueles que são
responsáveis pelas tomadas de decisões, tal qual os romancistas, tem o “dever de criar, tanto
quanto puderem, um romance único, integrado, em vez de, por exemplo, uma série de contos
independentes com personagens de mesmo nome” (DWORKIN, 2005, p. 237).
Assim, o Direito criado ao longo do tempo é um Direito íntegro16 capaz de responder às
questões postas diante de si, de forma objetiva, sem contrariar injustificadamente tudo o
quanto o tempo já tenha consolidado17 com juízo plausível18.
“Por outro lado, segundo Dworkin, na sua integridade, o sistema possibilita uma visão abrangente da justiça
na qual os direitos (jurídicos) constituem o centro de gravidade. A convicção fundamental de Dworkin é que o
jurista só pode encontrar, como princípios fundamentais do sistema, os background rights em torno dos quais
reelabora o sentido global da Constituição americana” (PALOMBELLA, 2005, p. 335).
14
“(...) a força gravitacional de um precedente pode ser explicada por um apelo, não à sabedoria da
implementação de leis promulgadas, mas à equidade que está em tratar casos semelhantes do mesmo modo”
(DWORKIN, 2010, p. 176).
15
“Integrity makes good sense of arguments by analogy. Such arguments, when used by judges, cannot be
arguments of deductive logic because those would not exclude irrelevant considerations such as the litigants’
names. Arguments by analogy require value judgments because, as Hart in a similar context pointed out, “logic
does not classify particulars.” It is only by appeal to arguments of moral weight that we can make sense of
arguments which purport to dismiss characteristics of precedents as “irrelevant.” (GUEST, 2013, p. 89).
16
HANSON, 2003, p. 844.
13
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FERREIRA, Luciano Cavalcante de Souza.
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 134.509/AM, o STF, ao justificar o
sentido que deu à expressão “veículo automotor”, apresentou argumentos que buscaram
fundamento na história institucional da tributação de veículos na sociedade brasileira.
Acerca da busca de fundamento com base histórico-institucional, o professor Gianluigi
Palombella leciona que:
(...) a atividade interpretativa encontra limites no contexto externo e interno
à atividade do juiz: este, ao defender certas ‘concepções’ dos valores
fundamentais, depende (historicamente) dos ‘paradigmas’ dominantes (ou
seja, dos modelos de comportamente comumente aceitos como conformes a
determinados valores), das instituições culturais e jurídicas.
(PALOMBELLA, 2005, p. 335).
Poder-se-ia imaginar que a questão a ser decidida neste recurso extraordinário estaria
incluída no que se conhece como easy case, ou seja, que a definição da expressão “veículo
automotor” partiria do reconhecimento de que há uma convenção, por todos aceita, de que
seu sentido deve ser retirado dos termos dados por um dicionário.
O professor Grant Lamond reconhece easy cases como:
(…) those covered by those parts of the convention to which everyone
subscribes. On this view there are certain criteria (disclosed by the
conventions people hold) for discovering legal rules: most criteria are
shared by judges and lawyers, thereby providing a core of agreed
cases, but some criteria are not - hence the penumbral, hard cases
(LAMOND, 1988, p. 4).
A questão deixou de ser um easy case quando, durante o julgamento, houve divergência
dos Ministros (relator e demais) quanto ao modo pelo qual o Tribunal deveria se utilizar para
chegar à conclusão, naquele caso, de qual sentido deveria ser dado à expressão “veículo
automotor”, o que configura a transmutação de um easy case em um hard case, conforme
leciona o professor Grant Lamond:
“Coherence captures the logical tone of consistency but permits other judgments of right and wrong. The
incoherent account a child gives of his afternoon’s activities goes further than inconsistency. For his account to
be coherent it must “make sense,” not just be consistent. On the other hand, coherence describes a situation at a
highly abstracted level, where we are reduced to saying that things must make sense, or “hang together” without
being much more specific” (GUEST, 2013, p. 80).
18
“The melt between the legal materials and moral theory is achieved in the idea of integrity. It is a principle
requiring that law cohere in a way that is distinct from justice, according to which the right state of affairs exists
in society, and distinct from fairness, a conception of equality according to which “each point of view must be
allowed a voice in the process of deliberation.” Integrity means that law should always be created, or
interpreted, to form an integral whole. This injunction expresses the virtue of integrity, which is distinct from,
but, according to Dworkin, on the same plane as, the twin virtues of justice and fairness” (GUEST, 2013, p. 78).
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A definição da incidência do Ipva a partir do método do direito como integridade de Ronald Dworkin
Legal rules are identified by a convention shared by the members of
the legal community, such as that legislative acts are to be recognised
as creating legal rules. But the convention which each individual
subscribes to is not identical, and hard cases arise precisely in those
situations where two judges' conventions point in different directions
(LAMOND, 1988, p. 4).
A divergência de entendimentos durante o julgamento, fez com que se percebesse que o
inciso III, do art. 155, da Constituição, não poderia ser lido em apartado dos demais
dispositivos constitucionais, das decisões do próprio STF sobre a tributação de veículos, dos
debates legislativos sobre a possibilidade de exação dessa grandeza econômica por parte dos
Estados, da forma como as normas internacionais tratam o objeto da relação dominial
tributária (o veículo), bem como o comportamento dos demais Estados com relação à
instituição do âmbito de incidência do imposto em seus territórios.
Esse comportamento do STF, ao julgar a questão, representa a completude e a
congruência do sistema que deve ser levado em consideração, tal como ensina Gianluigi
Palombella:
A direção em que o jurista intérprete se move é a que consiste em produzir
uma exposição global do sistema que constitua a melhor representação
possível da correspondência entre normas, princípios e valores fundamentais
que informam o ordenamento; sua atividade, de tipo prático-argumentativo
(pois não se dá por provas empíricas), pressupõe a idéia da completude e da
congruência do sistema e visa ao mesmo tempo a construí-la, caso a caso,
por meio da interpretação (PALOMBELLA, 2005, p. 332).
A decisão do STF, dentro do contexto histórico-institucional da tributação de veículos
no Brasil, escreve mais um capítulo desse “romance”, sem se afastar do que preteritamente já
fora escrito, conforme Campos e Ardisson (2013, p. 262):
O método de Dworkin trata a legislação e os precedentes judiciais como
capítulos pretéritos do romance em cadeia, que devem ser levados em
consideração pelo intérprete quando do desenvolvimento da melhor
interpretação a respeito dos princípios da comunidade personificada.
De acordo com esse método, a integridade é uma virtude política e jurídica, pois
permite aos sujeitos, ao decidirem, não perderem de vista as práticas que devem,
necessariamente, fazer parte do todo coerente que é uma comunidade política, bem como
exige dos legisladores, ao criarem novas regras, que observem a estrutura – de princípios –
que fundamenta a prática social (SGARBI, 2009, p. 189).
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FERREIRA, Luciano Cavalcante de Souza.
Para o professor Andrian Sgarbi, o Direito, enquanto integridade, estabelece dois
cânones (interpretativos) a serem observados pelos juízes: a “adequação ou harmonia” e a
“justificação”. A harmonia indica que os juízes deverão, “ao interpretarem, harmonizar-se
com os materiais jurídicos ou materiais institucionais, tais como as disposições legislativas e
os precedentes”19, enquanto que o cânone da justificação “é relativo ao fato de a interpretação
ter de ser posta em relação com os princípios da equidade, da justiça e do devido processo
legal adjetivo”20.
A necessidade da justificação decorre da consideração de que, diversamente de outros
fenômenos sociais, a prática do direito é argumentativa.21 Nas palavras de Dworkin (2014, p.
488), “os juízes devem decidir o que é o direito interpretando o modo usual como os outros
juízes decidiram o que é o direito. Teorias gerais do direito são, para nós, interpretações
gerais da nossa própria prática judicial”.
Dworkin (2014, p. 17) afirma, ainda, que os envolvidos nessa prática entendem que
suas permissões, exigências ou proibições dependem “da verdade de certas proposições que
só adquirem sentido através e no âmbito dela mesma; a prática consiste, em grande parte, em
mobilizar e discutir essas proposições”.
Justamente em razão dessa compreensão das práticas, que nos casos Riggs e Palmer,
mencionados por Dworkin, não se está ali diante de problemas de ambiguidade ou vagueza
de palavras, mas sim diante de problemas que, para serem decididos, necessitaram do
reconhecimento, por parte dos julgadores, do contexto histórico-institucional22, tal como
ocorreu no julgamento do Recurso Extraordinário nº 134.509/AM, em que o sentido
semântico da expressão “veículos automotores” foi o que menos causou espécie para a
tomada de decisão.
Reconhecido o contexto histórico-institucional, a decisão passa a ter uma melhor
justificativa para permitir o uso do poder coletivo contra cidadãos ou grupos individuais23,
19
SGARBI, 2009, p. 191.
SGARBI, 2009, p. 191.
21
“A direção em que o jurista intérprete se move é a que consiste em produzir uma exposição global do sistema
que constitua a melhor representação possível da correspondência entre normas, princípios e valores
fundamentais que informam o ordenamento; sua atividade, de tipo prático-argumentativo (pois não se dá por
provas empíricas), pressupõe a idéia da completude e da congruência do sistema e visa ao mesmo tempo a
construí-la, caso a caso, por meio da interpretação” (PALOMBELLA, 2005, p. 332).
22
“It is important to note that these disagreements were not due to the ambiguity or vagueness of the
wording of the statute (see p. 351): everyone agreed that the steps "necessary" to save the snail darter
were to leave a hundred million dollar dam inoperative, and everyone agreed that the wills statute in
New York made no provision for murderers” (LAMOND, 1988, p. 3)
23
“(...) o argumento jurídico ocorre em um espaço de consenso aproximado de que se o direito existe, ele provê
uma justificativa para o uso do poder coletivo contra cidadãos ou grupos individuais” (DWORKIN, 2014, p.
134).
20
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A definição da incidência do Ipva a partir do método do direito como integridade de Ronald Dworkin
isto é, se, porventura, fosse reconhecido que o contexto brasileiro admitia a tributação de
veículos automotores terrestres, aéreos, marítimos ou anfíbios pelo IPVA, legitimar-se-ia o
uso da força estatal – Estado do Amazonas – para alcançar parcela da riqueza dos respectivos
proprietários.
Desse modo, o STF determinou o âmbito de incidência do IPVA, limitando-o a
tributação apenas de veículos automotores terrestres, uma vez considerado o contexto
histórico-institucional, tal como ensinado por Ronald Dworkin em seu método interpretativo
Direito como integridade.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A definição de sentido para expressões que compõem os textos legais faz parte da
atividade interpretativa a qual está subordinado o Direito, isto é, os sentidos não poderão ser
obtidos a partir de concepções externas à prática social existente na comunidade política em
cujo texto legal tem vigência.
Compreender os limites da competência tributária dos Estados e do Distrito Federal
para fins de exação do imposto sobre propriedade de veículos automotores (IPVA) implica
estabelecer também limites ao sentido da expressão “veículos automotores”.
Esse sentido, como afirmado acima, não pode ser obtido a partir de conceitos
formulados sem levar em consideração o contexto histórico-institucional em que está inserida
a prática da tributação da propriedade de veículos na sociedade brasileira.
O Recurso Extraordinário nº 134.509/AM, ao definir que “veículos automotores”, para
fins de tributação do IPVA, são apenas os veículos que circulam pela via terrestre, excluindo
aqueles que utilizam a via aérea, marítima ou anfíbia, utilizou-se de atividade interpretativa
que buscou razões para decidir em elementos da história legislativa e judicial sobre a
tributação da propriedade desses bens, além da prática social sobre a matéria, como a
observação de que a maioria dos Estados ao instituírem suas hipóteses de incidência limita-se
aos veículos terrestres, ou como as definições de navios e aeronaves utilizadas pela legislação
nacional e por tratados sobre esses tipos de veículos, distinguindo-os dos veículos terrestres.
Observando-se o contexto histórico-institucional para decidir os limites da incidência
do IPVA e abandonando a definição de sentidos de expressões a partir de dicionários, o STF
utilizou-se, sem mencionar expressamente, do método de interpretação formulado por Ronald
Dworkin conhecido por integrity ou Direito como integridade.
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FERREIRA, Luciano Cavalcante de Souza.
REFERÊNCIAS
CAMPOS, Adriana; ARDISSON, Daniel Piovanelli. O Direito como Integridade na
Jurisdição Constitucional: análise sobre o aborto segundo a proposta de Ronald
Dworkin. In: Seqüência (Florianópolis), n. 67, p. 251-276, dez. 2013
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. 3ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
_______. O império do direito. 3ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
_______. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
GUEST, Stephen. Ronald Dworkin – Jurist Profiles In Legal Theory. Stanford University
Press: Stanford, Third Edition, 2013. p. 89).
HANSON, Rob. Objective Decision Making in Longergan and Dworkin. 44 B.C. L. Rev.
825 (2002-2003).
LAMOND, Grant. Inventing the law: dworkin and integrity. 12 Bull. Austl. Soc. Leg.
Phil. 2, 1988.
MARMOR, Andrei. A natureza do direito. (trad. Lucas Miotto). In: Direito, Estado e
Sociedade, n.42, p. 6 a 23, jan/jun, 2013
PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
SGARBI, Adrian. Clássicos da Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
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