Abril - Colégio Dinâmico

Transcrição

Abril - Colégio Dinâmico
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ANO 20
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tiragem:
T
ABRIL/2012
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20 000 exemplares
Um novo desenho
político no Grande
Oriente Médio
udo se move no Oriente Médio e na África
do Norte. Mais de um ano após a deflagração
da Primavera Árabe, a ordem antiga desmorona em todos os lugares, sob ritmos e formas
diferentes. A crise sangrenta, terminal, da ditadura síria de Bashar al-Assad transformou-se
no foco principal das atenções. Contudo, uma
força política em ascensão evidencia linhas
evolutivas no novo desenho do Grande Oriente Médio.
A Irmandade Muçulmana, corrente sunita fundamentalista, venceu as eleições parlamentares no Egito e na Tunísia. Tentáculos
da organização internacional nucleada no Egito operam em diversos países – inclusive na
sublevação síria. A ascensão da Irmandade é
Em Idlib, na Síria, manifestantes fazem ato pró-Assad, que se mantém no
acompanhada por profecias sobre a instaurapoder graças ao complexo xadrez geopolítico regional
ção de um “inverno islâmico”, no lugar da primavera democrática. O quadro, entretanto, não tem contornos tão simples como imaginam os profetas.
Circulam rumores sobre a iminência de um ataque israelense contra as instalações nucleares do Irã. O regime dos aiatolás,
encurralado pelas sanções internacionais, não pode mais contar com a tradicional aliança com a Síria e teme uma retomada
das manifestações pela democracia. Um hipotético ataque de Israel provavelmente seria insuficiente para deter o programa
nuclear iraniano. Mas, quase certamente, forneceria aos aiatolás as ferramentas para restaurar uma coesão interna perdida.
Vejas as matérias nas págs. 6 a 9
Semana de Arte Moderna
Putin 2, o começo do fim
N
inguém se surpreendeu: Vladimir Putin triunfou nas eleições russas e retoma
a cadeira presidencial que ocupou entre 2000 e 2008, antes de transferí-la para
Dmitri Medvedev. No primeiro ciclo, Putin engendrou um novo autoritarismo
grão-russo. No segundo, conhecerá o declínio do modelo político e econômico
que implantou.
O “putinismo” é o regime de uma burocracia estatal oriunda das agências de
inteligência da era soviética. Seu sucesso, após o caos da transição da economia
estatal para um capitalismo de máfias, sob o governo de Boris Ieltsin, decorreu
da elevação global dos preços do petróleo e do gás natural. No novo ciclo, Putin
é confrontado por demandas pela democracia e por desafios geopolíticos e econômicos.
Pág. 10
1922
© Coleção Museo de Arte Latinoamericana de Buenos Aires
● Editorial – Aziz Ab’Saber
morreu em março. O panorama intelectual brasileiro ficou mais pobre.
Pág. 3
● Artemio, o último dos
veteranos das guerrilhas
latino-americanas, reconhece que “a luta armada
acabou”.
Pág. 3
● Operações Especiais – eis
o novo norte da estratégia militar dos Estados
Unidos.
Pág. 4
● Diário de Viagem – No
mundo dos glaciares do
Alasca, entre florestas e
avalanches.
Pág. 5
● O Meio e o Homem – A
Sibéria está menos fria.
As cidades árticas de seus
grandes rios conhecem
uma escalada econômica
e demográfica.
Pág. 11
● Belo Monte não é apenas
uma usina hidrelétrica
grandiosa, mas também
a fonte de uma polêmica
econômica, regional e
socioambiental.
Pág. 12
■
© Bulent Kilic/AFP
E mais...
Nº 2
17º Concurso Nacional de Redação­ de
Mundo e H&C – 2012
Escreva e se inscreva!!!
Regulamento
■ Quem poderá participar?
Todos os alunos do Ensino Médio das escolas assinantes de Mundo.
■ Qual é a forma de participação?
Cada escola poderá enviar até cinco redações. Tomamos a liberdade de sugerir que as escolas realizem
um concurso interno de seleção. Todos os leitores
de Mundo podem participar, mas apenas mediante
a intermediação das escolas. Por razões pedagógicas,
não aceitaremos redações enviadas sem a anuência
da escola.
■ Qual é o prazo para o envio das redações?
Serão aceitas redações recebidas na sede da Pangea,
em São Paulo (nosso endereço pode ser encontrado nesta
página, no Expediente) impreterivelmente até 6 de
julho de 2012.
■ Quais devem ser as características das redações?
As redações devem ter no máximo 40 linhas e, obrigatoriamente, conter título. Cada escola receberá,
durante o mês de maio, cinco folhas pautadas e
numeradas para a transcrição dos textos selecionados.
As folhas preenchidas deverão ser remetidas à sede da
Pangea. Este formato é obrigatório, inclusive para
garantir o sigilo: a Comissão Julgadora não terá acesso
ao nome dos autores ou das respectivas escolas.
■ Quem julgará os trabalhos?
As redações serão avaliadas por uma Comissão Julgadora integrada por professores de Comunicação
e Expressão de reconhecido saber e experiência no
Ensino Médio.
■ As redações serão publicadas?
A redação vencedora será publicada e comentada na
edição de outubro de 2012 de Mundo. Outras redações
poderão, eventualmente, ser publicadas. Importante:
Os autores, ao participarem do concurso, concedem a
Mundo o direito de publicar suas redações, sem remuneração autoral, no próprio boletim ou sob outra forma.
As redações enviadas não serão devolvidas.
■ Haverá prêmios para os melhores trabalhos?
Sim. Os autores das dez melhores redações serão
premiados por Pangea e empresas patrocinadoras do
concurso. O 1º colocado receberá um aparelho de
som no valor de R$ 800. Do 2º ao 5º, todos receberão
MP4 no valor de R$ 200. Do 6º ao 10º colocado,
serão ofertados prêmios em livros.
Mais informações: Veja “O tema da
redação” na pág. 2 do Boletim Mundo
nº 1 – março/2012
E X P E D I E N T E
PANGEA – Edição e
Comercialização de Material
Didático LTDA.
Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson
Bacic Olic (Cartografia)
Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)
Revisão: Jaqueline Rezende
Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw
Projeto e editoração eletrônica:
Wladimir Senise
Endereço: Rua Romeu Ferro, 501
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assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser
obtidos no seguinte endereço, em São Paulo:
• Banca de jornais Paulista 900,
à Av. Paulista, 900
Fone: (11) 3283.0340
www.clubemundo.com.br
Infelizmente não foi possível localizar os autores de
todas as imagens utilizadas nesta edição.
Teremos prazer em creditar os fotógrafos, caso se
manifestem.
2012 ABRIL
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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A
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A ziz A b’Saber (1924-2012)
“Ele
tomou café, depois sentou na cama e
deu um suspiro.
Morreu em seguida”, relatou
Nídia Pontuschka, irmã de A ziz Nacib A b’Saber,
uma das maiores referências no pensamento geográfico brasileiro, falecido na manhã de 16
de março. Aos 87 anos, A b’Saber continuava
escrevendo e debatendo. O país fica mais pobre
sem a sua presença.
O jovem A b’Saber ingressou no curso de
geografia e história da USP em 1940. É de um
tempo diferente, anterior à estrita definição
das especialidades na Geografia. Seu universo
era a Geomorfologia, mas ele transitava por
cima das fronteiras da ciência, em busca das conexões entre a esfera da gênese e das formas do
relevo e as do meio ambiente e da organização
dos espaços regionais. Daí o interesse geral dos
textos que produzia : não é preciso ser geomorfó-
fisticada classificação atual , proposta por
logo, nem mesmo geógrafo, para entender seus en-
Jur andyr Ross . Se
saios, uma fonte inesgotável de encantamento.
organização do espaço amazônico promovi -
Em 1957, A b’Saber ajudava o renomado geóTricart numa investigação de
campo nas áreas de Jundiaí e C ampinas. O francês
registrou a ocorrência de linhas de pedra, que
aparecem tipicamente no Nordeste brasileiro. O
lugar onde estavam poderia ter sido, no passado,
um domínio com caatingas ou cerrado. M ais tarde, junto com Paulo Vanzolini, A b’Saber descobriu
linhas de pedra na A mazônia. Nascia a teoria dos
refúgios, uma narrativa sobre o passado da floresta amazônica, fragmentada em núcleos dispersos
rodeados por cerrados na última era glacial .
É de A b’Saber o quadro ger al de classificação do relevo br asileiro, argamassa da so -
da a partir da ditadur a militar , deve ler o
grafo francês Jean
você quer entender a re -
A b’Saber ( e também, sob outr a
Bertha Becker). A lguns fanáticos pela especialização científica usam a palavr a “ ultr apassado” par a fazer referência
aos voos do geógr afo. E le se envolveu em
polêmicas diversas , sobre C ar ajás , hidrelé tricas na A mazônia , os projetos do M inis tério do M eio A mbiente de M arina Silva , o
C ódigo Florestal – e , nesse percurso, deixou desafetos . Sempre aceitou pagar o preço
que escreveu
perspectiva ,
de explodir a caixinha intelectual na qual
vivem, sem brilho mas confortavelmente ,
tantos de nossos acadêmicos .
A rtemio e o outono das guerrilhas
om a morte de Alfonso Cano, comandante das Farcs, a guerrilha esquerdista da Colômbia, Artemio tornou-se o
último de uma geração de líderes guerrilheiros da América Latina. Foi, afinal,
capturado em fevereiro, significando o
fim da primeira geração de guerrilheiros
latino-americanos. Chefiava o que resta
do Sendero Luminoso do Peru. Artemio
era o nome de guerra de Euleterio Flores
Hala e só pouco antes da captura permitiu que seu rosto fosse fotografado, numa
rara entrevista coletiva concedida na selva peruana. Era o único sobrevivente do
comitê central de uma guerrilha de inspiração maoísta e também um dos mais
procurados pelos serviços de inteligência
dos Estados Unidos. Ganharia US$ 5
milhões quem ajudasse a localizá-lo.
O criador do Sendero Luminoso,
Abimael Guzman, foi preso em 1992 e
a guerrilha entrou em declínio. Sendero
Luminoso, ou “caminho iluminado”, era
por onde o socialismo chegaria ao Peru,
segundo José Carlos Mariátegui, o intelectual que, em 1928, fundou o Partido
Comunista peruano. Artemio convocou
uma entrevista coletiva com jornalistas
levados ao seu território, para propor ao
novo presidente do Peru, Ollanta Humala, uma trégua depois de 30 anos de ações
armadas, e negociações envolvendo um
cessar-fogo e anistia ampla.
O guerrilheiro declarou que se dispunha a negociar com Ollanta com agenda
© Jaime Razuri/AFP
C
Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores
Lima, 1992: um ataque do
grupo Sendero Luminoso
reduziu a escombros a
embaixada da Bolívia
em aberto. Jornalistas foram levados até
a selva para ouvi-lo dizer, entre outras
coisas, com seu rosto afinal revelado, que
“a luta armada acabou”, pois “a realidade
hoje é outra” e o certo seria “participar do
processo político”. Se uma trégua fosse
adotada, prometia manter somente um
pequeno grupo com armas “para o caso
de sermos atacados”. Soube-se, depois da
entrevista, que o novo presidente do Peru
estaria disposto a negociar.
Isto não foi dito claramente, porque
dizê-lo significaria o reconhecimento da
guerrilha como um ator no xadrez político
peruano. Além disso, segundo Artemio, o
sangue derramado foi necessário “para irrigar a revolução”. Lamentava, no entanto,
as mortes de jovens soldados, mas com a
ressalva de que eles “defendiam interesses
dos capitalistas e burgueses”. Calcula-se
que morreram 70 mil peruanos, de um
lado e de outro ou mesmo de nenhum
lado, desde que o Sendero Luminoso começou a luta armada, em 1980.
É um passivo com o qual Artemio teria de lidar. Já o presidente Humala terá
de lidar com o que resta do Sendero, com
o cuidado de que seus gestos não possam
ser interpretados como “transigência”
por parte de uma dura oposição de centro-direita que tenta pintá-lo como parte
do chavismo e, com isso, isolá-lo politicamente na América Latina. É a razão
pela qual circulam suposições – e não
manifestações diretas – sobre negociações com o grupo armado. O Peru já teve
uma guerrilha urbana, que se dissolveu
numa espiral de violência. Foi o Movimento Revolucionário Tupac Amaru.
Tinha poucos recursos, comparados aos
do Sendero.
O Sendero se “mimetiza e se disfarça, enquanto o Tupac Amaru, nome de
um inca que se levantou contra os colonizadores espanhóis, reivindicava ações e
assassinatos cruéis”, disse um estudioso
da guerrilha peruana. “Assim morrem os
traidores”, foi o cartaz deixado no pescoço
de uma das suas vítimas. O Tupac Amaru
recordou os velhos tempos do “foquismo”
de Che Guevara, que pareciam obsoletos.
Já o Sendero asssumiu recomendações
maoístas: a guerrilha se move no interior
de um povo como os peixes na água, segundo o lema de Mao Tsé-Tung.
Nesse espiral de violência se insere o
drama das esquerdas do Peru voltadas
para a ação política. O próprio Mariátegui em nenhum momento pregou violência. Além do Partido Comunista, fundou
a Confederação dos Trabalhadores do
Peru e publicou ensaios sobre a realidade
peruana na sua revista Amauta. Adotou
o marxismo como sacerdócio. Amauta
signfica “mestre” em quéchua, dialeto
incaico. Foi preso em 1927, três anos antes de morrer. Antes teve uma perna amputada e uma vida intensa, de lutas em
nome do proletariado em organizações
sindicais. Casou-se com uma italiana, e
seu mandamento, de que o Peru iria para
o socialismo num “caminho iluminado”,
percorreu a América Latina.
Num dado momento, com o golpe
de 1968, os militares peruanos deram
a entender que eles, e não guerrilhas e
partidos políticos, tocariam a caminhada imaginada por Mariátegui. Tinham
sufocado guerrilheiros em La Concepción e aprendido que o mais eficaz instrumento de promoção social são reformas
e não fuzis. Mas acabaram deixando o
poder desmoralizados e de cabeça baixa.
Formou-se uma esquerda unificada, a Esquerda Unida, que conseguiu avançar no
campo político. Chegou a conseguir um
terço dos votos em eleições municipais,
mas terminou não indo adiante, vítima
de comoções internas, um pecado comum das esquerdas latino-americanas.
ABRIL 2012
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
Estados unidos
Imaginando a guerra do século XXI
s traumas do Afeganistão e do Iraque, onde morreram, só no Iraque, mais de cinco mil soldados americanos, abrem espaço a um tipo de guerra que até agora só
tem acontecido no que especialistas chamam de “cantos
obscuros da diplomacia dos Estados Unidos”. Seria, a rigor, um tipo de guerra alternativo aos embates convencionais, feitos com emprego maciço de tropas, de armas
e de poder de fogo. Seu núcleo central já existe: é o Comando de Operações Especiais (USSOCOM, na sigla
em inglês), cujas ações mais recentes foram o assassinato
de Bin Laden, nunca encontrado pelas forças de invasão
do Afeganistão, e um resgate de reféns na Somália.
O chefe das Operações Especiais, almirante William
McRaven, fala em novo tipo de guerra e se empenha em
conseguir um modelo de autoridade que permita que
suas unidades de rápido deslocamento atuem ao largo
do mundo, de modo independente, onde os serviços de
inteligência indiquem a necessidade de intervenção militar. Não mais com os limites estabelecidos pelos canais
de comando do Pentágono, considerados ultrapassados
tendo em vista, inclusive, pressões emanadas do próprio
establishment militar em favor de emprego mais frequente,
sob nova perspectiva, das chamadas operações especiais.
O objetivo é, também, ampliar sua presença em regiões nas quais praticamente não operaram nos últimos
dez anos, especialmente na África e América Latina.
Não será tarefa fácil, em razão de dificuldades recentes
dos Estados Unidos no campo da “diplomacia militar”.
O Pentágono quis criar um comando africano e não
conseguiu. Nenhum país da África aceitou abrigá-lo.
A Junta Interamericana de Defesa, da Organização dos
Estados Americanos (OEA), com incidência nas Américas e predominância americana, esvaziou-se quase por
completo.
Não se fala mais em Doutrina Monroe. O ex-presidente Bill Clinton liquidou-a com mensagem ao Congresso dizendo que a América Latina não estava mais
sob ameaça de intervenção externa. O esvaziamento da
Junta Interamericana de Defesa exprime um grau importante de rejeição hemisférica à presença militar dos
Estados Unidos, que já perderam a base que tinham no
Equador. Na América Latina, hoje em dia, o Pentágono
conta apenas com assessores militares visíveis na Colômbia e com a missão específica de ajudar na erradicação
do comércio de coca.
A guerrilha colombiana sobrevivente e encorpada, as
Farcs, tem na coca um dos seus instrumentos de sobrevivência. Há suspeitas bem fundadas de que assessores
militares dos Estados Unidos têm um grau importante
de presença também na luta contra as Farcs – e contra
o Exército de Libertação Nacional colombiano, menos
letal. Trata-se de presença informal, encoberta, e por
isso é difícil mensurar suas dimensões. Já o assassinato de Bin Laden, feito por um comando do almirante
McRaven e sem o conhecimento prévio do governo do
Paquistão, representou um sucesso político maiúsculo
O debate se concentra na estrutura e nas linhas de comando das Operações Especiais.
Enquanto cresce a aversão a guerras como as do Iraque e do Afeganistão, a Casa Branca
aperfeiçoa uma nova fórmula de ação militar
© US Air Force
O
Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores
para Barack Obama, mas criou dificuldades políticas e
diplomáticas na Ásia Central.
Isto daria razão a diplomatas inquietos, o que pode
dificultar os planos de McRaven de maior autonomia
e mais emprego do que é chamado de “novo formato”
das operações especiais. Obama e a liderança do Pentágono manifestam reservadamente, em grau cada vez
maior, sua preferência pelo emprego de forças de operações especiais, ou de elite. Mas enfrentam resistências
dos comandos militares regionais e também do corpo
diplomático do Departamento de Estado.
Os comandos regionais temem a erosão de suas autoridades e embaixadores em áreas de crises manifestam
receios de que tais ações podem ser encaradas como atentados à soberania dos países onde são executadas. Caso,
por exemplo, dos amargos ressentimentos do governo e
dos militares paquistaneses com a caçada a Bin Laden.
A Casa Branca, no entanto, junto com chefes militares,
senadores e deputados, faz campanha velada em favor
dos planos de McRaven. É quase certo que as operações
especiais terão seu orçamento e pessoal aumentados, em
contraste com os cortes nos gastos gerais de defesa dos
Estados Unidos.
O presidente Obama e a secretária de Estado Hillary
Clinton, bem como seus assessores diretos, recusam-se a
comentar publicamente o projeto de McRaven. De acordo com analistas, ele “coloca em pauta um novo modelo
de guerra numa época de redução do orçamento militar”. A ideia de redução do emprego de tropas está em
compasso com declínio do “apetite popular” por guerras
e ocupações de grande porte, como se vê no caso do Ira-
Os drones, aviões
não pilotados de
reconhecimento e
ataque, são símbolo
da “nova guerra”.
Mas também são
uma das principais
causas da crescente
resistência da
população afegã
aos Estados
Unidos, pois seus
bambardeios
causam, com
frequência, vítimas
entre crianças e
civis
que. De acordo com o novo conceito, um contingente
significativo de tropas, projeção inicial de 12 mil homens, será colocado à disposição das operações especiais
para ações em qualquer lugar do planeta.
Há limites que constam do próprio projeto. As unidades especiais só seriam empregadas em “missões específicas” e a mando de comandantes regionais que sejam
generais de quatro estrelas. “Não se trata de travar uma
guerra global contra o terrorismo”, ressalva o próprio
McRaven, distinguindo-se do discurso do governo de
George W. Bush. Na última década, na moldura da
“guerra ao terror”, as forças especiais dos Estados Unidos
se concentraram no Grande Oriente Médio e no sudeste da Ásia. O projeto, como se vê, é espalhá-las, sem o
gigantismo dos últimos tempos, que se revelou inconveniente e de mobilidade pesada.
O Comando de Operações Especiais conta, no momento, com nada menos que 66 mil homens e orçamento de US$ 10 bilhões. Mas executa ações concentradas,
quatro quintos delas no Grande Oriente Médio. As
regras em vigor subordinam estritamente as forças especiais à cadeia de comando do Pentágono. McRaven
tenta mudar esse cenário, obtendo permissão para executar operações com “rápida mobilidade e de abrangência universal”. De acordo com um ex-oficial que atuou
ao seu lado ele procura desenvolver “agilidade global”
com unidades leves e comando próprios. “Se sua rede
de ações não for elástica, não acompanhará a agilidade do inimigo”, argumenta McRaven em defesa de seu
projeto.
2012 ABRIL
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
Regina Ayres
Especial para Mundo
A lasca, a terra do gelo, das
o verão boreal passado, estive no
Alasca. Voei de São Paulo até Vancouver,
no Canadá, onde fiquei uma semana.
Depois, Anchorage, ponto de partida de
um cruzeiro pelo litoral do Alasca. Foram sete dias de deslumbramento com
paisagens fantásticas.
De ônibus, fomos até o Porto de
Whittier, onde embarcamos no navio
que seria nossa morada por sete dias. No
traslado já nos deparamos com paisagens
diferentes: grandes vertentes, árvores petrificadas, lagos congelados e neve, apesar
de estarmos no verão. Aquela ideia de que
o Alasca é frio é verdade. Frio e úmido.
Mas com paisagens lindas!
Em certo momento, o ônibus parou
no meio da estradinha – susto geral. Parou pois teríamos que atravessar o Anton
Anderson Memorial Tunnel, de aproximadamente quatro quilômetros. O túnel
serve tanto à rodovia quanto à ferrovia.
Passa apenas um veículo por vez. Sabemos que é seguro, mas a sensação de que
de repente surgirá uma locomotiva atormenta toda a travessia.
Nas primeiras horas de navegação
planejamos – e compramos – passeios
em cada uma das cidades em que aportaríamos. Não aportamos nos dois primeiros dias de navegação. Tomamos café
da manhã avistando grupos de baleias
e almoçamos tendo como paisagens o
Hubbard Glacier, no primeiro dia, e o
Glacier Bay, no segundo. No decorrer
das manhãs avistamos pequenos icebergs.
Alguns serviam como plataformas para
aves que descansavam. A temperatura
caía muito, rompendo a barreira do zero
grau. Navegávamos tendo sempre “terra
à vista”: montanhas com cumes brancos
e vertentes verdejantes que acabavam no
mar. Avistávamos encostas acometidas
por avalanches e imaginávamos a força
das águas de degelo.
O tempo, úmido e chuvoso, impediu
boas fotos, mas nem o frio foi capaz de
diminuir nosso encantamento com as
paisagens. Estar diante daquela imensa
massa de gelo, formada pelo derretimento, no verão, de uma quantidade de neve
inferior àquela que caiu no inverno, é de
um deslumbramento incrível. Tons de
azul, estalos de gelo se partindo, reflexos
de geleiras colossais em águas límpidas...
Navegamos rumo a Skagway, quase
na fronteira com o Canadá – uma cidade
com cerca de 800 habitantes que convivem, durante o inverno, com temperaturas próximas a 40 °C negativos e ventos
de 100 km/h. Não é à toa que Skagway
quer dizer “terra do vento forte”. No inverno, as pesadas nevascas cobrem de
branco todo o cenário. Na rodovia, para
que os veículos possam identificar as margens do caminho, existem marcadores de
neve, na forma de estacas, com altura de
quatro metros. Brrrr, que frio!
Percorremos, de ônibus, aproximadamente dez quilômetros dessa rodovia, subindo cerca de 1,2 mil metros. Conforme
subíamos, diminuíam as temperaturas e
intensificava-se, assustadoramente, o vento.
A vegetação é um espelho dos climas: no
nível do mar, árvores com 10 a 15 metros
de altura; lá em cima, arbustos e gramíneas
com alturas entre um e dois metros.
Skagway já foi uma cidade bastante importante – nos tempos distantes da
corrida do ouro. Mineiros lá chegavam
e descobriam que deveriam ainda caminhar muitos quilômetros, em montanhas
cobertas de neve, uma vez que não havia
ouro nos arredores da cidade, mas apenas
em território canadense. Lembrei-me do
filme Em busca do ouro, de Charles Chaplin. Na cidade, cultua-se esse passado
épico: museu, livros, um teatro interativo
onde turistas pagam mico minerando em
um galpão. A ferrovia, um feito considerável de Engenharia civil, facilitou o acesso
à região aurífera, poupando muitas vidas.
Fizemos um passeio de trem, em busca
das paisagens e sensações daqueles aventureiros do passado. Hoje, em Skagway,
uma “corrida do ouro” ainda acontece em
cerca de três dezenas de lojas de joias.
© Fotos: Regina Ayres
N
águas e das avalanches
A rua Creek é o centro da
memória histórica de Ketchikan,
a mais antiga cidade do Alasca,
envolta por uma paisagem gelada
na maior parte do ano
Mais uma noite de navegação e amanhecemos em Juneau, a capital do Alasca,
com 30 mil habitantes, acessada apenas
pelo mar ou pelo ar. Nas suas proximidades, encontra-se o glaciar Mendenhall,
com 19 quilômetros de comprimento e
2,5 quilômetros de largura e uma face
imponente, com mais de 30 metros de
altura. No caminho ao Mendenhall, percorremos trilhas que atravessam córregos
repletos de salmões e avistamos os mais
variados pássaros. Naquele trajeto, a presença de ursos é comum – mas , felizmente, não nos deparamos com nenhum.
De volta a Juneau, subimos de teleférico, a partir das docas, até o Monte Roberts, um dos picos que rodeiam a cidade. Passando acima de uma floresta boreal, chegamos a 1,8 mil metros de altura
– vista incrível! No topo está o Centro
de Natureza do Monte Roberts, um dos
focos do culto americano à águia. Ali,
formam-se filas para admirar e fotografar
águias que vivem em cativeiro.
Após uma outra noite de navegação,
chegamos a Ketchikan, a mais antiga cidade do Alasca, autoproclamada a “capital
mundial do salmão”. O marco de memória da cidade é a rua Creek, que margeia
o Ketchikan Creek e abriga construções
feitas sobre armações de madeira e estacas
à beira d’água. Nos tempos da corrida do
ouro, a Creek era zona de prostituição.
Hoje, está pontilhada por finas butiques
e galerias de arte. Ketchikan é uma cidade construída “sobre a água”, cercada por
diques e apoiada em estacas. Reza a lenda que, por lá, não se mede a quantidade
de chuva em polegadas, mas em pés. São
quase 4 mil milímetros de chuva por ano,
média muito superior à de quase toda a
Amazônia. De Ketchikan, no mais incrível passeio da viagem, sobrevoamos uma
geleira, por 30 minutos, de hidroavião.
Bem perto do centro de Ketchican situase uma vila de indígenas da etnia tlingit, a
Saxman Native Totem Village. Os índios
chegam para as apresentações de dança tradicional em automóveis modernos, tagarelando ao celular, em jeans e camisetas, apetrechos e trajes de uma outra tradição.
Regina Ayres é professora de
Matemática no Colégio Rio Branco,
em Campinas (SP)
ABRIL 2012
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
oriente médio
Vocês não são uma sociedade beneficente, nem um partido político, nem uma organização local de fins limitados.
Ao contrário, são uma nova alma no coração desta nação, para dar-lhe vida através do Corão (...). Quando lhes
perguntarem para o que convocam, respondam que é para o Islã, a mensagem de M aomé, a religião que contém
dentro de si governo, e tem como uma de suas principais obrigações a liberdade . Se lhes disserem que vocês são
políticos, respondam que o Islã não admite tal distinção.
(H assan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana em 1928)
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TUNÍSIA
ARGÉLIA
MAR MEDITERRÂNEO
LÍBIA
SÍRIA
IRAQUE
EGITO
AFEGANISTÃO
IRÃ
PAQUISTÃO
ARÁBIA
SAUDITA
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O
assan al-Banna nasceu em 1906, no
delta do Nilo, num Egito governado pelos
britânicos. Seu pai ensinava a jurispridência islâmica, segundo um rito conservador
oriundo do século IX. Al-Banna ingressou
numa ordem sufita, de interpretação literal do Corão, abriu um estabelecimento
de reparos em gramofones e se envolveu
nos protestos contra o poder colonial britânico. Aos 22 anos, fundou a Irmandade
Muçulmana, que se transformaria na fonte principal da política islâmica no Egito.
Morreu jovem, em 1949, assassinado por
dois atiradores, quando deixava o local de
um encontro com representantes do governo, que não apareceram. Meses antes,
o primeiro-ministro Mahmoud Pasha fora
assassinado por um jovem militante da
Irmandade. Um dos últimos gestos de alBanna foi uma declaração de condenação
do ato de terror que traçava uma fronteira
moral intransponível separando o Islã do
terrorismo. Hoje, passadas mais de seis décadas, a organização que ele criou emerge
como a força política dominante da Primavera Árabe.
O ditador egípcio Hosni Mubarak
caiu em fevereiro do ano passado. As
eleições para o novo Parlamento, que se
estenderam por várias votações, entre dezembro e março, produziram uma maioria ligada à Irmandade. Na condição de
sócios num poder transitório que ainda
pertence ao Exército, os líderes islâmicos
procuram um difícil equilíbrio entre a
Junta Militar e as demandas revolucionárias que emanam da Praça Tahir (veja a
matéria na pág. 9).
O Egito é o núcleo irradiador do Islã
da Fraternidade no mundo árabe. Na Tunísia, país pioneiro da Primavera Árabe,
os candidatos inspirados pela organização egípcia também controlam o parlamento e apontaram o chefe de governo.
No Marrocos, sob pressão das ruas, o rei
Muhammad VI promoveu reformas e
designou como primeiro-ministro o líder
do Partido da Justiça e Desenvolvimento, corrente vinculada à Irmandade. Na
Líbia, as milícias islâmicas que participaram da derrubada de Muammar Kadafi,
hoje sob a influência predominante da
organização egípcia, articulam-se para
desempenhar um papel político decisivo.
A “onda verde”, cor do Islã, não se
circunscreve à África do Norte (veja o
mapa). Na Jordânia, onde a monarquia
também procura circundar a insatisfação
popular por meio de reformas, a Frente
© Citizenside/AFP
H
Primavera Á rabe ingress
IÊMEN
Países com mais de 90% de muçulmanos e grande maioria sunita
Países entre 50% e 90% de muçulmanos, com importante minoria xiita
Países muçulmanos com maioria de população xiita
OCEANO
ÍNDICO
Em Homs, milhares pedem o fim
da ditadura de Bashar al-Assad; a
conjuntura na Síria coloca em jogo
todos os interesses mobilizados pelo
xadrez geopolítico regional
Países de maioria muçulmana, com expressivas minorias (cristãs, alauítas e outras)
País onde os muçulmanos são minoria (Israel)
FONTE: El Atlas de las religiones (2009) e Almanaque Abril (2012)
de Ação Islâmica, braço da Irmandade,
funciona como partido de oposição legal
e terá a oportunidade de chegar ao governo. Outros tentáculos operam como partidos moderados no Iraque, no Kuwait,
no Bahrein e no Iêmen.
A revolução na Síria, que desliza rumo
à guerra civil, não é dirigida exclusivamente por lideranças ligadas à Irmandade, mas
os islâmicos sunitas figuram como polo
crucial do movimento. Um sinal óbvio da
influência do Egito sobre o conflito sírio
foi a recente ruptura do Hamas palestino
com o regime de Bashar al-Assad, que perdeu sua capacidade de participar do jogo
de xadrez na Palestina ocupada (veja a
matéria na pág. 7).
A velha ordem do Oriente Médio assentava-se sobre a exclusão da Irmandade.
Ditaduras de diversas extrações, algumas
alinhadas com os Estados Unidos, como
a de Mubarak, outras antiamericanas,
como a de Assad, erguiam as bandeiras
esfarrapadas do nacionalismo e do panarabismo para rejeitar a participação dos
islâmicos no jogo político. Não há uma
nova ordem regional, mas um fluxo de
mudanças imprevisíveis. Contudo, já se
sabe que a mais antiga organização islâmica será uma força significativa nos sistemas políticos em construção.
Em 1938, al-Banna dirigiu-se a uma
plateia de militantes e simpatizantes reunida no Cairo para sugerir a substituição
dos Estados desenhados pelas potências
europeias por uma entidade política muçulmana unificada. “O Islã não reconhece fronteiras geográficas, nem distinções
raciais ou de sangue, pois enxerga em todos os muçulmanos uma única comunidade (umma)”, declarou. A sua proposta
era a restauração do califado islâmico,
pela criação de um conselho internacional encarregado de nomear um novo califa – ou seja, um líder político e espiritual da umma. O califado desaparecera em
1919, com o colapso do Império TurcoOtomano. A reconstituição da unidade
perdida parecia-lhe o caminho evolutivo
natural e um resultado glorioso da luta
contra os poderes coloniais.
Aparentemente, a Primavera Árabe
conferiu um novo sopro de vida ao sonho
do fundador da Irmandade. Contudo,
2012 não é 1938: a história recusa-se a
descrever círculos, retomando pontos de
partida ultrapassados. Os Estados muçul2012 ABRIL
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
sa em nova etapa, à sombra do Islã
Guerra civil na Síria implode a ordem regional
A
quilo que começou, há quinze meses, como um levante popular contra a ditadura síria de Bashar al-Assad já assume os contornos dramáticos de uma guerra civil. As estimativas de vítimas fatais giram ao redor de 8 mil. Aos poucos, lenta mas
inexoravelmente, as imagens de manifestações populares contra o regime cedem
lugar a notícias de massacres e enfrentamentos armados assimétricos. O regime
do clã Assad, instalado em 1970, experimenta um outono sangrento, de duração
incerta mas desenlace cada vez mais previsível: a Síria reinventada por Hafez alAssad atravessa sua etapa terminal. Junto com ela, desaparece a ordem geopolítica
construída no Oriente Médio durante as décadas finais do século XX.
Hafez al-Assad chegou ao poder no curso da ascensão regional do Partido Baath, uma corrente política pan-arabista com tentáculos mais poderosos, porém
rivais, na Síria e no Iraque. O novo líder sírio apoiava-se na minoria pertencente à
seita alauíta, tradicionalmente marginalizada num país de maioria sunita, e também na minoria cristã. No seu esquema de poder, o laicismo do Estado funcionou
como redoma para a criação de uma nova classe média e de um oficialato militar
extraídos das duas minorias.
O Baath iraquiano, por outro lado, foi o veículo para a configuração do regime
de Saddam Hussein. A ditadura iraquiana, assentada sobre clãs sunitas, promoveu
a exclusão da maioria xiita, concentrada no sul do Iraque. A Revolução Iraniana de
1979, que resultou no regime teocrático xiita dos aiatolás, acirrou a antiga disputa
entre Iraque e Irã pela hegemonia no Golfo Pérsico e precipitou a Guerra Irã-Iraque (1980-1988).
Durante aquela guerra, soldou-se a aliança entre a Síria e o Irã. O arranjo, de
aparência estranha, reuniu uma república árabe laica a um Estado teocrático persa. A aliança repousa sobre uma dupla plataforma. De um lado, existe a afinidade
entre a liderança religiosa iraniana e o regime sírio, ancorado nos alauítas, que formam um ramo singular da árvore xiita. De outro, os interesses internacionais comuns: a rivalidade com o Iraque e a hostilidade em relação aos Estados Unidos.
manos atuais já não podem ser descritos
como meros artefatos manufaturados nas
oficinas do colonialismo. Depois de alBanna, cresceram e frutificaram as árvores do pan-arabismo, dos nacionalismos e
– nunca se deve esquecer! – do jihadismo
global da Al-Qaeda. Além disso, especialmente, as revoluções árabes evidenciaram
o dinamismo e a diversidade política das
sociedades nacionais. Os jovens e as mulheres da Praça Tahir – ou, ao menos, vasta parcela deles – não enxergam no Corão
o guia infalível para a organização da vida
política e social. Em todos os países varridos pela Primavera Árabe, despontaram
correntes políticas laicas – liberais, socialdemocratas ou socialistas – que não desaparecerão do cenário.
A ascensão da Irmandade é acompanhada pelos alertas dos neoconservadores
americanos, segundo os quais a Primavera Árabe produzirá o resultado desastroso
de um “inverno islâmico”. O Islã e a democracia são incompatíveis, asseguram
esses sábios cujos conselhos provocaram
a invasão do Iraque, em 2003. Os riscos
do fundamentalismo certamente existem. Na Síria, em particular, a sangrenta
repressão de Assad já origina uma guerra
civil e não está afastada a hipótese de um
conflito duradouro, trágico, entre a maioria sunita e as minorias alauíta e cristã.
Entretanto, a profecia agourenta ignora,
por razões ideológicas, a complexidade
do cenário. No Egito e na Tunísia, por
exemplo, os líderes da Irmandade insistem em proclamar seu compromisso com
a democracia e as liberdades públicas.
É fácil, de qualquer forma, recortar
dois ou três parágrafos dos incontáveis
textos de al-Banna para emoldurar a tese
de que a Irmandade não pode conviver
com a liberdade. Mais difícil, porém
muito mais proveitoso, é investigar a teia
de circunstâncias que cercam a ascensão
da antiga organização, impulsionando-a
na direção do futuro.
Os Acordos de Camp David, de paz entre Israel e Egito, em 1979, redefiniram a
esfera de influência dos Estados Unidos no Oriente Médio. Israel e Arábia Saudita
eram aliados tradicionais de Washington. O acordo egípcio-israelense consolidou a
influência americana sobre o Egito. No período seguinte, a Guerra do Golfo (1991)
e a invasão americana do Iraque (2003), com a derrubada de Saddam Hussein,
geraram intensa sensação de insegurança para os regimes iraniano e sírio. O Irã
entregou-se, com renovada energia, ao antigo projeto de construção de um arsenal
nuclear. A Síria aprofundou seus laços estratégicos com a Rússia, que abrangem a
cessão da base naval de Tartus, no Mediterrâneo. Ao mesmo tempo, iranianos e
sírios estenderam a sua cooperação nos cenários do Líbano e de Israel/Palestina.
No Líbano, um país dividido por linhas de conflito entre seitas religiosas,
a Síria e o Irã financiam e fornecem armas para o grupo xiita Hezbollah, um
partido com ampla base popular que tem uma ala militar e figura na lista de
organizações terroristas divulgada pelos Estados Unidos. Em 2006, o Hezbollah
enfrentou as forças armadas israelenses num violento conflito que durou pouco
mais de um mês.
Na Guerra dos Seis Dias, em 1967, a Síria perdeu para Israel a área elevada, de
valor estratégico, das Colinas de Golã. O regime sírio procura operar na Palestina por intermédio do Hamas, o partido fundamentalista islâmico que governa a
Faixa de Gaza. Contudo, apesar de receber apoio sírio – e iraniano –, o Hamas é
um movimento sunita que surgiu, há três décadas, de uma costela da Irmandade
Muçulmana egípcia.
O declínio do regime de Bashar al-Assad desordena toda a complexa arquitetura geopolítica regional. A Turquia, cuja política externa volta-se cada vez mais para
o Oriente Médio, colocou-se na linha de frente da campanha diplomática contra
Assad. Numa iniciativa ousada, os turcos clamam pelo estabelecimento de “refúgios” no norte da Síria protegidos por forças militares internacionais. Um passo
como esse configuraria uma intervenção armada externa no conflito sírio.
A consequência mais óbvia da crise na Síria é provocar o isolamento regional do Irã. Do ponto de vista de Teerã, o cenário está pontilhado de ameaças, que se estendem das sanções internacionais, que atingem seu sistema
financeiro e suas exportações petrolíferas, até um hipotético ataque aéreo israelense contra suas instalações nucleares (veja a matéria na pág. 8). Tudo
se complicará ainda mais se a insatisfação social interna deflagrar uma nova
onda de protestos de massa dos oposicionistas, violentamente reprimidos em
2009. Nesse caso, um conflito externo com Israel ou com os Estados Unidos
poderia surgir como tábua de salvação para um regime em desespero.
O Hamas rompeu há pouco com o regime sírio, retirando seus líderes
baseados em Damasco e declarando solidariedade à Primavera Árabe. A ruptura foi precedida por um encontro, no Cairo, entre Ismail Haniyeh, primeiro-ministro do governo de Gaza, e a liderança da Irmandade Muçulmana
(veja a matéria na pág. 9). A dissolução do eixo Irã-Síria-Hamas sinaliza a
profundidade da crise do regime sírio e embaralha as cartas diplomáticas em
Israel/Palestina. Em tese, o Egito poderia se converter em intermediário para
negociações entre Israel e o Hamas. Contudo, o governo israelense rejeita
contatos com o governo de Gaza e, na prática, bloqueia qualquer hipótese
séria de negociações com os palestinos.
As ondas de choque da sublevação na Síria ameaçam a sempre frágil estabilidade política do Líbano. Com Assad fora do jogo, o Hezbollah passa a
depender mais intensamente do Irã. Uma corrente de analistas enxerga no
grupo libanês a ferramenta de eventuais represálias iranianas a um hipotético
ataque israelense. A tese, contudo, não leva em conta a fragilidade do próprio
Hezbollah no novo cenário geopolítico do Oriente Médio.
ABRIL 2012
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
oriente médio
Ataque israelense ao Irã: ameaça ou blefe ?
© Apcbg/Wikipedia
os últimos meses, nuvens pesadas vêm turvando perigosamente o horizonte do Oriente Médio. Clarins de
guerra anunciam um iminente ataque de Israel contra
instalações nucleares do Irã. Alarmes soaram por todos
os lados. O mais estridente deles partiu do jornalista
David Ignatius, que escreveu no The Washington Post
que o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Leon
Panetta, garantiu que há uma grande chance de Israel
atacar o Irã “em abril, maio ou junho”. Uma matéria de
capa da revista do The New York Times também cravou
que o ataque israelense não passará de 2012.
O que explicaria tanta pressa? Para o ministro de Defesa de Israel, Ehud Barak, quando a usina nuclear iraniana de Fordow – construída a quase 100 metros abaixo de
uma montanha perto da cidade sagrada de Qom – entrar
em operação, os israelenses não terão mais capacidade de
destruí-la. Segundo essa tese, a partir do momento em
que os iranianos estocarem urânio suficiente em Fordow
para fabricar a bomba atômica, o regime de Teerã entrará
na chamada “zona de imunidade” em relação a Israel – o
que, em outras palavras, significa que o Irã não poderá
mais ser atacado impunemente, pois terá condições de retaliar à altura, inibindo a ofensiva.
O diretor do Centro de Estudos Estratégicos BeginSadat, Efraim Ibar, concorda com a tese. Para ele, há
uma urgência que não existia antes, pois ficou claro que
os iranianos estão transferindo urânio para Qom. “Uma
bomba nuclear iraniana é simplesmente inaceitável para
Israel. A questão é quando atacar. Muitos ainda acham
que é preciso dar tempo para as operações secretas em
andamento”, disse Ibar a O Estado de S. Paulo.
Outro aparente sinal de ataque iminente ao Irã surgiu durante os recentes bombardeios de Israel à Faixa
de Gaza, em resposta aos foguetes lançados pelo Hamas
contra cidades israelenses. O conflito matou 26 palestinos e feriu três israelenses. O general Benny Gantz, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas de Israel, disse
que o conflito foi, “em certo sentido, um miniteste para
um ataque ao Irã”. Ele admitiu que há muita diferença
entre os dois cenários, mas ponderou que as alternativas
do Irã a um ataque de Israel são similares às do Hamas.
Israel interceptou a maioria dos foguetes que os palestinos lançaram a partir de Gaza com o sistema de defesa
Iron Dome. Se Israel atacar as instalações nucleares do
Irã, a retaliação de Teerã provavelmente virá por meio
dos mísseis Sajil, contra os quais os israelenses usariam o
sistema defensivo Arrow, mais sofisticado.
Mas a questão é saber se Israel se arriscaria a deflagrar
um ataque sem levar em conta a posição de Washington.
A administração Barack Obama tem indicado que, embora não descarte uma opção militar, não é favorável a
um ataque ao Irã agora, em ano eleitoral. A mensagem
foi passada pelos americanos ao premiê israelense Benjamin Netanyahu em suas visitas aos Estados Unidos.
Mas há quem diga que Israel está pagando para ver. “Os
Um eventual ataque ao Irã, país de
dimensões territoriais semelhantes
às do Alasca, com a capital Teerã
densamente habitada (nas fotos) e
com um poderoso exército ameaçaria
provocar a regionalização da guerra
e interromper o fluxo do petróleo
mundial
© Ensie Matthias/Flickr
N
Os rumores sobre um bombardeio aéreo contra as instalações nucleares iranianas
circulam a partir de fontes israelenses. Diante das dificuldades da operação, pode ser apenas
um blefe. Ou não...
Cláudio Camargo
Especial para Mundo
israelenses acreditam que, se existe um momento em que
os Estados Unidos não terão opção a não ser segui-los
rumo à guerra, é durante a campanha presidencial”, diz
Ali Vaez, pesquisador da Federação de Cientistas Americanos. “Não há como Obama se opor a um ataque ao
Irã sem ameaçar sua reeleição”, conclui.
Outros analistas estão convencidos de que esses rumores de ataque ao Irã não passam de um blefe israelense para assustar os aiatolás e pressionar o governo americano, a Europa e o Conselho de Segurança da ONU
a aprovar sanções mais duras contra Teerã. Afinal,
qualquer país que não disponha da enorme capacidade
militar dos Estados Unidos prefere atacar o inimigo de
surpresa. Meir Dagan, ex-chefe do Mossad, o serviço de
inteligência israelense, disse que um ataque contra o Irã
era “a ideia mais estúpida” que ele já tinha ouvido falar.
Recentemente, os chefes do Mossad e do Shin Bet, a
agência de segurança israelense, se manifestaram publicamente contrários ao ataque.
De fato, as dificuldades de uma operação militar contra o Irã seriam bem maiores do que o ataque aéreo “cirúrgico” que os israelenses fizeram em 1981 contra a usina nuclear de Osirak, no Iraque, ou o ataque à Síria, em
2007. Israel está muito distante do Irã: alguns dos alvos
distam entre 1,5 mil e 1,9 mil quilômetros das bases israelenses. Os aviões teriam que chegar ao Irã e voltar; para
isso, precisariam ser reabastecidos no ar. Eles poderiam ir
pelo norte, ao longo das fronteiras da Turquia e Síria e depois Síria e Iraque; pelo centro, com rota pelo Iraque; ou
pelo sul, pela Arábia Saudita. A dúvida é saber se os turcos
e os sauditas se arriscariam a enfrentar a ira islâmica deixando aviões israelenses passar pelo seu espaço aéreo.
Os problemas não param por aí. “O Irã é um país de
grande território, quase do tamanho do Alasca; as instalações nucleares estão dispersas por todo o território e
muitas delas são subterrâneas”, diz o jornalista israelense
Uri Avnery. “Ainda que se utilizassem bombas de penetração profundas, que explodem sob o chão, fornecidas
pelos Estados Unidos, toda essa gigantesca operação só
conseguiria conter os esforços iranianos por alguns poucos meses”, opina. Além disso, imagina que, uma vez
iniciado o bombardeio, Israel sofreria ataques simultâneos do Hamas e do Hezbollah, a milícia xiita libanesa
apoiada pelo Irã e pela Síria. E não se pode esquecer que
os iranianos têm mísseis relativamente sofisticados, capazes de destruir bairros inteiros de Israel. “Morreriam
muitos israelenses. As mortes e destruição em solo israelense tornam totalmente proibitivo qualquer movimento
de guerra contra o Irã”, conclui.
Mas talvez o argumento mais convincente de que a
ameaça israelense não passa de um blefe seja o econômico. Avnery nos convida a olhar o mapa do Estreito
de Ormuz, uma garganta de 35 quilômetros por onde
passa praticamente todo petróleo produzido na região
do Golfo Pérsico. “No instante em que o primeiro avião
israelense entrar no espaço aéreo do Irã, o Estreito será
fechado. (...) É uma catástrofe difícil de imaginar: Ormuz fechado, com o corte de suprimento de quase um
quinto de todo o petróleo que as nações industriais do
planeta consomem”, diz Avnery.
Cláudio Camargo é jornalista e sociólogo
2012 ABRIL
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
oriente médio
Futebol revela as tensões políticas no Egito
A Irmandade Muçulmana, majoritária no novo Parlamento, teme o caminho da ruptura com a Junta Militar. A saída encontrada é
apontar as baterias retóricas para Israel, o que ameaça as relações do Egito com os Estados Unidos
© Mona Sosh/Flickr
o dia 3 de fevereiro, o centro do Cairo foi novamente tomado por manifestantes que ameaçavam ocupar o
Ministério do Interior, na rua Mohamad Mahmoud,
sede da odiada polícia política e normalmente qualificada como a “Bastilha egípcia”. O motivo, aparentemente, era bastante “brasileiro” e nada tinha que ver com a
Primavera Árabe: dois dias antes, 74 pessoas morreram
e outras 248 ficaram feridas, em Port Said, cidade mediterrânea na entrada do Canal de Suez, como resultado
de confrontos violentos entre torcidas organizadas de
futebol. Só que a rivalidade futebolística foi apenas a
aparência, o pretexto do massacre: dirigentes da Irmandade Muçulmana confirmaram as suspeitas de que tudo
havia sido orquestrado pela própria polícia, por razões
políticas. O massacre de Port Said oferece uma exata
perspectiva das grandes questões colocadas pela conjuntura egípcia contemporânea.
À primeira vista, tudo aconteceu como em qualquer
jogo com final violento: torcedores do time local, o
Masry, invadiram o gramado logo após a vitória sobre
o Ahly, do Cairo, principal time do país e seu rival. Isso
produziu confrontos entre as duas torcidas no campo.
Em meio ao caos, os jogadores correram para os vestiários para tentar se abrigar, a batalha causou pânico e
tentativas de fuga das pessoas do estádio. A maioria das
mortes ocorreu por esmagamento em meio à multidão e
queda nas arquibancadas.
Logo, porém, começaram a surgir evidências de que
o massacre foi fabricado. Em primeiro lugar, havia um
grande número de pessoas armadas com pistolas e facas,
o que demonstra que o sistema de controle de entrada do
estádio foi, no mínimo, relaxado. Além disso, “a polícia
trancou os portões para impedir que saíssemos do estádio.
Em nenhum lugar do mundo se tranca as saídas antes
do fim do jogo, qualquer um que já assistiu uma partida de futebol sabe disto”, afirma Mahmoud Abu Shark,
militante pan-arabista e um dos fundadores do Ahly. E
continua: “Fomos assassinados por uma massa dirigida
por agentes infiltrados do serviço secreto e com o consentimento dos policiais que estavam lá para supostamente
nos proteger.” Shark ecoa o consenso nas ruas.
Segundo informa o analista político Aldo Sauda, desde o início da revolução egípcia, em 25 de
janeiro de 2011, os torcedores do Ahly organizaram
as linhas de frente dos embates com a polícia e o
exército, e fizeram isso junto com os seus rivais do
Zamalek, o segundo maior time do país, depois do
próprio Ahly. A sua experiência nos conf litos de rua
deu a eles um papel tido como fundamental na derrubada de Mubarak, ano passado. Apesar de uma
certa tradição de rivalidade com os times de Port
Said, os embates dos torcedores do Ahly com os do
Masry jamais resultaram em tragédias. Até a semana passada, nenhuma das brigas de torcida no Egito
havia provocado mortes.
© Ed Giles/Getty Images
N
A conclusão se impõe: o massacre de Port Said foi fabricado pela própria polícia, em parte como um “acerto
de contas”, uma vingança contra o papel das torcidas na
queda do ditador Hosni Mubarak, em parte como uma
tentativa de aprofundar as rivalidades e impossibilitar
novas relações de colaboração entre os torcedores. É por
isso que os manifestantes do Cairo tentavam tomar a
sede do Ministério do Interior – e é também por isso que
os porta-vozes da Irmandade Muçulmana denunciavam
o papel da polícia. Para a Irmandade, é crucial cultivar o
apoio popular, e a pior coisa que lhes poderia acontecer é
serem identificados como corresponsáveis por um massacre de torcedores. E é nesse ponto que se revela o frágil
equilíbrio das instituições egípcias contemporâneas.
Uma sessão emergencial sobre a tragédia realizada
no recém-eleito Parlamento, controlado pela Irmandade
Muçulmana, chegou à conclusão de que a responsabilidade pelas mortes cabe ao Ministério do Interior. Ainda
na tentativa de encontrar alguma saída negociada para a
crise, os dirigentes da Irmandade culpam “remanescentes do regime de Mubarak”. Querem entregar os anéis –
alguns dos antigos oficiais da ditadura que permanecem
em seus cargos – para salvar os dedos, isto é, os chefes
da Junta Militar que governo o país. Mas a manobra da
Irmandade é fraca, pois as torcidas organizadas, a juventude em geral e os manifestantes responsabilizam diretamente o chefe da Junta, o general Hussein Tantawi.
Ao mesmo tempo, os manifestantes se deparam com
a falta de poder concreto do Parlamento, que não possui
legitimidade jurídica para destituir o primeiro-ministro
nem interferir no Executivo. Isso produz um óbvio sentimento de frustração: as grandiosas manifestações da
Praça Tahir e a queda do odiado ditador ficaram muito aquém das transformações desejadas. Diante isso, a
grande maioria dos jovens que hoje ocupa Tahir parece
mais disposta a organizar enfrentamentos com a polícia
Protestos provocados pelo
massacre de Port Said
(acima) ameaçam incendiar
novamente a Praça Tahir, no
Cairo (ao lado)
do que esperar por resultados das conversações entre o
novo Parlamento e os generais da Junta Militar.
A Irmandade está num fogo cruzado que ameaça a
sua própria sobrevivência. A campanha que produziu
sua vitória nas eleições parlamentares baseou-se na proposta de promover um vasto “diálogo nacional” com o
objetivo de construir instituições democráticas fortes e
representativas. Esquecer os seus compromissos democráticos e voltar as costas aos manifestantes seria um ato
de suicídio político. Mas voltar-se contra os militares e
liderar um movimento pela derrubada da Junta poderia
produziria uma nova situação revolucionária que, facilmente, escaparia ao seu controle.
Uma das saídas encontradas pela Irmandade foi a retomada do discurso contra Israel e o fortalecimento dos
vínculos com o grupo palestino Hamas, em nome do
“renascimento islâmico”. Em dezembro, Ismail Haniyeh,
primeiro-ministro do governo do Hamas em Gaza, foi
recebido por Mohammed Badie, dirigente da Irmandade
egípcia. Haniyeh disse que a presença do Hamas, “ao lado
da Irmandade, ameaça a entidade israelense”. Badie, por
seu lado, reafirmou o compromisso da Irmandade com “as
questões da liberdade, sobretudo da liberdade dos palestinos”. A intenção é convocar os manifestantes de Tahir a
desviar suas atenções para o confronto com Israel.
Entretanto, a alternativa também cria suas próprias armadilhas. Nas três últimas décadas, o Egito tornou-se um
dos principais parceiros de Israel, e disso extraía benefícios
extraordinários, inclusive financeiros, propiciados pelos Estados Unidos. A aproximação mais explícita com o Hamas
desequilibra o xadrez geopolítico regional, ao passo que o
chamado ao “renascimento islâmico”, vindo de um país tão
importante, é um fator explosivo no Oriente Médio. Com
isso, a Irmandade é forçada a afrontar os interesses da Casa
Branca na região.
ABRIL 2012
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
rússia
Putin vence, mas o caos espreita
o K remlin
No primeiro ciclo, Putin foi empurrado pelo vento dos preços do petróleo e do gás. No segundo, que se inicia, enfrentará turbulências
sociais e desafios geopolíticos
C
© Alexander Nemenov/AFP
omo esperado, Vladimir Putin ganhou com relativa
folga as eleições presidenciais realizadas na Rússia, no
início do março. Foi reconduzido ao cargo que ocupou
entre 2000 e 2008, com cerca de 64% dos votos. As
eleições foram marcadas por denúncias de fraudes – cuja
existência, de resto, o próprio Putin reconheceu. Contudo, não foram as irregularidades que garantiram a sua
vitória: mesmo com a popularidade em queda, ele ainda
é, de longe, o político que conta com a maior aceitação da opinião pública russa. Autoritário, formado pela
KGB (antiga polícia política soviética), Putin governa
com “mão dura” tanto no campo da política doméstica
quanto no da política externa. No quadro atual de crise
internacional, sua nova temporada no Kremlin será, certamente, marcada por grandes tensões.
A popularidade de Putin atingiu o auge de 78% no
final de 2008, quando, impossibilitado pela Constituição de disputar um terceiro mandato, elegeu seu braço
direito Dmitri Medvedev. As razões de seu prestígio são,
sobretudo, de ordem econômica. Com os preços do petróleo em alta, Putin conseguiu acabar com a hiperinflação herdada do governo de Boris Ieltsin, equilibrou
as finanças do Estado e estabilizou o câmbio. Garantiu
fartos reajustes aos aposentados e pensionistas, e voltou
a ampliar a presença do Estado na economia, privatizada de modo selvagem por Ieltsin. Principalmente, Putin nacionalizou a Gazprom (responsável pela exploração do gás) e boa parte da indústria de petróleo. Como
resultado do ciclo de alta dos preços do petróleo e do
gás natural, a renda média da população cresceu quatro
vezes em dólar em dez anos, de acordo com dados do
Banco Mundial.
No plano político, Putin foi duro
com a oposição. É acusado pelos seus
adversários de cercear a liberdade de
imprensa, recorrendo para isso a ameaças e pressão econômica, e responsabilizado pela morte dos jornalistas Anna
Politkovskaia e Alexander Livitnenko,
que faziam oposição ao seu governo.
Além disso, mantém na prisão, graças
a uma série de procedimentos jurídicos
irregulares, o bilionário Mikhail Khodorkovsky, ex-dono da Yukos, uma das
maiores empresas petrolíferas do mundo. Mas é na repressão aos rebeldes
nacionalistas da Chechênia que Putin
mostra plenamente sua face repressora.
Em setembro de 2004, ordenou às tropas russas um ataque a um grupo de
terroristas chechenos que havia invadido uma escola infantil em Beslan (na
Ossétia do Norte, território que faz parte da Federação
Russa). Como resultado, 186 crianças morreram, além,
obviamente, dos integrantes do grupo.
Com esse perfil, Putin garante o apoio da maior parte da população, que associa democracia à anarquia e à
hiperinflação. O líder encarna, de certa forma, a cultura
política russa, que saltou da tirania dos czares para a ditadura do Partido Comunista sem passar por um período estável de vigência das liberdades democráticas. Nesse ambiente político, a mão forte do presidente é vista
como a única possibilidade real de resolver os problemas
do país. Isso não impede o surgimento de movimentos
democráticos que se manifestam nas ruas, mesmo sob
ameaça da repressão. Aliás, eis um grande desafio para
o novo governo Putin: no quadro atual da crise, dificilmente se repetirão as proezas de crescimento econômico
que marcaram seu primeiro governo.
A desilusão será inevitável para uma boa parte de
seus eleitores, especialmente os de classe média que
pedem a democratização, a redução da burocracia e o
combate à corrupção. Sua primeira grande dificuldade
será encontrar dinheiro para realizar todas as reformas
que prometeu durante a eleição. Cálculos conservadores de economistas indicam que só o aumento salarial
prometido ao funcionalismo público vai custar 1,5% do
PIB por ano até 2018, quando a proporção deve dobrar,
para 3%. Os gastos prometidos com salários e compras
de equipamentos para as Forças Armadas consumiriam
anualmente 2,2% do PIB, até 2020. Há ainda os custos com aposentadoria: Putin prometeu não aumentar
a idade mínima de aposentadoria, mas os gastos com a
previdência devem subir um ponto porcentual do PIB
a cada cinco anos. Em outros termos, a Rússia terá que
marchar na contramão das políticas adotadas pelos países da Zona do Euro. Só terá alguma chance de fazer
isso se os preços internacionais do petróleo e do gás se
estabilizarem num patamar de US$ 150 o barril (o preço médio atual oscila em torno de US$ 117).
No plano da política externa, as relações tendem a
ficar mais tensas com os Estados Unidos, em particular
no que se refere às manobras da OTAN e à estratégia
para o Oriente Médio. Em 7 de dezembro, o secretário geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, reiterou
a disposição da organização de instalar novos mísseis
antibalísticos na Polônia, Espanha, Turquia e Romênia
e outros países-membros que aceitem participar. A justificativa oficial é a necessidade de reforçar as defesas contra eventuais ataques originados do Oriente Médio. Em
reação, o então presidente russo Dmitri Medvedev ameaçou retirar o país do Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (New Start), bem como instalar novos
mísseis balísticos na fronteira com a Europa. E Dmitri
Rogozin, representante de Moscou na OTAN, acenou
com a possibilidade de cortar as rotas terrestres de suprimento das tropas da aliança no Afeganistão (Rede de
Distribuição do Norte). A Rússia não vai tolerar a instalação de mísseis antibalísticos em território afegão, o
que seria apenas uma consequência lógica do atual curso
adotado pela OTAN.
No Oriente Médio, o ponto mais crítico, atualmente,
é a questão síria e a perspectiva de um eventual ataque ao
Irã (veja as matérias nas págs. 7 e 8). Em 24 de novembro, a Rússia, junto com os demais países integrantes dos
Brics (Brasil, Índia, China e África do Sul), rejeitou qualquer intervenção estrangeira na Síria
e no Irã, conforme uma declaração
Em Moscou,
conjunta assinada em Moscou. Se
manifestantes
Teerã é um aliado “natural” de Moscou e de Pequim contra a expando
são americana no Oriente Médio,
movimento
Damasco garante à Rússia o único
feminista
acesso de sua marinha ao lado ociucraniano
dental do Mediterrâneo, por meio
protestam
da base naval de Tartus, o segundo
contra a
maior porto do país. A substituição
fraude nas
da ditadura síria por um governo
eleições que
aliado da Casa Branca que fechasse a
conduziram
base russa de Tartus, ou mesmo que
Vladimir
restringisse a liberdade de movimenPutin à
to da armada russa é uma hipótese
presidência
intolerável para os militares russos.
da Rússia
Putin não pode sequer considerar
essa possibilidade.
2012 ABRIL
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
10
Nelson Bacic Olic
Da Redação de Mundo
A Sibéria e o futuro do
“novo Norte”
Sibéria
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OCEANO GLACIAL ÁRTICO
Rio K
Parte europeia
da Rússia
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PACÍFICO
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a
Kranoiarsk
Jazimentos
de petróleo
Jazimentos
“gigantes”
de gás
olima
Dudinka Norilsk
Rio Ienissei
ssim como acontece com os brasileiros em relação à Amazônia, a Sibéria
ocupa um lugar especial no imaginário
e nas representações russas. Desmesuradamente vasta, praticamente deserta de
homens, foi durante muito tempo – e
aí está uma diferença com a Amazônia
– uma região de exílio e deportação.
Mas, como a Amazônia, a Sibéria é vista
como uma espécie de Eldorado: a fonte
de inesgotáveis riquezas naturais.
Em sua concepção geográfica mais
ampla, a Sibéria se estende dos Montes
Urais até a orla do Pacífico, numa extensão pouco superior a 10 milhões de km2,
bem mais que a totalidade do território
brasileiro, quase 60% da superfície da
Rússia. O governo russo, no entanto, define o território siberiano de forma mais
restrita, excluindo o Extremo Oriente
russo, conjunto de áreas localizadas junto ao litoral do Pacífico.
Parte considerável da Sibéria está localizada ao norte do Círculo Polar Ártico. O efetivo processo de ocupação e
valorização do território siberiano, uma
epopeia deflagrada por aventureiros, exploradores e comerciantes russos, teve
início no século XVI e estendeu-se até
o final do século XIX. Antes da chegada dos russos, a região era ocupada
por dezenas de grupos étnicos, ali estabelecidos desde tempos imemoriais.
A incorporação, quase sempre forçada
desses grupos ao Império Russo explica,
em grande medida, a diversidade étnica
da população da Rússia atual, onde são
reconhecidas mais de 120 etnias.
Vivem na Sibéria cerca de 15 milhões de pessoas, uma população que
cresceu lentamente dadas as condições
naturais adversas. Grande parte dessa
população se concentra nas porções sul
e oeste da região, em especial em núcleos urbanos como Novosibirsk, Omsk e
Krasnoiarsk.
Durante a “era soviética”, especialmente no período de Stalin (1922-1953),
áreas da região foram usadas para “abri-
Rio Obi
A
A Sibéria, seus grandes rios e recursos
Grandes
jazidas de gás
Rios
navegáveis
com utilização
hidrelétrica
Polo minerador
Lago
Baical
MONGÓLIA
Novas zonas de
prospecção de
hidrocarbonetos
CHINA
550 km
Cidades
principais
FONTE: OLIC, Nelson Bacic. Geopolítica dos Oceanos, Mares e Rios. São Paulo: Moderna, 2011, p.10.
gar” dissidentes do regime, que ali seriam
“reeducados” nos ideais socialistas. Os
campos de trabalho forçado siberianos
são o tema de um livro célebre, O arquipélago Gulag, do ex-prisioneiro e escritor
russo Alexander Soljenitsin. “Gulag” é o
acrônimo, em russo, de Administração
Central dos Campos e Colônias de Trabalho Corretivo, a agência estatal responsável pelo sistema prisional.
A principal riqueza da Sibéria é seu
rico subsolo, onde há abundância de
carvão, petróleo, gás natural e minerais
variados, como ouro, ferro e níquel. Na
superfície, outra riqueza inestimável é
formada pelas imensas florestas de taiga.
A exploração de minérios, combustíveis
e madeira estimulou o crescimento de
atividades industriais a partir da segunda
metade do século XX. A energia para as
atividades econômicas foi garantida com
a construção de importantes hidrelétricas
nos rios das principais bacias da região.
Recentemente, a novidade que, uma vez
mais, revoluciona a Sibéria são os acordos
firmados com a China para a exploração
e utilização dos recursos minerais.
Juntamente com as ferrovias Transiberiana e a Baical-Amur-Magistral (BAM),
os rios são verdadeiras espinhas dorsais da
Sibéria. Os três grandes rios – Obi, Ienissei e Lena – possuem várias características
comuns: cruzam quase exclusivamente o
território da Rússia, fluem no sentido geral
sul-norte e deságuam no Oceano Ártico.
Além disso, percorrem trajetos superiores
a quatro mil quilômetros, condição que
os coloca entre os dez rios mais extensos
do mundo. A superfície coberta por cada
uma dessas três bacias e o volume d’água
de seus rios as classificam também entre as
dez maiores do mundo.
Por conta do sentido de seu escoamento e de sua grande extensão, os três
rios atravessam domínios climáticos que
vão do temperado continental ao polar,
cortando distintos ecossistemas – estepes, florestas de coníferas, taiga e tundra
– antes de desaguarem no Ártico. Eles
são alimentados pelas águas da fusão
das neves do alto vale e por chuvas que
ocorrem na primavera e verão. O degelo dos rios começa antes no alto vale, ao
sul, e um pouco mais tarde à jusante, ao
norte. O rito desigual de degelo provoca
grandes inundações no baixo vale, onde
o gelo remanescente represa o escoamento das águas.
De maneira geral, os rios siberianos
desempenharam papel crucial no processo de ocupação e valorização econômica
do espaço regional e na vida das populações ribeirinhas. No presente, como no
passado, eles representam, em muitos casos, as únicas vias de circulação de pessoas e mercadorias. Também figuram como
fontes cruciais de geração de energia
elétrica e seus cursos são pontuados por
usinas hidrelétricas de grande porte.
Os três rios são navegáveis e atravessam áreas de expressiva exploração
mineral e de madeiras. Por isso, instalaram-se alguns pequenos portos nas
proximidades ou na própria foz dos
rios: Salekand (rio Obi), Norilsk-Dudinka e Dickson (rio Ienissei), Tiksi
(rio Lena). Tais portos desempenham
uma dupla função. Além do escoamento de minérios, combustíveis e madeira,
servem como demonstração geopolítica
da presença da Marinha russa na região
do Ártico (veja o mapa).
As principais cidades siberianas estão localizadas no sul da região, especialmente junto ao alto vale dos rios e
no entroncamento dos cursos fluviais
com as vias de comunicação terrestre,
em particular a Ferrovia Transiberiana.
Nessa situação encontram-se as cidades
de Novosibirsk, Omsk, Krasnoiarsk,
Tomsk e Irkutsk. O primeiro desses núcleos urbanos é a mais populosa cidade
da Sibéria (1,4 milhão) e uma das mais
populosas da Rússia.
O geógrafo Laurence C. Smith faz,
num livro recente, algumas instigantes
sugestões sobre o impacto das mudanças climáticas globais e locais sobre a
dinâmica demográfica de cidades situadas nas proximidades do Círculo Polar Ártico. Segundo ele, a tendência à
amenização das temperaturas das faixas
árticas e subárticas funciona como fator
favorável à expansão populacional de
pequenos núcleos urbanos do cinturão
que denomina “novo Norte”: o Alasca,
o Canadá setentrional, a Península Escandinava, a Groenlândia e, é claro, a
Sibéria. As suas provas? As cidades siberianas de Noyabrsk e Novy Urengoy,
que não existiam até o início da década
de 1980, mas hoje, sob o influxo da exploração de hidrocarbonetos, têm mais
de 100 mil habitantes.
ABRIL 2012
11
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
brasil
Belo Monte, uma história em dois tempos
O
Áthila Kzam
Especial para Mundo
O projeto da usina no rio Xingu nasceu durante a ditadura militar, mas foi revisto sob
o regime democrático. Enquanto se iniciam as obras, desenvolve-se uma polêmica sobre
economia, sociedade e meio ambiente
© Antônio Cruz/Abr
último tiro na guerra da licença ambiental foi disparado em junho do ano passado, quando o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu a licença de instalação das obras
de infraestrutura da usina hidrelétrica de Belo Monte
no rio Xingu, no Pará. O ato reacendeu o debate sobre
o aproveitamento do potencial hidrelétrico dos rios da
bacia do Amazonas.
A discussão em torno do aproveitamento para geração de energia elétrica a partir do Xingu é antigo. Remonta ao ciclo da ditadura militar, na década de 1970,
quando a estatal Eletronorte realizou os primeiros estuEm Brasília, representantes dos povos
dos sobre a viabilidade técnica do empreendimento. Há
originários protestam contra a construção da
mais de duas décadas, em 1989, durante o I Encontro
usina Belo Monte
dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira (PA), foram debatidos os possíveis impactos sociais, econômicos cular, figura como um verdadeiro desastre ambiental,
e ambientais da usina. Na época, previa-se a inundação social e técnico (veja o mapa).
de uma área superior a 1,2 mil km2 , que provocaria o
A usina desastrosa foi planejada para suprir as necesremanejamento de vários grupos indígenas.
sidades de energia de Manaus, que se ampliavam com o
A ditadura militar estava encerrada e o projeto da usina crescimento das atividades da Zona Franca, implantada
teria que passar pelo crivo da opinião pública. Nos anos em 1975. Balbina inundou uma área de mais de 2 mil
seguintes, uma intensa batalha judicial foi travada entre o km2 de floresta nativa. A extensa inundação produziu
Ministério Público, o Ibama e os índios. Nesse percurso, um reservatório de águas ácidas, reduziu a biodiversidao projeto sofreu uma série de modificações até chegar ao de e determinou a remoção compulsória dos índios da
contorno atual, que prevê um reservatório menor, de 516 tribo waimiri-atroari. Toda a destruição destinava-se a
km2 (equivalente ao território da cidade de Curitiba), para gerar menos de 300 megawatts!
produzir 11.233 megawatts. Belo Monte será a maior usina
O exemplo negativo de Balbina sempre é destacado
hidrelétrica brasileira, atrás apenas de Itaipu.
A usina do Xingu inscreve-se numa moldura mais
ampla. Quase dois terços do potencial hidrelétrico
Usinas Hidrelétricas na Amazônia
total do país está localizado na Amazônia, especialmente nos rios Araguaia, Tocantins, Xingu, Madeira
e Tapajós. As grandes usinas na região começaram
COARACY NUNES
OCEANO
Ar
ag
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a ser implantadas a partir da década de 1970, sob o
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ATLÂNTICO
BALBINA
impulso de dois fatores entrelaçados: as novas necesCURUÁ-UNA
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TUCURUÍ
Solimões
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sidades geradas pela revolução tecno-científica-inforBELO MONTE
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macional e a crise do petróleo, que obrigou o Brasil a
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M
diversificar sua matriz elétrica em função da escalada
SAMUEL
do preço do barril do “ouro negro”.
JIRAU E
Durante o ciclo militar, foram desenvolvidos
SANTO ANTÔNIO
na Amazônia grandes projetos de exploração miUsinas instaladas
neral e beneficiamento de matérias-primas, que
requerem vastas quantidades de energia. Nos arProjetos
redores de Belém implantou-se o polos minero- FONTE: FERREIRA, Graça M. L. Atlas geográfico: espaço mundial. São Paulo, Moderna, 2007, p 17.
metalúrgico de Barcarena (Albrás e Alunorte).
Em São Luís, no Maranhão, instalou-se o polo de
Vazão média do Rio Xingu (1969-2000)
Alumar. A necessidade de melhorar a infraestrutura,
(Mil m3 por segundo)
a fim de atrair investimentos produtivos, foi respondida pela construção de usinas hidrelétricas como as
30
de Tucuruí, no rio Tocantins, no Pará, e de Balbina,
20
no rio Uatumã, no Amazonas. Num contexto marcado
10
pela centralização política, as decisões subordinavam0
se, exclusivamente, aos imperativos econômicos. Os
J F M A M J
J A S O N D
MESES
empreendimentos hidrelétricos deixaram um rastro de
amplos impactos socioambientais. Balbina, em partiAra
gua
ia
Tocantins
Ja
ma
ri
quando se discute um novo empreendimento de geração
de energia elétrica na Amazônia. Contudo, joga a favor
de Belo Monte o fato de que a área do reservatório já
fica temporariamente inundada durante a cheia do rio.
Conta também um cálculo econômico bastante conhecido: os baixos custos de operação de usinas hidrelétricas, quando comparados aos de centrais termelétricas ou
nucleares. Por fim, nenhuma comunidade indígena será
remanejada pelo projeto atual.
Mas nem tudo são rosas. Há a questão do alto custo
de implantação da usina, um gasto de capital que poderia ser utilizado tanto para a revitalização de usinas
já implantadas como para o desenvolvimento de fontes
alternativas. Os críticos apontam também para o tema
climático e hidrológico. O rio Xingu apresenta grande
diferença no seu volume d’água ao longo do ano, em
função do regime hidrológico do Brasil Central, onde
se encontram suas nascentes. No período da vazante, a
água disponível possibilitará uma energia firme de menos de 50% da capacidade total, fazendo com que a
usina não opere com potência máxima durante grande
parte do ano (veja o gráfico).
A polêmico tem um componente regional. A maior
parte da energia gerada em Belo Monte será integrada
ao Sistema Elétrico Brasileiro, através de extensas linhas
de transmissão. Dessa forma, o “grosso” da energia será
consumida no Centro-Sul do país, ficando uma parcela
menor na Amazônia, para satisfazer principalmente os
interesses das indústrias eletrointensivas. Finalmente, há as consequências socioambientais, como
o crescimento urbano desordenado com os recorrentes problemas sociais que já se verificam. Na
cidade de Altamira, a favelização e a especulação
imobiliária avançam em ritmo acelerado, aliadas à
intensificação do desmatamento.
No ciclo militar, a visão norteadora das políticas territoriais para a Amazônia orientava-se pela
ilusão do “Eldorado”: a imagem de um espaço no
qual os recursos naturais eram praticamente inesgotáveis. Hoje, o argumento “desenvolvimentista”
N
enfatiza o crescimento econômico. Segundo o Ministério do Planejamento, uma expansão anual do
PIB em torno de 4% exige a ampliação da oferta de
energia em no mínimo 1,5 mil megawatts a cada
ano. Contudo, o “desenvolvimentismo” não pode
ignorar a questão da sustentabilidade. Os projetos
devem ser economicamente viáveis mas, ao mesmo tempo, precisam levar em consideração a utilização racional
dos recursos e seus impactos sobre a qualidade de vida
das populações afetadas.
590 km
Áthila Kzam, licenciado em Geografia pela
Universidade Federal do Pará e professor do Ensino
Médio e cursos pré-vestibulares de Belém, é coautor
do livro A Amazônia decifrada – Para quem quer ser
amazônida
2012 ABRIL
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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