Abril - Colégio Dinâmico
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Abril - Colégio Dinâmico
■ ANO 20 ■ tiragem: T ABRIL/2012 ■ 20 000 exemplares Um novo desenho político no Grande Oriente Médio udo se move no Oriente Médio e na África do Norte. Mais de um ano após a deflagração da Primavera Árabe, a ordem antiga desmorona em todos os lugares, sob ritmos e formas diferentes. A crise sangrenta, terminal, da ditadura síria de Bashar al-Assad transformou-se no foco principal das atenções. Contudo, uma força política em ascensão evidencia linhas evolutivas no novo desenho do Grande Oriente Médio. A Irmandade Muçulmana, corrente sunita fundamentalista, venceu as eleições parlamentares no Egito e na Tunísia. Tentáculos da organização internacional nucleada no Egito operam em diversos países – inclusive na sublevação síria. A ascensão da Irmandade é Em Idlib, na Síria, manifestantes fazem ato pró-Assad, que se mantém no acompanhada por profecias sobre a instaurapoder graças ao complexo xadrez geopolítico regional ção de um “inverno islâmico”, no lugar da primavera democrática. O quadro, entretanto, não tem contornos tão simples como imaginam os profetas. Circulam rumores sobre a iminência de um ataque israelense contra as instalações nucleares do Irã. O regime dos aiatolás, encurralado pelas sanções internacionais, não pode mais contar com a tradicional aliança com a Síria e teme uma retomada das manifestações pela democracia. Um hipotético ataque de Israel provavelmente seria insuficiente para deter o programa nuclear iraniano. Mas, quase certamente, forneceria aos aiatolás as ferramentas para restaurar uma coesão interna perdida. Vejas as matérias nas págs. 6 a 9 Semana de Arte Moderna Putin 2, o começo do fim N inguém se surpreendeu: Vladimir Putin triunfou nas eleições russas e retoma a cadeira presidencial que ocupou entre 2000 e 2008, antes de transferí-la para Dmitri Medvedev. No primeiro ciclo, Putin engendrou um novo autoritarismo grão-russo. No segundo, conhecerá o declínio do modelo político e econômico que implantou. O “putinismo” é o regime de uma burocracia estatal oriunda das agências de inteligência da era soviética. Seu sucesso, após o caos da transição da economia estatal para um capitalismo de máfias, sob o governo de Boris Ieltsin, decorreu da elevação global dos preços do petróleo e do gás natural. No novo ciclo, Putin é confrontado por demandas pela democracia e por desafios geopolíticos e econômicos. Pág. 10 1922 © Coleção Museo de Arte Latinoamericana de Buenos Aires ● Editorial – Aziz Ab’Saber morreu em março. O panorama intelectual brasileiro ficou mais pobre. Pág. 3 ● Artemio, o último dos veteranos das guerrilhas latino-americanas, reconhece que “a luta armada acabou”. Pág. 3 ● Operações Especiais – eis o novo norte da estratégia militar dos Estados Unidos. Pág. 4 ● Diário de Viagem – No mundo dos glaciares do Alasca, entre florestas e avalanches. Pág. 5 ● O Meio e o Homem – A Sibéria está menos fria. As cidades árticas de seus grandes rios conhecem uma escalada econômica e demográfica. Pág. 11 ● Belo Monte não é apenas uma usina hidrelétrica grandiosa, mas também a fonte de uma polêmica econômica, regional e socioambiental. Pág. 12 ■ © Bulent Kilic/AFP E mais... Nº 2 17º Concurso Nacional de Redação de Mundo e H&C – 2012 Escreva e se inscreva!!! Regulamento ■ Quem poderá participar? Todos os alunos do Ensino Médio das escolas assinantes de Mundo. ■ Qual é a forma de participação? Cada escola poderá enviar até cinco redações. Tomamos a liberdade de sugerir que as escolas realizem um concurso interno de seleção. Todos os leitores de Mundo podem participar, mas apenas mediante a intermediação das escolas. Por razões pedagógicas, não aceitaremos redações enviadas sem a anuência da escola. ■ Qual é o prazo para o envio das redações? Serão aceitas redações recebidas na sede da Pangea, em São Paulo (nosso endereço pode ser encontrado nesta página, no Expediente) impreterivelmente até 6 de julho de 2012. ■ Quais devem ser as características das redações? As redações devem ter no máximo 40 linhas e, obrigatoriamente, conter título. Cada escola receberá, durante o mês de maio, cinco folhas pautadas e numeradas para a transcrição dos textos selecionados. As folhas preenchidas deverão ser remetidas à sede da Pangea. Este formato é obrigatório, inclusive para garantir o sigilo: a Comissão Julgadora não terá acesso ao nome dos autores ou das respectivas escolas. ■ Quem julgará os trabalhos? As redações serão avaliadas por uma Comissão Julgadora integrada por professores de Comunicação e Expressão de reconhecido saber e experiência no Ensino Médio. ■ As redações serão publicadas? A redação vencedora será publicada e comentada na edição de outubro de 2012 de Mundo. Outras redações poderão, eventualmente, ser publicadas. Importante: Os autores, ao participarem do concurso, concedem a Mundo o direito de publicar suas redações, sem remuneração autoral, no próprio boletim ou sob outra forma. As redações enviadas não serão devolvidas. ■ Haverá prêmios para os melhores trabalhos? Sim. Os autores das dez melhores redações serão premiados por Pangea e empresas patrocinadoras do concurso. O 1º colocado receberá um aparelho de som no valor de R$ 800. Do 2º ao 5º, todos receberão MP4 no valor de R$ 200. Do 6º ao 10º colocado, serão ofertados prêmios em livros. Mais informações: Veja “O tema da redação” na pág. 2 do Boletim Mundo nº 1 – março/2012 E X P E D I E N T E PANGEA – Edição e Comercialização de Material Didático LTDA. Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic (Cartografia) Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779) Revisão: Jaqueline Rezende Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise Endereço: Rua Romeu Ferro, 501 São Paulo – SP CEP 05591-000 Fones: (11) 3726.4069 / 2506.4332 Fax: (11) 3726.4069 E-mail: [email protected] Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser obtidos no seguinte endereço, em São Paulo: • Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900 Fone: (11) 3283.0340 www.clubemundo.com.br Infelizmente não foi possível localizar os autores de todas as imagens utilizadas nesta edição. Teremos prazer em creditar os fotógrafos, caso se manifestem. 2012 ABRIL M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A E D I T O R I A L A ziz A b’Saber (1924-2012) “Ele tomou café, depois sentou na cama e deu um suspiro. Morreu em seguida”, relatou Nídia Pontuschka, irmã de A ziz Nacib A b’Saber, uma das maiores referências no pensamento geográfico brasileiro, falecido na manhã de 16 de março. Aos 87 anos, A b’Saber continuava escrevendo e debatendo. O país fica mais pobre sem a sua presença. O jovem A b’Saber ingressou no curso de geografia e história da USP em 1940. É de um tempo diferente, anterior à estrita definição das especialidades na Geografia. Seu universo era a Geomorfologia, mas ele transitava por cima das fronteiras da ciência, em busca das conexões entre a esfera da gênese e das formas do relevo e as do meio ambiente e da organização dos espaços regionais. Daí o interesse geral dos textos que produzia : não é preciso ser geomorfó- fisticada classificação atual , proposta por logo, nem mesmo geógrafo, para entender seus en- Jur andyr Ross . Se saios, uma fonte inesgotável de encantamento. organização do espaço amazônico promovi - Em 1957, A b’Saber ajudava o renomado geóTricart numa investigação de campo nas áreas de Jundiaí e C ampinas. O francês registrou a ocorrência de linhas de pedra, que aparecem tipicamente no Nordeste brasileiro. O lugar onde estavam poderia ter sido, no passado, um domínio com caatingas ou cerrado. M ais tarde, junto com Paulo Vanzolini, A b’Saber descobriu linhas de pedra na A mazônia. Nascia a teoria dos refúgios, uma narrativa sobre o passado da floresta amazônica, fragmentada em núcleos dispersos rodeados por cerrados na última era glacial . É de A b’Saber o quadro ger al de classificação do relevo br asileiro, argamassa da so - da a partir da ditadur a militar , deve ler o grafo francês Jean você quer entender a re - A b’Saber ( e também, sob outr a Bertha Becker). A lguns fanáticos pela especialização científica usam a palavr a “ ultr apassado” par a fazer referência aos voos do geógr afo. E le se envolveu em polêmicas diversas , sobre C ar ajás , hidrelé tricas na A mazônia , os projetos do M inis tério do M eio A mbiente de M arina Silva , o C ódigo Florestal – e , nesse percurso, deixou desafetos . Sempre aceitou pagar o preço que escreveu perspectiva , de explodir a caixinha intelectual na qual vivem, sem brilho mas confortavelmente , tantos de nossos acadêmicos . A rtemio e o outono das guerrilhas om a morte de Alfonso Cano, comandante das Farcs, a guerrilha esquerdista da Colômbia, Artemio tornou-se o último de uma geração de líderes guerrilheiros da América Latina. Foi, afinal, capturado em fevereiro, significando o fim da primeira geração de guerrilheiros latino-americanos. Chefiava o que resta do Sendero Luminoso do Peru. Artemio era o nome de guerra de Euleterio Flores Hala e só pouco antes da captura permitiu que seu rosto fosse fotografado, numa rara entrevista coletiva concedida na selva peruana. Era o único sobrevivente do comitê central de uma guerrilha de inspiração maoísta e também um dos mais procurados pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos. Ganharia US$ 5 milhões quem ajudasse a localizá-lo. O criador do Sendero Luminoso, Abimael Guzman, foi preso em 1992 e a guerrilha entrou em declínio. Sendero Luminoso, ou “caminho iluminado”, era por onde o socialismo chegaria ao Peru, segundo José Carlos Mariátegui, o intelectual que, em 1928, fundou o Partido Comunista peruano. Artemio convocou uma entrevista coletiva com jornalistas levados ao seu território, para propor ao novo presidente do Peru, Ollanta Humala, uma trégua depois de 30 anos de ações armadas, e negociações envolvendo um cessar-fogo e anistia ampla. O guerrilheiro declarou que se dispunha a negociar com Ollanta com agenda © Jaime Razuri/AFP C Newton Carlos Da Equipe de Colaboradores Lima, 1992: um ataque do grupo Sendero Luminoso reduziu a escombros a embaixada da Bolívia em aberto. Jornalistas foram levados até a selva para ouvi-lo dizer, entre outras coisas, com seu rosto afinal revelado, que “a luta armada acabou”, pois “a realidade hoje é outra” e o certo seria “participar do processo político”. Se uma trégua fosse adotada, prometia manter somente um pequeno grupo com armas “para o caso de sermos atacados”. Soube-se, depois da entrevista, que o novo presidente do Peru estaria disposto a negociar. Isto não foi dito claramente, porque dizê-lo significaria o reconhecimento da guerrilha como um ator no xadrez político peruano. Além disso, segundo Artemio, o sangue derramado foi necessário “para irrigar a revolução”. Lamentava, no entanto, as mortes de jovens soldados, mas com a ressalva de que eles “defendiam interesses dos capitalistas e burgueses”. Calcula-se que morreram 70 mil peruanos, de um lado e de outro ou mesmo de nenhum lado, desde que o Sendero Luminoso começou a luta armada, em 1980. É um passivo com o qual Artemio teria de lidar. Já o presidente Humala terá de lidar com o que resta do Sendero, com o cuidado de que seus gestos não possam ser interpretados como “transigência” por parte de uma dura oposição de centro-direita que tenta pintá-lo como parte do chavismo e, com isso, isolá-lo politicamente na América Latina. É a razão pela qual circulam suposições – e não manifestações diretas – sobre negociações com o grupo armado. O Peru já teve uma guerrilha urbana, que se dissolveu numa espiral de violência. Foi o Movimento Revolucionário Tupac Amaru. Tinha poucos recursos, comparados aos do Sendero. O Sendero se “mimetiza e se disfarça, enquanto o Tupac Amaru, nome de um inca que se levantou contra os colonizadores espanhóis, reivindicava ações e assassinatos cruéis”, disse um estudioso da guerrilha peruana. “Assim morrem os traidores”, foi o cartaz deixado no pescoço de uma das suas vítimas. O Tupac Amaru recordou os velhos tempos do “foquismo” de Che Guevara, que pareciam obsoletos. Já o Sendero asssumiu recomendações maoístas: a guerrilha se move no interior de um povo como os peixes na água, segundo o lema de Mao Tsé-Tung. Nesse espiral de violência se insere o drama das esquerdas do Peru voltadas para a ação política. O próprio Mariátegui em nenhum momento pregou violência. Além do Partido Comunista, fundou a Confederação dos Trabalhadores do Peru e publicou ensaios sobre a realidade peruana na sua revista Amauta. Adotou o marxismo como sacerdócio. Amauta signfica “mestre” em quéchua, dialeto incaico. Foi preso em 1927, três anos antes de morrer. Antes teve uma perna amputada e uma vida intensa, de lutas em nome do proletariado em organizações sindicais. Casou-se com uma italiana, e seu mandamento, de que o Peru iria para o socialismo num “caminho iluminado”, percorreu a América Latina. Num dado momento, com o golpe de 1968, os militares peruanos deram a entender que eles, e não guerrilhas e partidos políticos, tocariam a caminhada imaginada por Mariátegui. Tinham sufocado guerrilheiros em La Concepción e aprendido que o mais eficaz instrumento de promoção social são reformas e não fuzis. Mas acabaram deixando o poder desmoralizados e de cabeça baixa. Formou-se uma esquerda unificada, a Esquerda Unida, que conseguiu avançar no campo político. Chegou a conseguir um terço dos votos em eleições municipais, mas terminou não indo adiante, vítima de comoções internas, um pecado comum das esquerdas latino-americanas. ABRIL 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O Estados unidos Imaginando a guerra do século XXI s traumas do Afeganistão e do Iraque, onde morreram, só no Iraque, mais de cinco mil soldados americanos, abrem espaço a um tipo de guerra que até agora só tem acontecido no que especialistas chamam de “cantos obscuros da diplomacia dos Estados Unidos”. Seria, a rigor, um tipo de guerra alternativo aos embates convencionais, feitos com emprego maciço de tropas, de armas e de poder de fogo. Seu núcleo central já existe: é o Comando de Operações Especiais (USSOCOM, na sigla em inglês), cujas ações mais recentes foram o assassinato de Bin Laden, nunca encontrado pelas forças de invasão do Afeganistão, e um resgate de reféns na Somália. O chefe das Operações Especiais, almirante William McRaven, fala em novo tipo de guerra e se empenha em conseguir um modelo de autoridade que permita que suas unidades de rápido deslocamento atuem ao largo do mundo, de modo independente, onde os serviços de inteligência indiquem a necessidade de intervenção militar. Não mais com os limites estabelecidos pelos canais de comando do Pentágono, considerados ultrapassados tendo em vista, inclusive, pressões emanadas do próprio establishment militar em favor de emprego mais frequente, sob nova perspectiva, das chamadas operações especiais. O objetivo é, também, ampliar sua presença em regiões nas quais praticamente não operaram nos últimos dez anos, especialmente na África e América Latina. Não será tarefa fácil, em razão de dificuldades recentes dos Estados Unidos no campo da “diplomacia militar”. O Pentágono quis criar um comando africano e não conseguiu. Nenhum país da África aceitou abrigá-lo. A Junta Interamericana de Defesa, da Organização dos Estados Americanos (OEA), com incidência nas Américas e predominância americana, esvaziou-se quase por completo. Não se fala mais em Doutrina Monroe. O ex-presidente Bill Clinton liquidou-a com mensagem ao Congresso dizendo que a América Latina não estava mais sob ameaça de intervenção externa. O esvaziamento da Junta Interamericana de Defesa exprime um grau importante de rejeição hemisférica à presença militar dos Estados Unidos, que já perderam a base que tinham no Equador. Na América Latina, hoje em dia, o Pentágono conta apenas com assessores militares visíveis na Colômbia e com a missão específica de ajudar na erradicação do comércio de coca. A guerrilha colombiana sobrevivente e encorpada, as Farcs, tem na coca um dos seus instrumentos de sobrevivência. Há suspeitas bem fundadas de que assessores militares dos Estados Unidos têm um grau importante de presença também na luta contra as Farcs – e contra o Exército de Libertação Nacional colombiano, menos letal. Trata-se de presença informal, encoberta, e por isso é difícil mensurar suas dimensões. Já o assassinato de Bin Laden, feito por um comando do almirante McRaven e sem o conhecimento prévio do governo do Paquistão, representou um sucesso político maiúsculo O debate se concentra na estrutura e nas linhas de comando das Operações Especiais. Enquanto cresce a aversão a guerras como as do Iraque e do Afeganistão, a Casa Branca aperfeiçoa uma nova fórmula de ação militar © US Air Force O Newton Carlos Da Equipe de Colaboradores para Barack Obama, mas criou dificuldades políticas e diplomáticas na Ásia Central. Isto daria razão a diplomatas inquietos, o que pode dificultar os planos de McRaven de maior autonomia e mais emprego do que é chamado de “novo formato” das operações especiais. Obama e a liderança do Pentágono manifestam reservadamente, em grau cada vez maior, sua preferência pelo emprego de forças de operações especiais, ou de elite. Mas enfrentam resistências dos comandos militares regionais e também do corpo diplomático do Departamento de Estado. Os comandos regionais temem a erosão de suas autoridades e embaixadores em áreas de crises manifestam receios de que tais ações podem ser encaradas como atentados à soberania dos países onde são executadas. Caso, por exemplo, dos amargos ressentimentos do governo e dos militares paquistaneses com a caçada a Bin Laden. A Casa Branca, no entanto, junto com chefes militares, senadores e deputados, faz campanha velada em favor dos planos de McRaven. É quase certo que as operações especiais terão seu orçamento e pessoal aumentados, em contraste com os cortes nos gastos gerais de defesa dos Estados Unidos. O presidente Obama e a secretária de Estado Hillary Clinton, bem como seus assessores diretos, recusam-se a comentar publicamente o projeto de McRaven. De acordo com analistas, ele “coloca em pauta um novo modelo de guerra numa época de redução do orçamento militar”. A ideia de redução do emprego de tropas está em compasso com declínio do “apetite popular” por guerras e ocupações de grande porte, como se vê no caso do Ira- Os drones, aviões não pilotados de reconhecimento e ataque, são símbolo da “nova guerra”. Mas também são uma das principais causas da crescente resistência da população afegã aos Estados Unidos, pois seus bambardeios causam, com frequência, vítimas entre crianças e civis que. De acordo com o novo conceito, um contingente significativo de tropas, projeção inicial de 12 mil homens, será colocado à disposição das operações especiais para ações em qualquer lugar do planeta. Há limites que constam do próprio projeto. As unidades especiais só seriam empregadas em “missões específicas” e a mando de comandantes regionais que sejam generais de quatro estrelas. “Não se trata de travar uma guerra global contra o terrorismo”, ressalva o próprio McRaven, distinguindo-se do discurso do governo de George W. Bush. Na última década, na moldura da “guerra ao terror”, as forças especiais dos Estados Unidos se concentraram no Grande Oriente Médio e no sudeste da Ásia. O projeto, como se vê, é espalhá-las, sem o gigantismo dos últimos tempos, que se revelou inconveniente e de mobilidade pesada. O Comando de Operações Especiais conta, no momento, com nada menos que 66 mil homens e orçamento de US$ 10 bilhões. Mas executa ações concentradas, quatro quintos delas no Grande Oriente Médio. As regras em vigor subordinam estritamente as forças especiais à cadeia de comando do Pentágono. McRaven tenta mudar esse cenário, obtendo permissão para executar operações com “rápida mobilidade e de abrangência universal”. De acordo com um ex-oficial que atuou ao seu lado ele procura desenvolver “agilidade global” com unidades leves e comando próprios. “Se sua rede de ações não for elástica, não acompanhará a agilidade do inimigo”, argumenta McRaven em defesa de seu projeto. 2012 ABRIL M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A Regina Ayres Especial para Mundo A lasca, a terra do gelo, das o verão boreal passado, estive no Alasca. Voei de São Paulo até Vancouver, no Canadá, onde fiquei uma semana. Depois, Anchorage, ponto de partida de um cruzeiro pelo litoral do Alasca. Foram sete dias de deslumbramento com paisagens fantásticas. De ônibus, fomos até o Porto de Whittier, onde embarcamos no navio que seria nossa morada por sete dias. No traslado já nos deparamos com paisagens diferentes: grandes vertentes, árvores petrificadas, lagos congelados e neve, apesar de estarmos no verão. Aquela ideia de que o Alasca é frio é verdade. Frio e úmido. Mas com paisagens lindas! Em certo momento, o ônibus parou no meio da estradinha – susto geral. Parou pois teríamos que atravessar o Anton Anderson Memorial Tunnel, de aproximadamente quatro quilômetros. O túnel serve tanto à rodovia quanto à ferrovia. Passa apenas um veículo por vez. Sabemos que é seguro, mas a sensação de que de repente surgirá uma locomotiva atormenta toda a travessia. Nas primeiras horas de navegação planejamos – e compramos – passeios em cada uma das cidades em que aportaríamos. Não aportamos nos dois primeiros dias de navegação. Tomamos café da manhã avistando grupos de baleias e almoçamos tendo como paisagens o Hubbard Glacier, no primeiro dia, e o Glacier Bay, no segundo. No decorrer das manhãs avistamos pequenos icebergs. Alguns serviam como plataformas para aves que descansavam. A temperatura caía muito, rompendo a barreira do zero grau. Navegávamos tendo sempre “terra à vista”: montanhas com cumes brancos e vertentes verdejantes que acabavam no mar. Avistávamos encostas acometidas por avalanches e imaginávamos a força das águas de degelo. O tempo, úmido e chuvoso, impediu boas fotos, mas nem o frio foi capaz de diminuir nosso encantamento com as paisagens. Estar diante daquela imensa massa de gelo, formada pelo derretimento, no verão, de uma quantidade de neve inferior àquela que caiu no inverno, é de um deslumbramento incrível. Tons de azul, estalos de gelo se partindo, reflexos de geleiras colossais em águas límpidas... Navegamos rumo a Skagway, quase na fronteira com o Canadá – uma cidade com cerca de 800 habitantes que convivem, durante o inverno, com temperaturas próximas a 40 °C negativos e ventos de 100 km/h. Não é à toa que Skagway quer dizer “terra do vento forte”. No inverno, as pesadas nevascas cobrem de branco todo o cenário. Na rodovia, para que os veículos possam identificar as margens do caminho, existem marcadores de neve, na forma de estacas, com altura de quatro metros. Brrrr, que frio! Percorremos, de ônibus, aproximadamente dez quilômetros dessa rodovia, subindo cerca de 1,2 mil metros. Conforme subíamos, diminuíam as temperaturas e intensificava-se, assustadoramente, o vento. A vegetação é um espelho dos climas: no nível do mar, árvores com 10 a 15 metros de altura; lá em cima, arbustos e gramíneas com alturas entre um e dois metros. Skagway já foi uma cidade bastante importante – nos tempos distantes da corrida do ouro. Mineiros lá chegavam e descobriam que deveriam ainda caminhar muitos quilômetros, em montanhas cobertas de neve, uma vez que não havia ouro nos arredores da cidade, mas apenas em território canadense. Lembrei-me do filme Em busca do ouro, de Charles Chaplin. Na cidade, cultua-se esse passado épico: museu, livros, um teatro interativo onde turistas pagam mico minerando em um galpão. A ferrovia, um feito considerável de Engenharia civil, facilitou o acesso à região aurífera, poupando muitas vidas. Fizemos um passeio de trem, em busca das paisagens e sensações daqueles aventureiros do passado. Hoje, em Skagway, uma “corrida do ouro” ainda acontece em cerca de três dezenas de lojas de joias. © Fotos: Regina Ayres N águas e das avalanches A rua Creek é o centro da memória histórica de Ketchikan, a mais antiga cidade do Alasca, envolta por uma paisagem gelada na maior parte do ano Mais uma noite de navegação e amanhecemos em Juneau, a capital do Alasca, com 30 mil habitantes, acessada apenas pelo mar ou pelo ar. Nas suas proximidades, encontra-se o glaciar Mendenhall, com 19 quilômetros de comprimento e 2,5 quilômetros de largura e uma face imponente, com mais de 30 metros de altura. No caminho ao Mendenhall, percorremos trilhas que atravessam córregos repletos de salmões e avistamos os mais variados pássaros. Naquele trajeto, a presença de ursos é comum – mas , felizmente, não nos deparamos com nenhum. De volta a Juneau, subimos de teleférico, a partir das docas, até o Monte Roberts, um dos picos que rodeiam a cidade. Passando acima de uma floresta boreal, chegamos a 1,8 mil metros de altura – vista incrível! No topo está o Centro de Natureza do Monte Roberts, um dos focos do culto americano à águia. Ali, formam-se filas para admirar e fotografar águias que vivem em cativeiro. Após uma outra noite de navegação, chegamos a Ketchikan, a mais antiga cidade do Alasca, autoproclamada a “capital mundial do salmão”. O marco de memória da cidade é a rua Creek, que margeia o Ketchikan Creek e abriga construções feitas sobre armações de madeira e estacas à beira d’água. Nos tempos da corrida do ouro, a Creek era zona de prostituição. Hoje, está pontilhada por finas butiques e galerias de arte. Ketchikan é uma cidade construída “sobre a água”, cercada por diques e apoiada em estacas. Reza a lenda que, por lá, não se mede a quantidade de chuva em polegadas, mas em pés. São quase 4 mil milímetros de chuva por ano, média muito superior à de quase toda a Amazônia. De Ketchikan, no mais incrível passeio da viagem, sobrevoamos uma geleira, por 30 minutos, de hidroavião. Bem perto do centro de Ketchican situase uma vila de indígenas da etnia tlingit, a Saxman Native Totem Village. Os índios chegam para as apresentações de dança tradicional em automóveis modernos, tagarelando ao celular, em jeans e camisetas, apetrechos e trajes de uma outra tradição. Regina Ayres é professora de Matemática no Colégio Rio Branco, em Campinas (SP) ABRIL 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O oriente médio Vocês não são uma sociedade beneficente, nem um partido político, nem uma organização local de fins limitados. Ao contrário, são uma nova alma no coração desta nação, para dar-lhe vida através do Corão (...). Quando lhes perguntarem para o que convocam, respondam que é para o Islã, a mensagem de M aomé, a religião que contém dentro de si governo, e tem como uma de suas principais obrigações a liberdade . Se lhes disserem que vocês são políticos, respondam que o Islã não admite tal distinção. (H assan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana em 1928) O EAN O OC ÂNTIC ATL MARROCOS n o norte da África e Orien te MAR NEGRO MAR CÁSPIO Mé © Fabio Rodrigues Pozzebom/Abr çu Mu nos lma dio TURQUIA TUNÍSIA ARGÉLIA MAR MEDITERRÂNEO LÍBIA SÍRIA IRAQUE EGITO AFEGANISTÃO IRÃ PAQUISTÃO ARÁBIA SAUDITA MA RV OMÃ ER ME LH O assan al-Banna nasceu em 1906, no delta do Nilo, num Egito governado pelos britânicos. Seu pai ensinava a jurispridência islâmica, segundo um rito conservador oriundo do século IX. Al-Banna ingressou numa ordem sufita, de interpretação literal do Corão, abriu um estabelecimento de reparos em gramofones e se envolveu nos protestos contra o poder colonial britânico. Aos 22 anos, fundou a Irmandade Muçulmana, que se transformaria na fonte principal da política islâmica no Egito. Morreu jovem, em 1949, assassinado por dois atiradores, quando deixava o local de um encontro com representantes do governo, que não apareceram. Meses antes, o primeiro-ministro Mahmoud Pasha fora assassinado por um jovem militante da Irmandade. Um dos últimos gestos de alBanna foi uma declaração de condenação do ato de terror que traçava uma fronteira moral intransponível separando o Islã do terrorismo. Hoje, passadas mais de seis décadas, a organização que ele criou emerge como a força política dominante da Primavera Árabe. O ditador egípcio Hosni Mubarak caiu em fevereiro do ano passado. As eleições para o novo Parlamento, que se estenderam por várias votações, entre dezembro e março, produziram uma maioria ligada à Irmandade. Na condição de sócios num poder transitório que ainda pertence ao Exército, os líderes islâmicos procuram um difícil equilíbrio entre a Junta Militar e as demandas revolucionárias que emanam da Praça Tahir (veja a matéria na pág. 9). O Egito é o núcleo irradiador do Islã da Fraternidade no mundo árabe. Na Tunísia, país pioneiro da Primavera Árabe, os candidatos inspirados pela organização egípcia também controlam o parlamento e apontaram o chefe de governo. No Marrocos, sob pressão das ruas, o rei Muhammad VI promoveu reformas e designou como primeiro-ministro o líder do Partido da Justiça e Desenvolvimento, corrente vinculada à Irmandade. Na Líbia, as milícias islâmicas que participaram da derrubada de Muammar Kadafi, hoje sob a influência predominante da organização egípcia, articulam-se para desempenhar um papel político decisivo. A “onda verde”, cor do Islã, não se circunscreve à África do Norte (veja o mapa). Na Jordânia, onde a monarquia também procura circundar a insatisfação popular por meio de reformas, a Frente © Citizenside/AFP H Primavera Á rabe ingress IÊMEN Países com mais de 90% de muçulmanos e grande maioria sunita Países entre 50% e 90% de muçulmanos, com importante minoria xiita Países muçulmanos com maioria de população xiita OCEANO ÍNDICO Em Homs, milhares pedem o fim da ditadura de Bashar al-Assad; a conjuntura na Síria coloca em jogo todos os interesses mobilizados pelo xadrez geopolítico regional Países de maioria muçulmana, com expressivas minorias (cristãs, alauítas e outras) País onde os muçulmanos são minoria (Israel) FONTE: El Atlas de las religiones (2009) e Almanaque Abril (2012) de Ação Islâmica, braço da Irmandade, funciona como partido de oposição legal e terá a oportunidade de chegar ao governo. Outros tentáculos operam como partidos moderados no Iraque, no Kuwait, no Bahrein e no Iêmen. A revolução na Síria, que desliza rumo à guerra civil, não é dirigida exclusivamente por lideranças ligadas à Irmandade, mas os islâmicos sunitas figuram como polo crucial do movimento. Um sinal óbvio da influência do Egito sobre o conflito sírio foi a recente ruptura do Hamas palestino com o regime de Bashar al-Assad, que perdeu sua capacidade de participar do jogo de xadrez na Palestina ocupada (veja a matéria na pág. 7). A velha ordem do Oriente Médio assentava-se sobre a exclusão da Irmandade. Ditaduras de diversas extrações, algumas alinhadas com os Estados Unidos, como a de Mubarak, outras antiamericanas, como a de Assad, erguiam as bandeiras esfarrapadas do nacionalismo e do panarabismo para rejeitar a participação dos islâmicos no jogo político. Não há uma nova ordem regional, mas um fluxo de mudanças imprevisíveis. Contudo, já se sabe que a mais antiga organização islâmica será uma força significativa nos sistemas políticos em construção. Em 1938, al-Banna dirigiu-se a uma plateia de militantes e simpatizantes reunida no Cairo para sugerir a substituição dos Estados desenhados pelas potências europeias por uma entidade política muçulmana unificada. “O Islã não reconhece fronteiras geográficas, nem distinções raciais ou de sangue, pois enxerga em todos os muçulmanos uma única comunidade (umma)”, declarou. A sua proposta era a restauração do califado islâmico, pela criação de um conselho internacional encarregado de nomear um novo califa – ou seja, um líder político e espiritual da umma. O califado desaparecera em 1919, com o colapso do Império TurcoOtomano. A reconstituição da unidade perdida parecia-lhe o caminho evolutivo natural e um resultado glorioso da luta contra os poderes coloniais. Aparentemente, a Primavera Árabe conferiu um novo sopro de vida ao sonho do fundador da Irmandade. Contudo, 2012 não é 1938: a história recusa-se a descrever círculos, retomando pontos de partida ultrapassados. Os Estados muçul2012 ABRIL M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A sa em nova etapa, à sombra do Islã Guerra civil na Síria implode a ordem regional A quilo que começou, há quinze meses, como um levante popular contra a ditadura síria de Bashar al-Assad já assume os contornos dramáticos de uma guerra civil. As estimativas de vítimas fatais giram ao redor de 8 mil. Aos poucos, lenta mas inexoravelmente, as imagens de manifestações populares contra o regime cedem lugar a notícias de massacres e enfrentamentos armados assimétricos. O regime do clã Assad, instalado em 1970, experimenta um outono sangrento, de duração incerta mas desenlace cada vez mais previsível: a Síria reinventada por Hafez alAssad atravessa sua etapa terminal. Junto com ela, desaparece a ordem geopolítica construída no Oriente Médio durante as décadas finais do século XX. Hafez al-Assad chegou ao poder no curso da ascensão regional do Partido Baath, uma corrente política pan-arabista com tentáculos mais poderosos, porém rivais, na Síria e no Iraque. O novo líder sírio apoiava-se na minoria pertencente à seita alauíta, tradicionalmente marginalizada num país de maioria sunita, e também na minoria cristã. No seu esquema de poder, o laicismo do Estado funcionou como redoma para a criação de uma nova classe média e de um oficialato militar extraídos das duas minorias. O Baath iraquiano, por outro lado, foi o veículo para a configuração do regime de Saddam Hussein. A ditadura iraquiana, assentada sobre clãs sunitas, promoveu a exclusão da maioria xiita, concentrada no sul do Iraque. A Revolução Iraniana de 1979, que resultou no regime teocrático xiita dos aiatolás, acirrou a antiga disputa entre Iraque e Irã pela hegemonia no Golfo Pérsico e precipitou a Guerra Irã-Iraque (1980-1988). Durante aquela guerra, soldou-se a aliança entre a Síria e o Irã. O arranjo, de aparência estranha, reuniu uma república árabe laica a um Estado teocrático persa. A aliança repousa sobre uma dupla plataforma. De um lado, existe a afinidade entre a liderança religiosa iraniana e o regime sírio, ancorado nos alauítas, que formam um ramo singular da árvore xiita. De outro, os interesses internacionais comuns: a rivalidade com o Iraque e a hostilidade em relação aos Estados Unidos. manos atuais já não podem ser descritos como meros artefatos manufaturados nas oficinas do colonialismo. Depois de alBanna, cresceram e frutificaram as árvores do pan-arabismo, dos nacionalismos e – nunca se deve esquecer! – do jihadismo global da Al-Qaeda. Além disso, especialmente, as revoluções árabes evidenciaram o dinamismo e a diversidade política das sociedades nacionais. Os jovens e as mulheres da Praça Tahir – ou, ao menos, vasta parcela deles – não enxergam no Corão o guia infalível para a organização da vida política e social. Em todos os países varridos pela Primavera Árabe, despontaram correntes políticas laicas – liberais, socialdemocratas ou socialistas – que não desaparecerão do cenário. A ascensão da Irmandade é acompanhada pelos alertas dos neoconservadores americanos, segundo os quais a Primavera Árabe produzirá o resultado desastroso de um “inverno islâmico”. O Islã e a democracia são incompatíveis, asseguram esses sábios cujos conselhos provocaram a invasão do Iraque, em 2003. Os riscos do fundamentalismo certamente existem. Na Síria, em particular, a sangrenta repressão de Assad já origina uma guerra civil e não está afastada a hipótese de um conflito duradouro, trágico, entre a maioria sunita e as minorias alauíta e cristã. Entretanto, a profecia agourenta ignora, por razões ideológicas, a complexidade do cenário. No Egito e na Tunísia, por exemplo, os líderes da Irmandade insistem em proclamar seu compromisso com a democracia e as liberdades públicas. É fácil, de qualquer forma, recortar dois ou três parágrafos dos incontáveis textos de al-Banna para emoldurar a tese de que a Irmandade não pode conviver com a liberdade. Mais difícil, porém muito mais proveitoso, é investigar a teia de circunstâncias que cercam a ascensão da antiga organização, impulsionando-a na direção do futuro. Os Acordos de Camp David, de paz entre Israel e Egito, em 1979, redefiniram a esfera de influência dos Estados Unidos no Oriente Médio. Israel e Arábia Saudita eram aliados tradicionais de Washington. O acordo egípcio-israelense consolidou a influência americana sobre o Egito. No período seguinte, a Guerra do Golfo (1991) e a invasão americana do Iraque (2003), com a derrubada de Saddam Hussein, geraram intensa sensação de insegurança para os regimes iraniano e sírio. O Irã entregou-se, com renovada energia, ao antigo projeto de construção de um arsenal nuclear. A Síria aprofundou seus laços estratégicos com a Rússia, que abrangem a cessão da base naval de Tartus, no Mediterrâneo. Ao mesmo tempo, iranianos e sírios estenderam a sua cooperação nos cenários do Líbano e de Israel/Palestina. No Líbano, um país dividido por linhas de conflito entre seitas religiosas, a Síria e o Irã financiam e fornecem armas para o grupo xiita Hezbollah, um partido com ampla base popular que tem uma ala militar e figura na lista de organizações terroristas divulgada pelos Estados Unidos. Em 2006, o Hezbollah enfrentou as forças armadas israelenses num violento conflito que durou pouco mais de um mês. Na Guerra dos Seis Dias, em 1967, a Síria perdeu para Israel a área elevada, de valor estratégico, das Colinas de Golã. O regime sírio procura operar na Palestina por intermédio do Hamas, o partido fundamentalista islâmico que governa a Faixa de Gaza. Contudo, apesar de receber apoio sírio – e iraniano –, o Hamas é um movimento sunita que surgiu, há três décadas, de uma costela da Irmandade Muçulmana egípcia. O declínio do regime de Bashar al-Assad desordena toda a complexa arquitetura geopolítica regional. A Turquia, cuja política externa volta-se cada vez mais para o Oriente Médio, colocou-se na linha de frente da campanha diplomática contra Assad. Numa iniciativa ousada, os turcos clamam pelo estabelecimento de “refúgios” no norte da Síria protegidos por forças militares internacionais. Um passo como esse configuraria uma intervenção armada externa no conflito sírio. A consequência mais óbvia da crise na Síria é provocar o isolamento regional do Irã. Do ponto de vista de Teerã, o cenário está pontilhado de ameaças, que se estendem das sanções internacionais, que atingem seu sistema financeiro e suas exportações petrolíferas, até um hipotético ataque aéreo israelense contra suas instalações nucleares (veja a matéria na pág. 8). Tudo se complicará ainda mais se a insatisfação social interna deflagrar uma nova onda de protestos de massa dos oposicionistas, violentamente reprimidos em 2009. Nesse caso, um conflito externo com Israel ou com os Estados Unidos poderia surgir como tábua de salvação para um regime em desespero. O Hamas rompeu há pouco com o regime sírio, retirando seus líderes baseados em Damasco e declarando solidariedade à Primavera Árabe. A ruptura foi precedida por um encontro, no Cairo, entre Ismail Haniyeh, primeiro-ministro do governo de Gaza, e a liderança da Irmandade Muçulmana (veja a matéria na pág. 9). A dissolução do eixo Irã-Síria-Hamas sinaliza a profundidade da crise do regime sírio e embaralha as cartas diplomáticas em Israel/Palestina. Em tese, o Egito poderia se converter em intermediário para negociações entre Israel e o Hamas. Contudo, o governo israelense rejeita contatos com o governo de Gaza e, na prática, bloqueia qualquer hipótese séria de negociações com os palestinos. As ondas de choque da sublevação na Síria ameaçam a sempre frágil estabilidade política do Líbano. Com Assad fora do jogo, o Hezbollah passa a depender mais intensamente do Irã. Uma corrente de analistas enxerga no grupo libanês a ferramenta de eventuais represálias iranianas a um hipotético ataque israelense. A tese, contudo, não leva em conta a fragilidade do próprio Hezbollah no novo cenário geopolítico do Oriente Médio. ABRIL 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O oriente médio Ataque israelense ao Irã: ameaça ou blefe ? © Apcbg/Wikipedia os últimos meses, nuvens pesadas vêm turvando perigosamente o horizonte do Oriente Médio. Clarins de guerra anunciam um iminente ataque de Israel contra instalações nucleares do Irã. Alarmes soaram por todos os lados. O mais estridente deles partiu do jornalista David Ignatius, que escreveu no The Washington Post que o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Leon Panetta, garantiu que há uma grande chance de Israel atacar o Irã “em abril, maio ou junho”. Uma matéria de capa da revista do The New York Times também cravou que o ataque israelense não passará de 2012. O que explicaria tanta pressa? Para o ministro de Defesa de Israel, Ehud Barak, quando a usina nuclear iraniana de Fordow – construída a quase 100 metros abaixo de uma montanha perto da cidade sagrada de Qom – entrar em operação, os israelenses não terão mais capacidade de destruí-la. Segundo essa tese, a partir do momento em que os iranianos estocarem urânio suficiente em Fordow para fabricar a bomba atômica, o regime de Teerã entrará na chamada “zona de imunidade” em relação a Israel – o que, em outras palavras, significa que o Irã não poderá mais ser atacado impunemente, pois terá condições de retaliar à altura, inibindo a ofensiva. O diretor do Centro de Estudos Estratégicos BeginSadat, Efraim Ibar, concorda com a tese. Para ele, há uma urgência que não existia antes, pois ficou claro que os iranianos estão transferindo urânio para Qom. “Uma bomba nuclear iraniana é simplesmente inaceitável para Israel. A questão é quando atacar. Muitos ainda acham que é preciso dar tempo para as operações secretas em andamento”, disse Ibar a O Estado de S. Paulo. Outro aparente sinal de ataque iminente ao Irã surgiu durante os recentes bombardeios de Israel à Faixa de Gaza, em resposta aos foguetes lançados pelo Hamas contra cidades israelenses. O conflito matou 26 palestinos e feriu três israelenses. O general Benny Gantz, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas de Israel, disse que o conflito foi, “em certo sentido, um miniteste para um ataque ao Irã”. Ele admitiu que há muita diferença entre os dois cenários, mas ponderou que as alternativas do Irã a um ataque de Israel são similares às do Hamas. Israel interceptou a maioria dos foguetes que os palestinos lançaram a partir de Gaza com o sistema de defesa Iron Dome. Se Israel atacar as instalações nucleares do Irã, a retaliação de Teerã provavelmente virá por meio dos mísseis Sajil, contra os quais os israelenses usariam o sistema defensivo Arrow, mais sofisticado. Mas a questão é saber se Israel se arriscaria a deflagrar um ataque sem levar em conta a posição de Washington. A administração Barack Obama tem indicado que, embora não descarte uma opção militar, não é favorável a um ataque ao Irã agora, em ano eleitoral. A mensagem foi passada pelos americanos ao premiê israelense Benjamin Netanyahu em suas visitas aos Estados Unidos. Mas há quem diga que Israel está pagando para ver. “Os Um eventual ataque ao Irã, país de dimensões territoriais semelhantes às do Alasca, com a capital Teerã densamente habitada (nas fotos) e com um poderoso exército ameaçaria provocar a regionalização da guerra e interromper o fluxo do petróleo mundial © Ensie Matthias/Flickr N Os rumores sobre um bombardeio aéreo contra as instalações nucleares iranianas circulam a partir de fontes israelenses. Diante das dificuldades da operação, pode ser apenas um blefe. Ou não... Cláudio Camargo Especial para Mundo israelenses acreditam que, se existe um momento em que os Estados Unidos não terão opção a não ser segui-los rumo à guerra, é durante a campanha presidencial”, diz Ali Vaez, pesquisador da Federação de Cientistas Americanos. “Não há como Obama se opor a um ataque ao Irã sem ameaçar sua reeleição”, conclui. Outros analistas estão convencidos de que esses rumores de ataque ao Irã não passam de um blefe israelense para assustar os aiatolás e pressionar o governo americano, a Europa e o Conselho de Segurança da ONU a aprovar sanções mais duras contra Teerã. Afinal, qualquer país que não disponha da enorme capacidade militar dos Estados Unidos prefere atacar o inimigo de surpresa. Meir Dagan, ex-chefe do Mossad, o serviço de inteligência israelense, disse que um ataque contra o Irã era “a ideia mais estúpida” que ele já tinha ouvido falar. Recentemente, os chefes do Mossad e do Shin Bet, a agência de segurança israelense, se manifestaram publicamente contrários ao ataque. De fato, as dificuldades de uma operação militar contra o Irã seriam bem maiores do que o ataque aéreo “cirúrgico” que os israelenses fizeram em 1981 contra a usina nuclear de Osirak, no Iraque, ou o ataque à Síria, em 2007. Israel está muito distante do Irã: alguns dos alvos distam entre 1,5 mil e 1,9 mil quilômetros das bases israelenses. Os aviões teriam que chegar ao Irã e voltar; para isso, precisariam ser reabastecidos no ar. Eles poderiam ir pelo norte, ao longo das fronteiras da Turquia e Síria e depois Síria e Iraque; pelo centro, com rota pelo Iraque; ou pelo sul, pela Arábia Saudita. A dúvida é saber se os turcos e os sauditas se arriscariam a enfrentar a ira islâmica deixando aviões israelenses passar pelo seu espaço aéreo. Os problemas não param por aí. “O Irã é um país de grande território, quase do tamanho do Alasca; as instalações nucleares estão dispersas por todo o território e muitas delas são subterrâneas”, diz o jornalista israelense Uri Avnery. “Ainda que se utilizassem bombas de penetração profundas, que explodem sob o chão, fornecidas pelos Estados Unidos, toda essa gigantesca operação só conseguiria conter os esforços iranianos por alguns poucos meses”, opina. Além disso, imagina que, uma vez iniciado o bombardeio, Israel sofreria ataques simultâneos do Hamas e do Hezbollah, a milícia xiita libanesa apoiada pelo Irã e pela Síria. E não se pode esquecer que os iranianos têm mísseis relativamente sofisticados, capazes de destruir bairros inteiros de Israel. “Morreriam muitos israelenses. As mortes e destruição em solo israelense tornam totalmente proibitivo qualquer movimento de guerra contra o Irã”, conclui. Mas talvez o argumento mais convincente de que a ameaça israelense não passa de um blefe seja o econômico. Avnery nos convida a olhar o mapa do Estreito de Ormuz, uma garganta de 35 quilômetros por onde passa praticamente todo petróleo produzido na região do Golfo Pérsico. “No instante em que o primeiro avião israelense entrar no espaço aéreo do Irã, o Estreito será fechado. (...) É uma catástrofe difícil de imaginar: Ormuz fechado, com o corte de suprimento de quase um quinto de todo o petróleo que as nações industriais do planeta consomem”, diz Avnery. Cláudio Camargo é jornalista e sociólogo 2012 ABRIL M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A oriente médio Futebol revela as tensões políticas no Egito A Irmandade Muçulmana, majoritária no novo Parlamento, teme o caminho da ruptura com a Junta Militar. A saída encontrada é apontar as baterias retóricas para Israel, o que ameaça as relações do Egito com os Estados Unidos © Mona Sosh/Flickr o dia 3 de fevereiro, o centro do Cairo foi novamente tomado por manifestantes que ameaçavam ocupar o Ministério do Interior, na rua Mohamad Mahmoud, sede da odiada polícia política e normalmente qualificada como a “Bastilha egípcia”. O motivo, aparentemente, era bastante “brasileiro” e nada tinha que ver com a Primavera Árabe: dois dias antes, 74 pessoas morreram e outras 248 ficaram feridas, em Port Said, cidade mediterrânea na entrada do Canal de Suez, como resultado de confrontos violentos entre torcidas organizadas de futebol. Só que a rivalidade futebolística foi apenas a aparência, o pretexto do massacre: dirigentes da Irmandade Muçulmana confirmaram as suspeitas de que tudo havia sido orquestrado pela própria polícia, por razões políticas. O massacre de Port Said oferece uma exata perspectiva das grandes questões colocadas pela conjuntura egípcia contemporânea. À primeira vista, tudo aconteceu como em qualquer jogo com final violento: torcedores do time local, o Masry, invadiram o gramado logo após a vitória sobre o Ahly, do Cairo, principal time do país e seu rival. Isso produziu confrontos entre as duas torcidas no campo. Em meio ao caos, os jogadores correram para os vestiários para tentar se abrigar, a batalha causou pânico e tentativas de fuga das pessoas do estádio. A maioria das mortes ocorreu por esmagamento em meio à multidão e queda nas arquibancadas. Logo, porém, começaram a surgir evidências de que o massacre foi fabricado. Em primeiro lugar, havia um grande número de pessoas armadas com pistolas e facas, o que demonstra que o sistema de controle de entrada do estádio foi, no mínimo, relaxado. Além disso, “a polícia trancou os portões para impedir que saíssemos do estádio. Em nenhum lugar do mundo se tranca as saídas antes do fim do jogo, qualquer um que já assistiu uma partida de futebol sabe disto”, afirma Mahmoud Abu Shark, militante pan-arabista e um dos fundadores do Ahly. E continua: “Fomos assassinados por uma massa dirigida por agentes infiltrados do serviço secreto e com o consentimento dos policiais que estavam lá para supostamente nos proteger.” Shark ecoa o consenso nas ruas. Segundo informa o analista político Aldo Sauda, desde o início da revolução egípcia, em 25 de janeiro de 2011, os torcedores do Ahly organizaram as linhas de frente dos embates com a polícia e o exército, e fizeram isso junto com os seus rivais do Zamalek, o segundo maior time do país, depois do próprio Ahly. A sua experiência nos conf litos de rua deu a eles um papel tido como fundamental na derrubada de Mubarak, ano passado. Apesar de uma certa tradição de rivalidade com os times de Port Said, os embates dos torcedores do Ahly com os do Masry jamais resultaram em tragédias. Até a semana passada, nenhuma das brigas de torcida no Egito havia provocado mortes. © Ed Giles/Getty Images N A conclusão se impõe: o massacre de Port Said foi fabricado pela própria polícia, em parte como um “acerto de contas”, uma vingança contra o papel das torcidas na queda do ditador Hosni Mubarak, em parte como uma tentativa de aprofundar as rivalidades e impossibilitar novas relações de colaboração entre os torcedores. É por isso que os manifestantes do Cairo tentavam tomar a sede do Ministério do Interior – e é também por isso que os porta-vozes da Irmandade Muçulmana denunciavam o papel da polícia. Para a Irmandade, é crucial cultivar o apoio popular, e a pior coisa que lhes poderia acontecer é serem identificados como corresponsáveis por um massacre de torcedores. E é nesse ponto que se revela o frágil equilíbrio das instituições egípcias contemporâneas. Uma sessão emergencial sobre a tragédia realizada no recém-eleito Parlamento, controlado pela Irmandade Muçulmana, chegou à conclusão de que a responsabilidade pelas mortes cabe ao Ministério do Interior. Ainda na tentativa de encontrar alguma saída negociada para a crise, os dirigentes da Irmandade culpam “remanescentes do regime de Mubarak”. Querem entregar os anéis – alguns dos antigos oficiais da ditadura que permanecem em seus cargos – para salvar os dedos, isto é, os chefes da Junta Militar que governo o país. Mas a manobra da Irmandade é fraca, pois as torcidas organizadas, a juventude em geral e os manifestantes responsabilizam diretamente o chefe da Junta, o general Hussein Tantawi. Ao mesmo tempo, os manifestantes se deparam com a falta de poder concreto do Parlamento, que não possui legitimidade jurídica para destituir o primeiro-ministro nem interferir no Executivo. Isso produz um óbvio sentimento de frustração: as grandiosas manifestações da Praça Tahir e a queda do odiado ditador ficaram muito aquém das transformações desejadas. Diante isso, a grande maioria dos jovens que hoje ocupa Tahir parece mais disposta a organizar enfrentamentos com a polícia Protestos provocados pelo massacre de Port Said (acima) ameaçam incendiar novamente a Praça Tahir, no Cairo (ao lado) do que esperar por resultados das conversações entre o novo Parlamento e os generais da Junta Militar. A Irmandade está num fogo cruzado que ameaça a sua própria sobrevivência. A campanha que produziu sua vitória nas eleições parlamentares baseou-se na proposta de promover um vasto “diálogo nacional” com o objetivo de construir instituições democráticas fortes e representativas. Esquecer os seus compromissos democráticos e voltar as costas aos manifestantes seria um ato de suicídio político. Mas voltar-se contra os militares e liderar um movimento pela derrubada da Junta poderia produziria uma nova situação revolucionária que, facilmente, escaparia ao seu controle. Uma das saídas encontradas pela Irmandade foi a retomada do discurso contra Israel e o fortalecimento dos vínculos com o grupo palestino Hamas, em nome do “renascimento islâmico”. Em dezembro, Ismail Haniyeh, primeiro-ministro do governo do Hamas em Gaza, foi recebido por Mohammed Badie, dirigente da Irmandade egípcia. Haniyeh disse que a presença do Hamas, “ao lado da Irmandade, ameaça a entidade israelense”. Badie, por seu lado, reafirmou o compromisso da Irmandade com “as questões da liberdade, sobretudo da liberdade dos palestinos”. A intenção é convocar os manifestantes de Tahir a desviar suas atenções para o confronto com Israel. Entretanto, a alternativa também cria suas próprias armadilhas. Nas três últimas décadas, o Egito tornou-se um dos principais parceiros de Israel, e disso extraía benefícios extraordinários, inclusive financeiros, propiciados pelos Estados Unidos. A aproximação mais explícita com o Hamas desequilibra o xadrez geopolítico regional, ao passo que o chamado ao “renascimento islâmico”, vindo de um país tão importante, é um fator explosivo no Oriente Médio. Com isso, a Irmandade é forçada a afrontar os interesses da Casa Branca na região. ABRIL 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O rússia Putin vence, mas o caos espreita o K remlin No primeiro ciclo, Putin foi empurrado pelo vento dos preços do petróleo e do gás. No segundo, que se inicia, enfrentará turbulências sociais e desafios geopolíticos C © Alexander Nemenov/AFP omo esperado, Vladimir Putin ganhou com relativa folga as eleições presidenciais realizadas na Rússia, no início do março. Foi reconduzido ao cargo que ocupou entre 2000 e 2008, com cerca de 64% dos votos. As eleições foram marcadas por denúncias de fraudes – cuja existência, de resto, o próprio Putin reconheceu. Contudo, não foram as irregularidades que garantiram a sua vitória: mesmo com a popularidade em queda, ele ainda é, de longe, o político que conta com a maior aceitação da opinião pública russa. Autoritário, formado pela KGB (antiga polícia política soviética), Putin governa com “mão dura” tanto no campo da política doméstica quanto no da política externa. No quadro atual de crise internacional, sua nova temporada no Kremlin será, certamente, marcada por grandes tensões. A popularidade de Putin atingiu o auge de 78% no final de 2008, quando, impossibilitado pela Constituição de disputar um terceiro mandato, elegeu seu braço direito Dmitri Medvedev. As razões de seu prestígio são, sobretudo, de ordem econômica. Com os preços do petróleo em alta, Putin conseguiu acabar com a hiperinflação herdada do governo de Boris Ieltsin, equilibrou as finanças do Estado e estabilizou o câmbio. Garantiu fartos reajustes aos aposentados e pensionistas, e voltou a ampliar a presença do Estado na economia, privatizada de modo selvagem por Ieltsin. Principalmente, Putin nacionalizou a Gazprom (responsável pela exploração do gás) e boa parte da indústria de petróleo. Como resultado do ciclo de alta dos preços do petróleo e do gás natural, a renda média da população cresceu quatro vezes em dólar em dez anos, de acordo com dados do Banco Mundial. No plano político, Putin foi duro com a oposição. É acusado pelos seus adversários de cercear a liberdade de imprensa, recorrendo para isso a ameaças e pressão econômica, e responsabilizado pela morte dos jornalistas Anna Politkovskaia e Alexander Livitnenko, que faziam oposição ao seu governo. Além disso, mantém na prisão, graças a uma série de procedimentos jurídicos irregulares, o bilionário Mikhail Khodorkovsky, ex-dono da Yukos, uma das maiores empresas petrolíferas do mundo. Mas é na repressão aos rebeldes nacionalistas da Chechênia que Putin mostra plenamente sua face repressora. Em setembro de 2004, ordenou às tropas russas um ataque a um grupo de terroristas chechenos que havia invadido uma escola infantil em Beslan (na Ossétia do Norte, território que faz parte da Federação Russa). Como resultado, 186 crianças morreram, além, obviamente, dos integrantes do grupo. Com esse perfil, Putin garante o apoio da maior parte da população, que associa democracia à anarquia e à hiperinflação. O líder encarna, de certa forma, a cultura política russa, que saltou da tirania dos czares para a ditadura do Partido Comunista sem passar por um período estável de vigência das liberdades democráticas. Nesse ambiente político, a mão forte do presidente é vista como a única possibilidade real de resolver os problemas do país. Isso não impede o surgimento de movimentos democráticos que se manifestam nas ruas, mesmo sob ameaça da repressão. Aliás, eis um grande desafio para o novo governo Putin: no quadro atual da crise, dificilmente se repetirão as proezas de crescimento econômico que marcaram seu primeiro governo. A desilusão será inevitável para uma boa parte de seus eleitores, especialmente os de classe média que pedem a democratização, a redução da burocracia e o combate à corrupção. Sua primeira grande dificuldade será encontrar dinheiro para realizar todas as reformas que prometeu durante a eleição. Cálculos conservadores de economistas indicam que só o aumento salarial prometido ao funcionalismo público vai custar 1,5% do PIB por ano até 2018, quando a proporção deve dobrar, para 3%. Os gastos prometidos com salários e compras de equipamentos para as Forças Armadas consumiriam anualmente 2,2% do PIB, até 2020. Há ainda os custos com aposentadoria: Putin prometeu não aumentar a idade mínima de aposentadoria, mas os gastos com a previdência devem subir um ponto porcentual do PIB a cada cinco anos. Em outros termos, a Rússia terá que marchar na contramão das políticas adotadas pelos países da Zona do Euro. Só terá alguma chance de fazer isso se os preços internacionais do petróleo e do gás se estabilizarem num patamar de US$ 150 o barril (o preço médio atual oscila em torno de US$ 117). No plano da política externa, as relações tendem a ficar mais tensas com os Estados Unidos, em particular no que se refere às manobras da OTAN e à estratégia para o Oriente Médio. Em 7 de dezembro, o secretário geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, reiterou a disposição da organização de instalar novos mísseis antibalísticos na Polônia, Espanha, Turquia e Romênia e outros países-membros que aceitem participar. A justificativa oficial é a necessidade de reforçar as defesas contra eventuais ataques originados do Oriente Médio. Em reação, o então presidente russo Dmitri Medvedev ameaçou retirar o país do Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (New Start), bem como instalar novos mísseis balísticos na fronteira com a Europa. E Dmitri Rogozin, representante de Moscou na OTAN, acenou com a possibilidade de cortar as rotas terrestres de suprimento das tropas da aliança no Afeganistão (Rede de Distribuição do Norte). A Rússia não vai tolerar a instalação de mísseis antibalísticos em território afegão, o que seria apenas uma consequência lógica do atual curso adotado pela OTAN. No Oriente Médio, o ponto mais crítico, atualmente, é a questão síria e a perspectiva de um eventual ataque ao Irã (veja as matérias nas págs. 7 e 8). Em 24 de novembro, a Rússia, junto com os demais países integrantes dos Brics (Brasil, Índia, China e África do Sul), rejeitou qualquer intervenção estrangeira na Síria e no Irã, conforme uma declaração Em Moscou, conjunta assinada em Moscou. Se manifestantes Teerã é um aliado “natural” de Moscou e de Pequim contra a expando são americana no Oriente Médio, movimento Damasco garante à Rússia o único feminista acesso de sua marinha ao lado ociucraniano dental do Mediterrâneo, por meio protestam da base naval de Tartus, o segundo contra a maior porto do país. A substituição fraude nas da ditadura síria por um governo eleições que aliado da Casa Branca que fechasse a conduziram base russa de Tartus, ou mesmo que Vladimir restringisse a liberdade de movimenPutin à to da armada russa é uma hipótese presidência intolerável para os militares russos. da Rússia Putin não pode sequer considerar essa possibilidade. 2012 ABRIL M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 10 Nelson Bacic Olic Da Redação de Mundo A Sibéria e o futuro do “novo Norte” Sibéria CÍRC ULO PO LAR ÁRTICO OCEANO GLACIAL ÁRTICO Rio K Parte europeia da Rússia OCEANO PACÍFICO Ri oI Ri rtc oO h Omsk Novosibirsk CAZAQUISTÃO bi Iakutsk R I A na É Le B o I MAR DE OKHOTSK Rio Angar Ri S a Kranoiarsk Jazimentos de petróleo Jazimentos “gigantes” de gás olima Dudinka Norilsk Rio Ienissei ssim como acontece com os brasileiros em relação à Amazônia, a Sibéria ocupa um lugar especial no imaginário e nas representações russas. Desmesuradamente vasta, praticamente deserta de homens, foi durante muito tempo – e aí está uma diferença com a Amazônia – uma região de exílio e deportação. Mas, como a Amazônia, a Sibéria é vista como uma espécie de Eldorado: a fonte de inesgotáveis riquezas naturais. Em sua concepção geográfica mais ampla, a Sibéria se estende dos Montes Urais até a orla do Pacífico, numa extensão pouco superior a 10 milhões de km2, bem mais que a totalidade do território brasileiro, quase 60% da superfície da Rússia. O governo russo, no entanto, define o território siberiano de forma mais restrita, excluindo o Extremo Oriente russo, conjunto de áreas localizadas junto ao litoral do Pacífico. Parte considerável da Sibéria está localizada ao norte do Círculo Polar Ártico. O efetivo processo de ocupação e valorização do território siberiano, uma epopeia deflagrada por aventureiros, exploradores e comerciantes russos, teve início no século XVI e estendeu-se até o final do século XIX. Antes da chegada dos russos, a região era ocupada por dezenas de grupos étnicos, ali estabelecidos desde tempos imemoriais. A incorporação, quase sempre forçada desses grupos ao Império Russo explica, em grande medida, a diversidade étnica da população da Rússia atual, onde são reconhecidas mais de 120 etnias. Vivem na Sibéria cerca de 15 milhões de pessoas, uma população que cresceu lentamente dadas as condições naturais adversas. Grande parte dessa população se concentra nas porções sul e oeste da região, em especial em núcleos urbanos como Novosibirsk, Omsk e Krasnoiarsk. Durante a “era soviética”, especialmente no período de Stalin (1922-1953), áreas da região foram usadas para “abri- Rio Obi A A Sibéria, seus grandes rios e recursos Grandes jazidas de gás Rios navegáveis com utilização hidrelétrica Polo minerador Lago Baical MONGÓLIA Novas zonas de prospecção de hidrocarbonetos CHINA 550 km Cidades principais FONTE: OLIC, Nelson Bacic. Geopolítica dos Oceanos, Mares e Rios. São Paulo: Moderna, 2011, p.10. gar” dissidentes do regime, que ali seriam “reeducados” nos ideais socialistas. Os campos de trabalho forçado siberianos são o tema de um livro célebre, O arquipélago Gulag, do ex-prisioneiro e escritor russo Alexander Soljenitsin. “Gulag” é o acrônimo, em russo, de Administração Central dos Campos e Colônias de Trabalho Corretivo, a agência estatal responsável pelo sistema prisional. A principal riqueza da Sibéria é seu rico subsolo, onde há abundância de carvão, petróleo, gás natural e minerais variados, como ouro, ferro e níquel. Na superfície, outra riqueza inestimável é formada pelas imensas florestas de taiga. A exploração de minérios, combustíveis e madeira estimulou o crescimento de atividades industriais a partir da segunda metade do século XX. A energia para as atividades econômicas foi garantida com a construção de importantes hidrelétricas nos rios das principais bacias da região. Recentemente, a novidade que, uma vez mais, revoluciona a Sibéria são os acordos firmados com a China para a exploração e utilização dos recursos minerais. Juntamente com as ferrovias Transiberiana e a Baical-Amur-Magistral (BAM), os rios são verdadeiras espinhas dorsais da Sibéria. Os três grandes rios – Obi, Ienissei e Lena – possuem várias características comuns: cruzam quase exclusivamente o território da Rússia, fluem no sentido geral sul-norte e deságuam no Oceano Ártico. Além disso, percorrem trajetos superiores a quatro mil quilômetros, condição que os coloca entre os dez rios mais extensos do mundo. A superfície coberta por cada uma dessas três bacias e o volume d’água de seus rios as classificam também entre as dez maiores do mundo. Por conta do sentido de seu escoamento e de sua grande extensão, os três rios atravessam domínios climáticos que vão do temperado continental ao polar, cortando distintos ecossistemas – estepes, florestas de coníferas, taiga e tundra – antes de desaguarem no Ártico. Eles são alimentados pelas águas da fusão das neves do alto vale e por chuvas que ocorrem na primavera e verão. O degelo dos rios começa antes no alto vale, ao sul, e um pouco mais tarde à jusante, ao norte. O rito desigual de degelo provoca grandes inundações no baixo vale, onde o gelo remanescente represa o escoamento das águas. De maneira geral, os rios siberianos desempenharam papel crucial no processo de ocupação e valorização econômica do espaço regional e na vida das populações ribeirinhas. No presente, como no passado, eles representam, em muitos casos, as únicas vias de circulação de pessoas e mercadorias. Também figuram como fontes cruciais de geração de energia elétrica e seus cursos são pontuados por usinas hidrelétricas de grande porte. Os três rios são navegáveis e atravessam áreas de expressiva exploração mineral e de madeiras. Por isso, instalaram-se alguns pequenos portos nas proximidades ou na própria foz dos rios: Salekand (rio Obi), Norilsk-Dudinka e Dickson (rio Ienissei), Tiksi (rio Lena). Tais portos desempenham uma dupla função. Além do escoamento de minérios, combustíveis e madeira, servem como demonstração geopolítica da presença da Marinha russa na região do Ártico (veja o mapa). As principais cidades siberianas estão localizadas no sul da região, especialmente junto ao alto vale dos rios e no entroncamento dos cursos fluviais com as vias de comunicação terrestre, em particular a Ferrovia Transiberiana. Nessa situação encontram-se as cidades de Novosibirsk, Omsk, Krasnoiarsk, Tomsk e Irkutsk. O primeiro desses núcleos urbanos é a mais populosa cidade da Sibéria (1,4 milhão) e uma das mais populosas da Rússia. O geógrafo Laurence C. Smith faz, num livro recente, algumas instigantes sugestões sobre o impacto das mudanças climáticas globais e locais sobre a dinâmica demográfica de cidades situadas nas proximidades do Círculo Polar Ártico. Segundo ele, a tendência à amenização das temperaturas das faixas árticas e subárticas funciona como fator favorável à expansão populacional de pequenos núcleos urbanos do cinturão que denomina “novo Norte”: o Alasca, o Canadá setentrional, a Península Escandinava, a Groenlândia e, é claro, a Sibéria. As suas provas? As cidades siberianas de Noyabrsk e Novy Urengoy, que não existiam até o início da década de 1980, mas hoje, sob o influxo da exploração de hidrocarbonetos, têm mais de 100 mil habitantes. ABRIL 2012 11 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O brasil Belo Monte, uma história em dois tempos O Áthila Kzam Especial para Mundo O projeto da usina no rio Xingu nasceu durante a ditadura militar, mas foi revisto sob o regime democrático. Enquanto se iniciam as obras, desenvolve-se uma polêmica sobre economia, sociedade e meio ambiente © Antônio Cruz/Abr último tiro na guerra da licença ambiental foi disparado em junho do ano passado, quando o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu a licença de instalação das obras de infraestrutura da usina hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu, no Pará. O ato reacendeu o debate sobre o aproveitamento do potencial hidrelétrico dos rios da bacia do Amazonas. A discussão em torno do aproveitamento para geração de energia elétrica a partir do Xingu é antigo. Remonta ao ciclo da ditadura militar, na década de 1970, quando a estatal Eletronorte realizou os primeiros estuEm Brasília, representantes dos povos dos sobre a viabilidade técnica do empreendimento. Há originários protestam contra a construção da mais de duas décadas, em 1989, durante o I Encontro usina Belo Monte dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira (PA), foram debatidos os possíveis impactos sociais, econômicos cular, figura como um verdadeiro desastre ambiental, e ambientais da usina. Na época, previa-se a inundação social e técnico (veja o mapa). de uma área superior a 1,2 mil km2 , que provocaria o A usina desastrosa foi planejada para suprir as necesremanejamento de vários grupos indígenas. sidades de energia de Manaus, que se ampliavam com o A ditadura militar estava encerrada e o projeto da usina crescimento das atividades da Zona Franca, implantada teria que passar pelo crivo da opinião pública. Nos anos em 1975. Balbina inundou uma área de mais de 2 mil seguintes, uma intensa batalha judicial foi travada entre o km2 de floresta nativa. A extensa inundação produziu Ministério Público, o Ibama e os índios. Nesse percurso, um reservatório de águas ácidas, reduziu a biodiversidao projeto sofreu uma série de modificações até chegar ao de e determinou a remoção compulsória dos índios da contorno atual, que prevê um reservatório menor, de 516 tribo waimiri-atroari. Toda a destruição destinava-se a km2 (equivalente ao território da cidade de Curitiba), para gerar menos de 300 megawatts! produzir 11.233 megawatts. Belo Monte será a maior usina O exemplo negativo de Balbina sempre é destacado hidrelétrica brasileira, atrás apenas de Itaipu. A usina do Xingu inscreve-se numa moldura mais ampla. Quase dois terços do potencial hidrelétrico Usinas Hidrelétricas na Amazônia total do país está localizado na Amazônia, especialmente nos rios Araguaia, Tocantins, Xingu, Madeira e Tapajós. As grandes usinas na região começaram COARACY NUNES OCEANO Ar ag ua a ser implantadas a partir da década de 1970, sob o ri ATLÂNTICO BALBINA impulso de dois fatores entrelaçados: as novas necesCURUÁ-UNA Uatum ã nas azo TUCURUÍ Solimões Am sidades geradas pela revolução tecno-científica-inforBELO MONTE a macional e a crise do petróleo, que obrigou o Brasil a eir ad M diversificar sua matriz elétrica em função da escalada SAMUEL do preço do barril do “ouro negro”. JIRAU E Durante o ciclo militar, foram desenvolvidos SANTO ANTÔNIO na Amazônia grandes projetos de exploração miUsinas instaladas neral e beneficiamento de matérias-primas, que requerem vastas quantidades de energia. Nos arProjetos redores de Belém implantou-se o polos minero- FONTE: FERREIRA, Graça M. L. Atlas geográfico: espaço mundial. São Paulo, Moderna, 2007, p 17. metalúrgico de Barcarena (Albrás e Alunorte). Em São Luís, no Maranhão, instalou-se o polo de Vazão média do Rio Xingu (1969-2000) Alumar. A necessidade de melhorar a infraestrutura, (Mil m3 por segundo) a fim de atrair investimentos produtivos, foi respondida pela construção de usinas hidrelétricas como as 30 de Tucuruí, no rio Tocantins, no Pará, e de Balbina, 20 no rio Uatumã, no Amazonas. Num contexto marcado 10 pela centralização política, as decisões subordinavam0 se, exclusivamente, aos imperativos econômicos. Os J F M A M J J A S O N D MESES empreendimentos hidrelétricos deixaram um rastro de amplos impactos socioambientais. Balbina, em partiAra gua ia Tocantins Ja ma ri quando se discute um novo empreendimento de geração de energia elétrica na Amazônia. Contudo, joga a favor de Belo Monte o fato de que a área do reservatório já fica temporariamente inundada durante a cheia do rio. Conta também um cálculo econômico bastante conhecido: os baixos custos de operação de usinas hidrelétricas, quando comparados aos de centrais termelétricas ou nucleares. Por fim, nenhuma comunidade indígena será remanejada pelo projeto atual. Mas nem tudo são rosas. Há a questão do alto custo de implantação da usina, um gasto de capital que poderia ser utilizado tanto para a revitalização de usinas já implantadas como para o desenvolvimento de fontes alternativas. Os críticos apontam também para o tema climático e hidrológico. O rio Xingu apresenta grande diferença no seu volume d’água ao longo do ano, em função do regime hidrológico do Brasil Central, onde se encontram suas nascentes. No período da vazante, a água disponível possibilitará uma energia firme de menos de 50% da capacidade total, fazendo com que a usina não opere com potência máxima durante grande parte do ano (veja o gráfico). A polêmico tem um componente regional. A maior parte da energia gerada em Belo Monte será integrada ao Sistema Elétrico Brasileiro, através de extensas linhas de transmissão. Dessa forma, o “grosso” da energia será consumida no Centro-Sul do país, ficando uma parcela menor na Amazônia, para satisfazer principalmente os interesses das indústrias eletrointensivas. Finalmente, há as consequências socioambientais, como o crescimento urbano desordenado com os recorrentes problemas sociais que já se verificam. Na cidade de Altamira, a favelização e a especulação imobiliária avançam em ritmo acelerado, aliadas à intensificação do desmatamento. No ciclo militar, a visão norteadora das políticas territoriais para a Amazônia orientava-se pela ilusão do “Eldorado”: a imagem de um espaço no qual os recursos naturais eram praticamente inesgotáveis. Hoje, o argumento “desenvolvimentista” N enfatiza o crescimento econômico. Segundo o Ministério do Planejamento, uma expansão anual do PIB em torno de 4% exige a ampliação da oferta de energia em no mínimo 1,5 mil megawatts a cada ano. Contudo, o “desenvolvimentismo” não pode ignorar a questão da sustentabilidade. Os projetos devem ser economicamente viáveis mas, ao mesmo tempo, precisam levar em consideração a utilização racional dos recursos e seus impactos sobre a qualidade de vida das populações afetadas. 590 km Áthila Kzam, licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Pará e professor do Ensino Médio e cursos pré-vestibulares de Belém, é coautor do livro A Amazônia decifrada – Para quem quer ser amazônida 2012 ABRIL M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 12