TESE DOUTORADO - e
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TESE DOUTORADO - e
Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 1 RAFAEL MARIO IORIO FILHO UMA QUESTÃO DA CIDADANIA: O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA INTERVENÇÃO FEDERAL (1988-2008) Tese de doutorado apresentada à Universidade Gama Filho como pré-requisito para obtenção do título de Doutor em Direito, na área de concentração Direito, Estado e Cidadania. Orientadora: Profª. Drª. Fernanda Duarte Lucas Lopes da Silva. Rio de Janeiro 2009 Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 2 Iorio Filho, Rafael Mario. Título: uma questão da cidadania: o papel do Supremo Tribunal Federal na Intervenção Federal (1988-2008) / Rafael Mario Iorio Filho – Rio de Janeiro, 2009. fls. 391. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Gama Filho – UGF. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Fernanda Duarte Lucas Lopes da Silva. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 3 AGRADECIMENTOS Gostaria de registrar os meus agradecimentos a todos aqueles que colaboraram, ou melhor, verdadeiramente me carregaram no colo para que eu conseguisse realizar a minha pesquisa e concretizar esta tese. Meu muito obrigado e carinho às pessoas mais importantes do mundo para mim: minha esposa Cristina, meus filhos Eduardo e Lucas, meus irmãos Juliana e Pedro, meus pais Rafael e Julia, por todo o amor e apoio dado em minhas investidas acadêmicas. Amo vocês! Ao meu tio Fabio, pelas discussões e ensinamentos sobre Lacan, Marx, Althusser e estruturalismo, que me permitiu melhor compreensão das bases da Análise do Discurso Francesa. À minha orientadora Fernanda Duarte pela autonomia e confiança que me concedeu durante a realização deste trabalho. Aos professores Maria Stella de Amorim e Roberto Kant de Lima pela leitura atenta e pelas contribuições trazidas no exame de qualificação. À professora Ângela Corrêa pelos ensinamentos acerca da Análise Semiolinguistica do Discurso, que permitiu a ousadia da interdisciplinariedade deste trabalho. Aos colegas do grupo de pesquisa, Bárbara Lupetti e Marco Aurélio, que contribuíram com seus questionamentos acerca do objeto da tese. A amiga Regina Lucia, pela paciência, verdadeira amizade e apoio para a realização desta tese. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 4 RESUMO A presente tese tem o objetivo de explicitar, nas relações entre poder, legitimidade, guarda da Constituição e construção da cidadania brasileira, o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) e das suas categorias de compreensão dos conflitos sociais, através dos “ditos” e dos “não-ditos” dos discursos de seus ministros, no exemplo das decisões que tenham como temática a Intervenção Federal. Para tanto, articulou-se a metodologia da Análise Semiolingüística do Discurso em seus três lugares de compreensão do discurso, no intuito de se vislumbrar as visadas discursivas dessas decisões judiciais. PALAVRAS-CHAVES: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL; ANÁLISE DO DISCURSO; INTERVENÇÃO FEDERAL; JURISPRUDÊNCIA. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 5 RESUMO Questa tesi è destinata a coprire, nei rapporti fra il potere, la legittimità, la salvaguardia della Costituzione e la costruzione di cittadinanza brasiliana, il ruolo della Corte Suprema (STF) e categorie di comprensione dei conflitti sociali, attraverso il "incerto" e il non-detto "dei discorsi dei suoi ministri, nel caso di decisioni che sono soggette all'intervento federale. A tal fine, ha sollevato la metodologia di analisi Semiolingüística del discorso in tre luoghi di comprensione del discorso, al fine di individuare l'obiettivo delle decisioni discorsiva. PAROLE-CHIAVE: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL; ANALISI DEL DISCORSO; INTERVENTO FEDERALE; GIURISPRUDENZA Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 6 ABSTRACT The present thesis have the objective to set legitimacy out, in the relations between power, it guards of the Constitution and construction of the Brazilian citizenship, the paper of the Federal Supreme Court (STF) and of his categories of understanding of the social conflicts, through the "sayings" and the "nonsayings" of the speeches of his Ministers, in the example of the decisions that take the Federal Intervention as a theme. For so much, there was articulated the methodology of the Analysis Semiolingüística of the Speech at his three places of understanding of the speech, in the intention of were glimpsed the discursive looks of these judicial decisions. KEY WORDS: FEDERAL SUPREME COURT; ANALYSIS OF the SPEECH; FEDERAL INTERVENTION; JURISPRUDENCE. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................9 CAPÍTULO I – A contextualização da pesquisa ...........................................14 1.1. A problemática .....................................................................................14 1.2. A jurisprudência como objeto de interesse investigativo ................22 1.3. O discurso jurídico do Supremo Tribunal Federal como discurso político ..................................................................................................25 1.4. Algumas reflexões teóricas .................................................................27 1.4.1. As categorias teóricas de Pierre Bourdieu ........................................28 1.4.2. Algumas reflexões acerca do fenômeno político em Max Weber ...34 1.4.3. A Análise Semiolingüística do Discurso Político de Patrick Charaudeau ..........................................................................................39 1.5. O percurso metodológico construído ................................................51 CAPÍTULO II- A doutrina jurídica sobre a Intervenção Federal: o que ela diz e não diz .....................................................................................................62 2.1. O Federalismo ..........................................................................................64 2.2. O federalismo no Brasil ...........................................................................71 2.3. Intervenção Federal .................................................................................74 2.3.1. Ação Direta de Inconstitucionalidade interventiva ............................82 2.4. Federalismo, Intervenção Federal e Cidadania: o que a doutrina não diz .....................................................................................................................84 CAPÍTULO III- Os temas relacionados aos pedidos de intervenção federal discutidos no Supremo Tribunal Federal entre os anos de 1988 a 2008 ..87 3.1. Descrição dos casos sobre o não pagamento de precatórios ......88 3.2. Descrição dos casos sobre reintegração de posse .......................92 3.3. Descrição dos casos sobre desrespeito a princípio constitucional sensível .................................................................................................93 3.4. Descrição dos casos sobre a invasão de uma entidade federativa em outra ................................................................................................94 Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 8 3.5. Descrição dos casos sobre desrespeito de decisão judicial que determina que se respeite a regra do quinto constitucional ...........95 3.6. As razões justificadoras ou “categorias nativas” para não se prover os pedidos de intervenção federal no Supremo Tribunal Federal ..................................................................................................95 CAPÍTULO IV- A Gramática da Decisão do Supremo Tribunal Federal ...123 4.1. O modus operandi da bricolage de Lévy- Strauss e as decisões sobre intervenção federal .......................................................................................126 4.2. A lógica do contraditório ......................................................................144 CONCLUSÃO .................................................................................................148 BIBLIOGRAFIA ..............................................................................................154 ANEXOS .........................................................................................................178 Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 9 INTRODUÇÃO A presente tese1 objetiva compreender qual seria o papel da Jurisdição Constitucional no Brasil, e como tal, do Supremo Tribunal Federal, como também, buscar, assim como fazem os países de tradição de Common Law2, pela notoriedade midiática e referencial no campo do Direito3 que a Jurisprudência4 Constitucional vem alcançando em nossos dias, uma metodologia própria às características jurídico-culturais brasileiras de análise das decisões judiciais. 1 Este texto é fruto da pesquisa que venho realizando sob a orientação da Profª. Drª. Fernanda DUARTE, em sede de seu grupo de pesquisa “Jurisdição Constitucional e Democracia UGF/CNPq”. 2 Common Law é um sistema jurídico de tradição anglo-americana, caracterizado por ter como fonte de direito primária as resoluções dadas aos casos concretos pelos juízes e demais operadores do Direito. Neste sistema, juízes são as partes ativas do processo de elaboração e formulação das regras de Direito a serem aplicadas. Como nos diz Miguel REALE (1967:142): "Temos, pois, dois grandes sistemas de Direito no mundo ocidental, correspondentes a duas experiências culturais distintas, resultantes de múltiplos fatores, sobretudo de ordem histórica. O confronto entre um e outro sistema tem sido extremamente fecundo, inclusive por demonstrar que, nessa matéria, o que prevalece para explicar o primado desta ou daquela fonte de direito não são razões abstratas de ordem lógica, mas apenas motivos de natureza social e histórica." Ainda interessante a passagem de Edivaldo Machado BOAVENTURA (1997:91): "Os formados pelas Faculdades de Direito norte-americanas tendem a pensar segundo o modo empírico-indutivo, contrastando com aqueles que se diplomam nas faculdades de Direito da Alemanha, da França e mesmo do Brasil, que seguem o raciocínio predominantemente dedutivo. As conseqüências para a formação são bem diferentes. Nos países da lei-código, o Direito é exposto geralmente em aulas-conferências." Ainda sobre a comparação destes dois sistemas jurídicos ver Antoine GARAPON (2008) 3 Para este trabalho estou usando os termos “campo do direito”, “campo jurídico” e “mundo do direito”, no sentido da concepção de Pierre BOURDIEU (1992:206-207), que toma os campos da vida social como campos magnéticos onde os agentes se aproximam e se afastam em função de luta política. Num campo há ainda uma estabilidade semântica, de práticas e de visões de mundo, o que, segundo o autor, “permite a todos os detentores do mesmo código associar o mesmo sentido às mesmas palavras, aos mesmos comportamentos e às mesmas obras e, de maneira recíproca, de exprimir a mesma intenção significante por intermédio das mesmas palavras, dos mesmos comportamentos e das mesmas obras.” 4 O termo jurisprudência em Direito pode ter os seguintes significados: a) ciência do Direito, b) direito aplicado aos casos concretos, c) doutrina jurídica, d) a soma geral dos julgados dos Tribunais, harmônicos ou não, ou seja, a totalização dos acórdãos produzidos pela função jurisdicional do Estado, e) a coletânea organizada e sistematizada de acórdãos consonantes e reiterados, de um certo Tribunal sobre um tema jurídico. Nossa tese, então, estará se referindo ao penúltimo sentido do conceito, isto é, estamos tratando jurisprudência com o significado de soma geral dos julgados dos Tribunais. Como nos diz Bárbara BAPTISTA (2008:37): “Jurisprudência é o conjunto de decisões judiciais proferidas em casos concretos. Quando se diz “a jurisprudência do STF”, se quer dizer a soma das decisões prolatadas pelo STF a respeito de um determinado tema.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 10 Neste contexto, este trabalho visa desenvolver uma teoria capaz de compreender através dos discursos dos Ministros, e por conseqüência, da Corte Constitucional Brasileira (Supremo Tribunal Federal) qual é na prática o papel da jurisprudência constitucional na discussão temática da Intervenção Federal. Para tanto, tomei como referência temporal as decisões relativas à matéria no interstício de 1988 a 2008. O trabalho tem como objetivo perceber como os discursos se constroem e como eles se relacionam com o poder na defesa da cidadania. Esta discussão temática é de todo importante, pois traria em seu campo significativo toda uma problemática de circunstâncias de crise constitucional federativa, e por isso, de relações explícitas entre poder soberano e guarda das cidadanias. Por essas razões, podemos dizer que a forma de construir o nosso objeto, de refletir sobre ele e de articular o nosso discurso são interdisciplinares. A Ciência do Direito, tomada pelo sentido que o campo jurídico brasileiro lhe dá, significa a produção intelectual doutrinária das possíveis interpretações legais. Nós, entretanto, estamos tomando o direito como um objeto empírico, possível de ser estudado como um instrumento de controle social, próprio das sociedades contemporâneas. Dentro da perspectiva de ser ter uma postura científica interdisciplinar no Direito, interessante a passagem de Roberto KANT DE LIMA (1983:98): A contribuição que se pode esperar da Antropologia para a pesquisa jurídica no Brasil será evidentemente vinculada à sua tradição de pesquisa. Desde logo há de se advertir que o estranhamento do familiar é um processo doloroso e esquizofrênico a que certamente não estão habituados as pessoas que se movem no terreno das certezas e dos valores absolutos. A própria tradição do saber jurídico no Brasil, dogmático, normativo, formal, codificado e apoiado numa concepção profundamente hierarquizada e elitista da sociedade, refletida numa hierarquia rígida de valores autodemonstráveis, aponta para o caráter extremamente etnocêntrico de sua produção, distribuição, repartição e consumo. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 11 Temos a pretensão de pensar o direito de forma crítica, e não de maneira repetitiva e reprodutora5, própria dos trabalhados classificados tradicionalmente como jurídicos. Nossa perspectiva é analisar o direito brasileiro em suas práticas discursivas, numa tentativa de explicitar como ele é, e não, como ele deveria6 ser. Esta pesquisa dialoga com algumas teorias sociológicas, tais como: a de Pierre BOURDIEU, de Michel FOUCAULT, de Max WEBER e de Claude LÉVY-STRAUSS, que funcionaram como base teórica para melhor discutir a nossa problemática, tendo em vista que oferecem o subsídio teórico para refletir acerca dos conceitos de poder, de legitimidade, de estratégias, de campo, de estruturas, de ideologias entre outros. Desta forma, possibilitam-nos perceber as estruturas de uma gramática decisória da Corte Suprema brasileira. Do ponto de vista metodológico, trabalhamos com a Análise Semiolinguística do Discurso Político a partir de Patrick CHARAUDEAU e Dominique MAINGUENEAU, que nos possibilitou explicitar as estruturas e visadas discursivas, ou intenções, de cada enunciador ou autor textual em seu jogo político, na disputa de poder e legitimidade com seu auditório, a impor suas visões ou vontades. Este trabalho buscou investigar que papel adota o Supremo Tribunal Federal em situações explícitas de instabilidade institucional do Estado brasileiro, e como tal da própria Constituição. Vale lembrar, que esta Corte por 5 As contribuições de autores que se debruçaram sobre a realidade empírica das relações jurídico-sociais brasileiras, lançando mão de métodos relativos as Ciências Sociais para estudá-las são relevantes: Roberto KANT DE LIMA (2004); Maria Stella de AMORIM, Roberto KANT DE LIMA, Regina Lúcia TEIXEIRA MENDES (2005) e Regina Lúcia TEIXEIRA MENDES (2003). 6 “O direito visa a fazer com que o mundo dos fatos esteja em conformidade com um mundo ideal; a transformar o mundo tal como ele é em um mundo tal como deveria ser.” (SUPIOT, 1994 apud Antoine GARAPON, 2003:60-61). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 12 atribuição constitucional (art. 1027, CRFB/88) deve ser o guardião da cidadania e por auto-referência se alcunha como árbitro da sociedade democrática. Entretanto nossa hipótese é de que o Supremo Tribunal Federal adota um espírito de corpo, como parte do Estado, para se escamotear, e desta forma, para proteger os interesses privados do próprio Estado, como pessoa jurídica de Direito Público. A originalidade da presente tese, a despeito das informações que levanta e analisa quanto às práticas discursivas do Supremo Tribunal Federal, sustenta-se por ser uma inédita experiência de abordagem metodológica das decisões judiciais no Brasil. Vale lembrar que, no cenário pátrio, são escassos estudos acerca da jurisprudência que fujam do modus operandi do bricoleur. Estamos usando o termo bricoleur com o sentido que lhe dá Claude LÉVY-STRAUSS (1976), ou seja, de uma atitude criativa que descontextualiza os significados dos signos para dar-lhes um sentido novo e próprio do seu criador, que tanto nos referenciamos no desenvolvimento de nosso texto. Para tanto, o trabalho foi organizado da seguinte forma: no primeiro capítulo apresentamos a contextualização da pesquisa, desenvolvendo a nossa problemática, tal seja, o papel do Supremo Tribunal Federal na defesa da cidadania brasileira, quando se apresenta um cenário de suposta crise, como sugerido na Intervenção Federal. Apresentamos, também, algumas reflexões que possibilitaram a conclusão de que o discurso da Corte Suprema brasileira é um discurso político. O capítulo II, em sua primeira parte, tem o objetivo de contextualizar historicamente o federalismo como fato histórico, tanto nos Estados Unidos da América, quanto no Brasil. Desenvolve, também, um estudo das representações do campo jurídico brasileiro acerca do federalismo e da intervenção federal, ou seja, são apresentados os elementos que constituem a semântica da linguagem, materializada nos discursos dos atores do Direito. 7 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 13 O capítulo III informa e analisa os temas e as categorias discursivas presentes nas decisões dos Ministros do Supremo Tribunal Federal que versam sobre Intervenção Federal. Tal análise tem o objetivo de comprovar a hipótese de que este discurso criativo serve para diluir os conflitos políticos e disfarçar as escolhas estatais na relação sociedade/cidadãos e entes federativos, de forma a privilegiar sempre o Estado. Finalmente, o capítulo IV discute as possíveis estruturas de uma gramática decisória do Supremo Tribunal Federal. Tais estruturas foram identificadas como o modus operandi da bricolage e a lógica do contraditório. Elas servem para alimentar um sistema de decisão para não prover os pedidos de intervenção federal provenientes da relação entre os entes federativos e a sociedade/cidadãos. Por fim, na conclusão da tese explicita-se a gramática usada pelo Supremo Tribunal Federal nas situações de grave instabilidade institucional do Estado brasileiro, nas decisões relativas a Intervenção Federal. Vale dizer, ainda, que estamos trazendo em anexo todas as decisões do Supremo Tribunal Federal na íntegra que tratamos na tese. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 14 CAPÍTULO I – A CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA 1.1. A problemática O objeto de estudo do grupo de pesquisa, a qual nos referimos na introdução, no qual se insere o presente trabalho, está baseado na investigação de quais e como se articulam os elementos formadores das decisões judiciais, principalmente aquelas que se fundam em temas constitucionais, como por exemplo, a igualdade jurídica, imunidades parlamentares entre outras (Fernanda DUARTE e Rafael IORIO: 2007a, 2007b, 2008). Assim, tanto o grupo como a tese trabalham a partir de uma idéia de jurisdição constitucional, o que nos remeteu a procurar entender qual seria o papel da Corte Brasileira, Supremo Tribunal Federal, responsável pela guarda da Constituição. Procuram entender, ainda, como são construídos os discursos existentes em suas decisões. Isto é, procuram explicitar a gramática decisória do Supremo. Em grande parte dos Estados ocidentais, desde o século XIX, foi atribuída aos juízes, ou por construção legislativa ou por via judicial, a função de interpretar o sentido da norma constitucional e controlar os atos estatais frente à constituição, surgindo desta forma a Jurisdição Constitucional. Segundo José Acosta SÁNCHES (1998: 341): “Em sentido amplo, Jurisdição Constitucional é todo procedimento judicial de controle de constitucionalidade dos atos estatais”. A importância de um estudo sobre a jurisdição constitucional está assim desenvolvida nas palavras de Fernanda DUARTE e José Ribas VIEIRA (2005:48): Integrando as reflexões acadêmicas sobre a temática do constitucionalismo democrático, a jurisdição constitucional, instrumentalizada nos diversos sistemas de controle da constitucionalidade das leis e atos normativos, revela a tensão entre Direito e Democracia que, dentro de um parâmetro de leitura liberal, expressa o conflito da limitação da vontade da maioria, materializada na lei (e, depois, na constituição) – e denominado pela doutrina de caráter contramajoritário. Nesse Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 15 diapasão, a discussão desloca-se, em realidade, para a problemática da legitimidade democrática da própria jurisdição constitucional, isto é, como ela merece uma justificativa racional dentro dos padrões do Estado Democrático de Direito. Os pressupostos das investigações realizadas por este grupo são os seguintes: a visão relativista do mundo; e, uma compreensão crítica8 e distinta do direito brasileiro. A visão relativista do mundo (Gustav RADBRUCH, 1999:2) defini-se como a apreensão originariamente de valores de forma subjetivista. Portanto, demarcamos inicialmente um movimento arbitrário de escolha, fruto da imponderabilidade das situações novas e imprevistas. Porém, isso não significa dizer que esse arbítrio não possa vir a ser racionalmente justificado. Mas sim, que o primeiro movimento é injustificável. Escolhe-se, para depois racionalizar, ou seja, faz-se crer que a escolha realizada é a correta. Portanto, a adesão que a fundamentação gera não se deve à qualidade moral da escolha (juízo de verdade), mas sim a seu potencial de convencimento, que passa a ser percebido, por aquele a quem se dirige, como não-arbitrário ou natural – o que nada mais é do que um instrumento de poder/dominação pela linguagem (Pierre BOURDIEU, 1989). Em segundo lugar, temos que a compreensão do direito brasileiro, resistente e encastelado em si mesmo, fornece uma percepção precária e reducionista da realidade social. Daí a necessidade de uma abordagem interdisciplinar a fim de inserir aqueles elementos tradicionalmente descartados pelo jurista, mas que integram e conformam essa realidade9. 8 Importante dizer que não estamos nos referindo a denominada Escola Crítica, mas sim a uma visão que busque problematizar o Direito de maneira multidisciplinar, articulando categorias e conceitos próprios da Lingüística, da Análise do Discurso, da Antropologia, da Política e da Sociologia, ou, em outras palavras, uma perspectiva que se afasta da reprodução de estruturas e conceitos trabalhados simplesmente pela Doutrina Jurídica. Sob esta perspectiva ver Roberto KANT DE LIMA (1983). Quanto a Escola Critica propriamente dita, interessante a leitura da seguinte passagem de Pedro PACHECO (1994:174): “O movimento crítico ou Critical Legal Studies, polariza-se na perspectiva política e insurge-se contra todas as visões e soluções, inclusive contra a Análise Econômica do Direito, razão de seu papel desmistifcador, apresentando uma alternativa através da utilização de argumentos derivados da filosofa política e social com influência de autores marxistas, e de autores variados, como Nietzche, Habermas, Foucalut e Rorty.” 9 Importante ressaltar que a visão positivista do Direito, que teve como marco o teórico Hans KELSEN (1998a, 1998b, 1998c), e inspirou toda a produção intelectual, seja para criticá-la, seja para reafirmá-la, do Direito dos séculos XX e XXI, acabou por afastar o Direito de toda consideração antropológica, sociológica, política e valorativa. O positivismo jurídico é um Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 16 Dentre os diversos temas de interesse investigados pelo grupo de pesquisa se coloca o papel do Supremo Tribunal Federal e suas relações com a construção da República e da Democracia brasileiras10. O Supremo Tribunal Federal desde a sua criação na República Velha em 1891 é reconhecido, com base no modelo norte-americano que inspirou nossa 1ª Constituição Republicana, como guardião da Constituição, ou seja, protetor do receptáculo dos valores jurídicos da sociedade, substituindo o papel atribuído ao antigo poder moderador imperial, que era responsável por ser o árbitro do choque entre os poderes e faccionismos das democracias representativas (José Reinaldo de Lima LOPES, 2000:320). Assim, ao Supremo Tribunal Federal caberia a função de implementação do Estado de Direito e da cidadania. Tal compreensão do papel do Supremo Tribunal Federal remete a discussão de algumas categorias centrais para o debate teórico: o Estado de Direito, limitação do poder e Estado Democrático de Direito. conceito da filosofia do direito que abarca três perspectivas a sua compreensão. Ele pode ser apreendido como uma abordagem do fenômeno jurídico; uma teoria do direito ou uma ideologia sobre o direito. A primeira refere-se ao estudo do direito como um fato social e não como um valor. “O direito é considerado como um conjunto de fatos, de fenômenos ou de dados sociais em tudo análogos àqueles do mundo natural” (Norberto BOBBIO, 1995:131). Sendo assim, o estudioso do direito deve estudá-lo, tal como os cientistas das Ciências Naturais, abstendo-se de formular juízos de valor. Deste ponto de vista, o Direito busca, então, sua validade em critérios de sua estruturação formal e não de um conteúdo valorativo. O segundo sentido comporta uma série de problemas que vão da consideração do Direito em função da coação, ou seja, conjunto de normas que valem por meio de força; passando por um problema de fontes de Direito, o embate entre a lei e o costume; a reflexão acerca da teoria da norma jurídica, que formula o conceito de norma como um comando imperativo; caminhando por uma teoria do ordenamento jurídico, que não mais concebe a norma isoladamente, mas em um conjunto, completo e coerente, de normas jurídicas vigentes numa sociedade; até chegar a considerações relativas ao método da ciência jurídica como um problema de interpretação referente a toda a atividade do cientista do Direito. A terceira representa uma visão ideológica do positivismo. Aqui se concebe a justiça como inerente às normas. As regras são justas pelo simples fato de provirem de um poder estatal criado para a manutenção da paz social. Resumidamente, o positivismo jurídico pode ser conceituado como a corrente de pensamento do Direito que agrupa esforços a criticar os juízos de valor, fundamentando os direitos pelo conhecimento científico, com características similares às ciências fisico-matemáticas, naturais e sociais, destituídas de avaloratividade (juízos de fato e de valor), sendo rigoroso na exclusão axiológica. 10 O grupo mencionado no texto acima é o denominado “Jurisdição Constitucional e Democracia” UGF/Cnpq, coordenado pela Profª. Drª. Fernanda DUARTE. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 17 O Estado de Direito está adstrito a limitação do poder político arbitrário através da instituição de leis que protejam juridicamente os direitos dos cidadãos. Neste sentido de Norberto BOBBIO afirma: A expressão ‘estado de direito’, com a qual os juristas da segunda metade do século passado designaram o estado constitucional moderno, pode ser entendida de diferentes maneiras, mas dois são os significados principais: 1) estado de direito é o estado limitado pelo direito, ou seja, o Estado cujo poder é exercido nas formas do direito e com as garantias préestabelecidas; (...) 2) estado de direito é o Estado que tem como função principal e específica a instituição de um estado jurídico, ou seja, de um estado no qual, segundo a definição kantiana do direito, cada um possa coexistir com os outros segundo uma lei universal. (Norberto BOBBIO, 1995:135). A limitação do poder tem seu ápice na Constituição, que, como estruturante do Estado de Direito, requisita o exercício do poder por um sistema normativo limitador. Sua idéia matriz está na competição da luta do poder entre os grupos sociais, tendo como característica a transmutação dos fenômenos do poder em Direito, submetendo a atividade política à forma jurídica. O denominador comum do valor normativo da Constituição confere o status de fonte da produção normativa e sua própria aplicabilidade como lei suprema, ou seja, tem a supremacia por imposição sobre todas as normas do sistema11. Já o Estado Democrático de Direito12 é uma fusão do ideal do governo da maioria como limitação do poder estatal, garantindo os direitos fundamentais constitucionalizados e a preservação da separação dos poderes. Neste modelo não se despreza o respeito inclusive as minorias, equiparando todos perante a lei e responsabilizando o governante, que passa a ter 11 Quanto a questão da supremacia constitucional, é interessante consultar Fernanda DUARTE e José Ribas VIEIRA (2005:50-59). 12 Menelick CARVALHO NETTO (2000:482), comentando o paradigma do Estado Democrático de Direito, elabora o seguinte raciocínio: "(...) no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto". Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 18 temporalidade e eletividade. Ao Estado de Direito tradicional foram incorporados gradativamente instrumentos vinculadores da democracia ao poder estatal, até o ponto em que a legitimidade estatal não se restrinja à legitimidade legal13, uma mera imposição normativa, e sim construa o consenso social baseado na pluralidade democrática. Ainda sobre o Estado Democrático de Direito, interessante a passagem de Lier Pires FERREIRA, Ricardo GUANABARA e Vladimyr Lombardo JORGE (2009:122-123): A difícil conciliação entre as tradições democráticas e liberais (Estado de direito) fez aflorar de forma explícita o elemento político-ideológico como orientador de valores, princípios das concepções políticas diversas. A concepção liberal tende a tratar as declarações de direitos que tutelam as liberdades fundamentais como postulados de racionalidade impostos acima de tudo e de todos, especialmente de maiorias parlamentares, garantindo o direito à vida, à propriedade, à livre iniciativa, às liberdades em geral. O processo político, através do Estado de direito, em especial do texto constitucional rígido, subordina-se aos princípios liberais presentes na Constituição, confirmando a limitação do poder soberano ao exercício temporal de um poder constituinte originário. Inicialmente legitimada pela soberania, a Constituição legitimaria a limitação do próprio poder que a constitui. O principal argumento da concepção liberal contra a soberania popular concentra-se no risco de uma democracia, através da vontade da maioria, converter-se em regime autoritário, pondo fim à própria democracia. Contra a democracia, então, seriam necessários instrumentos que garantissem sua própria preservação, devendo estes limites figurar na forma de direitos em um texto ordenador da política. Em contraposição às teorias liberais, as concepções 13 Quanto a esta distinção, interessante observar a seguinte passagem de Pierre BOURDIEU: “Legitimidade não é legalidade: se os indivíduos das classes mais desfavorecidas em matéria de cultura reconhecem quase sempre, ao menos da boca para fora, a legitimidade das regras estáticas propostas pela cultura erudita, isso não exclui que eles possam passar toda sua vida, de facto, fora do campo de aplicação dessas regras sem que estas por isso percam sua legitimidade, isto é, sua pretensão a serem universalmente reconhecidas. A regra legítima pode não determinar em nada as condutas que se situam em sua área de influência, ela pode mesmo só ter exceções, nem por isso define modalidade da experiência que acompanha essas condutas e não pode deixar de ser pensada e reconhecida, sobretudo quando é transgredida, como regra das condutas culturais que se pretendem legítimas. Em suma, a existência daquilo que chamo legitimidade cultural consiste em que todo indivíduo, queira ele ou não, admita ou não, está colocado no campo de aplicação de um sistema de regras que permitem qualificar e hierarquizar seu comportamento do ponto de vista da cultura.” (Pierre BOURDIEU, 1968:128). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 19 democráticas acentuam a titularidade do poder do povo, valorizando a soberania popular e, conseqüentemente, opondo-se a formas oligárquicas ou tecnocráticas de organização política, ambas admitidas implicitamente pelo Estado democrático de direito em sua matriz liberal. Ao limitar o poder do povo o Estado de direito torna-se obstáculo ao Estado totalitário, mas se impõe, também, como obstáculo às mudanças desejadas pela maioria, pelo povo. A difícil ou impossível conciliação entre as concepções democráticas e liberais encontra na idéia contemporânea de democracia deliberativa sua mais expressiva tentativa de acordo. Assim, se de um lado temos essas três categorias14 centrais - o Estado de Direito, limitação do poder e Estado Democrático de Direito - ao papel de cidadania; por outro, a cultura jurídica brasileira torna-se peculiar pela lógica do contraditório15. A partir da perspectiva da realidade jurídica brasileira, o Supremo Tribunal Federal é o ocupante do topo da hierarquia dos órgãos do Poder 14 Quanto a definição do significado do termo categoria, importante a leitura das passagens de Augusto Santos SILVA e José Madureira PINTO, e de Patrick SIMON: “Categorias são estruturas de pensamento que se distinguem dos conceitos e das idéias. Conceitos são representações mentais abstratas e gerais da realidade. Conceitos distinguem-se das idéias, pois estas pertencem à linguagem comum.” (Patrick SIMON, 2003: 111-130). “Categorias referem-se à qualidade atribuída a um objeto, isto é, ao atributo de um objeto ou de uma realidade. Ela permite, assim, fragmentar, ou decompor em múltiplas partes, esse objeto ou essa realidade, o que permite o conhecimento mais preciso e detalhado, já que o todo não é a soma das partes componentes, mas o resultado da articulação dessas partes.” (Augusto Santos SILVA e José Madureira PINTO, 1989: 29-53). 15 Já antecipando o que significa a lógica do contraditório, conceito que será desenvolvido no item 4.2. deste trabalho, afirma Maria Stella de AMORIM (2006:107-108): “Um dos fatores que alimentam dissensos reside na lógica do contraditório presente na prestação jurisdicional e em todo o campo do Direito brasileiro, tanto em suas manifestações práticas, como nas teóricas e doutrinárias. A origem desta lógica, tanto quanto registra a história do saber jurídico, já era encontrada nos exercícios de contradicta realizados nas primeiras universidades, que ministraram o ensino jurídico durante a Idade Média, particularmente na Itália, berço europeu deste ensino. Por ser constituída de argumentação infinita, a lógica do contraditório necessita da manifestação de uma autoridade que a interrompa para que seja dada continuidade aos procedimentos judiciais nos tribunais brasileiros. Na ausência da autoridade formalmente constituída, o contraditório prossegue, sempre descartando a possibilidade da comunicação tornar-se consensual entre os interlocutores e o auditório. A característica essencial dessa lógica, a despeito de sua estrutura aberta, encontra-se na supressão da possibilidade dos participantes alcançarem concordância, sejam eles partes do conflito, operadores jurídicos ou doutrinadores, o que sugere ausência de consenso interno ao saber produzido no próprio campo e, no limite, falta de consenso externo, manifesto na distribuição desigual da justiça entre os jurisdicionados pelas mesmas leis que lhes são aplicadas e pelos mesmos tribunais que lhes ministram a prestação jurisdicional.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 20 Judiciário16. Ele exerce, pois, um papel de ser mais um corpo do Estado, assim como os poderes Executivo e Legislativo, a disputar a primazia do poder político estatal. Ao compararmos, esta atividade do Supremo Tribunal Federal com a da Suprema Corte Americana no mesmo exercício de cúpula, verificamos que esta exerce o papel de intérprete do Estado de Direito. O modelo que a inspira é de ser a última porta-voz da soberania do Estado e de ser a guardiã das dimensões contemporâneas da cidadania. Na verdade ela seria o árbitro da sociedade americana, construindo suas decisões pela lógica do consenso17. As duas grandes funções do Supremo Tribunal Federal – ser órgão de cúpula do poder judiciário brasileiro e, conforme o art. 102 da CRFB/88, ser guardião da Constituição - nos leva, então, a duas perguntas fundamentais: 1) se nos momentos em foi chamado a exercer a função de guardião da Constituição, e como tal do Estado de Direito, ele realmente a cumpriu? Vale lembrar que em regimes autoritários vividos no Brasil, ele nunca teve suas portas fechadas. 2) Portanto, por ser um órgão de cúpula de um dos poderes do Estado, adota uma postura de manutenção do status quo, mesmo que contrária aos valores do Estado de Direito18? Desta perplexidade inarredável a questão norteadora deste trabalho: investigar e explicitar a forma pela qual o Supremo Tribunal Federal articula elementos simbólicos, na construção de seus discursos e papéis diante de 16 Para se ter uma idéia acerca da concepção de órgão de cúpula da justiça que o Supremo Tribunal Federal faz de si mesmo, é interessante a leitura do texto “Algumas notas informativas (e curiosas) sobre o Supremo Tribunal (Império e República)”, publicado no sítio do Supremo Tribunal Federal no qual o Ministro Celso de MELLO, autor do texto, aponta claramente existir uma linha de continuidade como corte suprema da Casa da Suplicação do Brasil (1808) até o Supremo Tribunal Federal dos dias de hoje. Disponível em: <www.stf.gov.br> (atual: www.stf.jus.br) Acesso em: 03 de março de 2008. 17 Quanto a descrição deste papel da Suprema Corte Americana ver José de Souza BRITO (1995); Ernani Rodrigues de CARVALHO (2004); Marcus Faro de CASTRO (1997); Gisele CITADINO (2002); Mark KOSLOWSKI (2003); Luiz Guilherme MARINONI (2005); Michael W. MCCONNEL (2004); William G. ROSS (2003); José Adércio Leite SAMPAIO (2002); Bernard SCHWARTZ (1993)). 18 Para esta tese é irrelevante a distinção entre Estado de Direito e Estado Democrático de Direito, pois partimos da premissa de que a lei limitadora do arbítrio do poder estatal é proveniente de uma autoridade democraticamente estabelecida. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 21 situações de instabilidade institucional do Estado Democrático de Direito, e como tal, da ordem constitucional. Tendo em vista estas situações de anormalidade constitucional que o Supremo Tribunal Federal é chamado a participar, nos leva a articulação entre instabilidade institucional (diferenciação institucional) e dissensos, ou seja, movimentos contrários que levam a uma indiferenciação social ou anomia no sentido durkeimiano (Émile DURKEINM, 1960, 1984, 1972), o que nos levou a escolher analisar decisões que tivessem como temática a Intervenção Federal19, uma vez que este instituto jurídico de implementação da supremacia constitucional20, remeteria o Supremo Tribunal Federal diante de escolhas de força explícita e manutenção do Estado de Direito. 19 O instituto jurídico da Intervenção Federal, apesar de doutrinariamente, como veremos nesta tese mais a frente (capítulo II) não ser considerado um instituto de Estado Democrático Excepcional (Giorgio AGAMBEN, 2004), pois não suspende direitos fundamentais, trabalha a proteção do próprio Estado, e como tal da própria supremacia constitucional, diante de circunstâncias políticas ou jurídicas de instabilidade. 20 A doutrina constitucional brasileira apresenta o instituto da intervenção federal como um dos mecanismos, ou melhor, elementos da Constituição para a sua estabilização ou implementação da supremacia constitucional. José Afonso SILVA (2006:47): “...(4) elementos de estabilização constitucional, consagrados nas normas destinadas a assegurar a solução e conflitos constitucionais, a defesa da constituição, do Estado e das instituições democráticas, e são encontrados no art. 102, I, a (ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade), nos arts. 34 a 36 (Da Intervenção nos Estados e Municípios), 59, I, e 60 (Processo de emendas à constituição), 102 e 103 (Jurisdição constitucional) e Título V (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, especialmente o Capítulo I, porque os Capítulos II e III, como vimos, integram elementos orgânicos)...”. Constituição da República Federativa do Brasil: “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: I - manter a integridade nacional; II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra; III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública; IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; V reorganizar as finanças da unidade da Federação que: a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior; b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei; VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial; VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000). Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando: I deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada; II - não forem prestadas contas devidas, na forma da lei; III - não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000). IV - o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial. Art. 36. A decretação da intervenção dependerá: I - no caso do art. 34, IV, de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 22 Neste sentido, parece relevante examinar as decisões do Supremo Tribunal Federal quando estão envolvidas as relações de poder entre os entes constitucionalmente constituídos e o cidadão. A questão não é saber se algo é verdadeiro, mas, sim, saber por que esse algo se tornou verdadeiro21. 1.2. A jurisprudência como objeto de interesse investigativo O que significa uma decisão de um juiz? No meio jurídico, as decisões judiciais não têm sido contempladas com expressivo interesse investigativo. No meio acadêmico, pouca é a literatura produzida, marcando-se alguns esforços no sentido de construir ferramentas de investigação que nos ajudem a melhor compreender e explicar o processo de tomada de decisões e a própria decisão do juiz em si, enquanto objeto de reflexão22. No campo profissional, associado aos operadores do direito, as decisões, em geral, são manejadas apenas como “argumento de autoridade”,23 solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário; II - no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral; III de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). § 1º - O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembléia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas. § 2º - Se não estiver funcionando o Congresso Nacional ou a Assembléia Legislativa, far-se-á convocação extraordinária, no mesmo prazo de vinte e quatro horas. § 3º Nos casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional ou pela Assembléia Legislativa, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade. § 4º - Cessados os motivos da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal.” 21 Esta concepção se inspira nas teorias de Pierre BOURDIEU (1989, 1992, 2004), em sua análise sobre o Poder Simbólico e nas categorias associadas a compreensão desse poder, como ‘campo’, ‘capital’, ‘habitus’, ‘violência simbólica’ e ‘violência física’. 22 Como esforço de ruptura com essa indiferença, Fernanda DUARTE (2006); Oscar Vilhena VIEIRA (2002 e 2006); Andrei KROENER, (2006) e Marcus Faro de CASTRO e Rochelle Pastana RIBEIRO (2006). 23 A doutrina jurídica denomina tal uso das decisões dos tribunais como “eficácia persuasiva” da jurisprudência. Como nos diz Leonardo GRECO (2003:3): “A jurisprudência não é cristalizada em um postulado abstrato, mas em um acórdão inteiro, com todas as suas particularidades, tal como o exigia o Supremo Tribunal Federal para a caracterização do dissídio jurisprudencial no antigo recurso extraordinário (Súmula 291), consoante a regra de comparação hoje inscrita no parágrafo único do artigo 541 do Código de Processo Civil. Nessa comparação, restringe-se a eficácia vinculante às chamadas rationes decidendi, como critérios jurídicos que identificam os fatos relevantes da controvérsia e os fundamentos centrais da Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 23 que se prestam a reforçar as teses sustentadas pelas partes em juízo ou mesmo a própria decisão tomada pelo juiz. Tal constatação, de todo não nos surpreende, vez que nosso sistema jurídico alinha-se ao modelo romanogermânico24, onde classicamente se relega a uma posição de menor relevância o papel da jurisprudência no sistema de fontes do direito, reduzindo-se o juiz a figura de um simples “aplicador” da lei. Neste sentido, as decisões proferidas pelas cortes materializam, no campo jurídico, as representações25 de seus juízes sobre a problemática abordada, cristalizando e formalizando uma relação no campo jurídico, que se traduz na chamada prestação jurisdicional. Do magistrado, contudo, não se pode exigir neutralidade ideológica26, traduzida em total abstenção de seus sentimentos, convicções pessoais e decisão e desprezam-se os denominados obiter dicta, argumentos ou circunstâncias secundários ou acessórios, ou se lhes confere simples eficácia persuasiva.” (grifos nossos). 24 O sistema romano-germânico, também denominado Civil Law, predominantemente adotado na Europa continental, corresponde a um longo processo histórico que remete ao direito romano, cuja compilação e codificação originaram uma ordem racional de conceitos. O direito brasileiro insere-se no sistema romano-germânico por possuir como característica principal a positivação de regras jurídicas gerais e abstratas em corpos legislativos escritos, como os códigos de direito material e de processo. 25 Segundo Serge MOSCOVICI (1981:181) a definição de representação social é “a set of concepts, statements and explanations originating in daily life in the course of interindividual communications.” 26 Sobre esta questão, interessante a passagem de Guilherme Calmon Nogueira da GAMA (2008:4-5): O Direito é um fenômeno social, cultural e histórico, sendo influenciado, como tanto, pelos valores e aspirações vigentes em um determinado momento espaço-temporal e pela experiência de vida daquele que o aplica. Nem sempre, contudo, foi assim. A perspectiva clássica, marcada pelo positivismo e almejando “cientificar” o Direito sob uma pseudoneutralidade ideológica, buscou dele afastar sua realidade humana, transformando-o numa exterioridade observável. Para o positivismo, o Direito, como as demais ciências, deveria se fundar em juízos de fato, os quais visam a demonstrar a realidade, e não em juízos de valor, os quais representam uma tomada de posição diante da realidade. Houve clara cisão do discurso jurídico, com a compartimentação do conhecimento do Direito, dividido em duas partes estanques, à luz do positivismo: a) a parte ideológica, responsável pela “ciência das normas”; e b) a parte axiológica, com atribuição no campo dos valores subjacentes e aqueles baseados pela ordem jurídica. Os dois conceitos a serem enfatizados, dessa maneira, eram a neutralidade e a objetividade. A neutralidade dizia respeito a um afastamento completo entre o operador e seu objeto, de modo a que aquele não fosse influenciado por sua subjetividade, por sua história de vida, por sua vivência social. A objetividade dizia respeito à suposição da existência de regras de validade geral, independentemente do observador, as quais, uma vez descobertas, permitiriam a previsão racional do funcionamento do objeto. Do positivismo jurídico resultou a atitude descompromissada do jurista quanto ao objeto e limites de seu trabalho, já que o Direito era considerado uma ciência neutra e objetiva. O resultado dessa visão foi o dogma da completude da lei, com a redução do processo de solução de conflitos a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 24 biografia, porque toda decisão é baseada em uma das interpretações possíveis, em uma escolha, consistindo na expressão de uma vontade, através da adaptação do texto normativo aos fatos e ocorrências singulares da vida efetivadas por um ser humano, que é o juiz. Assim, toda decisão possui certa carga ideológica e todo magistrado possui uma maneira própria de dizer o direito, expressando-o em um estilo escrito, dentro das possibilidades próprias da técnica de decisão, que a dogmática processual impõe. Sua decisão, que antes era ato de linguagem subjetivo da autoridade, ao ser publicada no Diário Oficial da Justiça, passa para a esfera pública, daí advindo sua existência jurídica. E tratando-se de um ato de vontade de um Estado que se pretende democrático, por determinação da própria Constituição de 1988 em seu art. 1º, deveria direcionar-se para a legitimação da intervenção judicial. (Fernanda DUARTE e Rafael IORIO: 2007a e 2008). Finalmente, uma última constatação que podemos relacionar a jurisprudência como objeto de investigação, baseia-se no fato de a jurisprudência retratar, na concretização do discurso pelos juízes, a problemática, da legitimação na “solução”/administração dos conflitos, entre o tribunal e a sociedade; uma vez que é uma prática da imposição da autoridade estatal sobre os conflitos sociais na busca pelo “credo jurídico” de se solucionar as controvérsias. Chamamos atenção aqui para o fato de que o habitus27 do campo tem a crença de que o conflito social pode ser “solucionado” através de um processo movido pelas partes em desacordo que provocam o Estado-juiz detentor, por força de lei, do uso legítimo da -, para resolver este conflito e, desta forma, restaurar ou restabelecer a paz social fraturada. Na compreensão do campo jurídico, o conflito social é reduzido a uma categoria técnico-processual abstrata, chamada lide, distanciando-se assim, dos fatores reais do conflito. A lide28 é categoria que se ajusta qualquer tipo de um procedimento silogístico de subsunção do fato à norma, sendo o juiz apenas a “boca da lei”. 27 Quanto a esta categoria própria do pensamento de Pierre BOURDIEU, veja o item 1.4 do presente trabalho. 28 Quanto a uma reflexão aprofundada acerca do papel da jurisprudência e de sua relação com a categoria ‘lide’, importante conferir Fernanda DUARTE (2007). Ou, como podemos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 25 conflito social. É compreendida como um conceito de conflito que deve ser solucionado ou resolvido, mas não administrado. Assim, o conflito, para ingressar no sistema judicial, se transforma em lide. A lide, pelo processo, é solucionada pelo juiz e o conflito é devolvido à sociedade. Portanto, a categoria lide não permite a administração dos conflitos que permeiam a sociedade. Aliás, esta crença do campo jurídico deriva de outra, que acredita ser possível existir uma sociedade pacificada, isto é, sem conflitos. (Fernanda DUARTE e Rafael IORIO: 2007a, 2008). O que causa maior estranheza é o fato do campo jurídico brasileiro definir a função precípua da jurisdição ser a pacificação social, sobretudo pela escolha do constituinte ter sido por um modelo econômico de de economia de mercado, no qual o conflito é inerente a própria sociedade. Segundo Shelton DAVIS (1973:10), diferentemente das Ciências Sociais, o direito brasileiro não considera o conflito como algo inerente e indissociável as sociedades, pelo contrário, ele acredita ser possível extinguílo. Trata-se, como nos diz Bárbara BAPTISTA (2008:48): “de uma pretensão tal que faz com que os operadores deste campo se vejam como missionários da pacificação dos conflitos sociais.” 1.3. O discurso jurídico do Supremo Tribunal Federal como discurso político O termo discurso na perspectiva lingüística significa um encadeamento de palavras, ou uma seqüência de frases que seguem determinadas regras e ordens gramaticais no intuito de indicar a outro - quem se fala ou escreve - que lhe pretendemos comunicar/significar alguma coisa. Este conceito pode ser compreendido também do ponto de vista da lógica, como a articulação de depreender de BAPTISTA (2008:33): “O mundo jurídico é estabelecido como uma esfera à parte das relações sociais, onde só penetram aqueles fatos que, de acordo com critérios formulados internamente, são considerados como relevantes para o Direito. Ocorre que, em realidade, o Direito não pode ser estudado de forma dissociada do seu campo social de atuação porque ele é parte do controle social. Em sendo assim, o Direito não pode ser visto como um saber ‘monolítico’.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 26 estruturas gramaticais com a finalidade de informar conteúdos coerentes à organização do pensamento. Mas o que é o discurso político? Poderíamos afirmar que o discurso do Supremo Tribunal Federal é um discurso político? Qualquer enunciado ou falar pode ter um significado político29 a partir do momento em que a situação autorizar. Em outras palavras, é a situação de comunicação que torna o discurso político, é a situação que o politiza. Há, pois, diferentes lugares onde se fabrica o pensamento político, que não está reservado apenas aos responsáveis pela governança nem aos solitários pensadores da coisa política. A produção do sentido é, uma vez mais, uma questão de interação e é, portanto, segundo os modos de interação e a identidade dos participantes implicados que se elabora o pensamento político. Assim, podemos distinguir três lugares de fabricação desse pensamento, que correspondem cada qual a um desafio de troca linguajeira particular: em primeiro, um lugar de elaboração dos sistemas de pensamento, além dele, um lugar cujo sentido está relacionado ao próprio ato de comunicação, e por último, um lugar onde é produzido o comentário (CHARAUDEAU, 2006). Como nos ensina Patrick CHARAUDEAU (2006:17): O discurso político como sistema de pensamento é o resultado de uma atividade discursiva que procura fundar um ideal político em função de certos princípios que devem servir de referência para a construção das opiniões e dos posicionamentos. É em nome dos sistemas de pensamento que se determinam as filiações ideológicas e uma análise do discurso deve se dedicar a descrevê-los a partir de textos diversos. O discurso político como ato de comunicação concerne mais diretamente aos atores que participam da cena de comunicação política, cujo desafio consiste em influenciar as opiniões a fim de obter adesões, rejeições ou consensos. Ele resulta de aglomerações que estruturam parcialmente a ação política e constrói imaginários de filiação comunitária, mas dessa vez, mais em nome de um comportamento comum, mais ou menos ritualizado do que um sistema de pensamento, mesmo que este perpasse aquele. Aqui o discurso político 29 Para os fins deste trabalho o termo política está empregado no sentido de disputas pelo poder ou que envolvem escolhas de soberania do Estado. Neste sentido ver WEBER (2002:55). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 27 dedica-se a construir imagens de atores e a usar estratégias de persuasão e sedução empregando diversos procedimentos retóricos. O discurso político como comentário não está necessariamente voltado para um fim político. O propósito é o conceito político, mas o discurso inscreve-se em uma situação cuja finalidade está fora do campo da ação política: é um discurso a respeito do político, sem risco político. Pela mesma razão, a atitude de comentar não engendra uma comunidade específica, a não ser ajustamentos circunstanciais de indivíduos por ocasião de trocas convencionais não voltadas exclusivamente a política. Um discurso de comentário tem por particularidade não engajar o sujeito que o sustenta em uma ação. Sob esta inspiração de como se opera o discurso político, a tese trabalha as relações entre poder e direito no Brasil, tomando como objeto de investigação as decisões do Supremo Tribunal Federal nos momentos em que é chamado a intervir e aplicar suas decisões. Em outras palavras, em um primeiro plano de compreensão, as decisões do Supremo Tribunal Federal são políticas por sempre envolverem processos de escolha de posicionamentos quanto a limitação ou atuação de poder do Estado. Sendo assim, sem descurar do caráter essencialmente jurídico da jurisdição constitucional, muito sustentada por autores como SÁNCHES (1998) e KELSEN (2003), como nossa temática está ligada a limitação de poder, a pesquisa ora desenvolvida distingue com apreço seus aspectos políticos. Finalmente, após esta digressão do que é o fenômeno político, podemos dizer, em um segundo plano de compreensão, com base nas categorias que identificamos em nossos dados, após nossa análise discursiva, que o discurso do Supremo Tribunal Federal também é político, pois ele se articula para despolitizar o conflito federativo, ao optar sempre pelo Estado em detrimento da sociedade/cidadão que o acessa.30 1.4. 30 Algumas reflexões teóricas Importante, entretanto, informar que vamos desenvolver melhor esta idéia no item 3.2 de nossa tese. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 28 Importante dizer, desde logo que, todos os referenciais teóricos usados nesta tese não foram desenvolvidos por seus autores para o campo de nossa pesquisa e suas especificidades, mas as suas categorias teóricas nos servem para que possamos pensar e problematizar o nosso objeto, que possui um desenho essencialmente político.31 1.4.1. As categorias teóricas de Pierre Bourdieu O quadro teórico da presente ajusta-se ao debate das relações entre o direito e o poder fixando o âmbito das estratégias de poder em uma matriz de violência física, em que há uma imposição explícita de força pela autoridade, Supremo Tribunal Federal, que ocupa o topo da hierarquia do campo jurídico brasileiro, ou simbólica – legítima. Para tanto, articular-se-ão as seguintes noções: “sistema simbólico”, “violência simbólica”, “habitus”, “campo de lutas jurídicas” e “estratégia de poder”32. Os sistemas simbólicos e as suas relações ideológicas designam a característica própria das sociedades humanas em que os agentes sociais 33 criam estruturas de comportamento e pensamento de dominação, denominado por BOURDIEU (1989) de poder simbólico. Tais estruturas podem ser tomadas como arcabouço legítimo, na luta frente a outros agentes na manutenção e distinção de seu campo social. 31 Interessante observar, entretanto, que esta aproximação entre teorias de Ciências Sociais e reflexões acerca do direito e do campo jurídico brasileiro já foram realizadas por autores como ROCHA (2003), KANT DE LIMA (1983) e TEIXEIRA MENDES (2008). Do ponto de vista metodológico que emprega métodos usados pelas Ciências Sociais para estudar o campo jurídico ver a introdução de AMORIM, KANT DE LIMA e TEIXEIRA MENDES (2005). 32 Essas categorias são tributadas aos franceses Michel FOUCAULT e Pierre BOURDIEU, e foram usadas como inspiração para esta tese conforme bibliografia citada. 33 Entende-se como agentes sociais os atores sociais de funções próprias, em razão de suas práticas, na autonomia do seu campo social. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 29 Já a violência simbólica é fruto da relação que se estabelece entre os agentes internos de um campo e os externos34. Esta categoria, advinda da violência física - imposição de vontade por força material - nada mais é do que a articulação de um instrumental de dominação para convencer aos agentes sociais, naturalizando os discursos pelo domínio da linguagem, de que determinada realidade é verdadeira e legítima porque não arbitrária. Ela dispensa a violência física por conseguir os mesmos efeitos de maneira mais eficaz. A naturalização das crenças trabalhadas pelo domínio através da linguagem impõe uma estrutura de pensamento específico (habitus), que faz com que os dominados, diferentemente da arbitrariedade física, não 34 Para entender estas categorias importantes a leitura da seguinte trecho de BOURDIEU: “Se bem que a estrutura do campo intelectual possa ser mais ou menos complexa e mais ou menos diversificada, segundo as sociedades e as épocas, o peso funcional das diferentes instâncias legítimas ou pretendendo à legitimidade cultural se ache modificado em cada caso, não há dúvida de que certas relações sociais fundamentais se reencontram desde que exista uma sociedade intelectual dotada de uma autonomia relativa diante dos poderes, político, econômico e religioso: relações entre os criadores, contemporâneos ou de épocas diferentes, igual ou desigualmente consagrados por públicos diferentes e por instâncias desigualmente legitimadas ou legitimantes, relações entre os criadores e as diferentes instâncias de legitimação legítimas ou pretendendo à legitimidade, academias, sociedades de sábios, cenáculos, círculos ou grupelhos mais ou menos reconhecidos ou desprezados, instâncias de simples transmissão como os jornalistas especializados, com todos os tipos mistos e as duplas dependências possíveis. Conclui-se que as relações que cada intelectual pode manter com cada um dos outros membros da sociedade intelectual ou com o público e, a fortiori, com toda a realidade social exterior ao campo intelectual (como sua classe social de origem ou de fato, ou poderes econômicos enquanto vendedores ou compradores) são mediatizadas pela estrutura do campo intelectual ou, mais exatamente, por sua posição em relação às autoridades propriamente culturais cujos poderes organizam o campo intelectual: os atos ou os julgamentos culturais encerram sempre referência à ortodoxia. Porém, mais profundamente, no interior do campo intelectual enquanto sistema estruturado, todos os indivíduos e todos os grupos sociais que são específica e duradouramente destinados à manipulação dos bens de cultura (para transpor uma fórmula weberiana) mantêm não somente relações de concorrência mas também relações de complementaridade funcional, de sorte que cada um dos agentes ou dos sistemas de agentes que fazem parte do campo intelectual deve uma parte maior ou menor de suas características à posição por ele ocupada nesse sistema de posições e de oposições. Assim, encarregada de perpetuar e de transmitir um capital de significações consagradas, isto é, a cultura que lhe foi legada pelos criadores intelectuais do passado, e de submeter a uma prática formada segundo os modelos dessa cultura um público solicitado por mensagens concorrentes, cismáticas ou heréticas – por exemplo, os meios de comunicação modernos em nossas sociedades -, obrigada a fundar e delimitar, de maneira sistemática, a esfera da cultura ortodoxa e a esfera da cultura herética, ao mesmo tempo defender a cultura consagrada contra os desafios incessantes que lhe lançam, só por sua existência ou por suas agressões diretas, os novos criadores capazes de suscitar no público (e sobretudo nas camadas intelectuais) novas exigência e inquietações contestadoras, a Escola se acha investida de uma função perfeitamente análoga à da Igreja que, segundo Max Weber, deve ‘fundar e delimitar sistematicamente a nova doutrina vitoriosa ou defender a antiga contra ataques proféticos, estabelecer o que tem e o que não tem valor sagrado e fazê-lo penetrar na fé dos leigos’.” (BOURDIEU,1968:132 e 133). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 30 percebam as imposições que lhes estão sendo colocadas, criando desta forma, uma estabilidade maior na manutenção do poder do campo. Habitus é uma categoria criada por Pierre BOURDIEU para definir a estruturação de um raciocínio próprio, e de uma cultura em ação. Define, as relações e as práticas dos agentes sociais e seus campos, de forma a legitimar e criar o campo sobre o qual agem. Segundo Bourdieu é um conhecimento adquirido, uma cultura específica e também um haver, um capital de um sujeito transcendental na tradição idealista. O habitus ou a hexis é uma habilidade incorporada, quase postural de um agente em ação (Bourdieu, 1989:61). Nas palavras do autor: Habitus é um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas. (BOURDIEU, 1983:65). Esse modo de pensar específico dos agentes de um campo de poder é historicamente construído, evoluindo em novas formas de adaptação e reforço de suas convicções, sem, contudo serem atingidos seus princípios essenciais. Ele procura ser maleável aos anseios dos agentes impedidos de adentrar ao campo, a fim de que possam se manter as relações de poder como legítimas. Interessante observar quanto ao habitus jurídico o que diz Álvaro da ROCHA (2003:104-105): Esta noção é de extrema utilidade para se compreender a mecânica da resistência dos juristas, especialmente os magistrados, às mudanças no campo, cuja existência e manutenção a formação do seu ‘habitus’ induz, quer dizer, o treinamento dos juristas, em especial os juízes, para sua ação no campo jurídico deve fazê-los acreditar na possibilidade de existência de um espaço social e mental onde se efetive a imparcialidade, aonde não cheguem as pressões sociais externas. O conjunto de disposições pessoais criadas já na graduação em Direito, muitas vezes já preparada por uma trajetória de vida ligada às carreiras jurídicas de familiares, e Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 31 completada nos primeiros anos da carreira, leva os juristas a desenvolver profundamente um ‘habitus’ judicial que envolve toda uma visão do mundo através de categorias jurídicas, criando um universo autônomo fechado às pressões externas, imunes a tais questionamentos que têm como ilegítimos, por virem de fora do campo jurídico, originando-se nos interesses e lógicas próprios aos demais campos. Outra noção importante, por complementar a de habitus, é a de campo de poder. Campo é um espaço social de relações de forças, traduzidas na disputa de poder entre os agentes sociais, sendo dotado de regras e conhecimentos específicos (habitus) para a estruturação das relações de poder. Nas palavras de Pierre BOURDIEU: Um campo, e também o campo científico, se define entre outras coisas através da definição dos objetos de disputas e dos interesses específicos, que são irredutíveis aos objetos de disputas e dos interesses próprios de outros campos (não se poderia motivar um filósofo com as questões próprias dos geógrafos) e que não são percebidos por quem não foi formado para entrar nesse campo (cada categoria de interesses, a outros investimentos, destinados assim a serem percebidos como absurdos, insensatos, nobres e desinteressantes). Para que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas, e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de ‘habitus’ que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc. (BOURDIEU, 2004:89) Um campo35 em sua estruturação interna estabelece valores e objetivos próprios, sendo reconhecidos como metas a serem alcançadas na disputa entre os agentes sociais. Sua organização dá-se por padrões de 35 Pelas palavras de BOURDIEU: “O campo de poder (de preferência a classe dominante, conceito realista que designa uma população verdadeiramente real de detentores dessa realidade tangível que se chama poder), entendendo por tal as relações de forças entre as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou de capital – de modo a que estes tenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder, entre as quais possuem uma dimensão capital as que têm por finalidade a definição de forma legítima do poder (penso, por exemplo, nos confrontos entre ‘artistas’ e ‘burgueses’ no século XIX)”. (BOURDIEU, 1989:28 e 29). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 32 pensamento e matrizes de educação recebidos por investimentos possíveis de situar os agentes dentro do campo munidos do reconhecimento de sua hierarquização e lógica de mobilidade interna. Tais investimentos ou capitais para a inserção nos campos são de três ordens: econômica, cultural e social. A primeira ordem caracteriza-se como a fonte econômica que detém um agente ou classe econômica situada. A segunda representa as formas de conhecimento e educação (muitas vezes providas desde crianças pelas famílias), que estrategicamente preparam as mentes nas lógicas específicas de cada campo. Finalmente, o capital social, suportado pelos anteriores capitais, está nos recursos aplicados ao reconhecimento como membro do grupo, obtendo acesso às oportunidades, aos eventos e a uma rede de relações institucionalizadas interativas. Da soma desses capitais chega-se ao habitus, cujo sistema significa a estrutura interna do campo, que garante aos agentes auferir lucro com o retorno dos investimentos aplicados, traduzindo a razoável possibilidade de avaliação das forças envolvidas no campo para se obter vitórias nas disputas. Finalmente quanto à definição de estratégias, leia-se a definição de Michel FOULCAULT: A palavra estratégia é corretamente empregada em três sentidos. Primeiramente, para designar a escolha dos meios empregados para se chegar a um fim; trata-se da racionalidade empregada para atingirmos um objetivo. Para designar a maneira pela qual um parceiro, num jogo dado, age em função daquilo que ele pensa dever ser ação dos outros, e daquilo que ele acredita que os outros pensarão ser dele; em suma, a maneira pela qual tentamos ter uma vantagem sobre o outro. Enfim, para designar o conjunto dos procedimentos utilizados num confronto para privar o adversário dos seus meios de combate e reduzi-lo a renunciar à luta; trata-se, então, dos meios destinados a obter a vitória. Estas três significações se reúnem nas situações de confronto- guerra ou jogo- onde o objetivo é agir sobre um adversário de tal modo que a luta lhe seja impossível. A estratégia se define então pela escolha das soluções ‘vencedoras’. (RABINOW,1995:247) Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 33 Há uma relação de lutas e jogos de apropriação, reprodução e negação dos discursos e práticas de dominação (poder) pelos agentes sociais em cada campo, tanto em seu aspecto interno quanto externo. O exercício do livre arbítrio permitido por esse habitus na dinâmica social dos embates escolhe a melhor estratégia de poder, que visa a manter ou a alcançar a legitimidade do monopólio de produção ideológica (dominar), outros agentes e campos. Daí a importância deste conceito para análise contextual do discurso do Supremo Tribunal Federal. O político integra o mundo jurídico e o significado das normas jurídicas só é compreendido “quando as integramos no conjunto de complexos normativos que organizam a vida social” (HESPANHA, 2000:16). O espaço do enraizamento do direito36 não é arbitrário com um único centro definidor de sentido, ao contrário, para Michel Foucault, ele resulta do enfrentamento das questões de poder. Partindo desses pressupostos, o termo poder (BORDIEU, 1989) é indissociável do fenômeno político e jurídico, e elege uma classificação relacional37 ou pluralista38. Existem concepções diferentes de poder, dentre as quais destacamos duas: para Max Weber o poder39 revela-se como uma capacidade de imposição, física e simbólica, da vontade de um indivíduo. 36 HESPANHA, (2000:16): "(...) realçar o enraizamento social do direito é a de mostrar que o complexo social do direito não é arbitrário, antes sendo explicável pelas condições sociais da sua produção. Sublinhamos da sua, para significar, por um lado a recusa de modelos explicativos muito globais, que ligavam a explicação de todos os fenômenos sociais a um ‘centro’ único produtor de sentido (fosse ele a infra-estrutura econômica da sociedade ou o subconsciente individual). E, por outro lado, para apontar para modelos de explicação sociológica que relacionam os efeitos sociais com a particular estrutura do espaço social específico em que eles são produzidos. Neste caso, com os espaços sociais (‘campos’, na terminologia de Pierre Bourdieu, ‘práticos discursos’ ou ‘dispositivos’, na terminologia de M. Foucault) do direito.” 37 Noberto BOBBIO apresenta uma classificação das teses sobre poder em três vertentes: substancialista, subjetivista e relacional. Esta encerra o poder em uma relação entre indivíduos. BOBBIO, (1985:77-78). 38 39 As estruturas de poder não são centralizadas. Vide BACHRACH, (1979:43-52). O que não significa dizer, que se ignoram os diversos conceitos de poder apresentados pelas várias concepções sociológicas. A título ilustrativo há três concepções conforme LEBRUN, (2004:10-24). A primeira, de inspiração weberiana, concebe o poder como uma potência ou capacidade própria de alguém de influir ou impor sua vontade a outrem no interior Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 34 Por outro lado, o pensamento de Pierre BOURDIEU e de Michel FOUCAULT, concebe o poder como um campo de representação da prática discursiva de estratégias de forças, para outrem ou outros campos dispersos no tecido social, circundando a sanção e o símbolo40, reconhecidos como arbitrário ou legítimo. Tomando como parâmetro tais categorias teóricas para refletir sobre a jurisdição constitucional, e como tal, sobre os discursos do Supremo Tribunal Federal, visto que este no campo jurídico41 brasileiro ocupa a posição mais alta da hierarquia, essas estratégias se traduzem em teses de legitimação da própria jurisdição constitucional e de agentes – que disputam entre si primazia. Deste ponto de vista, o jogo político é percebido em uma dupla perspectiva: a primeira se refere às disputas entre seus agentes sociais e a afirmação de legitimidade aos profanos; a segunda, manifesta-se no embate entre o campo jurídico e os demais campos/sub-campos do Estado42. de uma relação social. A segunda, com base em Parsons, define o poder como a “aplicação de uma capacidade generalizada, que consiste em obter que os membros da coletividade cumpram obrigações legitimadas em nome de fins coletivos, e que, eventualmente, permite forçar o recalcitrante através de sanções negativas”. Finalmente para o terceiro conceito, de fundamentos foucaultianos, o poder não seria uma propriedade, uma oposição binária de dominantes e dominados, e sim algo fragmentado na vida social que se adquire, divide, deixase escapar. Ele “é o nome atribuído a um conjunto de relações que formigam por toda a parte na espessura do corpo social (poder pedagógico, pátrio poder, poder do policial, poder do contra-mestre, poder do psicanalista, poder do padre, etc., etc.).” 40 “É necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo o exercem”. BOURDIEU, (1989:7-8). 41 Tomamos como referencial teórico a categoria pensada por Pierre BOURDIEU. Campo é um espaço social de relações de força, traduzidas na disputa de poder entre os agentes sociais, dotado de regras e conhecimentos específicos (habitus) para a estruturação das relações de poder. Nas palavras de Pierre BOURDIEU: “O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, no qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social. É com esta condição que se pode dar as razões quer da autonomia relativa do direito, quer do efeito propriamente simbólico de desconhecimento, que resulta da ilusão da sua autonomia absoluta em relação às pressões externas.” BOURDIEU, (1992:89). 42 Essa disputa entre os sub-campos do Estado, no plano constitucional se traduz no princípio da separação de poderes. Como exemplo dessa disputa, interessante é a obra de Carlos Augusto Silva que levanta a hipótese de que o Executivo brasileiro estaria “vencendo” o Judiciário, através da edição de diversas Medidas Provisórias, com conteúdo processual e que viabilizam a imposição de sua vontade. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 35 1.4.2. Algumas reflexões acerca do fenômeno político em Max Weber Passaremos, neste momento do trabalho, a apresentar as categorias teóricas de Max Weber, que apesar de não terem sido pensadas, assim, como as de Pierre Bourdieu, para o objeto de nosso trabalho, nos são pertinentes, e se associam, pois discutem o âmbito de atuação do poder judiciário às questões políticas de atuação do Estado. WEBER (2002:55) em seu clássico texto “A Política como Vocação” de seus ensaios de sociologia, pergunta para logo em seguida responder: O que entendemos por política? O conceito é extremamente amplo e compreende qualquer tipo de liderança independente em ação. Fala-se da política financeira dos bancos, da política de descontos do Reichsbank, da política grevista de um sindicato; pode-se falar da política educacional de uma municipalidade, da política do presidente de uma associação voluntária e, finalmente, até mesmo da política de uma esposa prudente que busca orientar o marido. Hoje, nossas reflexões não se baseiam de certo num conceito tão amplo. Queremos compreender como política apenas a liderança, ou a influência sobre a liderança, de uma associação política, e, daí hoje, de um Estado. Passemos a examinar uma concepção weberiana de poder: O poder condicionado economicamente não é, de certo, idêntico ao poder como tal. Pelo contrário, o aparecimento do poder econômico pode ser a conseqüência do poder existente por outros motivos. O homem não luta pelo poder apenas para enriquecer economicamente. O poder, inclusive o poder econômico, pode ser desejado por si mesmo. Muito freqüentemente, a luta pelo poder também é condicionada pelas honras sociais que lhe acarreta. Nem todo poder, porém, traz honras sociais: o chefe político americano típico, bem como o grande especulador típico, abrem mão deliberadamente dessa honraria. Geralmente, o poder meramente econômico, em especial o poder financeiro puro e simples, não é de forma alguma reconhecido como base de honras sociais. Nem é o poder a única base de tal honra. Na verdade, ela, ou o prestígio, podem ser mesmo a base do poder político ou econômico, e isso ocorreu muito freqüentemente. O poder, bem como as honras, podem ser assegurados pela honra jurídica, mas, pelo menos normalmente, não é sua fonte primordial. A ordem jurídica constitui antes um fator adicional que aumenta a possibilidade Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 36 de poder ou honras; mas nem sempre podem assegurá-los. (WEBER, 1982: 126). A proposição de uma categoria poder político, que se distingue do poder econômico e envolve questões de prestígio, articulada à distinção entre a legalidade e legitimidade apresentada por WEBER43 (1964, 2202, 2991 e 1977) e BOURDIEU (1989, 1992, 2004 e 1968) despertou-nos a perplexidade de conhecer em que bases de relações de dominação entre o Estado e a sociedade foram e são construídos os modelos de jurisdição do Supremo Tribunal Federal, no Brasil. A idéia de legitimidade44 que se trabalha nesta tese articula o conjunto de procedimentos simbolicamente combinados pelos detentores da dominação jurídica45 em fazer crer aos dominados que sua imposição não é arbitrária. 43 “A vasta, eclética e vigorosa obra de Max Weber (1864/1920) foi responsável por contribuição fundamental para a estruturação das ciências sociais no século XIX em novo patamar. Suas abordagens, seus métodos, suas teorias e suas análises nos permitiram avançar significativamente em um momento em que a divisão do trabalho acadêmico ainda não havia separado de maneira tão nítida a sociologia da ciência política e da antropologia cultural. Trabalhando interdisciplinarmente, com essas outras disciplinas, Weber nos legou um importante acervo de conhecimentos que nos possibilitou melhor conhecer as civilizações do mundo moderno, o significado social de suas crenças religiosas, a racionalidade de suas práticas econômicas, suas organizações sociais e suas formas de dominação política. Hoje em dia, com o acelerado processo de globalização, as ciências sociais, em um movimento paradoxal, se especializam ao mesmo tempo que quebram suas rígidas fronteiras. Tal movimento talvez nos permita, de novo, contar com uma interdisciplinaridade mais compatível com o mundo atual, mais interdependente e mais desconhecido. Weber foi pensador que mais nos deixou uma reflexão sistemática e específica sobre o exercício do poder. Neste campo situam-se seus trabalhos sobre Estado, autoridade, dominação política, legitimidade e organização, que se tornaram referências indispensáveis para a compreensão das instituições políticas das sociedades modernas.” (RAPOSO, 2009:353). 44 “A legitimidade, em sua essência, pode ser definida como um atributo do Estado, consubstanciado na presença de uma parcela significativa da população, com um grau de consenso que assegure a obediência sem o uso necessário da força. Por esse motivo, todo poder busca o consenso, para ser reconhecido como legítimo. O poder transforma a obediência em adesão, pelo processo de legitimação, que, desencadeado pelo comportamento dos indivíduos e grupos, se forma e se desenvolve quando é percebida a compatibilidade entre os fundamentos e os fins do poder, em conformidade com o sistema de crenças e orientado para a manutenção dos aspectos básicos da vida política”. (MADEU e MACIEL, 2009:141-142). 45 Quanto a esta questão interessante a seguinte passagem de BOURDIEU: “Cada intelectual empenha em suas relações com os outros uma pretensão à consagração cultural (ou à legitimidade) que depende, na sua forma, e nos títulos que invoca, da posição que ele ocupa no campo intelectual e em particular em relação à Universidade, detentora, em última instância, dos sinais infalíveis da consagração: enquanto que a Academia, que tem pretensões ao monopólio da consagração dos criadores contemporâneos, contribui para organizar o campo intelectual numa relação com a ortodoxia por uma jurisprudência que combina a tradição e a inovação, a Universidade tem pretensões ao monopólio da transmissão das obras consagradas Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 37 Adequa-se, assim, ao atendimento de um ideal da coletividade de que aqueles que estão ordenando podem efetivamente fazê-lo. Já a legalidade46 representa o poder de facto por estar vinculada aos critérios normativos impostos, independente de sua associação com a legitimidade, sendo efetivo e até em certos casos ilegítimo. A compreensão das formas de dominação legítimas deriva da sociologia weberiana, que as aponta para três tipos específicos: o domínio legal, que é de caráter racional e fundamenta-se na crença da lei47; o domínio tradicional, que se baseia na crença da tradição e costumes; e o domínio carismático, que está no bojo de um movimento messiânico. (WEBER, 1964:170-246). A dominação carismática ocorre quando há o reconhecimento e confiança, por parte dos súditos, na liderança e nas qualidades sobrenaturais e do passado que ela consagra como ‘clássicas’ e ao monopólio da legitimação e da consagração (entre outras coisas pelo diploma) dos consumidores culturais os mais conformados. Compreende-se com isso a agressividade ambivalente dos criadores que, atentos aos sinais de sua consagração universitária, não podem ignorar que a confirmação só lhes pode ser dada, em última instância, por uma instituição cuja legitimidade é contestada por toda atividade criadora, apesar de estar submetida a ela. Do mesmo modo, mais do que uma agressão contra a ortodoxia universitária é o fato de haver intelectuais situados às margens do sistema universitário e levados a contestar sua legitimidade, provando com isso que reconhecem suficientemente seu veredicto para reprovar-lhe não tê-los reconhecido.” (BOURDIEU, 1968:135). 46 MADEU e MACIEL (2009:141) apresentam didática definição do que vem a ser legalidade: “A legalidade expressa basicamente o princípio dogmático da observância das leis, que impõe à autoridade obrigação de agir de acordo com o direito estabelecido. Não se confunde a legalidade com a legitimidade. Legitimidade, como veremos no próximo tópico, é a qualidade legal do poder, com base no consenso obtido a partir de um procedimento jurídico instituído. A legalidade está adstrita ao de ação, isto é, ao exercício do poder. Pode-se dizer que a legitimidade importa uma decisão política no âmbito do consenso, obtido a partir de um contexto comunicativo, em que interagem vários fatores, que influenciam a sua obtenção. Já a legalidade é instituída a partir do poder legitimado e é conferida desde que o ato praticado encontre justificativa no Ordenamento Jurídico. A ação para revestir-se de legalidade deve ser perfeitamente adequada à Ordem Jurídica. A legalidade, portanto, assume singular importância dogmática e se apresenta positivada na forma de principio constitucional, insculpido nos arts. 5º, inciso II, 37, caput, e 150, inciso I. Todos esses dispositivos impõem limitações ao poder: o primeiro limita a imposição de obrigação positiva ou negativa ao cidadão, quando não autorizada por lei; o segundo impõe a Administração Pública o dever de estrita obediência da lei, isto é, a prática de qualquer ato vinculado implica perfeita adequação a um preceito legal; e o terceiro submete o poder de exigir ou aumentar tributos à existência de lei. Portanto, a legalidade e a legitimidade se complementam como elementos estruturais do Estado Democrático de Direito: a primeira, responsável pela segurança e garantia da ordem da jurídica e a segunda pelo consenso sobre o poder, obtida pela via procedimental institucionalizada por normas jurídicas. O ideal é que se busque aliar a legalidade à legitimidade.” 47 Neste sentido ver DERRIDA (2007). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 38 excepcionais do senhor, que se prontifica a usá-las para cumprir uma missão que revoluciona a ordem tradicional estabelecida. A dominação tradicional está ligada à “autoridade do ontem eterno, isto é, dos mores santificados pelo conhecimento inimaginavelmente antigo e da orientação habitual para o conformismo. É o domínio exercido pelo patriarca e pelo príncipe patrimonial de outrora.” (WEBER, 2002:56). Finalmente, há o domínio em virtude da legalidade, em virtude da fé, na validade do estatuto legal e da competência funcional, baseada em regras racionalmente criadas. Nesse caso, espera-se obediência no cumprimento das obrigações estatutárias. É o domínio exercido pelo moderno servidor do estado e por todos os portadores do poder que, sob esse aspecto, a ele se assemelham. (WEBER, 2002:56). Existe dominação legal quando um sistema de regras, que é aplicado judicial e administrativamente de acordo com princípios verificáveis, é válido para todos os membros do grupo associado. Para Max WEBER as funções de mando são essencialmente políticas e baseadas na legitimidade. No Estado moderno o poder político fundamentase na legitimação legal relacionando ordenamentos jurídicos e definição do governante. As bases de legitimidade, que pontuam efetivas ações governamentais, servem de categorias para promover a concordância da sociedade ao poder político instaurado, assim, por exemplo, os modelos democráticos baseiam-se na legitimidade por sufrágio universal e do livre consentimento da maioria. A reflexão weberiana obrigatoriamente nos leva ao conceito de Estado. O que é um estado? Sociologicamente, o estado não pode ser definido em termos de seus fins. Dificilmente haverá qualquer tarefa que uma associação política não tenha tomado em suas mãos, e não há tarefa que não se possa dizer que tenha sido sempre, exclusivamente e peculiarmente, das associações designadas como políticas. Hoje o estado, ou, historicamente, as associações que foram predecessoras do estado moderno. Em última análise, só podemos definir o estado moderno sociologicamente em termos dos meios específicos peculiares a ele, como peculiares a toda associação política, ou seja, o Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 39 uso da força física. (...) o estado é uma comunidade humana que pretende com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território. (Weber, 2002:5556). O Estado como detentor da soberania visa operar pelo monopólio do poder coercitivo, dependendo sua legitimidade do reconhecimento coletivo. Concretiza-se a partir do império da lei, onde as ações de governo estão subordinadas a uma Lei Maior e Suprema, a Constituição. Desta forma, ainda que o Supremo Tribunal Federal, não tenha um caráter eminentemente político na estrutura do Estado brasileiro, porque seus membros não são eleitos, ele é apartidário e o habitus do campo jurídico brasileiro compreender que o papel do judiciário é julgar com imparcialidade, a análise de nossos dados indica o sentido contrário. A análise dos discursos dos ministros, quando diante de pedidos de intervenção federal, caracterizados por serem circunstâncias de instabilidade constitucional, possibilita-nos ver que as tomadas de decisões destes membros do judiciário possuem uma preocupação eminentemente política, no sentido weberiano do termo. É por esta razão que tomamos o pensamento weberiano como um dos referenciais para as reflexões relativas aos dados colhidos nas decisões do Supremo Tribunal Federal que tiveram como objeto a intervenção federal. 1.4.3. A Análise Semiolingüística do Discurso Político de Patrick Charaudeau A metodologia proposta por Charaudeau situa-se na moldura da chamada Teoria Semiolinguística48 do discurso político, pois se alinha a uma tradição de estudo dos gêneros deliberativos e da persuasão codificados pela 48 A teoria semiolinguística a partir da visão de Patrick CHARAUDEAU (2001) incorpora, como seus pressupostos de análise, tanto o âmbito social como a subjetividade dos participantes em seu conceito de enunciação, numa abordagem psicossociocomunicativa. Ele define a comunicação como uma relação contratual entre sujeitos, constituída e restringida por três componentes: o comunicacional; o psicossocial; e o intencional. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 40 retórica aristotélica49. Parte-se de uma problemática da organização geral dos discursos, fundamentando-se em um projeto de influência do EU sobre o TU em uma situação dada (as situações dadas para o presente estudo seriam os julgamentos do Supremo Tribunal Federal acerca da intervenção federal), e para qual existe um contrato de comunicação implícito de interação social. Contrato de comunicação no pensamento de Charaudeau é definido como um conceito central. Diz o autor: um conceito central, definindo-o como o conjunto das condições nas quais se realiza qualquer ato de comunicação (qualquer que seja a sua forma, oral ou escrita, monolocutiva ou interlocutiva). È o que permite aos parceiros de uma troca linguageira reconhecerem um ao outro com os traços identitários que os definem como sujeitos desse ato (identidade), reconhecerem o objetivo do ato que os sobredetermina (finalidade), entenderem-se sobre o que constitui o objeto temático da troca (propósito) e considerarem a relevância das coerções materiais que determinam esse ato (circunstâncias). CHARAUDEAU e MAINGUENEAU (2004:132). A Análise do Discurso50 é uma disciplina nova que nasce da convergência das correntes lingüísticas e os estudos sobre a retórica grecoromana. A definição de Análise do Discurso chama as noções da Lingüística textual na qual os elementos da frase podem ser relacionados a múltiplos sensos lingüísticos, extralingüísticos e sociais, possibilitando-nos vislumbrar 49 Coube a Aristóteles sistematizar esse estudo, redefinindo o papel persuasivo da retórica na distinção e escolha dos meios adequados para persuadir. A retórica, tal qual a dialética, não pertenceria a um gênero definido de objetos, porém seria tão universal quanto aquela. Essa tekhné utilizaria três tipos de provas como meios para a persuasão: o ethos e o pathos, componentes da afetividade, além do logos, o raciocínio, consistente da prova propriamente dialética da retórica. Aristóteles separa, em suas análises dos diversos tipos de discurso, o agente, a ação e o resultado da ação, descrevendo os gêneros do discurso em: 1-Deliberativoo orador tenta persuadir o ouvinte sobre uma coisa boa ou má para o futuro; 2- Judiciário- o orador tenta persuadir o julgador sobre uma coisa justa ou injusta do passado e; 3- Epidíctico e Vitupério- o orador tenta comover o ouvinte sobre uma coisa digna, bela ou infame sobre o presente. Essa matriz do sistema retórico servirá como paradigma para o estudo posterior da retórica e resistirá, sem grandes mudanças, até o século XIX. 50 As correntes que fazem parte da análise do discurso são: a etnografia da comunicação, a escola francesa, o pragmatismo, a teoria da enunciação, a lingüística textual, a nova retórica, a história das idéias de Foucault (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004:43-46). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 41 quais seriam as intenções nos discursos, com os seus ditos e não ditos; e como estes discursos são organizados sempre pelos três lugares formadores de sentido: a doutrina, a retórica e os elementos de justificação ou de legitimação. O nosso texto adota como pressupostos teóricos aqueles da Escola Francesa de Análise do Discurso e se propõe a estudar particularmente as relações entre a força persuasiva das palavras e os seus usos na constituição da legitimidade do discurso político (jurídico). Os pressupostos teóricos da Escola Francesa de Análise do Discurso51 tratam “de pensar a relação entre o ideológico e o lingüístico, evitando, ao mesmo tempo, reduzir o discurso à análise da língua e dissolver o discurso no ideológico” (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004:202) através dos três lugares de produção dos discursos, tais sejam: a doutrina, a retórica e os elementos de legitimação ou justificação. Considerando o enfoque da Escola Francesa a análise do Discurso Político consiste no fato de que os discursos tornam-se possíveis tanto na emergência de uma racionalidade política, quanto na regulação dos fatos políticos/jurídicos. Toda decisão pressupõe uma prática de linguagem, impondo-se mencionar que o discurso decisório é polifônico, pois resulta do somatório das vozes e discursos de diversos atores. Sendo assim, é possível dele se extrair diversas cadeias de discursos. Contemporaneamente, surge um novo discurso, pelo qual também se apreende a faticidade dos conflitos sociais. Por isso, nos chama a atenção a ideologia que permeia esse discurso, revelando-se na representação social que 51 Denomina-se ‘Escola Francesa’ aquela que permite designar a corrente da análise do discurso dominante na França nos anos 60 e 70. Surgido na metade dos anos 60, esse conjunto de pesquisas foi consagrado em 1969 com a publicação do número 13 da revista Languages, intitulado ‘A Análise do discurso’ e com o livro Análise automática do discurso de Pêcheux (1938-1983), autor mais representativo dessa corrente. Essa problemática não permaneceu restrita ao quadro francês; ela emigrou para outros países, sobretudo para os francófonos e para os de língua latina. O núcleo dessas pesquisas foi o estudo do discurso político conduzido por lingüistas e historiadores com uma metodologia que associava a lingüística estrutural a uma ‘teoria da ideologia’, simultaneamente inspirada na releitura da obra de Marx pelo filósofo Althusser e na psicanálise de Lacan. (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004:202). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 42 o magistrado faz das normas que deve aplicar e do conflito que lhe é submetido. Entre os diversos estudiosos do tema, Patrick Charaudeau é o que melhor se adequa a explicitar a ideologia52 concretizada no discurso do Supremo Tribunal Federal acerca de seu papel na construção das relações de poder, pois constrói uma metodologia própria na análise dos discursos políticos, possibilitando, como já dito acima, compreender como o discurso se constrói e quais são as intenções do seu enunciador. A perspectiva de Charaudeau associa os seguintes fatores: a) a análise da situação, aspecto que aborda os gêneros do discurso associados às práticas sociais, consideradas na estrutura das forças simbólicas (habitus) estabelecidas e reproduzidas no campo de poder, no qual se situa o estatuto de cada ator do discurso; b) a perfomance do discurso, aspecto que toma em conta o estatuto do autor do discurso e sua fala atualizante, enquanto competência, 52 que reproduz Ideologia, no presente trabalho é tomada com o sentido que lhe dá Aron, e deve ser compreendida como “um sistema global de interpretação do mundo social” ARON (1968:375). Interessante observar, ainda, as palavras de BOURDIEU: “Enfim, mais sutilmente, a submissão aos hábitos de pensamento, ainda que sejam os que, em outras circunstâncias, podem exercer um formidável efeito de ruptura, pode conduzir também a formas inesperadas de ingenuidade. E eu não hesitarei em dizer que o marxismo, nos seus usos sociais mais comuns, constitui, freqüentemente, a forma por excelência, por ser mais insuspeita, do pré-construído douto. Suponhamos que se pretende estudar ‘a ideologia jurídica’, ou ‘religiosa’, ou ‘professoral’. O termo ideologia pretende marcar a ruptura com as representações que os próprios agentes querem dar da sua própria prática: ele significa que não se deve tomar à letra as suas declarações, que eles têm interesses, etc.; mas, na sua violência iconoclasta, ele faz esquecer que a dominação à qual é preciso escapar para o objetivar só se exerce porque é ignorada como tal; o termo ideologia significa também que é preciso reintroduzir no modelo científico o fato de a representação objetiva da prática dever ter sido construída contra a experiência inicial da prática ou, se se prefere, o fato de a ‘verdade objetiva’ desta experiência ser inacessível à própria experiência. Marx permite que se arrobem as portas da doxa, da adesão ingênua à experiência inicial; mas, por detrás da porta, há alçapão, e o meio-hábil que se fia no senso comum douto esquece-se de voltar à experiência inicial a construção douta deve ter posto em suspenso. A ‘ideologia’ (a que seria preferível de futuro dar outro nome) não aparece e não se assume como tal, e é deste desconhecimento que lhe vem a sua eficácia simbólica. Em resumo, não basta romper com o senso comum vulgar, nem com o senso douto na sua forma corrente; é preciso romper com os instrumentos de ruptura que anulam a própria experiência contra a qual eles se construíram. E isto para se construírem modelos mais completos, que englobem tanto a ingenuidade inicial como a verdade objetiva por ela dissimulada e à qual, por outra forma de ingenuidade, se prendem os meio-hábeis, aqueles que se astutos. (Não posso deixar de dizer aqui que o prazer de sentir astuto, desmistificado e desmistificador, de brincar aos desencantadores desenganados, tem boa parte em muitas vocações sociológicas... E o sacrifício que o método rigoroso exige é ainda maior...). (BOURDIEU, 1989:48). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 43 consciente e/ou inconscientemente a locução enunciativa do que é dito; e/ou estrategicamente não dito. c) a semiolinguística, aspecto no qual o texto produzido é tomado como resultado de processos em que os sujeitos comunicantes se relacionam em ação de influência sobre o TU, perpassando diversas finalidades e situações comunicativas53. Transcrevemos abaixo trecho da obra de Patrick CHARAUDEAU (1992:47) no qual ele explicita a sua proposta: O sujeito, ser individual, mas também social necessita de referências para se inscrever no mundo dos signos e significar suas intenções. Logo, apóia-se numa memória discursiva, numa memória das situações, que vão normatizar o comportamento das trocas linguageiras, de modo que se entendam e obedeçam aos “enjeux” (expectativas) discursivos, que persistem na sociedade e estão a guiar os comportamentos sociais, de acordo com contratos estabelecidos. Ex. Um discurso político pode se realizar como um debate, um comício, uma entrevista, um texto escrito, um papo amigável do candidato, com direito a tapinhas nas costas etc. Cada realização vai exigir uma forma diferente que está de acordo com a situação. Como se vê, a dinâmica do discurso político, tomando como referência o pensamento de Charaudeau, se dá pelo chamado princípio de influência. Este princípio caracteriza-se como um ato de linguagem no qual um agente tenta influenciar, persuadir o seu auditório, ou seja, aqueles para quem ele se dirige. Essa influência do EU sobre o TU, denominado princípio de influência, portanto, trata da relação que o EU (locutor) objetiva ou visa no TU (receptor do discurso) como um efeito, pedido, ordem ou, na perspectiva de nosso objeto, da imposição de uma decisão de autoridade. Neste trabalho a influência que desejamos observar é a do Supremo Tribunal Federal, como voz colegiada (polifonia), e dos Ministros que o 53 Para depreender o panorama acerca dos diversos sentidos dados a expressão situação comunicacional deve-se ler CHARAUDEAU e MAINGUENEAU (2004:450). Patrick Charaudeau associa a situação comunicacional com as questões extralingüísticas, separando-a do contexto intralingüístico. Entretanto, para o presente trabalho não será feita esta cisão, pois os dois são sempre necessários às significações das frases. Sendo assim, contexto e situação comunicacional, aqui, serão expressões sinônimas. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 44 compõe, enquanto vozes individuais (monodia), em relação às partes (TU) que eles se dirigem. O mecanismo aqui descrito denomina-se de visadas, ou seja, finalidades ou intenções concretizadas no discurso a partir do princípio da autoridade do EU. São elas: a) visada prescrição – EU mandar e o TU deve fazer; b) visada solicitação – EU solicitar e o TU deve atender; c) visada instrução – EU fazer saber fazer e o TU querer saber; d) visada demonstração – EU fazer saber com provas e o TU aceitar prova e fazer. Enfim, para Charaudeau a situação comunicacional, que se dá pela enunciação, atrela-se ao fenômeno da organização das categorias da língua, ordenando-as através dos modos de organização descritiva, narrativa e argumentativa do texto, de maneira a expressar as posições do EU (locutor) com seu princípio da influência nas relações de posição de fala com o interlocutor (TU). Desta forma, teremos três funções, ou comportamentos dos atores falantes na encenação discursiva, do modo enunciativo: alocutivo (relação de influência), elocutivo (revelação do ponto de vista do TU) e delocutivo (retomada da fala de um terceiro). O objeto de desenvolvimento desta pesquisa se baseia em três lugares de representação, em que se realizam a produção dos sentidos do discurso; como já dissemos, a doutrina jurídica, a retórica jurídica e os elementos de justificação ou de legitimação das decisões judiciais. O primeiro topos é aquele da doutrina jurídica, que consiste no sistema de pensamento, resultado de uma atividade discursiva que faz o papel de fundadora de um ideal jurídico referível à construção das opiniões. Assim, este topos se refere a uma dogmática jurídica, não atrelada aos atores especificamente. Refere-se sim, para usar uma denominação “bourdieuniana”, ao habitus e ao capital simbólico dos integrantes do campo jurídico. Desenvolveremos a análise do discurso da doutrina específica à temática da intervenção federal no próximo capítulo da tese. O segundo lugar caracteriza-se como uma dinâmica de comunicação dos atores jurídicos. Refere-se a razão ideológica de identificação imaginária Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 45 da “verdade” jurídica. Os atores do campo jurídico fazem parte das diversas cenas de vozes comunicantes de um enredo permeado pelo desafio retórico do reconhecimento social, isto é, o consenso, a rejeição ou a adesão. Suas ações realizam vários eventos: audiências públicas, debates, reuniões, e hoje principalmente, a ocupação do espaço midiático. Os atores precisam de filiações, e por esta razão, estabelecem organizações, que se sustentam pelo mesmo sistema de crença político-jurídica articuladora de ritos e mitos pela via dos procedimentos retóricos (IORIO, 2006:723-726), a chamada retórica jurídica. Para ilustrar o desenvolvimento deste segundo topos semânticoretórica- é importante a leitura do seguinte trecho de Patrick CHARAUDEAU (2006:79-81), afim de que possamos demonstrar que esta teoria nos auxilia na explicitação da análise de nossos dados empíricos, tendo em vista que tal exercício enfatiza o caráter político dos discursos: Sendo a política um domínio de prática social em que se enfrentam relações de força simbólicas para a conquista e a gestão de um poder, ela só pode ser exercida na condição mínima de ser fundada sobre uma legitimidade adquirida e atribuída. Mas isso não suficiente, pois o sujeito político deve também se mostrar crível e persuadir o maior número de indivíduos de que ele partilha certos valores. É o que coloca a instância política na perspectiva de ter que articular opiniões a fim de estabelecer um consenso. Ela deve, portanto, fazer prova da persuasão para desempenhar esse duplo papel de representante e de fiador do bem-estar social. O político encontra-se em dupla posição, pois, por um lado, deve convencer todos da pertinência de seu projeto político e, por outro, deve fazer o maior número de cidadãos aderirem a esses valores. Ele deve inscrever seu projeto na “longevidade de uma ordem social”, que depende dos valores transcendentais fundados historicamente. Ao mesmo tempo, ele deve se inscrever na volátil regulação das relações entre o povo e seus representantes. O político deve, portanto, construir para si uma dupla identidade discursiva; uma que corresponda ao conceito político, enquanto lugar de constituição de um pensamento sobre a vida dos homens em sociedade; outra que corresponda à prática política, lugar das estratégias da gestão do poder: o primeiro constitui o que anteriormente chamamos de posicionamento ideológico do sujeito do discurso; a segunda constrói a posição do sujeito no processo comunicativo. Nessas condições, compreende-se que o que Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 46 caracteriza essa identidade discursiva seja um Eu-nós, uma identidade do singular-coletivo. O político, em sua singularidade, fala para todos como portador de valores transcendentais: ele é a voz de todos na sua voz, ao mesmo tempo em que se dirige a todos como se fosse apenas o portavoz de um Terceiro, enunciador de um ideal social. Ele estabelece uma espécie de pacto de aliança entre estes três tipos de voz – a voz do Terceiro, a voz do Eu, a voz do Tutodos – que terminam por se fundir em um corpo social abstrato, freqüentemente expresso por um Nós que desempenha o papel de guia (“Nós não podemos aceitar que sejam ultrajados os direitos legítimos do indivíduo”). Nesse aspecto, as instâncias dos discursos político e religioso têm qualquer coisa em comum: o representante de uma instituição de poder e o representante de uma instituição religiosa supostamente ocupam uma posição intermediária entre uma voz-terceira da ordem do sagrado (voz de um deus social ou de um deus divino) e o povo (povo da Terra ou povo de Deus). Em contrapartida, vêem-se no que diferem, apesar do que dizem alguns, as instâncias política e publicitária. As duas são provedoras de um sonho (coletivo ou individual), mas a primeira está associada ao destinatário-cidadão e constrói o sonho (um ideal social) com ele, e uma espécie de pacto aliança (“Nós, juntos, construiremos uma sociedade mais justa”), enquanto a segunda permanece exterior ao destinatário-consumidor ao qual ela oferece um sonho supostamente desejado por ele (singularidade do desejo): o destinatário-consumidor é o agente de uma busca pessoal (ser belo, sedutor, diferente ou estar na moda) e de forma alguma coletiva. É preciso, portanto, que o político saiba inspirar confiança, admiração, isto é, que saiba aderir à imagem ideal do chefe que se encontra no imaginário coletivo dos sentimentos e das emoções. Tendo em vista que o “político” trata das implicações descritas acima por Charaudeau, podemos afirmar que este “político” se concretiza na lei, e na aplicação da lei pelo juiz. Persiste na decisão judicial o seu fundo político. Os magistrados, assim, dão concretude à política. A decisão torna viva a política pela sua concretude. A retórica além de ser a arte da persuasão pelo discurso; é também a teoria e o ensinamento dos recursos verbais – da linguagem escrita ou oral – que tornam um discurso persuasivo para seu receptor. Segundo Aristóteles, a função da retórica não seria “somente persuadir, mas ver o que cada caso comporta de persuasivo” (Retórica, I,2,135 a-b). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 47 Estudos contemporâneos (REBOUL, 2000) revelam que a origem da retórica não é literária, mas judiciária. Ela teria surgido na Magna Grécia, em particular na Sicília, após a expulsão dos tiranos, por volta de 465 a.C. Um discípulo de Empédocles de Agrigento, chamado Córax, e seu seguidor, Tísias, teriam publicado uma “arte oratória” (tekhné rhetoriké), compilando preceitos práticos a serem utilizados, numa época em que não existiam advogados, por pessoas envolvidas em conflitos judiciários. Encontra-se aí o surgimento da disposição do discurso judiciário em partes ordenadas logicamente – os lugares (topoi) que servem à argumentação, invenção retórica noticiada pelo ateniense Antifonte (480-411 a.C.). Tal origem judiciária da retórica revela algumas características que acompanharão a produção do discurso jurídico ao longo dos séculos posteriores: o uso da argumentação na agonística das disputas judiciais; o comprometimento com a finalidade de persuadir os órgãos julgadores; o desenvolvimento de técnicas diferenciadas da lógica e do raciocínio contidos na linguagem judiciária, para produção de “provas”, “evidências”, “princípios” etc. A retórica tem como seu primeiro paradigma o pensamento dos sofistas, representados principalmente por Córax, Górgias e Protágoras. Para os sofistas a retórica não visa a argumentação com base no verdadeiro, mas no verossímil (eikos). Seu método opera a partir da existência de uma multiplicidade de opiniões, não raro conflitantes e contraditórias. A persuasão ocorreria mediante a chamada transformação retórica, resultante da habilidade dos retores em confrontar os argumentos contrários. Daí a definição de Córax, que via a retórica como “criadora de persuasão”. Ela consistiria na arte de convencer qualquer um a respeito de qualquer coisa. Surge neste ponto a interseção da retórica com a erística, fundada por Protágoras (486-410 a.C.), consistindo na arte de vencer qualquer controvérsia, independentemente de se ter razão, per fas et nefas. Esta tradição sofística é, no século XIX, retomada por Schopenhauer em seu opúsculo A arte de ter sempre razão ou dialética erística (IORIO, 2006). O relativismo pragmático de Protágoras é também marcado pelas idéias da inexistência de uma verdade em si e da afirmação que cada homem é medida de todas as coisas. Cada um teria Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 48 a sua verdade e somente a retórica permitiria que alguém pudesse impor a sua opinião. Trata-se da onipotência da palavra, não submetida a qualquer critério externo de verdade, como Górgias expressa, com grandiloqüência, no discurso Do não-ser ou da natureza. Essas idéias dos sofistas foram combatidas por Platão, que atribui valoração pejorativa à retórica.54 Diferente realidade teríamos, então, com a retórica perelmaniana (Nova Retórica) que valoriza não só o estudo da lógica argumentativa e da estrutura dos raciocínios, mas igualmente traz um aporte ético próprio dos valores democráticos da tolerância, desenvolvendo uma técnica argumentativa hábil em substituir a violência. Perelman destaca que a argumentação sempre se dirige a alguém: um indivíduo, um grupo ou uma multidão, conjunto de receptores, designado pelo conceito de “auditório”. Um auditório tem sempre como característica ser particular, ou seja, ser diferente em razão de suas competências, crenças, emoções ou pontos de vistas. O terceiro topos situa-se nas influências do discurso sobre as instituições, que formam uma cultura jurídica, isto é, o discurso jurídico que não se mantém fechado no campo jurídico, mas influencia todas as instituições culturais. Este lugar da produção do discurso estabelece as relações entre os atores de dentro do campo e os de fora, revelando opiniões produtoras de conceitos que expandem a cultura relacionada a esse tipo de discurso. Para fins desta tese de doutorado estamos considerando as expressões justificação55 e legitimação como sinônimas, pois, a partir da ótica 54 É sobre as bases, podemos dizer, deste pilar oratório da retórica, que se assenta a lógica do campo jurídico brasileiro. Como veremos no decorrer do presente trabalho, a lógica do direito brasileiro, fundamentada na contradicta, e das próprias decisões do Supremo Tribunal Federal, como depreendemos das análises discursivas realizadas, não é formadora de verdades consensualizadas, ou, construídas racionalmente pela argumentação, outro pilar retórico. São verdades formadas, isto sim, pela imposição de autoridade persuasiva. A persuasão do auditório é o que pretende um orador que se preocupa com a vitória de seu discurso, ou seja, com o resultado. Para tanto, este orador apela para diversos recursos emotivos, o ethos e o pathos da Arte Retórica (ARISTÓTELES, 1952), para alcançar seu objetivo. Ela está ligada ao pilar retórico da oratória (Olivier REBOUL, 2000:XVIII). Cumpre salientar que, tendo em vista as peculiaridades do campo jurídico brasileiro, este modelo baseia-se no pilar oratório. 55 Quanto aos elementos de justificação do discurso político, interessante a leitura do seguinte trecho de Patrick CHARAUDEAU (2006:126): “No campo político, a credibilidade dos autores é freqüentemente afetada tanto por fatos que contradizem as intenções declaradas, quanto, como afirmado, por adversários que não se furtam a questioná-la. O político é, então, levado a produzir um discurso de justificação de seus atos ou a emitir declarações para se inocentar das críticas ou das acusações que lhes são dirigidas. Isso pode ser feito a priori, por antecipação, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 49 daquele que enuncia o discurso (enunciador- Supremo Tribunal Federal), estes termos significariam a ação de articular estratégias simbólicas de poder que demonstrariam serem os comandos ou visadas do enunciador não arbitrárias, ou seja, reconhecidas como não arbitrárias, motivadas. Os elementos que sustentam a legitimação do Supremo Tribunal Federal poderiam ser classificados por três ordens de legitimação simbólica que estruturam o habitus do campo jurídico: 1) a crença na lei como ato emanado de autoridade competente; 2) o Supremo Tribunal Federal como guardião dos valores democráticos e; 3) a crença da decisão judicial construída pelo debate do contraditório56. A primeira ordem, a crença na lei como ato emanado de autoridade competente, se traduz na sinonímia entre legalidade e legitimidade, que já foi desenvolvida no item 1.3. desta tese. Como o Supremo Tribunal Federal é uma Corte estabelecida pelo poder constituinte originário exercido por representantes do povo na Lei Maior de 1988, os atos emanados seriam legítimos porque legais, porque provenientes de uma autoridade competente. Este é o argumento justificador. ou a posteriori. Entretanto, essa atitude não é muito confortável e a escolha do tipo de justificação não é fácil. De fato, o sujeito que se justifica reconhece assim a existência da crítica ou da acusação – se não, porque não responder? – e do mesmo modo reconhece o adversário que o critica a justificação não é propriamente uma confissão, mas ela acaba reforçando a idéia de que efetivamente foram cometidos uma falta, um erro, uma infração. Acusado, criticado, o político encontra-se diante de um dilema, pois não se justificar pode levar a crer que não há defesa possível para a acusação, mas justificar-se faz pairar sobre ele a sombra da dúvida ou da incerteza. Ademais, cada uma dessas atitudes pode acarretar efeitos colaterais mais ou menos positivos: não responder pode produzir um efeito de inocência (não se sentir visado), de sabedoria (não polemizar, não manter uma querela estéril) ou, ao contrário, de desdém (não se rebaixar a replicar); justificar-se pode produzir um efeito contra produtivo de fraqueza. O discurso de justificação equivale a navegar entre a intenção e o resultado. Ele é o contrapeso à critica que o provocou. Efetivamente, a critica pode dizer respeito tanto aos motivos que levaram à ação, e então o ataque visa à intenção do sujeito, quando ao resultado da ação, e então é sua falta de competência que é atacada. No primeiro caso,o sujeito pode defender-se argumentando que sua ação é legitima apesar do resultado obtido, sempre reconhecendo que este não corresponde ao projeto inicial. Ele alegará que toda ação comporta aspectos imponderáveis ou efeitos perversos não previsíveis: a intenção era boa, mas ninguém podia prever totalmente as conseqüências; em todo caso, é melhor agir do que nada fazer. No segundo caso, ele pode contestar que o resultado tenha sido negativo e reconhecer a uma explicação qualquer sem deixar de reconhecer os limites dos resultados obtidos e mostrar o lado positivo: um resultado modesto é melhor do que resultado algum.” 56 Esses seriam os principais elementos de justificação ou legitimação apresentados pelo habitus do campo jurídico para as decisões do Supremo Tribunal Federal. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 50 A segunda ordem, o Supremo Tribunal Federal como guardião dos valores democráticos, se sustenta no topos argumentativo de que a vontade do legislador constituinte ao estabelecer, em uma Constituição que se pretende em bases democráticas e cidadãs (art. 1º da CRFB/8857), que o Supremo Tribunal Federal é o seu guardião (art. 102 da CRFB/8858), ele se tornaria o defensor dos valores democráticos e contramajoritários. Um verdadeiro árbitro da sociedade que exerceria um poder moderador frente aos desmandos e desequilíbrios entre os demais poderes pelos faccionismos majoritários. Logo, suas decisões seriam legítimas porque democráticas, porque representativas dos valores da cidadania. Finalmente, a terceira ordem, a crença da decisão judicial construída pelo debate do contraditório, se estabelece sob um argumento que estrutura a própria forma de pensar a aplicação do direito no Brasil, a lógica do contraditório. Acredita-se que essa dialética infinita, que perpassa as discussões jurídicas brasileiras e, como tal, do Supremo Tribunal Federal, seja democrática, tolerante e construtora de verdades, pois, se estaria dando oportunidades iguais de todos que estivessem participando da ação comunicativa falar. A compreensão do contraditório como conseqüência do princípio democrático no processo é uma falácia clara, pois se não há formação de consensos ou esta busca, não há diálogo argumentativo que visasse convencer a toda sociedade interessada na decisão judicial, e sim, contradicta, imposição clara de vontade de um (vencedor) a outro (perdedor). Este panorama na visão de Chaïm Perelman estaria atrelado ao modus operandi da 57 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” 58 “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 51 persuasão e não da argumentação. Agrava-se ainda a situação pela aplicação do princípio do livre convencimento motivado59, que autorizaria ao juiz decidir como quer e justificar a sua decisão depois, e, pelo Supremo Tribunal Federal ser o último tribunal na hierarquia do Poder Judiciário, ou seja, dando a palavra final irrecorrível. Como podemos depreender da discussão deste exemplo da terceira ordem de legitimação, existem contradições e confusões na articulação desses símbolos de legitimação por parte do campo jurídico brasileiro que iremos explicitar quando da análise do discurso das decisões do Supremo Tribunal Federal, no recorte temático da Intervenção Federal. 1.5. O percurso metodológico construído Neste ponto do texto pretendemos relatar duas questões: a primeira, o meu estranhamento na construção do meu objeto, ou seja, que problemas enfrentei enquanto agente do campo jurídico em uma pesquisa que pretendeu fugir de uma tradição jurídica reprodutora e acrítica60. A segunda deriva obviamente da primeira, o percurso metodológico que tracei desde o início da tese para construção e explicitação desse objeto. Em primeiro lugar, é importante informar que foi o estudo de dois casos relativos a disciplina Jurisdição Constitucional que me despertou para as minhas hipótese e problemática. O primeiro caso é o conhecidíssimo Marbury vs Madison (ROSS, 2003) que é marcado pela doutrina ou conhecido tradicionalmente como a decisão 59 Quanto a discussão do princípio do livre convencimento motivado interessante ver a tese de doutorado “Dilemas da decisão judicial” de Regina Lúcia TEIXEIRA MENDES (2008). 60 Quanto a esta visão interessante a passagem de BAPTISTA (2008:36): “O direito se reproduz através de “doutrinas”, que constituem o pensamento de pessoas autorizadas a trabalhar academicamente determinados assuntos. O saber jurídico não é científico, é interpretativo; é dogmático.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 52 judicial de 1803 da Suprema Corte Norte Americana que desenha, através do voto do Chief Justice John Marshall, o papel do Judiciário como guardião ou último intérprete da Constituição. O contexto político deste caso é bastante interessante, pois ele seria um marco simbólico da jurisdição constitucional analisado pela Supreme Court após uma conturbada situação política, que é assim descrito por Alexandre de MORAES (2004:23-24): A idéia de taxatividade constitucional das competências originárias dos Tribunais Superiores nasceu com a idéia de supremacia jurisdicional por meio do controle de constitucionalidade, ambas sendo firmadas no célebre caso Marbury v. Madison (1 Cranch 137 - 1803), em histórica decisão da Suprema Corte americana, relatada por seu chief justice John Marshall. Marbury havia sido nomeado em 1801, nos termos da lei, para o cargo de juiz de paz no Distrito de Columbia, pelo então Presidente da República John Adams, do Partido Federalista, que se encontrava nos últimos dias de seu mandato. Ocorre, porém, que não houve tempo hábil para que fosse dada a posse ao já nomeado Marbury, antes que assumisse a Presidência da República o republicano Thomas Jefferson. Este, ao assumir, determinou que seu secretário de Estado, Madison, negasse posse a Marbury, que, por sua vez, em virtude dessa ilegalidade, requereu à Suprema Corte um mandamus, para que o secretário de Estado Madison fosse obrigado a dar-lhe posse. Toda essa questão envolvia não só conflitos jurídicos, mas também políticos, pois a Suprema Corte era composta majoritariamente de federalistas, enquanto o Congresso e o Executivo estavam sob o controle dos republicanos, que jamais aceitariam uma intervenção direta do Judiciário nos negócios políticos do Executivo. Como lembrado por Lêda Boechat Rodrigues, “em 1802, nos jornais e no Congresso, foi a Corte violentamente atacada, sugerindo James Monroe o impeachment contra os seus juízes, se ousassem aplicar os princípios da common law à Constituição. A mesma providência foi pleiteada, dias antes da decisão, por um jornal oficioso do governo, o Independente Chronicle, de Boston, segundo o qual a concessão da medida significaria guerra entre departamentos constituídos. Se concedida, a medida certamente não seria cumprida”. Marshall, de forma hábil, tratou o caso pelo ângulo da competência constitucional da Suprema Corte Americana, analisando a incompatibilidade da Lei Judiciária de 1789, que autorizava o Tribunal a expedir mandados para remediar erros ilegais do Executivo, e a própria Constituição, que, em seu artigo III, seção 2, disciplinava a competência originária da Corte. Assim, apesar de a Corte ter entendido ser ilegal a conduta do secretário de Estado Madison, por recusar-se a expedir a comissão legalmente devida a Marbury, proveniente da ação do antigo Presidente Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 53 Adams, com aprovação da maioria do Senado, entendeu, preliminar e prejudicialmente, que carecia de competência para emitir o mandado requerido, uma vez que as competências da Suprema Corte estariam taxativamente previstas pela Constituição, não podendo o Congresso Nacional, por meio da Lei Judiciária de 1789, ampliá-las. O segundo caso foi o Mandado de Segurança nº 3557-DF61, impetrado pelo então Presidente da República João Café Filho no Supremo Tribunal Federal, para que pudesse retornar ao poder após uma licença médica. O fato é que ele estava sendo impedido de retornar pelos militares e pelo Congresso Nacional. Assim é narrada a situação pelo relatório da ação: O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: — João Café Filho requer mandado que lhe assegure o pleno exercício de suas funções e atribuições constitucionais de Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pela evidente inconstitucionalidade das resoluções da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que, por manifesto e insuportável abuso de poder, determinaram que permanecia o impedimento declarado pelo requerente em observância de prescrição médica. O suplicante tem direito de voltar à efetividade das funções presidenciais mediante a só comunicação de haver cessado o impedimento, conforme a atestação de eminentes e respeitados clínicos e especialistas. Não é possível que a temerária tarefa de alguns elementos rebelados das Forças Armadas de terra vingue por meio de uma resolução, que implica emenda à Constituição, onde não se conhecem outros meios de afastamento do Presidente da República além dos mencionados nos arts. 79, § 1º, e 88, parágrafo único. A doutrina sobre o art. 2º , seção I, n.º 6, da Constituição dos Estados Unidos da América do Norte62, não admite a liberdade de as Câmaras do Congresso, ou este, virem a pronunciar, como no caso, que o Presidente está impedido de exercer suas funções. A declaração de ambas as casas do Congresso é ainda mais subversiva, porque não tem tempo determinado, mantendo-se até deliberação em contrário, condição 61 Disponível: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/630552/mandado-de-seguranca-ms3557-df-stf. Acessado em: 13/12/2008. 62 Vale salientar que neste caso a decisão do Supremo Tribunal Federal está encontrando fundamentação no Constituição dos Estados Unidos da América do Norte. Curioso! Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 54 potestativa, que é indeclinável e universalmente nula. Se a Câmara (o que se contesta) tivesse a iniciativa, o caso seria para decreto legislativo (Constituição, art. 66, Regimento, art. 95), e não para resolução, com que se decidem situações concernentes à economia interna de cada ramo do Poder Legislativo, e este é exercido em conjunto, pela Câmara e pelo Senado, nos termos expressos dos arts. 37 e 69 da Constituição. O pedido versa sobre atos inconstitucionais das Câmaras, que afetam relação jurídica consubstanciada no exercício de função eletiva. Compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer do pedido, segundo a Constituição, arts. 141, § 4º, e 101, I, i. O requerente sustentou que se devia conceder a medida liminar referida pelo art. 7º, II, da lei n.º 1.533, de 31 de dezembro de 1951. As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal iniciam suas informações por uma ressalva de ordem moral, quanto ao zelo no resguardo da Constituição, porque o requerente se mostrara incurialmente desidioso na defesa da Constituição evidentemente ameaçada. Alegam que não cabe ao Supremo Tribunal Federal apreciar pedido de mandado contra uma resolução legislativa, ato de soberania e de cunho eminentemente político. Ao Poder Legislativo é inerente a atribuição de decidir da subsistência ou da cessação do impedimento do Presidente da República. O requerente assevera que foi esbulhado do poder político. Sua pretensão implica típica questão política, insuscetível de solução judicial. Não cabe ainda o amparo judiciário, pois o que se sustenta é que a resolução legislativa se afastou de princípios, fez má interpretação, não foi sábia na inteligência do texto constitucional. O Congresso Nacional, além de ter agido patrioticamente, usou de poderes inerentes ao Legislativo, na interpretação do § 1º do art. 79 da Constituição, evitando o estado de necessidade. A resolução legislativa baseou-se em que o conceito de impedimento é mais amplo que o de impeachment, e em que o Congresso Nacional tinha a faculdade implícita de decidir da permanência, ou não, do impedimento, em que espontaneamente se colocara o impetrante. Os constitucionalistas norte-americanos afirmam que cabe ao Congresso proclamar o estado de inability. Além dos fundamentos jurídicos, a resolução legislativa teve por motivo fato público e notório, já agora selado pelo reconhecimento do estado de sítio. O perigo nacional foi criado ou, pelo menos, agravado pela óbvia inability do impetrante. Só a alegação de moléstia gravíssima poderia justificar a transmissão do exercício do cargo a seu substituto. Quando, porém, as Forças Armadas impediram se consumasse um golpe contra o regime, o impetrante anunciou sua intenção de voltar ao exercício da Presidência da República, e estabeleceu, com esse gesto de notória incoerência, sua vinculação com a trama posta em começo de execução no dia 10 de novembro. As informações terminam com a afirmação de que o Congresso cumpriu seu dever, ao avocar a competência para manter o impedimento em que se colocara o Presidente da República, salvando, nesta emergência, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 55 através de um ato de soberania política, as instituições e o regime. O Vice-Presidente do Senado informou que assumiu a Chefia do Estado pelas razões que deram as Mesas das Casas do Congresso, e com o propósito de corresponder aos reclamos de ordem pública e aos imperativos de sobrevivência da democracia brasileira. O Procurador-Geral da República opinou pelo não conhecimento do pedido, em virtude da lei n.º 2.654, de 25 de novembro último, art. 2º, parágrafo único, e porque envolve matéria de fato controvertida; e, no caso de conhecimento, manifestou-se pelo indeferimento do pedido, visto que não há direito líquido e certo contra o ato do Congresso Nacional, decorrente de seus poderes implícitos, inerentes à sua soberania. A decisão da Corte foi, surpreendentemente, julgar por maioria prejudicado o pedido por falta de objeto, ou seja, utiliza-se de uma escusa processual para não apreciar o mérito desta questão claramente política de grande relevância, o retorno do Presidente da República constitucionalmente eleito e uma circunstância de instabilidade constitucional. Interessante, entretanto, é o voto do Ministro Nelson Hungria, pois explicita que a postura que está sendo tomada pelo Supremo Tribunal Federal é para proteger a Corte, pois ele diz que contra as forças de insurreição das forças armadas não há o que se fazer em favor da Constituição. Vejamos suas palavras: Qual o impedimento mais evidente, e insuperável pelos meios legais, do titular da residência da República, que o obstáculo oposto por uma vitoriosa insurreição armada? Afastado “o manto diáfano da fantasia sobre a nudez rude da verdade”, a resolução do Congresso não foi senão a constatação da impossibilidade material em que se acha o Senhor Café Filho, de reassumir a Presidência da República, em face da imposição dos tanks e baionetas do Exército, que estão acima das leis, da Constituição e, portanto, do Supremo Tribunal Federal. Podem ser admitidos os bons propósitos dessa imposição, mas como a santidade dos fins não expunge a ilicitude dos meios, não há jeito, por mais especioso, de considerá-la uma situação que possa ser apreciada e resolvida de jure por esta Corte. É uma situação de fato criada e mantida pela força das armas, contra a qual seria, obviamente, inexeqüível qualquer decisão do Supremo Tribunal. A insurreição é um crime político, mas, quando vitoriosa, passa a ser um título de glória, e os insurreitos estarão a cavaleiro do regime legal que infringiram; sua vontade é que conta, e nada mais. Admita-se que este Tribunal reconhecesse inconstitucionais o impedimento do Senhor Café Filho e o estado de sítio; voltar-se-ia ao statu quo Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 56 ante, isto é, à situação insurreicional do Exército, que ainda continua com os seus canhões em pé de guerra no Campo de Santana e alhures, para impedir o retorno do Senhor Café Filho à Presidência da República. Desde que o Chefe da insurreição não assumiu, ex proprio Marte, a Presidência da República, quem devia assumi-la? O Senhor Vice-Presidente do Senado, o penúltimo atualmente disponível na escala do art. 79, § 1º, da Constituição. A declaração do impedimento do Senhor Café Filho pelo Congresso foi, em última análise, uma superfluidade. Com ou sem essa declaração, e não querendo os insurreitos assumir o Governo da República, o Senhor VicePresidente do Senado é que tinha e tem de ocupar o Catete, posto que a Presidência da República não podia ficar em acefalia. A lei do estado de sítio foi sancionada por quem, constitucionalmente, está substituindo o Senhor Café Filho, na Presidência da República, dado o impedimento deste, decorrente do inelutável sic vole, sic inbec, das forças insurreicionais. Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá uma contra-insurreição com maior força. E esta, positivamente, não pode ser feita pelo Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a ingenuidade de, numa inócua declaração de princípios, expedir mandado para cessar a insurreição. Aí está o nó górdio que o Poder Judiciário não pode cortar, pois não dispõe da espada de Alexandre. O ilustre impetrante, ao que me parece, bateu em porta errada. Um insigne professor de Direito Constitucional, doublé de exaltado político partidário, afirmou, em entrevista não contestada, que o julgamento deste mandado de segurança ensejaria ocasião para se verificar se os Ministros desta Corte “eram leões de verdade ou leões de pé de trono”. Jamais nos inculcamos leões. Jamais vestimos, nem podíamos vestir, a pele do rei dos animais. A nossa espada é um mero símbolo. É uma simples pintura decorativa no teto ou na parede das salas de Justiça. Não pode ser oposta a uma rebelião armada. Conceder mandado de segurança contra esta seria o mesmo que pretender afugentar leões autênticos sacudindo-lhes o pano preto de nossas togas. Senhor Presidente, o atual estado de sítio é perfeitamente constitucional, e o impedimento do impetrante para assumir a Presidência da República, antes de ser declaração do Congresso, é imposição das forças insurreicionais do Exército, contra a qual não há remédio na farmacologia jurídica. Não conheço do pedido de segurança. O que esses dois casos, Marbury v Madison e MS nº 3557-DF, teriam de coincidentes e que me fizeram despertar para a minha problemática: uma clara circunstância de tensão política nas quais as Cortes de Cúpula têm de optar entre aplicar o que determina a Constituição ou defender os interesses do Estado, representado pelo Poder Executivo. Em outras palavras, vislumbramos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 57 que o Judiciário ou as duas Supremas Cortes optaram por uma política de não enfrentamento com o Estado, de não enfrentamento com o Poder Executivo, preferindo aí não prover o direito do cidadão, e como tal se manter inatingida pelo detentor de uma força explícita. Tal constatação me levou a seguinte reflexão: será realmente que a doutrina, a jurisprudência e a Constituição ao referenciarem estas Cortes como guardiãs da Constituição refletem a realidade? O Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição e o protetor das cidadanias? O Supremo Tribunal Federal constrói suas decisões de forma a proteger as cidadanias/sociedade? Optamos, então, por estudar as situações de pedido de Intervenção Federal (arts. 34 a 36 da CRFB/8863) em que o Supremo Tribunal Federal 63 “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: I - manter a integridade nacional; II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra; III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública; IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que: a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior; b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei; VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial; VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando: I - deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada; II - não forem prestadas contas devidas, na forma da lei; III - não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde; IV - o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial. Art. 36. A decretação da intervenção dependerá: I - no caso do art. 34, IV, de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário; II - no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral; III de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal. § 1º - O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembléia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas. § 2º - Se não estiver funcionando o Congresso Nacional ou a Assembléia Legislativa, far-se-á convocação extraordinária, no mesmo prazo de vinte e quatro horas. § 3º - Nos casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional ou pela Assembléia Legislativa, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 58 tenha sido chamado a se manifestar. Este instituto jurídico caracteriza-se por ser um instituto de estabilidade da própria Constituição, de proteção da integridade do Estado, trabalha, portanto, com circunstancias explícitas de força e com desrespeitos aos direitos dos cidadãos. Acreditei, pois, que desta forma, poderia compreender as relações de poder e de escolhas postas a mesa do Supremo Tribunal Federal quando chamado a guardar a Constituição. Fiquei, neste ponto, com o problema de saber como analisar as decisões. Inspirado pois, por uma metodologia de análise do discurso que me familiarizei em meu doutorado em letras neolatinas, quando do estudo dos discursos de Benito Mussolini e a construção de suas legitimidades, resolvi adotá-la para a análise das decisões do Supremo. Esta metodologia é a Análise Semiolinguística do Discurso Político de Patrick Charaudeau, que se encontra no seu livro “O Discurso Político (2006).” A fim de explicitar a nossa problemática, tal seja: compreender o papel do Supremo Tribunal Federal no Estado de Direito brasileiro pela desconstrução do discurso da intervenção federal em suas decisões, apresentaremos o nosso percurso metodológico. Registrando a carência da existência, entre nós, de uma metodologia já consolidada, própria para o trato da jurisprudência, e entendendo a pesquisa jurisprudencial como empírica64, optamos, em realizar análise de casos, combinando levantamento quantitativo e qualitativo de processos já decididos. O primeiro desafio encontrado foi delimitar o universo de investigação, já que o STF decide anualmente milhares de processos65 e não se sabe de plano quais dentre eles são os efetivamente relevantes. Descartando a pesquisa no Diário da União66, vez que de difícil acesso e manejo, pois todos os exemplares, em geral diários, em princípio deveriam normalidade. § 4º - Cessados os motivos da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal.” 64 Empírico para o minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa significa “baseado apenas na experiência e na observação.” 65 As estatísticas oficiais do STF encontram-se disponíveis em sua página institucional. Disponível em: <www.stf.gov.br> (atual: www.stf.jus.br). Acesso em: 09 de setembro de 2009. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 59 ser lidos, optamos por realizar o levantamento jurisprudencial das decisões, no sítio oficial do STF67, aplicando-se os filtros de refinamento de busca lá disponíveis. Este levantamento se deu através da consecução das seguintes etapas: 1ª etapa: filtragem no link jurisprudência do sítio do Supremo Tribunal Federal da expressão “intervenção federal”, resultado: 150 decisões de 1988 até 2008 encontradas; 2ª etapa: leitura das 150 decisões; 3ª etapa: no espaço das 150 decisões fora realizado um refinamento que teve como critério a exclusão de decisões com temática e fundamentos repetidos, se garimpando, de forma aleatória, apenas uma das decisões que se repetiam. Tanto fazia a escolha de uma ou outra decisão, pois as formações discursivas eram as mesmas; resultado: foram escolhidas 19 decisões. Selecionados os casos a serem analisados, nos deparamos com o segundo desafio: como proceder a essa análise. No particular, entendemos que dois momentos devem ser tomados em conta. O primeiro, voltado para a compreensão fático-jurídica do caso sob análise. O segundo dirigido à realização da análise do discurso jurídico, isto é, do discurso das decisões. Do ponto de vista da compreensão fático-jurídica, adotamos um formulário de análise onde são privilegiados os principais aspectos do caso, revelados a partir da decisão. Busca-se assim o estabelecimento de um contexto fático-jurídico mínimo que permita ao pesquisador construir uma representação do caso sob o enfoque jurídico. O segundo momento situa-se no estudo dos gêneros textuais, ou em outras palavras, busca perceber quais devem ou não ser os limites do gênero textual judicial, explicitando o modo de organização deste tipo de discurso (LIMA, 2006). No caso do gênero a ser analisado (judicial), deparamo-nos com textos em que o ato decisório se dá através do confronto dialético, realizado pelo magistrado, entre os elementos discursivos - normativos ou não - indiciários, 66 O Diário da União (DOU) é o veículo oficial de publicação impressa das decisões proferidas pelo STF. É ele que tem a força de intimar as partes dos processos e de dar publicidade às decisões do Tribunal. 67 Disponível em:<www.stf.gov.br> (atual: www.stf.jus.br). Acesso em: 08 de março de 2008. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 60 probatórios, assertórios e fáticos constantes do processo, cujo resultado é a produção do discurso decisório, através da publicação do texto em si da decisão. É esta decisão que externará a interpretação e a aplicação do Direito, àquele caso concreto, seguindo uma estrutura formal interna, definida em lei 68, onde se vê bem demarcados relatório, fundamentação e dispositivo. Sendo uma das espécies de discurso jurídico69, o discurso decisório tem como característica o cunho performativo. Ele é capaz de modificar situações jurídicas e é dotado de oficialidade, publicidade, racionalidade e circularidade (BITTAR, 2003). No particular, a circularidade é a característica que mais nos interessa e, no discurso decisório, ela pode ser apreendida na medida em que cada nova decisão é capaz de criar uma nova realidade de linguagem dentro do universo jurídico. Observamos ainda que este discurso deve ser dotado de imparcialidade e isenção, nos moldes no ordenamento jurídico vigente, bem como, com relação à Língua Portuguesa, de logicidade e de correção lingüísticas. Cumpre mencionar que é através dos fatos que se ligam os sujeitos do discurso, envolvidos no processo decisório, e que cada parte trará uma espécie própria de discurso - factual ou normativo - incumbindo ao juiz a produção de um terceiro discurso, fruto da união dos dois primeiros aliado à valoração e interpretação deste, dotando a realidade de uma carga de juridicidade. O ato de decidir não deveria ser mecânico, pois, além de ser integrado pelos elementos específicos do saber jurídico, dependem intrinsecamente da linguagem, como modo de expressar a autoridade do julgado, objetivando compor os diversos interesses envolvidos. Para isso, se utiliza tanto de signos lingüísticos, quanto de signos não-lingüísticos; de elementos verbais e nãoverbais, escritos, fonográficos, fotográficos etc., para fins de criar a norma a ser aplicada no caso individualmente considerado. 68 O art. 458 do Código de Processo Civil determina que “são requisitos essenciais da sentença: I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem”. 69 O discurso jurídico decorre do discurso normativo - que se afigura primário - e dele extrai sua fundamentação, mas não se esgota apenas em argumentos técnicos das partes principais autor, réu, ministério público - ou secundárias - peritos, assistentes técnicos - mas das mais variadas experiências humanas, num sentido jurídico. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 61 Nesse sentido, se afigura relevante a linguagem utilizada pelo magistrado ao proferir uma decisão judicial70, em especial, diante do princípio constitucional do acesso à justiça e do dever de fundamentação das decisões judiciais71. Entre a linguagem natural e a jurídica se interpõe a linguagem normativa e, o discurso decisório é permeado por elementos fáticos, sendo informado pelo rito, pelo discurso normativo e pelos discursos argumentativos das partes. O discurso jurídico tende, ainda, ao discurso burocrático - típico de qualquer marcha procedimental - que se afigura sintético em relação à norma (discurso primário), sendo, ao mesmo tempo, primário com relação ao próprio discurso decisório (BITTAR, 2003). Finalmente, é importante explicitar que toda apresentação de nossos dados privilegia a sistemática própria da análise do discurso: 1) informaremos que ministro enunciou tal discurso em voto, sendo chamado, portanto, de enunciador72; 2) citaremos a fonte de onde este discurso foi retirado, número do processo; e, por fim, realizaremos um comentário acerca do que fora enunciado. 70 Decisão aqui é empregada como gênero, dispondo o mesmo de três espécies: despacho, decisão ou sentença. De forma simplificada, podemos dizer que os despachos são os atos que dão andamento ao processo e não ostentam conteúdo decisório. As decisões ostentam conteúdo decisório, porém não encerram o processo. As sentenças também com conteúdo decisório finalizam o processo, encerrando o caso para o juiz que as proferiu. O art. 162 do Código de Processo Civil explicita cada uma dessas modalidades. 71 o O princípio do acesso à justiça está configurado especialmente no art. 5 ., inciso XXXV da Constituição de 1988 e o dever de fundamentar as decisões no art. 93, inciso IX. Os o dispositivos citados têm, respectivamente, a seguinte redação: Art. 5 . inciso XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”; art. 93 . IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões [...]”. 72 Cabe a explicação de que a escolha feita por nós de se informar os Ministros que estão enunciando os discursos se deu por todos estes votos estarem publicados. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 62 CAPÍTULO II- A doutrina jurídica sobre a Intervenção Federal: o que ela diz e não diz Torna-se importante, neste momento do trabalho, desenvolver a temática da intervenção federal, ou, em outras palavras, descrever quais seriam as representações doutrinárias do campo jurídico brasileiro acerca da intervenção federal, objeto das decisões do Supremo Tribunal Federal que analisamos. A doutrina no direito brasileiro pretende ocupar um papel de sugerir interpretações pertinentes aos operadores do direito. Tais sugestões serão utilizadas ou não dependendo do argumento defendido em juízo e do livre convencimento do juiz (TEIXEIRA MENDES, 2008). Seria responsável pela socialização dos integrantes do campo jurídico (advogados, magistrados, membros do Ministério Público, estudantes e acadêmicos do Curso de Direito) nos símbolos e nas representações articuladas do sistema de pensamento ou da atividade discursiva próprias do direito. Neste sentido é elucidativa a reflexão de TEIXEIRA MENDES (2008:40): A dogmática jurídica, também chamada de doutrina, é uma forma de construção do saber própria do campo jurídico que consiste em reunir e organizar de forma sistemática e racional comentários a respeito da legislação em vigor e da melhor forma de interpretá-la. A dogmática é um saber que produz as doutrinas jurídicas, através das quais o direito se reproduz. Tais doutrinas constituem o pensamento de pessoas autorizadas a trabalhar academicamente determinados assuntos, interpretar os textos legais e emitir pareceres a respeito da forma mais adequada de interpretá-los e de aplicálos. O saber jurídico não é científico, é dogmático (GEERTZ, 1998:249). O saber jurídico construído pela doutrina é considerado pelo campo como puramente teórico, mas seria mais bem definido, a meu ver, como um saber abstrato e normativo, que tem a função de ensinar de forma normalizada e formalizada as regras que estão em vigor. Vale esclarecer que a visão da doutrina não é uma teoria a qual estão subordinadas as práticas judiciárias. A doutrina jurídica é um Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 63 discurso autorizado sobre a lei e suas possíveis interpretações e aplicações jurisprudenciais. É um discurso normativo, idealtípico, uma vez que está dizendo como a realidade deve ser e não como a realidade é. É saber que não se debruça sobre a realidade empírica, com a finalidade de explicá-la ou compreendê-la, como faz o saber científico. Antes, tem a finalidade de interpretar a lei, recomendando a melhor forma de aplicação. A doutrina e a legislação estão dirigidas ao mundo do dever-ser: o mundo empírico está num outro plano e não lhes interessa. Na produção de doutrina jurídica, a observação empírica está descartada. Por ser um saber normativo e existir com a finalidade de dizer como a realidade deve ser, não tem base empírica e é comum que os juristas concluam, diante da realidade distinta da norma, que a realidade está errada, pois ela não deveria ser assim. Um conflito juridicamente traduzido sofre uma espécie de pasteurização e é adaptado à linguagem jurídica de tal maneira que o campo jurídico possa decodificá-lo e aplicar a ele as regras jurídicas pertinentes. Evidentemente, as regras jurídicas, como quaisquer regras definidas socialmente, dizem respeito a um determinado tempo e a um determinado lugar. No entanto, o campo jurídico tende a tomar as regras jurídicas vigentes num determinado momento histórico e numa determinada época como regras universais (no sentido cósmico), absolutas e atemporais. Ora, se os Ministros do Supremo Tribunal Federal são integrantes do mundo jurídico brasileiro, não haverá como se entender as decisões, os elementos nelas articulados e pensados, o que está sendo discutido e suas nuances, sem se entender o que a doutrina fala sobre o assunto, tendo em vista ser o arcabouço doutrinário o fundo comum de formação do pensamento jurídico brasileiro, ainda que este pensamento seja marcado por opiniões antagônicas e muitas vezes paradoxais, uma vez que o nosso sistema jurídicoprocessual não leva à formação de consenso73. Daí a hipertrofia do papel da interpretação da lei na sensibilidade jurídica74 brasileira: temos um sistema que 73 A questão acerca da não formação de consensos na cultura jurídica brasileira será desenvolvida no item 4.2. deste trabalho. 74 Sensibilidade jurídica é um conceito construído por Geertz para designar a noção de justiça em uma cultura. Assim, segundo o autor, toda e qualquer cultura tem uma sensibilidade jurídica que pode ou não se aproximar da nossa, que não é única nem absoluta. Sensibilidade jurídica é o complexo de operações utilizado por uma sociedade para relacionar princípios abstratos desse direito (GEERTZ, 1998:249). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 64 valoriza pouco o que está escrito na lei. A interpretação literal é vista pelos juristas brasileiros como simplória e pouco sofisticada. Neste ponto vale lembrar a afirmação de GEERTZ (1998:249-356): “o saber jurídico, em qualquer lugar do mundo, e em qualquer época, é apenas parte de uma forma específica de imaginar a realidade. Essas formas têm de ser confrontadas para que se obtenha consciência ampla de outras maneiras de sensibilidade jurídica, buscando-se a relativização de suas manifestações.” 2.1. O Federalismo O federalismo é em um tema relevante tanto ao pesquisador do Direito Constitucional quanto àquele que se dedica ao estudo da Ciência Política. O Direito Constitucional, pelo conteúdo material da Constituição, dedica-se ao estudo da organização e do funcionamento do Estado, promovendo um estudo da anatomia do Estado. O federalismo, como forma de Estado, liga-se à esta anatomia, pois apresenta a divisão do território do Estado em diferentes entes estados-federados, exercendo cada qual sua parcela de competência constitucionalmente estabelecida (CAMARGOS e ANJOS, 2009:81). Para a Ciência Política, que possui como objeto o poder político, o federalismo trata da divisão do poder político através da federação. Na visão de Arend LIJPHART (2003:213): Neste capítulo, abordo a primeira variável da dimensão federal unitária (poder dividido): o federalismo e a descentralização versus governo unitário e centralizado. É adequado conceder esse primeiro lugar de honra ao federalismo, porque ele pode ser considerado o método mais típico e drástico da divisão do poder: ele divide o poder entre níveis inteiros do governo. De fato, como termo da ciência política, a divisão do poder é normalmente usada como sinônimo de federalismo. Desta forma, compreender o federalismo como fenômeno de divisão do poder é o mesmo que analisá-lo como a divisão do principal objeto de estudo da Ciência Política. Este ponto, portanto, agrega mais um elemento a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 65 nossa afirmação que os discursos do Supremo Tribunal Federal acerca da intervenção federal são políticos. O federalismo como forma de Estado se apresenta como uma construção do século XVIII, mais precisamente ligada ao movimento constitucionalista norte-americano, que sucedeu a revolução da independência americana. Para tratarmos das origens do federalismo norte-americano é necessário discorrer sobre um de seus importantes pressupostos: a Constituição norte-americana. O constitucionalismo norte-americano, cujo legado apresentou ao mundo, através da Convenção de Filadélfia, a primeira Constituição escrita em 1787, e uma forma de Estado até então desconhecida, que é federal, remonta ao período de aparecimento do próprio estado americano. A Constituição norte-americana se apresenta como fundamento de validade do federalismo. Como nos dizem CAMARGOS e ANJOS (2009:83), cientistas políticos brasileiros que se dedicam ao estudo do federalismo americano: Foi da união das treze ex-colônias inglesas, formadas por indivíduos oriundos da Inglaterra, que se dirigiram para o novo mundo por razões religiosas, políticas e econômicas, que se criou inicialmente uma Confederação no momento imediatamente posterior a independência. Confederação esta que promoveu ajustamentos e uma maior aproximação entre os Estados confederados, de forma a fazer surgir uma Federação. Na Federação cada uma das treze ex-colônias, que se constituíam anteriormente em Estados confederados, tiveram de abrir mão da soberania de que eram dotadas para constituir um poder que se colocava em uma instância superior e que abrangesse a todas elas, sendo portanto a soberania atribuída a esse poder, surgindo assim o Estado Federal. Segundo Alexander HAMILTON (2003:71), autor de “O Federalista”, obra referência a respeito desta nova forma de organização do Estado, a autonomia dos estados membros combinada com uma união sólida e indissolúvel entre eles é a marca distintiva de uma federação, como confirma o texto do próprio autor transcrito abaixo: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 66 Uma União sólida terá a máxima significação para a paz e para a liberdade dos estados-membros, como uma barreira contra facções e insurreições internas. É impossível ler a história das pequenas repúblicas da Grécia sem um sentimento de horror e pena ante as agitações a que elas foram continuamente submetidas e a rápida sucessão de revoluções que as deixavam em estado de constante oscilação entre os extremos da tirania e anarquia. É de se notar, no caso da federação dos Estados Unidos da América do Norte, que houve uma constante preocupação com as questões relacionadas à política externa, de comércio e segurança dos estados federados reunidos em torno da União. Todavia, a maior preocupação esteve em torno das crises internas que as ex-colônias, transmutadas em Estados Confederados, e, posteriormente, em estados federados teriam de enfrentar. A autonomia é uma prerrogativa de poder de ente político, própria do Estado federal, que se distingue da soberania do Estado, na medida em que não é poder independente. Entretanto, tem como prerrogativas básicas a auto organização, pela qual o estado membro pode elaborar sua própria constituição e suas leis; o autogoverno que dá ao povo do estado membro o direito de escolher seus governantes tanto no plano do legislativo, como do executivo e do judiciário. E a ainda a autoadministração, que permite ao estado membro organizar e gerir sua máquina burocrática (DALLARI, 2009). Em razão de peculiaridades de sua história política, o federalismo norte-americano apresenta grande acentuação na autonomia dos estados federados. Mais uma vez podemos citar o trecho de CAMARGOS e ANJOS (2009: 84): Na experiência constitucional norte-americana a democracia é verdadeiro pressuposto do federalismo. A forma de estruturação do Estado Federal considera a participação dos cidadãos, seja através do exercício do direito de escolha de seus representantes pelas eleições, seja como destinatários das políticas públicas e competências constitucionais desempenhadas pelo governo federal ou pelos governos estaduais. Originalmente a soberania dos Estados Confederados, que criaram a Federação na Convenção de Filadélfia em 1787, certamente extraíram esta expressão de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 67 poder através da manifestação da vontade de seu povo. Desta forma, tanto o governo federal como os estaduais apresentam estruturalmente uma relação de dependência para com o cidadão eleitor, estando bastante evidenciado que os que governam exercem um mandato político devendo estrita fidelidade a quem os elegeu. Para trabalharmos com as características da federação, vamos lançar mão de um instrumento metodológico weberiano (WEBER,1964) que é o tipo ideal. Trata-se da construção de um modelo que traça uma espécie de caricatura simplificada da realidade social estudada e que não pretende esgotar as características das experiências históricas de cada Estado. Segundo WEBER (1964) dada a diversidade das peculiaridades locais, o tipo ideal é instrumento essencial para não cairmos no relativismo extremado, o que nos possibilita comparar certos aspectos de um fenômeno social. A principal característica do Estado federal, como já salientamos, é a descentralização administrativa e política. O que torna esta forma de organização bastante sofisticada é que o poder neste tipo de Estado seja dividido em diferentes funções de poder (Legislativo, Executivo e Judiciário), e estas reproduzidas simetricamente em todos os níveis da federação. Outro elemento fundamental que integra a organização federativa é a existência da manifestação livre e eficiente da vontade dos representantes de cada um dos estados federados no sentido de criar a união de todos eles, formando assim o Estado federal. Tal fenômeno é denominado de pacto federativo e ele fica estabelecido na Constituição federal. Com relação ao Direito Constitucional brasileiro José Alfredo de Oliveira BARACHO (1982:54), em obra denominada Teoria Geral do Federalismo assim afirma: Tecnicamente, o federalismo é uma divisão constitucional de poderes entre dois ou mais componentes dessa figura complexa que decorre da existência de um Estado que possa apresentar formas de distribuição das tarefas políticas e administrativas. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 68 Em outras palavras, a descentralização do Estado federal gera a necessidade de repartição de competências a serem exercidas pelo Estado federal e pelos estados federados. Esta repartição de competências se constitui na grande tarefa do legislador constituinte de forma a harmonizar o exercício do poder por parte de todos os estados que integram a federação e o Estado Federal75. Segundo Raul Machado HORTA (2002:306): se a tendência ocorrida no federalismo é a de fortalecimento do poder central da União Federal, tem-se o chamado federalismo contrípeto ou centrípeto, conforme queiram. Por outro lado, se a tendência é de fortalecimento dos estados integrantes da federação, diz-se que o federalismo é centrífugo. Havendo equilíbrio entre estas duas forças, qual seja, entre o Estado Federal e os estados federados, diz-se que o federalismo é de cooperação. Por outro lado, o federalismo centrífugo é aquele que fará um caminho oposto. O federalismo centrífugo se dirige para a periferia do Estado Federal. Nele não haverá necessariamente maior descentralização, mas sobretudo uma tendência à descentralização ao longo do tempo. Exemplo notável é o federalismo brasileiro, que surgiu originariamente de um Estado Unitário extremamente centralizador e se direciona ao longo da história republicana brasileira a dar maior leque de competências aos estados, seguindo no sentido da descentralização. É ainda Raul Machado HORTA (2002: 307) quem aponta como principais características do federalismo e que se constituem como seus princípios, técnicas e instrumentos operacionais os seguintes elementos: a)a decisão constituinte criadora do Estado Federal e de suas partes indissociáveis, a federação ou União, e os estadosmembros;”76 75 Esta divisão na ordem constitucional vigente no Brasil encontra-se insculpida entre os arts. 21 a 25; 30 e 32 da CRFB/88. 76 “Esta primeira característica faz menção à decisão criadora da federação que já mencionamos anteriormente e que é também denominada pacto federativo. O pacto federativo representa a expressão da vontade dos representantes dos estados que integram a federação de participar da criação do Estado Federal. Esta vontade é expressa na Constituição. Aqui é Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 69 b)a repartição de competências entre a federação e os estados-membros;”77 c)o poder de auto-organização constitucional dos estadosmembros, atribuindo-lhes autonomia constitucional;”78 d)a intervenção federal, instrumento para restabelecer o equilíbrio federativo, em casos constitucionalmente definidos;”79 e)a Câmara dos Estados, como órgão do Poder Legislativo Federal, para permitir a participação do estado-membro na formação da legislação federal;”80 também apresentada a característica de que os estados federados se constituem em partes indissociáveis, não podendo nenhum deles optar por não fazer mais parte da federação, posto que ao nela adentrarem abriram mão de significativa parcela de soberania de que eram dotados, restando-lhes a autonomia”. (HORTA, 2002:307). 77 “A repartição de competências aqui mencionada há de ser expressa no texto constitucional e há de delimitar as competências legislativas e administrativas do ente federal e dos entes federados. Ao repartir a competência a Constituição não há de hierarquizar ou subordinar os entes federados ao federal, mas irá definir o âmbito de atuação de cada um deles. Esta repartição de competências se constitui no cerne da disciplina constitucional acerca do federalismo. É certo que a competência afeta os órgãos do Poder Judiciário Federal e do Poder Judiciário dos estados, muito embora não seja apresentada como repartição de competências relacionadas ao federalismo, é de todo correto afirmar que sua definição é corolário do federalismo.” (HORTA, 2002:307). 78 “Esta capacidade de auto-organização dos estados-membros possui limitações e condicionamentos que são expressos pelo texto da Constituição Federal. Aqui há um estado dentro do Estado e esta capacidade de se organizar autonomamente é manifestação do poder constituinte decorrente e as Constituições Estaduais devem ser elaboradas em conformidade com os princípios e preceitos da Constituição Federal. Cumpre evidenciar que a soberania é atributo exclusivo do poder federal.” (HORTA, 2002:307). 79 “A regra geral que vigora no federalismo é a de que o ente político mais abrangente irá respeitar a autonomia do ente político menos abrangente; excepcionalmente e em casos definidos taxativamente na Constituição Federal, a União Federal intervirá nos estados ou diretamente nos municípios quando estes infringirem os chamados princípios constitucionais federais sensíveis. A intervenção é um mecanismo de defesa da própria federação, seja contra interferências externas ao Estado Federal, e principalmente em razão das intempéries ocorridas nos estados federados. Várias são as maneiras de se desencadear o processo interventivo, e quando este é desencadeado muitos são os mecanismos e instrumentos constitucionais para mantê-lo como uma medida estrita, temporária e da mais absoluta excepcionalidade.” (HORTA, 2002:307). 80 “O federalismo pressupõe um Poder Legislativo bicameral, onde uma das Casas Legislativas é constituída de representantes do povo e a outra Casa Legislativa será constituída pelos representantes dos estados federados. Como expressão da absoluta igualdade entre os estados integrantes da federação, cumpre destacar que o número de representantes por estado é o mesmo para cada um dos estados. Esta Casa Legislativa autoriza o estado federado a participar das principais decisões legislativas tomadas no âmbito federal. Muito embora a federação nos apresente dois estados de competências diferenciadas, é forçoso considerar que o estado federado apresenta estruturas que estão amalgamadas no Estado Federal e uma delas e de considerável relevo é a Casa Legislativa dos estados que compõem o Poder Legislativo Federal.” (HORTA, 2002:307). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 70 f)a titularidade dos estados-membros, através de suas Assembléias Legislativas, em número qualificado, para propor emenda à Constituição Federal;”81 g)a criação de novo estado ou modificação territorial de estado existente dependendo da aquiescência da população do estado afetado;”82 h)a existência do Poder Judiciário Federal de um Supremo Tribunal Federal ou Corte Suprema, para interpretar e proteger a Constituição Federal, e dirimir litígios ou conflitos entre a União, os Estados e outra pessoas jurídicas de direito interno.”83 Finalmente, ainda cabe destacar que as entidades federativas independentemente do tamanho de sua população, de sua participação no produto interno bruto do Estado Federal, ou de sua extensão territorial, têm entre si plena condição de igualdade formal, igualdade esta que é estabelecida pelas normas constitucionais. Após termos apresentado, com fins comparativos, as noções gerais do federalismo como um fato característico da história política e constitucional norte-americana, importante se torna compreender como esta forma de organização do poder político se aclimata no processo histórico-político brasileiro. 81 “Qualquer necessária alteração do texto da Constituição Federal deve ser acessível aos estados federados e normalmente esta possibilidade de propor emendas a Constituição Federal se dá através dos órgãos legislativos estaduais.” (HORTA, 2002:307). 82 “Esta característica é certamente conseqüência direta da autonomia dos estados federados. Qualquer mudança substancial na estrutura da federação ou dos estados federados vai depender da aquiescência direta da população diretamente interessada. Estas formas de consulta popular se constituem resquícios de democracia direta e normalmente se dão através do plebiscito ou do referendo, conforme o momento em que sejam realizados.” (HORTA, 2002:307). 83 “Um órgão de cúpula no Poder Judiciário que exerça a jurisdição das questões afetas à Constituição Federal. Que esta mesma estrutura de poder jurisdicional venha a dirimir conflitos entre a União e qualquer que seja a parte, entre os estados federados e pessoas de direito público interno. Fica evidenciada também a preocupação de preservação da Constituição Federal através do controle de constitucionalidade concentrado em um órgão jurisdicional. Há também a peculiar característica de que a União ou o Estado Federal não fique sujeito à jurisdição de justiças estaduais.” (HORTA, 2002:307). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 71 Em outras palavras, para que possamos entender as representações e significações existentes acerca da intervenção federal, devemos contextualizar o que vem a ser federação a brasileira. 2.2. O federalismo no Brasil A constituição imperial brasileira estabelecia um Estado unitário, apresentando como características a forte centralização política e administrativa. É certo que esta centralização decorrente da forma de Estado unitário em muito auxiliou na construção da unidade nacional, impedindo assim que o país se desagregasse em razão das inúmeras revoltas que ocorreram no seio das províncias (CHACON, 1987). No Brasil, a transição da monarquia para a república e do Estado unitário para o Estado federal não se constituiu em um processo lento, mas sim relativamente breve. O fato é que esta grande transformação na vida política nacional foi obra de alguns poucos intelectuais e militares de alta patente, não tendo havido participação popular na deflagração deste processo (CAMARGOS e ANJOS, 2009). Discorrendo sobre o assunto em obra que se tornou referência neste tema, José Murilo de CARVALHO (1991:68) assim afirma: “Estas observações não estão, no entanto, distantes da frase de Aristides Lobo, segundo o qual o povo teria assistido bestializado à proclamação da República, sem entender o que se passava”. É necessário que se evidencie que o grau de alienação do povo no que se refere ao momento político nacional não era muito diferente da ausência de participação das lideranças políticas existentes nas províncias no que se refere à adoção do federalismo como forma de Estado. A república e o federalismo foram um movimento de intelectuais e militares que residiam na Corte e na província de São Paulo. As demais províncias não tomaram parte significativa no evento histórico, e se é certo que o pacto federativo não exige um momento Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 72 histórico para sua caracterização, no Brasil ele foi expresso com a elaboração da Constituição Republicana de 1891 (CAMARGOS e ANJOS, 2009). É certo que na Constituição de 1934 muitas das competências administrativas e legislativas atribuídas aos estados anteriormente foram transferidas para a União. Entretanto, em 1937, com o advento do golpe dado por Getúlio Vargas, a outorga de uma nova Constituição e a instituição da ditadura do Estado Novo até 1945, o Brasil viveu momentos de grande centralização política, quando os estados passaram a não ter sequer o peso político apresentado nos anos posteriores à 1ª República. Sob a vigência da Constituição de 1946, o país viveu novo período de democratização e os estados da Federação passaram a atuar no cenário político nacional com maior desenvoltura, entretanto, esta Constituição adotou os mesmos moldes de concentração de competências administrativas e legislativas no rol deferido à União (CAMARGOS e ANJOS, 2009). Com o advento do golpe militar de 1964, que institui a ditadura e culminou na Constituição de 1967 e emenda nº 1 de 1969, retornando a um período de forte centralização e autoritarismo por parte da União federal, havendo aqui verdadeira submissão dos estados federados à União. Com a redemocratização do país e a convocação da Assembléia Nacional Constituinte no ano de 1986, cujo trabalho redundou na Constituição de 1988, o país retornou ao estado de direito, direito este elaborado e exercido legitimamente. Em que pesem os reveses políticos enfrentados pelo país em sua história republicana o fato é que as dimensões territoriais brasileiras, que são de grandes proporções, impõem para maior eficiência na administração da coisa pública a descentralização tanto política como administrativa. A Carta Política de 1988 estabeleceu em seu art. 1º “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:” É de se perceber que houve grande inovação da Constituição ao estabelecer que o Brasil é uma federação constituída por estados, municípios e pelo distrito federal, inovação esta que se dá por alçar o Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 73 município a um ente autônomo da federação. É de amplo conhecimento a federação constitui-se tão somente de estados, que juntamente com a união apresenta o seu aspecto dualista, daí a grande inovação na nova estrutura apresentada pelo federalismo brasileiro. O art. 18 da Constituição da República apresenta o município como parte integrante da organização política administrativa da República Federativa do Brasil ao lado da União, dos Estados e do Distrito Federal, sendo todos dotados de autonomia. A federação brasileira adquiri certa peculiaridade ao apresentar três esferas de governo que seriam a União, os estados e os municípios, mas autores como José Afonso da Silva questionam se o município foi, de fato, elevado à categoria de ente federativo (SILVA, 2007: 641): E os Municípios transformaram-se mesmo em unidades federadas? A Constituição não o diz. Ao contrário, existem onze ocorrências das expressões ‘unidade federada e unidade da Federação’ referindo-se apenas aos Estados e ao Distrito Federal, nunca envolvendo os Municípios. A Constituição de 1988, seguindo o exemplo das constituições anteriores, estabeleceu as hipóteses em que, excepcionalmente, a União poderia vir a intervir nos estados federados. O instituto da intervenção federal encontra-se nas circunstâncias enumeradas nos incisos do art. 34 da Carta Política84. 84 “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: I - manter a integridade nacional; II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra; III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública; IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que: a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior; b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei; VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial; VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 74 Na história do federalismo brasileiro é possível notar que a intervenção, notadamente por ser medida excepcional, foi utilizada com muita parcimônia, principalmente no período em que vivemos certa normalidade política e democrática. Entretanto, na ditadura de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945, e durante a ditadura militar de 1964 a 1984, a intervenção foi utilizada com maior freqüência (CAMARGOS e ANJOS, 2009). 2.3. Intervenção Federal A doutrina85 brasileira sobre a intervenção federal a apresenta enfatizando três elementos. 1) Conceituar a intervenção federal como o último remédio ou ratio para se manter a integridade nacional e da ordem jurídica constitucional; 2) Narrar um processo de continuidade histórica do instituto desde a primeira Constituição republicana de 1891, e a sua elaboração por Ruy Barbosa; 3) Apresentar as espécies de intervenção federal: a espontânea e a provocada86; Curioso é notar que todo este discurso é organizado em perspectiva referencial ao texto legal constitucional. Em outras palavras, a doutrina, simplesmente, apresenta o texto constitucional, sem trazer qualquer informação que não seja a discussão da natureza jurídica do instituto e a reprodução dos artigos da Constituição. Assim, a perspectiva política do 85 Como exemplo de doutrinadores podemos citar: BARROSO (1998), BONAVIDES (2005), FRANCO (1968), LEWANDOWSKI (1994), MORAES (2006), SILVA (2006), AGRA (2007), CRETELLA JR (1998), HORTA (1995), LENZA (2006), TAVARES (2007) e ZIMMERMANN (2002). 86 Em relação à lógica taxonômica que estrutura as categorias da doutrina jurídica brasileira, significa dizer que a organização dos institutos jurídicos apropria-se dos princípios das ciências biológicas dos séculos XVIII e XIX, que se preocupava em conhecer a natureza dos animais e das plantas, classificando-os em Reinos, Ordens, Classes, Gêneros e Espécies. Sendo assim no discurso dogmático jurídico temos como Reino o Sistema Jurídico brasileiro, como Ordem o Direito Constitucional, como Classe a Federação, como Gênero a Intervenção Federal e como Espécies a Espontânea e a Provocada, o que mais uma vez remonta o pensamento selvagem em seu discurso totêmico, segundo Claude Levy Strauss, ao naturalizar o discurso mítico LÉVY-STRAUSS (1976:56-97). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 75 instituto, como também dos exemplos jurisprudências que servem para ilustrálo não é apresentada. Como não mencionar a natureza política de um instituto que atinge diretamente o poder político de um ente federado? Como não contextualizar tais decisões histórica e politicamente? É de se estranhar... Como já foi mencionado no início deste capítulo a doutrina jurídica brasileira tem característica marcadamente prescritiva e, por isso, trabalha no plano ideal do ‘dever-ser’. A despeito das experiências autoritárias87, seja da República Velha, seja da Era Vargas ou da ditadura militar pós-196488, concebe a intervenção federal como um instituto jurídico-constitucional, conhecido como garantee clauses pelo direito norte-americano e como execução federal pelo direito germânico (AGRA, 2007:297), de exceção ao princípio federativo presente em nossa ordem jurídica nacional, desde a Constituição de 1891. Ignora, porém, que tais institutos são concebidos em contextos históricos e políticos complemente diferentes da sociedade oligárquica, patriarcal e pouco democrática na qual nasceu a Constituição brasileira de 1891. Segundo a doutrina brasileira, já citada, a intervenção federal nada mais é do que o afastamento temporário da autonomia de um ente federal que tem por objetivo a preservação da própria federação. Assim sendo, trata-se de instrumento de direito constitucional de exceção, pois priva o ente federado de sua característica essencial: a autonomia. Por ser forte medida coercitiva, só pode ser usada estritamente nas situações determinadas taxativamente pelo constituinte originário, nos arts. 34 a 36 da CRFB/88. Nos casos em que o pedido de intervenção federal se fundamenta em descumprimento de ordem judicial, na maior parte das vezes está envolvido 87 De acordo com CAMARGOS E ANJOS (2009:93): “Na história do federalismo brasileiro é possível notar que a intervenção, notadamente por ser medida excepcional, foi utilizada com muita parcimônia, principalmente no período em que vivemos certa normalidade política e democrática. Entretanto, na ditadura de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945, e durante a ditadura militar, de 1964 a 1984, a intervenção foi utilizada com maior freqüência.” 88 Sobre esta experiência histórica autoritária interessante a passagem de AGRA (2007:297): “Na história dos textos constitucionais brasileiros, o instituto da intervenção sempre respeitou os princípios do Estado Democrático de Direito. Contudo, o Ato Institucional 5 (AI-5) extrapolou os limites da intervenção, tornando-a um instrumento de coação do regime militar. Pelo AI-5 foi permitido ao Presidente da República, alegando interesse nacional, intervir nos Estadosmembros e nos Municípios sem respeitar as barreiras legais firmadas pela Constituição. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 76 grave desrespeito aos direitos de cidadania, uma vez que tais ordens judiciais, no mais das vezes protegem direitos do cidadão. Nestes casos a intervenção deixa de ser ato discricionário do Presidente da República, pois fica o tribunal prolator da ordem desobedecida obrigado a comunicar a desobediência ao Supremo Tribunal Federal, que requisitará a intervenção se julgar conveniente. A intervenção federal, vale se repetir, trata de exceção no equilíbrio federativo da autonomia política dos entes, a partir da ingerência de uma entidade em assuntos próprios de outra, quando diante de uma das circunstâncias taxativas extremas que atentam ao pacto federativo e a supremacia constitucional. Segundo AGRA (2007:297) a intervenção federal é o remédio típico da forma de Estado federativa, constituindo-se no instrumento cabível para a sua manutenção, de utilização necessária todas as vezes que um Estado-Membro ou um Município desrespeitar os princípios constitucionais federativos ou provocar uma instabilidade na normalidade jurídica. Já nas palavras de José Afonso da SILVA (1997:460): A Intervenção Federal é ato político que consiste na incursão da entidade interventora nos negócios da entidade que a suporta. Constitui o ‘puctum dolens’ do Estado Federal, onde se entrecruzam as tendências unitaristas e as tendências desagregantes. Humberto Peña de MORAES (2005:229) define que a intervenção federal é: instituto típico da estrutura do Estado Federal, repousa a intervenção no afastamento temporário da atuação autônoma da entidade federativa sobre a qual a mesma se projeta. A doutrina classifica que a intervenção federal pode se operar em duas espécies: a intervenção espontânea e a intervenção provocada. A primeira é uma discricionariedade, juízo de oportunidade e conveniência, do Presidente da República, ou seja, ato exclusivo da vontade do Chefe do Poder Executivo que deverá obter posterior aprovação por parte do Congresso Nacional, e que Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 77 na atualidade constitucional, está prevista no art. 34, incs. I, II, III e V da CRFB/88. A intervenção federal será provocada, hodiernamente, nos casos descritos no art. 34, incs. IV, VI e VII por solicitação do Executivo e do Legislativo estaduais, e, por requisição, por parte dos órgãos do Judiciário89. Em ambas as espécies deve ser expedido um decreto presidencial interventivo especificando a abrangência (os Estados-Membros que serão atingidos pela medida); a amplitude (os poderes que serão cerceados); e o tempo (prazo de duração da medida especificado). Deve o Presidente, segundo os arts. 90, I e 91 §1º da CRFB/8890 ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional para decretação. “Havendo a omissão do tempo determinado para a sua realização, a falta de indicação de cláusula 89 Retratando a discussão quanto ao papel do Presidente da República na intervenção federal informa-nos AGRA (2007:301-302): “Controvertida é a questão de saber se o Presidente da República tem obrigatoriedade ou não de decretar a intervenção quando houver pedido. Na questão acerca da intervenção no governo da Bahia, em 1920, Rui Barbosa afirmava que a intervenção dependeria do poder discricionário do Presidente, e Epitácio Pessoa defendia a tese de que o pedido vincularia o Chefe do Executivo, cabendo a ele apenas decretar a intervenção. A tese hoje preponderante é a de que o Presidente pode ou não decretar a intervenção diante do caso concreto. O pedido não o vinculará, cabendo a ele, pelas circunstâncias específicas do caso, analisar a conveniência ou não da decretação. Todavia, quando o objetivo da intervenção for o de prover à execução de lei federal, ordem ou decisão judicial e de assegurar a observância dos princípios sensíveis, a doutrina predominante se posiciona no sentido de que o pedido se torna vinculante, obrigatório, porque os motivos são eminentemente de cunho jurídico. Os mesmos parâmetros valem para a intervenção nos Municípios, nos mesmos casos pertinentes aos Estados-membros.” 90 “Art. 90. Compete ao Conselho da República pronunciar-se sobre: I - intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio; II - as questões relevantes para a estabilidade das instituições democráticas. § 1º - O Presidente da República poderá convocar Ministro de Estado para participar da reunião do Conselho, quando constar da pauta questão relacionada com o respectivo Ministério. § 2º - A lei regulará a organização e o funcionamento do Conselho da República. Art. 91. O Conselho de Defesa Nacional é órgão de consulta do Presidente da República nos assuntos relacionados com a soberania nacional e a defesa do Estado democrático, e dele participam como membros natos: I - o Vice-Presidente da República; II - o Presidente da Câmara dos Deputados; III - o Presidente do Senado Federal; IV - o Ministro da Justiça; V - o Ministro de Estado da Defesa; VI - o Ministro das Relações Exteriores; VII - o Ministro do Planejamento. VIII - os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. § 1º Compete ao Conselho de Defesa Nacional: I - opinar nas hipóteses de declaração de guerra e de celebração da paz, nos termos desta Constituição; II - opinar sobre a decretação do estado de defesa, do estado de sítio e da intervenção federal; III - propor os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo; IV - estudar, propor e acompanhar o desenvolvimento de iniciativas necessárias a garantir a independência nacional e a defesa do Estado democrático. § 2º - A lei regulará a organização e o funcionamento do Conselho de Defesa Nacional.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 78 suspensiva, a intervenção deverá ser considerada inconstitucional pelo Poder Judiciário” (AGRA, 2007:300). O decreto deve, ainda, justificar as razões de sua amplitude, abrangência e tempo. Após a sua redação pelo Presidente da República o decreto será publicado gerando automaticamente os seus efeitos e remetido a apreciação do Congresso Nacional. Quanto à função do Poder Legislativo ao controle do ato interventivo não lhe é permitido emendar o direito expedido, mas tão somente rejeitá-lo ou aprová-lo integralmente por decreto legislativo. Não cabe apreciação do Legislativo quando for de acinte aos princípios sensíveis e para prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial – arts. 34, incisos VI e VII. Nesses casos, descabe apreciação por parte do Legislativo porque os critérios são essencialmente técnico-jurídicos, ocorrendo o controle jurídico do processo interventivo. Ele somente se inicia se houver requisição dos órgãos judiciais ou se houver o provimento da representação do Procurador-Geral da República. No caso de descumprimento de lei federal, o pedido partirá do Supremo Tribunal Federal; nos casos de descumprimento de ordem ou decisão judicial, os pedidos poderão partir do Tribunal Superior Eleitoral, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal; no caso de quebra dos princípios sensíveis, o pedido será encaminhado pelo STF. Portanto, nos casos de acinte aos princípios sensíveis e para prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial, não há necessidade de apreciação pelo Poder Legislativo. Entretanto, se o pedido partir do STF para assegurar o livre exercício das funções do Poder Judiciário de quaisquer das unidades judiciárias estaduais, segundo o art. 34, inciso IV, terá de haver aprovação por parte do Poder Legislativo. (grifos nossos) (AGRA, 2007:299-300). Três são, então, as conseqüências do ato apreciado pelo Poder Legislativo, segundo as palavras de LEWANDOWSKI (1994:132): a)os parlamentares podem aprová-lo, autorizando a continuidade da intervenção até o atingimento de seus fins; b)podem, de outro lado, aprová-lo, suspendendo de imediato a medida, situação que gerará efeitos ex nunc; c)podem, por fim, rejeitá-lo integralmente, suspendendo a intervenção e declarando ilegais, ex tunc, os atos de intervenção. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 79 Nas situações que podem ser caracterizadas ou estabelecidas por questões meramente da seara jurídica, tais sejam, a inexecução de lei federal, ordem ou decisão judicial (art. 34, IV da CRFB/88), ou o desrespeito aos princípios constitucionais sensíveis (34, VII da CRFB/88), ficará dispensada a apreciação por parte do Poder Legislativo do decreto presidencial, se for suficiente a expulsão da norma jurídica que esteja conturbando a supremacia constitucional. Finalmente, quando as razões que justificaram a intervenção tiverem cessado, as autoridades afastadas dos entes federativos, não havendo impedimento de nenhuma ordem, retornarão aos seus cargos. Quanto a figura do interventor, é interessante observar o trecho de AGRA (2007:301): O alcance da intervenção e das prerrogativas do interventor não pode descurar dos princípios constitucionais impostos pelo ordenamento jurídico. Não há, como no estado de sítio e no estado de defesa, uma flexibilização dos direitos fundamentais ou uma excepcionalidade dos direitos e garantias constitucionais. O Estado Democrático de Direito é mantido em sua inteireza, ocorrendo apenas a limitação da autonomia do ente federativo que sofreu a intervenção. Os limites da intervenção são expostos preponderantemente pela Constituição Federal e pelo decreto presidencial que a estabelece. A intervenção federal, diz ainda a doutrina, possui duas características: a natureza política e a provisoriedade. Importante ressaltar que a doutrina ao se referir a natureza política da intervenção federal a reduz a uma questão de discricionariedade, não discutindo, portanto, as implicações e a contextualização política do ato. SILVA NETO (2007:260) explica: Quando se defende a natureza política do processo de intervenção, está-se a firmar, por outro prisma, o entendimento de que os critérios sobre os quais se movimenta a autoridade responsável pela expedição do decreto são essencialmente Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 80 políticos. Utiliza-se, portanto, do juízo da conveniência e oportunidade da medida. Conveniência é signo que importa na aferição de juízo de valor político acerca da efetiva necessidade no adotar-se a providência. Oportunidade, por outro lado, significa examinar o momento político da sua execução. A autoridade responsável pelo início da intervenção não usa um ou outro, mas os dois. Entrecruzam-se conveniência e oportunidade para tornar o mais acertado possível a decisão política atinente à intervenção. Outrossim, o §4º do art. 36 salienta que ‘cessados os motivos da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal’. É a característica referente à provisoriedade da intervenção. Medida excepcionalíssima que vulnera as autonomias estadual e municipal, o procedimento interventivo deve durar rigorosamente o tempo apto ao retorno da normalidade institucional da entidade federativa atingida. É importante ressaltar que a decretação deste instituto jurídico representa um momento de crise institucional tão sério, que ela configura um limite circunstancial ao Poder Constituinte Derivado de emendar a Constituição (art. 60, §1º da CRFB/8891). Esta medida de exceção não estabelece uma hierarquia entre os entes federativos. Quando a União intervém nos Estados-Membros, o Congresso Nacional referenda, ou não, através de um Decreto Legislativo (art. 49, IV da CRFB/8892), o decreto de intervenção (art. 84, X da CRFB/8893) do Presidente da República. Por simetria ocorre o mesmo na intervenção estadual (art. 35 da CFRB/88) (AGRA, 2007). 91 “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. § 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.” 92 “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: IV - aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas;” 93 “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: X - decretar e executar a intervenção federal;” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 81 A Intervenção Federal diferentemente dos institutos do Estado de Defesa (art. 136 da CRFB/8894) e do Estado de Sítio (arts. 137 a 141 da CRFB/8895) não é uma excepcionalidade ao Estado Democrático de Direito 94 “Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. § 1º - O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes: I - restrições aos direitos de: a) reunião, ainda que exercida no seio das associações; b) sigilo de correspondência; c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes. § 2º - O tempo de duração do estado de defesa não será superior a trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação. § 3º - Na vigência do estado de defesa: I - a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial; II - a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação; III - a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário; IV - é vedada a incomunicabilidade do preso. § 4º - Decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta. § 5º - Se o Congresso Nacional estiver em recesso, será convocado, extraordinariamente, no prazo de cinco dias. § 6º - O Congresso Nacional apreciará o decreto dentro de dez dias contados de seu recebimento, devendo continuar funcionando enquanto vigorar o estado de defesa. § 7º - Rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa.” 95 “Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta. Art. 138. O decreto do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas. § 1º - O estado de sítio, no caso do art. 137, I, não poderá ser decretado por mais de trinta dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo superior; no do inciso II, poderá ser decretado por todo o tempo que perdurar a guerra ou a agressão armada estrangeira. § 2º - Solicitada autorização para decretar o estado de sítio durante o recesso parlamentar, o Presidente do Senado Federal, de imediato, convocará extraordinariamente o Congresso Nacional para se reunir dentro de cinco dias, a fim de apreciar o ato. § 3º - O Congresso Nacional permanecerá em funcionamento até o término das medidas coercitivas. Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: I - obrigação de permanência em localidade determinada; II - detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; IV - suspensão da liberdade de reunião; V - busca e apreensão em domicílio; VI - intervenção nas empresas de serviços públicos; VII - requisição de bens. Parágrafo único. Não se inclui nas restrições do inciso III a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 82 visto que a Constituição não prevê para aquele instituto a possibilidade de suspensão de direitos ou garantias fundamentais. A intervenção será uma restrição a autonomia federativa de um ente (AGRA, 2007). Ocorre, porém, que nada impede o ordenamento constitucional que sendo insuficiente a intervenção, passem a ser decretados os Estados de Defesa e de Sítio. Segundo a doutrina, já citada, as formas de controle da intervenção são de duas espécies: política e jurídica. A primeira refere-se aquele realizado pelo Poder Legislativo dos atos interventivos postos a sua apreciação. A segunda, efetuada pelo Poder Judiciário, ocorre pela verificação do respeito a autonomia federativa e dos mandamentos constitucionais. 2.3.1. ADIN Interventiva A ação direta de inconstitucionalidade interventiva (art. 36, III da CRFB/8896) é uma modalidade de controle de constitucionalidade concreto e concentrado para um conflito federativo, proposta no nível federal pelo chefe do Ministério Público Federal, o Procurador Geral da República, quando um dos Estados-membros desrespeita lei federal ou um dos princípios constitucionais sensíveis (art. 34, VII da CRFB/8897). (MENDES, 2008). difusão de pronunciamentos de parlamentares efetuados em suas Casas Legislativas, desde que liberada pela respectiva Mesa. Art. 140. A Mesa do Congresso Nacional, ouvidos os líderes partidários, designará Comissão composta de cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas referentes ao estado de defesa e ao estado de sítio. Art. 141. Cessado o estado de defesa ou o estado de sítio, cessarão também seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executores ou agentes. Parágrafo único. Logo que cesse o estado de defesa ou o estado de sítio, as medidas aplicadas em sua vigência serão relatadas pelo Presidente da República, em mensagem ao Congresso Nacional, com especificação e justificação das providências adotadas, com relação nominal dos atingidos e indicação das restrições aplicadas.” 96 “Art. 36. A decretação da intervenção dependerá: III de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal.” 97 “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VII assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 83 Apesar de o texto constitucional falar em “representação”, trata-se de verdadeira ação. Por isso que hoje se chama ação direta interventiva. A ação direta interventiva não desencadeia um processo objetivo, ou seja, a análise da constitucionalidade da lei em tese. Mas sim, a jurisdição para solucionar um conflito federativo entre a União e os Estados (ou Distrito Federal). A função do Supremo Tribunal Federal não é a de responder uma consulta (ou afastar lei em tese), mas de decidir um caso concreto (MENDES, 2008). É importante observar que a conseqüência do provimento da representação (ou procedência da ação direta interventiva) não é a nulidade do ato contaminado, o que se quer é a decretação da intervenção federal no Estado. O legitimado para figurar no pólo ativo é a União Federal representada pelo Procurador Geral da República. No pólo passivo, o legitimado é o Estado menbro ou Distrito Federal. Hoje, o procedimento da ação interventiva está regulado pela Lei n. 4337/64. O Procurador Geral da República – PGR, ao ter conhecimento do ato que viola os princípios constitucionais sensíveis pode propor a ação direta interventiva. Caso seja mediante representação do interessado e o PGR entender ser relevante, tem ele o prazo de 30 dias para ingressar com a ação direta interventiva perante o Supremo Tribunal Federal. Proposta a ação, o relator ouve em 30 dias os órgãos que elaboraram ou praticaram o ato. Após a oitiva dos órgãos, o relator tem 30 dias para apresentar o relatório, que remeterá a todos os Ministros. O julgamento será feito pelo Pleno, podendo fazer uso da palavra o Procurador Geral da República e o órgão que emitiu o ato. Se a decisão for pela inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal comunica aos órgãos interessados e requisita ao Presidente da República a decretação da intervenção federal, estando este obrigado a transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 84 cumpri-la, sob pena de responder por crime de responsabilidade com base no art. 12 da Lei 1079/5098. A Lei 4337/64 expressamente proíbe a concessão de liminar. Tal provimento é incompatível com a ação interventiva, porque a suspensão liminar do ato impugnado transformaria em ação direta de inconstitucionalidade, o que é fiscalização abstrata e não concreta (MENDES, 2008). Este é, portanto, o escopo doutrinário da intervenção federal no Brasil, ou seja, instituto jurídico de manutenção da supremacia constitucional diante de desequilíbrios federativos e desrespeitos aos princípios fundamentais a cidadania. Esse é, pois, o panorama do que a doutrina constitucional brasileira, e como tal o campo jurídico brasileiro representa acerca do federalismo e da intervenção federal. 2.4. Federalismo, Intervenção Federal e Cidadania: o que a doutrina não diz Após termos apresentado o que a doutrina jurídica brasileira expõe acerca do federalismo e da intervenção federal, vamos neste item desenvolver uma reflexão sobre os pontos que a dogmática no Brasil nem sequer toca. Uma primeira constatação acerca do federalismo deve ser feita: a federação, através da descentralização dos poderes soberano e administrativo em entidades geográficas autônomas, torna-se um pressuposto para o regime democrático, pois possibilitaria a gestão da coisa pública, respeitando-se as peculiaridades, interesses e particularidades regionais e locais. Cidadania, por sua vez, que pode ser traduzido como mínimo jurídico comum a todos que estão ligados juridicamente a um Estado, consubstancia um conjunto de direitos e deveres que disciplinam a relação do Estado com seu povo. 98 “Art. 12. São crimes contra o cumprimento das decisões judiciárias: 1 - impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário; 2 - Recusar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário no que depender do exercício das funções do Poder Executivo; 3 - deixar de atender a requisição de intervenção federal do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior Eleitoral; 4 - Impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença judiciária”. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 85 O Estado contemporâneo, pós revoluções liberais burguesas, a partir da idéia de igualdade jurídica universal – todos são iguais perante a lei e na aplicação da lei-, compromete-se a atribuir a todos aqueles que se vinculam a ele, um mínimo jurídico comum, composto de um conjunto de direitos e deveres atribuídos a todos em razão do vínculo político de cada sujeito com este mesmo Estado. Assim, a cidadania, a qual é inerente a idéia de universalidade e, portanto de igualdade jurídica, é um fenômeno próprio das sociedades capitalistas contemporâneas, pois é um meio do Estado garantir a todos aqueles que a ele se vinculam e por isto são titulares de deveres que, em última análise, financiam este mesmo Estado, um patamar mínimo de igualdade, já que a sociedade de mercado, pela sua própria lógica, gera desigualdade (MARSHALL, 1967). Assim, a cidadania pode ser conceituada como o mínimo jurídico, composto de direitos e deveres, comum a todos os que estão vinculados politicamente a determinado Estado. Em outras palavras, cidadania é um conjunto de direitos e deveres atribuído a todos os que estão vinculados a um determinado Estado por um critério de vinculação política, em razão deste mesmo vínculo, que é a nacionalidade. O mínimo jurídico comum atribuído a todos os nacionais pela cidadania é composto, segundo MARSAHALL(1967) por três grupos de direito: os direitos civis são derivados do direito de liberdade e devem ser garantidos pelos tribunais, os direitos políticos que deve ser garantido pelo acesso universal às urnas; e os direitos sociais que devem ser garantidos pelas políticas públicas. Associarmos, desta forma, uma concepção contemporânea de federação e de cidadania, pela autonomia nas mãos das regiões, se viabiliza o exercício democrático do poder, e como tal da cidadania. O federalismo existe, podemos dizer, para a proteção dos direitos do cidadão, do exercício do poder pelo cidadão. Partindo-se deste pressuposto, a intervenção federal é meio protetivo ao equilíbrio federativo, que apesar de suspender a autonomia dos entes Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 86 federativos, a suspende, para viabilizar os direitos do cidadão, visto que esta autonomia não está, por alguma circunstância, sendo capaz de promovê-los. Ocorre que, a doutrina jurídica brasileira e os Ministros do Supremo Tribunal Federal em seus votos quando representam a intervenção federal, através da categoria ‘medida drástica’99 e a ser um instituto jurídico, que na memória histórico-política brasileira, sempre foi utilizado em momentos ditatoriais, acabam por não defendê-la. Ao sopesarem, se é que eles realmente façam isso, não suspensão das autonomias e defesa da cidadania, escolhem sempre a manutenção das autonomias em detrimento dos direitos do cidadão, por considerarem medida menos grave. Na verdade, a doutrina jurídica brasileira e os Ministros do Supremo Tribunal Federal não vislumbram que a intervenção federal, numa ambiência de estabilidade democrática, é, antes de tudo, o último remédio de que podem ser valer os cidadãos para verem seus direitos respeitados quando ineficientes as gestões de seus estados membros. Sendo assim, a doutrina jurídica brasileira não diz que o principal papel da intervenção federal no Estado Democrático de Direito é proteger o pacto federativo, e como tal, a constituição federal, no intuito de se ver respeitada a própria razão de existência do Estado: a Cidadania. 99 Recomenda-se ver o capítulo III deste trabalho que desenvolve as categorias discursivas dos Ministros do Supremo Tribunal Federal acerca da intervenção federal. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 87 CAPÍTULO III- Os temas relacionados aos pedidos de intervenção federal discutidos no Supremo Tribunal Federal entre os anos de 1988 a 2008. Após realizarmos a leitura e análise das 150 decisões do Supremo Tribunal Federal e chegarmos as 19 apresentadas, constatamos que poderíamos agrupar as decisões por 5 grandes temas, tais sejam: o não pagamento de precatórios; descumprimento de decisão judicial de reintegração de posse; desrespeito a princípio constitucional sensível e invasão de uma unidade federativa em outra e desrespeito de decisão judicial que determina de se respeite a regra do quinto constitucional. Em relação ao primeiro tema estão reunidas as decisões que tratam dos pedidos de intervenção federal pelo não pagamento de precatórios100101, totalizando treze decisões. Os julgados sobre pedidos de intervenção por desrespeito a decisão judicial que determinava reintegração de posse102103, totalizam duas decisões. 100 Precatório é uma ordem judicial de pagamento de débitos da Fazenda Pública (Federal, Estadual ou Municipal), devidos por força de sentença judicial transitada em julgado (art. 100, CF/88), constituída em processo formado no juízo da execução, sendo esta a sua fase final, para a satisfação do credor-exeqüente. 101 Quanto aos precatórios às decisões: reclamação nº 2100-9/SP, data da decisão: 13/03/2003, Relator: Min. Marco Aurélio; intervenção federal – questão de ordem nº 105-6/PR, data da decisão: 03/08/1992, Relator: Min. Sydney Sanches; intervenção federal nº 101-3/ MA, data da decisão: 06/12/1989, Relator: Min. Néri da Silveira; intervenção federal nº 120-0/PR, data da decisão: 10/02/1993, Relator: Min. Sydney Sanches; intervenção federal – agravo regimental nº 2045-0/SP, data da decisão: 13/09/2006, Relator: Min. Ellen Gracie; intervenção federal – agravo regimental nº 506-0/SP, data da decisão: 05/05/2004, Relator: Maurício Corrêa; intervenção federal nº 164-1, data da decisão: 03/02/2003, Relator: Min. Marco Aurélio para acórdão Min. Gilmar Mendes; intervenção federal nº 2915-5/ SP, data da decisão: 03/02/2003, Relator: Min. Marco Aurélio para acórdão Min. Gilmar Mendes; Reclamação nº 1091-1/PA, data da decisão: 22/05/2002, Relator: Maurício Corrêa; intervenção federal nº2303/DF, data da decisão: 24/04/1996, Relator: Mn. Sepúlveda Pertence; intervenção federal – agravo regimental nº 555-8/MG, data da decisão: 18/12/1997, Relator: Min. Celso de Mello; intervenção federal nº 135-8/RJ, data da decisão: 18/10/1995, Relator: Min. Sepúlveda Pertence; intervenção federal – questão de ordem nº590-2/CE, data de decisão: 17/09/1998, Relator: Min. Celso de Mello. 102 Ação visando a recuperação de um bem, promovido pelo seu possuidor a título legal, contra o esbulhador, ou terceiro que o recebeu. 103 Quanto à reintegração de posse às decisões: intervenção federal- questão de ordem nº 1072/DF, data da decisão: 03/08/1992, Relator: Min. Sydney Sanches; intervenção federal nº 1030/PR, data da decisão: 13/03/1991, Relator: Néri da Silveira. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 88 O 3º tema, desrespeito a princípio constitucional sensível104105, possui duas decisões. O 4º, invasão de uma entidade federativa em outra106, tem apenas uma decisão. E, finalmente, o 5º tema107 também é representado por apenas uma decisão. Vale, antes de começarmos a descrição dos respectivos casos, justificar que a forma de sua apresentação se deu, por ser tratarem apenas de 19 decisões – o que impossibilita qualquer associação relevante por data de julgamento, ministro, instrumento processual e estado membro- privilegiando a narração do objeto do que foi debatido por suas temáticas. 3.1. Descrição dos casos sobre o não pagamento de precatórios. 1) Trata-se de Reclamação formalizada por Gabriele Canestrelli e cônjuge contra atos do Tribunal de Justiça de São Paulo e seu Presidente. Os reclamantes propuseram pedido interventivo no Estado em face do não pagamento integral do valor requisitado em precatório decorrente de desapropriação. O TJ julgara procedente o pedido, encaminhando o processo ao STF onde foi autuado como Intervenção Federal nº345-8. Após a apresentação das informações do Governador do Estado, restara determinado o retorno dos autos à origem, a fim de que houvesse esclarecimentos quanto aos percentuais aplicados na correção monetária do débito. Uma vez cumprida 104 Os princípios constitucionais sensíveis são os temas que estão estabelecidos taxativamente no art. 34, inc. VII da CRFB/88. 105 Em relação ao desrespeito a princípio constitucional sensível: intervenção federal nº 114/MT, data da decisão: 13/03/1999, Relator: Min. Néri da Silveira; intervenção federal nº 1021/PA, data da decisão: 13/03/1991, Relator: Min. Néri da Silveira. 106 Quanto à invasão de uma entidade federativa em outra: mandado de segurança nº 21.0419, data da decisão: 12/06/1991, Relator: Min. Celso de Mello. 107 Importante esclarecer que o quinto constitucional é instituto jurídico estabelecido no art. 94 da CRFB/88, e determina que um quinto das vagas dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais sejam destinadas a advogados e membros do Ministério Público. Reclamação – agravo regimental nº 496-2/RS, data da decisão: 23/06/1994, Relator: Min. Octávio Gallotti. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 89 a diligência, o Presidente do TJ despachou os autos e ordenou a suspensão do processo em virtude da superveniência da Emenda Constitucional nº30/2000, que estabelece prazo de dez anos para a quitação de dívidas de natureza não alimentar e daquelas não consideradas como de pequeno valor. A Corte, em Tribunal Pleno, embasada no voto do relator decidiu que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deve se ater ao objeto da diligência, afastando-se da prejudicialidade declarada. 2) Trata-se de pedido de intervenção federal requerida por José Manoel Pinto de Camargo e sua mulher no Estado do Paraná pelo não pagamento de precatório judicial, tendo sido preteridos pelo Estado que desrespeitou o princípio da precedência. A Corte, em Tribunal Pleno, embasada no voto do relator não conheceu do pedido, por ilegitimidade ativa dos requerentes. 3) Trata-se de pedido de intervenção federal no Estado do Maranhão requerida por Centro Oeste Distribuidora de Madeiras e outras pela preterição e não pagamento de precatórios. A Corte, em Tribunal Pleno, embasada no voto do relator julgou os requerentes carecedores da ação. 4) Trata-se de pedido de intervenção federal requerida pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná a pedido de Antonio Clarides Modena e outros pela recusa no pagamento de precatórios. A Corte, em Tribunal Pleno, embasada no voto do relator indeferiu o pedido de intervenção federal, entendendo que credor eventualmente preterido, em seu direito de precedência, deveria pedir o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito (parágrafo 2° do art. 100 da Constituição). E não, desde logo, a intervenção federal. 5) Trata-se de agravo regimental interposto contra a decisão monocrática do relator que indeferiu monocraticamente o pedido de intervenção federal requerida pela Cerâmica Industrial de Osasco Ltda. pelo descumprimento de decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que requisitou ao Governador de Estado decretar intervenção em Município por não pagamento de precatórios. A Corte, em Tribunal Pleno, embasada no voto da relatora Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 90 negou provimento ao agravo, pois a decisão que defere pedido de intervenção estadual em município constitui procedimento político-administrativo, destituído de índole jurisdicional. 6) Trata-se de agravo regimental interposto contra a decisão monocrática do relator que indeferiu monocraticamente o pedido de intervenção federal requerida por Raphael de Paula Souza e Cônjuge pelo descumprimento de decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que determinou o pagamento de precatório complementar no prazo de 90 dias. A Corte, por maioria, em Tribunal Pleno, embasada no voto do relator, negou provimento ao agravo contra a decisão que indeferiu o pedido de intervenção federal, porque o Estado vivia uma situação de exaustão financeira, fenômeno econômico/financeiro vinculado à baixa arrecadação tributária, que não legitimaria, portanto, a medida drástica de subtrair temporariamente a autonomia estatal. 7) Trata-se de pedido de intervenção federal requerida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a pedido de Eliza Pretti e Outros pela recusa no pagamento de precatórios de natureza alimentícia. A Corte, por maioria, em Tribunal Pleno, embasada no voto do Ministro Gilmar Mendes indeferiu o pedido de intervenção federal, pois não teria havia uma intenção dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento, como também, pelo princípio da proporcionalidade, ao estar o Estado sujeito a quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia, ele tem a necessidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo, a continuidade de prestação de serviços públicos. 8) Trata-se de pedido de intervenção federal requerida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a pedido de Nair de Andrade e Outros pela recusa no pagamento de precatórios de natureza alimentícia. A Corte, por maioria, em Tribunal Pleno, embasada no voto do Ministro Gilmar Mendes indeferiu o pedido de intervenção federal, pois não teria havia uma intenção dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento, como também, pelo princípio da proporcionalidade, ao estar o Estado sujeito a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 91 quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia, ele tem a necessidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo, a continuidade de prestação de serviços públicos. 9) Trata-se de reclamação interposta pelo Governador do Estado do Pará contra o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, que teria desrespeitado decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1662-SP, ao determinar o seqüestro de quantias da Fundação da Criança e do Adolescente e da Fundação Santa Casa de Misericórdia. A Corte, em Tribunal Pleno, embasada no voto do relator julgou procedente o pedido formulado na reclamação. 10) Trata-se de pedido de intervenção federal requerido por Abeguar Herdy de Oliveira e outros pelo descumprimento de decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, que determinava o pagamento de precatórios por parte do Distrito Federal. A Corte, em Tribunal Pleno, embasada no voto do relator resolveu questão de ordem proposta pelo Relator, afirmou a competência do Supremo Tribunal Federal e negou seguimento ao expediente pela falta de iniciativa própria e fundamentada do órgão legitimado para pedir a intervenção. 11) Trata-se de agravo regimental interposto contra a decisão monocrática do Ministro Sepúlveda Pertence que indeferiu monocraticamente o pedido de intervenção federal requerida por Nelson Xisto Damasceno pelo descumprimento de decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais que determinou o pagamento de precatórios. A Corte, em Tribunal Pleno, embasada no voto do relator negou provimento ao agravo, pois se tratando de condenação transitada em julgado, proferida por órgão competente da Justiça Estadual, falece legitimidade ativa ad causam ao credor interessado para requerer diretamente, ao Supremo Tribunal Federal, a instauração do processo de intervenção federal contra o Estado-membro que deixou de cumprir a decisão ou a ordem judicial. Em tal hipótese, impor-se-á, à parte interessada, a obrigação de previamente submeter o pedido de intervenção ao Presidente do Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 92 Tribunal local, a quem incumbirá formular, em ato devidamente motivado, o pertinente juízo de admissibilidade. 12) Trata-se de pedido de intervenção federal requerida por Ary Mendes e outros delegados de polícia do Estado do Rio de Janeiro para execução de decisão judicial que lhes foi favorável, no sentido de resguardar direitos supervenientes quanto a equiparação da verba de representação aos subsídios do Ministério Público. Afirmaram ainda os delegados que o Presidente do Tribunal de Justiça se recusou a promover a intervenção federal, sob a alegação de que estaria usurpando competência do Presidente do Supremo Tribunal Federal, como também estariam eles usando a intervenção federal para fins recursais e não de resguardo da autoridade da decisão judicial. Não conhecimento do pedido por unanimidade do Tribunal Pleno com o fundamento de ilegitimidade dos requerentes. 13) Trata-se de pedido de intervenção federal requerida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região, e encaminhada pelo Tribunal Superior do Trabalho, no Município de Ibiapina/CE pela não inclusão, em seu orçamento anual, da verba necessária à satisfação do precatório expedido por aquele Tribunal. A Corte, em Tribunal Pleno, embasada no voto do relator não conheceu do pedido, por ilegitimidade ativa a União para decretar intervenção federal em Municípios de Estados-membros. 3.2. Descrição dos casos sobre reintegração de posse. 1) Trata-se de pedido de intervenção federal requerida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina a pedido de Roberta de Araújo Gondin Crochi pelo descumprimento a mandado de reintegração de posse expedido pelo Juízo de Direito da Comarca de Abelardo Luz e não cumprido pelo o Estado de Santa Catarina por não fornecer o contingente policial necessário para a sua efetivação a despeito das reiteradas requisições. A Corte, em Tribunal Pleno, embasada no voto do relator declarou a incompetência em razão da matéria do Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 93 STF, pois a questão (propriedade) não se trata de conteúdo constitucional, determinando a remessa dos autos ao Superior Tribunal de Justiça para processamento e julgamento. 2) Trata-se de pedido de intervenção federal requerida pela empresa Solidor Industrial Ltda. no Estado do Paraná para garantir o cumprimento de decisão judicial que determinou a reintegração de posse em imóvel rural de sua propriedade que fora invadida por sem terras. A Corte, em Tribunal Pleno, embasada no voto do relator determinou o arquivamento dos autos da intervenção federal, por não mais subsistirem razões à requisição, visto que os sem terras já haviam se retirado da propriedade. 3.3. Descrição dos casos sobre desrespeito a princípio constitucional sensível 1) Trata-se de representação interventiva proposta pelo Procurador Geral da República contra o Estado de Mato Grosso por desrespeito a princípio constitucional sensível estabelecido no art. 34, VII, b da CRFB/88. A Corte, por maioria, em Tribunal Pleno, preliminarmente, conheceu do pedido de intervenção, vencidos os Ministros Celso de Mello e Moreira Alves; no mérito, o Tribunal por unanimidade indeferiu o pedido, pois embora a extrema gravidade dos fatos e o repúdio que sempre merecem atos de violência e crueldade, não se trata, porém, de situação concreta que, por si só, possa configurar causa bastante a decretar-se intervenção federal, no Estado, tendo em conta, também, as providências adotadas pelas autoridades locais para a apuração do ilícito. 2) Trata-se de representação interventiva proposta pelo Partido Socialista Brasileiro e pelo Deputado Ademir para que houvesse requisição de intervenção federal no Estado do Pará a fim de se assegurar os direitos humanos e garantir a ordem. A Corte, por unanimidade, em Tribunal Pleno, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 94 embasada no voto do Ministro Relator Néri da Silveira não conheceu do pedido por ilegitimidade ativa dos requerentes. 3.4. Descrição dos casos sobre a invasão de uma entidade federativa em outra 1) Trata-se de mandado de segurança impetrado pelo Governador do Estado de Rondônia contra atos comissivos e omissivos do Ministro da Justiça, do Presidente da República e do Governador do Estado do Acre com a finalidade de obrigar o Presidente da República a decretar a intervenção federal no Estado do Acre, sob o fundamento da invasão de um Estado-membro em outro. A Corte, por unanimidade, em Tribunal Pleno, não conheceu da ação quanto ao ato do Ministro de Estado da Justiça e indeferiu o mandado de segurança impetrado em face do Governador do Estado do Acre e do Presidente da República, sob o fundamento de que a estaríamos diante de pedido de intervenção espontânea, e, como tal, ela só poderia se realizar por juízo de conveniência e oportunidade do Chefe do Poder Executivo. 3.5. Descrição dos casos sobre desrespeito de decisão judicial que determina de se respeite a regra do quinto constitucional. 1) Trata-se de agravo regimental em reclamação de pedido de intervenção federal proposto pelos Conselhos Federal e Secção Estadual do Rio Grande do Sul da Ordem dos Advogados do Brasil contra o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, com fundamento no art. 34, VI, da CRFB/88, visando preservar e assegurar os efeitos da ADI nº 29 e do art. 94 da CRFB/88. A Corte, em Tribunal Pleno, embasada no voto do relator decidiu que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 95 deve se ater ao objeto da diligência, afastando-se da prejudicialidade declarada. 3.6. As razões ou categorias nativas para não se prover os pedidos de intervenção federal no Supremo Tribunal Federal Neste item da tese vamos apresentar e analisar quais seriam as razões, ou as categorias discursivas nativas ou as justificativas articuladas pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal não darem provimento aos pedidos de intervenção federal. Explicitando quais são as problemáticas obrigatórias, discussões mais recorrentes, ou seja, os pontos que necessariamente despertam questões centrais entre os atores discursivos. Quanto ao conceito de categorias nativas deve-se explicitar que elas são o discurso elaborado por determinado grupo tanto sob seus aspectos simbólicos quanto materiais para ser compreendido e, como tal difundido. Tais categorias tornam legítima a identidade de um nós coletivo. (CUNHA, 1986). Elas podem também representar um código, cujo aprendizado das regras permite a comunicação e o compartilhar de experiências comuns (MONTEIRO, 2006). Muito importante se faz conhecer tais categorias discursivas, pois elas informam as estratégias dos Ministros para sustentarem o placar de 150 para os entes federativos a 0 para a sociedade/cidadãos, em 150 julgamentos de 1988 a 2008, que reduzimos para 19 julgamentos pelas recorrências das justificativas, pelo não provimento da intervenção federal. Podemos, em primeiro lugar, separar estas categorias ou razões em dois grandes grupos, independentemente das temáticas discutidas, (o não pagamento de precatórios, o desrespeito a decisão judicial que determina a reintegração de posse, a invasão de uma entidade da federação em outra, o desrespeito a princípio constitucional sensível, e, o desrespeito a decisão judicial que determina seja atendido o quinto constitucional) que foram Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 96 trabalhadas no item anterior. Os dois grupos são: 1) As escusas108 de processo civil, e, 2) As escusas que analisam o mérito da questão. É importante dizer quanto à articulação dessas categorias que elas se associam a partir dos seguintes pressupostos: 1) apesar da Constituição determinar que os precatórios (art. 100 da CRFB/88) devem ser pagos com pontualidade e se respeitando a ordem de preferência dos credores; 2) apesar de a Constituição determinar a proteção da cidadania e aos direitos dos cidadãos (arts. 1º e título II da CRFB/88); 3) Não obstante a Constituição estabelecer a responsabilidade civil objetiva do Estado (art. 37 §6º da CRFB/88); 4) apesar da Constituição estabelecer que a propriedade privada deve ser respeitada (art. 5º, XXII da CRFB/88); 5) Não obstante a Constituição determinar que a segurança é um direito de todos e dever do Estado provê-la (arts. 5º e 6º da CRFB/88); 6) apesar da Constituição, no seu art. 94, determinar que o quinto constitucional seja respeitado, o Supremo Tribunal Federal nunca optou por defendê-las/provê-las. Todas essas temáticas que foram questionadas no Supremo Tribunal Federal sob o pano de fundo da intervenção federal são, entretanto, questões amparadas constitucionalmente. As escusas processuais a) Declaração de incompetência do Supremo Tribunal Federal para julgamento pela matéria não ser de conteúdo constitucional. - Incidência: 1 caso. - Número do processo: IF-QO nº107-2/DF. 108 Uma vez que o Supremo Tribunal Federal nunca deu provimento aos pedidos de intervenção federal de 1988 a 2008, o termo ‘escusa’ está sendo usado neste trabalho no sentido de ‘desculpas’ usadas pela Corte para não se prover os pedidos de intervenção. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 97 - Explicação das representações acerca da categoria: Os enunciadores recorrem a um dos principais elementos de formação do capital simbólico do campo jurídico, a doutrina, através de autores (Manoel Gonçalves Ferreira Filho e José Afonso da Silva) reconhecidos pelos juristas brasileiros como clássicos do direito constitucional brasileiro, como um argumento de autoridade para persuadir seus receptores quanto ao tema e à solução adstritas, a controvérsia judicial apresentada, tal seja: regras de competência em razão da matéria. Em outras palavras, os enunciadores sustentam que o Supremo Tribunal Federal não teria poder para julgar o mérito, pois a questão é infraconstitucional. Entretanto, em nenhum momento explicam ou explicitam o que vem a ser matéria constitucional. - Exemplos: Excerto 1 - Enunciador: Min. Sydney Sanches, IF-QO nº107-2/DF: “O ilustre Subprocurador-Geral da República, Doutor ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA, no parecer de fls. 128/132, aprovado pelo Exmº. Sr. Procurador-Geral, Doutor ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA, resumiu a hipótese e, em seguida, opinou, ‘in verbis’: Intervenção Federal. Descumprimento de requisição de força policial para execução de liminar deferida em ação de reintegração de posse. Incompetência do STF. Art. 36, II, CF/88. Art. 19, I, Lei nº 8.038/90. Hipótese em que a requisição compete ao STJ já que a causa não se fundamenta em matéria constitucional. Presença do pressuposto a requisição pleiteada.” Excerto 2 – Enunciador: Min. Sydney Sanches, IF-QO nº107-2/DF: “O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina requer seja decretada a intervenção federal no referido Estado para que se possa dar cumprimento a mandado de reintegração de posse expedido em favor de Roberta de Araújo Gondin Crochi, nos autos de ação de reintegração de posse ajuizada perante o Juízo de Direito da Comarca de Abelardo Luz-SC. É que a ordem liminarmente deferida em 06/09/89 ainda não foi cumprida porque o Governo do Estado de Santa Catarina não fornece o contingente policial necessário a sua efetivação, apesar das sucessivas requisições. 2. A despeito do pedido estar sendo processado perante esta Egrégia Corte desde junho de 1990 (fls. 73) reputo indispensável que se realize o exame da competência para o seu processo e julgamento, em razão do que dispõe o inciso II do art. 36, da Constituição Federal. ‘Art. 36. A decretação da intervenção dependerá: II- no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral.’” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 98 Excerto 3 - Enunciador: Min. Sydney Sanches, IF-QO nº107-2/DF: “Diante de tais considerações, ao que penso, o processo e julgamento do pedido de intervenção federal em exame não compete a essa Excelsa Corte, mas sim ao Superior Tribunal de Justiça, pois que se fundamenta no alegado descumprimento de ordem expedida por juiz estadual em ação de reintegração de posse, causa evidentemente fundada em matéria infraconstitucional.” b) Ilegitimidade ativa - Incidência: 7 casos. - Número do processo: IF-QO nº 105-6/PR, IF-AGR nº 555-8/MG, IF nº 1021/PA, IF nº 135-8/RJ, IF-QO nº 590-2/CE, IF nº 103-0/PR, RECL-AGR nº 4962/RS. - Explicação das representações acerca da categoria: Através desta categoria do processo civil, os enunciadores sustentaram que as pessoas que ingressaram com os pedidos de intervenção federal não poderiam, de acordo com seus entendimentos acerca da lei processual, fazê-lo. - Exemplos: Excerto 1 - Enunciador: Min. Sydney Sanches, IF-QO nº 105-6/PR: “Os requerentes são partes ilegítimas para pedir a intervenção federal. No mesmo sentido, após o advento da Constituição de 1988, é o disposto no art. 19 da Lei n. 8.038, de 28.05.1990: Art. 19 – A requisição de intervenção federal prevista no incisos II e IV do art. 36 da Constituição Federal será promovida: I – de ofício, ou mediante requisição de Presidente de Tribunal de Justiça do Estado, ou de Presidente do Tribunal Federal, quando se tratar de prover a execução de ordem ou decisão judicial, com ressalva, conforme a matéria, da competência do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior Eleitoral; II de ofício, ou mediante pedido da parte interessada, quando se tratar de prover a execução de ordem ou decisão do Superior Tribunal de Justiça; Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 99 Excerto 2 - Enunciador: Min. Sydney Sanches, IF-QO nº 105-6/PR: “Como se vê, a legitimidade ativa para o pedido de intervenção federal, na hipótese em que se pretende prover à execução de ordem ou decisão judicial, só é atribuída à parte interessada quando a ordem ou decisão emana do próprio Supremo Tribunal Federal, ou do Tribunal de Justiça.” Excerto 3 - Enunciador: Min. Celso de Mello. IF-AGR nº 555-8/MG: “A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, ao definir o sentido e o alcance do art. 36, II da Constituição da República, deixou assentado, em tema de legitimidade ativa para instauração do processo de intervenção federal, que a parte interessada na causa somente poderá formular, originariamente, ao Supremo Tribunal Federal, pedido de intervenção federal, quando se tratar de medida necessária ao cumprimento e execução de decisão proferida por esta Suprema Corte (RTJ 142/371, Rel. Min. SYDNEY SANCHES). (grifos do enunciador). Excerto 4 - Enunciador: Min. Néri da Silveira. IF nº 102-1/PA: “Na espécie, não houve representação do Procurador-Geral da República, que bem o registra em seu parecer transcrito no relatório. O Tribunal de Justiça do Estado do Pará nega descumprimento de decisão judicial no Estado. Não há, em decorrência, fundamento a requisição pelo STF de intervenção federal, no caso. Não resta, assim, legitimidade ao partido requerente e ao particular, deputado federal, para suplicarem a intervenção pelos fatos indicados. Não há, pois, aqui, como conhecer do pedido, por falta de legitimidade dos suplicantes.” Excerto 5 - Enunciador: Min. Sepúlveda Pertence. IF nº 135-8/RJ: “É este o teor da manifestação da Procuradoria-Geral (f. 83): “O pedido de intervenção não tem como ser apreciado, pois aos requerentes falta legitimidade ativa para tanto. Nesse sentido, a orientação desse Colendo Tribunal, conforme os seguintes precedentes: "Intervenção Federal. Legitimidade ativa para o pedido. Interpretação do inciso II do art. 36 da Constituição Federal de 1988, e dos artigos 19, II e III, da Lei 8.038, de 28-05-1990, e 350, II e III, do RISTF. A parte interessada pode se dirigir ao Supremo Tribunal Federal, com pedido de intervenção federal para prover a execução de decisão da própria Corte. Quando se trata de decisão de Tribunal de Justiça, o requerimento de intervenção deve ser dirigido ao respectivo Presidente, a quem incumbe, se for o caso, encaminhá-lo ao Supremo Tribunal Federal. Pedido não conhecido, por ilegitimidade ativa dos requerentes." (Intervenção Federal n. 105 (Questão de Ordem) PR, Tribunal Pleno, Relator Exmo. Sr. Min. Sydney Sanches, RTJ 142/371). "Intervenção Federal. - Se o Presidente do Tribunal de Justiça local que tem legitimação para provocar o exame da requisição de intervenção federal, que só se fará para a preservação da autoridade da Corte que ele representa - entende que a intervenção federal não cabe no caso, não pode o STF, de ofício e à vista do encaminhamento por aquela Presidência do pedido de intervenção federal feito pelo interessado e por ela repelido, examiná-lo. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 100 Agravo regimental a que se nega provimento." (Intervenção Federal n. 81 (AGRG) - SP, Relator Min. Moreira Alves, RTJ 114/443).” Excerto 6 - Enunciador: Min. Celso de Mello. IF-QO nº 590-2/CE: “Constatase, desde logo, que a intervenção federal reclamada pela E. Presidência do Tribunal Superior do Trabalho tem por destinatário o Município, que, identificado neste processo, não teria cumprido a condenação imposta pela Justiça do Trabalho. Essa circunstância de ordem subjetiva qualifica-se, no caso ora em exame, como dado juridicamente relevante, pois, no sistema constitucional brasileiro, não há possibilidade de a União intervir em quaisquer Municípios, ressalvados, unicamente, os Municípios "Localizados em Território Federal...” (CF, art. 35, caput). Desse modo, os Municípios situados no âmbito dos Estados-membros não se expõem à possibilidade constitucional de sofrerem intervenção decretada pela União Federal, eis que, relativamente a esses entes municipais, a única pessoa política ativamente legitimada a neles intervir é o Estado-membro, consoante adverte autorizado magistério doutrinário (ALEXANDRE DE MORAES, "Direito Constitucional", p. 280, item n. 303, 4& ed., 1998, Atlas; MANOEL GONÇALVES FERREIRA . FILHO, "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", vol. 1/236, 1990, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS, "comentários à Constituição do Brasil", vol. 3, tomo 11/353, 1993, Saraiva; PINTO FERREIRA, "Comentários à Constituição Brasileira", vaI. 2/352, 1990, Saraiva; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", voI. IV/2091, item no 184, 1991, Forense Universitária; JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Curso de Direito Constitucional Positivo", p. 483 e 488, 15 ed., 1998, Malheiros, v.g.). Assim sendo, tendo em consideração as razões expostas, e por não ser constitucionalmente possível à União Federal intervir em Município localizado no âmbito de Estado-membro, como no caso, resolvo a presente questão de ordem, propondo o não-conhecimento do pedido consubstanciado no ofício encaminhado pelo E. Superior do Trabalho. É o meu voto.” Excerto 7 - Enunciador: Min. Néri da Silveira. IF nº 103-0/PR: “A suplicante não possui legitimidade para requerer a intervenção federal no Estado, em face dos arts. 34, VI, e 36, II, da Constituição. A notícia constante dos autos trazida ao STF, quanto ao não cumprimento de decisão judicial, poderia ensejar a requisição pelo Supremo Tribunal Federal da Intervenção Federal.” Excerto 8 - Enunciador: Min. Octávio Galloti. RECL-AGR nº 496-2/RS: “Como bem registrou o parecer suso transcrito da Procuradoria-Geral da República, na espécie, a decisão que tardava a ser cumprida, veio a executarse, com a retirada dos ocupantes do imóvel então de propriedade da requerente. Dentro desse entendimento, todavia, a conseqüência a extrair, tanto no item III como do item IV do art. 36, também da Constituição (que ditam Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 101 os pressupostos do processamento da intervenção), só poderia ser a exigência da iniciativa exclusiva do Procurador-Geral da República, para promover a medida perante o Supremo Tribunal. N que, a despeito do reconhecido prestígio da entidade, parte ilegítima viria a ser, para ajuizar tal espécie de pedido de intervenção.” c) Carência da ação - Incidência: 1 caso. - Número do processo: IF nº 101-3/MA. - Explicação das representações acerca da categoria: A carência de ação é definida quando não há a possibilidade jurídica do pedido, legitimidade de partes e interesse processual, conforme determina o art. 267, VI do CPC: Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito: Vl - quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual. Assim, deve ser alegada pelo réu em preliminar de contestação a carência de ação, que ocasionará a extinção do processo. Trata-se, portanto, de defesa processual peremptória, pois o feito apresenta um vício que impossibilita o magistrado de analisar o conteúdo do direito, ou seja, o mérito da causa. Os enunciadores, portanto, na presente situação, entenderam que não caberia analisar o mérito da intervenção por pender análise, por parte do Tribunal de Justiça, do pedido de seqüestro de quantia referente ao precatório. - Exemplos: Excerto 1 - Enunciador: Min. Néri da Silveira, IF nº 101-3/MA: “A alegação básica do pedido de intervenção federal do Maranhão é descumprimento de decisão judicial concernente ao pagamento de valor de Precatórios expedidos em favor das requerentes, relativos ao Processo n. 1602/86 – TJ/MA.Dá-se, porém, que pendem de julgamento na Corte local pedido de Seqüestro da quantia referente ao Precatório n. 1602-TJ e Pedido de Intervenção Federal, junto ao mesmo Tribunal, “com o objetivo de assegurar a satisfação do referido Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 102 Precatório em favor das já citadas empresas” (fls. 83), qual se explicita nas suso transcritas Informações do Tribunal de Justiça em referência.” Excerto 2 – Enunciador: Min. Néri da Silveira, IF nº 101-3/MA: “Ora, bem de ver que não se pode substituir por pedido de intervenção federal o que caberia discutir em pedido de seqüestro. Ademais disso, há, também, pedido de intervenção federal endereçado ao Tribunal de Justiça do Maranhão, que, assim, deverá julgá-lo.” Entretanto, vejamos a passagem109: Excerto 3 - Enunciador: Min. Néri da Silveira, IF nº 101-3/MA: “De outra parte, se efetivamente ocorreu preterição do direito de precedência dos peticionários, ou não, relativamente aos Precatórios aludidos, há de dizer a Corte local, em seu julgamento. É de mencionar, outrossim, que, se procedente o pedido, estipula o §2º do art. 100, da Lei Maior, que se decrete seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito.” Interessante observar o seguinte trecho: Excerto 4 – Enunciador: Min. Paulo Brossard, IF nº 101-3/MA: “Acompanho o voto de V. Exa., Sr. Presidente, embora manifeste o meu temor de que se recriem situações como essas que parece que se estão desenhando no Estado do Maranhão: decisões transitadas em julgado, em fase de execução, e que depois emperram em seu prosseguimento. O fato de haver uma ação rescisória não impede a execução do julgado. Deixo expressa a minha inquietação a respeito dessa situação, porque bem antes da atual Constituição já várias leis tiveram o cuidado de estabelecer que os pagamentos pela Fazenda deveriam ser feitos em atenção à ordem cronológica dos precatórios, exatamente para evitar aquilo que ocorreu em outros tempos, que os pagamentos fossem feitos ao alvedrio da administração e às vezes mediante influências estranhas à Justiça. O assunto subiu do Código de Processo para a Constituição, e a atual estabelece, no §2º, do art. 100, norma que, devidamente cumprida, creio resolveria esses problemas.” d) 109 Perda do objeto Neste trecho achamos relevante registrar a contradicta entre os Ministros. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 103 - Incidência: 1 caso. - Número do processo: IF nº 103-0/PR. - Explicação das representações acerca da categoria: O enunciador entendeu que não deveria julgar o mérito da questão, pois o pedido de intervenção teria se dado pela primeira invasão dos sem terras na propriedade rural e na pela segunda invasão, não haveria portanto objeto a ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal. - Exemplo: Excerto 1 - Enunciador: Min. Néri da Silveira. IF nº 103-0/PR: “Dá-se, porém, que, após, ocorreu nova invasão, segundo informa a requerente; os novos proprietários do imóvel não pediram ao STF requisitasse intervenção federal. Não há sequer comprovação de nova ação possessória, ou de prosseguimento da anterior. Determino, pois, o arquivamento dos presentes autos, por não mais subsistirem razões à requisição de intervenção federal no Estado do Paraná.” As escusas materiais a) As dificuldades financeiras do Estado - Incidência: 2 casos. - Número do processo: IF nº 120-0/PR, IF nº 2915-5/SP. - Explicação das representações acerca da categoria: Os enunciadores sustentaram que apesar do cidadão ter o direito de receber a quantia referente ao seu precatório, não caberia intervenção federal, pois o estado membro não teria pago o valor por estar vivendo dificuldades financeiras. Em outras palavras, não é que tenha havido dolo de não pagar. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 104 - Exemplos: Excerto 1 - Enunciador: Sydney Sanches, IF nº 120-0/PR: “Acolho os dois pareceres da Procuradoria-Geral da República. Com efeito, como neles se demonstrou, não se trata propriamente de descumprimento de decisão judicial, mas de atraso no seu cumprimento, por alegadas dificuldades financeiras do Estado, que, então, se valeu do disposto no art. 33 do ADCT da Constituição Federal de 05/10/1988, para baixar o Decreto nº 4.873, de 30/03/1989, no qual se dispôs (fls. 58): "Art. 3º - Os precatórios judiciais pendentes de pagamento em cinco de outubro de l988, excluídos os relativos a créditos de natureza alimentar, tanto da Administração Direta como das Autarquias, serão pagos em moeda corrente, com atualização legal, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo de oito anos, a partir de lº de julho de 1989. Parágrafo único - Para o cumprimento do contido neste artigo, o Estado do Paraná exercera a faculdade estabelecida no parágrafo único do artigo 33 do ato das disposições transitórias da Constituição Federal”. .A propósito do pagamento dos oitavos, informou o Exmº Sr. Procurador-Geral do Estado a fls. 165 que "a decisão judicial no que diz respeito a Antônio Clarides Modena e outros, Arnaldo Rodrigues de Godoy e outros e Natal Ferrarini foi atendida e que em fevereiro e março de l99l a Secretaria de Estado da Fazenda repassou ao Tribunal de Justiça do Paraná 1/8 do valor devido sendo que em dezembro de 1991 os outros 1/8, conforme se observa dos documentos que faço juntar”. Excerto 2 – Enunciador: Min. Gilmar Mendes, IF nº 2915-5/SP: “Desse modo, não podem ser desconsideradas as limitações econômicas que condicionam a atuação do Estado quanto ao cumprimento das ordens judiciais que fundamentam o presente pedido de intervenção. Nesse sentido, constam do memorial apresentado pelo Estado de São Paulo, os seguintes dados, verbis: “...considerando-se as estimativas de arrecadação para o exercício corrente, as despesas com o pessoal dos três Poderes do Estado deverão se situar em torno de 58% das receitas correntes líquidas estaduais; os gastos com custeio, que permite o funcionamento do aparato administrativo, incluindose certas parcelas que compõem o percentual mínimo a ser aplicado no desenvolvimento do ensino (art. 212 da CF) e nas ações e serviços públicos de saúde (art. 198, 2º, da CF), deverão atingir o montante de 19% das receitas correntes líquidas, ao passo que o serviço da dívida junto à União consumirá aproximadamente, 12% daquelas receitas; há finalmente, os gastos com investimentos mínimos indispensáveis para a simples manutenção do funcionamento de serviços essenciais (rodovias estaduais operadas diretamente pelo Poder Público, aparato de segurança pública, redes de ensino e de saúde, etc.), estimados em 9% das receitas correntes líquidas.” E continua o Estado de São Paulo: “Excluídos os gastos apontados no item anterior, o que resta de recursos são utilizados no pagamento de precatórios judiciais, despesa essa estimada, para o ano de 2002 em cerca de 2% das receitas correntes líquidas, vale dizer, algo em torno de R$ 750.000.000 (setecentos e cinqüenta milhões de reais).” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 105 Excerto 3 - Enunciador: Min. Ellen Gracie, IF nº 2915-5/SP: “Salta aos olhos que decretar intervenção em um Estado da Federação a menos de dois meses da realização de eleições, que recolocam à disposição do povo o cargo de Governador – ao qual, aliás, concorre o seu atual ocupante – vale apenas e, tão-somente para agravar a atual situação de desequilíbrio financeiroorçamentário. Eventual interventor – isso foi bem colocado pelo eminente Ministro Gilmar Mendes – encontrará exatamente as mesmas limitações fáticas hoje existentes.” Excerto 4 - Enunciador: Min. Nelson Jobim, IF nº 2915-5/SP: “A pergunta fundamental que se faz é esta: O Governo do Estado de São Paulo: ao tomar essas medidas, na sua lei orçamentária, deu azo a uma voluntária, desejada e arbitrária obstrução à execução das decisões judiciais; ou ele, tendo em vista os recursos existentes e as vinculações constitucionais obrigatórias, deu essa destinação? A resposta me parece ter sido dada corretamente pelo Ministro Gilmar Mendes e pela Ministra Ellen Gracie.” Excerto 5 – Enunciador: Min. Nelson Jobim, IF nº 2915-5/SP: “É evidente que também não podemos pensar que o interventor federal descerá de Brasília com dinheiro da União e irrigará os cofres públicos do Estado de São Paulo para atender as suas despesas. Isso é impossível. Então, estamos exatamente naquela situação que o Ministro Gilmar Mendes denomina de “absoluta inadequação da medida”.” Excerto 6 – Enunciador: Min. Moreira Alves, IF nº 2915-5/SP: “V. Exa. me permite? Falamos aqui em proporcionalidade e examinamos com objetividade jurídica esse problema. Agora, parece-me que a questão se põe principalmente sob um aspecto: em se tratando de intervenção federal, em casos dessa natureza, é preciso demonstrar-se que há culpa por parte do Governador, ou seja, mesmo tendo meios para o pagamento, ele deixou de fazê-lo.” b) A intervenção estadual tem natureza político-administrativa - Incidência: 1 caso. - Número do processo: IF-AGR nº 2045-0/SP. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 106 - Explicação das representações acerca da categoria: O enunciador, seguindo a lógica classificatória (taxonomia) própria do campo jurídico brasileiro, discute a natureza jurídica da intervenção. - Exemplo: Excerto 1 - Enunciador: Min. Ellen Gracie, IF-AGR nº 2045-0/SP: “O recurso não comporta provimento. Com efeito, em relação à preliminar suscitada, recordo que o relator está autorizado, monocraticamente, a negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível, improcedente ou prejudicado e, ainda, quando contrariar jurisprudência predominante do Tribunal (RISTF, art. 21, §1º e art. 351, II), como é a hipótese dos autos. No mérito, tenho que a decisão agravada ajusta-se à orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal. De fato, conforme já decidiu esta Corte no julgamento do AI 255.634, (rel. Min. Celso de Mello, DJ 03.12.1999), “nas hipóteses de descumprimento de ordem ou de sentença judiciais (CF, art. 34, VI e art. 35, IV) o procedimento destinado a viabilizar a efetivação do ato de intervenção estadual nos Municípios reveste-se de caráter políticoadministrativo, muito embora instaurado perante órgão competente do Poder Judiciário (CF, art. 36, II e art. 35, IV). Com efeito, a atividade desenvolvida pelo Tribunal de Justiça, no processamento do pedido de intervenção estadual em Município, decorre do exercício, por essa Corte Judiciária, de uma típica função político-administrativa, desvestida, por isso mesmo de qualquer atributo de índole jurisdicional”.” c) Intenção de não pagar - Incidência: 3 casos. - Números do processo: IF-AGR nº 506-0/SP, IF nº 164-1/SP, IF nº 29155/SP. - Explicação das representações acerca da categoria: Os enunciadores sustentam que não deveria ser decretada a intervenção federal pelo não pagamento de precatório devido ao cidadão, pois o estado membro não teria tido a intenção de não pagar. - Exemplos: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 107 Excerto 1 - Enunciador: Min. Maurício Corrêa. IF-AGR nº 506-0/SP: “Ultrapassadas essas alegações, anoto que a premissa básica da decisão agravada é de que não houve por parte do requerido o descumprimento voluntário e intencional de decisão judicial transitada em julgado, pressuposto indispensável ao acolhimento do pedido de intervenção federal. Dessa maneira, a ausência de conduta dolosa do ente estatal em descumprir a ordem judicial não autoriza o deferimento do pedido de intervenção, a exemplo que ocorreu por ocasião do julgamento da Intervenção Federal 3601, redator p/ o acórdão Ministro Gilmar Mendes, DJ de 22/08/03, da qual transcrevo a seguinte ementa: “EMENTA: INTERVENÇÃO FEDERAL. 2. Precatórios judiciais. 3. Não configuração de atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento. 4. Estado sujeito a quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. Necessidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo, a continuidade de serviços públicos. 5. A intervenção, como medida extrema, deve atender à máxima da proporcionalidade. 6. Adoção da chamada relação de precedência condicionada a princípios constitucionais concorrentes. 7. Pedido de intervenção indeferido.” (grifos do enunciador). Excerto 2 - “Não configuração de atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento. Enunciador: Min. Gilmar Mendes. IF nº 164-1/SP. Excerto 3 – Enunciador: Min. Gilmar Mendes. IF nº2915-5/SP: “Portanto, não resta configurada uma atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento dos precatórios alimentares.” Apesar do Ministro Marco Aurélio110: Excerto 4 - Enunciador: Min. Marco Aurélio. IF nº 164-1/SP: “Saliento, mais, a impossibilidade de dizer-se inviável a intervenção, considerada a natureza dos atos praticados em razão do precatório e a insuficiência de recursos. Quanto a esta argumentação, surge a improcedência jurídica. A teor do disposto no artigo 100 da Constituição Federal, é obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios, apresentados até 1° de julho. A intervenção visa, acima de tudo, à supremacia da Constituição Federal, ao saneamento do quadro, devendo atuar administrador diverso daquele que ocupa a chefia do Poder Executivo. A um só tempo, tem cunho satisfatório, 110 Neste trecho achamos relevante registrar a contradicta entre os Ministros. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 108 quanto ao cumprimento da ordem ou decisão judicial, e saneador, sinalizando, de forma exemplar, a necessidade de serem observados os parâmetros próprios a um Estado Democrático de Direito, no qual não há como deixar de ter o primado do Judiciário, a eficácia, a partir de medidas coercitivas, das decisões prolatadas. Sem uma efetividade maior, vinga a babel, a insegurança jurídica, levando os cidadãos a verdadeiro retrocesso, no que, com a falência do Poder, buscarão a satisfação dos respectivos direitos substanciais por outros meios. Ao invés de restabelecer-se a paz social momentaneamente abalada, dar-se-á o agravamento da situação. Devem ser salientados aspectos quanto à causa de intervenção, que é a alusiva ao desrespeito a ordem ou decisão judicial, em vista do instituto do precatório.” Excerto 5 - Enunciador: Min. Marco Aurélio. IF nº 164-1/SP: “Em síntese, pretende valer-se do vezo popular, da postura do mau pagador - devo, não nego; pagarei quando puder. As razões por último apresentadas não vingam. O elemento subjetivo que é o dolo mostra-se neutro para se definir a procedência, ou não, do pedido de intervenção. Pouco importa que o Estado, mediante a atuação do Executivo, não proceda com a intenção de postergar a liquidação do precatório. Cumpre saber, tão-somente, se na espécie ocorre o descumprimento de decisão judicial, fator objetivo resultante do vício da negligência, da falta de respeito irrestrito à ordem jurídica em vigor. A intenção em si afigura-se estranha ao julgamento da intervenção.” d) A intervenção federal como medida drástica - Incidência: 3 casos. - Número do processo: IF-AGR nº 506-0/SP, IF nº 230-3/DF, IF nº 114/MT. - Explicação das representações acerca da categoria: Os enunciadores, em concordância com o que fora apresentado no capítulo II em relação a doutrina jurídica brasileira, não concordam com a decretação da intervenção federal, pois a representam como um medida tão grave, que acabam por torná-la factível. - Exemplos: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 109 Excerto 1 - Enunciador: Min. Maurício Corrêa. IF-AGR nº 506-0/SP: “Não se pode deferir a medida drástica de subtrair temporariamente a autonomia estatal, que, como regra, só pode sofrer a mencionada espécie de ingerência quando se fizerem presentes, ostensivamente, os respectivos pressupostos. Dessa maneira, a decisão agravada está em consonância com a orientação recente dos julgamentos proferidos por esta Corte, razão por que nego provimento ao agravo regimental.” (grifos do enunciador). Excerto 2 - Enunciador: Min. Sepúlveda Pertence. IF nº 230-3/DF: “Com efeito, a intervenção federal é medida extrema, que pressupõe, de parte do tribunal de execução, a exaustão dos meios de que disponha para fazer cumprir o julgado. Por tudo isso, além de não se confundir com o simples encaminhamento de pretensão alheia, o pedido da requisição da intervenção há de ser motivado. Desse modo, afirmo a competência do STF, mas à falta de iniciativa própria e fundamentada do órgão legitimado, nego trânsito ao expediente encaminhado. É o meu voto.” Excerto 3 - Enunciador: Min. Octávio Gallotti. IF nº 114/MT: “Sem embargo de compartilhar do reconhecimento dos louvores merecidamente atribuídos, por todo o Tribunal à iniciativa do eminente Procurador-Geral da República, conheço da representação,mas julgo pedido improcedente. Peço vênia para fazê-lo, adotando os fundamentos constantes do voto de V. Exa., Sr. Presidente, considerando que, em suma, e a despeito da gravidade dos fatos concretos apontados, não se acha configurado, em sua amplitude, um conflito federativo suscetível de acarretar a medida excepcional de que ora se cogita. Com a vênia do eminente Ministro CELSO DE MELLO conheço do pedido, para julgá-lo improcedente.” Apesar do Ministro Marco Aurélio111: Excerto 4 - Enunciador: Min. Marco Aurélio. IF-AGR nº 506-0/SP: “Senhor Presidente, continuo vencido por entender que, a não se adotar uma providência efetiva, as decisões judiciais tornar-se-ão, quando formalizadas contra o Estado, simplesmente líricas. Não consigo conceber que, expedido o precatório, não haja a previsão orçamentária para a liquidação do débito e que o Estado – o Poder Executivo – simplesmente articule com a ausência de recursos. Os brasileiros continuam pagando impostos.” 111 Neste trecho achamos relevante registrar a contradicta entre os Ministros. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 110 e) Proporcionalidade - Incidência: 1 caso. - Número do processo: IF nº2915-5. - Explicação das representações acerca da categoria: O princípio da proporcionalidade, no campo jurídico brasileiro, e como tal pelo nosso enunciador, é compreendido quanto ao seu conteúdo, por sua clareza e densidade. Trata-se, sobretudo, da clarificação da adequação necessária entre o fim de uma norma e os meios que esta designa para atingi-lo, ou ainda, entre a norma elaborada e o uso que dela foi feito pelo Poder Executivo. O princípio ora em voga terminou por ser dividido em três subprincípios, quais foram, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. O primeiro traduz uma exigência de compatibilidade entre o fim pretendido pela norma e os meios por ela enunciados para sua consecução. Trata-se do exame de uma relação de causalidade e uma lei somente deve ser afastada por inidônea quando absolutamente incapaz de produzir o resultado perseguido. A necessidade diz respeito ao fato de ser a medida restritiva de direitos indispensável à preservação do próprio direito por ela restringido ou a outro em igual ou superior patamar de importância, isto é, na procura do meio menos nocivo capaz de produzir o fim propugnado pela norma em questão. Traduz-se este subprincípio em quatro vertentes: exigibilidade material (a restrição é indispensável), espacial (o âmbito de atuação deve ser limitado), temporal (a medida coativa do poder público não deve ser perpétua) e pessoal ( restringir o conjunto de pessoas que deverão ter seus interesses sacrificados).Por último, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito diz respeito a um sistema de valoração, na medida em que ao se garantir um direito muitas vezes é preciso restringir outro, situação juridicamente aceitável somente após um estudo teleológico, no qual se conclua que o direito juridicamente protegido por determinada norma apresenta conteúdo valorativamente superior ao restringido. O juízo de proporcionalidade permite um perfeito equilíbrio entre o fim almejado e o meio empregado, ou seja, o resultado obtido com a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 111 intervenção na esfera de direitos do particular deve ser proporcional à carga coativa da mesma. O enunciador, portanto, compreende que por se estar diante de um conflito de princípios constitucionais caberia a proporcionalidade. Ocorre que, é de se estranhar, a decisão nunca pende a favor do pagamento dos precatórios, e como tal, pelo deferimento da intervenção federal. - Exemplos: Excerto 1 - Enunciador: Min. Gilmar Mendes, IF nº2915-5/SP. “Diante desse conflito de princípios constitucionais, considero adequada a análise da legitimidade da intervenção a partir de sua conformidade ao princípio constitucional da proporcionalidade.” Excerto 2 - Enunciador: Min. Gilmar Mendes, IF nº2915-5/SP: “Estão claros, no caso, os princípios constitucionais em situação de confronto. De um lado, em favor da intervenção, a proteção constitucional às decisões judiciais, e de modo indireto, a posição subjetiva de particulares calcada no direito de precedência dos créditos de natureza alimentícia. De outro lado, a posição do Estado, no sentido de ver preservada sua prerrogativa constitucional mais elementar, qual seja a sua autonomia, e, de modo indireto, o interesse, não limitado ao ente federativo, de não se ver prejudicada a continuidade da prestação de serviços públicos essenciais, como educação e saúde.” f) Múltiplas obrigações de mesma hierarquia - Incidência: 1 caso. - Número do processo: IF nº2915-5/SP. - Explicação das representações acerca da categoria: O enunciador compreende que, por estarem estabelecidos na constituição, em tese a obrigação de pagar os precatórios e de o estado membro usar seus recursos para cumprir outras obrigações teriam o mesmo peso. Ocorre que, o enunciador nunca concorda com o pedido de intervenção, parecendo, portanto, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 112 que o que pesa mais são as outras obrigações e não o cumprimento dos precatórios. - Exemplo: Excerto 1 - Enunciador: Min. Gilmar Mendes. IF nº 2915-5/SP: “É evidente a obrigação constitucional quanto aos precatórios relativos a créditos alimentícios, assim como o regime de exceção de tais créditos, conforme a disciplina do art. 78 do ADCT. Mas também é inegável, tal como demonstrado, que o Estado encontra-se sujeito a um quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia.” g) o problema das eleições - Incidência: 1 caso. - Número do processo: IF nº2915-5/SP. - Explicação das representações acerca da categoria: O enunciador ao levantar o problema das eleições, não defere o pedido de intervenção federal, sob a justificativa de que um governador novo suportará o ônus das faltas do antigo. Tal postura acaba por demonstrar uma compreensão personalizada do exercício do poder, e não, burocratizada e impessoal. - Exemplo: Excerto 1 - Enunciador: Min. Ellen Gracie. IF nº 2915-5/SP: “Salta aos olhos que decretar intervenção em um Estado da Federação a menos de dois meses da realização de eleições, que recolocam à disposição do povo o cargo de Governador – ao qual, aliás, concorre o seu atual ocupante – vale apenas e, tão-somente para agravar a atual situação de desequilíbrio financeiroorçamentário. Eventual interventor – isso foi bem colocado pelo eminente Ministro Gilmar Mendes – encontrará exatamente as mesmas limitações fáticas hoje existentes.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 113 h) Ineditismo da questão - Incidência: 1 caso. - Número do processo: IF nº 114/MT. - Explicação das representações acerca da categoria: Os enunciadores realçam o ineditismo do debate na Corte, por via de ação direta de inconstitucionalidade interventiva, de um pedido de intervenção federal por claro desrespeito a direito de cidadão, em razão de atos de violência. - Exemplos: Excerto 1 - Enunciador: Min. Néri da Silveira. IF nº 114/MT: “Srs. Ministros. Esta matéria, ao que parece, é inédita na Corte: pedido de intervenção federal em um Estado, em razão de ato de extrema violência acontecido em Município do interior da Unidade da Federação.” Excerto 2 - Enunciador: Min. Carlos Velloso. IF nº114/MT: “Senhor Presidente, examino, primeiro que tudo, o cabimento da representação, ou seu conhecimento, por isso que o pedido é inédito – intervenção federal para o fim de assegurar a observância de direitos da pessoa humana, CF, art. 34, VII, "b" – certo que a Constituição 1.967 e a de 1.946 não o autorizavam. É que a Constituição de 1.988 considera os direitos da pessoa humana como princípio constitucional sensível.” Excerto 3 - Enunciador: Min. Paulo Brossard. IF nº 114/MT: “Senhor Presidente, como V. Exa. acentuou, no inicio, é a primeira que a Corte se defronta com um problema dessa natureza, e por isso mesmo, não há precedentes, quase tudo é novidade.” i) Único ato não suficiente para se decretar a intervenção federal Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 114 - Incidência: 1 caso. - Número do processo: IF nº 114/MT. - Explicação das representações acerca da categoria: Os enunciadores justificam o não provimento do pedido de intervenção federal pela categoria de que um único ato de violência não seria suficiente para tanto. Cabe aqui o seguinte questionamento: Quantas mortes e desrespeitos são necessários para que se caracterize situação de intervenção federal? - Exemplos: Excerto 1 - Enunciador: Min. Néri da Silveira. IF nº 114/MT: “Certo a Carta de 1988 inovou, com a inserção dessa causa nova inscrita como princípio sensível da Constituição. Não me parece possível; desde logo, entretanto, na espécie, ter-se como verificada essa causa para os efeitos da restrição à autonomia do Estado-membro. Penso que um só episódio como esse não seja suficiente para a União intervir em um Estado-membro, tendo em vista que um dos postulados fundamentais do Estado brasileiro é o regime federativo, que há um século preside a organização política do País. Louvo, é exato, o esforço para reprimir a violência, por parte do Ministério Publico Federal, tendo à frente seu ilustre Chefe, o Dr. Procurador-Geral da República.” Excerto 2 - Enunciador: Min. Carlos Velloso. IF nº 114/MT: “Também aqui estou de acordo com o Relator, o nosso Presidente. E que se tem, no caso, um fato que, não obstante lamentável, que chega a nos envergonhar, e um fato isolado e que está sendo apurado pelas autoridades estaduais, conforme deu notícia o eminente Relator.” Excerto 3 - Enunciador: Min. Sepúlveda Pertence. IF nº 114/MT: “Portanto, Senhor Presidente, como parece resultar dos votos de V.Exa. e dos eminentes Ministros Marco Aurélio e Carlos Velloso, com as vênias do eminente Ministro Celso de Mello, conheço da representação. Também estou com V.Exa. em que, para que se verifique este caso, que há de ser excepcionalismo, de uma situação global de desrespeito aos direitos humanos, não basta alegar e provar um caso isolado, apesar da dramaticíssima gravidade do fato, que nos trouxe o eminente Chefe do Ministério Público da União.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 115 Excerto 4 - Enunciador: Min. Aldir Passarinho. IF nº 114/MT: “Passando ao mérito, Sr. Presidente, igualmente acompanho o entendimento de V.Exa. Vemos este caso de Mato Grosso, que obteve uma repercussão enorme na Imprensa, pelo seu extremo de crueldade. Mas fora o aspecto de crueldade, o que se verifica, na verdade é um caso isolado, e em relação ao qual estão sendo tomadas providências.” Excerto 5 - Enunciador: Min. Sydney Sanches. IF nº 114/MT: “Trata-se, porém, de fato isolado, que não caracteriza permanente omissão da Administração do Estado de Mato Grosso em face do dever constitucional de preservar a observância dos direitos humanos no âmbito de sua jurisdição.” j) Problema da geografia e do clima - Incidência: 1 caso. - Número do processo: IF nº 114/MT. - Explicação das representações acerca da categoria: Quanto a esta visão determinista geográfica apresentada pelo Supremo Tribunal Federal, em pleno século XX, interessante observar a permanência desta idéia originada por Henry Thomas BUCKLE e que influência os pensadores sociais brasileiros, como Euclides da CUNHA, no século XIX. Assim apresenta a questão Ricardo de OLIVEIRA (2002): “A construção de uma espacialidade brasileira no cenário sertanejo, o sertão-deserto do Nordeste, foi um processo intelectual dos mais complexos, visto que, dentre outras coisas, incorria na necessidade de se superar o modelo de análise mesológica imposto, principalmente, a partir das obras T. Henry Buckle e Ratzel. Apesar da polêmica e de vários, tais como Sílvio Romero, não aceitarem por completo essas matrizes intelectuais, é sabido, por exemplo, a enorme influência que uma pequena passagem do livro História da Civilização na Inglaterra exerceu na mente de vários e importantes intelectuais do período abordado. Capistrano de Abreu, inclusive, confessou que a leitura deste livro fora essencial à sua formação intelectual e posterior interpretação da História do Brasil. Porém, o curioso é que estes autores, na sua esmagadora maioria, além de nunca terem pisado nas terras do novo mundo, falavam destas da forma mais pejorativa possível, despejando um Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 116 discurso marcado por um conceito de civilização que jamais seria possível à inclusão da terra e do homem de cá nos trilhos do progresso. Buckle, após elogiar muito a suntuosidade da natureza existente no Brasil, repetindo falas como as de Buffon e Raynal — pesquisando em fontes como Gardner, Spix e Martius, Darwin, Southey, etc. -, colocou em grande aporia aqueles intelectuais brasileiros crentes no determinismo geográfico e climático, ao dizer que: Tais são a efusão e abundância vitais que distinguem o Brasil entre todos os países do mundo. Porém, no meio desta pompa, deste esplendor da natureza, não há lugar para o homem. Fica reduzido à insignificância pela majestade que o cerca. Tão formidáveis são as forças que se opõem, que nunca pôde fazer-lhes frente, ou resistir à sua imensa pressão. Todo Brasil, apesar das grandes vantagens que parece possuir, tem permanecido sem a menor civilização. Seus habitantes são selvagens errantes, incapazes de combater os obstáculos que a própria natureza espalhou em seu caminho.” - Exemplos: Excerto 1 - Enunciador: Min. Néri da Silveira. IF nº 114/MT: “As condições de prestação dos serviços de segurança são também diversificadas, variáveis; ora em virtude das condições topográficas, de comunicação e das condições decorrentes da densidade demográfica; ora, ainda, por condições climáticas, que, em determinadas fases, certos períodos do ano, impossibilitam, praticamente, a atuação da polícia organizada, ou porque os meios de comunicação ficam interditados, ou porque são essas precárias forças de segurança removidas para locais onde mais prestantes possam estar nesses períodos de dificuldades climáticas.” Excerto 2 - Enunciador: Min. Paulo Brossard. IF nº 114/MT: “Senhor Presidente, com o perdão do Ministro CELSO DE MELLO, tomo conhecimento para indeferi-lo. Entendo que, no caso, não se justifica a medida que é extrema, sem deixar de ser normal: entendo que, no caso, não seria de ser tomada a providência requerida. Pelo relatório que V.Exa. fez, parece-me que, dentro da imensa precariedade de recursos, neste País imenso, onde as coisas são mais difíceis do que parece a pessoas que moram e trabalham na capital, entendo que tem sido tomadas providências que não destoam do comum das providências.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 117 k) Elogio ao Procurador Geral da República - Incidência: 1 caso. - Número do processo: IF nº 114/MT. - Explicação das representações acerca da categoria: Todos os enunciadores festejam a atitude corajosa e máscula do Procurador Geral da República em pedir a intervenção federal. É de estarrecer os enunciadores pelos adjetivos atribuídos constatarem que a situação é de grave desrespeito a cidadania e não proverem o pedido. - Exemplos: Excerto 1 - Enunciador: Min. Marco Aurélio. IF nº 114/MT: “Senhor Presidente, em primeiro lugar, estimo registrar a compreensão pela iniciativa do Ministério Público em relação a esse episódio. Isto face aos deveres a ele atribuídos e, também, ao risco pertinente à pecha de negligente.” Excerto 2 - Enunciador: Min. Carlos Velloso. IF nº 114/MT: “Estou, pois, de acordo com V.Exa., Senhor Presidente, quando conhece da representação. E louvo a atitude máscula: do Procurador-Geral da República, Chefe do Ministério Público Federal, ao fazer a representação a esta Corte, buscando a intervenção federal para o fim de efetivar proteção aos direitos da pessoa humana.” Excerto 3 - Enunciador: Min. Celso de Mello. IF nº 114/MT: “Desejo registrar, no entanto, o meu respeito pela iniciativa processual do eminente ProcuradorGeral da República, Dr. ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA, cuja notável atuação, como Chefe do Ministério Publico da União, só tem evidenciado estar, S. Exa., à altura da importância e dignidade da grande Instituição que dirige.” Excerto 4 - Enunciador: Min. Sepúlveda Pertence. IF nº 114/MT: “Senhor Presidente, sem provocar polêmica, pretendo, no mínimo de palavras possível, dar apenas as razões da minha convicção. Começo por louvar a iniciativa do eminente Procurador-Geral da República, que é o elemento ativo da guarda da Constituição: suas provocações, quando tocam em temas inéditos nos anais da Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 118 Corte, são uma colaboração imprescindível à nossa tarefa quotidiana de concretização jurisprudencial da Constituição, cometimento maior do Tribunal.” Excerto 5 - Enunciador: Min. Paulo Brossard. IF nº 114/MT: “A verdade, Senhor Presidente, é que, depois de 37, com exceção de 64, nos casos de Goiás e de Alagoas, creio que não houve mais intervenções. Parece que o capítulo das intervenções federais, que deu margem a tantos abusos, está mais ou menos recolhido ao museu das nossas antiguidades constitucionais. E queira Deus que assim seja, Senhor Presidente.” Excerto 6 - Enunciador: Min. Octávio Gallotti. IF nº 114/MT: “Sem embargo de compartilhar do reconhecimento dos louvores merecidamente atribuídos, por todo o Tribunal à iniciativa do eminente Procurador-Geral da República, conheço da representação,mas julgo pedido improcedente. Peço vênia para fazê-lo, adotando os fundamentos constantes do voto de V. Exa., Sr. Presidente, considerando que, em suma, e a despeito da gravidade dos fatos concretos apontados, não se acha configurado, em sua amplitude, um conflito federativo suscetível de acarretar a medida excepcional de que ora se cogita. Com a vênia do eminente Ministro CELSO DE MELLO conheço do pedido, para julgá-lo improcedente.” Excerto 7 - Enunciador: Sydney Sanches. IF nº 114/MT. “Louvando, embora, o zelo do eminente Procurador Geral da República, acompanho o voto de V. Exa., Sr. Presidente e os dos Ministros que o seguiram.” l) Intervenção é coisa de museu - Incidência: 1 caso. - Número do processo: IF nº 114/MT. - Explicação das representações acerca da categoria: Esta categoria representa claramente a concepção dos enunciadores influenciada pela memória histórico-política do federalismo brasileiro de que as intervenções federais no Brasil sempre serviram aos regimes ditatoriais, e por isso, diante de uma realidade democrática, ela seria coisa de museu. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 119 - Exemplo: Excerto 1 - Enunciador: Min. Paulo Brossard. IF nº 114/MT: “A verdade, Senhor Presidente, é que, depois de 37, com exceção de 64, nos casos de Goiás e de Alagoas, creio que não houve mais intervenções. Parece que o capítulo das intervenções federais, que deu margem a tantos abusos, está mais ou menos recolhido ao museu das nossas antiguidades constitucionais. E queira Deus que assim seja, Senhor Presidente.” m) juízo político do Presidente da República para decretar a intervenção federal - Incidência: 1 caso. - Número do processo: MS nº 21041-9/RO. - Explicação das representações acerca da categoria: O enunciador, seguindo a lógica classificatória (taxonomia) própria do campo jurídico brasileiro, discute a natureza jurídica da intervenção como ato próprio do juízo político do Presidente da República, a denominada: espécie espontânea. Portanto diante da espécie, entende o enunciador, não caber ao Supremo Tribunal Federal determinar ao Presidente que se decretasse a intervenção federal. O mérito da questão cabe a discricionariedade do Presidente. Entende o enunciador, como dissemos no capítulo II deste trabalho, que o político da intervenção restringe-se a uma questão de discricionariedade. - Exemplo: Excerto 1 - Enunciador: Min. Celso de Mello. MS nº 21041-9/RO: “O instituto da intervenção federal, consagrado por todas as Constituições republicanas, representa um elemento fundamental na própria formulação da doutrina do federalismo, que dele não pode prescindir – inobstante a expecionalidade de sua aplicação -, para efeito de preservação da intangibilidade do vínculo federativo, da unidade do Estado Federal e da integridade territorial das unidades federadas. A invasão territorial de um Estado por outro constitui um dos pressupostos de admissibilidade da intervenção federal. O Presidente da Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 120 República, nesse particular contexto, ao lançar mão da extraordinária prerrogativa que lhe defere a ordem constitucional, age mediante estrita avaliação discricionária da situação que se lhe apresenta, que se submete ao seu exclusivo juízo político, e que se revela, por isso mesmo, insuscetível de subordinação à vontade do Poder Judiciário, ou de qualquer outra instituição estatal.” n) ausência de direito líquido e certo - Incidência: 1 caso. - Número do processo: MS nº 21041-9/RO. - Explicação das representações acerca da categoria: Nas palavras de Hely Lopes MEIRELLES (2002:13): “direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercido no momento da impetração. Em última análise, direito líquido e certo é direito comprovado de plano. Se depender de comprovação posterior não é líquido nem certo, para fins de mandado de segurança." Incrivelmente, sustenta, pois, o enunciador não haver direito ao estado membro que teve suas fronteiras invadidas pleitear a intervenção federal por não haver direito líquido e certo ao seu pedido. Vale lembrar que o requerente fez prova documental desta invasão. Cabe aqui, portanto, o seguinte questionamento: O que fazer com o art. 34 da CRFB/88? - Exemplo: Excerto 1 - Enunciador: Min. Celso de Mello. MS nº 21041-9/RO: “Não obstante assim caracterizada a competência originária desta Corte para a apreciação da presente causa mandamental, tenho que inexiste direito líquido e certo, tutelável na espécie. O exame dos autos revela que o Estado do Rondônia, ao impetrar o “writ”, objetivou solucionar, nesta via sumaríssima, um grave litígio territorial que mantêm, pendentes de resolução perante esta Corte, o Estado do Acre, em processos vários, de rito ordinário, em que se controverte, precisamente, sobre o próprio “thema decidendum”.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 121 Apresentadas todas essas categorias, qual é a nossa problemática obrigatória? Como articulá-las? Podemos constatar dos dados que a resposta a ser dada a primeira questão é a seguinte: nossa problemática trata dos discursos apresentados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal nas relações entre a União, Estados-Membros e Sociedade/cidadãos, na temática da Intervenção Federal. Tomando, então, o placar surpreendente de 150x0 que comentamos acima associando a nossa problemática obrigatória, teremos o fio condutor que nos permite articular todas as categorias levantadas, sejam elas as das escusas processuais, ou, sejam as das escusas materiais. O caminho é a relação de denominação manipulável exercida pelo Supremo Tribunal Federal, que se usa de argumentos/valores para descartar sempre a sociedade/cidadãos nos embates com entes federativos. Todas as categorias acabam por serem soluções criativas112 e definitivas da Corte, que é o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro e, portanto, suas decisões são irrecorríveis, permitindo que ela “erre por último”113. Essas decisões representam uma opção política de proteger as opções políticas da União, dos Estados-Membros ou dos Municípios de: 1) nos precatórios - realizarem o calote público, serem responsáveis subjetivos, no sentido da responsabilidade civil, ou usarem seus recursos como bem entendenderem, não respeitando, portanto a lei orçamentária e a própria Constituição. 2) na reintegração de posse - que não fosse disponibilizada força policial para se garantir o direito constitucional a propriedade. 112 Quanto a esta criatividade veja no capítulo a seguir da tese o modus operandi da bricolage. Trabalharemos neste capítulo como o Supremo Tribunal Federal acaba por descontextualizar as categorias jurídicas da semântica que nos é apresentada pela doutrina para, ao final, criar subterfúgios para não se prover os pedidos. 113 Bordão utilizado no jargão jurídico brasileiro que explicita a autoridade do Supremo Tribunal Federal. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 122 3) nos princípios constitucionais sensíveis - de que não fossem respeitados os Direitos Humanos e que a violência e a barbárie restem banalizadas. 4) Na invasão de um ente federativo em outro - o Supremo Tribunal Federal acaba por autorizar esta invasão. 5) Finalmente quanto ao quinto constitucional – o posicionamento da Corte acaba por confirmar o seu desrespeito ao art. 94 da CRFB/88. Desta forma, quando os pedidos de intervenção federal são feitos ao Supremo Tribunal Federal, sua função acaba por: 1) despolitizar as opções realizadas pelos agentes políticos do Estado; 2) personalizar a figura Estado, como se ele fosse uma pessoa física com interesses subjetivos, e, 3) neutralizar os conflitos sociais que lhe são apresentados. Tal atitude ou postura só reafirma uma posição corporativa da Corte, como órgão do Estado brasileiro e não da defesa dos interesses (direitos fundamentais dos cidadãos) da sociedade/cidadãos. Isso, portanto, demonstra que sejam por escusas de processo civil, sejam por escusas de mérito, o Supremo busca, porque não pode deixar de decidir e fundamentar a sua decisão, conforme preceitua o art. 93, X da CRFB/88, desculpas. Em outras palavras, a Corte cria justificativas ilegítimas, porque não conseguem uma adesão racional da sociedade para a qual ela deveria estar decidindo, ou seja, são decisões no final das contas de mera autoridade. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 123 CAPÍTULO IV- A GRAMÁTICA DO TEXTO DECISÓRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Neste capítulo vamos desenvolver o que estamos denominando de gramática do texto decisório do Supremo Tribunal Federal, ou seja, objetivamos esclarecer quais seriam as estruturas e regras usadas pela Corte no seu falar decisório, constituindo o que a Análise do Discurso denomina de formação discursiva. Segundo Dominique MAINGUENEAU (2004:240-241) a noção de formação discursiva: foi introduzida por Foulcault e reformulada por Pêcheux no quadro da análise do discurso. Em função dessa dupla origem, conservou grande estabilidade. Foulcault, falando, em Arqueologia do saber, “formação discursiva”, procurava contornar as unidades tradicionais como “teoria”, “ideologia”, “ciência”, para designar conjuntos de enunciados que podem ser associados a um mesmo sistema de regras, historicamente determinadas: ‘chamaremos discurso um conjunto de enunciados na medida em que revelam a mesma formação discursiva’ (1969b:153). Caracteriza a formação discursiva, ao mesmo tempo, em termos de dispersão, de raridade, de unidade dividida... e em termos de sistema de regras. Além do mais, sua concepção da formação discursiva ‘deixa em aberto a textualização final’ (1969b:99): estamos longe, aqui, de um procedimento de análise do discurso que não poderia dissociar formação discursiva e estudos das marcas lingüísticas e da organização textual. É com Pêcheux que essa noção é acolhida na análise do discurso. No quadro teórico do marxismo althusseriano, ele propunha que toda ‘formação social’, caracterizável por uma certa relação entre as classes sociais, implica a existência de “posições políticas e ideológicas,que não são feitas de indivíduos, mas que se organizam em formações que mantêm entre si relações de antagonismo, de aliança ou de dominação”. Essas formações ideológicas incluem “uma ou várias formações discursivas interligadas, que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.) a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada” (Haroche, Henry e Pêcheux, 1971:102). Essa tese tem incidência sobre a semântica, pois “as palavras Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 124 ‘mudam de sentido’, quando passam de uma formação discursiva a outra” (ibid.). É nas formações discursivas que se opera o “assujeitamento”, a “interpelação” do sujeito como sujeito ideológico. Mas, no fim dos anos 70, a noção de formação discursiva foi revista pelo próprio Pêcheux e por outros pesquisadores (Marandin, 1979, Courtine, 1981) no sentido da não-identidade consigo mesma. A formação discursiva aparece, então, inseparável do interdiscurso, lugar em que se constituem os objetos e a coerência dos enunciados que se provêem de uma formação discursiva: “Uma formação discursiva não é um espaço estrutural fechado, já que ela é constitutivamente ‘invalida’ Poe elementos provenientes de outros lugares (i.e., de outras formações discursivas) que nela se repetem, fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais (por exemplo sob forma de ‘pré-construídos’ e de ‘discursos transversos’)” (Pêcheux, 1983:297). Estamos denominando de gramática, o conjunto de regras individuais usadas para um determinado uso de uma língua, aqui especificamente, para o uso da linguagem decisória do Supremo Tribunal Federal. Ela é o sistema que organiza o pensar e impõe estruturas mentais recorrentes ao falar, para que os discursos façam sentido àqueles socializados neste mesmo sistema de sentidos. De acordo com Jean-Michel ADAM (2004:259-260) no Dicionário de Análise do Discurso organizado por Patrick CHARAUDEAU e Dominique MAINGUENEAU gramática: Nos final dos anos 60, aparecem, na Alemanha, “gramáticas de textos”, com a ambição de produzir um conjunto infinito de estruturas textuais bem formadas (Ihwe, 1972:10) de uma língua dada. Com base no modelo da gramática gerativa e transformacional frástica, essas lingüísticas definem algoritmos abstratos, regras de reescrita que permitem passar dessas estruturas profundas à linearização da manifestação lingüística de superfície. Apoiando-se no fato de que não nos comunicamos por frases, mas por textos, as gramáticas de textos ampliaram a noção de competência do locutor ideal para a compreensão e para a produção de seqüências textuais de frases. Fazendo da gramática de frase uma subparte da gramática de texto, trata-se de explicar por quais razões um texto não é nem um amontoado, nem uma simples seqüência de frases, de dar conta do fato de que a significação de um Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 125 texto é outra coisa, e não a soma das significações das frases que o compõem. A partir desta definição e com o auxílio da metodologia da Análise Semiolingüística do Discurso, que nos serviu para vislumbrar quais seriam as intenções nos discursos, com os seus ditos e não ditos através das visadas discursivas; e como estes discursos são organizados sempre pelos três lugares formadores de sentido: a doutrina, a retórica e os elementos de justificação ou de legitimação. Constatamos, ao analisar as decisões acerca da intervenção federal, que a Corte não adota uma gramática que imponha uma fala de construção democrática e consensual. Então, que gramática decisória o Supremo Tribunal Federal adota? Que regras perpassam o seu discurso decisório, levando-nos a afirmação de que a Corte não atende ao paradigma de ser a guardiã da Constituição? Realizando, pois, uma análise do discurso político, chegamos a conclusão de que o Supremo Tribunal Federal trabalha sempre sob uma estrutura gramatical, que acaba por demonstrar ser o seu papel o de um órgão do Estado, defensor das razões do Príncipe: o modus operandi da bricolage. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 126 4.1. O modus operandi da bricolage114 de Lévy- Strauss e as decisões sobre intervenção federal Verificou-se em todas as 19 decisões analisadas na presente tese que a estrutura argumentativa ou a construção dos discursos do Supremo Tribunal Federal também baseia-se no fenômeno que estamos denominando, por uma apropriação do Pensamento Selvagem de Lévy-Strauss, de modus operandi da bricolage. Esta atividade caracteriza-se pela articulação de um repertório de elementos simbólicos e de representações limitadas, presentes no sistema ou linguagem (gramática) do Supremo Tribunal Federal, para a tarefa que o bricoleur tem a realizar, esvaziando o significado original do signo (descontextualização), substituindo-o por um inteiramente novo, próprio e individual aos interesses da obra que pretende criar. Tal comportamento nos leva a sustentar que o primeiro os Ministros decidem e depois tentam justificar a sua decisão. Das 150 decisões do Supremo Tribunal Federal, de 1988 a 2008, que constituem todo o espaço amostral das decisões sobre intervenção federal, em nenhuma, apesar de explícitas as circunstâncias para que fossem providos os pedidos, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela intervenção. 114 Importante dizer não estou trabalhando a bricolage no mesmo sentido que fora trabalhado por Alexandre de Morais da ROSA em sua tese de doutorado denominada “Decisão no Processo Penal como Bricolage de significantes” (2004). Pois, ROSA sustenta que a bricolage é um operar próprio de um juiz ético e democrático que articula os significantes trazidos pelas partes na instrução processual, enquanto eu sustento que esta estrutura gramatical decisória do STF (bricolage) funciona para escamotear ou neutralizar o que há de político nas decisões acerca da intervenção federal. Vejamos as palavras de ROSA (2004:382-384): “No caminhar da construção, qualquer material pode ser importante, pois sua lógica é ‘isso sempre pode servir’, diversamente do engenheiro que está encerrado nos limites de seu projeto, ou seja, não descarta os significantes que não conformam com sua prévia idéia. O elemento recolhido, conforme as regras do jogo, do fair-play, pois, deverá ser levado em consideração no momento do ato, tal qual o um-juiz que não pode desconsiderar qualquer significante validamente produzido na instrução processual (Cap. 7º), acolhendo ou rejeitando seu respectivo valor de maneira fundamentada somente no ato decisório. Aproxima-se, assim, do juiz do ‘Sistema Acusatório’ e sua posição na ‘gestão da prova’, isto é, na instrução processual, uma vez que não há vinculação à acusação, devendo construir sua decisão consoante o que lhe for trazido, ônus das partes.(...) A perspectiva de onde o umjulgador analisará o ‘mar de significantes’ é fundamental num Estado Democrático de Direito, por isso a necessidade de ‘assunção ideológica’ (Miranda Coutinho) e a demonstração da teoria que lhe serve de base. (...) o ‘jurista-bricoler’ aceita deslizar/ousar com e nos significantes, num processo ético (Dussel) de atribuição de sentido realizado com os ‘outros’, partes no processo, e o Outro.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 127 Importante explicar que esta apropriação terminológica do bricoleur 115 para o Supremo Tribunal Federal em relação àquela utilizada pelo LévyStrauss estabelece-se na seguinte comparação: assim como o artesão (bricoleur)116 dá um novo sentido a uma mesa, descontextualizando-a do significado original e, recontextualizando-a em seu próprio universo ou 115 Para apresentar a metáfora acerca do bricoleur, importante a leitura da seguinte passagem de STRAUSS: Aliás, subsiste entre nós uma forma de atividade que, no plano técnico, permite muito bem conceber o que, no plano da especulação, pode ter sido uma ciência, que preferimos chamar ‘primeira’ ao invés de primitiva; é a comumente designada pelo termo bricolage. No seu sentido antigo, o verbo bricoler se aplica ao jogo de péla e de bilhar, à caça e à equitação, mas sempre para evocar um movimento incidental: o da péla que salta, o do cão que erra ao acaso, o do cavalo que se afasta da linha reta para evitar um obstáculo. E, em nosso dias, o bricoleur é o que trabalha com as mãos, usando meios indiretos se comparados com os do artista. Ora, o próprio pensamento mítico é exprimir-se com o auxílio de um repertório cuja composição é heteróclita que, apesar de extenso, permanece não obstante limitado, é preciso, todavia, que dele se sirva, qualquer que seja a tarefa que se proponha, porque não tem mais nada a seu alcance. Aparece, assim, como uma espécie de bricolage intelectual, o que explica as relações que se observam entre ambos.(...) A comparação merece ser aprofundada, pois dá melhor acesso às verdadeiras relações entre os dois tipos de conhecimento científico que distinguimos. O bricoleur está apto a executar grande número de tarefas diferentes; mas, diferentemente do engenheiro, ele não subordina cada uma delas à obtenção de matérias primas e de ferramentas, concebidas e procuradas na medida de seu projeto: seu universo instrumental é fechado e a regra de seu jogo é a de arranjar-se sempre com os meios-limites, isto é, um conjunto, continuamente restrito, de utensílios e de materiais, heteróclitos, além do mais, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento, nem, alías, com qualquer projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as ocasiões que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque, ou para conservá-lo, com resíduos de construções e de destruições anteriores. O conjunto dos meios do bricoleur não se pode definir por um projeto (o que suporia, aliás, como com o engenheiro, a existência de tantos conjuntos instrumentais quanto gêneros de projetos, pelos menos em teoria); define-se somente por sua instrumentalidade, para dizer de maneira diferente e para empregar a própria linguagem do bricoleur, porque os elementos são recolhidos ou conservados, em virtude do princípio de que ‘isto sempre pode servir’. Tais elementos são, pois, em parte particularizados: o bastante para que o bricoleur não tenha necessidade do equipamento e do conhecimento de todos os corpos de administração; mas não o suficiente para que cada elemento seja sujeito a um emprego preciso e determinado. Cada elemento representa um conjunto de relações, ao mesmo tempo concretas e virtuais; são operadores, porém utilizáveis em função de qualquer operação dentro de um tipo. (LEVYSTRAUSS, 1976: 37-39). 116 Quanto ao trabalho do bricoleur, e que podemos estabelecer a comparação com a atividade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, interessante seja lida a seguinte passagem de LEVY-STRAUSS (1976: 39-40): “Vejamo-lo no trabalho: animado por seu projeto, seu primeiro passo prático é, todavia, retrospectivo: deve voltar-se para um conjunto já constituído, formado de ferramentas e matérias; fazer-lhe ou refazer-lhe o inventário; enfim e, sobretudo, entabular com ele uma espécie de diálogo, para enumerar, antes de escolher entre elas, as respostas possíveis que o conjunto pode oferecer ao problema que ele apresenta. Todos esses objetos heteróclitos, que constituem seu tesouro, interroga-os para compreender o que cada um deles poderia ‘significar’, contribuindo, assim, para definir um conjunto a realizar, mas que não diferirá, finalmente, do conjunto instrumental se não pela disposição interna das partes. Este cubo de carvalho pode ser um calço para remediar a insuficiência de uma tábua de abeto ou, ainda, um soco, o que permitiria pôr em evidência o áspero e o polido da velha madeira. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 128 inventário de sentidos, como um calço de armário, ou seja, em uma unidade estrutural completamente nova e nunca vagamente sonhada, o Supremo Tribunal Federal descontextualiza os signos apresentados, de maneira ampla pela linguagem jurídica, para ressignificá-los de modo completamente novo e original em suas decisões. É importante esclarecer como se dá a atividade ou modo de agir do bricoleur. Em primeiro lugar, ele se apropria dos signos postos pela linguagem, por exemplo: o artesão vai a um brechó ou ferro velho e recolhe o material para o seu ofício. Por segundo, o bricoleur classifica (taxonomia) e cataloga, com uma lógica própria e particularizada, os signos apropriados, descontextualizando-os. Por exemplo: o artesão vai a uma estante e começa a organizar seu material nas prateleiras da seguinte forma: na primeira estão as peças que servirão para estofo de cadeira, na segunda, material para tampo de abajur etc. Ou seja, o bricoleur cria um acervo obviamente limitado de signos, do qual ele vai se servir quando da realização de seu ofício na construção de uma obra. Este trabalho, portanto, será único, visto que o material e a lógica de organização dos signos são particularizados e individuais de seu artesão. Por isso, se estamos comparando o modus operandi do bricoleur com o do Supremo Tribunal Federal, fundamental se torna conhecer que ‘estante’ e ‘materiais’ os Ministros se servem para a construção de suas decisões (obras) relacionadas a temática da intervenção federal. O repertório limitado usado nos discursos dos ministros constitui-se dos seguintes signos: 1) Citação de doutrinadores; 2) O uso do tom doutrinário; 3) Citação de jurisprudências, como argumentos de autoridade; 4) Citação de jurisprudências anteriores a Constituição de 1988; 5) Discursos de mera autoridade e afirmação; 6) Citações auto-referentes praticadas pelos ministros; 7) O uso ipsis litteris dos pareceres dos Procuradores Gerais da República; 8) O uso do processo civil como uma estratégia de evitar a decisão do mérito da questão; 9) O uso e interpretações de citações legais; e, finalmente 10) O uso de digressões históricas e doutrinárias. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 129 1) Citação de doutrinadores, reconhecidos pelo campo jurídico como pessoas autorizadas117; vejamos os seguintes exemplos: Excerto 1 - Enunciador: MIN. SYDNEY SANCHES, IF-QO nº107-2/DF: “[...] Embora a norma constitucional em vigor (art.36,II) não indique expressamente como deve ser feita a partilha da competência entre as mencionadas Cortes, parece que o único critério adequado para tal desiderato é o que estabelece a divisão segundo a matéria. Os comentadores da Constituição Federal de 1988, que se ocuparam do tema, manifestam idêntica opinião: ‘A Constituição não esclarece em que hipótese a requisição deverá ser feita pelo Supremo Tribunal Federal, em qual, pelo Superior Tribunal de Justiça, ou quando, pelo Tribunal Superior Eleitoral. É, todavia, óbvio que a requisição não poderá provir deste último senão em questões eleitorais. Deve-se presumir que parta do Superior Tribunal de Justiça na generalidade dos casos e do Supremo Tribunal Federal sempre que concernir à guarda da Constituição’ (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, in Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Saraiva, 1990, p.239). [...] no caso de desobediência à ordem ou decisão judicial (inc. VI do art. 34) de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral, segundo a matéria, não se diz no texto, mas evidentemente de conformidade com as regras de competência jurisdicional ‘ratione materiae’; (José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo, RT, 1989, 5a. edição, p. 419).” Comentário: O enunciador, baseando-se nas palavras do subprocurador, recorre a um dos principais elementos de formação do capital simbólico do campo jurídico, a doutrina, através de autores (Manoel Gonçalves Ferreira Filho e José Afonso da Silva) reconhecidos pelos juristas brasileiros como clássicos do Direito Constitucional Brasileiro, como um argumento de autoridade para persuadir seus receptores quanto ao tema e à solução adstritas, a controvérsia judicial apresentada, tal seja: regras de competência em razão da matéria. 117 Vislumbra-se nos discursos do Supremo Tribunal Federal o menor compromisso com uma ‘verdade científica’. O que vale é a opinião mais autorizada daquele que goze de mais prestígio dentro do campo. Há uma hierarquia de opiniões. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 130 Excerto 2 - Enunciador: MIN. CELSO DE MELLO, IF nº164-1/SP: “[...] O instituto da intervenção federal, consagrado no texto de todas as Constituições republicanas brasileiras, representa um elemento fundamental, tanto na construção da doutrina do Estado Federal, quanto na praxes do federalismo. O mecanismo de intervenção constitui instrumento essencial à viabilização do próprio sistema federativo, e, não obstante o caráter excepcional de sua utilização - necessariamente limitada às hipóteses taxativamente definidas na Carta Política -, mostra-se impregnado de múltiplas funções de ordem político-jurídica, destinadas (a) a tornar efetiva a intangibilidade do vínculo federativo, (b) a fazer respeitar a integridade territorial das unidades federadas, (c) a promover a unidade do Estado Federal e (d) a preservar a incolumidade dos princípios fundamentais proclamados pela Constituição da República. A intervenção federal, na realidade, configura expressivo elemento de estabilização da ordem normativa plasmada na Constituição da República. É-lhe inerente a condição de instrumento de defesa dos postulados sobre os quais se estrutura, em nosso País, a ordem republicano-federativa. “O instituto da intervenção" - adverte ERNESTO LEME (“A Intervenção Federal nos Estado”, p. 25, item n. 20, 2ª ed., 1930, RT) – “É (...) da essência do sistema federativo”. Sem esse mecanismo de ordem político-jurídica, que assegura a intangibilidade do pacto federal, “a União seria um nome vão. E as garantias e vantagens, que a Federação deve proporcionar aos Estados e ao povo, se reduziriam a simples miragem” (JOÃO BARBALHO, Constituição Federal Brasileira – Comentários”, p. 31, 2ª ed., 1924, Rio de Janeiro, Briguiet e Cia. Editores). Cabe destacar, neste ponto, o magistério doutrinário, que, fundado na necessidade de respeito ao princípio federativo, adverte sobre a excepcionalidade da intervenção federal, em face do caráter extremamente perturbador que assume qualquer interferência do Governo Federal nos assuntos regionais e na esfera de autonomia dos Estadosmembros (CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Brasileira”, p. 158, item n. 128, 3ª Ed., 1929, Globo; THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, “A Constituição Federal Comentada” vol. I/183, 3ª ed., 1956, Konfino; FÁVILA RIBEIRO, “A Intervenção Federal nos Estados”, p. 48, tese de concurso, 1960, Editora Jurídica, Fortaleza). Não se pode perder de perspectiva a circunstância de que a intervenção federal representa, ainda que transitoriamente, a própria negação da autonomia institucional reconhecida aos Estados-membros pela Constituição da República. Essa autonomia, que possui extração constitucional, configura postulado fundamental peculiar à organização político-jurídica de qualquer sistema Federativo, inclusive do sistema federativo vigente no Brasil. O poder autônomo - que a ordem jurídico-constitucional atribuiu aos Estados-membros - Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 131 traduz um dos pressupostos conceituais inerentes à compreensão mesma do federalismo”.” (grifos do enunciador). Comentário: O enunciador reproduz ipsis litteris o seu voto da Intervenção Federal nº 590-2, sem dizer que o voto é igual. 2) O uso do tom doutrinário, os Ministros realizam, seguindo a lógica taxonômica que desenvolvemos ao falarmos da doutrina jurídica, definições e discussões acerca da natureza jurídica dos institutos jurídicos e categorizações; como podemos demonstrar: Excerto 1 - Enunciador: MIN. GILMAR MENDES, IF nº 2915-5/SP: “Em nosso sistema federativo, o regime de intervenção representa excepcional e temporária relativização do princípio básico da autonomia dos Estados. A regra, entre nós, é a não-intervenção, tal como se extrai com facilidade do disposto no caput do art. 34 da Constituição, quando diz que “a União não intervirá nem no Distrito Federal, exceto para: (...)”. Com maior rigor, pode-se afirmar que o princípio da não intervenção representa sub-princípio concretizador do princípio da autonomia, e este, por sua vez, constitui subprincípio concretizador do princípio federativo, cabe lembra, constitui não apenas princípio estruturante da organização política e territorial do Estado brasileiro, mas também cláusula pétrea da Carta de 1988.” Comentário: O enunciador dá uma definição doutrinária do que é a intervenção federal. Excerto 2 - Enunciador: MIN. CELSO DE MELLO, IF-QO nº590-2/CE: “O mecanismo de intervenção constitui instrumento essencial à viabilização do próprio sistema federativo, e, não obstante o caráter excepcional de sua utilização - necessariamente limitada às hipóteses taxativamente definidas na Carta Política -, mostra-se impregnado de múltiplas funções de ordem políticojurídica, destinadas (a) a tornar efetiva a intangibilidade do vínculo federativo, (b) a fazer respeitar a integridade territorial das unidades federadas, (c) a promover a unidade do Estado Federal e (d) a preservar a incolumidade dos princípios fundamentais proclamados pela Constituição da República.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 132 Comentário: O enunciador, através do modus operandi da bricolage, realiza uma explicação de cunho doutrinário do que é a intervenção federal. 3) Citação de jurisprudências, como argumentos de autoridade, mas sem a devida explicitação do que vincularia nos precedentes citados; vejamos por exemplo: Excerto 1 - Enunciador: MIN. ELLEN GRACIE, IF-AG-REG nº 2045-0/SP: “No mérito, tenho que a decisão agravada ajusta-se à orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal. De fato, conforme já decidiu esta Corte no julgamento do AI 255.634, (rel. Min. Celso de Mello, DJ 03.12.1999), “nas hipóteses de descumprimento de ordem ou de sentença judiciais (CF, art. 34, VI e art. 35, IV) o procedimento destinado a viabilizar a efetivação do ato de intervenção estadual nos Municípios reveste-se de caráter políticoadministrativo, muito embora instaurado perante órgão competente do Poder Judiciário (CF, art. 36, II e art. 35, IV). Com efeito, a atividade desenvolvida pelo Tribunal de Justiça, no processamento do pedido de intervenção estadual em Município, decorre do exercício, por essa Corte Judiciária, de uma típica função político-administrativa, desvestida, por isso mesmo de qualquer atributo de índole jurisdicional”.” Excerto 2 - Enunciador: MIN. MAURÍCIO CORRÊA, RECL. nº 1091-1/PA: “A presente reclamação foi proposta pelo Governador do Estado que, por ter capacidade postulatória concorrente para requerer ação direta de inconstitucionalidade idêntica àquela cuja autoridade busca-se resguardar, encontra-se, em tese, legitimado para a medida (RECLQO 397-RJ, unânime, j. em 25/11/92, Celso de Mello, RTJ 147/31).” Comentário: O enunciador, através do modus operandi da bricolage, usa jurisprudência e já adianta a concordância com a capacidade postulatória do governador. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 133 4) Citação de jurisprudências anteriores a Constituição de 1988, como argumentos de autoridade, mas sem a devida explicação de porque estas decisões ficaram vinculadas, visto estarmos diante de bases valorativas e constitucionais diversas; por exemplo: Excerto 1 – Enunciador: MIN. CELSO DE MELLO, IF nº 164-1/SP: “O que me parece irrecusável, Senhor Presidente, e consideradas as razões expostas pelo Estado de São Paulo, é que, para os fins a que se refere o art. 34, VI, c/c o art. 36, II, da Carta Política, a ordem constitucional brasileira não autoriza a intervenção federal, fundada em involuntária demora de pagamento, motivada por falta ou insuficiência de recursos financeiros, pois como já enfatizou o Supremo Tribunal Federal, “Para justificar a intervenção, não basta a demora de pagamento, na execução de ordem ou decisão Judiciária, por falta de numerário: é necessário o intencional ou arbitrário embaraço ou impedimento oposto a essa execução” (IF 20/MG, Rel. Min. NELSON HUNGRIA, “in” Arquivo Judiciário, vol. 112/160-161 – grifei). Esta Suprema Corte, ao recusar a possibilidade jurídico-constitucional de intervenção federal no Estado-membro, por alegado descumprimento de ordem ou decisão judicial, assim fundamentou o seu dictum, no julgamento acima referido, consoante revela o voto do saudoso Ministro NELSON HUNGRIA, então Relator da causa, nesta Corte, e cujas palavras reproduzo, in extenso: “Não padece dúvida que a intervenção autorizada pelo art. 7°, V, da Constituição Federal tem como pressuposto a injustificada oposição, por parece do Governo estadual, de embaraço ou impedimento à execução de ordem ou decisão judiciária. Não basta a demora, que pode ser justificada, na execução: é necessário que se apresente uma desobediência manifesta, propositada ou por descaso, à ordem ou decisão Judicial. É o que já ensinava Barbalho, comentando o parágrafo 4° do art. 6° da Constituição de 91: - a intervenção em tal caso se deve entender como uma sanção para constranger à obediência os governos dos Estados, ‘quando embaracem ou se oponham a execução’ das decisões Judiciais (‘Constituição Federal Brasileira’, pg. 27). No mesmo sentido, Pontes de Miranda, comentando a atual Constituição: - ‘há intervenção sempre que se impede a eficácia da sentença, decisão ou ordem’ (‘Comentários à Constituição de 1946’, ed. 1953, vol. 1°, pg. 486). É preciso que um desarrazoado obstáculo tenha sido oposto pelo Governo estadual à execução da decisão ou ordem. Ora, no caso vertente, o retardamento na execução não promana de obstáculo criado pelo Governador mineiro, mas da acidental exaustão atual do erário do Estado.” (grifos do enunciador). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 134 Comentário: O enunciador realiza uma bricolage, sem pudores, de um argumento jurisprudencial anterior a ordem de 1988. Vale lembrar que a redação do fundamento constitucional da decisão citada era diferente da Constituição de 1988. Excerto 2 - Enunciador: MIN. CELSO DE MELLO, IF nº 164-1/SP: “No mesmo sentido recordo outros precedentes da Corte (IF 81 (AgRg), RTJ 114/443; IF 135, Pertence, DJ 24.11.95) e, sob ordens constitucionais anteriores, que, no ponto, não sofreram alteração substancial: IF 61, 16.12.70, Barros Monteiro, RTJ; IF 94, 19.12.86, M. Alves.” Assim sendo, na linha dos precedentes, nego seguimento ao pedido.” Comentário: O enunciador, através do modus operandi da bricolage, cita decisões anteriores a ordem constitucional de 1988, apesar de estarem fundamentadas em outras bases, para fundamentar seu ponto de vista. 5) Discursos de mera autoridade e afirmação, que leva em conta a simples autoridade que estes Ministros gozam no campo jurídico; Excerto 1 - Enunciador: MIN. SYDNEY SANCHES, IF-QO nº 107-2/DF: “Diante de tais considerações, ao que penso, o processo e julgamento do pedido de intervenção federal em exame não compete a essa Excelsa Corte, mas sim ao Superior Tribunal de Justiça, pois que se fundamenta no alegado descumprimento de ordem expedida por juiz estadual em ação de reintegração de posse, causa evidentemente fundada em matéria infraconstitucional.” Comentário: Importante notar neste excerto, que o enunciador novamente se refere a questão infraconstitucional, mas em nenhum momento explica ou explicita o que vem a ser matéria constitucional. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 135 Excerto 2 - Enunciador: MIN. GILMAR MENDES, IF nº 2915-5/SP: “Já afirmei, em outras oportunidades, a real necessidade de que os órgãos judicantes, ao julgarem questões intricadas analisem com a maior amplitude possível informações e dados concretos para obterem uma interpretação precisa.” Comentário: O enunciador usa um argumento de autoridade para dizer que a sua interpretação é precisa. 6) Citações auto-referentes praticadas pelos ministros, de forma aberta ou inversamente sem indicação; por exemplo: Excerto 1 – Enunciador: MIN. ELLEN GRACIE, IF-AGR-REG nº 2045-0/SP: “No mérito, tenho que a decisão agravada ajusta-se à orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal. De fato, conforme já decidiu esta Corte no julgamento do AI 255.634, (rel. Min. Celso de Mello, DJ 03.12.1999), “nas hipóteses de descumprimento de ordem ou de sentença judiciais (CF, art. 34, VI e art. 35, IV) o procedimento destinado a viabilizar a efetivação do ato de intervenção estadual nos Municípios reveste-se de caráter políticoadministrativo, muito embora instaurado perante órgão competente do Poder Judiciário (CF, art. 36, II e art. 35, IV). Com efeito, a atividade desenvolvida pelo Tribunal de Justiça, no processamento do pedido de intervenção estadual em Município, decorre do exercício, por essa Corte Judiciária, de uma típica função político-administrativa, desvestida, por isso mesmo de qualquer atributo de índole jurisdicional”.” Comentário: Através do modus operandi da bricolage, o enunciador se serve de um argumento jurisprudencial auto-referente. Excerto 2 - Enunciador: MIN. CELSO DE MELLO, IF nº 164-1/SP: “O instituto da intervenção federal, consagrado no texto de todas as Constituições republicanas brasileiras, representa um elemento fundamental, tanto na construção da doutrina do Estado Federal, quanto na praxes do federalismo. O mecanismo de intervenção constitui instrumento essencial à viabilização do Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 136 próprio sistema federativo, e, não obstante o caráter excepcional de sua utilização - necessariamente limitada às hipóteses taxativamente definidas na Carta Política -, mostra-se impregnado de múltiplas funções de ordem político-jurídica, destinadas (a) a tornar efetiva a intangibilidade do vínculo federativo, (b) a fazer respeitar a integridade territorial das unidades federadas, (c) a promover a unidade do Estado Federal e (d) a preservar a incolumidade dos princípios fundamentais proclamados pela Constituição da República. A intervenção federal, na realidade, configura expressivo elemento de estabilização da ordem normativa plasmada na Constituição da República. É-lhe inerente a condição de instrumento de defesa dos postulados sobre os quais se estrutura, em nosso País, a ordem republicano-federativa. “O instituto da intervenção" - adverte ERNESTO LEME (“A Intervenção Federal nos Estado”, p. 25, item n. 20, 2ª ed., 1930, RT) – “É (...) da essência do sistema federativo”. Sem esse mecanismo de ordem político-jurídica, que assegura a intangibilidade do pacto federal, “a União seria um nome vão. E as garantias e vantagens, que a Federação deve proporcionar aos Estados e ao povo, se reduziriam a simples miragem” (JOÃO BARBALHO, Constituição Federal Brasileira – Comentários”, p. 31, 2ª ed., 1924, Rio de Janeiro, Briguiet e Cia. Editores). Cabe destacar, neste ponto, o magistério doutrinário, que, fundado na necessidade de respeito ao princípio federativo, adverte sobre a excepcionalidade da intervenção federal, em face do caráter extremamente perturbador que assume qualquer interferência do Governo Federal nos assuntos regionais e na esfera de autonomia dos Estados-membros (CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Brasileira”, p. 158, item n. 128, 3ª Ed., 1929, Globo; THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, “A Constituição Federal Comentada” vol. I/183, 3ª ed., 1956, Konfino; FÁVILA RIBEIRO, “A Intervenção Federal nos Estados”, p. 48, tese de concurso, 1960, Editora Jurídica, Fortaleza). Não se pode perder de perspectiva a circunstância de que a intervenção federal representa, ainda que transitoriamente, a própria negação da autonomia institucional reconhecida aos Estados-membros pela Constituição da República. Essa autonomia, que possui extração constitucional, configura postulado fundamental peculiar à organização político-jurídica de qualquer sistema Federativo, inclusive do sistema federativo vigente no Brasil. O poder autônomo - que a ordem jurídicoconstitucional atribuiu aos Estados-membros - traduz um dos pressupostos conceituais inerentes à compreensão mesma do federalismo.” (grifos do enunciador). Comentário: O enunciador reproduz ipsis litteris o seu voto da Intervenção Federal nº 590-2 (item 15 de nossas análises), sem dizer que o voto é igual. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 137 7) O uso ipsis litteris dos pareceres dos Procuradores Gerais da República como se fossem seus relatórios; como nos exemplos: Excerto 1 - Enunciador: MIN. NÉRI DA SILVEIRA, IF nº 101-3/MA: “Resumiu a Procuradoria-Geral da República, às fls. 54/55, os fundamentos da súplica, verbis: Alegam, para tanto, que o Senhor Secretário da Fazenda do Estado do Maranhão se recusa a atender o ofício do Exmo. Sr. Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça, em que são solicitadas as providências para pagamento de precatórios expedidos em favor dos requerentes, com o que estaria configurado o descumprimento de ordem ou decisão judicial, que ensejaria a medida intentada. O pedido se faz acompanhar de cópias de documentos referentes á matéria, sendo relevantes, no entanto, para definição do requerido, apenas as de fls, 11/13, 18/19 e 21 dos autos, sendo os demais estranhos à pesquisa sobre a confirguração de descumprimento de ordem ou de decisão judicial. Do exame dos mesmos, constata-se somente que os requerentes, na realidade, são beneficiários de precatórios, e que reclamaram ao Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, contra a preterição de seus direitos, reclamação esta encaminhada ao Senhor Secretário da Fazenda (fls. 21).” Comentário: O enunciador usa ipsis litteris os fundamentos da Procuradoria Geral da República. Excerto 2 - Enunciador: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE, IF nº 135-8/RJ: “É este o teor da manifestação da Procuradoria-Geral (f. 83): O pedido de intervenção não tem como ser apreciado, pois aos requerentes falta legitimidade ativa para tanto. Nesse sentido, a orientação desse Colendo Tribunal, conforme os seguintes precedentes: "Intervenção Federal. Legitimidade ativa para o pedido. Interpretação do inciso II do art. 36 da Constituição Federal de 1988, e dos artigos 19, II e III, da Lei 8.038, de 28-051990, e 350, II e III, do RISTF. A parte interessada pode se dirigir ao Supremo Tribunal Federal, com pedido de intervenção federal para prover a execução de decisão da própria Corte. Quando se trata de decisão de Tribunal de Justiça, o requerimento de intervenção deve ser dirigido ao respectivo Presidente, a quem incumbe, se for o caso, encaminhá-lo ao Supremo Tribunal Federal. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 138 Pedido não conhecido, por ilegitimidade ativa dos requerentes." (Intervenção Federal n. 105 (Questão de Ordem) PR, Tribunal Pleno, Relator Exmo. Sr. Min. Sydney Sanches, RTJ 142/371). "Intervenção Federal. - Se o Presidente do Tribunal de Justiça local - que tem legitimação para provocar o exame da requisição de intervenção federal, que só se fará para a preservação da autoridade da Corte que ele representa - entende que a intervenção federal não cabe no caso, não pode o STF, de ofício e à vista do encaminhamento por aquela Presidência do pedido de intervenção federal feito pelo interessado e por ela repelido, examiná-lo. Agravo regimental a que se nega provimento." (Intervenção Federal n. 81 (AGRG) - SP, Relator Min. Moreira Alves, RTJ 114/443). Note-se que bem recentemente, ao julgar Reclamação formulada contra o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará por Coronéis da Reserva da Polícia Militar daquele Estado (Reclamação nº464-3-CE, ReIator Min. Octávio Gallotti, DJ 24.02.95), esse Colendo Tribunal proferiu aresto com ementa do seguinte teor: "Intervenção federal, por suposto descumprimento de decisão de Tribunal de Justiça. Não se pode ter, como invasiva da competência do Supremo Tribunal, a decisão de Corte estadual, que, no exercício de sua exclusiva atribuição, indefere o encaminhamento do pedido de intervenção. Precedentes do STF. Reclamação julgada improcedente." Pelo exposto, opinamos por que não se conheça do pedido, tendo em vista a ilegitimidade ativa dos requerentes.” Recordo, no mesmo sentido, outros precedentes do Tribunal, sob ordens constitucionais anteriores, que, contudo, no ponto, não sofreram alteração substancial (IF 61, 16.12.70, Barros Monteiro, RTJ 57/156; IF 64, 16.10.75, Thompson; IF 68, 12.12.79, Neder; IF 94, 19.12.86, M. Alves). Nada mais tendo a aditar-lhe, acolho o parecer e não conheço do pedido: é o meu voto.” Comentário: Finalmente o enunciador usa ipsis litteris a manifestação da Procuradoria-Geral como se sua fosse para estabelecer seu voto. Importante dizer que usa uma reclamação e outra intervenção federal julgadas no STF como argumentos de autoridade para fundamentar seu voto. 8) O uso do processo civil como uma estratégia de evitar a decisão do mérito da questão, omitindo-se do enfrentamento da disputa federativa, deixam de decidir por uma escusa processual, como a ilegitimidade ativa ou incompetência da Corte; por exemplo: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 139 Excerto 1 - Enunciador: MIN. SYDNEY SANCHES, IF-QO nº 105-6/PR: “Os requerentes são partes ilegítimas para pedir a intervenção federal.” Comentário: O enunciador usa um argumento de autoridade. Ele faz uma afirmação sem justificá-la. Excerto 2 - Enunciador: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE, IF nº 230-3/DF: “Com efeito, a intervenção federal é medida extrema, que pressupõe, de parte do tribunal de execução, a exaustão dos meios de que disponha para fazer cumprir o julgado. Por tudo isso, além de não se confundir com o simples encaminhamento de pretensão alheia, o pedido da requisição da intervenção há de ser motivado. Desse modo, afirmo a competência do STF, mas à falta de iniciativa própria e fundamentada do órgão legitimado, nego trânsito ao expediente encaminhado. É o meu voto.” Comentário: O enunciador apresenta premissas que não seguem uma coerência lógica, para ao final, realizar uma conclusão entimesmática118. 9) O uso e interpretações de citações legais como argumento de autoridade; por exemplo: 118 Coube a Aristóteles o desenvolvimento do conceito de entimema (gr. enthymeísthai; considerar, refletir), que consiste no silogismo próprio da retórica. Fruto da endoxa, tratando daquilo que não decorre necessariamente das premissas invocadas, o entimema é o núcleo da persuasão. O entimema é uma espécie de silogismo encurtado, no qual uma das premissas, ou mesmo a conclusão, é tomada como evidente, permanecendo implícita dentro da sua estrutura formal. Ele pressupõe que o receptor da mensagem conhece e concorda com a premissa ou conclusão silenciada, ainda que tal concordância não seja efetiva. “Dorieus venceu os jogos olímpicos, Dorieus ganhou uma coroa de louros” (Retórica, I,2,1357a): falta a premissa maior, pois todos sabem que quem ganha os jogos recebe a coroa. O entimema é formalmente imperfeito eis que deseja persuadir sem a rigidez da coerência lógica. Todavia, uma vez que a retórica deseja obter efeitos imediatos, a relevância pragmática e estratégica dos entimemas acaba por fazer superar sua deficiência formal. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 140 Excerto 1 - Enunciador: MIN. ILMAR GALVÃO, IF nº 2915-5/SP: “O Governador, em conseqüência, pelo regime que era previsto no texto original do art. 100 e parágrafos da CF, no presente caso, só poderia ser considerado desobediente à ordem judicial se deixasse, primeiramente, de providenciar a inclusão, no orçamento, da dotação requisitada pelo Tribunal; e, em segundo lugar, de pôr à disposição do Tribunal, durante o exercício orçamentário, os recursos alusivos à dotação prevista na lei de meios. Estabelecidas essas premissas, cumpre examinar o que efetivamente determinou o presente pedido de intervenção.” Comentário: O enunciador, através do modus operandi da bricolage, cita um argumento legal. Excerto 2 – Enunciador: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE, IF nº 230-03/DF: “O Art. 34, VI, CF, prevê a intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal para prover a execução de “ordem ou decisão judicial. Prescreve, de seu turno, o art. 36, II, que “a intervenção dependerá (...) no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral”.” (grifos do enunciador). Comentário: O enunciador, através do modus operandi da bricolage, cita o texto constitucional. 10) O uso de digressões históricas e doutrinárias, afim de ser demonstrada erudição e autoridade pela força da tradição; como nos exemplos: Excerto 1 – Enunciador: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE, IF nº 230-03/DF: “Vem da Emenda de 1926 à Constituição de 1891 a competência, então privativa, do Supremo Tribunal para requisitar ao Poder Executivo a intervenção nos Estados, “a fim de assegurar a execução das sentenças federais” (cf. art. 6º, § 3º). A Constituição de 1934 – além de ampliar aquela Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 141 hipótese de intervenção, de modo a nela incluir também o “obstáculo (...) às decisões e ordens dos Juízes e Tribunais” estaduais (cf. art. 12, VI e §3º, a) – cindiu a competência de requisição entre a Corte Suprema e o Tribunal de Justiça Eleitoral, então constitucionalizado (cf. art. 13, §5º). A partilha desse poder entre o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral retornou na Constituição de 1946 (art. 9º, §1º, I) e assim permaneceu, sem alterações substanciais, nos textos subseqüentes (CF 67, art. 10,§1º, c; CF 69, art. 11, §1º, c).” (grifos do enunciador). Comentário: O enunciador, através do modus operandi da bricolage, faz uma digressão histórica visando demonstrar uma continuidade de 1926 aos nossos dias. Excerto 2 - Enunciador: MIN. MARCO AURÉLIO, IF nº 164-1/SP: “A Constituição Federal de 1891 mostrou-se de contornos limitados. Mediante o item IV do artigo 6°, previa-se que o Governo Federal poderia intervir em negócios peculiares aos Estados “para assegurar a execução das leis e sentenças federais.” A Emenda Constitucional de 3 de Setembro de 1926 não modificou essa cláusula. Foi ela mantida, já então, sob o inciso IV, “para assegurar a execução das leis e sentenças federais e reorganizar as finanças do Estado, cuja incapacidade para a vida autônoma se demonstrar, pela cessação de pagamentos de sua dívida fundada, por mais de dois anos”. Destarte, nota-se a restrição quanto às sentenças - somente as federais descumpridas ensejavam a intervenção. A Constituição Federal de 1934 veio a dar maior extensão à cláusula autorizadora da intervenção nos negócios do Estado, abrangendo expressões que não podem ser tidas como sinônimos: Art. 12 A União não intervirá em negócios peculiares aos Estados, salvo: VII para a execução de ordens e decisões dos juízes e tribunais federais; Percebe-se, portanto, o abandono da palavra “sentença”, ou seja, do vocábulo revelador do ato processual final dos processos. Entrementes a possibilidade de intervenção por descumprimento de ordens e decisões dos juízes e tribunais ficou limitada à esfera federal, não alcançando, assim, decisões da Justiça estadual. Essa previsão perdurou até 1937, quando veio à balha nova Carta e, aí, voltou-se à disciplina de 1891: Art. 9° O Governo Federal intervirá nos Estados, mediante a nomeação, pelo Presidente da República, de um interventor que assumirá no Estado as funções que, pela sua constituição, competirem ao Poder Executivo, ou as que, de acordo com as conveniências e necessidade de cada caso, lhe forem atribuídas pelo Presidente da República: f) para assegurar a execução leis e sentenças federais; Então, observa-se, como já consignado, o retorno à Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 142 disciplina pretérita, mais uma vez limitando-se a possibilidade de intervenção ao descumprimento de sentenças emanadas de órgãos federais. A Carta de 1946, de nítido cunho democrático, uma Carta, tal como as de 1891, 1934 e 1988, popular, a homenagear a supremacia do Judiciário e a atuação deste como indispensável ao Estado Democrático de Direito, veio a reintroduzir, no cenário constitucional, a regra da Constituição de 1934, fazendo-o sem a especificidade alusiva à natureza do órgão judiciário prolator da decisão (gênero) descumprida - se federal ou estadual. Portanto, houve verdadeiro avanço, emprestando-se, sob o argumento da intervenção, valia a ordens e decisões judiciárias, sem se distinguir a origem: Art. 7°. O Governo Federal não intervirá nos Estados, salvo para: V) assegurar a execução de ordem ou decisão judiciária.” 11) O uso de citações e referências de obras doutrinárias e de jurisprudências concebidas e contextualizada para outros sistemas jurídicos que não o brasileiro, nos parece que por esta estratégia o bricoleur trabalha sob a perspectiva de um Direito universal aplicável para qualquer lugar. Excerto 1 - Enunciador: MIN. GILMAR MENDES, IF nº 2915-5/SP: “Registrese, por oportuno, que o princípio da proporcionalidade aplica-se a todas as espécies de atos dos poderes públicos, de modo que vincula o legislador, a administração e o judiciário, tal como lembra Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 2ª ed. , p. 264). Cumpre assinalar, ademais, que a aplicação do princípio da proporcionalidade em casos como o presente, em que há pretensão de atuação da União no âmbito da autonomia de unidades federativas, é admitida no direito alemão. Nesse sentido, registram Bruno Schmidt-Bleibtreu e Franz Klein, em comentário ao art. 37 da Lei Fundamental, que “os meios da execução federal (“Bundeszwang”) são estabelecidos pela Constituição, pelas leis federais e pelo princípio da proporcionalidade” (“Die Mittel dês Bundeszwanges werden durch das Grundgesetz, die Bundesgesetze und da Prinzip der VerhältnismäBigkeit bestimmt”, Kommentar zum Grundgesetz, 9ª Ed., Lucherhand, p. 765).” Comentário: O enunciador realiza uma bricolage doutrinária fazendo referência ao Direito Alemão. Devemos lembrar, entretanto, que estamos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 143 tratando de realidades diferentes, de federações diferentes e de redações constitucionais diferentes. Excerto 2 - Enunciador: MIN. CELSO DE MELLO, IF nº 102-1/PA: “A fórmula adotada parece traduzir aquilo que Kelsen houve por bem denominar “accertamento giudiziale dell’illecito (...) Che condiziona l’esecuzione federale”. E, evidentemente, esse “accertamento giudiziale”, ou o contencioso da inconstitucionalidade, como referido por Castro Nunes, diz respeito ao próprio conflito de interesses potencial ou efetivo, entre União e Estado, no tocante à observância de determinados princípios federativos. Portanto, o ProcuradorGeral da República instaura o contencioso de inconstitucionalidade não como parte autônoma, mas como representante judicial da União Federal, que ‘tem interesse na integridade da ordem jurídica, por parte dos Estados-membros’.” Comentário: O enunciador, através do modus operandi da bricolage, cita doutrina de Hans Kelsen e associa esta passagem para explicar o papel do Procurador Geral da República. Este repertório limitado, que acabou de ser descrito acima, se opera regularmente em bases de três grandes estratégias argumentativas por parte dos discursos dos Ministros: ESTRATÉGIA 1) a descontextulização histórica, que se define pelo uso de citações e referências de obras doutrinárias e de jurisprudências de contextos históricos os mais distintos, muitos vezes de períodos não democráticos e de circunstâncias temáticas diversas, como se houve uma grande linha de continuidade histórica, ou melhor, como se houvesse uma atemporalidade que permitiria este trabalho do bricoleur em usar este material a sua disposição; ESTRATÉGIA 2) a descontextualização geográfica, o uso de citações e referências de obras doutrinárias e de jurisprudências concebidas e contextualizada para outros sistemas jurídicos que não o brasileiro, nos parece que por esta estratégia o bricoleur trabalha sob a perspectiva de um Direito universal aplicável para qualquer lugar.; e finalmente, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 144 ESTRATÉGIA 3) a descontextualização de sentidos, entendida como o uso de fragmentos da doutrina jurídica e do processo civil, muitas vezes, por argumentos de autoridade, como bem lhe aprouver, e como tal fora de seus sentidos primeiros, para conceber a sua obra decisória. 4.2. A lógica do contraditório A todo este panorama da bricolagem soma-se outra estrutura gramatical que reforça estas descontextualizações, a lógica do contraditório. A estrutura gramatical decisória do Supremo Tribunal Federal denominada ‘a lógica do contraditório’, antes de tudo não pode ser confundida com o princípio constitucional, processual, e concebido como ganho democrático no campo e discursos jurídicos, do contraditório119. Este é representado, ainda que não comprovado pela empiria (BAPTISTA, 2008), como um valor igualitário de se dar às partes em um processo, seja ele judicial ou administrativo, as mesmas oportunidades de serem ouvidas, produzirem provas e contestarem as provas produzidas. A lógica do contraditório pode apresentar uma homonímia com o princípio do contraditório, mas com ele não se confunde. A origem desta lógica situa-se nos países de tradição de Civil Law120, nos antigos exercícios 119 Ada Pellegrini GRINOVER (1990:7) entende que "o contraditório não se identifica com a igualdade estática, puramente formal, das partes no processo; não exprime a simples exigência de que os sujeitos possam agir em plano de paridade; nem determina ao juiz o mero dever de levar em conta a atividade de ambos, permitindo que façam ou até que deixem de fazer alguma coisa. O contraditório, como contraposição dialética paritária e forma organizada de cooperação no processo, constitui o resultado da moderna concepção da relação jurídica processual, da qual emerge o conceito de par condicio ou igualdade de armas" Esse princípio, que garante a verdadeira contraposição dialética, é entendido como sendo o de equilíbrio de situações, não iguais mas recíprocas.” Coadunando com esta visão Leonardo GRECO (2005:72) define o contraditório como o princípio que “impõe ao juiz a prévia audiência de ambas as partes antes de adotar qualquer decisão (audiatur et altera pars) e o oferecimento a ambas das mesmas oportunidades de acesso à Justiça e de exercício do direito de defesa”. 120 Compreende-se Civil Law como uma tradição romano-germânica do fenômeno jurídico, que estabelece como principal fonte do Direito a norma escrita. No sistema de Civil Law, o Direito e seus conceitos são codificados, ou seja, pré-estabelecidos e racionalmente agrupados em códigos escritos. Ademais, no sistema de Civil Law os juízes não têm poder para alterar, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 145 oratórios/retóricos do trivium121, os chamados contradicta da Escola de Bologna122. Estes exercícios consistiam em disputas oratórias de dialética adicionando ou subtraindo conceitos às normas. Sua função essencial é interpretar a Lei e aplicá-la ao caso concreto. 121 O trivium (do latim tres: três e vía: caminho) era o nome dado na antiguidade ao conjunto de três matérias ensinadas nas universidades no início do percurso educativo: gramática, dialética e retórica. O trivium representa três das sete artes liberais, as restantes quatro formam o quadrivium: aritmética, geometria, astronomia e música. HESPANHA (2005:197-219). 122 FURMANN e SILVA (2006) relatam que a Escola de Bolonha: ”A Escola de Bolonha foi originariamente uma escola de Artes. Diferenciava-se das escolas medievais tradicionais porque estas permaneciam intimamente ligadas ao ensino teológico, o que caracteriza a Idade Média. A origem profana e citadina da Escola de Bolonha influenciou sobremaneira o estudo do Direito por um ângulo inovador. A libertação do primado da teologia a diferenciava das demais instituições da época. Destaca-se, nesse sentido, a criação do studium civile de Bolonha, uma escola jurídica profana. A utilização dos textos clássicos remontou a proposta universalista do império romano. Alia-se a essa característica a utilização do trivium escolástico das universidades medievais. A propedêutica foi o substrato dos estudos em Bolonha. A releitura dos textos jurídicos antigos a partir de tais disciplinas originou um ´´entusiasmo acadêmico´´ que, notoriamente, será estranho à atitude moderna, pois pautada na crença da autoridade e do formalismo intelectual. Nota-se que a Escola de Bolonha deteve acesso progressivo a textos anteriormente proibidos pela igreja, a qual monopolizava o saber durante a idade média, como os escritos de Aristóteles (Organon). Logo, o desenvolvimento de Bolonha está intimamente ligado ao movimento cultural (germes de modernidade) e ao desenvolvimento econômico (germes capitalismo) que desembocaram nas cidades mercantis italianas.Se de um lado a aplicação do Direito Justinianeu gerou diversos conflitos nesse período medievo, devido às diferenças históricas gritantes entre as realidades medieval e imperial romana. Por outro lado, a autoridade dos textos antigos os fazia intocáveis. "O Corpus Iuris gozava da mesma autoridade no pensamento jurídico – em virtude da crença na origem providencial do império –, constituindo mais do que um jogo de palavras o dizer-se que ele teve sobre o sentimento jurídico medieval a força de uma revelação no plano do direito". Por isso, a solução para a superação de tal impasse era o constante esforço interpretativo e criativo. A principal herança histórica dessa Escola. A ideologia que permeia a igreja romana medieval é a de que o Direito romano refletia o Direito da Humanidade, do gênero humano. Tal fato reflete a crença na sua pretensa dignidade histórica e autoridade metafísica (ligada ao surgimento do Cristianismo). O Corpus Iuris Civile não era utilizado apenas por juristas, mas também por teólogos em escritos sobre a moral. Percebe-se que a adoção do Direito Justinianeu não era apenas uma questão técnica-formal, mas também uma necessidade daquela sociedade em resgatar um fundamento seguro para uma ética político-social. O Direito Justinianeu chegou a ser considerado a ratio scripta. Em relação às técnicas de estudo, a expositiva é trazida do trivium escolástico para o estudo do Direito, absorvendo-se muitas de suas características. São comuns o uso da glosa gramatical ou semântica, a interpretação dos textos, a concordância e a distinção. A interpretação dos glosadores, entretanto, difere das exegeses modernas. Sua técnica de interpretação está calcada na harmonização-estruturação de idéias pautadas em princípios predeterminados pelo fundamento da autoridade. Em sua interpretação, os glosadores, não precisavam (e nem pretendiam) por a prova a justiça do texto clássico (afinal o texto era sacro e, portanto, intocável); também não pretendiam compreendê-lo ou fundamentá-lo historicamente; nem tampouco buscavam conciliá-lo com a necessidade prática. "O que eles queriam era antes comprovar com o instrumento da razão – que, para eles, era constituído pela lógica escolástica – a verdade irrefutável da autoridade". Por ser parte de uma verdade absoluta, cada parte do texto constitui, em si mesma, uma verdade absoluta. A glosa (comentário escrito nas margens do texto) é, portanto, a forma básica utilizada. Destacam-se os estudos de figuras de dedução lógica aristotélica, aliás, a utilização da filosofia aristotélica em contraposição a perspectiva da filosofia platônica irá ser uma das influências na formação da racionalidade moderna. Perceba-se que apenas parte da filosofia aristotélica é absorvida (analítica), olvidando-se da dialética. Os glosadores também realizavam atividades que Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 146 infinita entre os alunos do curso de direito até ficar decidido por professores ou alunos quem teria vencido o embate. Maria Stella de AMORIM (2006:107), uma das pesquisadoras do direito brasileiro que analisa esta lógica em sede dos Juizados Especiais Civis do Rio de Janeiro, nos informa que a lógica do contraditório é definida e se opera da seguinte maneira: A característica essencial dessa lógica, a despeito de sua estrutura aberta, encontra-se na supressão da possibilidade de os participantes alcançarem concordância, sejam eles partes do conflito, operadores jurídicos ou doutrinadores, o que sugere ausência de consenso interno ao saber produzido no próprio campo e, no limite, falta de consenso externo, manifesto na distribuição desigual da justiça entre os jurisdicionados pelas mesmas leis que lhes são aplicadas e pelos mesmos tribunais que lhes ministram a prestação jurisdicional. Esta forma de raciocínio caracteriza-se, a despeito de uma estrutura aberta, na supressão da possibilidade de os participantes alcançarem concordância, sejam eles partes do conflito, operadores jurídicos ou doutrinadores, o que sugere ausência de consenso interno ao saber produzido no próprio campo e, no limite, falta de consenso externo, manifesto na distribuição desigual da justiça entre os jurisdicionados pelas mesmas leis que lhes são aplicadas e pelos mesmos tribunais que lhes ministram a prestação jurisdicional. Depreende-se, então, da paisagem acima, que esta lógica não opera consensos ou verdades consensualizadas, que permitiriam fosse administrado o conflito social trazido aos tribunais. Pelo contrário, o contraditório fomenta mais conflitos, pois os devolve a sociedade sem a devida apreciação. pretendiam a compatibilização de textos contraditórios – através de operações de divisões/subdivisões e sínteses – a fim de comprovar o caráter absoluto e total contido nas verdades dos textos.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 147 A lógica do contraditório, então, quando confundida com o princípio do contraditório leva a crença de que as discussões jurídicas brasileiras e, como tal, as do Supremo Tribunal Federal, sejam democráticas, tolerantes e construtoras de verdades, pois, se estaria dando oportunidades iguais de todos que estivessem participando da ação comunicativa falar. Como já dito neste item da tese é demonstrar que esta lógica também se opera entre os Ministros do Supremo Tribunal Federal nas discussões e construções de seus votos, ao menos quanto a temática da intervenção federal, que fora nosso universo de análise. O primeiro exemplo da existência desta lógica em sede do Supremo Tribunal Federal está na seguinte situação: os Ministros almejam que suas teses sejam vencedoras sem ouvir com atenção, e com contra argumentação, as tese levantadas pelos seus pares ou pelas partes. O segundo exemplo pode ser traduzido nesta afirmação: os Ministros levantam questões novas que não estavam no debate. O terceiro se resume ao fato de que se a Corte é um órgão colegiado, em tese teria sido formado um consenso para se decidir. Ocorre que este consenso é aparente, pois na verdade existe uma mera soma de votos pela procedência ou improcedência do pedido. Na verdade estas afirmações realizadas pela Corte são meros argumentos de autoridade operados pela bricolagem. Finalmente, esta lógica acaba por caracterizar uma retórica, ou seja, uma técnica de articulação oratória e argumentativa própria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, e definir um cenário de que a Corte não está lá para decidir questão alguma afeta a intervenção federal, simplesmente se estabelece um exercício de oratória entre eles, um grande espetáculo da grandiloqüência. O que, por fim, demonstra também a nítida proteção do Estado em detrimento aos direitos dos cidadãos. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 148 CONCLUSÃO Esta tese de doutorado em Direito situa o papel assumido pelo Supremo Tribunal Federal, e como tal pelos seus Ministros, na construção e na tentativa de legitimação dos seus discursos decisórios em situações de questionamento da estabilidade constitucional e da guarda das cidadanias, considerando a vigência do Estado Democrático de Direito e privilegiando o suporte teórico da Semiolinguística do Discurso. A hipótese que se buscou investigar, e que restou comprovada pela pesquisa realizada, é de que diante de situações explícitas de instabilidade institucional do Estado brasileiro, e como tal da própria Constituição, o Supremo Tribunal Federal, que se autoreferencia como guardião das cidadanias e árbitro da sociedade democrática123, adota um espírito de corpo, 123 Como exemplos destas autoreferencias: Excerto: O julgamento da ação direta de inconstitucionalidade não leva em conta situações concretas a serem dirimidas na via apropriada. Examina-se a compatibilidade constitucional a partir do caráter abstrato da norma. Da mesma, há, de proceder-se diante da necessidade de buscar-se solução para o quadro de insolvência supra-referido. O caráter político do julgamento da ação direta de inconstitucionalidade sofre limitação decorrente da supremacia da Carta Federal, sob pena de vir à balha, em prejuízo de toda a sociedade e dos avanços no campo democrático, a insegurança. O Estado não pode contar com o privilégio de editar a lei, aplicá-la e vê-la sopesada pelo Judiciário ao sabor de política governamental, a partir de óptica tendenciosa, sempre isolada e momentânea, sempre a revelar o oportunismo de plantão. Ao Estado-juiz, especialmente ao Supremo Tribunal Federal, cumpre, em razão de compromisso maior - e a história é uma cobradora infatigável - zelar pela intangibilidade da ordem jurídico-constitucional, pouco importando que, assim o fazendo, seja incompreendido. É de se ter presentes as palavras de Calamandrei, citado por Edgar de Moura Bittencourt em “O Juiz”, segundo as quais há mais coragem em ser justo, parecendo injusto, do que ser injusto para salvaguardar as aparências de justiça. Os incautos, os míopes, os pobres de espírito democrático, não esperem do Supremo Tribunal Federal atitude acomodadora, por mais convidativa que seja a quadra, já que se afigura, na concepção da Carta da República, como o Juiz Maior da Federação, não se lhe sendo opostos óbices ao cumprimento do dever constitucional de assegurar a intangibilidade da ordem jurídica. Enunciador: Min. Marco Aurélio, IF nº164-1/SP. Excerto:O Supremo Tribunal Federal fixou, desde o início, que a decisão, na ação direta, configurava um ‘aresto, um acórdão’, que punha termo ao contencioso da inconstitucionalidade. O Tribunal desempenhava, assim, a função de árbitro supremo que ‘(...) intervém, se provocado, no conflito aberto entre a Constituição, que lhe cumpre resguardar, e a atuação deliberante do poder estadual’. Como se vê, as primeiras decisões do Supremo Tribunal Federal já atribuíam à representação interventiva o caráter de uma relação processual contraditória, na qual o Procurador-Geral da República representava os interesses da União, enquanto guardiã da federação, buscando assegurar a observância pelo Estado-membro dos princípios consagrados no art. 7°, VII, da Constituição Federal. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 149 como parte do Estado, se escamoteando por uma gramática que opera pelas estruturas da lógica do contraditório, do processo civil como estratégia de poder e do modus operandi da bricolagem. O Supremo Tribunal Federal nunca provê os requerimentos de intervenção federal, apesar de circunstâncias claras para fazê-lo. Desta forma, a Corte protege os interesses privados do próprio Estado, como pessoa jurídica de Direito Público. Para tanto, foram analisadas 19 decisões, muitas com ausência dos votos de todos os Ministros, durante o período de 1988 a 2008, que tiveram como temática comum o instituto jurídico da intervenção federal, a qual, vale lembrar, possibilita vislumbrarmos o Supremo Tribunal Federal a se manifestar em relações a circunstâncias de força, poder e desrespeito explícitos a ordem constitucional. Nossa análise tem como ponto de partida a expressão chave intervenção federal, articulando o seguinte universo de temas: 1) Regras de competência e reintegração de posse (2 decisões); 2) Usurpação de competência e precatório (1 decisão); 3) Precatório descumprido por Município (1 decisão); 4) Precatórios (9 decisões); Reconhecia-se, assim, a representação interventiva como peculiar modalidade judicial de composição de conflito entre a União e os entes federados. Não se tem aqui, pois, um processo objetivo (objektives Verfahren), mas a judicialização de conflito federativo atinente à observância de deveres jurídicos especiais, impostos pelo ordenamento federal ao Estado-membro. Daí considerar Bandeira de Mello, com acerto, que, no caso, se trata de exercício do direito de ação, cuja autora seria a União, representada pelo Procurador-Geral da República, e o réu, o Estado federado, atribuindo-se-lhe ofensa a princípio constitucional da União. Enunciador: Min. Celso de Mello, IF nº 102-1/PA. Excerto: Sucede, porém, que esta Corte – a quem a Constituição confere a sua competência maior de garantir o equilíbrio da Federação, de atuar como um autêntico poder moderador nas relações entre a União e os Estados-membros, ou nos conflitos que ocorram entre essas Unidades da Federação ou seus Poderes, - por mais sensibilizada fique com acontecimentos de tão profundo teor humano, os quais merecem a mais veemente reprovação, não só dos membros do Tribunal, mas de toda a sociedade, não pode deixar de ter presente o bem maior do equilíbrio federativo. Dai o caráter excepcional da intervenção federal. Enunciador: Min. Néri da Silveira, IF nº 114/ MT. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 150 5) Intervenção em Município (1 decisão); 6) Assegurar direitos humanos (1 decisão); 7) Descumprimento de ordem judicial (1 decisão); 8) Desrespeito a princípio constitucional sensível (1 decisão); e, 9) Invasão de um Estado-membro em outro (1 decisão). Optamos definir alguns enunciados de teses enquanto tópicos doutrinários, visto que por teses faz-se necessário o embasamento científico, recorrente ou que elas deveriam ser problematizadas nas discussões dos Ministros. Quanto à temática das “regras de competência e reintegração de posse”, constata-se uma compreensão ambígua do que é literalidade para os Ministros, como também, do que vem a ser o princípio da segurança jurídica. Em relação a “usurpação de competência e precatório” verifica-se que o problema da competência não é de mera divisão de tarefas, mas sim, uma disputa de poder entre os tribunais. O que nos leva ao seguinte questionamento: Qual é o espaço de autonomia dos Tribunais de Justiça? Quanto a “precatório descumprido por Município”, sublinha-se a ambígua compreensão do que é literalidade para os Ministros. Analisando, entretanto, o tema dos “precatórios”, aponta-se para discussão relativa a escusa da ilegitimidade ativa, da dificuldade financeira por parte dos Estados, do calote público, da responsabilidade civil subjetiva ou objetiva do Estado, da aplicação do princípio da proporcionalidade, do tempo de duração razoável dos processos, do seqüestro de bem público, a perda de sentido da supremacia do interesse público sobre o privado, da desigualdade jurídica entre o Estado e o cidadão e, finalmente, se escamoteia a força do precedente. Em relação a “intervenção em Município”, apresenta-se uma posição dúbia do que é literalidade para os Ministros. Já na temática “assegurar direitos humanos”, discute-se o papel da Corte em assegurar tais direitos. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 151 Trabalhando com a temática “descumprimento de ordem judicial”, vislumbra-se a existência de uma cultura de pessoas não legitimadas, pedirem a intervenção, o que acaba por demonstrar, a falta de consenso entre os atores do campo jurídico. Depreende-se do tema “desrespeito a princípio constitucional sensível”, caso inédito no Supremo Tribunal Federal, e 1ª Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva julgada na Corte após 1988, o debate que tratou como um fato isolado de violência, com elogios a atitude do Procurador Geral da República e com digressões acerca da violência na sociedade brasileira. Finalmente, a “invasão de um Estado-membro em outro” apresentou a discussão do papel do Supremo Tribunal Federal e da ausência de direito público subjetivo ao Governador de Estado para obrigar o Presidente da República a decretar intervenção federal. Configurou-se em todas as decisões analisadas que as estruturas da gramática decisória são: 1) O modus operandi da bricolage; e, 2) A lógica do contraditório. Como foi visto nesta tese, ao falarmos da doutrina jurídica, o modus operandi do bricoleur também está presente na construção das decisões judiciais analisadas. Esta atividade caracteriza-se pela articulação de um repertório de elementos simbólicos e de representações limitados para a tarefa que o bricoleur tem a realizar, esvaziando o significado original (descontextualização) do signo, substituído por um inteiramente novo, próprio e individual aos interesses da obra que pretende criar. O repertório limitado usado nos discursos dos ministros constitui-se dos seguintes signos: 1) Citação de doutrinadores, reconhecidos pelo campo jurídico como pessoas autorizadas; 2) O uso do tom doutrinário, os Ministros realizam, seguindo a lógica taxonômica que desenvolvemos ao falarmos da doutrina jurídica, definições e Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 152 discussões acerca da natureza jurídica dos institutos jurídicos e categorizações; 3) Citação de jurisprudências, como argumentos de autoridade, mas sem a devida explicitação do que vincularia nos precedentes citados; 4) Citação de jurisprudências anteriores a Constituição de 1988, como argumentos de autoridade, mas sem a devida explicação de porque estas decisões ficaram vinculadas, visto estarmos diante de bases valorativas e constitucionais diversas; 5) Discursos de mera autoridade e afirmação, que leva em conta a simples autoridade que estes Ministros gozam no campo jurídico; 6) Citações auto-referentes praticadas pelos ministros, de forma aberta ou inversamente sem indicação; 7) O uso ipsis litteris dos pareceres dos Procuradores Gerais da República como se fossem seus relatórios; 8) O uso do processo civil como uma estratégia de evitar a decisão do mérito da questão, omitindo-se do enfrentamento da disputa federativa, deixam de decidir por uma escusa processual, como a ilegitimidade ativa; 9) O uso e interpretações de citações legais como argumento de autoridade; e, finalmente, 10) O uso de digressões históricas e doutrinárias, afim de ser demonstrada erudição e autoridade pela força da tradição. O outro pilar da estrutura argumentativa dos Ministros, e como vimos acima neste trabalho, presente em todo o campo jurídico brasileiro, é a lógica do contraditório. Esta forma de raciocínio caracteriza-se, a despeito de uma estrutura aberta, na supressão da possibilidade de os participantes alcançarem concordância, sejam eles partes do conflito, operadores jurídicos ou doutrinadores, o que sugere ausência de consenso interno ao saber produzido no próprio campo e, no limite, falta de consenso externo, manifesto na distribuição desigual da justiça entre os jurisdicionados pelas mesmas leis que Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 153 lhes são aplicadas e pelos mesmos tribunais que lhes ministram a prestação jurisdicional. Tal forma de raciocínio demonstra que não existe consenso nos fundamentos levantados pelos Ministros. O falso consenso se dá, pois existe a soma dos votos pela procedência ou improcedência dos pedidos. Este modo de raciocínio, reforçado pelo modus operandi da bricolage, estrutura-se em uma cultura de persuasão pela autoridade, que nos faz afirmar não ser possível analisar as decisões judiciais pelo prisma das teorias da argumentação, que buscam o convencimento e, como tal, o consenso. Este fato nos leva a afirmar também, não existe uma cultura de precedentes no Supremo Tribunal Federal, possibilitando o questionamento sobre os argumentos de autoridade, ou da falta de consenso nas justificativas ou fundamentos. Sendo assim, as análises que implementamos na presente tese nos direciona para o papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal e suas relações com o poder, com a legitimidade e com a guarda da Constituição: 1) A Corte foi omissa em todos os pedidos de intervenção federal por ela julgado, não requisitando nada. O que demonstra a nítida proteção do Estado em relação aos cidadãos; 2) A Corte apesar de em diversas decisões se auto referir como o árbitro da sociedade e guardião das cidadanias, assume, algumas vezes explicitamente, que a Constituição está sendo desrespeitada e nada faz em relação a isso, até decidir de forma arbitrária, como simples autoridade dada pela lei. Tal fato nos encaminha para a terceira conclusão. 3) O Supremo Tribunal Federal tem um esprit de corps, suas práticas decisórias em relação a intervenção federal revelam uma tomada de partido em favor da figura do Estado, que ele participa enquanto corpo. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 154 BIBLIOGRAFIA - Livros e Períodicos: ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. AGRA, Walber de Moura. 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Julgamento em: 06/12/1989, publicado no DJ de 23/03/1990 p. 1574. Disponível em <http://www.stf.jus.br>. Acessado em 08/03/2008. Intervenção Federal 120-0/PR. Relator: Min. Sydney Sanches. Julgamento em: 10/02/1993, publicado no DJ de 05/03/1993 p. 1694. Disponível em <http://www.stf.jus.br>. Acessado em 08/03/2008. Agravo Regimental em Intervenção Federal 2045-0/SP. Relator: Min. Ellen Gracie. Julgamento em: 13/09/2006, publicado no DJ de 29/09/2006 p. 2249. Disponível em <http://www.stf.jus.br>. Acessado em 08/03/2008. Agravo Regimental em Intervenção Federal 506-0/SP. Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgamento em: 05/05/2004, publicado no DJ de 25/06/2004 p. 2157. Disponível em <http://www.stf.jus.br>. Acessado em 08/03/2008. Intervenção Federal 164-1/SP. Relator: Min. Marco Aurélio p/acórdão Min. Gilmar Mendes. Julgamento em: 03/02/2003, publicado no DJ de 14/11/2003 p. 2132. Disponível em <http://www.stf.jus.br>. Acessado em 08/03/2008. Intervenção Federal 2915-5/SP. Relator: Min. 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O SENHOR MINISTRO SYDNEY SANCHES (PRESIDENTE/RELATOR) – O ilustre Subprocurador-Geral da República, Doutor ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA, no parecer de fls. 128/132, aprovado pelo Exmº. Sr. Procurador-Geral, Doutor ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA, resumiu a hipótese e, em seguida, opinou, ‘in verbis’: Intervenção Federal. Descumprimento de requisição de força policial para execução de liminar deferida em ação de reintegração de posse. Incompetência do STF. Art. 36, II, CF/88. Art. 19, I, Lei nº 8.038/90. Hipótese em que a requisição compete ao STJ já que a causa não se fundamenta em matéria constitucional. Presença do pressuposto a requisição pleiteada. Senhor Relator, 1. O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina requer seja decretada a intervenção federal no referido Estado para que se possa dar cumprimento a mandado de reintegração de posse expedido em favor de Roberta de Araújo Gondin Crochi, nos autos de ação de reintegração de posse ajuizada perante o Juízo de Direito da Comarca de Abelardo Luz-SC. É que a ordem liminarmente deferida em 06/09/89 ainda não foi cumprida porque o Governo do Estado de Santa Catarina não fornece o contingente policial necessário a sua efetivação, apesar das sucessivas requisições. 2. A despeito do pedido estar sendo processado perante esta Egrégia Corte desde junho de 1990 (fls. 73) reputo indispensável que se realize o exame da competência para o seu processo e julgamento, em razão do que dispõe o inciso II do art. 36, da Constituição Federal. ‘Art. 36. A decretação da intervenção dependerá: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 181 II- no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral.’ 4. Embora a norma constitucional em vigor (art.36,II) não indique expressamente como deve ser feita a partilha da competência entre as mencionadas Cortes, parece que o único critério adequado para tal desiderato é o que estabelece a divisão segundo a matéria. Os comentadores da Constituição Federal de 1988, que se ocuparam do tema, manifestam idêntica opinião: ‘A Constituição não esclarece em que hipótese a requisição deverá ser feita pelo Supremo Tribunal Federal, em qual, pelo Superior Tribunal de Justiça, ou quando, pelo Tribunal Superior Eleitoral. É, todavia, óbvio que a requisição não poderá provir deste último senão em questões eleitorais. Devese presumir que parta do Superior Tribunal de Justiça na generalidade dos casos e do Supremo Tribunal Federal sempre que concernir à guarda da Constituição’ (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, in Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Saraiva, 1990, p.239). ‘III- no caso de desobediência à ordem ou decisão judicial (inc. VI do art. 34) de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral, segundo a matéria, não se diz no texto, mas evidentemente de conformidade com as regras de competência jurisdicional ‘ratione materiae’; (José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo, RT, 1989, 5a. edição, p. 419). 5. A Lei nº 8.038, de 28 de maio de 1990, em seu artigo 19, inciso I, indica o mesmo critério: ‘Art. 19. A requisição de intervenção federal prevista nos incisos II e IV do art. 36 da Constituição Federal será promovida: I – de ofício, ou mediante pedido de Presidente de Tribunal de Justiça, ou de Presidente de Tribunal Federal, quando se tratar de prover a execução de ordem ou decisão judicial, com ressalva, conforme a matéria, da competência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral.’ 6. A adoção de tal critério de divisão da competência ressai também da aplicação analógica do art. 25 da Lei nº 8.038/90, que prevê a competência do Presidente do Superior Tribunal de Justiça para a generalidade dos casos em que se postula a suspensão de execução de liminar ou de decisão concessiva de mandado de segurança, excluídas apenas as hipóteses em que ‘a causa tiver por fundamento matéria constitucional’, quando tal competência será do Presidente do Supremo Tribunal Federal. 8. Diante de tais considerações, ao que penso, o processo e julgamento do pedido de intervenção federal em exame não compete a essa Excelsa Corte, mas sim ao Superior Tribunal de Justiça, pois que se fundamenta no alegado Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 182 descumprimento de ordem expedida por juiz estadual em ação de reintegração de posse, causa evidentemente fundada em matéria infraconstitucional. 9. Na hipótese de entender-se que a competência é desse Egrégio Tribunal, o pedido formulado deve ser atendido. É que está plenamente caracterizado o pressuposto constitucional para a requisição da intervenção federal, conforme já anotou na manifestação anterior (fls. 84/85). O prazo de 120 (cento e vinte) dias solicitado pelo Governador do Estado de Santa Catarina ‘para dar cumprimento final da medida determinada’ (fls. 93), transcorreu sem que a requisição judicial tivesse sido atendida (fls. 119).’ Assim sendo, o parecer é no sentido: a) de que seja reconhecida a incompetência dessa Excelsa Corte para o processo e julgamento do pedido, com remessa dos autos ao Superior Tribunal de Justiça; ou, se rejeitada a preliminar, b) de que seja deferido o pedido, expedindo-se a necessária requisição de intervenção federal. Brasília, 08 de junho de 1992. ANTONIO FERNANDO BARRROS E SILVA DE SOUZA SUBPROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA. APROVO ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA.’ O SENHOR MINISTRO SYDNEY SANCHES (RELATOR/PRESIDENTE):- 1. Acolho o parecer da P.G.R., no ponto em que sustenta a incompetência do Supremo Tribunal Federal e a competência do E. Superior Tribunal de Justiça. É que a decisão exeqüenda, concessiva de medida liminar, em ação de reintegração na posse de imóvel, somente enfrenta questões federais infraconstitucionais, como se vê de fls. 27/33. O julgamento de eventual recurso para o Tribunal de Justiça ensejaria, em tese, recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça (art. 105, III da Constituição Federal). E não recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal (art. 102, III). 2. Isto posto, nos termos dos artigos 13, VII, e 21, parágrafo 1º, do R.I.S.T.F., declaro a incompetência do Supremo Tribunal Federal, não conheço, em conseqüência, do pedido e determino a remessa dos autos ao E. Superior Tribunal de Justiça, para processá-lo e julgá-lo, como de direito. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 183 Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 184 2- RECLAMAÇÃO Nº 2100-9/SP Data da Decisão: 13/03/2003. Relator: Min. Marco Aurélio. Tipo de Ação: Reclamação. Modalidade de Jurisdição: Híbrida (originária com natureza recursal (cassação)). Pólo Ativo: Gabriele Canestrelli e Cônjuge. Pólo Passivo: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Os reclamantes argúem a incompetência absoluta do Tribunal e do Presidente da Corte para reverem a decisão anterior, mediante a qual fora julgado procedente o pleito atinente à representação interventiva. E sustentam: ‘(...) ao extinguir a Representação Interventiva os Reclamados usurparam a competência desta Corte Suprema, tendo em vista que anteriormente o Tribunal Reclamado, Sessão Plenária (doc. 5-A), já havia deferido o processamento da Intervenção, tendo portanto cessado sua competência e de seu DD. Desembargador Presidente para analisar eventual incidência da Emenda Constitucional nº30/2000 no caso em tela, visto ser a Emenda posterior à decisão acolhendo a Representação Interventiva (doc. 5-A). Ora, deferido o pedido de Representação Interventiva pelo Tribunal Reclamado, somente este Colendo Supremo Tribunal Federal poderia analisar eventual incidência da Emenda nº30 no caso em questão, estando o Tribunal estadual impossibilitado de alterar sua anterior decisão de deferimento da Representação Interventiva, sendo certo que os autos encontravam-se em seu poder apenas para a realização de diligências determinadas por este Colendo Supremo Tribunal Federal, não sendo ele competente e muito menos, isoladamente, em DD. Desembargador Presidente, para extinguir o feito na fase em que se encontrava. Tal decisão vem a usurpar a competência desta Corte Superior, evidenciando o cabimento da presente reclamação, que deverá ser julgada procedente, com a seguir se requer (folha 5). Nas informações de folha 195 a 197, o Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo afirma que, por estar em discussão crédito de caráter não Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 185 alimentar, fora este alcançado pela Emenda Constitucional nº30/2000, o que justificaria o procedimento da Corte. A Procuradoria Geral da República, no parecer de folha 201 a 204, preconiza a improcedência do pleito formulado na reclamação. Eis a síntese da peça: Reclamação. Complemento de Precatório. Representação Interventiva. EC nº30. Prazo concedido à Fazenda Pública para pagamento de precatório. Extinção da Representação pelo TJ/SP. Ausência de usurpação de competência do STF. Parecer pela improcedência da reclamação. Os fatos são incontroversos. Mediante o despacho de folha 61, o então Presidente desta Corte, nos autos do processo da Intervenção Federal nº3458, implementou diligência, consignando: ‘a fim de que se explicitem, mês a mês, os percentuais aplicados na correção monetária do débito pelo juízo da execução e pelo departamento de contabilidade do tribunal e, se for o caso, se ratifique, ou não, o pedido da requisição da intervenção federal’. Nota-se que a previsão de tal ratificação decorreu da possibilidade de a Corte de origem chegar à conclusão sobre a satisfação do valor do precatório, isso ante os índices observados. Na espécie, foi-se além, apontando-se a superveniência de disciplina constitucional, ou seja, o fato de haver sido promulgada a Emenda Constitucional nº 30, e, então, declarou-se extinto o processo de intervenção por motivo diverso daquele que motivara a diligência. Por maior que seja o apego ao pragmatismo, adentrou a Corte de origem campo próprio à atuação desta Corte. Em tramitação, já aqui, o processo interventivo, o incidente alusivo à Emenda Constitucional nº30 somente poderia ser dirimido neste Plenário. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 186 3- INTERVENÇÃO FEDERAL – QUESTÃO DE ORDEM Nº 105-6/PR Data da Decisão: 03/08/1992. Relator: Min. Sydney Sanches. Tipo de Ação: Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Originária. Pólo Ativo: José Manoel Pinto de Camargo e sua mulher. Pólo Passivo: Estado do Paraná. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: - Intervenção Federal. Legitimidade ativa para o pedido. Interpretação do inciso II, do art. 36 da Constituição Federal de 1988, e dos arts. 19, II e III, da Lei n. 8.038, de 28.05.1990, e 350, II e III, do R.I.S.T.F.. A parte interessada na causa somente pode se dirigir para prover a execução de decisão da própria Corte. Quando se trate de decisão de Tribunal de Justiça, o requerimento de intervenção deve ser dirigido ao respectivo Presidente, a quem incumbe, se for o caso, encaminhá-lo ao Supremo Tribunal Federal. Pedido não conhecido, por ilegitimidade ativa dos requerentes. RELATÓRIO O SENHOR PRESIDENTE SYDNEY SANCHES: Trata-se de pedido de intervenção federal no Estado do Paraná, formulado por JOSÉ MANOEL PINTO DE CAMARGO e sua mulher, sob alegação de preterição no pagamento de precatório judicial. Sustentam, em síntese, que são credores do Estado do Paraná, conforme precatório n. 27.512/85, de 06.11.1985, e aduzem que precatórios mais recentes (11.443/86, de 14.05.1986, 14.798, de 20.06.1986 e 15.954, de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 187 29.06.1987), teriam sido satisfeitos com ofensa ao princípio da precedência (art. 100 da Constituição Federal). Após as informações do Presidente do Tribunal de Justiça (fls. 209) e do Governador do Estado (fls. 234/253), opinou a ilustrada Subprocuradoria Geral da República pelo indeferimento (fls. 257/259 e 282). Trago os autos à consideração do E. Plenário para exame de questão de ordem, relativa à legitimação ativa para o pedido de intervenção federal. É O RELATÓRIO. VOTO O SENHOR MINISTRO SYDNEY SANCHES (RELATOR/PRESIDENTE): 1.Os requerentes são partes ilegítimas para pedir a intervenção federal. Com efeito, o art. 350 do R.I.S.T.F., referindo-se ao art. 11, § 1º , da E. C. no. 1/69, dispõe, “verbis”: “Art. 350. A requisição de intervenção federal, prevista no art. 11, § 1º, “a”, “b” e “c”, da Constituição, será promovida: .......... . .......................................... II – de ofício, ou mediante pedido do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado ou de Tribunal Federal, quando se tratar de prover a execução de ordem ou de decisão judiciária, com ressalva, conforme a matéria, da competência do Tribunal Superior Eleitoral e do dispositivo no inciso seguinte; III – de ofício, ou mediante pedido de parte interessada, quando se tratar de prover a execução de ordem ou decisão do Supremo Tribunal Federal.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .”. No mesmo sentido, após o advento da Constituição de 1988, é o disposto no art. 19 da Lei n. 8.038, de 28.05.1990: “Art. 19 – A requisição de intervenção federal prevista no incisos II e IV do art. 36 da Constituição Federal será promovida: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 188 I – de ofício, ou mediante requisição de Presidente de Tribunal de Justiça do Estado, ou de Presidente do Tribunal Federal, quando se tratar de prover a execução de ordem ou decisão judicial, com ressalva, conforme a matéria, da competência do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior Eleitoral; II - de ofício, ou mediante pedido da parte interessada, quando se tratar de prover a execução de ordem ou decisão do Superior Tribunal de Justiça; III ..................................................................................................................”. 2. Como se vê, a legitimidade ativa para o pedido de intervenção federal, na hipótese em que se pretende prover à execução de ordem ou decisão judicial, só é atribuída à parte interessada quando a ordem ou decisão emana do próprio Supremo Tribunal Federal, ou do Tribunal de Justiça. 3. Bem salientou, a propósito, o eminente Ministro MOREIRA ALVES, no julgamento da I.F. n. 81, “verbis”: “Ao contrário do que sucede com o inciso III desse mesmo artigo – que atribui legitimidade ativa à parte interessada quando se tratar de execução de ordem ou decisão do Supremo Tribunal Federal – o inciso acima transcrito não dá tal legitimatio ao interessado” (RTJ 114/447). 4. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não reconhece, em hipótese como a dos autos, legitimidade à parte interessada, “verbis”: “........................................................................................................................ Falta de legitimidade do requerente, uma vez que a requisição de intervenção federal, prevista no art. 11, § 1º, “b”, da Constituição, depende de iniciativa do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado 9art. 350, II, do Regimento Interno do S.T.F.). ........................................................................................................................” (R.T.J. 120/949, Rel. Ministro MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno). “Intervenção Federal. Se o Presidente do Tribunal de Justiça local – que tem legitimidade para provocar o exame da requisição da intervenção federal, que só se fará a preservação da autoridade da Corte que ele representa – entende que a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 189 intervenção federal não cabe no caso, não pode o S.T.F., de ofício e à vista do encaminhamento por aquela Presidência do pedido de intervenção federal feito pelo interessado e por ela repelido, examiná-lo. Agravo regimental a que se nega provimento” (R.T.J. 114/443, Rel. Ministro MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno). 5. No caso, a parte interessada sequer provocou a manifestação do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná para que este, nos termos do inciso II do art. 350 do R.I.S.T.F., tomasse a iniciativa do pedido de intervenção federal. 6. Nem se pode cogitar de providência “ex officio”, porque esta só tem cabimento quando não há manifestação expressa da autoridade legitimada para provocá-lo – no caso, o Presidente do Tribunal local. É da natureza do procedimento “ex officio” que seja ele supletivo (o que implica omissão da autoridade legitimada em requerer a providência). Aqui, não houve omissão do legitimado, mas sim da parte interessada, que não o provocou. 7. Anoto, de passagem, que, segundo as informações do Presidente do Tribunal de Justiça, que se reportam ao documento de fls. 10, os precatórios supostamente satisfeitos, foram, na verdade, cancelados. 8. Salientou, ainda, a ilustrada Subprocuradoria Geral da República, “verbis”: “E na hipótese dos autos, mesmo que estivesse demonstrado o desrespeito à ordem de precedência para o pagamento de precatórios judiciais, a solução seria o seqüestro de verba previsto no art. 100, § 2º, parte final, da Constituição da República, e que não compete ao Supremo Tribunal Federal” (fls. 258). 9. De qualquer maneira, não tendo os requerentes legitimidade ativa para formular o pedido de intervenção federal, dele não conheço. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 190 4- INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 101-3/MA Data da Decisão: 06/12/89. Relator: Néri da Silveira. Tipo de Ação: Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Originária. Pólo Ativo: Centro Oeste Distribuidora de Madeiras e Outras. Pólo Passivo: Estado do Maranhão. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: Intervenção Federal. Precatórios. Pedido de seqüestro de valores ainda não decidido pelo Tribunal do Estado, perante o qual pende de julgamento, também, pedido de intervenção federal no Estado. Não cabe substituir por pedido de intervenção federal o que caberia discutir em pedido de seqüestro. De eventual preterição de direitos das requerentes há de dizer a Corte local. Carência de ação. Arquivamento do pedido. RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO NÉRI DA SILVEIRA (RELATOR): - CODIMA S/A – Centro Oeste Distribuidora de Madeiras e outra, com sede, respectivamente, em Luziânia-GO, e São-Luiz-Maranhão, pedem a intervenção federal, neste último Estado, na forma do disposto no art. 100 combinado com o art. 34, VI, e 36, II, da Lei Maior, “porquanto até a presente data não cumpriu o Estado do Maranhão o estabelecido no parágrafo 1º do art. 100, da Constituição Federal que manda incluir obrigatoriamente no seu orçamento pagamento do débito constante do Precatório Judicial, atualizado, em 01 de julho do ano fluente, para pagamento, até o final do exercício seguinte”. Resumiu a Procuradoria-Geral da República, às fls. 54/55, os fundamentos da súplica, verbis: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 191 “2. Alegam, para tanto, que o Senhor Secretário da Fazenda do Estado do Maranhão se recusa a atender o ofício do Exmo. Sr. Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça, em que são solicitadas as providências para pagamento de precatórios expedidos em favor dos requerentes, com o que estaria configurado o descumprimento de ordem ou decisão judicial, que ensejaria a medida intentada. 3. O pedido se faz acompanhar de cópias de documentos referentes á matéria, sendo relevantes, no entanto, para definição do requerido, apenas as de fls, 11/13, 18/19 e 21 dos autos, sendo os demais estranhos à pesquisa sobre a confirguração de descumprimento de ordem ou de decisão judicial. 4. Do exame dos mesmos, constata-se somente que os requerentes, na realidade, são beneficiários de precatórios, e que reclamaram ao Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, contra a preterição de seus direitos, reclamação esta encaminhada ao Senhor Secretário da Fazenda (fls. 21).” 5. Na inicial destacam, ainda, as requerentes, às fls. 5: “8. Até a presente data o Estado tem se evadido de pagar o Precatório e de incluí-lo no orçamento Estadual para este fim, conforme comprova o telegrama fonado não respondido pelo atual Secretário de Fazenda do Estado do Maranhão, (doc. 06). 9. Em virtude do Requerimento feito pelo Dr. PEDRO AMÉRICO DIAS VIEIRA, em 12 de agosto de 1986, doc. 07, o Presidente do Tribunal em 13 de agosto de 1986, solicitou ao Secretário de Fazenda informações sobre a inobservância da ordem chegada do Precatório, descumprindo assim o disposto no art. 237, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Maranhão (doc. 08). 10. Interpôs, ademais, o Estado do Maranhão uma ação rescisória contra o acórdão transitado em julgado, vulnerando o disposto na súmula 129 do TFR, porque não fez o depósito de 5% (cinco por cento), sobre o valor da causa, como determina o estatuído no art. 488, inciso II, do CPC e não está o Estado do Maranhão isento de fazê-lo porquanto a Ré, ITERMA, é uma Autarquia Estadual e o Estado é Litisconsorte Passivo, tendo, além disso, interposto ação rescisória, após o biênio e a referida ação não tem efeito suspensivo, de conformidade com o exposto no art. 489, do CPC – (doc. 09).” Às fls. 61/64, as suplicantes reiteraram fundamentos da petição inicial, anotando: “1. As empresas acima mencionadas exauriram todas as medidas judiciais cabíveis para o recebimento do Precatório, processo n. 1.602/86-TJ, sem lograrem êxito. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 192 2. Requererem o seqüestro do dinheiro público, para ressarcimento do que lhes era devido, o que foi denegado pelo Tribunal de Justiça do Maranhão, conforme comprova documento em anexo, datado, de 16/10/87. 3. A Certidão que ora pede juntada, comprova que, por unanimidade, O Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão indeferiu o pedido de cumprimento do art. 236 do Regimento Interno do Tribunal do Maranhão, não obedeceu a Ordem de Pauta de pagamento, tendo em vista que o despacho da Presidência, hoje, é de mero encaminhamento. 4. As empresas postulantes alegaram e provaram, que o Precatório, com respaldo no próprio Regimento do Tribunal do Maranhão, não obedeceu a Ordem de Pauta de pagamento, tendo sido preterido por outros posteriores. 5. O direito a ordem de preferência foi violado, na pauta conforme documentos 7 e 8 já anexados. de pagamento 6. Não houve resposta, sob pena de aceitação do descumprimento da CartaMagna, do Sr. Secretário da Fazenda do Estado do Maranhão, do Telegrama Fonado, com alicerce no disposto no inciso XXXIV, do artigo 5º, da atual Carta Magna. 7. Foi solicitado, através de Telegrama Fonado, datado de 11/11/88, a informação referente a inclusão no Orçamento Estadual, quanto ao pagamento do Precatório Judicial, na forma do disposto no art. 100, §1º, da atual Constituição Federal (Doc. 06, já anexado). 8. A ausência de resposta desrespeitando Norma Constitucional, configurou a não inclusão do Precatório Judicial no Orçamento Estadual, sem sombra de dúvidas. 9. Causa espécie que a Douta Procuradoria Geral da República exija dos Postulantes a produção de prova negativa, isto é, de que não receberam a indenização, figura nova, que os é familiar, passando a conhecer a partir do Douto Parecer, proferido pela Procuradoria Geral da República, inovando no campo do direito. 10. Levantou a Suspeição de que teriam recebido a indenização, o que incabível e desonrosa para as Requerentes, que jamais pleitearam, perante essa Excelsa Corte, algo que já tivessem recebido, o que seria um ato de insanidade, com imposição de cominações legais, dele decorrentes, impostas por essa Corte Maior. 11. Improcede e merece repulsa tal insinuação. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 193 12. Resulta claro, insofismável, que o Poder Judiciário do Estado do Maranhão está coacto, coagido, pelas provas produzidas neste pedido de Intervenção Federal, acatando medidas legais, que contariam, sem sombra de dúvida, a lei – O Código de Processo Civil foi inobservado, e o que é mais grave, houve um atentado à vigente Carta Magna, pelo Estado do Maranhão, do Presidente, que jurou defendê-la, “de mãos trêmulas, e de voz embargada, perante todo povo Brasileiro, na ocasião de sua promulgação, em transmissão de rádio e televisão. 13. Está estribado o pedido de Intervenção Federal, também, no disposto do art. 36, inciso 1º, da Carta Magna, que dispõe: “Art. 36 – A decretação da Intervenção Federal dependerá: I – Da requisição do Supremo Tribunal Federal, e a coação for exercida contra o Poder Judiciário.” 14. “Ex positis”, ficou evidenciado que o Poder Executivo do Estado do maranhão coagiu o Poder Judiciário do Maranhão, a aceitar e decidir “contra legem”, tudo é do agrado do Governo do Estado. 15. Mediante atitude do Tribunal de Justiça do Maranhão em não fazer cumprir sua própria decisão, depois de ter julgado e condenado por unanimidade o Estado do Maranhão a pagar a indenização à empresas Requerentes, através do Precatório, por ele mesmo emitido, interpôs-se a presente medida. As empresas lesadas, a quem deveriam recorrer? 16. Diante da gravidade dos fatos apresentados, com as provas em anexo, cabe, apenas, à Empresas Requerentes, apelarem a uma instância Superior, digna e respeitada em suas decisões, isenta de coações, que pode decidir, ministrando a Justiça, que até agora foi denegada e postergada, em consonância com o que compete a Carta Magna.” O Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão prestou as seguintes informações, às fls. 83/85: Em resposta ao ofício n. 305/P de 10 de 1989, no qual Vossa Excelência solicita informações sobre o Precatório Judicial e seu pagamento das empresas CODIMA S/A, Indústria Madeireira – Burisa, relativo ao Processo n. 1602/86TJ/MA, sirvo-me de presente para prestar os esclarecimentos que se fizerem necessários. Com efeito, encontram-se neste Tribunal os processos nos. 2466/87 – TJ e 5741/87 –TJ e do Pedido de Intervenção Federal com o objetivo de assegurar a satisfação do referido precatório em favor das já citadas empresas. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 194 Do Exame dos autos do processo 2466/86, verifica-se que o patrono dos requerentes, solicita inicialmente, o cumprimento da Decisão Judicial constante do respectivo precatório, instando a autoridade competente a cumprir as determinações pertinentes ao referido pagamento. A seguir, encontram-se reiterados ofícios enviados à autoridade competente, tendo informado a mesma que o objeto da demanda foi enviado à Procuradoria Geral do Estado, em 21/8/86. Às fls. 29 do presente processo, informa a Procuradoria Geral do Estado que não consta no referido órgão o registro dos ofícios de nos. 569/86 e 784/86 que acompanham o já mencionado Precatório. Presente, em 23 de julho de 1987, o Estado do Maranhão, por seu Procurador Geral, tendo tomado ciência do pedido de Seqüestro, formulou impugnação contra a medida pleiteada alegando que não houve o processamento adequado ao caso em espécie, conforme as determinações do Regimento Interno desta Corte de Justiça. Em sessão do dia 16 de setembro de 1987, o Estado do Maranhão, por seu Procurador Geral, alegando que interpôs o Mandado de Segurança n. 734 – São Luis ao qual foi dado provimento por esta Corte, com finalidade de dar efeito suspensivo ao Agravo de Instrumento que tem por objetivo revogar o despacho prolatado pelo MM. Juiz de Direito da 5ª Vara Cível da Comarca de São Luís, em execução de sentença processada nos Autos da Ação de Indenização, que tem como autoras as empresas já citadas e réus o Estado do Maranhão e o Instituto de Colonização e Terras do Maranhão – ITERMA. Alega, outrossim, que o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, estabelece e seu artigo 33, “verbis”. Ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos Precatórios Judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição.” Portanto, conclui os credores por precatórios estão compelidos a aceitarem as condições acima estabelecidas, não podendo opor nenhum obstáculo. Submetida referida solicitação à apreciação deste Tribunal, decidiu o mesmo, à unanimidade, “que sejam processados, separadamente, o pedido de seqüestro da quantia e o de intervenção federal no Estado, e que sejam, preliminarmente, obedecidas as formalidades legais”. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 195 Enviados os presentes autos ao parecer da Procuradoria Geral de Justiça, reservou-se o Órgão Ministerial, para manifestar-se sobre o conhecimento e mérito do pedido de Seqüestro e bloqueio da importância antes referida, após o julgamento e o trânsito em julgado da decisão que for preferida no Agravo de Instrumento. Em 15/2/89, este Tribunal, acolhendo referido parecer, decidiu aguardar o julgamento e o trânsito em julgado da decisão que foi proferida no já mencionado Agravo. Informo, outrossim, que, em relação aos autos do processo 5741/87-TJ, consta tratar-se de um pedido de Intervenção Federal referente ao Precatório 1606/86TJ, o qual se encontrava anexado ao Pedido de Seqüestro de Dinheiro Público e que foi processado em separado por decisão deste Tribunal e do qual consta o seguinte julgado: “Unanimemente, o Tribunal, determinou a retirada do processo da Agenda, até o julgamento do Agravo de Instrumento n. 886.” Quanto ao referido Agravo de Instrumento n. 886, (certidão anexa), esclareço, que pelas informações da seção competente encontra-se o mesmo na Procuradoria Geral da Justiça, aguardando a manifestação desse Órgão Ministerial.” Em nova petição, as peticionarias aduzem, verbis (fls. 91/92): “8. Resulta claro, conforme já rogado pelas partes, que o conjunto de provas, já apensadas ao processo, demonstra “quantum satis” que o Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão está coagido, coacto, pelo Poder Executivo daquele Estado. 9. A coação se comprova pelas decisões daquela Corte que passamos a enumerar. 1- Descumpriu o Estado a pauta de pagamento dos Precatórios, preterindo o direito de preferência das empresas, pagando precatórios de datas posteriores, sem reação do Tribunal. 2- Descumpriu o Tribunal o disposto no artigo 236, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, denegando o pedido de seqüestro de bens, sob a alegação de que aquele Tribunal decidira, por unanimidade, que a sua função seria hoje, de mero encaminhamento. 3- Acolheu o Mandado de Segurança, interposto pelo Estado, a destempo, contra ato interlocutório do juiz de primeiro grau, não sendo o remédio legal adequado, mas sim agravo de instrumento. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 196 4- Não fez cumprir o disposto no parágrafo 1º, do artigo 100, da Constituição Federal, que manda incluir obrigatoriamente, no Orçamento Estadual, os Precatórios Judiciais, apresentados até a data de 1º de julho de 1988, para pagamento total no exercício de 1989, independentemente de requerimento das partes. 5- Acolheu Ação Rescisória intentada intempestivamente vulnerando a Súmula 129, do Colendo Tribunal Federal de Recurso.” Às fls. 111/112, pediram as requerentes juntada de comprovante de haver o Agravo de Instrumento n. 886/88, do Tribunal de Justiça do Maranhão sido julgado pela Corte local, que lhe negou provimento, por maioria de votos, para manter o despacho agravado. Insistem na súplica de intervenção federal no Estado do Maranhão, à vista, também, do art. 36, I da Constituição, entendendo haver coação contra o Poder Judiciário do mesmo Estado. É o relatório. VOTO O SENHOR MINISTRO NÉRI DA SILVEIRA (RELATOR): A alegação básica do pedido de intervenção federal do Maranhão é descumprimento de decisão judicial concernente ao pagamento de valor de Precatórios expedidos em favor das requerentes, relativos ao Processo n. 1602/86 – TJ/MA. Dá-se, porém, que pendem de julgamento na Corte local pedido de Seqüestro da quantia referente ao Precatório n. 1602-TJ e Pedido de Intervenção Federal, junto ao mesmo Tribunal, “com o objetivo de assegurar a satisfação do referido Precatório em favor das já citadas empresas” (fls. 83), qual se explicita nas suso transcritas Informações do Tribunal de Justiça em referência. Quanto ao julgamento desses dois feitos, o Tribunal de Justiça maranhense decidiu aguardar a decisão no Agravo de Instrumento n. 886. Em seu parecer, às fls. 97, a Procuradoria-Geral da República observou verbis: “6. O exame das informações, além disto, possibilita opinar pela inexistência de descumprimento de decisão judicial, pois o Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão entendeu que as providências postuladas pelos interessados deveriam aguardar o julgamento do Agravo de Instrumento n. 886. Isto não significa adesão às decisões tomadas pelo Tribunal de Justiça do Maranhão, que podem estar contribuindo para que seja protelado o cumprimento da sentença condenatória, com prejuízo para os Autores. Ocorre que não é cabível, como forma de correição dessas decisões, a intervenção Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 197 federal no Estado, para forçar o pagamento, quanto o Tribunal decidiu que o pedido de seqüestro somente deveria ser resolvida após o julgamento do Agravo de Instrumento n. 886. Posteriormente, em petição de 30/10/1989, as requerentes encarregaram-se de trazer aos autos folha do Diário da Justiça, no Estado aludido, que pública súmula de julgamento do citado Agravo de Instrumento n.886/88. O Tribunal de Justiça, por maioria de votos, negou provimento ao agravo, para manter o despacho agravado, contra o voto do Relator, que provia o agravo para, reformando a decisão agravada, decretar a nulidade das citações feitas ao Estado do Maranhão e Instituto de Colonização e Terras do Maranhão”. Julgado esse feito, - nos termos de anterior decisão da Corte, é de manter-se a expectativa de decisão, em breve tempo, -eis que já se decidiu o Agravo n. 886/88, - do Pedido de Seqüestro e da Intervenção Federal. De outra parte, consoante se depreende dos autos, o Pedido de Seqüestro formulou-se, à vista do art. 100, §§ 1º e 2º, da Constituição, verbis: “Art. 100. À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual e Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. §1º. É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, data em que terão atualizados seus valores, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte. §2º. As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados ao Poder Judiciário, recolhendo-se as importâncias respectivas à repartição competente, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento, segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do credor e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito.” Ora, bem de ver que não se pode substituir por pedido de intervenção federal o que caberia discutir em pedido de seqüestro. Ademais disso, há, também, pedido de intervenção federal endereçado ao Tribunal de Justiça do Maranhão, que, assim, deverá julgá-lo. De outra parte, se efetivamente ocorreu preterição do direito de precedência dos peticionários, ou não, relativamente aos Precatórios aludidos, há de dizer a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 198 Corte local, em seu julgamento. É de mencionar, outrossim, que, se procedente o pedido, estipula o §2º do art. 100, da Lei Maior, que se decrete seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito. Não logra, pois, procedência a pretensão das requerentes de virem, desde logo, ao STF com o pedido de intervenção federal, nos termos que formulado. Não seria, de qualquer sorte, de considerar que o Poder Judiciário do Maranhão está a necessitar da garantia decorrente de intervenção federal, ut artigo 34, IV, da Lei Magna, visto estar julgando as causas que lhe são presentes. Nem ocorre a hipótese de intervenção federal para prover a execução de ordem ou decisão judicial, consoante o disposto no art. 34, IV, da Constituição, em face do acima examinado. Também não é de falar, desde logo, em coação exercida contra o Poder Judiciário a justificar requisição interventiva pelo Supremo Tribunal Federal, tendo em conta as providências. Do exposto, em que pese a justa pretensão das requerentes de receber o valor dos Precatórios em exame, não é o pedido de intervenção federal a via adequada, nos termos em que requerida, tendo em conta, ainda, as informações do Tribunal de Justiça maranhense. Porque não legitimadas, destarte, as requerentes, ativamente, à súplica, sendo deste carecedoras, determino o seu arquivamento (RI, art. 351, II). VOTO O SENHOR MINISTRO PAULO BROSSARD: - Acompanho o voto de V. Exa., Sr. Presidente, embora manifeste o meu temor de que se recriem situações como essas que parece que se estão desenhando no Estado do Maranhão: decisões transitadas em julgado, em fase de execução, e que depois emperram em seu prosseguimento. O fato de haver uma ação rescisória não impede a execução do julgado. Deixo expressa a minha inquietação a respeito dessa situação, porque bem antes da atual Constituição já várias leis tiveram o cuidado de estabelecer que os pagamentos pela Fazenda deveriam ser feitos em atenção à ordem cronológica dos precatórios, exatamente para evitar aquilo que ocorreu em outros tempos, que os pagamentos fossem feitos ao alvedrio da administração e às vezes mediante influências estranhas à Justiça. O assunto subiu do Código de Processo para a Constituição, e a atual estabelece, no §2º, do art. 100, norma que, devidamente cumprida, creio resolveria esses problemas. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 199 5- INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 120-0/PR Data da Decisão: 10/02/1993. Relator: Min. Sydney Sanches. Tipo de Ação: Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Originária. Pólo Ativo: Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Pólo Passivo: Estado do Paraná. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: - Intervenção Federal. Arts. 34, VI, 100, §2°, da Constituição Federal e art. 33 do A.D.C.T.. 1.Não se caracteriza hipótese de intervenção federal, por descumprimento de decisão judicial (art. 34, VI, da Constituição Federal), se, com base no art. 33 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal e em Decreto baixado pelo Poder Executivo Estadual, o precatório judicial, em ação de indenização, por desapropriação indireta, vem sendo pago em moeda corrente, com atualização legal, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo de oito anos a partir de 1° de julho de 1989. 2.Sendo o credor eventualmente preterido, em seu direito de precedência, o que pode pleitear e o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito (parágrafo 2° do art. 100 da Constituição). E não, desde logo, a intervenção federal, por descumprimento de decisão judicial, a que se refere o art. 34, VI, da Constituição. Pedido de intervenção federal indeferido. RELATÓRIO Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 200 SENHOR MINISTRO SYDNEY SANCHES: 1. Trata-se de representação, dirigida por Antônio Clarides Modena e outros, ao E. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, visando à intervenção federal naquela unidade da federação, e que a ilustrada Corte local assim apreciou no v. acórdão de fls. 133/140: “PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PEDIDO DE INTERVENÇÃO N° 12.832-3, DE CURITIBA REQUERENTES: ANTÔNIO CLARIDES MODENA E OUTROS REQUERIDO: ESTADO DO PARANÁ RELATOR: DESEMBARGADOR SYDNEY ZAPPA Intervenção federal no Estado. Descumprimento de decisão judicial. Recusa de pagamento de precatório. Alegação de mero atraso. Ainda que se admita tal distinção, ocorreu não só atraso como também recusa do pagamento dos precatórios, eis que, devendo tal ser efetuado a partir de l°.07.89, ainda não foram pagos, a despeito de outro precatório referente a credor diverso, protocolado posteriormente aos dos autores, já ter sido quitado (cf CF, art. 34, VI). Procedência do pedido com a conseqüente solicitação ao Supremo Tribunal Federal para requisitar a intervenção federal no estado do Paraná, para o fim colimado. ACÓRDÃO N° 1329 Vistos, relatados e discutidos estes autos de pedido de intervenção federal n° 12.832-3, de Curitiba, em que são requerentes ANTÔNIO CLARIDES MODERA E OUTROS, figurando como requerido o ESTADO DO PARANÁ. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 201 1. Pleiteiam os requerentes, com fulcro no art. 34, VI, da Constituição Federal, a intervenção federal no Estado do Paraná, em face da recusa do Poder Executivo em efetuar o pagamento de precatórios decorrentes de decisão judicial proferida em ações de indenização por desapropriação indireta (autos n°s. 3281/81, 3581/81 e 3653/81). Segundo os postulantes, trata-se de créditos que tiveram origem em desapropriação de pequenos imóveis rurais para a implantação de estrada de rodagem. Solicitadas informações, informou o Governador do Estado que incorreu a alegada recusa e que os pagamentos tem sido feitos mediante rigorosa observância à ordem das respectivas apresentações no Poder Judiciário. O que tem se verificado é mero atraso, que não se confunde com recusa. Assim ocorre porque “... o requerido passa por dificuldades financeiras, devido a uma conjuntura basicamente econômica, ocasionada tanto pela doença inflacionária quanto pela cura pretendida na política do Governo federal”. Ainda segundo o informante, apenas a preterição na ordem de pagamento é que, nos termos no art. 100, §2°, da Carta Magna, autorizaria a intervenção federal. A procuradoria Geral de Justiça, após considerações de fato e de direito sobre o tema objeto de julgamento, de sustentar ser inadmissível retardar indefinidamente o pagamento de precatórios já prenotados, e de observar que houve quebra do direito de preferência dos autores em face do pagamento do precatório n° 15.954/87, onde figura como credor Ivaino Ton, concluiu que a melhor solução no caso será, à vista do disposto no art. 100, §2°, da Constituição Federal, e 731 do CPC, o seqüestro das quantias constantes dos precatórios sob exame. Para tanto, contudo, lembra que haveria necessidade de pedido expresso dos credores. Cientes da referida promoção, insistem os postulantes no seu pedido de intervenção federal no Estado. 2. Na conformidade com o art. 100, § 1°, do referido Estatuto Supremo, “É obrigatória a inclusão no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1° de julho, data em que terão atualizados seus valores, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte”. E de acordo com o respectivo § 2°, “As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados ao Poder Judiciário, recolhendo-se as importâncias respectivas à repartição competente, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento, segundo as possibilidades do depósito e autorizar, a requerimento do credor e Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 202 exclusivamente para o caso de preterição de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito”. Por outro lado, estabelece o art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que “ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1° de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição”. Tendo em vista essa moratória constitucional, o Poder Executivo editou o Dec. 4.873, de 30.03.89, onde restou expresso que os precatório judiciais pendentes de pagamento em 05.10.88 serão em moeda corrente, no prazo de oito anos, a partir de 1º. 07.89. A despeito disso, conforme admite o próprio Governador do Estado nas suas informações, os pagamentos pleiteados não vem sendo pagos porque, como visto, o Estado estaria passando por dificuldades financeiras, o que, segundo o informante, não se identificaria como recusa, mas mero atraso. Contudo, ainda que se admita, na espécie tal distinção, ocorreu não só atraso como também recusa do pagamento dos precatórios, eis que, devendo tal ser efetuado a partir de lº.07.89, não foram pagos até agora, a despeito de outro precatório referente a credor diverso, protocolado posteriormente aos dos autores, já ter sido pago (cf fls. 90). Além disso, segundo é público e notário, de vez que conforme anúncios oficiais, Constantemente divulgados pelo Governo anterior por meio dos órgãos de divulgação, as finanças do Estado, diferentemente de outras unidades da Federação, encontram- se saneadas e o Erário em dia com suas obrigações (cf. fls. 105-114). De resto, se verifica essa alegação de que ocorreu simples atraso, motivado por dificuldades financeiras, revelam estas inaptidão e incompetência do Executivo em gerir a coisa pública e em cumprir o orçamento por ele proposto e aprovado pelo Legislativo. Portanto, demonstrada a falta de pagamento dos precatórios reclamados nas circunstâncias em que ocorreu, caracterizada resultou, por parte do Executivo, o descumprimento de decisão judicial, o que, nos termo0s do art. 34, VI, da Carta Magna, autoriza a intervenção da União para o respectivo provimento. 3. Diante do exposto, acordam os Desembargadores que integram o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Parando, por maioria de votos, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 203 em concluir pela procedência do pedido a fim de solicitar ao Supremo Tribunal Federal se digne em requisitar intervenção federal no Estado do Paraná para o fim colimado. Curitiba, 21 de junho de 1991. RENATO PEDROSO - Presidente. SYDNEY ZAPPA - Relator. LENZ CEZAR - Corregedor, sem voto. JORGE ANDRIGUETTO - Vencido. ABRAHÃO MIGUEL – Vencido” . Estiveram presentes à sessão e acompanharam o voto do Relator os Excelentíssimos Senhores Desembargadores NUNES NASCINENTO, PLÍNIO CACHUBA, EROS GRADOWSKI, MATTOS GUEDES, NEGI CALIXTO, ADOLPHO PEREIRA, OTO SPONHOLZ, SILVA WOLFF, LUIZ PERROTTI, WILSON REBACK, OSWALDO ESPÍNDOLA, CORDEIRO MACHADO, TROIANO NETTO e CARLOS RAITANI. VOTO VENCIDO "Data vênia" da douta maioria, entendo que o caso dos autos não caracteriza a solução pleiteada. Cabe intervenção federal nos Estados, na forma do artigo 34, inciso VI, da Constituição, “para prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial”. A autorização, concretamente, estaria contida na parte final do dispositivo constitucional, como coação federal para forçar os Estados-membros a cumprir os deveres, segundo a lição de Wolgran Junqueira Ferreira, invocada pelo requerente. Na espécie, inexiste recusa alguma em cumprir a ordem requisitória emanada de decisão judicial. Reconhece o requerido a sua dívida para com o requerente. Admite a preterição na relação das ordens de pagamento, sugerindo, espontaneamente, para repará-la, o seqüestro da quantia necessária para a satisfação do débito, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 204 de acordo com os artigos 100, § 2º, da Constituição Federal e 731 do Código de Processo Civil. Todos os meios, portanto, estão à disposição do requerente para obter o pagamento de seu credito. E o que interessa ao credor, prioritariamente, é receber o seu crédito. A opção indicada pelo devedor, na pratica, é muito mais eficiente e mais rápida do que a intervenção. A justificativa do requerido, quanto às dificuldades são sérias e, do conhecimento de todos. A recessão, a queda de arrecadação, em conseqüência, é do domínio publico. Nessas coordenadas, a intervenção federal teria, unicamente, um sabor político, prejudicial à sociedade e à economia de um Estado sempre discriminado. Houve, no episódio, é verdade, uma preterição em proveito alheio. Os responsáveis devem ser punidos. Mesmo assim, não há motivo para a intervenção, porque inexistem as condições exigidas pelo artigo 34, VI, da Constituição Federal. Ante o brevemente exposto, acatando a justificativa oficial e, nos termos do parecer da ilustrada Procuradoria-Geral da Justiça, indefiro o pedido. Curitiba, 21 de junho de 1991. DES. JORGE ANDRIGUETTO – Vencido” . 2.Remetidos os autos a esta Corte, foram colhidas novas informações do E:xmº Sr. Governador do Estado, que as prestou a fls. 165, com os documentou de fls. 166/178. 3. A fls. 181/182, o Ministério Público federal, em parecer do ilustre Subprocurador-Geral da Republica Dr. ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA, aprovado pelo Exmº Sr. Procurador-Geral, Dr. ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA, opinou pela improcedência do pedido. 4.Os requerentes, por sua vez, a fls.187/189, insistiram na procedência. 5.E o Ministério Público federal ratificou o parecer anterior, com os acréscimos constantes de fls. l92/193. É O RELATÓRIO. VOTO Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 205 O SENHOR MINISTRO SYDNEY SANCHES (PRESIDENTE/RELATOR): 1.O primeiro parecer do Ministério Público Federal, pela improcedência do pedido de intervenção federal, foi exarado nos seguintes ternos (fls. 181/l82): "Intervenção federal. Alegado descumprimento, pelo Estado do Paraná, de decisão judicial. Pagamento de credores que esta sendo realizado em oito prestações anuais, nos termos do art. 33 do ADCT da Constituição de 1988. Descumprimento não caracterizado. Parecer pela improcedência do pedido. Senhor Relator, 1.Trata-se de pedido de intervenção federal no Estado do Paraná em que se alega descumprimento de decisão judicial, caracterizado pelo não fornecimento de verba para pagamento de precatórios (art. 34, VI, CF/88). 2.A pretensão foi processada perante o Tribunal de Justiça do referido Estado e mereceu a manifestação favorável do respectivo órgão especial (fls. 133/140). 3.Revelam os autos que Antonio Clarides Modena e outros, Arnaldo Rodrigues de Godoy e outros, e Natal Ferrarini e outros, são credores do estado do Parando em razão da condenação deste em ações de desapropriado indireta. Promovidas as respectivas execuções, foram expedidos precatórios requisitórios que, em julho de 1990, encontravam-se pendentes de pagamento (fls. 53/55). 4.Nas informações prestadas a Vossa Excelência, o Estado do Paraná comprova, estr documentalmente (fls. 165/l78), o pagamento de duas parcelas de 1/8 do valor devido, já que autorizado pelo art. 33 do ADCT da Constituição de 1988 a assim proceder. 5.A despeito da manifestação do Tribunal “a quo”, não está caracterizado o descumprimento de decisão judicial, capaz de justificar a intervenção federal. Tal providencia, extremamente grave, somente deve ser adotada quando o pressuposto constitucional esteja inequivocamente caracterizado. Não é o que ocorre nos autos: o Estado do Paraná, valendo-se de faculdade constitucionalmente assegurada (art. 33, ADCT, CF/88), está realizando o pagamento dos valores reclamados em oito prestações anuais, duas das quais já efetivadas. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 206 Assim sendo, o parecer é no sentido da improcedência do pedido. Brasília, 10 de abril de 1992. ANTÕNIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA SubProcurador-Geral da República ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA Procurador-Geral da República”. 2. Sobre esse primeiro parecer os requerentes se manifestaram a fls. 187/189, insistindo na procedência do pedido de intervenção, “in verbis”: "ANTONIO CLARIDES MODERNA e outros, nos autos do pedido de Intervenção Federal nº 130-0, do Paraná, vem, “data vênia", por intermédio de seu advogado, diante do r. despacho de V. Exa., de fls. 184, dizer que, realmente, o Governo do Estado do Paraná, confessa, às fls. 165/178, o que foi proclamado na inicial, de fls. 2/13, e mais que é verídico o atraso no pagamento dos precatórios. l.Por outro lado, o r. Acórdão de f1s.133/140, do Tribunal de Justiça do Estado, confirma o que os Suplicantes vem afirmando, nestes termos: “Intervenção federal no Estado. Descumprimento de decisão judicial. Recusa de pagamento de precatório. Alegação de mero atraso. Ainda que se admita tal distinção, ocorreu não só atraso como também recusa do pagamento dos precatórios, eis que devendo ser efetuado a partir de 12.07.89, ainda não foram pagos, a despeito de outro precatório referente a credor diverso, protocolado posteriormente aos dos autores, já ter sido quitado”. 2.Verifica-se, assim, que além do atraso, houve, “data venia" incorrerão por parte do Governo do Estado, em conceder privilégio ou preferência, a uma terceira pessoa, por certo para atender a alguma questão menos nobre. Essa atitude pode merecer até muitas interpretações, alvo de críticas. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 207 3.Por outro lado, "data venia ", do parecer da ilustrada e douta Procuradoria Geral da República, às fls. 181/182, cremos que não há amparo legal e, também, sequer cabimento que essa dívida do Estado seja paga em oito prestações anuais, sim, anuais, o que vale dizer, o debito com os Suplicantes somente será liquidado no ano 2.000, o que é inteiramente destoante e incompreensível, trazendo irreparável gravame para os Suplicantes. 4.Diante do exposto, “data venia” requerem os Suplicantes, com o apoio na decisão do Colendo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, já trazido aos autos, a plena acolhida pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, tal como postulado, porque é visível a manifestação do Poder Publico em descumprir a ordem judicial e, depois de confessar essa desobediência, propõe uma solução que o menor sentimento de bom senso, não pode abonar, porque ultrapassa os limites, sequem da razoabilidade. 5.Reitera, assim, “data vênia”, da manifestação da d. Procuradoria Geral da República a reiteração do pedido, a fim de que o Egrégio Supremo Tribunal Federal decrete de imediato a Intervenção Federal no Estado do Paraná, porque o Governo do Estado, além de inadimplente, ainda traz como solução para seu ato de desacato à Justiça, uma solução que carece do menor fundamento jurídico e contraria aos interesses dos postulantes, que nau pleiteiam privilégios e sim e apenas, o cumprimento da Lei. Pedem Deferimento. Brasília, 08 de maio de 1992. HUGO MÓSCA OAB-DF-892”. 3.A essas objeções a Procuradoria-Geral da República retrucou a fls. l92/193: “140.216 N° 772/92-AF INTERVENÇÃO FEDERAL N° 120-0 – PARANÁ – STF REQUERENTE: ÓRGÃO ESPECIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ REQUERIDO: ESTADO DO PARANÁ RELATOR: EXM° SR. MINISTRO SYDNEY SANCHES Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 208 Intervenção Federal. A preterição do direito de credor na ordem dos precatórios não justifica a intervenção federal. Legitimidade do pagamento do crédito decorrente de decisão judicial em oito prestações anuais. Art. 33 do ADCT da Constituição de 1988. Ratificação do parecer pelo indeferimento do pedido. Senhor Relator, 1.As conclusões expostas no parecer de fls. 181/182, ao que penso, não foram infirmadas pela ultima manifestação dos interessados (fls. 187/l89), que não trouxeram ao debate qualquer argumento novo. 2.Observe-se que o alegado preterimento do direito de precedência dos interessados é irrelevante para o deslinde da presente causa, pois que não conduz ao deferimento do pedido de intervenção federal. É que, em tal hipótese, a Constituição Federal prevê a solução pertinente: a requerimento do credor preterido, o Presidente do Tribunal competente pode determinar “o seqüestro da quantia necessária à satisfação do debito” (parte final do § 2º do art. 100, CF/88). A quebra do direito de precedência não constitui fundamento para a intervenção federal. 3.Ademais, além dos documentos de fls. 89/93 não comprovarem a afirmada preterição, não me parece indiscutível a sua caracterização na hipótese referida. Nada impede que o Estado celebre transação mesmo depois que o litígio tenha obtido solução judicial. Como a afirmada preterição teria decorrido de transação, que importa sempre em concessões recíprocas, é pelo menos discutível que tenha havido quebra do direito de precedência. Mais ainda que houvesse, como ficou anotado no item anterior, não justifica o deferimento do pedido de intervenção, senão apenas a providência indicada no § 2º do art. 100 da Constituição Federal que, no caso, deve incidir sobre quantia correspondente a 1/8 (um oitavo), do total reclamado, em razão do que dispõe o art. 33 do ADCT da Carta Magna. 4.A inconformidade dos interessados com o pagamento em oito prestações anuais, não tem fundamento. O art. 33 do ADCT da Constituição Federal de 1988 atribui tal direito ao Estado, razão pela qual é legitima a sua conduta. Assim sendo e ratificando integralmente a manifestação de fls. 181/182, parecer é no sentido da improcedência do pedido. Brasília, 22 de maio de l992. ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 209 Subprocurador-Geral da República ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA Procurador-Geral da República". 4.Acolho os dois pareceres da Procuradoria-Geral da República. Com efeito, como neles se demonstrou, não se trata propriamente de descumprimento de decisão judicial, mas de atraso no seu cumprimento, por alegadas dificuldades financeiras do Estado, que, então, se valeu do disposto no art. 33 do ADCT da Constituição Federal de 05/10/1988, para baixar o Decreto nº 4.873, de 30/03/1989, no qual se dispôs (fls. 58): "Art. 3º - Os precatórios judiciais pendentes de pagamento em cinco de outubro de l988, excluídos os relativos a créditos de natureza alimentar, tanto da Administração Direta como das Autarquias, serão pagos em moeda corrente, com atualização legal, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo de oito anos, a partir de lº de julho de 1989. Parágrafo único - Para o cumprimento do contido neste artigo, o Estado do Paraná exercera a faculdade estabelecida no parágrafo único do artigo 33 do ato das disposições transitórias da Constituição Federal”. 5. A propósito do pagamento dos oitavos, informou o Exmº Sr. ProcuradorGeral do Estado a fls. 165 que "a decisão judicial no que diz respeito a Antônio Clarides Modena e outros, Arnaldo Rodrigues de Godoy e outros e Natal Ferrarini foi atendida e que em fevereiro e março de l99l a Secretaria de Estado da Fazenda repassou ao Tribunal de Justiça do Paraná 1/8 do valor devido sendo que em dezembro de 1991 os outros 1/8, conforme se observa dos documentos que faço juntar”. Os documentos comprobatórios da informação encontram-se a fls. 166/178. 6.Quanto ao alegado preterimento de seu direito de precedência, poderiam em teses os peticionários requerer o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito, como prevê o parágrafo 2º do art. 100, descabendo, nessa hipótese, o pedido de intervenção federal. 7.Por todas essas razões e pelo mais que ficou dito nos pareceres do Ministério Público federal, julgo improcedente o pedido de intervenção federal. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 210 6- INTERVENÇÃO FEDERAL – AGRAVO REGIMENTAL Nº 2045-0/SP Data da Decisão: 13/09/2006. Relator: Min. Ellen Gracie. Tipo de Ação: Agravo Regimental na Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Recursal. Pólo Ativo: Cerâmica Industrial de Osasco Ltda. Pólo Passivo: Estado de São Paulo. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: REGIMENTAL. INTERVENÇÃO FEDERAL. INDEFERIMENTO. DECISÃO MONOCRÁTICA. POSSIBILIDADE. DECISÃO QUE DEFERE PEDIDO DE INTERVENÇÃO ESTADUAL EM MUNICÍPIO. PROCEDIMENTO POLÍTICO-ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE DESCUMPRIMENTO DE ORDEM DE NATUREZA JURISDICIONAL. 1.O Relator está autorizado, monocraticamente, a negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível, improcedente ou prejudicado e, ainda, quando contrariar a jurisprudência predominante do Tribunal (RISTF, art. 21, §1º). 1. A decisão que defere pedido de intervenção estadual em município constitui procedimento político-administrativo. Precedentes. 2. Inviabilidade, no caso, do pedido de intervenção federal, ante a ausência de descumprimento de ordem de natureza jurisdicional. 3. Agravo regimental improvido. RELATÓRIO A Senhora Ministra Ellen Gracie: 1. Cuida-se de agravo regimental interposto contra decisão que indeferiu pedido de intervenção federal no Estado de São Paulo. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 211 Este teor da decisão impugnada (fls. 401/402): “2.Esta Corte assentou que a decisão que defere pedido de intervenção estadual em município constitui procedimento político-administrativo, destituído de índole jurisdicional (PET 1272 (QO), DJU de 26/9/1999; AG 255634, DJU de 03/12/1999; AG 351949, DJU de 26/10/2001). Destaco dos precedentes deste Tribunal o julgado proferido na Petição 1256-SP, Pertence, DJ 04.05.2001: (...) 3. Observa-se, desse modo, a impossibilidade do cumprimento da ordem pelo Governo do Estado em face do caráter materialmente administrativo do ato, considerando-se que tal conduta não está prevista na Constituição Federal. 4. Ademais, conforme anotado no precedente referido, “assentado o caráter político-administrativo da deliberação, sua impugnação por ilegalidade ou abuso de poder há de fazer-se nas vias próprias do controle jurisdicional dos atos administrativos, por exemplo, se for o caso, pelo mandado de segurança impetrado ao próprio Tribunal de Justiça (LOMAN, art. 21, VI), cuja decisão (...) estaria sujeita a recurso ordinário ou extraordinário lato sensu para o tribunal nacional competente: se o caminho é longo e espinhoso, é o único que se abre ao questionamento jurisdicional da validade de qualquer ato administrativo da cúpula do Judiciário estadual.” Assim sendo, por não se tratar de descumprimento de decisão judicial, mas de procedimento político-administrativo, verifica-se a ausência do pressuposto processual indispensável ao acolhimento da pretensão, razão por que, com base no §1º do artigo 21 do RISTF e em consonância com a jurisprudência desta Corte, indefiro o pedido de intervenção federal.” Sustenta a agravante, em preliminar, que “o r. despacho é nulo (...)já que, tratando-se a espécie de pedido de intervenção federal em Estado-Membro da República, (...) não poderia (...) ser objeto de simples decisão monocrática” (fl. 416). Entende que “Apenas o Plenário desse E. Sodalício, com sua composição plena, é que tem competência e legitimidade para conhecer e julgar questões afetas a pleitos de intervenção federal nos Estados” (fl. 416). No mérito, alega, em síntese, que (a) “a decisão, que decreta a intervenção em Estado ou Município, tem (...) natureza jurisdicional” (fls. 417/418); que (b) “não se trata de decisão meramente administrativa, como quer fazer crer a r. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 212 decisão agravada: seu conteúdo jurisdicional é inequívoco” (fl. 418); e que (c) “fosse a natureza da decisão focada meramente administrativa, por certo não estaria o procedimento de intervenção Estadual/Federal disciplinado na Constituição Federal e nas Cartas Magnas dos Estados” (fl. 418). Requer “a reforma do r. despacho agravado e decretação, a final, da intervenção federal solicitada, nos moldes da petição inicial e do próprio v. acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo” (fl. 420). O Parecer da Procuradoria-Geral da República é pelo não provimento do agravo regimental (fls. 428-431). É o relatório. VOTO A Senhora Ministra Ellen Gracie – (Relatora): 1. O recurso não comporta provimento. Com efeito, em relação à preliminar suscitada, recordo que o relator está autorizado, monocraticamente, a negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível, improcedente ou prejudicado e, ainda, quando contrariar jurisprudência predominante do Tribunal (RISTF, art. 21, §1º e art. 351, II), como é a hipótese dos autos. 2. No mérito, tenho que a decisão agravada ajusta-se à orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal. De fato, conforme já decidiu esta Corte no julgamento do AI 255.634, (rel. Min. Celso de Mello, DJ 03.12.1999), “nas hipóteses de descumprimento de ordem ou de sentença judiciais (CF, art. 34, VI e art. 35, IV) o procedimento destinado a viabilizar a efetivação do ato de intervenção estadual nos Municípios reveste-se de caráter político-administrativo, muito embora instaurado perante órgão competente do Poder Judiciário (CF, art. 36, II e art. 35, IV). Com efeito, a atividade desenvolvida pelo Tribunal de Justiça, no processamento do pedido de intervenção estadual em Município, decorre do exercício, por essa Corte Judiciária, de uma típica função político-administrativa, desvestida, por isso mesmo de qualquer atributo de índole jurisdicional”. Nessa linha, confiram-se, ainda, os seguintes precedentes: AI 520.166-AgR, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 08.04.2005; AI 343.461-AgR, rel. Min. Celso de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 213 Mello, DJ 29.11.2002; RE 282.414, rel. Min. Moreira Alves, DJ 04.05.2001, e Pet 1.256, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 04.05.2001. Essa circunstância, como salientado na decisão agravada, inviabiliza o presente pedido de intervenção federal, ante a ausência de descumprimento de ordem de natureza jurisdicional. 3. Destaco, nesse sentido, parte do parecer da PGR, da lavra do então Procurador-Geral da República, Prof. Cláudio Fonteles (fl. 431): “9. Como bem pontuado no despacho recorrido, a causa de pedir em apreço fundamenta-se na “desobediência à ordem judicial caracterizada pela ausência de materialização intervenção” do Estado de São Paulo no Município de Osasco, decretada pelo Tribunal de Justiça do referido Estado-membro. 10. Nesse contexto, observa-se que o despacho proferido por Sua Excelência, o Ministro Mauricio Corrêa, encontra-se afinado com o entendimento jurisprudencial consolidado por este Excelso Pretório, segundo o qual “a decisão que defere pedido de intervenção estadual em município constitui procedimento político-administrativo, destituído de índole jurisdicional (PET 1272 (QO), DJU de 26.09.1999; AG 255.634, DJU de 03/12/1999; AG 351.949, DJU de 26.10.2001)”, razão porque não deve prosperar o presente recurso.” 4.Diante do exposto, nego provimento ao agravo regimental. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 214 7- INTERVENÇÃO FEDERAL – AGRAVO REGIMENTAL Nº 506-0/SP Data da Decisão: 05/05/2004. Relator: Min. Maurício Corrêa. Tipo de Ação: Agravo Regimental na Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Recursal. Pólo Ativo: Raphael de Paula Souza e Cônjuge. Pólo Passivo: Estado de São Paulo. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM INTERVENÇÃO PRECATÓRIO. DESCUMPRIMENTO INVOLUNTÁRIO. FEDERAL. 1.Descumprimento voluntário e intencional de decisão transitada em julgado. Pressuposto indispensável ao acolhimento do pedido de intervenção federal. 2.Precatório. Não-pagamento do título judicial em virtude da insuficiência de recursos financeiros para fazer frente às obrigações pecuniárias e à satisfação do crédito contra a Fazenda Pública no prazo previsto no § 1º do artigo 100 da Constituição da República. Exaustão financeira. Fenômeno econômico/financeiro vinculado à baixa arrecadação tributária, que não legitima a medida drástica de subtrair temporariamente a autonomia estatal. Precedentes. Agravo Regimental a que se nega provimento. RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA: É este o teor da decisão de indeferimento do pedido de intervenção federal: “Trata-se de pedido de intervenção federal no Estado de São Paulo, com fundamento no artigo 34, VI, da Constituição Federal, no prazo de noventa dias, de precatório complementar. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 215 2. Este Tribunal, quando do julgamento da ADI 1098, DJ de 25/10/96, assentou que o Presidente do Tribunal de Justiça, ao requisitar o pagamento complementar no prazo de noventa dias, estaria exacerbando os limites de suas atribuições, dado que a requisição, a título de complementação de depósitos insuficientes, a ocorrer com a observância de prazo de noventa dias, somente deve a referir-se a diferença resultantes de erros materiais ou aritméticos ou de inexatidões de cálculos dos precatórios, não podendo alcançar o critério adotado para elaboração do cálculo ou índice de atualização diversos dos que foram utilizados em primeira instância, competência do Juízo da Execução. 3. Vale ressaltar, ainda, a orientação firmada pelo Pleno desta Corte, ao apreciar as IF 298, 301, 334, 374 e 402, Sessão de 3/2/2003, redator para o acórdão Ministro Gilmar Mendes, que se o pagamento do precatório foi incompleto, cabia a expedição, pelo Juízo da Execução, de novo precatório complementar para ser processado no exercício seguinte, e não na requisição de saldo devedor apurado pelo próprio Tribunal, ao Governador do Estado, para pagamento em determinado prazo. 4. Naquela assentada; observou-se, ademais, a impossibilidade do cumprimento da ordem pelo Governador do Estado, considerando que, além de não estar prevista na Constituição Federal tal conduta, não tem o mesmo a disponibilidade dos recursos públicos, sendo-lhe vedado, por isso, mandar pagar despesa não prevista em lei orçamentária. Assim sendo, não cuidando a espécie de descumprimento de decisão judicial, não se verifica o pressuposto processual indispensável ao acolhimento da pretensão, com base no artigo 21, § 1º, do RISTF e em consonância com a jurisprudência desta Corte, indefiro o pedido de intervenção federal.” 2. Sustentam os agravantes que o caso vertente cuida exatamente da hipótese excepcional aviltada na decisão agravada, isto é, a insuficiência dos depósitos em virtude de erros materiais ou aritméticos ou de inexatidões dos cálculos. 3.Requerem , portanto, o provimento do presente regimental. É o relatório. VOTO O SENHOR MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA (Presidente): O recurso não comporta provimento. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 216 2.A requisição, a título de complementação dos depósitos, consoante a firme jurisprudência deste Tribunal, somente é possível quando houver erro material ou aritmético ou de inexatidão dos cálculos (ADIN 1098, Marco Aurélio, DJ de 25.10.96) 3.Ante esse quadro, proferi decisão fundamentada na necessidade de expedição de novo precatório para a quitação de eventual quantia faltante, conforme entendimento adotado por esta Corte, de que é exemplo, o RE 168019, Galvão, DJ de 02.08.96, cuja ementa transcrevo, verbis: 4.Acentuou o voto proferido nesse precedente que, “havendo sido realizado cálculo complementar da liquidação, é fora de dúvida que o pagamento da diferença haverá de ser objeto de novo precatório, processado na forma prevista no dispositivo invocado (CF, artigo 100 e parágrafos), que rege, com exclusividade, o pagamento de débitos da Fazenda Pública Federal, Estadual ou Municipal, em decorrência de sentença judicial, não havendo cabimento, portanto, para notificações ao Poder Público, da espécie enfocada, seja, no sentido de promover a complementação dom pagamento em prazo assinado pelo Juiz”. 5. Confira-se no mesmo sentido os RREE 189172, 1ª Turma, Galvão, DJ de 20.09.96 e 173242, 1ª Turma, Galvão, DJ de 18.04.97. 6.Note-se que a hipótese dos autos é anterior à superveniência da edição da Emenda Constitucional 37/2002, que acrescentou o § 4º ao artigo 100 da Constituição Federal124, reafirmando, por sua vez, a orientação do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, ao vedar a expedição de precatório complementar ou suplementar ao valor pago. 7.Ultrapassadas essas alegações, anoto que a premissa básica da decisão agravada é de que não houve por parte do requerido o descumprimento voluntário e intencional de decisão judicial transitada em julgado, pressuposto indispensável ao acolhimento do pedido de intervenção federal. Dessa maneira, a ausência de conduta dolosa do ente estatal em descumprir a ordem judicial não autoriza o deferimento do pedido de intervenção, a exemplo que ocorreu por ocasião do julgamento da Intervenção Federal 3601, redator p/ o acórdão Ministro Gilmar Mendes, DJ de 22/08/03, da qual transcrevo a seguinte ementa: “EMENTA: INTERVENÇÃO FEDERAL. 2. Precatórios judiciais. 3. Não configuração de atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com 124 CF, artigo 100, § 4º. São vedados a expedição de precatório complementar ou suplementar de valor pago da execução, a fim de que seu pagamento não se faça, na forma estabelecida no §3º deste artigo e, em parte, mediante expedição de precatório. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 217 finalidade de não pagamento. 4. Estado sujeito a quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. Necessidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo, a continuidade de serviços públicos. 5. A intervenção, como medida extrema, deve atender à máxima da proporcionalidade. 6. Adoção da chamada relação de precedência condicionada a princípios constitucionais concorrentes. 7. Pedido de intervenção indeferido.” 8. Não se pode deferir a medida drástica de subtrair temporariamente a autonomia estatal, que, como regra, só pode sofrer a mencionada espécie de ingerência quando se fizerem presentes, ostensivamente, os respectivos pressupostos. 9. Dessa maneira, a decisão agravada está em consonância com a orientação recente dos julgamentos proferidos por esta Corte, razão por que nego provimento ao agravo regimental. VOTO O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Senhor Presidente, continuo vencido por entender que, a não se adotar uma providência efetiva, as decisões judiciais tornar-se-ão, quando formalizadas contra o Estado, simplesmente líricas. Não consigo conceber que, expedido o precatório, não haja a previsão orçamentária para a liquidação do débito e que o Estado – o Poder Executivo – simplesmente articule com a ausência de recursos. Os brasileiros continuam pagando impostos. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 218 8- INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 164-1/SP Data da Decisão: 03/02/2003. Relator: Min. Marco Aurélio p/acórdão Min. Gilmar Mendes. Tipo de Ação: Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Originária. Pólo Ativo: Eliza Pretti e Outros. Pólo Passivo: Estado de São Paulo. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: INTERVENÇÃO FEDERAL. 2. Precatórios judiciais. 3. Não configuração de atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento. 4. Estado sujeito a quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. Necessidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo, a continuidade de prestação de serviços públicos. 5. A intervenção, como medida extrema, deve atender à máxima da proporcionalidade. 6. Adoção da chamada relação de precedência condicionada entre princípios constitucionais concorrentes. 7. Pedido de intervenção indeferido. RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) - Eliza Pretti e outros requerem o deferimento de intervenção federal no Estado de São Paulo, diante do não-pagamento integral de valor requisitado em precatório que envolve prestação de natureza alimentícia, expedido em l993, para inclusão no orçamento de 1994. O processo teve inicio em 1988. Após ouvir o Governador do Estado e o Ministério Público, o Tribunal de Justiça julgou procedente o pedido e determinou a remessa do processo a esta Corte. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 219 Solicitadas informações, manifestou-se o Governador, afirmando estarem ausentes os pressupostos básicos ao processamento da intervenção. É que teria sido efetuado o depósito, em cumprimento à ordem judicial tida por olvidada, restando prejudicado o pedido. Requer a extinção do processo e alude a caso análogo no qual o Tribunal de Justiça local barrou o processo, deixando de encaminhá-lo ao Supremo Tribunal Federal. A Procuradoria Geral da República opinou pela procedência do pedido de intervenção. Diante da passagem do tempo, despachei, à folha 402, intimando os requerentes e o requerido a manifestarem-se sobre possível liquidação do débito conforme se depreende dos pronunciamentos das partes, não restou comprovada a quitação integral da dívida, razão pela qual o processo foi incluído em pauta. É o relatório. VOTO O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Valho- me do voto que proferi quando do julgamento da Intervenção Federal n° 2.953-8, do seguinte teor: Os esforços desenvolvidos com o objetivo de solucionar a pendência não frutificaram. Contatos foram mentidos com o Chefe do Poder Executivo do Estado. Reafirmou-se a impossibilidade de depósito do valor do precatório, ante a falta de recursos. A ordem natural do processo desaguou, então, na inclusão em pauta. O fenômeno ocorreu por força de um dever inerente ao ofício judicante, e não considerado o disposto no § 5° do artigo 100 da Constituição Federal: O Presidente do Tribunal competente que, por ato comissivo ou omissivo, retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatório incorrerá em crime de responsabilidade. Aliás, há de fazer-se certo registro. A previsão constitucional resultou da Emenda n° 30/2000, deixando de guardar sintonia com o dia-a-dia dos tribunais. A situação verificada relativamente à liquidação dos precatórios decorreu de atos omissivos e comissivos, não dos Presidentes dos Tribunais, mas de Governadores e Prefeitos. Logo, outros deveriam ser os destinatários da norma. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 220 Na oportunidade do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.098, fiz consignar, em voto, a quadra então vivida, considerados os débitos das Fazendas Públicas. O registro alcançou não só a origem do grande número de precatórios pendentes de liquidação, como também o círculo vicioso notado a partir da óptica segundo a qual impossível seria, na vigência da Constituição Federal anterior, cogitar-se da inserção, no instrumento, do valor real. Vê-se que a situação piorou a cada dia, perdendo os jurisdicionados a esperança na liquidação dos débitos da Fazenda e nutrindo sentimento contrário ao primado do Judiciário, à necessidade de respeito irrestrito às decisões imutáveis, não mais sujeitas a recurso. Para assim concluir-se, é suficiente ter presente o grande número de processos de intervenção existentes nesta Corte, fundados na regra do artigo 34, inciso VI, da Constituição Federal, autorizadora da intervenção nos Estados e no Distrito Federal, quando descumprida ordem ou decisão judicial. A grosso modo, é dado constatar processos reveladores de pedidos de intervenção, a maioria deles ligados a descumprimento de precatórios, contra os seguintes Estados: Alagoas - 1 processo; Ceará - 17 processos; Distrito Federal - 48 processos; Espírito Santo - 10 processos; Goiás - 10 processos; Mato Grosso - 10 processos; Pará - 11 processos; Paraná - 10 processos; Rio de Janeiro - 8 processos; Rio Grande do Sul - 176 processos; Rondônia - 2 processos; Santa Catarina - 111 processos; São Paulo - 2.822 processos; Tocantins - 16 processos. Reitero o que consignado no referido voto: Sob a égide da Constituição pretérita, estabeleceu-se quadro de extravagância ímpar, considerada a relação jurídica mantida pelo Estado e credores, e a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 221 liquidação de obrigações pecuniárias reconhecidas mediante provimento judicial. A interpretação literal do preceito de regência dos precatórios, ou seja, do artigo 117, levou à conclusão de que os valores deles constantes, atualizados em 1° de julho, seriam pagos, até o término do exercício subseqüente à respectiva apresentação, na forma nominal. Decorreu daí, diante de inflação da ordem de trinta por cento ao mês, um verdadeiro ciclo vicioso. O credor, ao ver satisfeito o precatório, tinha a desventura de constatar a liquidação parcial do débito da Fazenda a oscilar entre três a cinco por cento do total devido. O direito reconhecido em sentença transitada em julgado transformava-se em verdadeira pensão vitalícia, forçando o requerimento da expedição de novo precatório, com sobrecarga para a máquina judiciária, no que perpetuadas as execuções e, portanto, a tramitação dos processos. Iniludivelmente, tendo em vista a busca da realização de obras e, também, a delimitação temporal dos mandatos, proibida a reeleição, a sistemática consagrada jurisprudencialmente acabou por levar a sucessivas e pouco planejadas desapropriações, não se preocupando os governantes com a necessidade de conciliá-las com as dotações orçamentárias e, descarte, com créditos abertos para tal fim. Projetaram-se, com isso, as liquidações dos débitos, a alcançarem toda e qualquer importância devida pela Fazenda Pública em razão de condenações sofridas. A par do pernicioso critério homenageando o valor nominal real em detrimento do valor real, contavam ainda as Fazendas, com a denominada ciranda financeira. Os recursos eram aplicados no mercado, multiplicando-se dia a dia. A “bola de neve” formou-se e aí, em visão prognóstica, em face até mesmo dos novos ares constitucionais, no sentido de um maior equilíbrio na relação Estado-cidadão, o Constituinte de 1988, para ordenar o quadro e extirpá-lo, fez inserir no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias preceito revelador de verdadeira moratória. Refirome ao artigo 33, segundo o qual “ressalvados os critérios de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluindo o remanesceste de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1° julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição”. Previu-se, mais, que “poderão as entidades devedoras, para o cumprimento do disposto neste artigo, emitir, em cada ano, no exato montante do dispêndio, títulos de dívida pública não computáveis para efeito do limite global de endividamento”. Da norma extraem-se várias premissas: a primeira diz respeito à exclusão dos créditos de natureza alimentar, cuja razão de ser estava em afastar-se a projeção no tempo, ou seja, o pagamento em oito prestações anuais iguais e sucessivas. A segunda concerne ao caráter do dispositivo constitucional que, mostrando-se transitório, aplicava-se apenas aos “precatórios judiciais Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 222 pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição”. A terceira corre à conta de se ter feito estancar, como acabou por sedimentar esta Corte, os juros, quer os decorrentes da mora, quer os compensatórios. A quarta premissa implicou a desmitificação da esdrúxula tese do privilégio da Fazenda Pública de ver projetada indefinidamente no tempo a satisfação dos respectivos débitos. Em consonância com o corpo permanente da Carta, previu-se que as parcelas seriam iguais e sucessivas, revelando-se, ainda, atualizadas, ou seja, sem saber-se a percentagem alusiva à reposição do poder aquisitivo, impôs-se a manutenção do poder da moeda, mesmo porque, não fosse assim, de nada adiantaria o dispositivo constitucional. Neste ponto, o artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias exsurgiu, à primeira hora, pedagógico, afastando o desequilíbrio notado na relação jurídica devedor-credor e colocando fim a verdadeiro calote oficial. Ao menos os credores existentes tiveram a certeza do recebimento integral dos créditos, e os futuros passaram a contar com nova visão, a homenagear a realidade, o sistema jurídicoconstitucional tomado como algo razoável, coerente, aceitável em um Estado Democrático de Direito. Os precatórios pendentes de pagamento foram alcançados, à mercê de definição do Poder Executivo, por regra excepcional, buscando-se, assim, repita-se, sanear a situação verificada na totalidade dos Estados federados, no Federal e também nos Municípios. Implica dizer que a Carta de l988 trouxe à balha, de forma salutar, contexto de normas conducentes a concluir-se que, imposta condenação a pessoa jurídica de direito público, via sentença judicial, ela é para valer, há de ser observada de maneira irrestrita, devendo a quantia ser satisfeita de modo atualizado, embora contando a devedora com o interregno de dezoito meses para fazê-lo, coisa que nenhum devedor dispõe, no que se prevê, na execução que, citado, deve pagar a totalidade do valor em vinte e quatro horas, sob pena de seguirem-se atos de constrição-penhora e praça pública. Imaginava-se, à época da promulgação da Carta de 1988, que haveria por parte dos Executivos um cuidado maior na assunção de dívidas, especialmente aquelas decorrentes de desapropriações. Ledo engano. Conforme consta das informações prestadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, os precatórios posteriores a 1988 continuaram alcançando, ano a ano, a casa do milhar, oscilando entre cinco e dez mil, isso apenas no Estado de São Paulo. Ainda embrionária a visão segundo a qual os precatórios, uma vez satisfeitos, hão de implicar a liquidação do débito, devendo, para isso, sofrer a incidência da indispensável correrão monetária, mais um fator surgiu, revelando possuir a balança da vida dois pratos. De um lado, o Plano Real, que se seguiu a diversos outros (Plano Delfim I, Plano Delfim II, Plano Delfim III, Plano Dornelles, Plano Cruzado, Plano Bresser, Plano Arroz com Feijão, Plano Verão, Plano Collor I, Plano Collor II, Plano Marcílio, etc.), mitigou, nos últimos dois anos, a inflação. Reduziu-a, substancialmente, passando-se a ter, ao invés Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 223 de cerca de trinta por cento ao mês, algo pouco acima de um por cento. De outro, deixou os Estados e Municípios sem a fonte de receita que era o mercado financeiro e, portanto, a possibilidade de, jogando com o tempo, terem considerável aporte de recursos. Mesmo a partir da esdrúxula insistência, contrária à Carta Política da República, de liquidar os precatórios pelo valor nominal e não real, vieram a constatar que, ao invés da obrigação de pagamento girar em torno de cerca de dois a cinco por cento do débito, que estavam compelidos a liquidar, teriam de satisfazer cerca de oitenta por cento. Isso ocorreu passados cerca de seis anos da data em que os Executivos em geral tiveram facilitada, sobremaneira, a solução da problemática dos precatórios pendentes, em face da moratória do artigo 33 e da viabilidade de emissão de títulos da divida publica não computáveis para efeito do limite global de endividamento. A tudo isso, acrescem os problemas ligados à distribuição tributária - os médios e grandes Municípios estão muito bem - e o inchaço da folha de pessoal, agravado com o desrespeito ao teto constitucional, via, especialmente, a ingênua óptica da desconsideração das vantagens pessoais. Com desassombro é dado perceber o motivo da esperança depositada, pelo Estado de São Paulo, no desfecho desta ação direta de inconstitucionalidade. Ele salta aos olhos. A insolvência dos Estados da Federação é flagrante. Nem por isso tem-se como aberta a porta ao menoscabo dos princípios insertos na Carta de 1988. Sem potencializar-se os inúmeros pedidos de intervenção, hoje sobre os largos ombros deste Tribunal, único fato novo surtido após o exame do pedido de liminar, inidôneo, de qualquer forma, à definição da pecha atribuída às normas que serão analisadas, há de perquirir-se a harmonia dos preceitos atacados, mediante esta ação direta de inconstitucionalidade, com os artigos da Carta da República, empolgados pelo Requerente e, aí, dizer-se da procedência, ou não do pedido formulado. Descabe, também, considerar-se, para aferição da constitucionalidade das normas, a aplicação que vêm merecendo no âmbito organizacional do Tribunal de Justiça. O julgamento da ação direta de inconstitucionalidade não leva em conta situações concretas a serem dirimidas na via apropriada. Examina-se a compatibilidade constitucional a partir do caráter abstrato da norma. Da mesma, há, de proceder-se diante da necessidade de buscar-se solução para o quadro de insolvência supra-referido. O caráter político do julgamento da ação direta de inconstitucionalidade sofre limitação decorrente da supremacia da Carta Federal, sob pena de vir à balha, em prejuízo de toda a sociedade e dos avanços no campo democrático, a insegurança. O Estado não pode contar com o privilégio de editar a lei, aplicá-la e vê-la sopesada pelo Judiciário ao sabor de política governamental, a partir de óptica tendenciosa, sempre isolada e momentânea, sempre a revelar o oportunismo de plantão. Ao Estado-juiz, especialmente ao Supremo Tribunal Federal, cumpre, em razão de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 224 compromisso maior - e a história é uma cobradora infatigável - zelar pela intangibilidade da ordem jurídico-constitucional, pouco importando que, assim o fazendo, seja incompreendido. É de se ter presentes as palavras de Calamandrei, citado por Edgar de Moura Bittencourt em “O Juiz”, segundo as quais há mais coragem em ser justo, parecendo injusto, do que ser injusto para salvaguardar as aparências de justiça. Os incautos, os míopes, os pobres de espírito democrático, não esperem do Supremo Tribunal Federal atitude acomodadora, por mais convidativa que seja a quadra, já que se afigura, na concepção da Carta da República, como o Juiz Maior da Federação, não se lhe sendo opostos óbices ao cumprimento do dever constitucional de assegurar a intangibilidade da ordem jurídica. Frente a tais premissas e salientando, mais uma vez, a crença na máxima de que, em sendo o Direito uma ciência, o meio justifica o fim, e não este, aquele, passo ao exame dos diversos dispositivos atacados. Saliento, mais, a impossibilidade de dizer-se inviável a intervenção, considerada a natureza dos atos praticados em razão do precatório e a insuficiência de recursos. Quanto a esta argumentação, surge a improcedência jurídica. A teor do disposto no artigo 100 da Constituição Federal, é obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios, apresentados até 1° de julho. A intervenção visa, acima de tudo, à supremacia da Constituição Federal, ao saneamento do quadro, devendo atuar administrador diverso daquele que ocupa a chefia do Poder Executivo. A um só tempo, tem cunho satisfatório, quanto ao cumprimento da ordem ou decisão judicial, e saneador, sinalizando, de forma exemplar, a necessidade de serem observados os parâmetros próprios a um Estado Democrático de Direito, no qual não há como deixar de ter o primado do Judiciário, a eficácia, a partir de medidas coercitivas, das decisões prolatadas. Sem uma efetividade maior, vinga a babel, a insegurança jurídica, levando os cidadãos a verdadeiro retrocesso, no que, com a falência do Poder, buscarão a satisfação dos respectivos direitos substanciais por outros meios. Ao invés de restabelecer-se a paz social momentaneamente abalada, dar-se-á o agravamento da situação. Devem ser salientados aspectos quanto à causa de intervenção, que é a alusiva ao desrespeito a ordem ou decisão judicial, em vista do instituto do precatório. A Constituição Federal de 1891 mostrou-se de contornos limitados. Mediante o item IV do artigo 6°, previa-se que o Governo Federal poderia intervir em negócios peculiares aos Estados “para assegurar a execução das leis e sentenças federais.” A Emenda Constitucional de 3 de Setembro de 1926 não modificou essa cláusula. Foi ela mantida, já então, sob o inciso IV, “para Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 225 assegurar a execução das leis e sentenças federais e reorganizar as finanças do Estado, cuja incapacidade para a vida autônoma se demonstrar, pela cessação de pagamentos de sua dívida fundada, por mais de dois anos”. Destarte, nota-se a restrição quanto às sentenças - somente as federais descumpridas ensejavam a intervenção. A Constituição Federal de 1934 veio a dar maior extensão à cláusula autorizadora da intervenção nos negócios do Estado, abrangendo expressões que não podem ser tidas como sinônimos: Art. 12 A União não intervirá em negócios peculiares aos Estados, salvo: VII para a execução de ordens e decisões dos juízes e tribunais federais; Percebe-se, portanto, o abandono da palavra “sentença”, ou seja, do vocábulo revelador do ato processual final dos processos. Entrementes a possibilidade de intervenção por descumprimento de ordens e decisões dos juízes e tribunais ficou limitada à esfera federal, não alcançando, assim, decisões da Justiça estadual. Essa previsão perdurou até 1937, quando veio à balha nova Carta e, aí, voltou-se à disciplina de 1891: Art. 9° O Governo Federal intervirá nos Estados, mediante a nomeação, pelo Presidente da República, de um interventor que assumirá no Estado as funções que, pela sua constituição, competirem ao Poder Executivo, ou as que, de acordo com as conveniências e necessidade de cada caso, lhe forem atribuídas pelo Presidente da República: f) para assegurar a execução leis e sentenças federais; Então, observa-se, como já consignado, o retorno à disciplina pretérita, mais uma vez limitando-se a possibilidade de intervenção ao descumprimento de sentenças emanadas de órgãos federais. A Carta de 1946, de nítido cunho democrático, uma Carta, tal como as de 1891, 1934 e 1988, popular, a homenagear a supremacia do Judiciário e a atuação deste como indispensável ao Estado Democrático de Direito, veio a reintroduzir, no cenário constitucional, a regra da Constituição de 1934, fazendo-o sem a especificidade alusiva à natureza do órgão judiciário prolator da decisão (gênero) descumprida - se federal ou estadual. Portanto, houve verdadeiro avanço, emprestando-se, sob o argumento da intervenção, valia a ordens e decisões judiciárias, sem se distinguir a origem: Art. 7°. O Governo Federal não intervirá nos Estados, salvo para: V) assegurar a execução de ordem ou decisão judiciária; A Constituição Federal de l967, embora outorgada, repetiu a cláusula da Carta anterior, ao dispor, no inciso VI do artigo 10, competir à União a intervenção Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 226 nos Estados para “prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judiciária...”. Também a Constituição de 1969 tomou de empréstimo a regência inaugurada com a Carta de 1946, ao prever, no inciso VI do artigo 10, a possibilidade de a União intervir nos Estados para “prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judiciária...”. Com a Carta de 1988, deu-se novo alargamento da matéria. Em vez de fazerse referência a decisão judiciária, a pressupor, assim, ato de jurisdição, jurisdicionalizado, propriamente dito, aludiu-se ao gênero “decisão judicial” e, mesmo assim, sem se extirpar, como móvel da intervenção, o descumprimento de ordem judicial. Eis como está redigido o preceito hoje em vigor: Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão Judicial; Forçoso é concluir pela abrangência da cláusula autorizadora de intervenção. Ainda na vigência da Constituição pretérita, Pontes de Miranda, em “Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n° 1, de 1969”, fez ver que, por “ordem", deve-se entender “qualquer comando ou mandado”, e, por “decisão”, “qualquer resolução, que se haja de executar" (página 244). A medida extravagante é ditada pela cláusula reveladora dos alicerces da União, a da existência de Poderes independentes e harmônicos entre si - o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Mais do que isso, encerra meio de manter-se o respeito ao Judiciário, os parâmetros próprios a um Estado Democrático de Direito, tornando regra eficaz a garantia constitucional de acesso, para ver-se restabelecida a ordem jurídica, no que abalada por ameaça ou lesão a direito individual - inciso XXXV do artigo 5°. Ademais, é corolário da atuação jurisdicional como ato de soberania. De nada adiantaria ter-se a atuação do Estado-juiz caso os atos processuais por ele formalizados, fossem ordens judiciais ou sentenças e acórdãos, não possuíssem implicitamente uma sanção, uma fórmula de chegar-se ao respeito absoluto, mormente por aquele de quem se espera postura exemplar, como é o Estado, a nortear a conduta do cidadão. Destarte, pouco importa que a ordem judicial descumprida tenha caráter administrativo. Aliás, a assim não se compreender, o Estado, sem recaio de intervenção, poderia vir a descumprir sentenças transitadas em julgado. É que a execução prevista no texto constitucional faz-se mediante precatório, e este, como proclamado pelo Tribunal em inúmeros processos, uma vez suscitado incidente, deságua em decisão de cunho administrativo. Nem por isso é dado desvincular o que decidido pelo Presidente do Tribunal no cumprimento do Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 227 precatório, ao dirimir questão surgida, do título-base, do título executivo judicial a que objetiva tornar eficaz. A hipótese dos autos é, assim, mais favorável do que aquela que motivou o deferimento do pedido de intervenção no Estado de Goiás e que veio a ser autuado sob o n° 94-7, quando este Plenário, a uma só voz, proclamou: Ordem ou decisão judiciária a que alude a parte final do inciso VI do artigo 10 da Constituição Federal é expressão que abarca qualquer ordem judicial e não apenas as que digam respeito a sentenças transitadas em julgado. O relator, no acórdão que veio a ser publicado no Diário da Justiça de 3 de abril de 1987, fez ver: A interpretação dada pela Procuradoria Geral da República à parte final do inciso VI do artigo 10 da Constituição Federal (o qual estabelece, como caso de intervenção federal, o de ser necessário “prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judiciária”) no sentido de que essa ordem seria apenas a resultante de sentença, e que a sentença deve ser definitiva, sem estar sujeita a reforma ou suspensão, é manifestamente improcedente. Para sustentá-la, CLÁUDIO PACHECO teve de invocar passagem de RUI BARBOSA relativa ao texto constitucional de 1891 (art. 6°, 4ª) que só aludia, como caso de intervenção, a falta de execução das leis “e sentenças federais”, e passagem essa em que RUI afirmava (o que não o impediu de mais tarde defender o contrário) que decisão em habeas corpus não era sentença. Se a Constituição presentemente - e isso ocorre desde da 1946 – alude, “a ordem ou decisão judiciária”, e se a finalidade do dispositivo constitucional é inequivocamente a da preservação do cumprimento das ordens e das decisões do Poder Judiciário, que é Poder desarmado, não há dúvida alguma de que essas expressões não podem ser tomadas com restrições que acabem por deixar o cumprimento delas, em virtude de resistência ilícita da parte a quem se dirigem, ao arbítrio do Poder Executivo estadual. Para a distribuição da justiça, é absolutamente indispensável o cumprimento de qualquer ordem judicial, e não apenas daquelas que digam respeito a sentenças transitadas em julgado. Por isso mesmo, interpretando o texto constitucional vigente, acentua PONTES DE MIRANDA (Comentário à Constituição de 1967 com a Emenda n° 1, de 1969, tomo II, pág. 227): “ORDEM E DECISÃO JUDICIÁRIAS. - Ordem; entenda-se: qualquer comandamento ou mandado. Judiciária: proveniente da Justiça, e não só dos juízes. Em vez de ordem ou decisão judicial, o texto pôs: ordem ou decisão judiciária. Se alguém, que é órgão da Justiça, ainda que não seja juiz, pode Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 228 “dar ordem” e “decidir”, a sua ordem ou a sua decisão, é inclusa num desses dois conceitos. Decisão; entenda-se: qualquer resolução, que se haja de executar”. Então, concluiu o relator, o ministro Moreira Alves, que, no caso, havia mandado judicial com requisição de força para que fosse desocupado certo imóvel. O acórdão restou prolatado em 19 de dezembro de 1986 e, à época, a Carta em vigor não aludia sequer a ordem judicial, mas a ordem judiciária. Participaram do julgamento os ministros Moreira Alves - relator -, Rafael Mayer, Néri da Silveira, Aldir Passarinho, Sydney Sanches, Octavio Gallotti, Carlos Madeira e Célio Borja. Tem-se, assim, o envolvimento de hipótese agasalhada pelo texto constitucional autorizadora do pedido de intervenção. A determinação de depósito atinente a precatório consubstancia ordem judicial e, mais do que isso, tem a respaldá-la, considerada a presunção da razoabilidade, o título executivo. Resta o exame da situação concreta destes autos e, portanto, do enquadramento, ou não, do pedido formulado no permissivo constitucional. A inicial mostra-se adequada. Revela requerimento por parte legítima, devidamente representada, com causa de pedir e pedido, havendo passado pelo crivo do Tribunal de Justiça do Estado. Na espécie, os requerentes litigaram durante longos onze anos, vindo a pleitear a intervenção em Outubro de 1999. Os créditos são de natureza alimentar. Vale dizer, têm, na essência, o objetivo de prover a subsistência de cada qual e das respectivas famílias. O Estado exauriu os meios de defesa, visando à demonstração da improcedência do pleito. Findou derrotado. Sucumbiu na demanda. Mesmo em face do trânsito em julgado e do fato de haver contado com dezoito meses para a liquidação do débito, isso após a expedição do precatório, não o fez, certamente esperançoso na prevalência do argumento da autoridade, do argumento, inaceitável, da deficiência de caixa, em que pese à circunstância de ser o maior Estado da Federação. A rigor, não deveria sequer contar com a dilação própria aos precatórios. Em bom vernáculo, o artigo 100 afasta desse sistema de execução os créditos de natureza alimentícia. Confira se com o preceito: À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, farse-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 229 A interpretação do texto constitucional desaguou, no entanto, no estabelecimento de uma nova ordem de preferência, afastada ficando a exclusão prevista no citado artigo. Ainda bem que esse enfoque não prevaleceu na definição do alcance do art. 33 do Ato das Disposições Transitórias, talvez quem sabe por nele haver-se utilizado, em vez do vocábulo “exceção”, a palavra “ressalvados”. O mesmo ocorreu com a Emenda n° 30, abandonando-se a forma primitiva adotada no corpo permanente da Carta e repetindo-se a que veio a ser tomada como excludente dos créditos alimentícios. E o que alega, no caso, o Estado? Que deve, deixando assim de enveredar por caminho tortuoso. Entretanto evoca a ladainha de sempre - a ausência de recursos, em menosprezo à regra do § 1° do artigo 100 da Carta: Art. 100(...) §1°. É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários, apresentados ate 1° de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente. Em síntese, pretende valer-se do vezo popular, da postura do mau pagador devo, não nego; pagarei quando puder. As razões por último apresentadas não vingam. O elemento subjetivo que é o dolo mostra-se neutro para se definir a procedência, ou não, do pedido de intervenção. Pouco importa que o Estado, mediante a atuação do Executivo, não proceda com a intenção de postergar a liquidação do precatório. Cumpre saber, tão-somente, se na espécie ocorre o descumprimento de decisão judicial, fator objetivo resultante do vício da negligência, da falta de respeito irrestrito à ordem jurídica em vigor. A intenção em si afigura-se estranha ao julgamento da intervenção. Quanto à lei viabilizadora da utilização dos depósitos judiciais e extrajudiciais relativos a tributos - Lei n° 10.482, de 3 de julho de 2002 -, considerem-se dados que a ditaram e o alcance revelado. A Emenda n° 30, de setembro de 2000, ao introduzir nas Disposições Transitórias da Constituição o artigo 78, excluiu do campo de aplicação, é certo, os créditos definidos em lei como de pequeno valor e, de forma abrangente, os de natureza alimentícia, parcelando em dez anos a satisfação dos comuns. Qual foi a conseqüência prática do novo texto? A visão pragmática do Executivo resultou na inversão de valores. O privilégio do crédito alimentício veio a ser alijado. É simples: a nova disposição constitucional trouxe à balha o instituto do seqüestro com amplitude maior. Ante o texto permanente da Constituição, apenas pode ser acionado uma vez verificada a preterição, a desobediência à ordem cronológica dos precatórios, beneficiando-se credor em detrimento de outrem - §2° do artigo 100. Pela Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 230 disposição transitória, verificada a ausência de inclusão de valor no orçamento, preterição ou inadimplemento relativo a qualquer das dez prestações, possível é o seqüestro de recursos financeiros da entidade executada - §4° do artigo 78. Logo, em face desse salutar meio de coerção, os esforços do Executivo direcionaram-se, em prejuízo da satisfação dos créditos preferenciais - os alimentares -, ao pagamento dos comuns. Então, ocorreu a idéia de utilizarem-se, no pagamento exclusivo dos créditos de natureza alimentícia, os depósitos. O projeto inicial, expungida a previsão de uso preferencial dos citados depósitos para tal fim, no que substituída a cláusula pela reveladora da exclusividade, alcançava, independentemente da vontade dos estabelecimentos bancários, oitenta por cento dos existentes e futuros, ficando os restantes vinte por cento como fundo de reserva a fim de atender a alvarás de levantamento, na hipótese de sucumbência da Fazenda. A Câmara dos Deputados aprovou, em regime de urgência, o Projeto Arnaldo Madeira tal como apresentado. A esperança na mitigação, simples mitigação, do problema persistiu por pouco tempo. Assustaram-se os estabelecimentos bancários no que perderiam verdadeiro filão, a disponibilidade de vultoso numerário captado a preço muito inferior aos acessórios cobrados daqueles que viessem a tomá-lo por empréstimo. O substitutivo Romeu Tuma esvaziou o Projeto ao prever: a) a utilização, a critério dos estabelecimentos depositários, de cinqüenta por cento dos depósitos e, mesmo assim, dos realizados a partir de Janeiro de 2001; b) relativamente aos novos depósitos, a destinação, também, da percentagem não de oitenta por cento, mas de cinqüenta por cento; c) a constituição do fundo de reserva de vinte por cento, no mínimo, considerados os cinqüenta por cento repassados, diminuindo-os, portanto, a quarenta por cento; d) a chamada do Estado para complementar, se necessário, o fundo de reserva, incólume a disponibilidade dos bancos. Daí a inarredável conclusão. Ao beneficiar-se o “sistema financeiro”, os bancos, em detrimento do fim inicialmente visado com o Projeto Arnaldo Madeira - o de viabilizar avanço na liquidação dos precatórios ditos alimentares -, afastou-se do cenário jurídico algo esperado e que poderia, quem sabe, evitar o julgamento de milhares de pedidos de intervenção. O aceno do Estado requerido é insatisfatório, presente a circunstância de haver alcançado apenas a liquidação de Pendências surgidas em 1996 - ano da expedição dos precatórios - e, assim, inadimplementos configurados no Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 231 exercício de 1997. A ordem natural das coisas, cuja força é insuplantável, escancara continuarem pendentes os precatórios expedidos em 1997, 1998, 1999, 2000, 2001 e, já agora, 2002. Os títulos judiciais que os respaldam, cobertos pela preclusão recursal após a passagem de alguns anos da tramitação dos processos, continuam desrespeitados. O fato implica verdadeiro paradoxo. O particular citado, na execução, tem vinte e quatro horas para satisfazê-la, sob pena de ver penhorados bens e levados à praça. O Estado, contando não com prazo fixado em horas, mas considerada a unidade de tempo ano - dezoito meses - mesmo assim não observa as decisões judiciais cujo conteúdo seja a obrigação de dar. Pleitear, a esta altura, mais tempo é um escárnio. Concluo, então: O Judiciário não prolata sentenças simplesmente formais, sentenças que, sob o ângulo do conteúdo, mostram-se inúteis. É ele o responsável final pelo restabelecimento da paz social provisoriamente abalada, pela prevalência do arcabouço normativo constitucional, pelo equilíbrio nesse embate Estadocidadão, evitando que forças direcionadas de forma momentânea e isolada venham a prevalecer, em detrimento de interesses da coletividade. É certo que o Estado tudo pode: legisla, executa as leis e julga os conflitos de interesse decorrentes dessa execução. Que o faça com absoluta fidelidade às regras geradores da boa convivência na vida social democrática. Ocorrido o desvio de conduta de um dos Poderes, cumpre afastá-lo, prevalecendo o sistema de freios, e aí surge, com importância maior, o papel do Judiciário, ao qual, no Estado de Direito, cabe a última palavra sobre o conflito. Não lhe é dado silenciar, contemporizar o que, a mais não poder, discrepa das comezinhas noções da atuação estatal, respaldando atitude que, em relação a credores, implica tripudiar, resulta em menosprezo. A falta de celeridade nas decisões judiciais não pode servir ao respectivo descumprimento. Mas é esse o sentimento que predomina. Constantemente os veículos de comunicação retratam a rebeldia de dignitários relativamente a decisões judiciais. Afirma-se, com absoluto desprezo à responsabilidade maior, que não se cumprirá esta ou aquela decisão, pouco importando, até mesmo, que seja originária do Supremo Tribunal Federal e se mostre coberta pela preclusão. Parte-se da óptica: recorram ao Judiciário e esperem. Será essa uma sentença final? No momento em que oitenta por cento das ações que chegam aos tribunais superiores envolvem o Estado, partir-se, quanto aos débitos deste, retratados em sentenças judiciais, em precatórios, em requisições, para a teoria do "homem da mala" ou do “trem pagador”, sem os quais não cabe deferir intervenção, é aceitar que o tempo e a ordem jurídica consagrem a atitude dos inadimplentes e protejam não só o Estado devedor, mas também o Estado contumaz no descumprimento de decisões judiciais, como se estas existissem para atender não aos anseios de justiça do próprio povo, mas a simples formalidade. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 232 Continuo acreditando que o exemplo a ser seguido, o bom exemplo, vem de cima; persevero na crença no Direito, no caráter perene dos princípios que o respaldam, na prevalência da Constituição como lei fundamental, nada justificando o abandono, o menoscabo de que vem sendo alvo. É hora de o Judiciário definir-se: ou bem zela pelo dever de guardião máximo da ordem jurídica, ou se mostra sensível a atitudes que desta discrepam, e aí acaba como responsável pelo atual estado de coisas, que pode ser retratado em quadro estarrecedor quanto aos precatórios que vêm, nos diversos Estados, sendo liquidados, isso considerada a data de expedição. Julgo procedente o pedido formulado, para que seja requisitada, nos termos do artigo 36, inciso II, da Constituição Federal, a intervenção no Estado de São Paulo. Quanto à defesa ligada à circunstância de se tratar de complementação de depósito relativa a precatório, considero-a insubsistente. É que longe fica de demonstrar o cumprimento da decisão judicial. Ao contrário, gera a convicção sobre o fato de não haver sido liquidado, como cabia, o precatório. O Órgão Especial da Corte de origem bem a refutou. O que decidido não pode ser examinado no processo de intervenção. Ao Estado incumbia, como vem sendo feito em outros processos, impugnar, pelos meios próprios - e o processo de intervenção não se revela como ação de mão dupla -, a ordem judicial de complementação e que se mostrou jungida, na dicção da Corte de origem, ao precatório expedido. Insuficiente o depósito realizado - e esta é a verdade formal -, tem-se aberta a via do pedido de intervenção. Da mesma forma, descabe agasalhar o elemento subjetivo, ou seja, a óptica segundo a qual não basta o simples descumprimento de decisão judicial para ter-se como aberta a via da intervenção, sendo necessário demonstrar a culpa ou o dolo na ausência de liquidação do precatório. Essa condição é estranha à ordem jurídica, mesmo porque não é crível que, havendo numerário para o pagamento, deixe a pessoa jurídica de direito público de implementá-lo. Prevalece o critério objetivo, o não-cumprimento da ordem judicial, a inobservância do título executivo judicial, pouco importando saber a causa. Entendimento diverso implica, diante de definições políticas de gastos, ofensa ao primado do Judiciário, à certeza da valia dos julgamentos. O Estado vê-se sempre diante de dificuldades de caixa, sendo presumível, assim, a contumácia no descumprimento das obrigações pecuniárias estampadas em sentença. É como voto. VOTO O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Sr. Presidente, indefiro o pedido formulado na inicial pelos fundamentos expostos no voto que proferi na Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 233 Intervenção Federal n° 2915, que ora junto por cópia e que deste é parte integrante. VOTO O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O instituto da intervenção federal, consagrado no texto de todas as Constituições republicanas brasileiras, representa um elemento fundamental, tanto na construção da doutrina do Estado Federal, quanto na praxes do federalismo. O mecanismo de intervenção constitui instrumento essencial à viabilização do próprio sistema federativo, e, não obstante o caráter excepcional de sua utilização - necessariamente limitada às hipóteses taxativamente definidas na Carta Política -, mostra-se impregnado de múltiplas funções de ordem político-jurídica, destinadas (a) a tornar efetiva a intangibilidade do vínculo federativo, (b) a fazer respeitar a integridade territorial das unidades federadas, (c) a promover a unidade do Estado Federal e (d) a preservar a incolumidade dos princípios fundamentais proclamados pela Constituição da República. A intervenção federal, na realidade, configura expressivo elemento de estabilização da ordem normativa plasmada na Constituição da República. Élhe inerente a condição de instrumento de defesa dos postulados sobre os quais se estrutura, em nosso País, a ordem republicano-federativa. “O instituto da intervenção" - adverte ERNESTO LEME (“A Intervenção Federal nos Estado”, p. 25, item n. 20, 2ª ed., 1930, RT) – “É (...) da essência do sistema federativo”. Sem esse mecanismo de ordem político-jurídica, que assegura a intangibilidade do pacto federal, “a União seria um nome vão. E as garantias e vantagens, que a Federação deve proporcionar aos Estados e ao povo, se reduziriam a simples miragem” (JOÃO BARBALHO, Constituição Federal Brasileira – Comentários”, p. 31, 2ª ed., 1924, Rio de Janeiro, Briguiet e Cia. Editores). Cabe destacar, neste ponto, o magistério doutrinário, que, fundado na necessidade de respeito ao princípio federativo, adverte sobre a excepcionalidade da intervenção federal, em face do caráter extremamente perturbador que assume qualquer interferência do Governo Federal nos assuntos regionais e na esfera de autonomia dos Estados-membros (CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Brasileira”, p. 158, item n. 128, 3ª Ed., 1929, Globo; THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, “A Constituição Federal Comentada” vol. I/183, 3ª ed., 1956, Konfino; FÁVILA RIBEIRO, “A Intervenção Federal nos Estados”, p. 48, tese de concurso, 1960, Editora Jurídica, Fortaleza). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 234 Não se pode perder de perspectiva a circunstância de que a intervenção federal representa, ainda que transitoriamente, a própria negação da autonomia institucional reconhecida aos Estados-membros pela Constituição da República. Essa autonomia, que possui extração constitucional, configura postulado fundamental peculiar à organização político-jurídica de qualquer sistema Federativo, inclusive do sistema federativo vigente no Brasil. O poder autônomo - que a ordem jurídico-constitucional atribuiu aos Estados-membros traduz um dos pressupostos conceituais inerentes à compreensão mesma do federalismo. Plenamente invocável, a tal propósito, o autorizado magistério do eminente Professor JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 483, item n. 2, 20ª ed., 2002, Malheiros), cuja lição, no tema, adverte: Intervenção é antítese da autonomia. Por ela, afasta-se, momentaneamente, a atuação autônoma do Estado, Distrito Federal ou Município que a tenha sofrido. Uma vez que a Constituição assegura a essas entidades autonomia como principio básico da forma de Estado adotada, decorre daí que a intervenção é medida excepcional, e só há de ocorrer nos casos nela taxativamente estabelecidos e indicados como exceção ao princípio da não intervenção...”. (grifei) Daí a estrita disciplina imposta pela Constituição ao instituto da intervenção federal, cujos requisitos de admissibilidade foram por ela taxativamente relacionados em “Numerus clausus”, em obséquio ao princípio maior da autonomia das unidades federadas e em consideração ao caráter absolutamente excepcional de que se reveste o ato interventivo. Essa circunstância justifica, plenamente, a advertência constante do magistério doutrinário de PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967”, tomo 2/198, 1967, RT), para quem “a intervenção nos Estadosmembros constitui, pelo menos, teoricamente, o ‘punctum dolens’ do Estado Federal”. Vê-se, portanto, que o tratamento restritivo, constitucionalmente dispensado ao mecanismo da intervenção federal, impõe que não se ampliem as hipóteses de sua incidência, cabendo, ao intérprete, identificar, no rol exaustivo do art. 34 da Carta Política, os casos únicos que legitimam, em nosso sistema jurídico, a decretação da intervenção federal nos Estadosmembros. O estatuto constitucional brasileiro inclui, dentre as hipóteses de admissibilidade da intervenção federal nos Estados-membros, a ocorrência de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 235 desrespeito ou de desobediência a ordem ou a decisão emanadas do Poder Judiciário (CF, art. 34, VI, c/c o art. 36, II). A exigência de respeito incondicional às decisões judiciais transitadas em julgado traduz imposição constitucional justificada pelo princípio da separação de poderes e fundada nos postulados que informam, em nosso sistema jurídico, a própria concepção de Estado Democrático de Direito. O dever de cumprir as decisões emanadas do Poder Judiciário, notadamente nos casos em que a condenação judicial tem por destinatário o próprio Poder Público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontornável obrigação institucional a que não se pode subtrair, sem justa razão, o aparelho de Estado, sob pena de grave comprometimento dos princípios consagrados no texto da Constituição da República, consoante esta Suprema Corte já teve o ensejo de advertir (RTJ 167/6-7, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno). É por tal razão que a desobediência a ordem ou a decisão judicial pode gerar, em nosso sistema jurídico, gravíssimas conseqüências, quer no plano penal (CP, art. 319 e, DL n° 201/67, art. 1°, XIV), quer no âmbito políticoadministrativo (possibilidade de impeachment - Lei n° 1.079/50, art. 12, ns. 1, 2 e 4, c/c o art. 74, e DL n° 201/67, art. 4°, VII), quer, ainda, na esfera institucional (decretabilidade de intervenção federal nos Estados-membros ou em Municípios situados em Território Federal, ou de intervenção estadual nos Municípios - CF, art. 34, VI, c/c o art. 35, IV). Cabe verificar, pois, se se registra, no caso presente, situação caracterizadora de desobediência a ordem judicial - que se qualifica como pressuposto de legitimação da intervenção federal. Torna-se essencial, portanto, constatar se ocorreu, na espécie, hipótese configuradora de resistência ilícita, ou de injusto retardamento, ou, ainda, de arbitrária oposição ao cumprimento de decisão judicial, que, de modo irrecorrível, condenou, o Estado de São Paulo, a pagar débito de caráter alimentar. O Estado de São Paulo, embora enfatizando a sua disposição de satisfazer os débitos que possui, cumprindo, assim, as decisões judiciais que o condenaram, demonstrou - considerada a estrutura das despesas do Estado, em face das receitas correntes líquidas estaduais - a sua incapacidade material de solver as obrigações existentes, acentuando, a esse propósito, que, verbis: “No intuito de agilizar esses paramentos, empenhou-se o Governo do Estado, como é público e notório, para que fosse editada medida legislativa que Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 236 viabilizasse a utilização de depósitos judiciais para pagamento de precatórios exclusivamente alimentares. Assim é que, por força da recente Lei Federal n° 10.482, de 3 de julho último (documento n° 2), regulamentada no âmbito do Estado pelo Decreto n° 46.933, de 19 de julho do corrente ano (documento n° 3), tornou-se possível a destinação, já no mês de julho, de R$ 106.028.200, 02 (cento e seis milhões, vinte e oito mil, duzentos reais e dois centavos) para pagamento de precatórios alimentares (documento n° 4), atingindo-se o total pago de precatórios alimentares no ano de R$ 170.221.716,98 (cento e setenta milhões, duzentos e vinte e um mil, setecentos e dezesseis reais e noventa e oito centavos) (documento n° 5 e 6). Resta, ainda, dizer que, serão repassados à Fazenda do Estado pela instituição depositária (Banco Nossa Caixa S/A), neste mês de agosto e em setembro próximo, nos termos do §1°, do artigo 1°, do Decreto Estadual n° 46.933, cerca de R$ 202.000.000,00 (duzentos e dois milhões de reais), o que elevará, nos próximos meses os pagamentos de precatórios alimentares a mais de R$ 370.000.000,00 (trezentos e setenta milhões de reais), devendo-se fechar o ano com um número superior a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais), ou seja, mais de 10% da dívida total estimada. É de se consignar, de outra parte, que também nos anos anteriores, a partir de 1995, quando assumiu a Chefia do Executivo paulista o saudoso Governador Mário Covas, foram destinadas importâncias expressivas para pagamento de precatórios, alimentares e não alimentares, no limite das possibilidades financeiras do tesouro, como bem mostra o anexo documento n.° 7, totalizando, até o mês de julho deste ano, quase 4 bilhões de reais de precatórios pagos. ................................................................................................................... Que sentido, pois, teria requisitar esse Pretório Excelso a intervenção federal no Estado de São Paulo, com o afastamento de autoridade legitimamente investida na Chefia do Executivo e a designação de um interventor que NADA PODERIA FAZER PARA EQUACIONAR O PROBLEMA DA DÍVIDA COM PRECATÓRIOS ALIMENTARES QUE NÃO ESTEJA SENDO FEITO? Salvo se, ad argumentandum, optasse a cogitada interventoria por quitar, de pronto, toda a dívida pendente com precatórios alimentares, observada necessariamente a ordem cronológica dos ofícios, MESMO COM O SACRIFÍCIO DE OUTRAS IMPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS, em alguns casos, aliás, legitimando novos pedidos de intervenção federal no Estado, embora por fundamento diverso (art. 34, V e VII, e, da CF).” (grifei) O que me parece irrecusável, Senhor Presidente, e consideradas as razões expostas pelo Estado de São Paulo, é que, para os fins a que se refere o art. 34, VI, c/c o art. 36, II, da Carta Política, a ordem constitucional brasileira não Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 237 autoriza a intervenção federal, fundada em involuntária demora de pagamento, motivada por falta ou insuficiência de recursos financeiros, pois como já enfatizou o Supremo Tribunal Federal, “Para justificar a intervenção, não basta a demora de pagamento, na execução de ordem ou decisão Judiciária, por falta de numerário: é necessário o intencional ou arbitrário embaraço ou impedimento oposto a essa execução” (IF 20/MG, Rel. Min. NELSON HUNGRIA, “in” Arquivo Judiciário, vol. 112/160-161 – grifei). Esta Suprema Corte, ao recusar a possibilidade jurídico-constitucional de intervenção federal no Estado-membro, por alegado descumprimento de ordem ou decisão judicial, assim fundamentou o seu dictum, no julgamento acima referido, consoante revela o voto do saudoso Ministro NELSON HUNGRIA, então Relator da causa, nesta Corte, e cujas palavras reproduzo, in extenso: “Não padece dúvida que a intervenção autorizada pelo art. 7°, V, da Constituição Federal tem como pressuposto a injustificada oposição, por parece do Governo estadual, de embaraço ou impedimento à execução de ordem ou decisão judiciária. Não basta a demora, que pode ser justificada, na execução: é necessário que se apresente uma desobediência manifesta, propositada ou por descaso, à ordem ou decisão Judicial. É o que já ensinava Barbalho, comentando o parágrafo 4° do art. 6° da Constituição de 91: - a intervenção em tal caso se deve entender como uma sanção para constranger à obediência os governos dos Estados, ‘quando embaracem ou se oponham a execução’ das decisões Judiciais (‘Constituição Federal Brasileira’, pg. 27). No mesmo sentido, Pontes de Miranda, comentando a atual Constituição: - ‘há intervenção sempre que se impede a eficácia da sentença, decisão ou ordem’ (‘Comentários à Constituição de 1946’, ed. 1953, vol. 1°, pg. 486). É preciso que um desarrazoado obstáculo tenha sido oposto pelo Governo estadual à execução da decisão ou ordem. Ora, no caso vertente, o retardamento na execução não promana de obstáculo criado pelo Governador mineiro, mas da acidental exaustão atual do erário do Estado.” (grifei) Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, peço vênia para indeferir o pedido de intervenção federal no Estado de São Paulo. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 238 É o meu voto. VOTO O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES - Com a devida vênia de V. Exa., acompanho o eminente Ministro Gilmar Mendes, indeferindo o pedido de intervenção. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 239 9- INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 2915-5/SP Data da Decisão: 03/02/2003. Relator: Min. Marco Aurélio p/acórdão Min. Gilmar Mendes. Tipo de Ação: Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Originária. Pólo Ativo: Nair de Andrade e Outros. Pólo Passivo: Estado de São Paulo. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: INTERVENÇÃO FEDERAL. 2. Precatórios judiciais. 3. Não configuração de atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento. 4. Estado sujeito a quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. Necessidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo, a continuidade de prestação de serviços públicos. 5. A intervenção, como medida extrema, deve atender à máxima da proporcionalidade. 6. Adoção da chamada relação de precedência condicionada entre princípios constitucionais concorrentes. 7. Pedido de intervenção indeferido. RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Nair de Andrade e outros requerem o deferimento de intervenção federal no Estado de São Paulo, diante do não-pagamento de valor requisitado em precatório que envolve prestação de natureza alimentícia, expedido em 1997, para inclusão no orçamento de 1998. O processo teve início em 1987. Após ouvir o Governador do Estado e o Ministério Público, o Tribunal de Justiça julgou procedente o pedido, determinando a remessa do processo a esta Corte, o que ocorreu em maio de 2001. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 240 Solicitadas informações, manifestou-se o Governador, afirmando não ter sido descumprida ordem judicial. É que, por ter caráter excepcional, a regra do art. 34 da Constituição Federal há de ser interpretada de forma restritiva, não restando, na espécie, tipificada a conduta ali prevista, pois não ocorreu “dolo, ou seja, vontade intencionalmente dirigida” para o descumprimento da ordem judicial ou o não-pagamento dos precatórios. Ressalta que, ao assumir o Governo, pendiam de pagamento precatórios que deveriam ter sido pagos pelo governo anterior, estando as finanças públicas em situação caótica, pelo que foi necessária a reorganização do orçamento do Estado. Aduz ter dado bons resultados a gestão dos recursos públicos, permitindo “avanços consideráveis no pagamento dos débitos do Estado decorrentes de decisões judiciais”. Sustenta ter despendido quantia superior àquela que fora gasta nos oito anos anteriores, com o pagamento de precatórios. Por outro lado, alega que o precatório em questão é precedido de outros, também “com direito a preferência. Discorre sobre a crise econômica que assola o país e atinge o Estado e o particular, mas chama a atenção para o fato de o primeiro ter o dever de promover o bem comum, custear a educação, a saúde, a habitação, a segurança, gerar empregos para os cidadãos e manter em perfeito funcionamento a máquina administrativa, não podendo sacrificar os interesses de toda a sociedade para quitar precatórios acumulados. Reafirma não estar deixando de cumprir de forma intencional, arbitrária ou desarrazoada a ordem judicial. Ao contrário, tem envidado esforços para liquidar todos os precatórios, mas esbarra na exaustão do erário. A Procuradoria Geral da República opinou pela precedência do pedido de intervenção. Diante da passagem do tempo, despachei, à folha 385, intimado as partes a manifestarem-se sobre eventual liquidação do débito. Os requerentes, à folha 396 à 400, insistem no deferimento da intervenção, pois não providenciado o pagamento do valor devido. O Estado de São Paulo, por sua vez, reitera o teor das informações prestadas pelo Governador, salientando não estar caracterizado o descumprimento de ordem judicial que autorize a intervenção. O Governador do Estado, convidado por esta Presidência a debater sobre o tema dos precatórios atrasados, a fim de encontrar-se uma solução, encaminhou ofício datado de 23 de abril de 2002, no qual noticia a satisfação de precatórios de natureza alimentar e a previsão de continuar liquidando os débitos, assim que aprovado, no Congresso, o projeto de lei que contém permissão se os Estados utilizarem oitenta por cento dos depósitos judiciais para quitar precatórios de natureza alimentar. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 241 Ouvidos, os requerentes esclareceram não ter sido alcançado pelo pagamento mencionado pelo Governador o precatório que ensejou este pedido de intervenção. Em 12 deste mês, chegou ao gabinete petição na qual o Estado revela fatos ligados à liquidação dos precatórios, o que resultou na seguinte informação da Assessoria: O Estado de São Paulo, requerido na intervenção mencionada, tendo em conta a publicação da Lei n. 10.482, de 3 de julho de 2002, bem como do Decreto Estadual n. 46.933, de 19 de julho passado, noticia quais as providências tomadas, a fim de promover a liquidação dos precatórios alimentares atinentes ao referido Estado. No Decreto aludido, fora estabelecido que “o repasse da quantia correspondente aos depósitos efetuados de 1º. 01.2001 até 03.07.2002 seria feito em 3 (três) parcelas mensais,” tendo sido apurada a quantia de R$ 101.284.597,84 (cento e um milhões, duzentos e oitenta e quatro mil, quinhentos e noventa e sete reais e oitenta e quatro centavos), correspondente à primeira. Prossegue, destacando a antecipação de R$ 781.834,56 (setecentos e oitenta e um mil e oitocentos e trinta e quatro reais e cinqüenta e seis centavos), também, destinados ao pagamento dos débitos referentes aos precatórios. Sendo assim, segundo o requerido, mais de R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais) serão utilizados nos meses de agosto e setembro, na solvência da obrigação citada. Ressalta, ainda, ter sido efetuado o pagamento de “todos os precatórios de natureza alimentar de até R$ 8.000,00 (valor fixado pela Constituição Federal) no último dia 26 de julho”, consoante a documentação em anexo, elaborada pela Coordenadoria de Precatórios da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Assevera, outrossim, a ocorrência de quitação concernente a precatórios de natureza comum, resultante do emprego de recursos financeiros oriundos da receita ordinária estadual, indicando terem sido empregados R$ 131.364.814,34 (cento e trinta e um milhões, trezentos e sessenta e quatro mil, oitocentos e quatorze reais e trinta e quatro centavos) na liquidação dos precatórios, somente nos meses de junho e julho de 2002. Sustenta, ao fim, estar “lutando por todas as formas para a obtenção de novos recursos, de modo a acelerar o resgate desse passivo”, ainda não realizado, em virtude da impossibilidade material e jurídica existente, porquanto não seria Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 242 possível o desvio de verbas imprescindíveis ao funcionamento dos demais setores estatais. Observe-se, apenas, ter sido incluída em pauta a intervenção federal citada, no dia 25 de junho passado – Pauta de n. 24/2002. Os requerentes pronunciaram-se salientando que o precatório objeto do pedido de intervenção, de no. 991/98 na ordem cronológica, não tem perspectiva de ser pago, de acordo com as informações do Procurador-Geral do Estado de São Paulo. Destacam que, nos últimos sete anos, não houve a quitação integral de nenhum precatório de natureza alimentar e que nada foi pago em relação aos precatórios dos anos de 1998, 1999, 2000 e 2001. Ressaltam que o valor pago no mês de junho decorreu da aprovação da Lei n. 10.482/2002. Todavia a verba ficara aquém do valor prometido pelo Governador do Estado, até porque o referido diploma legal restou desfigurado do projeto original, “deixando de solucionar o grave problema dos precatórios alimentares, para continuar beneficiando as instituições financeiras”. Asseveram que os duzentos milhões de reais prometidos para os meses de agosto e setembro, também decorrentes da Lei n. 10.482/2002, são insuficientes para a liquidação dos precatórios de 1997. Sustentam que o pagamento de precatórios de pequeno valor implicou a exclusão de ações plúrimas, “tanto que nenhum dos participantes deste pedido de intervenção federal tiveram seus créditos quitados, apesar de vários deles terem quantias a receber inferiores a R$ 100,00 (cem reais)”. Alegam que o Procurador-Geral do Estado conforma “a inversão total da ordem constitucional ao afirmar que a Administração pretende pagar R$ 600.000.000,00 (seiscentos milhões de reais), no corrente exercício, aos precatórios não alimentares” e questionam qual seria o fundamento para se subverter a prioridade constitucional. Por outro lado, apontam não pretenderem o desvio de recursos necessários ao funcionamento do aparato estatal, bastando que o Governador “destine a verba orçamentária para pagamento dos precatórios de natureza alimentar”. Finalmente, asseveram que o cidadão comum não tem a possibilidade de alegar a existência de outra dívida para se furtar ao cumprimento de obrigação que tenha assumido. É o relatório. VOTO O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE) – Os esforços desenvolvidos com o objetivo de solucionar a pendência não frutificaram. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 243 Contatos foram mantidos com o Chefe do Poder Executivo do Estado. Reafirmou-se a impossibilidade de depósito do valor do precatório, ante a falta de recursos. A ordem natural do processo desaguou, então, na inclusão em pauta. O fenômeno ocorreu por força de um dever inerente ao ofício judicante, e não considerado o disposto no § 5º do artigo 100 da Constituição Federal. O Presidente do Tribunal competente que, por ato comissivo ou omissivo, retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatório incorrerá em crime de responsabilidade. Aliás, há de fazer-se certo registro. A previsão constitucional resultou da Emenda n. 30/2000, deixando de guardar sintonia com o dia-a-dia dos tribunais. A situação verificada relativamente à liquidação dos precatórios decorreu de atos omissivos e comissivos, não dos Presidentes dos Tribunais, mas de Governadores e Prefeitos. Logo, outros deveriam ser os destinatários da norma. Na oportunidade do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.098, fiz consignar, em voto, a quadra então vivida, considerados os débitos das Fazendas Públicas. O alcançou não só a origem do grande número de precatórios pendentes de liquidação, como também o círculo vicioso notado a partir da óptica segundo o qual impossível seria, na vigência da Constituição Federal anterior, cogitar-se da inserção, no instrumento, do valor real. Vê-se que a situação piorou a cada dia, perdendo os jurisdicionados a esperança na liquidação dos débitos da Fazenda e nutrindo sentimento contrário ao primado do Judiciário, à necessidade de respeito irrestrito às decisões imutáveis, não mais sujeitas a recurso. Para assim concluir-se, é suficiente ter presente o grande número de processos de intervenção existentes nesta Corte, fundados na regra do artigo 34, inciso VI, da Constituição Federal, autorizadora da intervenção nos Estados e no Distrito Federal, quando descumprida ordem ou decisão judicial. A grosso modo, é dado constatar processos reveladores de pedidos de intervenção, a maioria deles ligados a descumprimento de precatórios, contra os seguintes Estados: Alagoas – 1 processo; Ceará – 17 processos; Distrito Federal – 48 processos; Espírito Santo – 10 processos; Goiás – 10 processos; Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 244 Mato Grosso – 10 processos; Pará – 11 processos; Paraná – 10 processos; Rio de Janeiro – 8 processos; Rio Grande do Sul – 176 processos; Rondônia – 2 processos; Santa Catarina – 111 processos; São Paulo – 2.822 processos; Tocantins – 16 processos. Reitero o que consignado no referido voto. Sob a égide da Constituição pretérita, estabeleceu-se quadro de extravagância ímpar, considerada a relação jurídica mantida pelo Estado e credores, e a liquidação de obrigações pecuniárias reconhecidas mediante provimento judicial. A interpretação literal do preceito de regência dos precatórios, ou seja, do art. 117, levou à conclusão de que os valores deles constantes, atualizados em 1º de julho, seriam pagos, até o término do exercício subseqüente à respectiva apresentação, na forma nominal. Decorreu daí, diante de inflação da ordem de trinta por cento ao mês, um verdadeiro ciclo vicioso. O credor, ao ver satisfeito o precatório, tinha a desventura de constatar a liquidação parcial do débito da Fazenda a oscilar entre três a cinco por cento do total devido. O direito reconhecido em sentença transitada em julgado transformava-se em verdadeira pensão vitalícia, forçando o requerimento da expedição de novo precatório, com sobrecarga para a máquina judiciária, no que perpetuadas as execuções e, portanto, a tramitação dos processos. Iniludivelmente, tendo em vista a busca da realização de obras e, também, a delimitação temporal dos mandatos, proibida a reeleição, a sistemática consagrada jurisprudencialmente acabou por levar a sucessivas e pouco planejadas desapropriações, não se preocupando os governantes com a necessidade de conciliá-las com as dotações orçamentárias e, destarte, com créditos abertos para tal fim. Projetaram-se, com isso, as liquidações dos débitos, a alcançarem toda e qualquer importância devida pela Fazenda Pública em razão de condenações sofridas. A par do pernicioso critério homenageando o valor nominal em detrimento do valor real, contavam ainda, as Fazendas, com a denominada ciranda financeira. Os recursos eram aplicados no mercado, multiplicando-se dia a dia. A “bola de neve” formou-se e aí, em visão prognostica, em face até mesmo dos novos ares constitucionais, no sentindo de um maior equilíbrio na Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 245 relação Estado-cidadão, o Constituinte de 1988, para ordenar o quadro e extirpá-lo, fez inserir no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias preceito revelador de verdadeira moratória. Refiro-me ao artigo 33, segundo o qual “ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluindo o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição”. Previu-se, mais, que “poderão as entidades devedoras, para o cumprimento do disposto neste artigo, emitir, em cada ano, no exato montante do dispêndio, títulos de dívida pública não computáveis para efeito do limite global de endividamento”. Da norma extraem-se várias premissas: a primeira diz respeito à exclusão dos créditos de natureza alimentar, cuja razão de ser estava em afastar-se a projeção no tempo, ou seja, o pagamento em oito prestações anuais iguais e sucessivas. A segunda concerne ao caráter do dispositivo constitucional que, mostrando-se transitório, aplicava-se apenas aos “precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição”. A terceira corre à conta de se ter feito estancar, como acabou por sedimentar esta Corte, os juros, quer os decorrentes da mora, quer os compensatórios. A quarta premissa implicou a desmistificação da esdrúxula tese do privilégio da Fazenda Pública de ver projetada indefinidamente no tempo a satisfação dos respectivos débitos. Em consonância com o corpo permanente da Carta, previu-se que as parcelas seriam iguais e sucessivas, revelando-se, ainda, atualizadas, ou seja, sem saber-se a percentagem alusiva à reposição do poder aquisitivo, impôs-se a manutenção do poder da moeda, mesmo porque, não fosse assim, de nada adiantaria o dispositivo constitucional. Neste ponto, o artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias exsurgiu, à primeira hora, pedagógico, afastando o desequilíbrio notado na relação jurídica credor-devedor e colocando fim a verdadeiro calote oficial. Ao menos os credores existentes tiveram a certeza do recebimento integral do crédito, e os futuros passaram a contar com nova visão, a homenagear a realidade, o sistema jurídico constitucional tomado como algo razoável, coerente, aceitável em um Estado Democrático de Direito. Os precatórios pendentes de pagamento foram alcançados, à mercê de definição do Poder Executivo, por regra excepcional, buscando-se, assim, repita-se, sanear a situação verificada na totalidade dos Estados federados, no Federal e também nos Municípios. Implica dizer que a Carta de 1988 trouxe à balha, de forma salutar, contexto de normas conducentes a concluir-se que, imposta condenação à pessoa jurídica de direito público, via sentença judicial, ela é para valer, há de ser observada de maneira irrestrita, devendo a quantia ser satisfeita de modo atualizado, embora Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 246 contando a devedora com o interregno de dezoito meses para faze-lo, coisa que nenhum devedor dispõe, no que se prevê, na execução que citado, deve pagar a totalidade do valor em vinte e quatro horas, sob pena de seguirem-se atos de constrição-penhora e praça pública. Imaginava-se, à época da promulgação da carta de 1988, que haveria por parte dos Executivos um cuidado maior na assunção de dívidas, especialmente aquelas decorrentes de desapropriações. Ledo engano, Conforme consta das informações prestadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, os precatórios posteriores a 1988 continuaram alcançando, ano a ano, a casa do milhar, oscilando entre cinco a dez mil, isso apenas no Estado de São Paulo. Ainda embrionária a visão segunda a qual os precatórios, uma vez satisfeitos, hão de implicar a liquidação do débito, devendo, para isso, sofrer a incidência da indispensável correção monetária, mais um fator surgiu, revelando possuir a balança da vida dois pratos. De um lado, o Plano Real, que se seguiu a diversos outros (Plano Delfim I, Plano Delfim II, Plano Delfim III, Plano Dornelles, Plano Cruzado, Plano Bresser, Plano Arroz com Feijão, Plano Verão, Plano Collor I, Plano Collor II, Plano Marcílio, etc.), mitigou, nos últimos dois anos, a inflação. Reduzi-a substancialmente passando-se a ter, ao invés de ter cerca de trinta por cento ao mês, algo pouco acima de um por cento. De outro, deixou os Estados e Municípios sem a fonte de receita que era o mercado financeiro e, portanto, a possibilidade de, jogando com o tempo, terem considerável aporte de recursos. Mesmo a partir da esdrúxula insistência, contrária à Carta Política da República, de liquidar os precatórios pelo valor nominal e não real, vieram a constatar que, ao invés da obrigação de pagamento girar em torno de dois a cinco por cento do débito, que estavam compelidos a liquidar, teriam de satisfazer cerca de oitenta por cento. Isso ocorreu passados cerca de seis anos da data em que os executivos em geral tiveram facilitada, sobremaneira, a solução da problemática dos precatórios pendentes em face da moratória do artigo 33 e da viabilidade de emissão de títulos da dívida pública não computáveis para efeito do limite global de endividamento. A tudo isso, acrescem os problemas ligados à distribuição tributária – os grandes e médios Municípios estão muito bem – e o inchaço da folha de pessoal, agravado com o desrespeito ao teto constitucional, via, especialmente, a ingênua óptica da desconsideração das vantagens pessoais. Com desassombro é dado perceber o motivo da esperança depositada, pelo Estado de São Paulo, no desfecho desta ação direta de inconstitucionalidade. Ele salta aos olhos. A insolvência dos Estados da Federação é flagrante. Nem por isso tem-se como aberta a porta ao menoscabo dos princípios insertos na Carta de 1988. Sem potencializar-se os inúmeros pedidos de intervenção, hoje sobre os largos ombros deste Tribunal, único fato novo surgido após o exame do pedido de liminar, inidôneo, de qualquer forma. À definição da pecha atribuída às normas que serão analisadas, há de perquirir-se a harmonia dos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 247 preceitos atacados, mediante esta ação direta de inconstitucionalidade, com os artigos da Carta da República, empolgados pelo Requerente e, aí dizer-se da procedência, ou não, do pedido formulado. Descabe, também, considerar-se, para aferição da constitucionalidade das normas a aplicação que vem merecendo no âmbito organizacional do Tribunal de Justiça. O julgamento da ação direta de inconstitucionalidade não leva em conta situações concretas a serem dirimidas na via apropriada. Examina-se a compatibilidade constitucional a partir do caráter abstrato da norma. Da mesma forma, há de proceder-se diante da necessidade de buscar-se solução para o quadro de insolvência supra referido. O caráter político do julgamento da ação direta de inconstitucionalidade sofre limitação decorrente da supremacia da Carta Federal, sob pena de vir à balha, em prejuízo de toda a sociedade e dos avanços no campo democrático, a insegurança. O Estado não pode contar com o privilégio de editar a lei, aplicá-la e vê-la sopesada pelo Judiciário ao sabor de política governamental, a partir de óptica tendenciosa, sempre isolada e momentânea, sempre a revelar o oportunismo de plantão. Ao Estado-Juiz, especialmente ao Supremo Tribunal Federal, cumpre, em razão de compromisso maior – e a história é cobradora infatigável – zelar pela intangibilidade da ordem jurídico-constitucional, pouco importando que, assim o fazendo, seja incompreendido. É de ser ter presentes as palavras de Calamandrei, citado por Edgar de Moura Bittencourt em “O Juiz”, segundo quais há mais coragem e ser justo, parecendo injusto, do que ser injusto para salvaguardar as aparências de justiça. Os incautos, os míopes, os pobres de espírito democrático, não esperem do Supremo Tribunal Federal atitude acomodadora, por mais convidativa que seja a quadra, já que se afigura, na concepção da Carta da República, como o Juiz maior da Federação, não se lhe sendo opostos óbices ao cumprimento do dever constitucional de assegurar a intangibilidade da ordem jurídica. Frente a tais premissas e salientando, mais uma vez, a crença na máxima de que, em sendo o Direito uma ciência, o meio justifica o fim, e não este, aquele, passo ao exame dos diversos dispositivos atacados. Saliento, mais a impossibilidade de dizer-se inviável a intervenção, considerada a natureza dos atos praticados em razão do precatório e a insuficiência de recursos. Quanto a esta argumentação, surge a improcedência jurídica. A teor do disposto no artigo 100 da Constituição Federal, é obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito de público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios, apresentados até 1º de julho. A intervenção visa, acima de tudo, à supremacia da Constituição Federal, ao saneamento do quadro, devendo atuar administrador diverso daquele que ocupa a chefia do Poder Executivo. A um só tempo, tem cunho satisfatório, quanto ao cumprimento da ordem ou decisão judicial, e saneador, sinalizando, de forma exemplar, a necessidade de serem observados os parâmetros Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 248 próprios a um Estado Democrático de Direito, no qual, não há como deixar de ter o primado do Judiciário, a eficácia a partir de medidas coercitivas, das decisões prolatadas. Sem uma efetividade maior, vinga a babel, a insegurança jurídica, levando aos cidadãos a verdadeiro retrocesso, no que, com a falência do Poder, buscando a satisfação dos respectivos direitos substanciais por outros meios. Ao invés de restabelecer-se a paz social momentaneamente abalada, dar-se-á o agravamento da situação. Devem ser salientados aspectos quanto à causa de intervenção, que é alusiva ao desrespeito a ordem ou decisão judicial, em vista do instituto do precatório. A Constituição Federal de 1891 mostrou-se de contornos limitados. Mediante o item IV do artigo 6º, previa-se que o Governo Federal poderia intervir em negócios peculiares aos Estados “para assegurar a execução das leis e das sentenças federais.” A Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926 não modificou essa cláusula. Foi ela mantida, já então sob o inciso IV, “para assegurar a execução das leis e sentenças federais e reorganizar as finanças do Estado, cuja incapacidade para a vida autônoma se demonstrar, pela cessação de pagamentos de sua dívida fundada, por mais de dois anos”. Destarte, nota-se a restrição quanto às sentenças – somente as federais descumpridas ensejavam a intervenção. A Constituição Federal de 1934 veio a dar maior extensão à cláusula autorizadora da intervenção nos negócios do Estado, abrangendo expressões que não podem ser tidas como sinônimos: Art. 12 A União não intervirá em negócios peculiares aos Estados, salvo: VII para execução de ordens e decisões dos juízes e tribunais federais; Percebe-se, portanto, o abandono da palavra “sentença”, ou seja, do vocábulo revelador do ato processual final dos processos. Entrementes a possibilidade de intervenção por descumprimento de ordens e decisões dos juízes e tribunais ficou limitada à esfera federal, não alcançando, assim, decisões da justiça estadual. Essa previsão perdurou até 1937, quando veio à balha nova Carta e, aí, voltou-se à disciplina de 1891: Art. 9º O Governo Federal intervirá nos Estados, mediante a nomeação, pelo Presidente da República, de um interventor que assumirá no Estado as funções que, pela sua constituição, competirem ao Poder Executivo, ou as que, de acordo com as conveniências e necessidade de cada caso, lhe forem atribuídas pelo Presidente da República: f) para assegurar a execução das leis e sentenças federais; Então, observa-se, como já consignado, o retorno à disciplina pretérita, mais uma vez limitando-se a possibilidade de intervenção ao descumprimento de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 249 sentenças emanadas de órgãos federais. A Carta de 1946, de nítido cunho democrático, uma Carta, tal como as de 1891,1934 e 1988, popular, a homenagear a supremacia do Judiciário e a atuação deste como indispensável ao Estado Democrático de Direito, veio a reintroduzir, no cenário constitucional, a regra da Constituição de 1934, fazendo-o sem a especificidade alusiva à natureza do órgão judiciário prolator da decisão (gênero) descumprida – se federal ou estadual. Portanto, houve verdadeiro avanço, emprestando-se, sob o argumento da intervenção, valia a ordem e decisões judiciárias, sem se distinguir a origem: Art. 7º. O Governo Federal não intervirá nos Estados, salvo para: V) assegurar a execução de ordem ou decisões judiciárias; A Constituição Federal de 1967, embora outorgada, repetiu a cláusula da Carta Anterior, ao dispor, no inciso VI do artigo 10, competir à União a intervenção nos Estados para “prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judiciária...” Também a Constituição de 1969 tomou de empréstimo a regência inaugurada com a Carta de 1946, ao prever, no inciso VI do artigo 10, a possibilidade de a União intervir nos Estados para “prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judiciária...” Com a Carta de 1988, deu-se novo alargamento da matéria. Em vez de fazerse referência a decisão judiciária, a pressupor, assim, ato de jurisdição, jurisdicionalizado, propriamente dito, aludiu-se ao gênero “decisão judicial” e, mesmo assim, sem se extirpar, como móvel da intervenção, o descumprimento de ordem judicial. Eis como está redigido o preceito hoje em vigor: Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial; Forçoso é concluir pela abrangência da cláusula autorizadora da intervenção. Ainda na vigência da Constituição pretérita, Pontes de Miranda, em “Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda no. 1, de 1969”, fez ver que, por “ordem”, deve-se entender “qualquer comandamento ou mandado”, e, por “decisão, “qualquer resolução, que se haja de executar” (página 244). A medida extravagante é ditada pela cláusula reveladora dos alicerces da União, a da existência de Poderes independentes e harmônicos entre si – o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Mais do que isso, encerra-se meio de manter-se o respeito ao Judiciário, os parâmetros próprios a um Estado Democrático de Direito, tornando regra eficaz a garantia constitucional de acesso, para ver-se restabelecida a ordem jurídica, no que abalada por ameaça ou lesão a direito individual – inciso XXXV do artigo 5º. Ademais, é Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 250 corolário da atuação jurisdicional como ato de soberania. De nada adiantaria ter-se a atuação do Estado-Juiz caso os atos processuais por ele formalizados, fossem ordens judiciais ou sentenças e acórdãos, não possuíssem implicitamente uma sanção, uma fórmula de chegar-se ao respeito absoluto, mormente por aquele de quem se espera postura exemplar, como é o Estado, a nortear a conduta do cidadão. Destarte, pouco importa que a ordem judicial descumprida tenha caráter administrativo. Aliás, a assim não se compreender, o Estado, sem receio de intervenção, poderia vir a descumprir sentenças transitadas em julgado. É que a execução prevista no texto constitucional faz-se mediante precatório, e este, como proclamado pelo Tribunal em inúmeros processos, uma vez suscitado incidente, deságua em decisão de cunho administrativo. Nem por isso é dado desvincular o que decidido pelo Presidente do Tribunal no cumprimento do precatório, ao dirimir questão surgida, do título-base, do título executivo judicial a que objetiva tornar eficaz. A hipótese dos autos é, assim, mais favorável do que aquela que motivou o deferimento do pedido de intervenção no Estado de Goiás e que veio a ser autuado sob o n. 94-7, quando este Plenário, a uma só voz, proclamou: Ordem ou decisão judiciária a que alude a parte final do inciso IV do artigo 10 da Constituição Federal é expressão que abarca qualquer ordem judicial e não apenas as que digam respeito a sentenças transitadas em julgado. O Relator no acórdão que veio a ser publicado no Diário de Justiça de 3 de abril de 1987, fez ver: A interpretação dada pela Procuradoria Geral da República à parte final do inciso VI do artigo 10 da Constituição Federal (o qual estabelece, como caso de intervenção federal, o de ser necessário “prover lei federal, ordem ou decisão judiciária”) no sentido de que essa ordem seria apenas resultante de sentença e que a sentença deve ser definitiva sem estar sujeita a reforma ou suspensão, é manifestamente improcedente. Para sustentá-la CLÁUDIO PACHECO teve de invocar passagem de RUI BARBOSA relativa ao texto constitucional de 1891(art. 6º, §4º) que só aludia, como caso de intervenção, a falta de execução das leis “e sentenças federais”, e passagem essa em que RUI afirmava (o que não o impediu de mais tarde defender o contrário) que decisão em hábeas corpus não era sentença. Se a Constituição presentemente – e isso ocorre desde da de 1946 – alude a “ordem ou decisão judiciária”, e se a finalidade do dispositivo constitucional é inequivocadamente a da preservação do cumprimento das ordens e das decisões do Poder Judiciário, que é Poder desarmado, não há dúvida alguma Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 251 de que essas expressões não podem ser tomadas com restrições que acabam por deixar o cumprimento delas, em virtude de resistência ilícita da parte a quem se dirigem ao arbítrio do Poder Executivo estadual. Para a distribuição da justiça, é absolutamente indispensável o cumprimento de qualquer ordem judicial, e não apenas daquelas que digam respeito a sentenças transitadas em julgado. Por isso mesmo, interpretando o texto constitucional vigente, acentua PONTES DE MIRANDA (Comentário à Constituição de 1967 com a Emenda no. 1, de 1969, tomo II, pág. 227). ORDEM E DECISÃO JUDICIÁRIAS, - Ordem; entenda-se: qualquer comandamento ou mandado. Judiciária. Proveniente da Justiça, e não só dos Juízes. Em vez de ordem ou decisão judicial, o texto pôs: ordem ou decisão judiciária. Se alguém, que é órgão da Justiça, ainda que não seja juiz, pode “dar ordem” e “decidir”, a sua ordem ou a sua decisão, é inclusa num desses dois conceitos. Decisão; entenda-se: qualquer resolução, que se haja de executar”. Então, concluiu o relator, o Ministro Moreira Alves, que, no caso, havia mandado judicial com requisição de força para que fosse desocupado certo imóvel. O acórdão restou prolatado em 19 de dezembro de 1986 e, à época, a Carta em vigor não aludia sequer a ordem judicial, mas a ordem judiciária. Participavam do julgamento os ministros Moreira Alves – relator -, Rafael Mayer, Néri da Silveira, Aldir Passarinho, Sydney Sanches, Octavio Gallotti, Carlos Madeira e Célio Borja. Tem-se, assim, o envolvimento da hipótese agasalhada pelo texto constitucional autorizadora do pedido de intervenção. A determinação de depósito atinente a precatório consubstancia ordem judicial e, mais do que isso, tem a respaldá-la, considerada a presunção da razoabilidade, o título executivo. Resta o exame da situação concreta destes autos e, portanto, do enquadramento, ou não, do pedido formulado no permissivo constitucional. A inicial mostra-se adequada. Revela requerimento por parte legítima, devidamente representada, com causa de pedir e pedido, havendo passado pelo crivo do Tribunal de Justiça do Estado. Na espécie, os requerentes litigaram durante longos onze anos, vindo a pleitear a intervenção em outubro de 1999. Os créditos são de natureza alimentar. Vale dizer, têm, na essência, o objetivo de prover a subsistência de cada qual e das respectivas famílias. O Estado exauriu os meios de defesa, visando à demonstração da improcedência do pleito. Findou derrotado. Sucumbiu na demanda. Mesmo em face do trânsito em julgado e do fato de haver contado com dezoito meses para a liquidação do débito, isso após a expedição do Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 252 precatório, não o fez, certamente esperançoso na prevalência do argumento da autoridade, do argumento, inaceitável, da deficiência de caixa, em que pese a circunstância de ser o maior Estado da Federação. A rigor, não deveria sequer contar com a dilação própria aos precatórios. Em bom vernáculo, o artigo 100 afasta desse sistema de execução os créditos de natureza alimentícia. Confirase com o preceito: À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, farse-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida da designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. A interpretação do texto constitucional desaguou, no entanto, no estabelecimento de uma nova ordem de preferência, afastada ficando a exclusão prevista no citado artigo. Ainda bem que esse enfoque não prevaleceu na definição do alcance do artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, talvez quem sabe por nele haver-se utilizado, em vez de vocábulo “exceção”, a palavra “ressalvados”. O mesmo ocorreu com a Emenda n. 30, abandonando-se a forma primitiva adotada no corpo permanente da Carta e repetindo-se a que veio a ser tomada como excludente dos créditos alimentícios. E o que alega, no caso, o Estado? Que deve, deixando assim de enveredar por caminho tortuoso. Entretanto evoca a ladainha de sempre – a ausência de recursos, em menosprezo à regra do § 1º do artigo 100 da Carta: Art. 100 (...) § 1º . É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente. Em síntese, pretende valer-se do vezo popular, da postura do mau pagador – devo, não nego; pagarei quando puder. As razões por último apresentadas não vingam. O elemento subjetivo que é o dolo mostra-se neutro para se definir a procedência, ou não, do pedido de intervenção. Pouco importa que o Estado, mediante a atuação do Executiva, não proceda com a intenção de postergar com a liquidação do precatório. Cumpre saber, tão-somente, se na espécie ocorre o descumprimento de decisão judicial, fator objetivo resultante do vício da negligência, da falta de respeito irrestrito à ordem jurídica em vigor. A intenção em si afigura-se estranha ao julgamento da intervenção. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 253 Quanto à lei viabilizadora da utilização dos depósitos judiciais e extrajudiciais relativos a tributos – Lei n. 10.482, de 3 de julho de 2002 - , considerem-se dados que a ditaram e o alcance revelado. A Emenda n. 30, de setembro de 2000, ao introduzir nas Disposições Transitórias da Constituição o artigo 78, excluiu do campo de aplicação, é certo, os créditos definidos em lei como de pequeno valor e, de forma abrangente, os de natureza alimentícia, parcelando em dez anos a satisfação dos comuns. Qual foi a conseqüência prática do novo texto? A visão pragmática do Executivo resultou na inversão de valores. O privilégio do crédito alimentício veio a ser alijado. É simples: a nova disposição constitucional trouxe à balha o instituto do seqüestro com amplitude maior. Ante o texto permanente da Constituição, apenas pode ser acionado uma vez verificada a preterição, a desobediência à ordem cronológica dos precatórios, beneficiando-se credor em detrimento de outrem - §2º do artigo 100. Pela disposição transitória, verificada a ausência de inclusão de valor no orçamento, preterição ou inadimplemento relativo a qualquer das dez prestações, possível é o seqüestro de recursos financeiros da entidade executada - §4º doa rtigo 78. Logo, em face desse salutar meio de coerção, os esforços do Executivo direcionam-se, em prejuízo da satisfação dos créditos preferenciais – os alimentares -, ao pagamento dos comuns. Então, ocorreu a idéia de utilizaram-se, no pagamento exclusivo dos créditos de natureza alimentícia, os depósitos. O projeto inicial, expungida a previsão de uso preferencial dos citados depósitos para tal fim, no que substituída a cláusula pela reveladora da exclusividade, alcançava, independentemente da vontade dos estabelecimentos bancários, oitenta por cento dos existentes e futuros, ficando os restantes vinte por cento como fundo de reserva a fim de atender a alvarás de levantamento, na hipótese de sucumbência da Fazenda. A Câmara dos Deputados aprovou, de urgência, o Projeto Arnaldo Madeira tal como apresentado. A esperança na mitigação, simples mitigação, do problema persistiu por pouco tempo. Assustaram-se os estabelecimentos bancários no que perderiam verdadeiro filão, a disponibilidade de vultuoso numerário captado a preço muito inferior aos acessórios cobrados daqueles que viessem a tomá-lo por empréstimo. O substitutivo Romeu Tuma esvaziou o Projeto ao prever: a) a utilização, a critério dos estabelecimentos depositários, de cinqüenta por cento dos depósitos e, mesmo assim, dos realizados a partir de janeiro de 2001; b)relativamente aos novos depósitos, a destinação, também, da percentagem não de oitenta por cento, mas de cinqüenta por cento; Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 254 c)a constituição do fundo de reserva de vinte por cento, no mínimo, considerados os cinqüenta por cento repassados, diminuindo-os, portanto, a quarenta por cento; d)a chamada do Estado para complementar, se necessário, o fundo de reserva, incólume a disponibilidade dos bancos. Daí a inarredável conclusão. Ao beneficiar-se o “sistema financeiro”, os bancos, em detrimento do fim inicialmente visado com o Projeto Arnaldo Madeira – de viabilizar avanço na liquidação dos precatórios ditos alimentares -, afastou-se do cenário jurídico algo esperado e que poderia, quem sabe, evitar o julgamento de milhares de pedidos de intervenção. O aceno do Estado requerido é insatisfatório, presente a circunstância de haver alcançado apenas a liquidação de pendências surgidas em 1996 – ano da expedição dos precatórios – e, assim, inadimplementos configurados no exercício de 1997. A ordem natural das coisas, cuja força é insuplantável, escancara continuarem pendentes os precatórios expedidos em 1997,1998,1999,2000, 2001 e, já agora, 2002. Os títulos judiciais que os respaldam, cobertos pela preclusão recursal após a passagem de alguns anos da tramitação dos processos, continuam desrespeitados. O fato implica verdadeiro paradoxo. O particular citado, na execução, tem vinte e quatro horas para satisfazê-la, sob pena de ver penhorados bens e levados à praça. O Estado, contando não com prazo fixado em horas, mas considerada a unidade de tempo ano – dezoito meses – mesmo assim não observa as decisões judiciais cujo conteúdo seja a obrigação de dar. Pleitear, a esta altura, mais tempo é um escárnio. Concluo, então: O Judiciário não prolata sentenças simplesmente formais, sentenças que, sob o ângulo do conteúdo, mostram-se inúteis. É ele o responsável final pelo restabelecimento da paz social provisoriamente abalada, pela prevalência do arcabouço normativo constitucional, pelo equilíbrio nesse embate Estadocidadão, evitando que forças direcionadas de forma momentânea e isolada venham a prevalecer, em detrimento de interesses da coletividade. É certo que o Estado tudo pode: legisla, executa as leis e julga os conflitos de interesses decorrentes dessa execução. Que o faça com absoluta fidelidade às regras geradoras da boa convivência na vida social democrática. Ocorrido o desvio de conduta de um dos Poderes, cumpre afastá-lo, prevalecendo o sistema de freios, e aí surge, com importância maior, o papel do Judiciário, ao qual, no Estado de Direito, cabe a última palavra sobre o conflito. Não lhe é dado silenciar, contemporizar o que, a mais não poder, discrepa das comezinhas noções da atuação estatal, respaldando atitude que, em relação a credores, implica tripudiar, resulta em menosprezo. A falta de celeridade nas decisões Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 255 judiciais não pode servir ao respectivo descumprimento. Mas é esse o sentimento que predomina. Constantemente os veículos de comunicação retratam a rebeldia de dignitários relativamente a decisões judiciais. Afirmamse, com absoluto desprezo à responsabilidade maior, que não se cumprirá esta ou aquela decisão, pouco importando, até mesmo, que seja originário do Supremo Tribunal Federal e se mostre coberta pela preclusão. Parte-se da óptica: recorram ao Judiciário e esperem. Será essa uma sentença final? No momento em que oitenta por cento das ações que chegam aos tribunais superiores envolvam o Estado, partir-se, quanto aos débitos deste, retratados em sentenças judiciais, em precatórios, em requisições para a teoria do “homem da mala” ou do “trem pagador”, sem os quais não cabe deferir intervenção, é aceitar que o tempo e a ordem jurídica consagrem a atitude dos inadimplentes e protejam não só o Estado devedor, mas também o Estado contumaz no descumprimento de decisões judiciais, como se estas existissem para atender não aos anseios de justiça do próprio povo, mas simples formalidade. Continuo acreditando que o exemplo a ser seguido, o bom exemplo, vem de cima; persevero na crença no Direito, no caráter perene dos princípios que o respaldam, na prevalência da Constituição com lei fundamental, nada justificando o abandono, o menoscabo de que vem sendo alvo. É hora do Judiciário definir-se: ou bem zela pelo dever de guardião máximo da ordem jurídica, ou se mostra sensível a atitudes que desta discrepam, e aí como responsável pelo atual estado de coisas, que pode ser retratado em quando estarrecedor quanto aos precatórios que vêm, nos diversos Estados, sendo liquidados, isso considerada a data de expedição. Julgo procedente o pedido formulado, para que seja requisitada, nos termos do artigo 36, inciso II, da Constituição Federal, a intervenção no Estado de São Paulo. Da mesma forma, descabe agasalhar o elemento subjetivo, ou seja, a óptica segundo a qual não basta o simples descumprimento de decisão judicial para ter-se como aberta a via da intervenção, sendo necessário demonstrar a culpa ou o dolo na ausência de liquidação do precatório. Essa condição é estranha à ordem jurídica, mesmo porque não é crível que, havendo numerário para o pagamento, deixe a pessoa jurídica de direito público de implementá-lo. Prevalece o critério objetivo, o não cumprimento da ordem judicial, a inobservância do título executivo judicial, pouco importando saber a causa. Entendimento diverso implica, diante de definições políticas de gastos, ofensa ao primado do Judiciário, à certeza da valia dos julgamentos. O Estado vê-se sempre diante de dificuldades de caixa, sendo presumível, assim, a contumácia no descumprimento das obrigações pecuniárias estampadas em sentença. É como voto. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 256 VOTO O Senhor Ministro Gilmar Mendes: Em nosso sistema federativo, o regime de intervenção representa excepcional e temporária relativização do princípio básico da autonomia dos Estados. A regra, entre nós, é a não-intervenção, tal como se extrai com facilidade do disposto no caput do art. 34 da Constituição, quando diz que “a União não intervirá nem no Distrito Federal, exceto para: (...)”. Com maior rigor, pode-se afirmar que o princípio da não intervenção representa sub-princípio concretizador do princípio da autonomia, e este, por sua vez, constitui sub-princípio concretizador do princípio federativo, cabe lembra, constitui não apenas princípio estruturante da organização política e territorial do Estado brasileiro, mas também cláusula pétrea da Carta de 1988. No processo de intervenção federal nos Estados e no Distrito Federal, verificase, de imediato, um conflito entre a posição da União, no sentido de garantir a eficácia daqueles princípios constantes do art. 34 da Constituição, e a posição dos Estados e do Distrito Federal, no sentido de assegurar sua prerrogativa básica de autonomia. A primeira baliza para o eventual processo de intervenção destinado a superar tal conflito encontra-se expressamente estampada na Constituição, quando esta consigna a excepcionalidade da medida interventiva. Diante desse conflito de princípios constitucionais, considero adequada a análise da legitimidade da intervenção a partir de sua conformidade ao princípio constitucional da proporcionalidade. O princípio da proporcionalidade, também denominado princípio do devido processo legal em sentido substantivo, ou ainda, princípio da proibição do excesso, constitui uma exigência positiva e material relacionada ao conteúdo de atos restritivos de direitos fundamentais, de modo a estabelecer, um “limite do limite” ou uma “proibição do excesso” na restrição de tais direitos, A máxima da proporcionalidade, na expressão de Alexy, coincide igualmente com o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais concebido de modo relativo – tal como o defende o próprio Alexy. Nesse sentido, o princípio ou máxima da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de restrição legítima de determinado direito fundamental. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 257 A par dessa vinculação aos direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências dos princípios da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos entre princípios, isto é, um conflito entre normas que, ao contrário do conflito entre regras, é resolvido não pela revogação ou redução teleológica de uma das normas conflitantes nem pela explicitação de distinto campo de aplicação entre as normas, mas antes e tão-somente pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a fundamentar decisões em sentidos opostos. Nessa última hipótese, aplica-se o princípio da proporcionalidade para estabelecer ponderações entre distintos bens constitucionais. Em síntese, a aplicação do princípio da proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Tal como já sustentei em estudo sobre a proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (“A Proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, in Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional, 2ª ed., Celso Bastos Editor: IBDC, São Paulo, 1999, p.72), há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigurase adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto). Registre-se, por oportuno, que o princípio da proporcionalidade aplica-se a todas as espécies de atos dos poderes públicos, de modo que vincula o legislador, a administração e o judiciário, tal como lembra Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 2ª ed. , p. 264). Cumpre assinalar, ademais, que a aplicação do princípio da proporcionalidade em casos como o presente, em que há pretensão de atuação da União no âmbito da autonomia de unidades federativas, é admitida no direito alemão. Nesse sentido, registram Bruno Schmidt-Bleibtreu e Franz Klein, em comentário ao art. 37 da Lei Fundamental, que “os meios da execução federal (“Bundeszwang”) são estabelecidos pela Constituição, pelas leis federais e pelo princípio da proporcionalidade” (“Die Mittel dês Bundeszwanges werden durch Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 258 das Grundgesetz, die Bundesgesetze und da Prinzip der VerhältnismäBigkeit bestimmt”, Kommentar zum Grundgesetz, 9ª Ed., Lucherhand, p. 765). O exame da proporcionalidade, no caso em apreço, exige algumas considerações sobre o contexto factual e normativo em que se insere a presente discussão. Desse modo, não podem ser desconsideradas as limitações econômicas que condicionam a atuação do Estado quanto ao cumprimento das ordens judiciais que fundamentam o presente pedido de intervenção. Nesse sentido, constam do memorial apresentado pelo Estado de São Paulo, os seguintes dados, verbis: “...considerando-se as estimativas de arrecadação para o exercício corrente, as despesas com o pessoal dos três Poderes do Estado deverão se situar em torno de 58% das receitas correntes líquidas estaduais; os gastos com custeio, que permite o funcionamento do aparato administrativo, incluindo-se certas parcelas que compõem o percentual mínimo a ser aplicado no desenvolvimento do ensino (art. 212 da CF) e nas ações e serviços públicos de saúde (art. 198, 2º, da CF), deverão atingir o montante de 19% das receitas correntes líquidas, ao passo que o serviço da dívida junto à União consumirá aproximadamente, 12% daquelas receitas; há finalmente, os gastos com investimentos mínimos indispensáveis para a simples manutenção do funcionamento de serviços essenciais (rodovias estaduais operadas diretamente pelo Poder Público, aparato de segurança pública, redes de ensino e de saúde, etc.), estimados em 9% das receitas correntes líquidas.” E continua o Estado de São Paulo: “Excluídos os gastos apontados no item anterior, o que resta de recursos são utilizados no pagamento de precatórios judiciais, despesa essa estimada, para o ano de 2002 em cerca de 2% das receitas correntes líquidas, vale dizer, algo em torno de R$ 750.000.000 (setecentos e cinqüenta milhões de reais).” Como tenho afirmado, esse exame de dados concretos, ao invés de apenas argumentos jurídicos, não é novidade no Direito comparado. No âmbito dos reflexos econômicos da atividade jurisdicional, a experiência internacional tem, assim, demonstrado que a proteção dos direitos fundamentais e a busca da redução das desigualdades sociais necessariamente não se realizam sem a reflexão acurada acerca de seu impacto. Um caso paradigmático neste sentido é aquele em que a Corte Constitucional alemã, na famosa decisão sobre “numerus clausus” de vagas nas Universidades (“numerus-clausus Entscheidung”), reconheceu que pretensões destinadas a criar os pressupostos fáticos necessários para o exercício de determinado direito estão submetidas à “reserva do financiamento possível” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 259 (“Vorbehalt dês finansiellen Möglichen”). Nesse caso, segundo o Tribunal alemão, não pode existir qualquer obrigação constitucional que faça incluir o dever de, no sistema educacional, fornecer vagas a qualquer tempo e a qualquer um que as pleiteie, exigindo altos investimentos destinados a suprir demandas individuais sem qualquer consideração sobre o interesse coletivo. (BVerfGE 33, 303 (333)). Com efeito, não se pode exigir o pagamento da totalidade dos precatórios relativos a créditos alimentares sem que, em contrapartida se estabeleça uma análise sobre se tal pagamento encontra respaldo nos limites financeiros de um Estado zeloso com suas obrigações constitucionais. Tanto é verdade que, ainda que ocorra uma intervenção no Estado de São Paulo, o eventual interventor terá que respeitar as mesmas normas constitucionais e limites acima assinalados pelo referido Estado, contando, por conseguinte, com apenas 2% das receitas líquidas para pagamento dos precatórios judiciais. Ao interventor também será aplicável a reserva do financeiramente possível. Já afirmei, em outras oportunidades, a real necessidade de que os órgãos judicantes, ao julgarem questões intricadas analisem com a maior amplitude possível informações e dados concretos para obterem uma interpretação precisa. Com esse objetivo, vale destacar que, conforme informações apresentadas pela Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, este Estado vem atuando de maneira bastante positiva no tocante ao pagamento dos precatórios judiciais. Primeiramente, referido ente federado, atendendo ao disposto no art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescido pela Emenda Constitucional n. 30, de 13 de setembro de 2000, satisfez a totalidade do primeiro décimo dos precatórios não alimentares no ano de 2001. Ademais, por meio do Decreto Estadual n. 46.933, de 19 de julho de 2002, que regulamentou a Lei Federal n. 10.482, de 3 de julho de 2002, destinou-se, no próprio mês de julho, mais de R$ 100.000.000 (cem milhões de reais) para pagamento de precatórios alimentares, perfazendo, neste ano (até o presente momento), o total de R$ 170.221.716,98 (cento e setenta milhões, duzentos e vinte e um mil, oitocentos e dezesseis reais e noventa e oito centavos) com pagamento de precatórios alimentares. Também, consoante dados fornecidos por aquela Procuradoria, serão repassados à Fazenda Estadual, nos meses de agosto e setembro, cerca de R$ 202.000.000 (duzentos e dois milhões de reais), o que resultará até o final do ano no pagamento de mais de R$ 400.000.000 (quatrocentos milhões de reais), ou seja, mais de 10% da dívida total estimada. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 260 Portanto, não resta configurada uma atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento dos precatórios alimentares. No caso em exame, a par de um quadro de impossibilidade financeira quanto ao pagamento integral e imediato dos precatórios relativos a créditos de natureza alimentícia, verifica-se a conduta inequívoca da unidade federativa no sentido de honrar tais dívidas. É evidente a obrigação constitucional quanto aos precatórios relativos a créditos alimentícios, assim como o regime de exceção de tais créditos, conforme a disciplina do art. 78 do ADCT. Mas também é inegável, tal como demonstrado, que o Estado encontra-se sujeito a um quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. Nesse quadro de conflito, assegurar, de modo irrestrito e imediato, a eficácia da norma contida no art. 78 do ADCT, pode representar a eficácia a outras normas constitucionais. Exemplo bastante ilustrativo é a obrigação dos Estados no que se refere à educação e à saúde. Nos termos do art. 212 da Constituição, os Estados estão obrigados a aplicar vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. A Constituição também prevê, no art. 198, §2º, a aplicação de recursos mínimos pelos Estados na área de saúde. O descumprimento de tais obrigações, por óbvio, representaria negativa de eficácia a normas constitucionais, bem como implicaria a configuração de específica hipótese de intervenção federal. De fato, ao RT. 34, VI, alínea “e”, prevê expressamente, como hipótese de intervenção, a garantia da observância da “aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde”. Diante de tais circunstâncias, cumpre indagar se a medida extrema da intervenção atende, no caso, às três máximas parciais da proporcionalidade. É duvidosa, de imediato, a adequação da medida de intervenção. O eventual Interventor, evidentemente, estará sujeito àquelas mesmas limitações factuais e normativas a que está sujeita a Administração Pública do Estado. Poderá o interventor, em nome do cumprimento do art. 78 do ADCT, ignorar as demais obrigações constitucionais do Estado? Evidente que não. Por outro lado. É inegável que as disponibilidades financeiras do regime de intervenção não serão muito diferentes das condições atuais. Enfim, resta evidente que a intervenção, no caso, sequer consegue ultrapassar o exame de adequação, o que bastaria para demonstrar sua ausência de proporcionalidade. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 261 Também é duvidoso que o regime de intervenção seja necessário, sob o pressuposto de ausência de outro meio menos gravoso e igualmente eficaz. Manter a condução da Administração estadual sob o comando de um Governador democraticamente eleito, com a ressalva de que esteja o mesmo atuando com boa-fé e com o inequívoco propósito de superar o quadro de inadimplência, é inegavelmente medida menos gravosa que a ruptura na condução administrativa do Estado. Pode-se presumir, ademais, que preservar a chefia do Estado é igualmente eficaz à eventual administração por um interventor, ou, ao menos, não se poderia afirmar, com segurança, que a administração de um interventor, sujeito às inúmeras condicionantes já apontadas, será mais eficaz que a atuação do Governador do Estado. A intervenção não atende, por fim, ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito. Nesse plano, é necessário aferir a existência de proporção entre o objetivo perseguido, qual seja o adimplemento de obrigações de natureza alimentícia, e o ônus imposto ao atingido que, no caso, não é apenas o Estado, mas também a própria sociedade. Não se contesta, por certo, a especial relevância conferida pelo constituinte aos créditos de natureza alimentícia. Todavia, é inegável que há inúmeros outros bens jurídicos de base constitucional que estariam sacrificados na hipótese de uma intervenção pautada por um objetivo de aplicação literal e irrestrita das normas que determinam o pagamento imediato daqueles créditos. Por fim, consideradas as peculiaridades do caso em exame, diante dos princípios constitucionais que supostamente encontram-se em conflito, afigurase recomendável a adoção daquilo que a doutrina define como uma “relação de precedência condicionada” entre os princípios concorrentes. Nesse sentido, ensina Inocêncio Mártires Coelho: “Por isso é que, diante das antinomias de princípios, quando em tese mais de uma pauta lhe parecer aplicável à mesma situação de fato, ao invés de sentir obrigado a escolher este ou aquele princípio, com exclusão de outros que, prima facie, repute igualmente utilizáveis como norma de decisão, o intérprete fará uma ponderação entre os Standards concorrentes – obviamente se todos forem princípios válidos, pois só assim podem entrar em rota de colisão – optando, afinal, por aquele que, nas circunstâncias, lhe pareça mais adequado em termos de otimização de justiça. Em outras palavras de Alexy, resolve-se esse conflito estabelecendo, entre os princípios concorrentes, uma relação de precedência condicionada, na qual se diz, sempre diante das peculiaridades do caso, em que condições um princípio prevalece sobre o outro, sendo certo que, noutras circunstâncias, a questão da precedência poderá resolver-se de maneira inversa.” (Coelho, Inocêncio Mártires, Racionalidade Hermenêutica: Acertos e Equívocos, in: As Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 262 Vertentes do Direito Constitucional Contemporâneo, Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Coord. Ives Gandra S. Martins, São Paulo, América Jurídica, 2002, p. 363). Estão claros, no caso, os princípios constitucionais em situação de confronto. De um lado, em favor da intervenção, a proteção constitucional às decisões judiciais, e de modo indireto, a posição subjetiva de particulares calcada no direito de precedência dos créditos de natureza alimentícia. De outro lado, a posição do Estado, no sentido de ver preservada sua prerrogativa constitucional mais elementar, qual seja a sua autonomia, e, de modo indireto, o interesse, não limitado ao ente federativo, de não se ver prejudicada a continuidade da prestação de serviços públicos essenciais, como educação e saúde. Assim, a par da evidente ausência de proporcionalidade da intervenção para o caso em exame, o que bastaria para afastar aquela medida extrema, o caráter excepcional da intervenção, somado às circunstâncias já expostas recomendam a precedência condicionada do princípio da autonomia dos Estados. Por fim , cabe aqui lembrar da pioneira decisão desta Corte sobre o tema ora em discussão, em acórdão da relatoria do eminente Ministro Nelson Hungria (IF n. 20, DJ de 15.07.1954). Tratava-se de pedido de intervenção no Estado de Minas Gerais, que havia alegado não poder efetivar a decisão judicial que embasou o apelo, não por deliberado propósito de descumprir o requisitório, mas em razão de ocasional falta d numerário. Este Tribunal, por falta de unanimidade, reconheceu que: “Para justificar a intervenção, não basta a demora no pagamento, na execução de ordem u decisão judiciária, por falta de numerário: é necessário o intencional ou arbitrário embaraço ou impedimento oposto a essa execução.” Acrescentou o Ministro Nelson Hungria em seu voto: “Ora, no caso vertente, o retardamento não promana de obstáculo criado pelo Governador mineiro, mas da acidental exaustão atual do erário do Estado.” O precedente desta Corte bem se aplica ao pedido de intervenção sob exame. Com efeito, consoante as informações apresentadas pelo Estado de São Paulo, este ente federativo tem sido diligente na tentativa de plena satisfação dos precatórios judiciais. Encontra, contudo, obstáculos nas receitas constitucionalmente vinculadas e na reserva do financeiramente possível. A ele também se aplica a máxima invocada pelo Ministro Nelson Hungria: “Onde não há, até rei perde.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 263 Ressalta-se, porém, que não se está a atribuir uma imunidade aos Estados, relativamente ao cumprimento ou não dos precatórios judiciais, sob pena de absoluta inaplicabilidade do art. 78 do ADCT – o que certamente vai de encontro à força normativa da Constituição -, com a conseqüente perda de credibilidade das decisões proferidas pelo Poder Judiciário perante a sociedade Brasileira. O que se pretende é ultrapassar uma leitura simplista do texto constitucional, sobretudo, quando se tem em mente que a regra é da autonomia do ente federado. Desse modo, enquanto o Estado de São Paulo se mantiver diligente na busca de soluções para o cumprimento integral dos precatórios judiciais, não estarão presentes os pressupostos para a intervenção federal ora solicitada. Em sentido inverso, o Estado que assim não proceda estará sim, ilegitimamente, descumprindo decisão judicial, atitude esta que não encontra amparo na Constituição Federal. Indefiro, pois, o pedido. VOTO A Senhora Ministra Ellen Gracie -: Sr. Presidente, com vênia de V. Exa, também indefiro o pedido. Todo o sistema de precatórios, tão salutar se consideramos a situação anterior, vigorante até a Constituição de 1923, repousa em alguns princípios bascos: o da igualdade democrática, igualdade de oportunidades no pagamento, e o respeito à precedência cronológica de registro dessas requisições de pagamento. Talvez não tenha prestado a devida atenção, mas não ouvi a afirmativa de que os requisitórios, que embasam os pedidos em julgamento, sejam os primeiros da longa lista de credores alimentares do Estado de São Paulo. Essa é uma primeira colocação que faço. No entanto, não hesitaria em acompanhar V. Exa. se a solução preconizada pelo eminente Ministro-Relator fosse útil à solução do grave problema que nos é apresentado. O Tribunal tem grave responsabilidade: compete-lhe dar a cada um o que é seu, buscando fórmulas que representem uma verdadeira iniciativa conducente ao objetivo do restabelecimento da paz social. Salta aos olhos que decretar intervenção em um Estado da Federação a menos de dois meses da realização de eleições, que recolocam à disposição do povo o cargo de Governador – ao qual, aliás, concorre o seu atual ocupante – vale apenas e, tão-somente para agravar a atual situação de desequilíbrio Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 264 financeiro-orçamentário. Eventual interventor – isso foi bem colocado pelo eminente Ministro Gilmar Mendes – encontrará exatamente as mesmas limitações fáticas hoje existentes. Considero suficientes para afastar a pretensão no mérito – pelos dados que recebi em memoriais que foram apresentados – e efetiva inexistência de recursos financeiros, os quais permitam o atendimento imediato dos precatórios. Não apenas dos que embasam este pedido, mas de todos quantos os antecedem e de todos quantos tenham sido, na forma prevista na Constituição, incluídos em orçamento. É esse, realmente, o inteiro volume do débito que deve ser pago, mas, como as condições demonstram, há evidências de que é impossível fazê-lo de imediato. Sobrepõe-se, portanto, aquele velho brocardo romano: “ad impossibilia nemo tenetur”. É esta, aliás, a razão por que o eminente Ministro Gilmar Mendes, nos idos de 1962, indeferiu pedido de intervenção federal no Estado do Rio Grande do Norte. Disse então. S. Exa.: “Impossibilidade jurídica do atendimento à decisão afasta o caráter de desobediência judicial”. (IF n. 31/RN) Entendo, Sr. Presidente, que a desobediência que autoriza a intervenção, exige expressão ativa de vontade, que não verifico na atuação do executivo estadual paulista. Por isso, não vejo como deferir o pedido. Com vênia de V. Exa., acompanho a divergência. VOTO O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM – Sr. Presidente, indicam os autos e as informações que o passivo de precatórios do Estado de São Paulo corresponde a nove bilhões e quatrocentos milhões de reais. Desse conjunto, cinco milhões e quatrocentos correspondem a não alimentares, dão conta aos autos – por força do artigo 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que determinou que esses valores seriam liquidados em prestações anuais, no prazo máximo de dez anos – que o Estado de São Paulo parcelou em dez anos,ou seja, não fez nenhuma negociação redutora desses números em termos da obrigação constitucional de fazer esse parcelamento. De outro lado, o orçamento do Estado paulista, votado por sua Assembléia Legislativa, hoje representa, no que diz respeito à receita realizada e prevista para o orçamento de 2002: 58% destinado ao pessoal; 19% ao custeio, incluindo saúde e educação; 12% aos serviços da dívida; 9% aos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 265 investimentos, absolutamente necessários à manutenção mínima dos serviços estatais. Aos precatórios foram destinados 2%, acrescentando-se também algo a que a Nação assistiu, vindo exatamente do Estado de São Paulo, que foi a tentativa de destinar os depósitos judiciais para esta finalidade, à qual deu origem à lei federal referida, o que nos dá um total de quatrocentos milhões, ao fim deste anos, provavelmente, em termos que representaria 10% do passivo de precatórios alimentares, já que os não alimentares terão a dilação de dez anos, por força da determinação constitucional. A pergunta fundamental que se faz é esta: O Governo do Estado de São Paulo: ao tomar essas medidas, na sua lei orçamentária, deu azo a uma voluntária, desejada e arbitrária obstrução à execução das decisões judiciais; ou ele, tendo em vista os recursos existentes e as vinculações constitucionais obrigatórias, deu essa destinação? A resposta me parece ter sido dada corretamente pelo Ministro Gilmar Mendes e pela Ministra Ellen Gracie. Mas eu lembraria também um dado constitucional importante: essa Corte não poderia se furtar de examinar o §1º do art. 36 da Constituição Estadual, quando determina e se refere a decretação da intervenção, ao dizer que ela “dependerá”, elencando os itens de independência, no nosso caso específico, de desobediência da ordem ou decisão judicial de requisição do Supremo Tribunal Federal. Teríamos que requisitar essa intervenção. Não discutirei se estaria ou não sujeito à análise pelo Congresso Nacional. Esse decreto, por força da própria Constituição, além de especificar a amplitude da intervenção, o prazo, também teria de especificar as condições de execução da medida de intervenção. Os valores correspondentes a esse total de precatórios, 4 bilhões, seriam retirados de onde? Da folha de pagamento? Do retorno de 25% do ICMS, que deve o Estado de São Paulo atribuir aos municípios do seu Estado e à participação dos municípios em 25% condicionais? Da destinação feita à saúde? Da destinação feita à educação? Deverá ele retirar este interventor e este decreto do serviço da dívida e dos investimentos fixados em orçamento? A intervenção federal importa na intervenção da Assembléia Legislativa, desconstituindo a legislação orçamentária que determinou e definiu todos os investimentos públicos paulistas? Esta intervenção constitui-se também num poder que tenha o interventor ou o Poder Executivo Federal, por meio de decreto do seu representante interventor, de desconstituir os atos legislativos praticados pela Assembléia Legislativa estadual na fixação e na definição das receitas públicas investidas? Ou seja, o fundamental de alguma coisa que, às vezes, nós e alguns juristas esquecemos é a nítida relação de que todos os direitos, mesmo os direitos positivos têm custos. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 266 Há um grande trabalho, conhecido, ao que se referia o Ministro Celso de Mello, do Professor Sanstein, sobre custos do Direito, em que mostra, nas circunstâncias atuais de um pedido de intervenção, que temos de lembrar se isso é viável à execução, considerando as coisas como elas são, e não como elas deveriam ter sido ou poderiam ser. No caso específico, quer-me parecer, data venia, que efetivamente temos uma inadimplência no Estado de São Paulo. O Ministro Maurício Corrêa deve se lembrar disso, em 1987, discutindo na Assembléia Nacional Constituinte o art. 33; vinculava-se esse artigo aos interesses de um grande escritório da advocacia do Estado de São Paulo, qual havia adquirido os precatórios da FEPASA a 20% do preço de face, para obter, depois, o ressarcimento de 100% dos cofres públicos estaduais. E, lá, tentamos estabelecer um mecanismo que pudesse viabilizar a composição daquele passivo que se agravou a contribuição do imposto inflacionário. Com esse imposto, tinha-se a possibilidade de, na boca do caixa, administrar as despesas pela indexação das receitas e congelamento das despesas. Isto aqui é conseqüência de mudança substancial no País quanto à administração fiscal. E, hoje, temos claramente embutida a nova Lei de Responsabilidade Fiscal, em que os governadores dos Estados não podem constituir dívidas de desapropriações que venham a ser transferidas aos governos futuros exatamente para estabilizar essa situação. Na linha do precedente do Ministro Nelson Hungria e Antonio Vilas Boas, mencionados pela Ministra Ellen Gracie, o que se tem no ato de intervenção é coibir a ação dolosa de um governador do Estado ou de um órgão da administração estadual que, em condições, deixe de cumprir esses atos. Agora, intervir e não poder cumprir, porque as situações não se alteram... É evidente que também não podemos pensar que o interventor federal descerá de Brasília com dinheiro da União e irrigará os cofres públicos do Estado de São Paulo para atender as suas despesas. Isso é impossível. Então, estamos exatamente naquela situação que o Ministro Gilmar Mendes denomina de “absoluta inadequação da medida”. Qual seria a recomendação deste Tribunal ao deferir este pedido de intervenção ao Sr. Presidente da República e dizer quais as condições de execução dessa medida? Vamos determinar que esse valor de quatro milhões – não estamos discutindo esse caso, o eminente Presidente disse serem mais de dois mil... O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – São dois mil e oitocentos processos, se contar com o precatórios pendentes de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 267 liquidação que ainda motivaram, por vontade própria dos credores, a formalização de pedidos de intervenção. O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM – No caso específico, temos um pouco mais de dois mil processos. Não estamos decidindo um caso que represente R$ 60.000,00... O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – A intervenção não pode suprimir a ordem cronológica. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – É claro, mas respeitá-la seria incumbência do interventor. Não quer dizer que, deferida a intervenção, caminhe-se para a liquidação do precatório que a motivou, no dia seguinte. O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM – Ao que tudo indica, aí haveria a decisão global ao que seguramente teríamos pelo menos determinação de que o Estado de São Paulo deveria pagar, através do interventor, três bilhões de reais. Esse valor excede, de forma absoluta, a ordenação. Não obstante reconhecer, como ex-advogado, todas essas ansiedades – a questão dos credores -, temos um problema de conseqüências práticas e devemos relacionar algo importante nesse tipo de decisão judicial: a ponderação da relação das premissas das nossas decisões com as suas conseqüências. E aqui elas rigorosamente mantêm as coisas como estão, porque, depois, deverá ser decretada uma intervenção sobre o interventor, pois ele não terá condições de pagar, salvo se surgir uma figura nova – isso eu também não desconheço -, mas não a colocaria agora em discussão. Lanço-a apenas como questão futura: essas intervenções representarão ou não a desconstituição do Poder Legislativo estadual? Quero lembrar aos eminentes Colegas que a Constituição de 1891 tinha regras latas de intervenção. Não assegurava a participação do Tribunal e nem a chamada “ação de inconstitucionalidade interventiva”, ou ação de intervenção, dando origem àquele período político de intervenção dos governos Rodrigues Alves e Hermes da Fonseca. Ainda quero recordar-lhes que existem hoje Estados Federados no Brasil que, sob o argumento da intervenção, têm intervindo em municípios do Estado próximo desta Capital, exatamente sem a falta do controle absoluto. Creio ser angustiante, na há dúvida alguma, a questão posta sobre a mesa, mas quero lembrar... Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 268 O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES – V. Exa. me permite? Falamos aqui em proporcionalidade e examinamos com objetividade jurídica esse problema. Agora, parece-me que a questão se põe principalmente sob um aspecto: em se tratando de intervenção federal, em casos dessa natureza, é preciso demonstrar-se que há culpa por parte do Governador, ou seja, mesmo tendo meios para o pagamento, ele deixou de fazê-lo. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Vossa Excelência se contenta, portanto, com o elemento culpa; não chega do dolo. O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES – Culpa em sentido amplo, que abrange o dolo e a culpa em sentido estrito. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Aí teria que ser um sádico para... O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES – O problema, aqui, não é de sadismo, mas de ser preciso ocorrer, depois, a intervenção no interventor. Se o Estado não tiver realmente meios para o pagamento, como o interventor – que, obviamente, deverá gerir esses meios de acordo com a Constituição – poderá pagar? O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Mas seria para saneamento, o que não se faz de um dia para o outro, e a intervenção ganharia contornos pedagógicos. O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES – O problema não é de saneamento, até porque ele não se faz em um, dois ou três meses. Assim, teríamos uma intervenção até quando? E com uma circunstância: em caso com este, por exemplo, há uma sucessão de governadores. Vai-se punir justamente aquele último que está tentando fazer o que outros não fizeram... O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) –É pela impessoabilidade na Condução da Administração Pública. O governador não pode dizer que não paga porque a dívida foi assumida pelo antecessor, mostrando-se, assim, um irresponsável. O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES – Veja o típico caso ocorrido em Goiás: foi decretada pelo juiz uma reintegração de posse;o Governador disse ao juiz que não cumpriria essa decisão, ou seja, não mandaria tropa para que houvesse reintegração de posse. Pergunta-se: isso é sadismo? O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – É uma situação teratológica. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 269 O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES – Sr. Presidente, não é. Se o Governador não dispusesse de tropa suficiente, a intervenção teria de ser feita por outro motivo, porque o Estado não tinha a sai ordem mantida por falta de elementos e não por descumprimento de ordem judicial. No caso, para haver uma intervenção dessa natureza, há necessidade de se demonstrar que existe realmente culpa em sentido lato, dolo ou culpa em sentido estrito – no sentido de negligência – para ocorrer o provimento. O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM – Ministro, foi exatamente a análise das providências tomadas e esse conjunto de números que mostraram exatamente que o Estado de São Paulo, considerando as receitas líquidas disponíveis, definidas claramente como o somatório das receitas tributárias, das contribuições patrimoniais, industriais, agropecuárias e de serviços de transferências, descontadas as transferências aos municípios, tentou administrar, como pode, as suas situações orçamentárias, quer pela folha de pagamento, quer pelas reduções orçamentárias. Não vejo, objetivamente, ato doloso de obstrução, por parte do Governador, no cumprimento da obrigação constitucional referida. Estamos perante um caso de impossibilidade, a qual autoriza a afirmação de que a intervenção por sua vez, também, não resolverá absolutamente nada. Por quê? Porque não há o que se fazer em relação a esse tipo de mecanismo. Nessas circunstâncias está demonstrado aqui, claramente, que as medidas foram tomadas através da participação dos órgãos políticos do Estado de São Paulo na fixação e na votação das leis orçamentárias. Portanto, entendo não se configurar o que se chama de impedimento intencional e arbitrário contra o cumprimento da decisão judicial no caos dos precatórios. Com essas considerações, peço vênia a V.Exa. e acompanho a divergência iniciada pelo Ministro Gilmar Mendes. VOTO O SENHOR MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA: - Sr. Presidente, também entendo que a intervenção só é admissível em face da excepcionalidade das hipóteses previstas no artigo 34 da Constituição Federal, o que não poderia ser diferente. Vimos pela bem articulada sustentação do eminente Procurador-Geral do Estado de São Paulo, as razões pelas quais o Estado não pode ainda cumprir os encargos decorrentes dos precatórios que ensejaram o pedido de intervenção. Indago: qual seria, de fato, o resultado prático da intervenção? Nenhum! Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 270 Permita-me a comparação. Na hipótese do responsável pela manutenção de uma criança, em se tratando de pensão alimentícia, por exemplo, caso em que a lei permite, com relação a essa obrigação, a decretação da prisão do devedor por até trinta dias para exigir que o mesmo cumpra o encargo. Quando houver a manifesta vontade de não adimpli-la, há que aparecer algum meio capaz, caso possível, para que se possa depositar o dinheiro e livrá-lo da prisão. Alguém, por exemplo, que possa apiedar-se dele. Quando não se tem absolutamente condições de pagar, cumpre a prisão e, depois, é posto em liberdade. No caso, qual seria o sentido prático se consumada a intervenção? Daí a afirmação correta – feita da tribuna e, depois, minudentemente explicitada pelo voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes – da aplicação do princípio da proporcionalidade, pelos encargos públicos, que o Estado tem de cumprir. Sobrariam deles apenas os 2%...fato que por si explica a aplicação, no mínimo, do princípio da proporcionalidade. V. Exa., Ministro Marco Aurélio, impressionou-me, em seu voto, quando trouxe à colação exatamente o precedente de Goiás do Ministro Moreira Alves, o qual entende aplicar-se à hipótese. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Fiquei com Sua Excelência, mas vejo que Sua Excelência não ficará comigo. O SENHOR MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA: - Creio que não. Apesar da citação expressa, tenho dificuldade de acompanhar V. Exa. Qual é o precedente paradigmático para a hipótese? O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES – O primeiro precedente, que é do Ministro Nelson Hungria, exigia intenção dolosa. Eu admito, inclusive, haver intervenção quando há culpa, ou seja, negligência. Quando, podendo, deixa-se de pagar. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – A ilicitude está no descumprimento da decisão judicial, passados tantos anos. O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES – responsabilidade objetiva, não sendo caso de ilicitude. Caso contrário, há O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE e RELATOR) – Ministro Moreira Alves, realmente relutei muito e tentei, conforme preconizado no Regimento Interno, a solução suasória, sem trazer os processos ao Plenário. Não obstante, devo trazê-los. Eles estão prontos, com parecer favorável da Procuradoria-Geral da República. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 271 Após o esvaziamento do Projeto Arnaldo Madeira e, também, diante da circunstância dos recursos com os quais se conta, ano a ano, não são suficientes para se liquidar os precatórios de um mesmo ano – e, aí, a bola de neve continuará aumentando-, não vi outra solução, principalmente em face do tipo previsto, hoje, no §5º do artigo 100 da Constituição Federal, quanto à atuação do Presidente da Corte que retarda, de qualquer forma, o cumprimento de precatório. Aliás, deveríamos – o sofrido povo brasileiro-, pedagogicamente, merecer algo parecido, enquadrando, sim, os governadores que realmente claudicam e não satisfazem decisões judiciais. O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES - Pelo sistema constitucional vigente, não há solução prática para o problema, porque este se põe nisto: é preciso haver dinheiro; se não houver dinheiro, não adianta... O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Não sei, Ministro. Teríamos de aguardar, aí, a designação do interventor e os trabalhos que ele viria a desenvolver no Estado. O SENHOR MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA – Sr. Presidente, se Vossa Excelência me permite, vou concluir o meu voto. O precedente paradigmático é ainda resultante do julgamento da Intervenção 20, do Ministro Nelson Hungria. Foi no regime da Constituição de 1946. A hipótese prevista naquela Constituição é praticamente a mesma da que prevê a atual ordem constitucional. E Sua Excelência foi explícito: “Pedido de Intervenção Federal. Seu indeferimento (art. 7º, V, da Constituição). Para justificar a intervenção, não basta a demora no pagamento, na execução de ordem ou decisão judiciária, por falta de numerário: é necessário o intencional ou arbitrário embaraço ou impedimento oposto a essa execução.” Não basta a demora, que pode ser justificada na execução: é necessário que se apresente uma desobediência manifesta, propositada ou por descaso à ordem ou decisão judicial.” Quer dizer, não é essa a hipótese dos autos, porque, aqui, não resultou provado que houve essa desobediência. Para mim, Sr. Presidente, basta isso. Mantenho-me coerente com a jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal, que não sofreu modificação. Com essas breves considerações, reservo-me ainda um dia poder subscrever o voto de V. Exa. quando houver um caso em que haja realmente essa Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 272 necessária desobediência consubstanciada no desejo de não cumprir-se a decisão. Mas aqui não é a hipótese. Indefiro o pedido. VOTO O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Sr. Presidente, V. Exa. trouxe à Mesa pedido dos mais graves: pedido de intervenção calcado na existência de decisões judiciais condenatórias do Estado de São Paulo, proferidas há mais de dez anos, sem cumprimento por parte da unidade Federada. Trata-se de situação lamentável que, dada a freqüência com que ocorre tem levado a sociedade a duvidar da eficácia das decisões judiciais. Em oportunidade anterior, em que se examinou, neste Plenário, ação direta de inconstitucionalidade que impugnava normas disciplinadoras do processamento dos precatórios contidos no Regimento do Tribunal de São Paulo, votei, vencido, pela inconstitucionalidade de normas que previam o pagamento dos precatórios pela própria pessoa de direito público, em franca incompatibilidade com o art. 100 e parágrafos da CF que reservam esse encargo à Presidência do Tribunal, obviamente, para controle do princípio da ordem de preferência. É bom lembrar que o precatório, na verdade, é um meio de execução de sentença condenatória instituído no prol do credor, que fica dispensado de promover a penhora e leilão de bens, atos ensejadores de recursos que arrastam a execução por anos a fio. O regime está disciplinado no art. 100 da Constituição, comportando várias fases, a saber: a) a apuração do valor, até aquela data; b) requisição, pelo Presidente do Tribunal ao Governador, da inserção, no orçamento do ano seguinte, de verba correspondente ao valor apurado; c) inclusão obrigatória dessa verba, no orçamento da pessoa jurídica; d) execução do orçamento, mediante a consignação, à ordem do Poder Judiciário, da verba destinada ao pagamento das condenações judiciais, consignação essa que, obviamente, há de ser efetuada paulatinamente, mês a mês, no correr do exercício, ao ritmo da marcha da realização da receita; e) pagamento, pelo Presidente do Tribunal, dos precatórios, na ordem cronológica da apresentação, segundo a força dos depósitos, ou consignações, até o final do exercício. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Para ter-se uma visão prognóstica. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Se os pagamentos houverem de ser feitos por valores atualizados, forçosamente, haverá um saldo devedor final que passará para o próximo exercício orçamentário, a menos que os valores Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 273 inseridos no orçamento sejam acrescidos de uma parcela correspondente à projeção da inflação para o exercício orçamentário em execução. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Hoje, manda pagar devidamente corrigido; há previsão pedagógica. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Neste caso, o que não se esclarece é em que etapa do procedimento acima exposto ocorreu a alegada desobediência à ordem judicial. O Governador deixou de providenciar a inserção, no orçamento, de verba requisitada? Ou, ao revés, não autorizou ele a liberação dos duodécimos correspondentes, à disposição do Tribunal? Não creio seja momento de discutir questões como a de saber se houve dinheiro suficiente para essa liberação; ou se houve outras prioridades maiores que determinaram o desvio da verba. Li os memoriais e neles não vi nenhuma informação sobre o quantum que deixou de ser posto à disposição do Tribunal. Fala-se no percentual de 2% que, na verdade, nada esclarece. O que importa saber é se houve o pedido de inserção, no orçamento, de quantia suficiente para o atendimento do valor atualizado dos precatórios apresentados até 1º de julho; se, em caso positivo, os recursos foram postos à disposição do Presidente do Tribunal. O não-esclarecimento desses pontos dificulta o julgamento do pedido de intervenção. Aliás, estou aqui a ouvir, repetidas vezes, que o Estado não pagou os precatórios, e não consigo entender; porque, segundo a Constituição, que paga é o Presidente do Tribunal de Justiça. Fica-se sem saber que tipo de intervenção se está pleiteando: intervenção para obrigar o Governar a fazer inserir verba específica no orçamento? Ou para obrigá-lo a repassar tal verba à Presidência do Tribunal. Se é, para essa última hipótese, obviamente, não cabe aqui desculpa de falta de dinheiro, a menos que se demonstre que a falta foi linear, ou seja, o atendimento de todas as despesas orçadas, não havendo lugar para falar-se em prioridade. Se o Governo realizou obras públicas, executou algum outro programa, exigindo mais recursos que os previstos no orçamento e, dessa forma, prejudicou a distribuição do duodécimo ao Tribunal de Justiça, a escusa é inaceitável. De qualquer modo, está-se, neste caso, diante de dúvida até mesmo quanto ao tipo de intervenção. Será necessário o afastamento do Governador, para que o interventor cumpra o dever de repassar a verba destinada ao pagamento de precatórios ao Tribunal? Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 274 Segundo a Constituição, a intervenção limitar-se-á a determinada medida quando bastar ela para restabelecimento das normalidades. Daí a necessidade de saber-se, por exemplo, quanto entrou no orçamento de 2002? Os duodécimos foram distribuídos ao Tribunal? A verba foi insuficiente? Por quê? Na verdade, se não houve o repasse do restante da verba fosse feito. Sr. Presidente, lamento não poder acompanhar os votos já pronunciados, à exceção do de V. Exa, pois não posso aceitar a justificativa de que há despesas mais prementes, já que há, ao que penso, um orçamento a ser cumprido. O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES – Mas V. Exa. não pode julgar procedente em intervenção em que há uma ordem do Supremo. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – A Constituição diz que, no caso do art. 34, VI – hipótese vertente -, “ o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade”, mostrando que nem sempre a intervenção deverá importar o afastamento do Governador. Por outro lado, o RISTF, no art. 351, I, determinar que o Presidente do Tribunal tome as providências oficiais que lhe parecerem adequadas para remover, administrativamente, a causa do pedido, o que mostra que a solução da controvérsia admite alternativas, quando capazes de tornar desnecessária a medida drástica do afastamento do Governador. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Depende. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – É o caso da representação interventiva; não é disso que se cuida aqui. O SR. MINISTRO ILMAR GALVÃO – Aqui, parece que o pedido é para afastar omissões do Governador. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Não; esse é o caso da representação interventiva. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Se, ao que tudo indica, é para afastar omissões, há de encontrar-se uma solução alternativa. Está o Tribunal diante de um desafio, não podendo limitar-se a requisitar a intervenção. O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES – V. Exa. está, talvez, indicando um caminho aos advogados. Não é possível admitir-se uma intervenção federal e que não haja intervenção. V. Exa. está justamente sugerindo que se requeira ao Supremo que determine ao Governador, caso se verifique isso, que coloque a verba nos duodécimos para... Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 275 O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Caberá, quem sabe, uma medida cautelar pela qual se determina ao Governador que ponha os duodécimos vencidos à disposição do Tribunal. Não quero preocupar-me com o orçamento de 2001, porque esse orçamento, se não foi cumprido, já não poderá sê-lo, e 2002. O problema ficou para trás. Se, na verdade, não houve a requisição da inserção de verba no orçamento, que providência poderá tomar o interventor? O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Mas quem estabelece é o Presidente da República, no decreto. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Sim, mas o STF é que vai requisitar a intervenção, devendo dizer como deverá ser posta e prática. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Só espero, Ministro, não estar no exercício da Presidência. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – O interventor vai ocupar, por exemplo, as recebedorias de renda, para reunir a quantia necessária ao pagamento dos precatórios? O voto de V. Exa, Sr. Presidente, conclui no sentido do afastamento do Governador? O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Não; concluo por requisitar a intervenção, esperando, portanto, que o Presidente da República, por sua vez, cumpra a decisão o Supremo Tribunal Federal. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – A decisão, a meu ver, deve especificar as providências a serem postas em prática. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Para os créditos comuns. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – Voto pelo deferimento parcial da intervenção, para que o STF expeça uma ordem ao Governador de São Paulo, a fim de que ponha à disposição do Presidente do Tribunal de Justiça, num prazo razoável, os duodécimos vencidos em 2002. Não é possível haver uma verba no orçamento e o Governador fechar os olhos para a existência dessa verba, justamente quando se informa que o Estado de São Paulo tem tido superávits no orçamento fiscal. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – São quatro bilhões de reais de precatórios só de dívidas alimentares. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 276 O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – É interessante; e as prioridades, quais são? O alimento não é prioritário? A Constituição diz que é, tanto que mandou separar os precatórios alusivos a verbas alimentícias em relação à parte. O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (PRESIDENTE E RELATOR) – Todavia, Ministro, o duodécimo do ano não está em questão. O problema diz respeito a exercícios outros, mesmo porque o governador não pode utilizar parte do orçamento para liquidar os precatórios de 2001. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – O orçamento de 2002 deve englobar os precatórios relativos ao passado, que não foram pagos. O Ministro Gilmar Mendes falou em quatro bilhões. Ouve-se falar tanto em bilhões ultimamente que essa cifra restou banalizada, a ponto de ter considerado uma ninharia os três bilhões de reais por quanto foi vendida a Vale do Rio Doce, que era um orgulho nacional e que, nos primeiros anos que se seguiram à privatização, já auferiu lucro que supera, em muito, tal quantia. Defiro, em parte, o pedido, para o fim acima especificado. VOTO O SENHOR MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA: Sr. Presidente, também peço vênia a V. Exa. para acompanhar o voto do eminente Ministro Gilmar Mendes, porque já me pronunciei quando do início do julgamento das intervenções, cujos números foram mencionados por S. Exa. O Sr. Ministro Carlos Velloso: trata-se de pedido de intervenção federal no Estado de São Paulo, requerido por NAIR DE ANDRADE E OUTROS, com fundamento no art. 34, VI, da Constituição Federal, ao Eg. Tribunal de Justiça daquele Estado. Sustentam os requerentes, em síntese, o seguinte: a)em 30.10.1987 propuseram ação sob o procedimento ordinário em desfavor do Estado de São Paulo, pleiteando a concessão de “pontos” para efeito de evolução funcional e vantagens pecuniárias atrasadas; em 27.5.97, expediu-se o ofício requisitório que tomou o n. de ordem 1.279/98, constante do orçamento de 1998; b)o requerido, Estado de São Paulo, desconsiderou a determinação para a quitação dos precatórios de natureza alimentar, de uma só vez, consoante exigem os arts. 100 da Constituição Federal e 57, §3º, da Constituição paulista, tampouco efetuou depósito da parcela devida sem correção monetária, certo que o Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, já decidiu que os Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 277 precatórios relativos a créditos de natureza alimentícia devem ser pagos de uma só vez devidamente atualizados (RE 189.942-SP, “DJ” de 24.11.95). O Eg. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deferiu o processamento da intervenção federal, acentuando que ficou caracteriza a desobediência à ordem judicial, bem como a Emenda Constitucional 30/2000 em nada influiu no julgamento da questão (fls. 343/348). Remetaram-se, pois, os autos ao Supremo Tribunal Federal. Solicitadas informações nos termos dos arts. 351 e 352 do R.I./S.T.F., o GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO e o ESTADO DE SÃO PAULO, por intermédio de sua Procuradoria-Geral, se manifestaram às fls. 358/379, 392/394 e 417/441, salientando, em síntese, o seguinte: a)inocorrência do descumprimento da ordem judicial, dado que não houve a prática de ato comissivo ou omissivo intencionalmente dirigido ao não pagamento de precatórios, sendo ainda certo que, por ser a intervenção federal medida excepcional, o art. 34 da Constituição Federal deve ser interpretado de forma restritiva; b)a tese aqui defendida encontra apoio na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (IF 20-MG, Relator Ministro Nelson Hungria); c) tendo em vista principalmente disposto na Lei 10.482, de 03.7.2002, e no Decreto estadual 46.933, de 19.7.2002, o Estado de São Paulo vem envidando esforços a fim de honrar seus precatórios pendentes, tendo efetuado o pagamento, somente nos meses de junho e julho do corrente ano, da importância de R$ 131.364.814,34. Os requerentes se manifestaram às fls. 396/403, 413/414 e 445/447, sustentando o deferimento da intervenção porque não efetuado o pagamento devido. O eminente Procurador-Geral da República, Prof. Geraldo Brindeiro, opina pela procedência do pedido de intervenção federal. Na Sessão Plenária de 14.8.2002, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio, Relator, deferiu totalmente o pedido; o Ministro Ilmar Galvão deferiu-o, parcialmente. Por sua vez, os Ministros Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Nelson Jobim e Maurício Corrêa indeferiram o pedido. Pedi vista dos autos, recebendo-os e meu Gabinete no dia 22.8.2002; trago-os, agora, para prosseguimento do julgamento. Passo a votar. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 278 Em artigo de doutrina que escrevi – “Estado Federal e Estados – Federados na Constituição Brasileira de 1988 – o equilíbrio federativo”, no meu “Temas de Direito Público”, Del Rey Editora, 1ª edição, segunda tiragem, 1997, páginas 379 e seguintes – cuidei do tema da intervenção federal nos Estados membros. Registrei que “na ordem constitucional brasileira, intervenção federal é medida excepcional – a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para ... (art. 34); o Estado não intervirá em seus Municípios (...) exceto quando (...) (art. 35). A excepcionalidade da medida se justifica, por isso que ela afasta a autonomia do Estado-membro e do Município”. Ora, a autonomia estadual é traço básico caracterizador do Estado Federal, autonomia que compreende a auto-organização, no sentido de que os Estados elaboram as suas Constituições e as suas leis, observados, entretanto, os princípios inscritos na Constituição Federal, pelo autogoverno e pela auto-administração. Os pressupostos da intervenção federal estão expressamente inscritos na Constituição Federal (art. 34). Com base neles, José Afonso da Silva classifica a intervenção de quatro modos: a)intervenção para a defesa do Estado: art. 34, I e II; b)intervenção para a defesa do princípio federativo: art. 34, II, III e IV; c)intervenção para a defesa das finanças estaduais: art. 34, V,a e b; d)intervenção para a defesa da ordem constitucional: art. 34, VI e VII. No caso, o pedido de intervenção federal embasa-se no art. 34, VI, da Constituição Federal: para prover a execução de decisão judicial. Esse tipo de intervenção não constitui, evidentemente, forma de execução de sentença, dado que a intervenção federal é um ato político e, conforme foi dito, é medida excepcional. Ela somente ocorrerá no caso de desobediência flagrante no cumprimento da decisão judiciário. Por isso mesmo, decidiu o Supremo Tribunal Federal, na IF 20-MG, Relator o Ministro Nelson Hungria: “EMENTA: Pedido de intervenção federal: seu indeferimento. Art. 7º, V, da Constituição. Para justificar a intervenção, não basta a demora de pagamento, na execução de ordem ou decisão judiciária, por falta de numerário: é necessário o intencional ou arbitrário embaraço ou impedimento oposto a essa execução.” (STF, Plenário, 03.5.1954). No seu voto, acentuou o Ministro Nelson Hungria: “(...) Não padece dúvida que a intervenção autorizada pelo art. 7º, V, da Constituição Federal tem como pressuposto a injustificada oposição, por parte Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 279 do Governo estadual, de embaraço ou impedimento à execução de ordem ou decisão judiciária. Não basta a demora, que pode ser justificada, na execução: é necessário que se apresente uma desobediência manifesta, propositada ou por descaso à ordem ou decisão judicial. É o que já ensinava Barbalho, comentando o parágrafo 4º do art. 6º, da Constituição de 81: - a intervenção em tal caso se deve entender como uma sanção para constranger à obediência os governos dos Estados, ‘quando embaracem ou se opõem à execução’ das decisões judiciais (‘Constituição Federal Brasileira’, pg. 27). No mesmo sentido, Pontes de Miranda, comentando a atual Constituição: - ‘Há intervenção sempre que se impede a eficácia da sentença, decisão ou ordem’ (‘Comentários à Constituição de 1946’, Ed. 1953, vol 1º, pg. 486). É preciso que um desarrazoado obstáculo tenha sido oposto pelo Governo estadual à execução da decisão ou ordem. Ora, no caso vertente, o retardamento na execução não promana de obstáculo criado pelo Governador mineiro, mas da acidental exaustão atual do erário do Estado. Plenamente justificada é a mora de pagamento. Onde não há, até rei perde. (...)” O Ministro Gilmar Mendes, iniciando a divergência e votando pelo indeferimento do pedido, acentuou e esclareceu: “(...) O exame da proporcionalidade, no caso em exame, exige algumas considerações sobre o contexto factual e normativo em que se insere a presente discussão. Desse modo, não podem ser desconsideradas as limitações econômicas que condicionam a atuação do Estado quanto ao cumprimento das ordens judiciais que fundamentam o presente pedido de intervenção. Nesse sentido, constam do memorial apresentado pelo Estado de São Paulo, os seguintes dados, verbis: “... considerando-se as estimativas de arrecadação para o exercício corrente, as despesas com o pessoal dos três Poderes do Estado deverão se situar em torno de 58% das receitas correntes líquidas estaduais; os gastos com custeio, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 280 que permite, o funcionamento do aparato administrativo, incluindo-se certas parcelas que compõem o percentual mínimo a ser aplicado no desenvolvimento do ensino (art. 212 da CF) e nas ações e serviços públicos de saúde (art. 198, 2º da CF), deverão atingir o montante de 19% das receitas correntes líquidas, ao passo que o serviço da dívida junto à União consumirá aproximadamente , 12% daquelas receitas; há finalmente, os gastos com investimentos mínimos indispensáveis para a simples manutenção do funcionamento de serviços essenciais ( rodovias estaduais operadas diretamente pelo Poder Público, aparato de segurança público, redes de ensino e de saúde, etc), estimados em 9% das receitas correntes líquidas.” E continua o Estado de São Paulo: “Excluídos os gastos apontados no item anterior, o que resta de recursos são utilizados no pagamento de precatórios judiciais, despesa esta estimada, para o ano de 2002, em cerca de 2% das receitas correntes líquidas, vale dizer, algo em torno de R$ 750.000.000 (setecentos e cinqüenta milhões de reais)”. Como tenho afirmado, esse exame de dados concretos, ao invés de apenas argumentos jurídicos, não é novidade no Direito comparado. No âmbito dos reflexos econômicos da atividade jurisdicional, a experiência internacional tem, assim, demonstrado que a proteção dos direitos fundamentais e a busca da redução das desigualdades sociais necessariamente não se realizam sem a reflexão acurada acerca de seu impacto. (...)”. Esclareceu, mais, o eminente Ministro Gilmar Mendes: “(...) Já afirmei, em outras oportunidades, a real necessidade de que os órgãos judicantes, ao julgarem questões intricadas, analisem com a maior amplitude possível informações e dados concretos para obterem uma interpretação precisa. Com esse objetivo, vale destacar que, conforme informações apresentadas no memorial encaminhado pela Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, este Estado, vem atuando de maneira bastante positiva no tocante ao pagamento dos precatórios judiciais. Primeiramente, referindo ente federado, atendendo ao disposto no art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescido pela Emenda Constitucional nº 30, de 13 de setembro de 2000, satisfez a totalidade do primeiro décimo dos precatórios não alimentares no ano de 2001. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 281 Ademais, por meio do Decreto Estadual nº 46933, de 19 de julho de 2002, que regulamentou a Lei Federal nº 10482, de 3 de julho de 2002, destinou-se, no próprio mês de julho, mais de R$ 100.000.000 (cem milhões de reais) para pagamento de precatórios alimentares, perfazendo no ano até agora o total de R$ 170.221.716,98 (cento e setenta milhões, duzentos e vinte e mi, setecentos e dezesseis reais e noventa e oito centavos) com pagamento de precatórios alimentares. Também, consoante dados fornecidos por aquela Procuradoria serão repassados á Fazenda Estadual, nos meses de agosto e setembro, cerca de R$ 202.000.000 (duzentos e dois milhões de reais), o que resultará até o final do ano no pagamento de mais de R$ 400.000.000 (quatrocentos milhões de reais), ou seja, mais de 10% da dívida total estimada. Portanto, não resta configurada uma atuação doloso e deliberada do Estado de São Paulo com a finalidade de não pagamento dos precatórios alimentares. (...)” Não há falar, portanto, que o Estado de São Paulo esteja desobedecendo a ordem judicial arbitrariamente, o que acontece é que, observadas as limitações orçamentárias, está ele pagando os precatórios. Do exposto, com a vênia do Ministro Relator, acompanho o voto do Ministro Gilmar Mendes e dos demais Ministros que o seguiram. Indefiro o pedido de intervenção federal. O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO: Trata-se de pedido de requisição de intervenção federal encaminhado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com apoio no inciso VI do art. 34 da Constituição Federal, porquanto destinado a prover a execução de ordem judicial de pagamento de precatório de servidores estaduais, relativa a diferenças remuneratórias. Em seu petitório disseram os exeqüentes que, “em 27.05.97, foi expedido o ofício requisitório que tomou o número de ordem 1.279/98, constante do orçamento de 1998, havendo a Fazenda desconsiderado “a determinação constitucional para que a quitação dos precatórios de natureza alimentar, como é o caso, fosse feita de uma vez, e nem se dignou a depositar a parcela devida sem correção monetária”. A inicial foi instruída com cópia dos autos do precatório, expedido pelo MM. Juiz de Direito da 11.ª Vara da Fazenda Pública da Capital paulista (fls. 52/260) – com a recomendação de que, in verbis: “o pagamento deverá ocorrer, no máximo, em trinta dias, tempo suficiente para o empenho, de uma só e com atualização, até a data do depósito” (fl. 59) – por meio dos quais se verifica Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 282 que, após conferidas as peças integrantes do instrumento (fl.261), determinou o Presidente do Tribunal de Justiça, em 28.07.97, que se transmitisse o “expediente a à entidade devedora, para as providências de depósito em nome do D. Juízo requisitante, importância de R$1.933.012,05, objeto da conta de liquidação” (fl. 262). Em face do pedido de intervenção manifestado pelos servidores beneficiários do precatório em causa, foram solicitadas informações ao Chefe do Poder Executivo, havendo sido dito, em resposta, que o Estado não está deixando de cumprir ordens judiciais de forma intencional, arbitrária ou desarrazoada, visto que, apesar de todos os esforços no sentido de acatá-las, vem esbarrando na exaustão do Erário, óbice que não tem sido possível afastar por meio da abertura de créditos suplementares, uma vez que tal providência, além de depender de autorização legislativa, deve obrigatoriamente indicar a fonte de custeio, vale dizer, de qual receita vai sair a despesa, sendo certo que inexistindo receita disponível se torna inviável a abertura de tais créditos (fls. 278/294). O processamento da intervenção foi deferido pelo Tribunal de Justiça, em 14.03.2001 (fls. 343/348). Perante o /STF, foram reproduzidas pelo Governo de São Paulo as informações que já haviam sido prestadas ao Tribunal paulista, havendo a douta Procuradoria-Geral da República opinado pelo deferimento do pedido (fl. 383). Às fls. 417/420, veio aos autos a Procuradoria-Geral do Estado para dizer que, dando execução à recente Lei n.º 10.842/02, foi editado o Decreto n.º 46.933/02, pelo qual o Sr. Governador determinou ao Banco Nossa-Caixa que efetuasse o repasse à conta única do Tesouro do Estado os valores correspondentes a 80% dos depósitos judiciais e extrajudiciais efetuados a partir de 4 de julho de 2002, referentes a processos judiciais ou administrativos em que o Estado seja parte e que tenham pó objeto questões de natureza tributária, para serem utilizados pelo referido órgão “exclusivamente para pagamento dos precatórios judiciais relativos a créditos de natureza alimentar” (fls. 417/441). Esses recursos, obviamente, hão de ser utilizados para o fim de respaldar a abertura de créditos adicionais a serem consignados, como os ordinários, ao Poder Judiciário, e não para serem utilizados no pagamento de precatórios diretamente pelo Estado, procedimento que entraria em choque com os arts. 100 e 167 da CF, deixando sem controle a observância do princípio da precedência. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 283 O eminente Ministro-Presidente, na assentada de 14 de agosto último, votou em parte, por mim, havendo votado pelo indeferimento os Ministros Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Nelson Jobim e Maurício Corrêa. Na sessão do último dia 25 de setembro, após voto do eminente Ministro Carlos Velloso, pedi vista dos autos. Anteriormente, havia votado no sentido de fosse determinado ao Governo estadual que pusesse à disposição do Tribunal de Justiça a parcela da dotação orçamentária que, no orçamento de 2002, houvesse sido consignada ao Poder Judiciário, alusiva aos meses de janeiro a julho do corrente ano, solução que me ocorreu como bastante para obviar não apenas o presente pedido de intervenção federal, mas todos os outros em processamento perante esta Corte, contra o Governo do referido Estado. Estava persuadido de que a desobediência do Poder Executivo à ordem judicial, no caso, se restringia à omissão na liberação dos recursos orçamentários destinados ao pagamento dos precatórios, por insuficiência de recursos ou de receita, justificativa que se fosse aceita pelo Supremo Tribunal Federal, justamente de parte do Estado mais rico da Federação, valeria pelom decreto de falência do sistema de precatórios como meio de execução de sentenças condenatórias contra o Estado, e, conseqüentemente, pela declaração de ineficiência do art. 100 da Constituição Federal. O superveniente pedido de vista resultou de dúvidas que me ocorreram, a partir de então, quanto às causas do alegado inadimplemento. Examinados os autos, reponho o feito em mesa. O vocábulo “precatório”, segundo os historiadores do Direito brasileiro, deriva da expressão “precatória de vênia”, que consistia em um pedido de licença dirigido à Câmara Municipal, para o fim de proceder-se à penhora de bens da Municipalidade. Até então, o Poder Público não detinha privilégios processuais, razão pela qual, nas execuções contra a Fazenda, nada impedia a penhora de bens públicos. O precatório, como meio de obviar a imunidade à penhora que acabou por proteger tais bens (Instrução de 10.4.851, do Diretório do Juízo Fiscal e Contencioso dos Feitos da Fazenda), foi introduzido pelo Decreto n.º 3.084/898, tendo ganhado status constitucional com a Carta de 1934 (limitado à Fazenda Federal), cujo art. 182 dispunha que “os pagamentos devidos pela Fazenda federal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão na ordem de apresentação dos precatórios e às contas dos créditos respectivos, sendo vedada a designação de caso ou pessoas nas verbas legais” e que “esses créditos serão consignados pelo Poder Executivo ao Poder Judiciário, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 284 recolhendo-se as importâncias ao cofre dos depósitos públicos”, cabendo “ao Presidente da Corte Suprema expedir as ordens de pagamento, dentro das forças do depósito...” Pontes de Miranda, comentando esse dispositivo, já havia afirmado que nenhuma atribuição de ordenar o pagamento possuíam o Presidente República, os Ministros do Estado, o Tribunal de Contas, ou qualquer autoridade administrativa (in Comentários à Constituição, 1935, p. 557). O Código de Processo Civil/39 nada mais fez do que repetir a disciplina dos precatórios contida na Carta de 37, que, de sua vez, se limitou a reproduzir o modelo da Carta de 34, ao determinar que fossem consignados pelo Poder Executivo ao Poder Judiciário os créditos contra a Fazenda federal, recolhendo-se as importâncias ao cofre dos depósitos públicos, sistema que, no dizer de Eduardo Espínola (in Const. Dos Estados Unidos do Brasil, Ed. Freitas Bastos, II vol. 1952, p. 647), produziu excelentes resultados. A Carta de 1946 estendeu o modelo aos Estados e Municípios e, em conseqüência, previu a competência, no lugar da do Presidente do STF, a do Presidente do novel Tribunal federal, o Tribunal Federal de Recursos, acrescentando a do Presidente do Tribunal de Justiça, para expedição das ordens de pagamento, segundo as possibilidades do depósito (art. 204 e parágrafo). A Carta de 67 trouxe duas inovações: a obrigatoriedade da “inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento dos seus débitos constantes de precatórios judiciários, apresentados até primeiro de julho” e a proibição de “designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos extra-orçamentários abertos para esse fim” (art. 112 e parágrafos). A EC 01/69 reproduziu, no ponto, as disposições da CF/67 (art. 117 e parágrafos). O sistema de precatório, portanto, é originário do direito brasileiro, sendo correntio afirmar-se que não têm similar em outros países. Teoricamente, torna a execução contra a Fazenda mais cômoda para o credor, visto que o livra dos percalços da execução forçada que, entre nós, se desenvolve num processo sempre inçado de percalços e dificuldades que, não raro, se estende por anos a fio. A ordem cronológica que, a rigor, é observada, dá-lhe a tranqüilidade de que seu direito não será preterido. O problema que geralmente surge é o da insuficiência dos recursos do Estado para a satisfação de todos os credores, situação que foi sempre agravada pela circunstância de os pagamentos serem feitos por valores defasados, dando Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 285 ensejo a precatórios complementares que de ordinário tornavam a execução uma verdadeira renda anual, vitalícia, do credor contra o Estado. O art. 100 da Carta de 88, em sua redação original, sob cuja égide se processou o precatório sob enfoque, assim dispunha: “Art. 100. À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. § 1.º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento dos seus débitos constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, data em que terão atualizados seus valores, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte. § 2.º As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados ao Poder Judiciário, recolhendo-se as importâncias respectivas à repartição competente, cabendo ao Presidente do tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento, segundo as possibilidades de depósito, e autorizar, a requerimento do credor e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito.” O dispositivo, como se percebe, descreve um procedimento complexo, constituído de diversas fases, que podem ser assim descritas: - expedição do precatório ao Presidente do Tribunal competente, pelo Juiz da execução movida contra a Fazenda Pública, após julgamento dos embargos; - atuação, no Tribunal, dos precatórios apresentados até 1.º de julho; - atualização monetária de seus valores na referida data; - determinação, pelo Presidente do Tribunal, de inclusão, no orçamento do Estado para o exercício seguinte, de dotação correspondente ao valor atualizado dos precatórios; - inclusão obrigatória da dotação no orçamento, de maneira global, sem designação de casos ou de pessoas, consignada ao Poder Judiciário. Logicamente, em razão do entendimento que, então, já vigorava no Estado de São Paulo, segundo o qual os precatórios de natureza alimentícia deveriam ser solvidos, de uma vez, pelo seu valor monetariamente atualizado, as dotações a eles destinadas haveriam de ser calculadas de molde a poder fazer em face da Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 286 inflação projetada para o período compreendido entre a data da atualização dos precatórios e o final do exercício da execução orçamentária; - recolhimento da dotação, naturalmente por parcelas, ao longo do exercício em foco, à instituição financeira prevista em lei ou indicada pelo Presidente do Tribunal; - determinação, pelo Presidente do Tribunal, do pagamento dos precatórios “segundo as possibilidades do depósito”, observada a “ordem cronológica de apresentação”. Após o pagamento do precatório, a requerimento do credor, será verificada, no Juízo da Execução, a existência de eventuais acréscimos, os quais, devidamente processados, serão objeto de precatório complementar, que correrá os mesmos trâmites acima descritos. Considerando que o orçamento é uma lei temporária, que vige por um ano, os precatórios que, eventualmente não houverem sido pagos “até o final do exercício seguinte” – para usar a expressão da Constituição – deverão ser relacionados para a inclusão no próximo orçamento, juntamente com os novos precatórios e os precatórios complementares apresentados até 1.º de julho, por seus valores atualizados nessa data; e assim sucessivamente. Assim, diante desse modelo (já alterado pela EC 30/00), não havia lugar para que o Tribunal de Justiça, no presente caso, agisse como agiu, transferindo o precatório ao Estado, “para as providências de depósito em nome do Juízo requisitante”. Ao revés, após a atualização do valor requisitado, à data de 1.º de julho, deveria ter sido relacionado com os demais precatórios em processamento, para fim de ser determinada a inclusão, no orçamento de 1998, de dotação de quantia global, devidamente acrescida da correção monetária projetada para o referido exercício. O Governador, em conseqüência, pelo regime que era previsto no texto original do art. 100 e parágrafos da CF, no presente caso, só poderia ser considerado desobediente à ordem judicial se deixasse, primeiramente, de providenciar a inclusão, no orçamento, da dotação requisitada pelo Tribunal; e, em segundo lugar, de pôr à disposição do Tribunal, durante o exercício orçamentário, os recursos alusivos à dotação prevista na lei de meios. Estabelecidas essas premissas, cumpre examinar o que efetivamente determinou o presente pedido de intervenção. Conforme acima relatado, os autos quase nada revelam acerca do precatório que embasou o pedido de intervenção. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 287 Esclarecem, apenas, que é ele originário da 11.ª Vara da Fazenda Pública Estadual, havendo sido expedido, como se viu, com a recomendação de que o pagamento deveria ocorrer no prazo máximo de trinta dias, devidamente atualizada (fl. 59) e que, havendo dado entrada no Tribunal de Justiça no dia 27.5.97 (fl. 261), por ofício de 28.7.97 (fl. 262), simplesmente foi ele “transmitido” à entidade devedora, “para as providências de depósito em nome do D. Juízo requisitante”. Basta, portanto, um perfunctório confronto desse último ato com o art. 100 e parágrafos da CF, em sua redação original, para a convicção de que se está diante de ordem judiciária não afeiçoada aos ditames do art. 100 da CF, em que não se previa a possibilidade de transferência de precatório ao Poder Executivo e, muito menos, de depósito da quantia correspondente em nome do Juízo deprecante, não sendo demais relembrar que ao Chefe do Poder Judiciário o que cumpria era mandar proceder à atualização do valor do débito, referida a 1.ª de julho, e, em seguida, requisitar providências do Chefe do Poder Executivo no sentido da inclusão, no orçamento para o exercício seguinte, da dotação correspondente à soma dos precatórios oportunamente apresentados, a ser consignada ao Poder Judiciário, à conta da qual haveriam de ser feitos, por ele próprio, como já exaustivamente demonstrado. Aliás, o pronto depósito da quantia alusiva ao precatório em causa, requisitado pelo Tribunal de Justiça ao Governador, era medida que se revelava duplamente inconstitucional, visto que, além de contrariar o rito previsto no art. 100, ia de encontro ao art. 167,II, que veda “a realização de despesas... que excedam os créditos orçamentários ou adicionais”, hipótese configurada no caso, já que o pretendido depósito, ao que tudo indica, não foi precedido de inclusão, no orçamento, da dotação correspondente. Tem aplicação, portanto, ao caso, a lição de Ives Gandra da Silva Martins, dada em resposta a consulta do Prof. Gilmar Mendes (cf. fl. 366), segundo a qual, “no momento em que uma decisão judicial determine que se seja paga uma determinada importância contra o rígido orçamento aprovado, à evidência, impõe uma condição de impossível cumprimento pelo Poder Executivo, que não pode alocar recursos fora dos estritos termos das leis orçamentárias”. Desenganadamente, portanto, está-se diante de ordem constitucionalmente irrita e, mais do que isso, de cumprimento juridicamente impossível, cuja infringência, conseqüentemente, não é suscetível de embasar a intervenção prevista no art. 34, VI, da Constituição. Retificando as conclusões do entendimento anteriormente esposado, voto, por conseqüência, com a vênia do eminente Presidente, pelo indeferimento do pedido. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 288 VOTO O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O instituto da intervenção federal, consagrado no texto de todas as Constituições republicanas brasileiras, representa um elemento fundamental, tanto na construção da doutrina do Estado Federal, quanto na práxis do federalismo. O mecanismo de intervenção constitui instrumento essencial à viabilização do próprio sistema federativo, e, não obstante o caráter excepcional de sua utilização – necessariamente limitada às hipóteses taxativamente definidas na Carta Política -, mostra-se impregnado de múltiplas funções de ordem políticojurídico, destinadas (a) a tornar efetiva a intangibilidade do vínculo federativo, (b) a fazer respeitar a integridade territorial das unidades federadas, (c) a promover a unidade do Estado Federal e (d) a preservar a incolumidade dos princípios fundamentais proclamados pela Constituição da República. A intervenção federal, na realidade, configura expressivo elemento de estabilização da ordem plasmada na Constituição da República. É-lhe inerente a condição de instrumento de defesa dos postulados sobre os quais se estrutura, em nosso País, a ordem republicano-federativa. “O instituto da intervenção” – adverte ERNESTO LEME (“A Intervenção Federal nos Estados”, p. 25, item n. 20, 2ª Ed., 1930, RT) – “é (...) da essência do sistema federativo”. Sem esse mecanismo de ordem político-jurídica, que assegura a intangibilidade do pacto federal, “a União seria um nome vão. E as garantias e vantagens, que a Federação deve proporcionar aos Estados e ao povo, se reduziriam a simples miragem” (JOÃO BARBALHO, “Constituição Federal Brasileira – Comentários”, p. 31, 2ª Ed., 1924, Rio de Janeiro, Briguiet e Cia. Editores. Cabe destacar, neste ponto, o magistério doutrinário, que, fundado na necessidade de respeito ao princípio federativo, adverte sobre a excepcionalidade da intervenção federal, em face do caráter extremamente perturbador que assume qualquer interferência do Governo Federal nos assuntos regionais e na esfera de autonomia dos Estados-membros (CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Brasileira”, p. 158, item n. 128, 3ª Ed., 1929, Globo; THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, “A Constituição Federal Comentada” vol. I/183, 3ª Ed., 1956, Konfino; FÁVILA RIBEIRO, “A Intervenção Federal nos Estados”, p. 48, tese de concurso, 1960, Editora Jurídica, Fortaleza). Não se pode perder de perspectiva a circunstância de que a intervenção federal representa, ainda que transitoriamente, a própria negação da autonomia institucional reconhecida aos Estados-membros pela Constituição da República. Essa autonomia, que possui extração constitucional, configura postulado fundamental peculiar à organização político-jurídica de qualquer Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 289 sistema federativo, inclusive do sistema federativo vigente no Brasil. O poder autônomo – que a ordem jurídico-constitucional atribuiu aos Estados-membros – traduz um dos pressupostos conceituais inerentes à compreensão mesma do federalismo. Plenamente invocável, a tal propósito, o autorizado magistério do eminente Professor JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 483, item n.2, 20ª Ed., 2002, Malheiros), cuja lição, no tema, adverte: “Intervenção é antítese da autonomia. Por ela, afasta-se, momentaneamente, a atuação autônoma do Estado, Distrito Federal ou Município que a tenha sofrido. Uma vez que a Constituição assegura a essas entidades autonomia como princípio básico da forma de Estado adotada, decorre daí que a intervenção é medida excepcional, e só há de ocorrer nos casos nela taxativamente estabelecidos e indicados como exceção ao princípio da não intervenção...”. (grifei) Daí a estrita disciplina imposta pela Constituição ao instituto da intervenção federal, cujos requisitos de admissibilidade foram por ela taxativamente relacionados em “numerus clausus”, em obséquio ao princípio maior da autonomia das unidades federativas e em consideração ao caráter absolutamente excepcional de que se reveste o ato interventivo. Essa circunstância justifica, plenamente, a advertência constante do magistério doutrinário de PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967”, toma 2/198, 1967, RT), para quem “a intervenção nos Estados-membros constitui, pelo menos, teoricamente, o ‘punctum dolens’ do Estado Federal”. Vê-se, portanto, que o tratamento restritivo, constitucionalmente dispensado ao mecanismo da intervenção federal, impõe que não se ampliem, as hipóteses de sua incidência, cabendo, ao intérprete, identificar, no rol exaustivo do art. 34 da Carta Política, os casos únicos que legitimam, em nosso sistema jurídico, a decretação da intervenção federal nos Estados-membros. O estatuto constitucional brasileiro inclui, dentre as hipóteses de admissibilidade da intervenção federal nos Estados-membros, a ocorrência de desrespeito ou de desobediência a ordem ou a decisão emanadas do Poder Judiciário (CF, art. 34, VI, c/c o art. 36, II). A exigência de respeito incondicional às decisões judiciais transitadas em julgado traduz imposição constitucional, justificada pelo princípio da separação de poderes e fundada nos postulados que informam, em nosso sistema jurídico, a própria concepção de Estado Democrático de Direito. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 290 O dever de cumprir as decisões emanadas do Poder Judiciário, notadamente nos casos em que a condenação judicial tem por destinatário o próprio Poder Público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontornável obrigação institucional a que n&o se pode subtrair o aparelho de Estado, sob pena de grave comprometimento dos princípios consagrados no texto da Constituição da República. Cabe verificar, pois, se se registra, no caso presente, situação caracterizadora de desobediência a ordem judicial - que se qualifica como pressuposto de legitimação da intervenção federal. Torna-se essencial, portanto, constatar se ocorreu, na espécie, hipótese configuradora de resistência ilícita, ou de injusto retardamento, ou, ainda, de arbitrária oposição ao cumprimento de decisão judicial, que, de modo irrecorrível, condenou, o Estado de São Paulo, a pagar débito de caráter alimentar. O Estado de São Paulo, embora enfatizando a sua disposição de satisfazer os débitos que possui, cumprindo, assim, as decisões judiciais que o condenaram, demonstrou - considerada a estrutura das despesas do Estado, em face das receitas correntes líquidas estaduais - a sua incapacidade material de solver as obrigações existentes, acentuando, a esse propósito, que, verbis: “No intuito de agilizar esses paramentos, empenhou-se o Governo do Estado, como é público e notório, para que fosse editada medida legislativa que viabilizasse a utilização de depósitos judiciais para pagamento de precatórios exclusivamente alimentares. Assim é que, por força da recente Lei Federal n° 10.482, de 3 de julho último (documento n° 2), regulamentada no âmbito do Estado pelo Decreto n° 46.933, de 19 de julho do corrente ano (documento n° 3), tornou-se possível a destinação, já no mês de julho, de R$ 106.028.200, 02 (cento e seis milhões, vinte e oito mil, duzentos reais e dois centavos) para pagamento de precatórios alimentares (documento n° 4), atingindo-se o total pago de precatórios alimentares no ano de R$ 170.221.716,98 (cento e setenta milhões, duzentos e vinte e um mil, setecentos e dezesseis reais e noventa e oito centavos) (documento n° 5 e 6). Resta, ainda, dizer que, serão repassados à Fazenda do Estado pela instituição depositária (Banco Nossa Caixa S/A), neste mês de agosto e em setembro próximo, nos termos do §1°, do artigo 1°, do Decreto Estadual n° 46.933, cerca de R$ 202.000.000,00 (duzentos e dois milhões de reais), o que elevará, nos próximos meses os pagamentos de precatórios alimentares a mais de R$ 370.000.000,00 (trezentos e setenta milhões de reais), devendo-se fechar o ano com um número superior a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais), ou seja, mais de 10% da dívida total estimada. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 291 É de se consignar, de outra parte, que também nos anos anteriores, a partir de 1995, quando assumiu a Chefia do Executivo paulista o saudoso Governador Mário Covas, foram destinadas importâncias expressivas para pagamento de precatórios, alimentares e não alimentares, no limite das possibilidades financeiras do tesouro, como bem mostra o anexo documento n.° 7, totalizando, até o mês de julho deste ano, quase 4 bilhões de reais de precatórios pagos. ................................................................................................................. Que sentido, pois, teria requisitar esse Pretório Excelso a intervenção federal no Estado de São Paulo, com o afastamento de autoridade legitimamente investida na Chefia do Executivo e a designação de um interventor que NADA PODERIA FAZER PARA EQUACIONAR O PROBLEMA DA DÍVIDA COM PRECATÓRIOS ALIMENTARES QUE NÃO ESTEJA SENDO FEITO? Salvo se, ad argumentandum, optasse a cogitada interventoria por quitar, de pronto, toda a dívida pendente com precatórios alimentares, observada necessariamente a ordem cronológica dos ofícios, MESMO COM O SACRIFÍCIO DE OUTRAS IMPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS, em alguns casos, aliás, legitimando novos pedidos de intervenção federal no Estado, embora por fundamento diverso (art. 34, V e VII, e, da CF).” (grifei) O que me parece irrecusável, Senhor Presidente, e consideradas as razões expostas pelo Estado de São Paulo, é que, para os fins a que se refere o art. 34, VI, c/c o art. 36, II, da Carta Política, a ordem constitucional brasileira não autoriza a intervenção federal, fundada em involuntária demora de pagamento, motivada por falta ou insuficiência de recursos financeiros, pois como já enfatizou o Supremo Tribunal Federal, “Para justificar a intervenção, não basta a demora de pagamento, na execução de ordem ou decisão Judiciária, por falta de numerário: é necessário o intencional ou arbitrário embaraço ou impedimento oposto a essa execução” (IF 20/MG, Rel. Min. NELSON HUNGRIA, “in” Arquivo Judiciário, vol. 112/160-161 – grifei). Esta Suprema Corte, ao recusar a possibilidade jurídico-constitucional de intervenção federal no Estado-membro, por alegado descumprimento de ordem ou decisão judicial, assim fundamentou o seu dictum, no julgamento acima referido, consoante revela o voto do saudoso Ministro NELSON HUNGRIA, então Relator da causa, nesta Corte, e cujas palavras reproduzo, in extenso: “Não padece dúvida que a intervenção autorizada pelo art. 7°, V, da Constituição Federal tem como pressuposto a injustificada oposição, por Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 292 parece do Governo estadual, de embaraço ou impedimento à execução de ordem ou decisão judiciária. Não basta a demora, que pode ser justificada, na execução: é necessário que se apresente uma desobediência manifesta, propositada ou por descaso, à ordem ou decisão Judicial. É o que já ensinava Barbalho, comentando o parágrafo 4° do art. 6° da Constituição de 91: - a intervenção em tal caso se deve entender como uma sanção para constranger à obediência os governos dos Estados, ‘quando embaracem ou se oponham a execução’ das decisões Judiciais (‘Constituição Federal Brasileira’, pg. 27). No mesmo sentido, Pontes de Miranda, comentando a atual Constituição: - ‘há intervenção sempre que se impede a eficácia da sentença, decisão ou ordem’ (‘Comentários à Constituição de 1946’, ed. 1953, vol. 1°, pg. 486). É preciso que um desarrazoado obstáculo tenha sido oposto pelo Governo estadual à execução da decisão ou ordem. Ora, no caso vertente, o retardamento na execução não promana de obstáculo criado pelo Governador mineiro, mas da acidental exaustão atual do erário do Estado.” (grifei) Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, peço vênia para indeferir o pedido de intervenção federal no Estado de São Paulo. É o meu voto. VOTO O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Sr. Presidente, não quero comprometer-me de imediato com o extremo rigor do voto do grande Nelson Hungria, na IF 20, que tem sido invocado, e exige para intervenção federal, mais que uma desobediência dolosa, um descumprimento ativo, a falar em obstáculo criado e expressões equivalentes. O SENHOR MINISTRO NELSOM JOBIM – Ministro Sepúlveda Pertence, V.Exa. tem toda razão. Essa exegese de Nelson Hungria era a revolta contra a Velha República, ou seja, a intervenção era o ato. Um dos Presidentes da República teve intervenção o tempo todo. O Regime de 46 foi contrário à intervenção. Estava dentro do espírito do processo. A judicialização de 34 acabou com o organismo de intervenção do governo central. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 293 O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Sr. Presidente, não obstante ter acompanhado o problema de São Paulo por ser Presidente do Tribunal, no início do governo do saudoso Governador Mário Covas, sucedido pelo atual governador, em seu segundo quatriênio, não posso desconhecer que sequer de uma negligência evidente se possa acusar o Estado de São Paulo. Ao contrário, há um esforço constante em meio a uma quadra de crise fiscal manifesta. Lembra-me, quando Presidente do Tribunal, ter recebido em audiência coletiva nada menos do que vinte e dois ou vinte e três governadores dos Estados. Na verdade, não pude poupar-me à observação de que o problema dos precatórios existia há muitas décadas, mas nenhum governador jamais se preocupara com ele, porque a inflação se encarregava de tornar absolutamente irrelevante o atraso no pagamento dos precatórios, criando esta figura do precatório complementar, da eternização da liquidação dos precatórios, transformando – tornou-se lugar comum a expressão – o credor em pensionista do Estado. O problema se tornou dramático quando as condenações passaram a exprimir um valor real, dado a relativa estabilização da moeda a partir de 1994. Dentro deste quadro dramático, não creio – ainda sem me comprometer com o que me parece o excessivo rigor das premissas do voto de Hungria – que se possa ter como característica no caso a hipótese de intervenção, que há de exigir, no mínimo, uma negligência manifesta do governo do Estado, a qual não posso atribuir, nas circunstâncias, ao governo do Estado de São Paulo. Peço vênia a V.Exa para acompanhar a divergência e indeferir a intervenção. VOTO O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES – Com a devida vênia de V.Exa., acompanho o eminente Ministro Gilmar Mendes, indeferindo o pedido de intervenção. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 294 10- RECLAMAÇÃO Nº 1091-1/PA Data da Decisão: 22/05/2002. Relator: Min. Maurício Corrêa. Tipo de Ação: Reclamação. Modalidade de Jurisdição: Originária (Cassação). Pólo Ativo: Governador do Estado do Pará. Pólo Passivo: Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região. Interessado: Itajaí Oliveira de Albuquerque. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: RECLAMAÇÃO. GOVERNADOR DO ESTADO: LEGITIMIDADE. PRECATÓRIO. NÃO INCLUSÃO DO DÉBITO NO ORÇAMENTO DO ENTE PÚBLICO DEVEDOR. SEQÜESTRO: IMPOSSIBILIDADE. 1.Reclamação. Legitimidade ativa do Governador do Estado para defender interesses de órgãos estatais da Administração pública direta e indireta. 2.Não inclusão do débito judicial no orçamento do ente devedor. Hipótese que não se equipara à preterição de ordem, sendo ilegítima a determinação de seqüestro em tais casos. A presunção de existência de recursos financeiros não elide a ausência de previsão orçamentária, não consistindo motivo suficiente para a decretação de bloqueio de verbas públicas. Reclamação procedente. RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA: O Governador do Estado do Pará ajuizou a presente reclamação, com pedido de liminar, em que afirma que o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região desrespeitou a autoridade da decisão proferida por esta Corte na ADI 1.662-SP, ao determinar o seqüestro das importâncias de R$ 5.351.971,11 (cinco milhões, trezentos e cinqüenta e um mil, novecentos e setenta e um reais e onze centavos), da Fundação da Criança e do Adolescente – FUNCAP, e de R$ 9.679.040,43 (nove milhões, seiscentos e setenta e nove mil, quarenta reais e quarenta e três centavos), da Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 295 Fundação Santa Casa da Misericórdia – FSCMPA, concernente aos precatórios relacionados às fls. 63/64 e 23/29, respectivamente. 2. Sustenta o reclamante que tem legitimidade ativa para a medida, fundamentando-se na jurisprudência desta Corte e na dependência financeira das entidades públicas, já que integrantes da estrutura administrativa do estado. No mérito, alega a determinação impugnada fez valer dispositivos suspensos pelo Tribunal, sob o entendimento de que não se equipara à hipótese de preterição a não inclusão, no orçamento dom ente devedor, da verba necessária à satisfação dos precatórios. 3. Enfatiza que os atos praticados terminam por inviabilizar o desenvolvimento das atividades sociais a cargo do Poder Executivo local, executadas pelas referidas Fundações, até porque a quantia bloqueada ultrapassa seus próprios orçamentos, podendo o excedente recair sobre a conta única do Estado. 4.Concedi a liminar requerida, para suspender a execução das mencionadas ordens de seqüestro até o final do julgamento desta reclamação (fls. 204/206). 5. O juízo reclamado prestou informações (fls. 217/219), nas quais afirma que não houve ordem de seqüestro, apenas bloqueio das contas das fundações públicas executadas. Esclarece que a decisão administrativa, fundada no fato de o Estado haver proposto, em audiência conciliatória, o pagamento parcial da dívida, teve por presente a disponibilidade financeira e superado o óbice orçamentário, daí por que a recusa em pagar teria vulnerado o direito de precedência. 6. Itajaí Oliveira de Albuquerque, um dos credores de que cogita o ato reclamado, apresenta impugnação (fls. 465/473) em que sustenta a ilegitimidade do reclamante e, afinal, requer a improcedência do pedido. Pede, ainda, que seja promovida ex officio a intervenção federal no Estado, pelo nãopagamento dos precatórios. 7. O estado do Pará intervém no processo, requerendo sua admissão como litisconsorte ativo necessário. Após alegar a ilegitimidade passiva do citado credor, reitera a capacidade postulatória do Governador e pede seja julgado procedente o pleito (fls. 543/557). 8. Nova petição foi encaminhado ao Estado. Desta feita, formula pedido de desistência da reclamação, relativamente aos credores Itajaí Oliveira de Albuquerque, Maurício Cezar Soares Bezerra e Rodolfo Tamer Xerfan, consoante acordo firmado na Justiça do Trabalho (fls. 565/9). 9. O Ministério Público Federal opina pela procedência da reclamação (fls. 574/580), em parecer da lavra do Subprocurador-Geral Wallace de Oliveira Bastos, assim ementado: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 296 “RECLAMAÇÃO. Aplicação de instrução normativa do TST suspensa por decisão liminar desse Colendo STF. Ordem liminar concedida para suspender o seqüestro de rendas de entidades públicas para pagamento de precatórios. Capacidade postulatória do Governador do Estado do Pará para ajuizar a reclamação. Jurisprudência assentada pelo STF. Art. 103, V da Constituição Federal. Pedido de desistência apresentado por quem não é o autor da ação. Impossibilidade de Extinção do feito. Ausência de comprovação da satisfação do crédito. Acordo de pagamento que não abrange a totalidade do seqüestro ora impugnado. Art. 100, §2º da Constituição da República. Hipótese única e exclusiva de seqüestro para execução de precatórios. Decisão liminar em ADINnMC suspendendo os efeitos do seqüestro criado por instrução normativa da Justiça do Trabalho. Verbas Públicas repassadas pelo Governo do Estado do Pará em montante superior ao orçamento das Fundações alcançadas pela medida constritiva determinada pelo TST, suspensa liminarmente nestes autos. Recursos orçamentários do Estado do Pará. Parecer pelo provimento da reclamação ora apreciada, uma vez plenamente demonstrada a razoabilidade de seu objeto.” É o relatório. VOTO O SENHOR MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA (RELATOR): Cuida-se de reclamação que tem por objeto preservar a autoridade da decisão proferida por esta Corte na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.665-SP, tendo em vista ordem de seqüestro determinada pelo Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região. 2. A presente reclamação foi proposta pelo Governador do Estado que, por ter capacidade postulatória concorrente para requerer ação direta de inconstitucionalidade idêntica àquela cuja autoridade busca-se resguardar, encontra-se, em tese, legitimado para a medida (RECLQO 397-RJ, unânime, j. em 25/11/92, Celso de Mello, RTJ 147/31). 3. Ao conferir legitimação ao Chefe do Poder Executivo estadual e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público (EDADIQ 1.105, Maurício Corrêa, DJ de 16/11/01, e AGRADI 2.130-SC, Celso de Mello, DJ de 14/12/01), a Constituição Federal atribuiu excepcionalmente à referida autoridade, independentemente de sua formação, aptidão processual plena ordinariamente destinada apenas aos advogados (ADIMC 127-AL, Celso de Mello, DJ de 04/12/92). 4. O Governador do Estado sustenta que seu interesse de agir reside no fato de que a FUNCAP e a FSCMPA são fundações pública que, apesar de dotadas de autonomia adminsitrativa e financeira, sobrevivem às custas de subvenção Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 297 estatal e se apresentam como pessoas jurídicas de direito público que, respectivamente, executam política de assistência social, em prol da criança e do adolescente, e prestam serviços médicos-hospitalares; não possuem receita própria nem desenvolvem atividades lucrativas. Assim sendo e em conseqüência, a subtração de valores, para fins de pagamento dos precatórios, não ocorre nos cofres das referidas entidades, mas nos do erário estadual, com repercussão negativa direta no orçamento gerenciado pelo Poder Executivo. 5. Claro, não há dúvida que a Constituição outorgou ao Governador do Estadomembro capacidade postulatória para, tendo em vista decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade, na qual é parte legítima, utilizar-se da reclamação para a defesa dos interesses da unidade federada que representa e, também, dos órgãos estatais que compõem a Administração direta e indireta. 6. É evidente, que nas situações em que se materializa dano aos órgãos estatais, tem o Governador legitimidade para ajuizar reclamação visando o cumprimento, pelas autoridades judiciárias de hierarquia inferior, do julgado desta Corte, especificamente, como é o caso ora em exame, relacionado com o desacato à decisão proferida na ADI 1662-SP, não se podendo, por isso, falar em substituição processual das fundações públicas do Estado reclamante, como eventualmente poderia aparentar. 7.Posta assim a questão, resulta manifesta a legitimação do Chefe do Poder Executivo para, até mesmo como regra ínsita à aplicação do inciso II do art. 84 da Carta Federal, que lhe concede o poder de exercer a direção superior da administração pública, a consecução do procedimento que adotou, aqui visível na preservação dos interesses em risco do Estado, sendo inaplicáveis à espécie os arttigos 6e e 12, inciso I, do Código de Processo Civil125. 8.Assim sendo, afasto a preliminar suscitada e reconheço a legitimidade do requerente para figurar no pólo ativo da reclamação (artigo 13 da Lei 8.038/90126). 9. Quanto ao Estado do Pará, que interveio nos autos dizendo-se litisconsorte ativo necessário, é de ver-se que, não te legitimidade para integrar a presente 125 ART. 6º - Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei; Art. 12 – Serão representados em juízo ativa e passivamente: I- a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios, por seus procuradores; ................................. 126 Art. 13. Para preservar a competência do Tribunal ou garantir a autoridade de suas decisões, caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 298 relação processual, não pode, evidentemente, formular desistência de parte de rol de credores dos precatórios em causa (fls. 565/67). 10. Também não conheço, por ser manifestamente incabível, o pedido de intervenção federal subscrito pelo exeqüente Itajaí Oliveira de Albuquerque, dado que a pretensão, se viável, há de ser deduzida, em procedimento próprio e específico, junto ao Presidente do Tribunal em que corre a execução (IFQO 105-PR, Sydney Sanches, DJ de 04/09/92). 11. Superadas as preliminares referidas, passo ao exame do mérito do pedido, que visa o acatamento da decisão proferida pelo Tribunal no julgamento da ADI 1662-SP, que, em caráter definitivo, após refutar a alegação de perda do objeto da ação pela superveniência da EC 30/00, declarou inconstitucionais os itens III e XII da Instrução Normativa 11, de 10 de abril de 1997, do Tribunal Superior do Trabalho. 12.No caso em exame, o Presidente do Tribunal a quo adotou como fundamento para determinar o seqüestro das verbas públicas o fato de o Procurador-Geral do Estado haver proposto, em reunião conciliatória, a quitação parcial dos débitos das entidades fundacionais referidas na inicial. Embora rejeitada a proposta pelos credores, entendeu aquele juízo que a pretensão de saldar o débito levava à ilação de que os órgãos devedores possuíam recursos suficientes para satisfazer a obrigação, ficando superada a falta de previsão orçamentária, visto que reconhecida a disponibilidade financeira para o cumprimento dos precatórios. 13.É incontroverso nos autos que as fundações devedoras ou mesmo o Estado que as mantém deixaram de prever em seus orçamentos as verbas necessárias à quitação dos precatórios. No entanto, como assentado por esta Corte, o omissão da despesa na orçamento ou seu não-pagamento até o final do exercício subseqüente ao da expedição dom precatório não equivalem à hipótese de preterição, única condição que autoriza essa medida. 14.Ademais, a autoridade reclamada não demonstrou a existência de quebra da ordem de precedência dos requisitórios, baseando seu raciocínio tãosomente na dedução de oferta de pagamento, que sequer chegou a concretizar-se, razão pela qual patenteia-se o descumprimento do acórdão proferido no julgamento da ADI 1662-SP. 15.Não subsiste, por outro lado, o argumento deduzido pelo reclamado, em suas informações, de que não houve seqüestro, “mas, tão-somente, a criação de obstáculo para impedir o gasto e compelir o Estado a angariar o valor necessário ao cumprimento dos débitos decorrentes dos precatórios requisitórios” (fl. 219), pois tal afirmação, pela própria natureza e forma, soa como confissão expressa de que, na verdade, houve determinação de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 299 seqüestro, com afronta à única hipótese em que ele pode realizar-se (CF, artigo 100, § 2º). Ante essas circunstâncias, conheço da reclamação e julgo-a procedente. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 300 11- INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 230-3/DF Data da Decisão: 24/04/1996. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Tipo de Ação: Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Originária. Pólo Ativo: Abeguar Herdy de Oliveira e Outros. Pólo Passivo: Distrito Federal. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. E M E N T A: 1. Cabe exclusivamente ao STF a requisição de intervenção para assegurar a execução de decisões da Justiça do Trabalho ou da Justiça Militar, ainda quando fundadas em direito infraconstitucional: fundamentação. 2. O pedido de requisição de intervenção dirigida pelo Presidente do tribunal de execução ao STF há de ter motivação quanto à procedência e também com a necessidade da intervenção. RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE: Não atendido o requisitório de pagamento de condenação, os interessados – vitoriosos em vultuosa reclamação trabalhista – provocaram a Presidência do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (Brasília) a que fosse pedida ao Supremo Tribunal a intervenção da União no Distrito Federal. Depois de ouvir o Distrito Federal e o Ministério Público, a ilustre Presidente daquela Corte limitou-se ao seguinte despacho: “Nos termos dosa artigos 34, inciso VI e 36, inciso II, da Constituição Federal, encaminhem-se os autos ao Supremo Tribunal Federal”. Para definir a competência e a admissibilidade do processamento do feito, submeto o caso ao Plenário em questão de ordem. É o relatório. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 301 VOTO O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE): Merece uma definição no caso, a questão da competência do Supremo Tribunal Federal. 2. O Art. 34, VI, CF, prevê a intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal para prover a execução de “ordem ou decisão judicial. 3.Prescreve, de seu turno, o art. 36, II, que “a intervenção dependerá (...) no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral”. 4.Vem da Emenda de 1926 à Constituição de 1891 a competência, então privativa, do Supremo Tribunal para requisitar ao Poder Executivo a intervenção nos Estados, “a fim de assegurar a execução das sentenças federais” (cf. art. 6º, § 3º). 5.A Constituição de 1934 – além de ampliar aquela hipótese de intervenção, de modo a nela incluir também o “obstáculo (...) às decisões e ordens dos Juízes e Tribunais” estaduais (cf. art. 12, VI e §3º, a) – cindiu a competência de requisição entre a Corte Suprema e o Tribunal de Justiça Eleitoral, então constitucionalizado (cf. art. 13, §5º). 6.A partilha desse poder entre o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral retornou na Constituição de 1946 (art. 9º, §1º, I) e assim permaneceu, sem alterações substanciais, nos textos subseqüentes (CF 67, art. 10,§1º, c; CF 69, art. 11, §1º, c). 7.A cisão não trouxe perplexidade, uma vez que, como ficaria explícito na Constituição de 1946 e nem podia ser de outro modo, a requisição só deveria partir do TSE quando fosse da Justiça Eleitoral a ordem ou decisão à garantia de cuja execução se destinasse a medida. Em todos os casos restantes, caberia ela ao Supremo Tribunal. 8.Mais delicada se tornou a demarcação dos âmbitos de competência para requisitar a intervenção na hipótese considerada, quando a Constituição vigente, além do STF e do TSE, conferiu o mesmo poder ao Superior Tribunal de Justiça. 9.É que ambos, o STF e o STJ, estão superpostos a todos os Tribunais da Justiça ordinária, seja a federal, sejam as estaduais, e a Lei Fundamental não declinou o critério de discrímem das áreas de competência, quando se cogita de requisitar a intervenção federal para assegurar a execução dos seus julgados. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 302 10.O Supremo Tribunal enfrentou a questão na IF 107, 3.8.92, Sanches, oportunidade em que se acolheu parecer dom il. Subprocurador-Geral da República Antonio Fernando, que se resumiu na ementa – RTJ 141/707: “Intervenção Federal. Decisão fundada em lei federal (infraconstitucional). Competência do Superior Tribunal de Justiça e não do Supremo Tribunal Federal. Tratando-se de pedido de intervenção federal, destinado a prover à execução de decisão judicial, sobre medida liminar, em ação de reintegração na posse de imóvel, fundada em dispositivo legal federal (infraconstitucional), a competência para o processo e julgamento é do Superior Tribunal de Justiça e não do Supremo Tribunal Federal. Interpretação dos artigos 105, III, 102, III, 34, IV, 36, II, da Constituição Federal e art. 19, I, da Lei 8.038, de 25.5.1990. Pedido não conhecido, por incompetência do STF, remetidos os autos ao STJ”. 11. Entre os argumentos da decisão, interessa recordar que o em. Ministro Sydney Sanches assim deduziu (RTJ 141/710): “É que a decisão exeqüenda, concessiva de medida liminar, em ação de reintegração na posse de imóvel, somente enfrenta questões federais infraconstitucionais, como se vê de fls. 27/33. O Julgamento de eventual recurso para o Tribunal ensejaria, em tese, recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça (art. 105, III, da Constituição Federal). E não recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal (art. 102, III).” 12.Essa razão de decidir naquele caso pela competência do Superior Tribunal de Justiça, soma-se agora a outras que me parece induzem, na espécie, a solução diversa. 13.De fato. No precedente, cuidava-se de decisão de juiz estadual, que, acaso mantida pelo Tribunal de Justiça, se poderia submeter à jurisdição do STJ, mediante recurso especial. 14.Aqui, em que se trata de julgamento da Justiça do Trabalho, essa hipótese não se põe: o órgão de cúpula daquela Justiça especializada, o TST, posto não disponha da competência para requisitar intervenção, é, como o STJ, um tribunal superior, sobre o qual apenas se sobrepõe o Supremo Tribunal. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 303 15.Certo, com a única ressalva da área dos recursos ordinários, a superposição do STF aos Tribunais Superiores só se manifesta na via do recurso extraordinário, cujo trânsito só se abre às causas que versem temas constitucionais, o que não parece suceder na espécie. 16.Por isso, acerca do problema da divisão da competência para a suspensão de segurança – que acertadamente o referido acórdão da IF 107 teve por análoga a questão ora examinada – o Tribunal assentou – Recl. 543, 24.8.95, Pertence, “A suspensão de segurança: descabimento: liminar em mandado de segurança de competência originária de tribunal superior, que não envolve questão constitucional. A suspensão de segurança, obstando à eficácia imediata da liminar ou da sentença concessiva, visa a impedir que a execução provisória gere lesões à ordem, à saúde, à segurança ou à economia pública, que o eventual provimento do recurso da entidade estatal já não poderia reparar. Daí resulta que o recurso a ter em conta na determinação da competência para a suspensão de segurança é aquele de que possa decorrer a reforma da decisão que a conceda, não a daquela que a tenha deferido. Portanto, carece o Presidente do STF do poder de suspender a execução de liminar, quando deferida por juiz de Tribunal Superior, em mandado de segurança cuja impetração não suscita questão constitucional, de tal modo que, até segunda ordem, se há de presumir que de sua concessão não caberá recurso extraordinário. 17.Em conseqüência, não sendo possível ao STJ conhecer do pedido contra decisão de tribunal da mesma hierarquia jurisdicional, firmou-se que, se a causa não envolve questão constitucional, não se admite a suspensão de segurança concedida pelos outros tribunais superiores. 18. É conclusão, no entanto, que não se pode transpor para o tema de requisição de intervenção federal, sob pena de chegar-se ao absurdo de que, à falta de órgão judiciário que a requisitasse, não seria possível a intervenção federal destinada a assegurar o cumprimento de decisões das Justiças Militar e do Trabalho, quando derivadas da aplicação de lei ordinária. 19.O que se impõe, desse modo, até para fugir ao despautério, é confiar ao poder de requisição ao único tribunal, o STF, que a Constituição sobrepõe aos tribunais superiores dos ramos especializados da Justiça da União, salvo o caso do TSE, que tem competência para fazê-lo. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 304 20.Dispõe o art. 350, II, RISTF, que, quando da competência do STF, a requisição da intervenção federal será promovida “de ofício, ou mediante pedido do Presidente do Tribunal de Justiça ou Tribunal Federal, quando se tratar de prover a execução de ordem ou decisão judiciária...”. 21.Coerentemente, o Tribunal se tem negado a conhecer de pedidos de requisição de intervenção formulados por terceiros, em especial, pelo interessado na execução de sentença não cumprida (v.g., IF 135-8, 18.10.95, Pertence, e precedentes aí referidos). 22.Essa orientação não teria razão de ser, se, provocado pelo interessado, o papel do Presidente do tribunal da execução se reduzisse – como na espécie se circunscreveu – a encaminhar o expediente ao Supremo, sem manifestar-se sobre a pretensão intervencionista nele deduzida. 23.O que se reclama é pedido do próprio dirigente do tribunal de origem, pois a gravíssima sanção federativa da intervenção se institui, na hipótese cogitada, não como instrumento de realização do direito do particular vitorioso no caso, mas sim de afirmação da autoridade do órgão judiciário a cuja ordem ou decisão se venha negando cumprimento. 24.É significativo, aliás, que diversos tribunais hajam subordinado a iniciativa do seu presidente à prévia manifestação do colegiado sobre a procedência e também a necessidade da intervenção. 25.Com efeito, a intervenção federal é medida extrema, que pressupõe, de parte do tribunal de execução, a exaustão dos meios de que disponha para fazer cumprir o julgado. 26.Por tudo isso, além de não se confundir com o simples encaminhamento de pretensão alheia, o pedido da requisição da intervenção há de ser motivado. 27. Desse modo, afirmo a competência do STF, mas à falta de iniciativa própria e fundamentada do órgão legitimado, nego trânsito ao expediente encaminhado. É o meu voto. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 305 12- INTERVENÇÃO FEDERAL – AGRAVO REGIMENTAL Nº 555-8/MG Data da Decisão: 18/12/1997. Relator: Min. Celso de Mello (Presidente). Tipo de Ação: Agravo Regimental em Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Recursal. Pólo Ativo: Nelson Xisto Damasceno. Pólo Passivo: Estado de Minas Gerais. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: INTERVENÇÃO FEDERAL – ALEGADO DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL POR PARTE DE ESTADO-MEMBRO – CONDENAÇÃO PROFERIDA PELA JUSTIÇA ESTADUAL – PEDIDO DE INTERVENÇÃO ENCAMINHADO DIRETAMENTE AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PELO PRÓPRIO CREDOR. CREDOR – PEDIDO QUE HÁ DE SER PREVIAMENTE DIRIGIDO AO PRESIDENTE DO TRIBUNAL LOCAL – PRECEDENTES – RECURSO IMPROVIDO. - Não é lícito ao credor do Estado-membro, agindo per saltum, formular, diretamente, ao Supremo Tribunal Federal, pedido de intervenção federal, quando se tratar de prover a execução de ordem ou decisão emanada de Tribunal local. É que, tratando-se de condenação transitada em julgado, proferida por órgão competente da Justiça Estadual, falece legitimidade ativa ad causam ao credor interessado para requerer diretamente, ao Supremo Tribunal Federal, a instauração do processo de intervenção federal contra o Estado-membro que deixou de cumprir a decisão ou a ordem judicial, pois, em tal hipótese, imporse-á, à parte interessada, a obrigação de previamente submeter o pedido de intervenção ao Presidente do Tribunal local, a quem incumbirá formular, em ato devidamente motivado, o pertinente juízo de admissibilidade. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 306 Se esse juízo de admissibilidade for positivo, caberá ao Presidente da Corte judiciária inferior determinar o processamento do pedido e ordenar o seu ulterior encaminhamento ao Supremo Tribunal Federal, para que este – apreciando, e eventualmente acolhendo, a postulação formulada pelo credor interessado – requisite, ao Presidente da República, se for o caso, a decretação de intervenção federal no Estado-membro que houver descumprido a decisão judicial exeqüenda. Precedentes. RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELO (Relator): Trata-se de “agravo regimental” interposto contra decisão do ilustre Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, então no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, que, em fundamentado pronunciamento, negou trânsito ao pedido de intervenção federal formulado pelo ora recorrente, por entender caracterizada, na espécie, a ausência de legitimidade ativa ad causam da parte requerente. O ato decisório, objeto da presente impugnação recursal, tem o seguinte conteúdo (fls. 218/219): “Cuida-se de pedido de intervenção federal no Estado de Minas Gerais formulado por Nelson Xisto Damasceno, em causa própria, com fundamento nos artigos 34, inciso VI e 36, inciso II, da Constituição Federal, para prover a execução de decisões judiciais. Alega o requerente que patrocinou causas para suas clientes, nas quais a Fazenda Pública do Estado foi condenada ao pagamento de custas e honorários advocatícios e que, expedidos os precatórios pelo Tribunal de Justiça, os valores requisitados não foram depositados no prazo constitucional (CF, art. 100); Aduz que embora tais requisitórios não tenham sido expedidos como sendo de natureza alimentícia, `o certo é que em se tratando de pagamento de condenação em honorários advocatícios e levando-se em conta que o requerente faz da advocacia a sua profissão e o seu meio de sustento, são de indiscutível natureza alimentícia´. Requer a citação do Estado de Minas Gerais, na pessoa de seu Governador, `para pagar no prazo de 10 (dez) dias os referidos precatórios (...) com os acréscimos da correção monetária desde as datas da liquidações e até a data do efetivo pagamento`, sob pena deste Supremo Tribunal, nos termos doa rt. 36, II, da CF, requisitar a intervenção federal no Estado. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 307 Carece o requerente, contudo, de legitimidade ativa para o pedido de intervenção, de acordo com a orientação da jurisprudência do Supremo Tribunal, de que é exemplo a decisão proferida na IF 105 (QO), Sydney Sanches, RTJ 142/371, verbis: ‘Intervenção Federal. Legitimidade ativa para o pedido. Interpretação do inciso II do art. 36 da Constituição Federal de 1988, e dos artigos 19, II e III, da Lei 8038, de 28-05-1990, e 350, II e III do RISTF. A parte interessada na causa somente pode se dirigir ao Supremo Tribunal Federal, com pedido de intervenção federal, para prover a execução de decisão da própria Corte. Quando se trata de decisão de Tribunal de Justiça, o requerimento de intervenção deve ser dirigido ao respectivo Presidente, a quem incumbe, se for o caso, encaminhá-lo ao Supremo Tribunal Federal. Pedido não conhecido, por ilegitimidade ativa dos requerentes.’ No mesmo sentido recordo outros precedentes da Corte (IF 81 (AgRg), RTJ 114/443; IF 135, Pertence, DJ 24.11.95) e, sob orndes constitucionais anteriores, que, no ponto, não sofreram alteração substancial: IF 61, 16.12.70, Barros Monteiro, RTJ; IF 94, 19.12.86, M. Alves. Assim sendo, na linha dos precedentes, nego seguimento ao pedido.” A parte agravante, ao questionar o ato judicial do qual recorre, sustenta que a Constituição da República desautoriza a exegese restritiva nele veiculada, precisamente porque o texto constitucional – segundo alega – não estabelece qualquer distinção em torno do tipo ou da origem da decisão judicial cujo descumprimento pode ensejar a requisição da intervenção federal (fls. 224). Mais do que isso, impõe-se ao intérprete considerar, no processo de indagação do sentido emergente da norma que autoriza a requisição de intervenção federal nos Estados-membros, a existência de diversos postulados de natureza constitucional e, também, de caráter infraconstitucional (fls. 224/225). Por não me haver convencido das razões expostas pela parte ora agravante, submeto o presente recurso à apreciação do Egrégio Plenário desta Suprema Corte. É o relatório. VOTO Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 308 O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO (Relator): A análise do presente recurso impõe algumas reflexões prévias em torno da questão central referente à disciplina constitucional que rege, em nosso sistema jurídico, o processo de intervenção federal. O instituto da intervenção federal, consagrado no texto de todas as Constituições republicanas brasileiras, representa um elemento fundamental, tanto na construção da doutrina do Estado Federal, quanto na práxis do federalismo. O mecanismo da intervenção constitui instrumento essencial à viabilização do próprio sistema federativo, e, não obstante o caráter excepcional de sua utilização – necessariamente limitada às hipóteses taxativamente definidas na Carta Política -, mostra-se impregnado de múltiplas funções de ordem político-jurídica, destinadas (a) a tornar efetiva a intangibilidade do vínculo federativo (b) a fazer respeitar a integridade territorial das unidades federadas, (c) a promover a unidade do Estado Federal e (d) a preservar a incolumidade dos princípios fundamentais proclamados pela Constituição da República. A intervenção federal, na realidade, configura expressivo elemento de estabilização da ordem normativa plasmada na Constituição da República. Élhe inerente a condição de instrumento de defesa dos postulados sobre os quais se estrutura, em nosso País, a ordem republicano-federativa. “O instituo da intervenção”- adverte ERNESTO LEME (“A intervenção Federal nos Estados”, p. 25, item n. 20, 2ª ed., 1930, RT) – “é (...)da essência do sistema federativo”. Sem esse mecanismo de ordem político-jurídica, que , assegura a intangibilidade do pacto federal, “A União seria um nome vão. E as garantias e vantagens, que a Federação deve proporcionar aos Estados e ao povo, reduziriam a simples miragem” (JOÃO BARBALHO, Constituição Federal Brasileira – Comentários”, p.31, 2ª ed., 1924, Rio de Janeiro, Briguiet e Cia Editores). Cabe destacar, neste ponto, o magistério doutrinário, que, fundado na necessidade de respeito ao princípio federativo, adverte sobre a excepcionalidade da intervenção federal, em face do caráter extremamente perturbador que assume qualquer interferência do Governo Federal nos assuntos regionais e na esfera de autonomia dos Esatdos-membros (CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição”, p. 158, item n. 127, 3ª ed., 1929, Globo; THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, “A Constituição Federal Comentada” vol. I/183, 3ª ed., Konfino; FLÁVIA RIBEIRO, “A intervenção Federal nos Estados”, p.48, tese de concurso, 1960, Editora Jurídica, Fortaleza). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 309 Não se pode perder de perspectiva a circunstância de que a intervenção federal representa, ainda que transitoriamente, a própria negação da autonomia institucional reconhecida aos Estados-membros pela Constituição da República. Essa autonomia, que possui extração constitucional, configura postulado fundamental peculiar à organização político-jurídica de qualquer sistema federativo, inclusive do sistema federativo vigente no Brasil. O poder autônomo – que a ordem jurídico-constitucional atribui aos Estados-membros – traduz um dos pressupostos conceituais inerentes à compreensão mesma do federalismo. Daí a estrita disciplina imposta pela Constituição ao instituto da intervenção federal, cujos requisitos de admissibilidade foram por ela taxativamente relacionados em “numerus clausus”, em obséquio ao princípio maior da autonomia das unidades federadas e com consideração ao caráter absolutamente excepcional de que se reveste o ato interventivo. Essa circunstância justifica, plenamente, a advertência constante do magistério doutrinário de PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967”, tomo 2/198, 1967, RT), para quem “a intervenção nos Estadosmembros constitui, pelo menos, teoricamente, o ‘punctum dolene’ do Estado Federal”. Vê-se, portanto, que o tratamento restritivo constitucionalmente dispensado ao mecanismo da intervenção federal impõe que não se ampliem as hipóteses de sua incidência, cabendo ao intérprete identificar, no rol exaustivo do art. 34 da Carta Política, os casos únicos que legitima, em nosso sistema jurídico, a decretação da intervenção federal nos Estados-membros. O estatuto constitucional brasileiro inclui, dentre as hipóteses de admissibilidade da intervenção federal nos Estados-membros, a ocorrência de desrespeito ou de desobediência a ordem ou a decisão emanadas do Poder Judiciário (CF, art. 34, VI, c/c o art. 36, II). A exigência de respeito incondicional às decisões judiciais transitadas em julgado traduz imposição constitucional, justificada pelo princípio da separação dos poderes e fundada nos postulados que informam, em nosso sistema jurídico, a própria concepção de Estado Democrático de Direito. O dever de cumprir as decisões emanadas do Poder Judiciário, notadamente nos casos em que a condenação judicial tem por destinatário o próprio Poder Público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontornável obrigação institucional a que não se pode subtrair o aparelho de Estado, sob pena de grave comprometimento dos princípios consagrados no texto da Constituição da República. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 310 É por tal razão que a desobediência a ordem ou a decisão judicial pode gerar, em nosso sistema jurídico, gravíssimas conseqüências, que no plano penal (CP, art. 319 e DL n. 201/67, art. 1º, XIV), quer no âmbito político-administrativo (possibilidade de impeachment – Lei n. 1.079/50, art. 12, ns. 1, 2 e 4, c/c o art. 74; Lei n. 7.106/3, art. 1º e DL n. 201/61, art. 4º, VII), quer, ainda, na esfera institucional (decretabilidade de intervenção federal nos Estados-membros ou em Município situados em Território Federal, ou de intervenção estadual nos Municípios – CF, art. 34, VI, ou de intervenção estadual nos Municípios – CF, art. 34, VI, c/c o art. 35, IV). Apresentadas essas premissas, passo a apreciar o recurso interposto pelo credor interessado. E, ao fazê-lo, acentuo não assistir qualquer razão à parte agravante, eis que se revela integralmente correta a decisão que constitui objeto do presente recurso de agravo. A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, ao definir o sentido e o alcance do art. 36, II da Constituição da República, deixou assentado, em tema de legitimidade ativa para instauração do processo de intervenção federal, que a parte interessada na causa somente poderá formular, originariamente, ao Supremo Tribunal Federal, pedido de intervenção federal, quando se tratar de medida necessária ao cumprimento e execução de decisão proferida por esta Suprema Corte (RTJ 142/371, Rel. Min. SYDNEY SANCHES). Tratando-se, no entanto, de decisão emanada de Tribunal de Justiça, como no caso, impõe-se ao credor do Poder Público a obrigação formal de dirigir-se, previamente, ao Presidente da Corte judiciária local, para, naquela instância, deduzir o pedido de intervenção federal. Se o Presidente do Tribunal – de que emanou a ordem judiciária alegadamente descumprida – entender que a autoridade do julgamento proferido pela Corte inferior está sendo desrespeitada, caber-lhe-á, então, mediante juízo positivo de admissibilidade, determinar o processamento do pedido e o seu ulterior encaminhamento ao Supremo Tribunal Federal, a quem competirá apreciar a postulação formulada pela parte interessada, e, sendo o caso, requisitar, ao Presidente da República, a decretação de intervenção federal no Estadomembro que houver desrespeitado a decisão judicial exeqüenda. É por essa razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, nas hipóteses de alegado descumprimento de decisão judicial proferida por Tribunal de Justiça, tem advertido faltar legitimidade ativa à parte interessada, para agindo per saltum, submeter, desde logo, à própria Suprema Corte, o pedido de intervenção federal contra o Estado-membro devedor. É que, em tal específica situação, a requisição de intervenção federal – de competência desta Suprema Corte – dependerá, essencialmente, do juízo Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 311 positivo de admissibilidade do Presidente do Tribunal de Justiça local (RTJ 120/949, Rel. Min. MOREIRA ALVES). Se este, entendendo incabível o processamento da intervenção federal, deixar de admitir o respectivo pedido, vindo, em conseqüência, a repeli-lo, não poderá o Supremo Tribunal Federal sequer examiná-lo (RTJ 114/443, Rel. Min. MOREIRA ALVES). Cumpre ressaltar que, no caso presente¸ a parte ora agravante sequer provocou, formalmente, o Presidente do Tribunal de Justiça local, para que este, agindo nos termos do art. 350, II do RISTF, viesse a submeter, à apreciação do Supremo Tribunal Federal, o pedido de intervenção federal, por inexecução de ordem ou decisão judiciária. Nem se há de cogitar, na espécie, da possibilidade de esta Corte, procedendo ex officio, vir, espontaneamente, a adotar a providência extraordinária pretendida pelo ora recorrente. É que no caso, inexistiu qualquer omissão imputável ao Presidente do Tribunal de Justiça local. A única omissão efetivamente caracterizada neste procedimento concerne à própria parte recorrente, que, embora podendo – e devendo – provocar, formalmente, o Presidente da Corte judiciária local, deixou de fazê-lo. Tratando-se da questão referente à legitimidade ativa para a instauração do processo de intervenção federal, na hipótese de desobediência a ordem ou decisão judicial (CF, art. 34, VI, c/c o art. 36, II), cabe ter presente a advertência feita pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: “Intervenção Federal. Legitimidade ativa para o pedido. Interpretação do inciso II do art. 36 da Constituição Federal de 1988, e dos artigos 19, II e III da Lei 8.038, de 25-5-1990, e 350, II e III do RISTF. A parte interessada na causa somente pode se dirigir ao Supremo Tribunal Federal, com pedido de intervenção federal, para prover a execução de decisão da própria Corte. Quando se trate de decisão de Tribunal de Justiça, o requerimento de intervenção deve ser dirigido ao respectivo Presidente, a quem incumbe, se for o caso, encaminhá-lo ao Supremo Tribunal Federal. Pedido não conhecido, por ilegitimidade ativa dos requerentes.” (RTJ 142/371, Rel. Min. SYDNEY SANCHES – grifei) “Intervenção Federal por descumprimento de decisão judicial da Justiça dos Estados: ilegitimidade do particular interessado para requere sua requisição ao Supremo Tribunal: precedentes.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 312 (IF n. 135-RJ, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei) Esse entendimento, por sua vez, reitera orientação do Supremo Tribunal Federal formada e consolidada sob a égide do anterior ordenamento constitucional, como expressamente referido na própria decisão ora recorrida (RTJ 57/156, Rel. Min. BARROS MONTEIRO – RTJ 120/949, Rel. Min. MOREIRA ALVES – IF N. 64, Rel. Min. THOMPSON FLORES – IF n. 68, Rel. Min. ANTÔNIO NEDER – IF n. 94, Rel. Min. MOREIRA ALVES, v.g.). Uma última observação se impõe: mesmo quando o Presidente do Tribunal local ou regional formalmente encaminha pedido de intervenção federal a esta Suprema Corte, deve ele fundamentá-lo adequadamente (IF n. 231- DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE), além de indicar as razões evidenciadoras da necessidade da medida excepcional postulada (IF n. 232-DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE). Daí a advertência contida no magistério jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal: “ O pedido de requisição de intervenção dirigida pelo Presidente do Tribunal de execução ao STF há de ter motivação quanto à procedência e também com a necessidade da intervenção”. (IF n. 230- DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE). Assim sendo, e não se tratando, no caso ora em análise, de prover a execução de ordem ou decisão do próprio Supremo Tribunal Federal (RISTF, art. 350, III), falece legitimidade ativa à parte interessada, para, sem prévia submissão de seu pleito ao Presidente do Tribunal de Justiça local, formular, diretamente, perante a Suprema Corte, pedido de intervenção federal, sob alegação de inexecução¸ pelo Estado-membro devedor, de decisão proferida pela Corte Judiciária estadual. Por tais razões, nego provimento ao presente recurso de agravo. É o meu voto. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 313 13- INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 102-1/PA Data da Decisão: 13/03/1991. Relator: Min. Néri da Silveira. Tipo de Ação: Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva. Modalidade de Jurisdição: Originária. Pólo Ativo: Partido Socialista Brasileiro e Deputado Ademir Andrade. Pólo Passivo: Estado do Pará. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: Intervenção Federal. Requerentes: partido político e parlamentar federal. Alegação de que o Governador do Estado não adota providências, em certo município, para garantir a ordem e assegurar os direitos humanos. Alegação de enquadrar-se a espécie no art. 34, VI e VII, alínea “b”, da Constituição Federal. Hipótese em que não houve representação do Procurador-Geral da República, negando o Tribunal de Justiça do Estado descumprimento de decisão judicial no Estado. Falta de legitimidade aos requerentes para suplicarem a intervenção, pelos fatos indicados. Pedido de que não se conhece. RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO NÉRI DA SILVEIRA (PRESIDENTE - RELATOR): - Em seu parecer a Procuradoria-Geral da República, às fls. 117/119, resumiu a espécie e sobre ela se manifestou, nestes termos: “O PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO e o DEPUTADO ADEMIR ANDRADE, invocando o art. 103, VII, da Constituição Federal, que regula a propositura de ação de inconstitucionalidade, requerem a essa Egrégia Corte intervenção federal no ESTADO DO PARÁ, alegando a ocorrência das situações previstas no artigo 34, VI e VII, alínea “b”, da Constituição Federal, que justificariam a medida requerida. 2. Em apoio ao pedido, trazem aos autos longa exposição de fatos criminosos que estariam acontecendo no Estado do Pará, sem que o Excelentíssimo Senhor Governador venha a tomar as providências cabíveis, omitindo-se, com isto, de garantir a ordem e assegurar os direitos humanos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 314 naquela unidade da Federação. 3. Anexam ao requerimento recortes de jornais e cópias de pronunciamentos de ilustres congressistas, que comprovariam a situação intranqüilizadora em que se encontra o Estado do Pará. 4. Sem entrar no mérito sobre a veracidade das denúncias, de evidente gravidade, examina o parecer apenas se elas tipificam caso de intervenção federal, a ser decretada após a concordância do Supremo Tribunal Federal. 5. O primeiro fundamento apresentado, para justificar a intervenção federal, seria o de prover a execução de ordem ou decisão judicial, pois Excelentíssimo Senhor Governador do Estado estaria descumprindo decretações de prisão preventiva. 6. A intervenção federal por descumprimento de ordem ou decisão judicial, dependerá, conforme se constata de simples leitura do artigo 36 da Constituição Federal, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral. A providência, no caso, será tomada por essa Egrégia Corte, de ofício ou mediante pedido do Presidente do Tribunal de Justiça, conforme dispõe o art. 350 do Regimento Interno. 7. Ocorre que não acompanha o presente pedido qualquer documento que comprove descumprimento de decisão judicial, o que poderia permitir, em tese, a iniciativa, de ofício, dessa Egrégia Corte. Aliás, na própria inicial o requerente se limita a uma referência sobre não serem cumpridas decretações de prisões preventivas. Como não existe prova concreta de recusa de cumprimento de decreto prisional, sequer se justifica discutir se a omissão policial caracterizaria a hipótese prevista na Constituição Federal. 8. Quanto ao fundamento constante do art. 34, VII, alínea “b”, é flagrante o equívoco do requerente, primeiro porque a representação interventiva somente pode ser proposta pelo Procurador-Geral da República, conforme estabelece o art. 36, III, da Constituição. Depois, porque o seu objetivo é suprimir ato jurídico editado pelo Estado, que esteja em conflito com determinados princípios constitucionais. Ora, a inicial não aponta o ato estadual específico a ser reparado, por estar em colisão com os princípios constitucionais relacionados no art. 34, VII, alínea “b”, da Carta. O que ela traz são notícias sobre fatos concretos violadores de direitos humanos, que merecem proteção jurisdicional diferente da representação interventiva. 9. Deve ser ressaltado que a situação relatada na inicial, sendo devidamente comprovada, é muito grave, mas a hipótese legal mais próxima da mesma é a tipificada no art. 34, alínea III, sendo juízes sobre a sua Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 315 ocorrência o Presidente da República e o Congresso Nacional, não incumbindo ao Supremo Tribunal Federal pronunciar-se sobre a conveniência ou não do solicitado decreto de intervenção.” Ouvido o Tribunal de Justiça do Estado do Pará, vieram informações às fls. 134, nestes termos: “Em atenção ao vosso honroso ofício de n° 549/P de 13 de setembro de 1989, e recebido na data 18/09, em que são solicitadas informações, quanto ao descumprimento de ordens ou decisões judiciais, por parte do Exm° Sr. Governador do Estado, Dr. Hélio Mota Gueiros, cumpre-me informar a V. Exa. que, mandando rever as atas das sessões realizadas pelo Tribunal Pleno deste Poder, não foi encontrada nenhuma representação formulada contra aquela autoridade do poder Executivo, que revelasse recusa no cumprimento das decisões da Justiça Estadual. Convém acrescentar que o Dr. Hélio Mota Gueiros, foi, até disputar cargo eletivo de senador e governador do Estado, serventuário da Justiça com exercício no Cartório do 7° ofício, vinculado à 9ª Vara Cível.” Às fls. 139/140, acrescentou a Procuradoria-Geral da República, “verbis”: “2.As informações prestadas pelo Colendo Tribunal de Justiça do Estado do Pará encontram-se às fls. 134 e dão conta da inexistência de representações contra o Poder Executivo, por descumprimento de decisões judiciais, razão porque não se localiza amparo para requisição de Intervenção Federal, na forma prevista para a espécie pela Constituição Federal e pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. 3.Quanto aos documentos de fls. 124/129, trazidos aos autos pelos requerentes da intervenção, eles noticiam a gravidade da situação no Município de Itaituba, mas não permitem o deferimento da súplica por essa Egrégia Corte. 4.Assim, reitero o parecer pelo arquivamento, nos termos do art. 351, II, do Regimento Interno.” È o relatório. VOTO O SENHOR MINISTRO NÉRI DA SILVEIRA (RELATOR): Na espécie, não houve representação do Procurador-Geral da República, que bem o registra em seu parecer transcrito no relatório. O Tribunal de Justiça do Estado do Pará nega descumprimento de decisão Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 316 judicial no Estado. Não há, em decorrência, fundamento a requisição pelo STF de intervenção federal, no caso. Não resta, assim, legitimidade ao partido requerente e ao particular, deputado federal, para suplicarem a intervenção pelos fatos indicados. Não há, pois, aqui, como conhecer do pedido, por falta de legitimidade dos suplicantes. VOTO O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – O ajuizamento da ação direta interventiva – que a vigente Constituição continua a denominar representação (art. 36, III e IV) - supõe formal provocação do Procurador-Geral da República, a quem se deferiu, para efeito de instauração deste processo subjetivo, a titularidade exclusiva de seu exercício. Ainda remanesce, portanto, em sede de representação interventiva – que não se confunde com o instituto da ação direta genérica – o monopólio do “jus actionis” nas mãos do Chefe do Ministério Público da União, muito embora – e esta é uma questão “de jure constituendo” – o poder de agir devesse, em tal hipótese, ser atribuído ao Advogado-Geral da União, que detém a representação institucional desta pessoa política, em juízo ou fora dele (CF/88, art. 131, “caput”). A existência de um litígio constitucional entre a União Federal e o Estadomembro, acha-se subjacente ao instituto da representação interventiva, cuja configuração jurídico-processual qualifica-o como notável instrumento de composição de conflitos federativos, destinado a restaurar a ordem constitucional vulnerada e a fazer cessar situações de lesão ou de ofensa aos princípios constitucionais sensíveis. Ao discorrer sobre a natureza, o perfil e a função político-jurídica da representação interventiva, GILMAR FERREIRA MENDES (“Controle de Constitucionalidade – Aspectos jurídicos e políticos”, p. 217-218, 222 e 226, 1990, Saraiva), em precioso magistério doutrinário, que cumpre ser referido, disserta, “verbis”: “A ação direta de inconstitucionalidade foi introduzida, entre nós, como pressuposto de processo interventivo, nos casos de ofensa aos chamados princípios constitucionais sensíveis (CF de 1934, art. 12, § 2°; CF de 1946, art. 8°, parágrafo único; CF de 1967/1969, art. 11, § 1°, ‘c’). E, inicialmente, provocava-se o Supremo Tribunal Federal com o objetivo de obter a declaração de constitucionalidade da lei interventiva. A Constituição de 1946 consagrou, porém, a ação direta de inconstitucionalidade, nos casos de lesão aos princípios estabelecidos no art. 7°, VII. Imprimiu-se, assim, traço próprio ao Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 317 nosso modelo de controle de constitucionalidade, afastando-se do sistema norte-americano. Não se cuidava de fórmula consultiva, mas de um litígio constitucional, que poderia dar ensejo à intervenção federal. Outorgou-se a titularidade da ação ao Procurador-Geral da República, a quem, como chefe do Ministério Público Federal, competia defender os interesses da União (art. 126). Esse mecanismo não descaracteriza a representação interventiva como peculiar modalidade de composição de conflitos entre a União e os Estados-membros. A fórmula adotada parece revelar que, na ação direta interventiva, menos que um substituto processual, ou parte, o Procurador-Geral exerce o mister de representante judicial da União. O Supremo Tribunal Federal fixou, desde o início, que a decisão, na ação direta, configurava um ‘aresto, um acórdão’, que punha termo ao contencioso da inconstitucionalidade. O Tribunal desempenhava, assim, a função de árbitro supremo que ‘(...) intervém, se provocado, no conflito aberto entre a Constituição, que lhe cumpre resguardar, e a atuação deliberante do poder estadual’. Como se vê, as primeiras decisões do Supremo Tribunal Federal já atribuíam à representação interventiva o caráter de uma relação processual contraditória, na qual o Procurador-Geral da República representava os interesses da União, enquanto guardiã da federação, buscando assegurar a observância pelo Estado-membro dos princípios consagrados no art. 7°, VII, da Constituição Federal. Reconhecia-se, assim, a representação interventiva como peculiar modalidade judicial de composição de conflito entre a União e os entes federados. Não se tem aqui, pois, um processo objetivo (objektives Verfahren), mas a judicialização de conflito federativo atinente à observância de deveres jurídicos especiais, impostos pelo ordenamento federal ao Estado-membro. Daí considerar Bandeira de Mello, com acerto, que, no caso, se trata de exercício do direito de ação, cuja autora seria a União, representada pelo ProcuradorGeral da República, e o réu, o Estado federado, atribuindo-se-lhe ofensa a princípio constitucional da União. A fórmula adotada parece traduzir aquilo que Kelsen houve por bem denominar “accertamento giudiziale dell’illecito (...) Che condiziona l’esecuzione federale”. E, evidentemente, esse “accertamento giudiziale”, ou o contencioso da inconstitucionalidade, como referido por Castro Nunes, diz respeito ao próprio conflito de interesses potencial ou efetivo, entre União e Estado, no tocante à observância de determinados princípios federativos. Portanto, o ProcuradorGeral da República instaura o contencioso de inconstitucionalidade não como Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 318 parte autônoma, mas como representante judicial da União Federal, que ‘tem interesse na integridade da ordem jurídica, por parte dos Estadosmembros’. Esta colocação parece emprestar adequado enquadramento dogmático à chamada representação interventiva, diferenciando-a do controle abstrato de normas, propriamente dito, no qual se manifesta o interesse público genérico na preservação da ordem jurídica”. Não se deve, pois, perder de perspectiva este fato: o de que, na ação direta interventiva, instaura-se situação de litigiosidade constitucional entre a União Federal, que nela deveria ser representada pelo Advogado-Geral da União - e não pelo Procurador-Geral da República - e o Estado-membro. Contudo, o texto constitucional preferiu outorgar a qualidade para agir, mesmo em se tratando de representação interventiva, ao Procurador-Geral da República - e só a este, exclusivamente . No caso, a ação direta interventiva foi ajuizada por Partido Político, a quem falece "legitimatio" ativa "ad causam", sendo inaplicável a este processo a regra de legitimação inscrita no art. 103 da Constituição Federal, que se adstringe, tão-somente, às hipóteses de controle concentrado de constitucionalidade, instaurável pelo ajuizamento da ação direta genérica, de todo inconfundível, quer por seu perfil, quer por sua finalidade, com a representação interventiva. Julgo, pois, o autor, carecedor desta ação ou representação interventiva. Nesse sentido, acompanhando Vossa Excelência, Sr. Presidente, é o meu voto. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 319 14- INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 135-8/RJ. Data da Decisão: 18/10/1995. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Tipo de Ação: Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Originária. Pólo Ativo: Ary Mendes e outros. Pólo Passivo: Estado do Rio de Janeiro. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. “EMENTA: Intervenção federal por descumprimento de decisão judicial da Justiça dos Estados: ilegitimidade do particular interessado para requerer sua requisição ao Supremo Tribunal: precedentes.” “O SENHOR MINISTRO SEPULVEDA PERTENCE: Cuida-se de pedido de intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro formulado por Ary Mendes e outros delegados de polícia do Estado, para execução de decisão judicial que lhes foi favorável.” “Insurgem- se os requerentes contra recusa do Presidente do Tribunal de Justiça de promover a pretendida requisição de intervenção federal no Estado, sob a alegação de que o procedimento da referida autoridade judiciária constitui usurpação da competência do Presidente do Supremo Tribunal Federal estabelecida na Constituição Federal (art. 36, II) e disciplinada na L. 8038/90 (arts. 19, I, 20, I e II e 21).” “Narram que, ainda na vigência da Carta de 1969, impetraram mandado de segurança contra ato do Senhor Secretário de Administração do Estado, pleiteando além do deferimento da incidência do adicional por tempo de serviço sobre o cálculo da verba de representação, o "resguardo de direitos supervenientes”.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 320 “Promulgada a atual Constituição Federal, os impetrantes, pretendendo-se beneficiários de disposições previstas nos artigos 241, 39, § 1º e 135 e Título IV, que estabeleceram isonomia entre os Delegados de Polícia e os integrantes da carreira do Ministério Público, pleitearam ao Relator do caso que no julgamento da lide fossem considerados os referidos preceitos.” “Entendendo, assim, que os acórdãos que concederam a ordem (f. 20/22 e 23/24), além da questão referente à incidência dos adicionais sobre a verba de representação, decidiram também questão de natureza constitucional, relativa aos alegados direitos supervenientes, e que referidos julgados não estão sendo cumpridos pela autoridade coatora, bem como que os procedimentos do então Presidente do Tribunal de Justiça frustram a execução do mandado de segurança, impedindo a requisição da intervenção federal no Estado, pleiteiam os requerentes que o Supremo Tribunal Federal decida de ofício a requisição da intervenção federal, para compelir à obediência da decisão judicial. As informações prestadas pelo iI. Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, depois de resumir os antecedentes do caso, esclarecem (f.75/76):” "7 - O Estado do Rio de Janeiro informou que, em virtude da lei Estadual 1.432 de 01.03.89, antes do trânsito em julgado do acórdão, os impetrantes e todos os integrantes do quadro permanente da Polícia civil passaram a receber o adicional por tempo de serviço calculado sobre a verba de representação. 8 - Os requerentes insistiram em que o acórdão não estava sendo cumprido. 9-Tal insistência provocou decisão do então Presidente do Quarto Grupo de Câmaras Cíveis no sentido de que o acórdão estava sendo cumprido e de que outras providências dependiam de iniciativa pela via própria. 10 - Contra esta decisão não foi interposto recurso. 11- Ainda insistindo no argumento de descumprimento de ordem judicial, os requerentes pretenderam a Intervenção Federal no Estado do Rio de Janeiro. 12- O então Presidente deste Tribunal de Justiça, em cumprimento do seu dever de exame, prévio do pedido, determinou seu arquivamento porque manifestamente infundado (Lei 8.038/90, artigo 20, inciso II). 13 -Também contra esta decisão os requerentes não interpuseram o recurso legalmente previsto. 14 - A Presidência deste Tribunal de Justiça, ao apreciar e determinar o arquivamento do pedido de Intervenção formulado pelos requerentes, apenas cumpriu o seu dever legal sem usurpar da competência dessa Suprema Corte. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 321 15- O pedido efetuado pelos requerentes diretamente a esse Supremo contraria, sem dúvida, a estabelece o rito para o procedimento de Intervenção Federal. 16 - Na realidade, através deste meio impróprio e na sede inadequada, os requerentes pretendem reabrir a discussão sobre descumprimento do acórdão. 17- Todavia, esta questão já está resolvida por decisões que não foram atacadas pelos recursos previstos no ordenamento processual." “Oficiando pelo Ministério Público Federal, o iI. Subprocurador-Geral Paulo de Tarso Braz Lucas, opinou pelo não conhecimento do pedido (f. 83). É o relatório.” “O SENHOR MINISTRO SEPULVEDA PERTENCE (PRESIDENTE): É este o teor da manifestação da Procuradoria-Geral (f. 83): “O pedido de intervenção não tem como ser apreciado, pois aos requerentes falta legitimidade ativa para tanto. Nesse sentido, a orientação desse Colendo Tribunal, conforme os seguintes precedentes: "Intervenção Federal. Legitimidade ativa para o pedido. Interpretação do inciso II do art. 36 da Constituição Federal de 1988, e dos artigos 19, II e III, da Lei 8.038, de 28-05-1990, e 350, II e III, do RISTF. A parte interessada pode se dirigir ao Supremo Tribunal Federal, com pedido de intervenção federal para prover a execução de decisão da própria Corte. Quando se trata de decisão de Tribunal de Justiça, o requerimento de intervenção deve ser dirigido ao respectivo Presidente, a quem incumbe, se for o caso, encaminhá-lo ao Supremo Tribunal Federal. Pedido não conhecido, por ilegitimidade ativa dos requerentes." (Intervenção Federal n. 105 (Questão de Ordem) PR, Tribunal Pleno, Relator Exmo. Sr. Min. Sydney Sanches, RTJ 142/371). "Intervenção Federal. - Se o Presidente do Tribunal de Justiça local - que tem legitimação para provocar o exame da requisição de intervenção federal, que só se fará para a preservação da autoridade da Corte que ele representa entende que a intervenção federal não cabe no caso, não pode o STF, de ofício e à vista do encaminhamento por aquela Presidência do pedido de intervenção federal feito pelo interessado e por ela repelido, examiná-lo. Agravo regimental a que se nega provimento." (Intervenção Federal n. 81 (AGRG) - SP, Relator Min. Moreira Alves, RTJ 114/443). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 322 Note-se que bem recentemente, ao julgar Reclamação formulada contra o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará por Coronéis da Reserva da Polícia Militar daquele Estado (Reclamação nº464-3-CE, ReIator Min. Octávio Gallotti, DJ 24.02.95), esse Colendo Tribunal proferiu aresto com ementa do seguinte teor: "Intervenção federal, por suposto descumprimento de decisão de Tribunal de Justiça. Não se pode ter, como invasiva da competência do Supremo Tribunal, a decisão de Corte estadual, que, no exercício de sua exclusiva atribuição, indefere o encaminhamento do pedido de intervenção. Precedentes do STF. Reclamação julgada improcedente." Pelo exposto, opinamos por que não se conheça do pedido, tendo em vista a ilegitimidade ativa dos requerentes.” Recordo, no mesmo sentido, outros precedentes do Tribunal, sob ordens constitucionais anteriores, que, contudo, no ponto, não sofreram alteração substancial (IF 61, 16.12.70, Barros Monteiro, RTJ 57/156; IF 64, 16.10.75, Thompson; IF 68, 12.12.79, Neder; IF 94, 19.12.86, M. Alves). Nada mais tendo a aditar-lhe, acolho o parecer e não conheço do pedido: é o meu voto.” Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 323 15- INTERVENÇÃO FEDERAL - QUESTÃO DE ORDEM Nº 590-2/CE Data da Decisão: 17/09/1998. Relator: Min. Celso de Mello. Tipo de Ação: Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Originária. Pólo Ativo: Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região. Pólo Passivo: Município de Ibiapina/CE. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: INTERVENÇÃO FEDERAL - DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL POR MUNICÍPIO SITUADO EM TERRITÓRIO DE ESTADOMEMBRO - PROPOSTA ENCAMINHADA PELO TST AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL – QUESTÃO DE ORDEM - PEDIDO NÃO CONHECIDO . O CUMPRIMENTO DAS DECISÕES JUDICIAIS IRRECORRÍVEIS IMPÕE - SE AO PODER PUBLICO COMO OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL INDERROGÁVEL. - A exigência de respeito incondicional às decisões judiciais transitadas em julgado traduz imposição constitucional, justificada pelo princípio da separação de poderes e fundada nos postulados que informam, em nosso sistema jurídico, a própria concepção de Estado Democrático de Direito. O dever de cumprir as decisões emanadas do Poder Judiciário, notadamente nos casos em que a condenação judicial tem por destinatário o próprio Poder Público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontornável obrigação institucional a que não se pode subtrair o aparelho de Estado, sob pena de grave comprometimento dos princípios consagrados no texto da Constituição da República. A desobediência a ordem ou a decisão judicial pode gerar, em nosso sistema jurídico, gravíssimas conseqüências, quer no plano penal, quer no âmbito Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 324 político-administrativo (possibilidade de impeachment), quer, ainda, na esfera institucional (decretabilidade de intervenção federal nos Estados-membros ou em Municípios situados em Território Federal, ou de intervenção estadual nos Municípios). IMPOSSIBILIDADE DE DECRETAÇÃO DE INTERVENÇÃO FEDERAL EM MUNICÍPIO LOCALIZADO EM ESTADO-MEMBRO. - Os Municípios situados no âmbito dos Estados-membros não se expõem à possibilidade constitucional de sofrerem intervenção decretada pela União Federal, eis que, relativamente a esses entes municipais, a única pessoa política ativamente legitimada a neles intervir é o Estado-membro. Magistério da doutrina. Por isso mesmo, no sistema constitucional brasileiro, falece legitimidade ativa à União Federal para intervir em quaisquer Municípios, ressalvados, unicamente, os Municípios "localizados em Território Federal ... " (CF, art. 35, caput). RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (Relator): Consta dos presentes autos que o Município de Ibiapina, localizado no Estado do Ceará, não obstante condenado definitivamente em processo trabalhista, teria descumprido a determinação consubstanciada no art. 100, § 1° da Constituição Federal, deixando de promover a inclusão, em seu orçamento anual, da verba necessária à satisfação do precatório expedido pelo TRT/7a Região, órgão judiciário que proferiu, no caso ora em exame, a decisão condenatória transitada em julgado. O ilustre Presidente do TRT/7 a Região, em Ofício dirigido à Egrégia Presidência do Tribunal Superior do Trabalho, assim resumiu a situação processual da causa em referencia, indicando a necessidade de adoção, contra o Município ora requerido, da medida radical da intervenção federal (fls. 5): “Cumprindo determinação contida no Ofício Circular GDGCJ.GP N° 108/97, datado de 15.09.97, desse Colendo TST, comunico a Vossa Excelência que no Precatório N° 402/94, extraído dos autos do Processo da JCJ de Sobral N° 450/90, em que são partes Celina Maria Matias da Silva, Exeqüente, e Município de Ibiapina, Executado, foi expedido o Requisitório N° 314/95, regularmente apresentado até 1º de julho, não tendo sido efetivado, até a presente data, o pagamento do débito exeqüendo, conforme certidão exarada nos autos. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 325 Consignado, pois, o descumprimento, por parte da Entidade de Direito Público, da norma contida no § 1°, do art. 100, da C.F., e em face da proibição da medida constritiva de seqüestro, no julgamento de liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 1662/97, solicito a Vossa Excelência seja oficiado ao Excelso Supremo Tribunal Federal, para a adoção das providências cabíveis, nos termos do art. 34, VI, c./c. Art. 36, II, da Carta Magna." O eminente Presidente do E. Tribunal Superior do Trabalho encaminhou a esta Suprema Corte a referida proposta de requisição de intervenção federal no Município de Ibiapina/CE (fls. 2/3), sob a alegação de descumprimento de ordem judicial referente ao pagamento do valor constante do Precatório n° TRT-P-402/94, oriundo do Processo n° 450/90 da Junta de Conciliação e Julgamento de Sobral/CE (fls. 4). Tendo presente a solicitação consubstanciada no oficio emanado do ilustre Presidente do E. Tribunal Superior do Trabalho, e considerando o que dispõem os arts. 34, caput, e 35, caput, ambos da Constituição da República, que afastam a possibilidade jurídica de intervenção federal em Município localizado no âmbito geográfico de qualquer Estado-membro, submeto, em questão de ordem, à apreciação do Egrégio Plenário do Supremo Tribunal Federal, a proposta formulada pelo TST. É o relatório. VOTO O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (RELATOR): O E. Tribunal Superior do Trabalho, em comunicação encaminhada a Presidência do Supremo Tribunal Federal, informa que o Município de Ibiapina, localizado no Estado do Ceará, teria descumprido a norma inscrita no art . 100, § 1°, da Constituição da República. Consta desse expediente que o Município em questão, definitivamente condenado em processo trabalhista, não teria promovido a inclusão, em seu orçamento, da verba necessária ao pagamento do precatório expedido pelo Tribunal Regional do Trabalho de que emanou a decisão condenatória já transitada em julgado. Por tal razão, e para os fins a que se referem as normas consubstanciadas no art. 34, VI, c/c o art. 36, II, ambos da Constituição da Republica (requisição de intervenção federal), o ilustre Presidente do E. Tribunal Superior do Trabalho submete, ao exame desta Suprema Corte, para as providências que entender pertinentes, o ofício do Tribunal Regional do Trabalho, acompanhado da relação que identifica, no âmbito dessa Região judiciária, o precatório ainda pendente de pagamento. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 326 A análise da proposta formulada pelo Tribunal Superior do Trabalho impõe algumas reflexões prévias em torno da questão central referente à disciplina constitucional que rege, em nosso sistema jurídico, o processo de intervenção federal. O instituto da intervenção federal, consagrado no texto de todas as Constituições republicanas brasileiras, representa um elemento fundamental, tanto na construção da doutrina do Estado Federal, quanto na práxis do federalismo. O mecanismo de intervenção constitui instrumento essencial à viabilização do próprio sistema federativo, e, não obstante o caráter excepcional de sua utilização - necessariamente limitada às hipóteses taxativamente definidas na Carta Política -, mostra-se impregnado de múltiplas funções de ordem políticojurídica, destinadas (a) a tornar efetiva a intangibilidade do vínculo federativo, (b) a fazer respeitar a integridade territorial das unidades federadas, (c) a promover a unidade do Estado Federal e (d) a preservar a incolumidade dos princípios fundamentais proclamados pela Constituição da República. A intervenção federal, na realidade, configura expressivo elemento de estabilização da ordem normativa plasmada na Constituição da República. Élhe inerente a condição de instrumento de defesa dos postulados sobre os quais se estrutura, em nosso País, a ordem republicano-federativa. “O instituto da intervenção" - adverte ERNESTO LEME ("A Intervenção Federal nos Estados", p. 25, item n. 20, 2' ed., 1930, RT) "é (...) da essência do sistema federativo". Sem esse mecanismo de ordem político-jurídica, que assegura a intangibilidade do pacto federal, “a União seria um nome vão. E as garantias e vantagens, que a Federação deve proporcionar aos Estados e ao povo, se reduziriam a simples miragem" (JOÃO BARBALHO, "Constituição Federal Brasileira Comentários", p. 31, 2ª ed., 1924, Rio de Janeiro, Briguiet e Cia. Editores). Cabe destacar, neste ponto, o magistério doutrinário, que, fundado na necessidade de respeito ao princípio federativo, adverte sobre a excepcionalidade da intervenção federal, em face do caráter extremamente perturbador que assume qualquer interferência do Governo Federal nos assuntos regionais e na esfera de autonomia dos Estados-membros (CARLOS MAXIMILIANO, "Comentários à Constituição Brasileira", p. 158, item n. 128, 3' ed., 1929, Globo; THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, "A Constituição Federal Comentada" vaI. 1/183, 3ªed., 1956, Konfino; FÁVILA RIBEIRO, "A Intervenção Federal nos Estados", p. 48, tese de concurso, 1960, Editora Jurídica, Fortaleza). Não se pode perder de perspectiva a circunstância de que a intervenção federal representa, ainda que transitoriamente, a própria negação da Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 327 autonomia institucional reconhecida aos Estados-membros pela Constituição da República. Essa autonomia, que possui extração constitucional, configura postulado fundamental peculiar à organização político-jurídica de qualquer sistema federativo, inclusive do sistema federativo vigente no Brasil. O poder autônomo que a ordem jurídico-constitucional atribuiu aos Estados-membros traduz um dos pressupostos conceituais inerentes à compreensão mesma do federalismo. Daí a estrita disciplina imposta pela Constituição ao instituto da intervenção federal, cujos requisitos de admissibilidade foram por ela taxativamente relacionados em "numerus clausus", em obséquio ao princípio maior da autonomia das unidades federadas e em consideração ao caráter absolutamente excepcional de que se reveste o ato interventivo. Essa circunstância justifica, plenamente, a advertência constante do magistério doutrinário de PONTES DE MIRANDA ("Comentários à Constituição de 1967", tomo 2/198, 1967, RT), para quem "a intervenção nos Estados-membros constitui, pelo menos, teoricamente, o 'punctum dolens' do Estado Federal". Vê-se, portanto, que o tratamento restritivo constitucionalmente dispensado ao mecanismo da intervenção federal impõe que não se ampliem as hipóteses de sua incidência, cabendo ao intérprete identificar, no rol exaustivo do art. 34 da Carta Política, os casos únicos que legitimam, em nosso sistema jurídico, a decretação da intervenção federal nos Estados-membros. O estatuto constitucional brasileiro inclui, dentre as hipóteses de admissibilidade da intervenção federal nos Estados-membros, a ocorrência de desrespeito ou de desobediência a ordem ou a decisão emanadas do Poder Judiciário (CF, art. 34, VI,c/c o art. 36, II). A exigência de respeito incondicional às decisões judiciais transitadas em julgado traduz imposição constitucional, justificada pelo princípio da separação de poderes e fundada nos postulados que informam, em nosso sistema jurídico, a própria concepção de Estado Democrático de Direito. O dever de cumprir as decisões emanadas do Poder Judiciário, notadamente nos casos em que a condenação judicial tem por destinatário o próprio Poder Público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontornável obrigação institucional a que n&o se pode subtrair o aparelho de Estado, sob pena de grave comprometimento dos princípios consagrados no texto da Constituição da República. É por tal razão que a desobediência a ordem ou a decisão judicial pode gerar, em nosso sistema jurídico, gravíssimas conseqüências, quer no plano penal (CP, art. 319 e DL n° 201/67, art. I·, XIV), quer no âmbito político-administrativo (possibilidade de impeachment Lei n· 1.079/50, art. 12, ns. 1, 2 e 4, c/c o art. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 328 74; Lei n° 7.106/83, art. I· e DL na 201/67, art. 4·, VII), quer, ainda, na esfera institucional (decretabilidade de intervenção federal nos Estados-membros ou em Municípios situados em Território Federal, ou de intervenção estadual nos Municípios – CF, art. 34, VI, c/c o art. 35, IV). Assentadas essas premissas, passo a apreciar a proposta de intervenção federal constante do ofício encaminhado pelo E. Tribunal Superior do Trabalho. Como já precedentemente enfatizado, o expediente em questão, dirigido a este Supremo Tribunal com o objetivo de provocar a requisição de intervenção federal, contém a informação de que decisão definitiva emanada da Justiça do Trabalho não estaria sendo cumprida por Município, que condenado em processo trabalhista acha-se relacionado no ofício encaminhado por aquela Alta Corte Judiciária. Constata-se, desde logo, que a intervenção federal reclamada pela E. Presidência do Tribunal Superior do Trabalho tem por destinatário o Município, que, identificado neste processo, não teria cumprido a condenação imposta pela Justiça do Trabalho. Essa circunstância de ordem subjetiva qualifica-se, no caso ora em exame, como dado juridicamente relevante, pois, no sistema constitucional brasileiro, não há possibilidade de a União intervir em quaisquer Municípios, ressalvados, unicamente, os Municípios "Localizados em Território Federal...” (CF, art. 35, caput). Desse modo, os Municípios situados no âmbito dos Estados-membros não se expõem à possibilidade constitucional de sofrerem intervenção decretada pela União Federal, eis que, relativamente a esses entes municipais, a única pessoa política ativamente legitimada a neles intervir é o Estado-membro, consoante adverte autorizado magistério doutrinário (ALEXANDRE DE MORAES, "Direito Constitucional", p. 280, item n. 303, 4& ed., 1998, Atlas; MANOEL GONÇALVES FERREIRA . FILHO, "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", vol. 1/236, 1990, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS, "comentários à Constituição do Brasil", vol. 3, tomo 11/353, 1993, Saraiva; PINTO FERREIRA, "Comentários à Constituição Brasileira", vaI. 2/352, 1990, Saraiva; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", voI. IV/2091, item no 184, 1991, Forense Universitária; JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Curso de Direito Constitucional Positivo", p. 483 e 488, 15" edo, 1998, Malheiros, v.g.). Assim sendo, tendo em consideração as razões expostas, e por não ser constitucionalmente possível à União Federal intervir em Município localizado no âmbito de Estado-membro, como no caso, resolvo a presente questão de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 329 ordem, propondo o não-conhecimento do pedido consubstanciado no ofício encaminhado pelo E. Superior do Trabalho. É o meu voto. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 330 16- INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 103-0 /PR Data da Decisão: 13/03/1991. Relator: Min. Néri da Silveira. Tipo de Ação: Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Originária. Pólo Ativo: Solidor Industrial Ltda. Pólo Passivo: Estado do Paraná. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: - Intervenção Federal. Não cumprimento de decisão judicial. Se, embora tardiamente, a decisão judicial veio a ser cumprida, com a desocupação do imóvel, pelos esbulhadores, os autos da intervenção federal devem ser arquivados. Se se noticia que, posteriormente, nova invasão do imóvel, já pertencente a outros proprietários, aconteceu, sem que haja, entretanto, sequer prova de outra ação de reintegração de posse, com deferimento de liminar, esse fato subseqüente, mesmo se verdadeiro, não pode ser considerado nos autos da Intervenção Federal, motivada pela decisão anterior, que acabou por ser executada. Arquivamento dos autos, sem prejuízo de eventual nova providência, na forma da Constituição, quanto ao segundo fato referido. RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO NÉRI DA SILVEIRA (RELATOR): - A Procuradoria Geral da República assim resumiu a espécie e sobre ela se manifestou, às fls. 161/1264: "Com fundamento nos arts. 36, II, da Constituição Federal, e 350, II do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, a empresa Solidor Industrial Ltda. requereu Intervenção Federal contra o Estado do Paraná, para garantir o cumprimento de decisão do Juízo de Direito da Comarca de Quedas do Iguaçu, que concedeu liminar de reintegração de posse em imóvel rural de sua propriedade, situado em Boa Vista de São Roque, Quedas do Iguaçu - PR, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 331 invadida pelos chamados "Sem Terra" em 2 de dezembro de 1986. Requisitadas informações (3º vol., fls. 819), esclareceu o egrégio Tribunal de Justiça do Paraná que o Conselho de Magistratura do Estado, em 23.02.87, deferiu a requisição de força policial, solicitada pelo Juízo de Direito da Comarca, que, entretanto, não fora ainda atendida, embora reiterada a comunicação dessa decisão ao Secretário de Segurança Pública do Estado. Acrescentou que a requerente dirigira idêntico Pedido de Intervenção Federal à Corte Estadual (fls. 826/827). Em nova manifestação, requerida pelo eminente Ministro Presidente, de acordo com proposição da Procuradoria-Geral da República (fls. 1.021-3), esclareceu o ilustre Presidente do Tribunal de Justiça que o pedido de Intervenção Federal, ali ajuizado, encontrava-se ainda pendente de apreciação pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça (fls. 1.031). Solicitou então o Exmo. Senhor Presidente, em 18.06.90, informações ao Senhor Governador do Estado do Paraná, sobre o pedido de Intervenção, bem assim a respeito de eventuais providências tomadas por S. Exa., para assegurar o cumprimento da ordem judicial, de conformidade com a seguinte proposição da Procuradoria-Geral da Republica: "Encontrando-se na dependência de decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça a formalização do pedido de requisição de intervenção federal pelo Presidente da Corte Estadual, propõe esta Procuradoria-Geral, “ad cautelam", sejam solicitadas informações ao Exmo. Senhor Governador do Estado do Paraná sobre o presente Pedido de Intervenção à vista do teor do art. 350, II, do Regimento Interno, e de eventuais providências tomadas por S. Exa., para assegurar o cumprimento da ordem judicial, em face do tempo decorrido”. O Chefe do Poder Executivo do Estado prestou, inicialmente, as informações de fls. 1238/1244, em que destacou as dificuldades para o cumprimento imediato da decisão judicial, relacionadas com o deslocamento de efetivo policial - militar até a Comarca de Quedas do Iguaçu e com a situação grave gerada pela invasão, manifestando o propósito de atender a requisição do Poder Judiciário, tão logo superados esses óbices. Em 31.07.90, complementando as informações comunicou o Exmo. Senhor Governador que a Secretaria de Segurança Publica procedera a desocupação da área invadida, cumprindo, em conseqüência, a decisão judicial (fls. 1247/8). Chamada a manifestar-se sobre a documentação exibida pelo Chefe do Executivo paranaense, a requerente confirma que a ordem de despejo foi efetivada em clima de tranqüilidade, acrescentando, contudo, que: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 332 a) em 30.08.90, ocorreu nova invasão da área desocupada, pelos mesmos "sem terra", que haviam sido despejados em 26.07.90; b) entre a desocupação e a nova invasão, vendeu o imóvel a pessoas físicas, que indica. Requer, por isso o prosseguimento do feito, porque as terras continuam invadidas, pedindo a intimação dos novos proprietários do imóvel, para atuarem como assistentes ou substitutos processuais, nos termos da lei processual civil. Está prejudicado, a nosso ver o pedido de Intervenção Federal. A liminar de reintegração de posse, concedida pelo Juízo de Direito de Quedas do Iguaçu, refere-se a invasão do imóvel ocorrida em 2 de dezembro de 1986 e esta, embora com injustificável atraso, terminou sendo cumprida com a desocupação da área em 26 de julho de 1990. A nova invasão, segundo informa a requerente, ocorreu em 30 de agosto de 1990, constituindo fato novo, que não poderia estar compreendido no mandado liminar de reintegração de posse, de 5 de dezembro de 1986. Por tais razões, o parecer e no sentido de que seja julgado prejudicado o pedido de Intervenção Federal ". É o relatório. VOTO O SENHOR MINISTRO NÉRI DA SILVEIRA (RELATOR): - A suplicante não possui legitimidade para requerer a intervenção federal no Estado, em face dos arts. 34, VI, e 36, II, da Constituição. A notícia constante dos autos trazida ao STF, quanto ao não cumprimento de decisão judicial, poderia ensejar a requisição pelo Supremo Tribunal Federal da Intervenção Federal. Como bem registrou o parecer suso transcrito da Procuradoria-Geral da República, na espécie, a decisão que tardava a ser cumprida, veio a executarse, com a retirada dos ocupantes do imóvel então de propriedade da requerente. Dá-se, porém, que, após, ocorreu nova invasão, segundo informa a requerente; os novos proprietários do imóvel não pediram ao STF requisitasse intervenção federal. Não há sequer comprovação de nova ação possessória, ou de prosseguimento da anterior. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 333 Determino, pois, o arquivamento dos presentes autos, por não mais subsistirem razões à requisição de intervenção federal no Estado do Paraná. VOTO O SENHOR MINISTRO PAULO BROSSARDI: Senhor Presidente, também estou de acordo com o voto do eminente Relator. No caso concreto outra não pode ser a solução. Mas, eu queria deixar registrado que me parece perigoso que se aceite, sem um grão de reserva, o fato de haver uma retirada e um mês depois, uma reentrada. Parece-me, que isso caracteriza uma desobediência não direta, mas oblíqua, a uma determinação judicial. É preciso cuidado para que não haja uma burla, e um dia, uma semana, um mês depois retorne tudo ao statu quo ante". Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 334 17- RECLAMAÇÃO – AGRAVO REGIMENTAL Nº496-2/RS Data da Decisão: 23/06/1994. Relator: Min. Octávio Gallotti. Tipo de Ação: Agravo Regimental em Reclamação. Modalidade de Jurisdição: Recursal. Pólo Ativo: Conselhos Federal e da Secção Estadual do Rio Grande do Sul da Ordem dos Advogados do Brasil. Pólo Passivo: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: - 1. Dado o caráter nacional de que se reveste, em nosso regime político, o Poder Judiciário, não se dá por meio de intervenção federal, tal como prevista no art. 34 da Constituição, a interferência do Supremo Tribunal, para restabelecer a ordem em Tribunal de Justiça estadual, como, no caso, pretendem os requerentes. 2.Conversão do pedido em reclamação a exemplo do resolvido, por esta Corte, no pedido de Intervenção Federal nº 14 (íntegra do acórdão no Diário da Justiça de 28-11-51, páginas 4.525/9do apenso nº273). Decisões unânimes. RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO OCTAVIO GALLOTTI: - Eis o despacho agravado, por meio do qual mandei autuar, como reclamação, o pedido de intervenção federal apresentado, sob a invocação do art. 34, VI, da Constituição, pelos Conselhos Federal e da Secção estadual do Rio Grande do Sul da Ordem dos Advogados do Brasil: ‘1. Visando preservar a autoridade das decisões do Supremo Tribunal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 29 e a assegurar a observância do preceito inscrito no art. 94 da Constituição, requer-se intervenção federal no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pelo fato de que se recusa aquele órgão, a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 335 apreciar lista sêxtupla elaborada pela Ordem dos Advogados, para o provimento de cargo de Desembargador. 2. Fundada no caráter nacional de que é tradicionalmente dotado o Poder Judiciário em nosso regime, já definiu, todavia, esta Corte, não caber, nesse caso, a intervenção federal, tal como prevista no art. 34 da Constituição, correspondente ao art. 10 da de 1967 e ao art. 7º da de 1946. 3. Consulte-se o memorável acórdão proferido, em sessão de 20 de janeiro de 1950, no Pedido de Intervenção Federal nº 14, de que se veio a conhecer como reclamação (publicação integral no “Diário da Justiça” de 28-11-51, apenso ao nº 273, páginas 4.525/9). A mesma tese prevaleceu, também por decisão unânime, no julgamento da ação nº 339 (acórdão publicado em audiência 8-10-58). 4. Seja, portanto, reautuado, como reclamação, o presente pedido e, como tal distribuído a Relator.” (fls. 142) Inconformados, interpõem agravo regimental os Requerentes, começando por contestar a adequação do precedente citado no despacho gravado (Pedido de Intervenção nº 14), ante a consideração de que aqui “não se discute tão só o princípio nacional da distribuição da justiça; discute-se, sim, a reiterada inobservância de dispositivo constitucional e o desatendimento de decisão promanada do Supremo Tribunal Federal” (fls. 167) Sustentam que a interferência do Tribunal hierarquicamente superior dá-se sempre pelo sistema de recursos; não originariamente, quando se trata, como agora, do descumprimento, puro e simples, de decisão já proferida pelo Supremo Tribunal. Para os Agravantes, o julgado em que busquei apoio, 'sem dúvida alguma memorável, enfrentou hipótese absolutamente diversa’ (a ausência de direção do Tribunal de Justiça) da que no presente se oferece, qual seja a do ‘órgão do Poder Judiciário (subordinado) que não cumpre a Constituição Federal e decisão do próprio órgão controlador, fazendo surgir a necessidade de controle político” (fls. 168), conforme registrado na petição inicial e ressaltado na de agravo regimental: “Os fundamentos de fato e direito expostos na peça que deu partida ao pedido, ostentam matéria jurídica e política. Se de um lado há o claro cumprimento da decisão emanada do Pretório Excelso, de outro existe o também descumprimento da Constituição Federal. Ora, nesse caso, stiçana Intervenção Federal o remédio adequado para o combate das duas fundamentações, vez que a primeira apenas abriga o descumprimento do v. acórdão.” (fls. 169) Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 336 Após haver recordado CELSO BASTOS, a respeito de estar a União obrigada a intervir, quando ameaçada a estrutura material, política ou constitucional do País (“Comentários”, 3º vol., tomo II, págs. 328/9), recorrem ao magistério de GOMES CANOTILHO, para salientar a função bipartida – a jurisdicional e a política – da Suprema Corte, como guardiã da Constituição (“Direito Constitucional”, 5ª Ed., págs. 772/4). Tudo com o fito de poder arrematar: “Como se vê, a doutrina pátria e a estrangeira como forte influência em nosso Direito Constitucional, atribui essa outra função, a política, também ao Tribunal encarregado do controle da Lei Maior e seu respectivo cumprimento. É saudável relembrar que órgãos de soberania (a estes evidentemente comparados os Tribunais de Justiça dos Estados, que praticam, no seu nível de competência, atos de soberania) absurdamente contrários à Constituição. Ora, não podem os advogados, ou o Ministério Público ou a população a quem é distribuída a Justiça e de quem se exige cumprimento das decisões jurisdicionais, ficar à mercê da vontade do órgão que deve cumprir a Constituição e as decisões do Supremo Tribunal Federal. DIANTE DO EXPOSTO, com o máximo acatamento, pedem e esperam seja provido o presente agravo para, na forma das disposições legais pertinentes à espécie, determinar o prosseguimento do feito como intervenção, confiando na inteligência e acuidade jurídicas que orientam as decisões desse E. Pleno e por ser medida que atende aos sagrados princípios de JUSTIÇA!” (fls. 170) É o Relatório. VOTO O SENHOR MINISTRO OCTAVIO GALLOTI (PRESIDENTE): - Queixam-se, no essencial, os Agravantes, de que a conversão do seu pedido, em reclamação, somente poderia abrigar um dos fundamentos do pedido (descumprimento de decisão judicial); não o restante, qual seja o concernente à infração de preceito constitucional, mais precisamente, o insculpido no art. 94 da Carta da República. Equivocam-se eles, todavia, ao delimitar o campo da reclamação (que mandei autuar) ao escopo de preservação da autoridade de julgado do Supremo Tribunal. O precedente anunciado em meu despacho abre ensejo, pelo contrário, a bem mais amplo remédio processual, ali arquitetado por este Plenário, sendo relator meu saudoso pai, Ministro LUIZ GALLOTTI, com base na índole nacional, da hierarquia, com o objetivo de restabelecer-se a ordem em Tribunal subordinado, por interferência do Supremo Tribunal. Foi o que se fez no paradigma invocado, sem tê-lo sido por meio de recurso, e afastados Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 337 expressamente o cabimento e a necessidade do apelo ao instituto da intervenção federal, tal como delineado, para outras hipóteses, pela Constituição. Vejam-se a ementa do acórdão e o seu dispositivo: “Intervenção federal e seus vários graus. A interferência do Supremo Tribunal na ação do Judiciário Estadual, não constitui a intervenção de que trata o art. 7º da Lei Magna, mas outra, que é normal no sistema de hierarquia e de recursos ao Poder Judiciário Brasileiro, que tem como cúpula o Supremo Tribunal. Posição deste em nosso regime, Justiça nacional, seja ela federal ou estadual. – Dualidade de poderes exigindo solução imediata. – Competência implícita ao Supremo Tribunal. Se a este cabe julgar os recursos extraordinários, hão de lhe caber os meios de providenciar para que exista sempre legitimidade investido, um Presidente de Tribunal de Justiça (um e não dois) que possa desempenhar a tarefa, a ele imposta por lei federal, de processar aqueles recursos na sua 1ª fase. – Eleições ilegais de Presidentes de Tribunais locais.- Nulidade. Nova eleição”. (I.F. nº 14, D.J. 28-11-51, apenso nº 273, p. 4.525). Daí a exemplar adequação instrumental do precedente, onde não se tratava (nem mesmo se cogitava) do descumprimento de decisão judicial alguma, mas sim da possibilidade de acorrer o Supremo Tribunal, sem assumido caráter de intervenção federal, a regularizar o funcionamento da Corte estadual, tal como vêm precisamente os Agravantes reclamando se venha a proceder em relação à do Estado do Rio Grande do Sul, que estaria a desbordar de princípio constitucional referente à cooptação de que seus próprios integrantes. Ao insistir na causa de pedir referente ao art. 94 da Lei Fundamental, só podem, de outra parte, os Agravantes estar propondo que o provimento “da execução de lei federal” previsto no item VI, do art. 34 da mesma Carta (fundamento explícito da inicial), como razão de intervenção federal, deva abranger, não apenas o cumprimento da lei ordinária federal, como o da própria Constituição, nos princípios por ela especificamente estabelecidos, como obrigatórios para os Estados, afora os sensíveis, expressamente enumerados no inciso VII do citado art. 34. Dentro desse entendimento, todavia, a conseqüência a extrair, tanto no item III como do item IV do art. 36, também da Constituição (que ditam os pressupostos do processamento da intervenção), só poderia ser a exigência da iniciativa exclusiva do Procurador-Geral da República, para promover a medida perante o Supremo Tribunal. N que, a despeito do reconhecido prestígio da entidade, parte ilegítima viria a ser, para ajuizar tal espécie de pedido de intervenção. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 338 Ao invés do que receiam os Agravantes, o enquadramento do feito, como reclamação, longe de restringir, efetivamente amplia o âmbito do exame da sua pretensão. Persisto, assim, no entendimento que moveu o despacho agravado, continuando sem vislumbrar como, para dispor sobre a regularidade da composição de Tribunal subordinado, o Supremo Tribunal clamar, pela edição de um decreto do Chefe do Poder Executivo (Constituição, art. 36, § 3º). Mormente quando a Corte estadual (que não a considerou plenamente conclusiva a decisão proferida na ADIN nº 29) manifesta, nas informações de que fiz preceder o despacho agravado (fls. 131 e fls. 133), o claro e solene propósito de cumprir a determinação que viera a expedir este Plenário, acerca do objeto da pretensão apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil. Nego provimento ao Agravo. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 339 18- INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 114/MT Data da Decisão: 13/03/1991. Relator: Min. Néri da Silveira. Tipo de Ação: Intervenção Federal (Representação Interventiva). Modalidade de Jurisdição: Originária. Pólo Ativo: Procurador Geral da República. Pólo Passivo: Estado do Mato Grosso. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: - Intervenção Federal. 2. Representação do Procurador-Geral da República pleiteando intervenção federal no Estado de Mato Grosso, para assegurar a observância dos "direitos da pessoa humana", em face de fato criminoso praticado com extrema crueldade a indicar a inexistência de "condição mínima", no Estado, "para assegurar o respeito ao primordial direito da pessoa humana que é o direito à vida". Fato ocorrido em Matupá, localidade distante cerca de 7oo km de Cuiabá. 3. Constituição, arts. 34, VII, letra "b", e 36, III. 4. Representação que merece conhecida, por seu fundamento: alegação de inobservância pelo Estado-membro do princípio constitucional sensível previsto no art. 34, VII, alínea "b", da Constituição de 1988, quanto aos "direitos da pessoa humana". Legitimidade ativa do Procurador-Geral da República (Constituição, art. 36, III). 5. Hipótese em que estão em causa "direitos da pessoa humana", em sua 'compreensão mais ampla, revelando-se impotentes as autoridades policiais locais para manter a segurança de três presos que acabaram subtraídos de sua proteção, por populares revoltados pelo crime que lhes era imputado, sendo mortos com requintes de crueldade. 6. Intervenção Federal e restrição à autonomia do Estado-membro. Princípio federativo. Excepcionalidade da medida interventiva. 7. No caso concreto, Estado de Mato Grosso, segundo as informações, está procedendo à apuração do crime. Instaurou-se, de imediato, inquérito policial, cujos autos foram encaminhados à autoridade judiciária estadual competente que os devolveu, a pedido do Delegado de Polícia, para prosseguimento das diligências e averiguações. 8. Embora a extrema gravidade dos fatos e o repúdio que sempre merecem atos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 340 de violência e crueldade, não se trata, porém, de situação concreta que, por si só, possa configurar causa bastante a decretar-se intervenção federal, no Estado, tendo em conta, também, as providências adotadas pelas autoridades locais para a apuração do ilícito. 9. Hipótese em que não é, por igual, de determinar-se intervenha a Polícia Federal, na apuração dos fatos, em substituição à Polícia Civil de Mato Grosso. Autonomia do Estado-membro na organização dos serviços de justiça e segurança, de sua competência (Constituição, arts. 25, § 1°; 125 e 144, § 4°). 1o. Representação conhecida mas julgada improcedente. RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO NERI DA SILVEIRA (RELATOR): - O Dr. ProcuradorGeral da República representou nestes termos (fls. 2/4): "O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA, com fundamento artigo 34, VII, b, combinado, com o artigo 36, III, ambos Constituição Federal, vem perante esse colendo Supremo Tribunal Federal oferecer representação para efeito de decretação de intervenção federal no Estado do Mato Grosso, pelas razões seguir expostas. 1. É fato público e notório que em novembro de 199o, município matogrossense de Matupá, policiais civis e militares conseguiram fazer com que três ladrões depusessem revólveres e saíssem de uma residência onde mantinham crianças e adultos como reféns, que, todavia, foram libertados pelos ladrões durante as conversações entre estes e o Capitão Polícia Militar que comandava a operação. Ao saírem da residência, foram os presos colocados em automóvel acompanhados por policiais, que, até aí, os protegiam contra dezenas de pessoas cujo desejo de linchá-los explícito. Mas, em seguida, aparecem os três presos em outro local, fora do veículo, acompanhados de policiais, já apresentando lesões corporais e sendo um deles chutado por um miliciano. Mais adiante, os três presos já aparecem, semivivos, jogados, juntos, no chão, tendo pela frente dezenas de pessoas que gritavam, desejando a morte dos três. Em seguida, e atirada gasolina sobre os inertes homens e é ateado fogo em seus corpos. Foram cenas recentemente exibidas pela televisão revelam, apenas, parte da barbárie, que inclui interrogatório feito por um homem ao último dos ladrões, ainda vivo, conforme transcrição constante da reportagem da revista "Veja", em Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 341 anexo, cuja fidelidade é facilmente constatada pelas imagens e sons da fita videocassete que também instrui esta representação, fruto de solicitação do representante ao Sistema Brasileiro de Televisão. Deixa-se de requerer a degravação da fita, por não se poder traduzir com palavras o teor de imagens tão chocantes. 2. E são imagens que retratam a ausência de elementar respeito à vida humana, a par de convencer da inexistência de condição mínima, no Estado do Mato Grosso, de se ter assegurado o respeito ao primordial direito da pessoa humana, que é o direito à vida. 3. As informações prestadas pelo Excelentíssimo Senhor Secretário de Justiça do Estado, em resposta à solicitação do representante feita ao Excelentíssimo Senhor Governador do Estado, dão conta de que, passados três meses, as investigações policiais se arrastam, embora as imagens exibidas a todo o Brasil estejam a demonstrar que a autoria dos homicídios qualificados é de fácil descoberta. 4. A revelar, ainda, a falta de qualquer condição, por parte do Estado do Mato Grosso, de assegurar a vida e outros direitos da pessoa humana estão os demais documentos anexos, consistentes em noticiário jornalístico e, principalmente, as comunicações, por telex, dirigidas ao representante pelo Chefe do Ministério Público, em exercício, daquela unidade da federação. 5. Se há um grave e efetivo comprometimento da ordem pública, estampado nas informações oriundas do Ministério Público mato-grossense, e induvidoso que, nas circunstâncias político-administrativas presentes ali, hoje, a intervenção se torna indispensável, ao menos para assegurar os direitos da pessoa humana. 6. Pelo exposto e pela eloqüência das imagens gravadas na fita em anexo, o Procurador-Geral da República espera seja dado provimento a esta representação." S. Exa. instruiu o pedido com telex, que lhe foi endereçado pelo ProcuradorGeral da Justiça em exercício Antonio Hans, nestes termos (fls. 5): "O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO MATO GROSSO POR SEU PROCURADOR-GERAL SENTE-SE DEVER LEGAL LEVAR CONHECIMENTO VOSSENCIA GRAVÍSSIMA SITUAÇÃO VIVIDA PELO ESTADO EM FACE PARALISAÇÃO TOTAL DO PODER JUDICIÁRIO DAS POLÍCIAS CIVIL ET MILITAR ET TODAS AS DELEGACIAS DE POLÍCIA VG TRAZENDO DESASSOSSEGO VG INSEGURANÇA ET INTRANQUILIDADE GENERALIZADA TODO POVO AGRAVADA PROXIMIDADE FESTEJOS CARNAVALESCOS PT SITUAÇÃO CRITICA VIVIDA EH ORIUNDA FALENCIA Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 342 TOTAL ESTADO ONDE FUNCIONALISMO NÃO RECEBE SALÁRIOS HÁ TRÊS MESES OCASIONANDO FECHAMENTOS REPARTIÇÕES ET PARALISAÇÕES MÁQUINAS VG VEÍCULOS ET SERVIÇOS PÚBLICOS PT QUADRO EXPERIMENTADO MOMENTO EH DE GRAVE COMPROMETIMENTO DA ORDEM PÚBLICA ET VIOLAÇÃO DIREITO PESSOA HUMANA NÃO ENCONTRA ANTECEDENTE TODA HISTÓRIA PÁTRIA SENDO QUE O PRÓPRIO SECRETÁRIO JUSTIÇA ET SEGURANÇA PÚBLICA ESTADUAL RECOMENDOU POPULAÇÃO PARA PT GRAVE SITUAÇÃO AFRONTA DIGNIDADE PESSOA HUMANA ET REQUER IMEDIATA INTERFERÊNCIA PODER CENTRAL DETERMINANDO PARA QUE TROPAS FEDERAIS GARANTAM A PAZ NO ESTADO PT A GRAVIDADE DO QUADRO AUTORIZA PLENAMENTE ADOÇÃO DAS MEDIDAS PRECONIZADAS NO ARTIGO 34 INCISOS 3 ALÍNEA B PRINCIPALMENTE VIRTUDE GOVERNADOR EXERCÍCIO ENCONTRA-SE ACIDENTADO ET HOSPITALIZADO HOSPITAL DAS CLÍNICAS SÃO PAULO ET ESTADO NÃO DISPOR CARGO VICE-GOVERNADOR PT". Solicitadas informações ao Governo do Estado de Mato Grosso, foram prestadas a esta Corte por dois Secretários: Secretário-Chefe da Casa Civil do Governo do Estado e outras complementares pelo Secretário de Estado da Justiça. Está no telex de fls. 24: "TENDO TOMADO CONHECIMENTO DE PEDIDO DE INTERVENÇÃO FEDERAL EM NOSSO ESTADO, TOMAMOS A LIBERDADE DE INFORMAR O QUE SE SEGUE: 1 - AS POLÍCIAS CIVIL E MILITAR RETOMARAM ESTA MANHà O EXERCÍCIO NORMAL DE SUAS FUNÇÕES. DELEGACIAS E DEMAIS UNIDADES DE SEGURANÇA DO ESTADO ENCONTRAM-SE EM PLENO FUNCIONAMENTO. 2 - O PODER JUDICIÁRIO RECEBEU ONTEM (07/2/91) O REPASSE RELATIVO AO MÊS DE DEZEMBRO, CONFORME ACORDO ASSINADO ANTERIORMENTE COM A ASSOCIAÇÃO MATOGROSSENSE DOS MAGISTRADOS. O REPASSE RELATIVO AO 13° SALÁRIO SERÁ FEITO NO DIA 14/o2/91, QUANDO AQUELE PODER RETOMARÁ ÀS ATIVIDADES NORMAlS. 3 – QUANTO AO LAMENTÁVEL INCIDENTE REGISTRADO EM NOVEMBRO EM MATUPÃ, TODAS AS PROVIDÊNCIAS FORAM ADOTADAS PELA POLÍCIA JUDICIÁRIA. O INQUÉRITO POLÍCIAL FOI REALIZADO E REMETIDO AO FORUM NO PRAZO LEGAL. SE COMPROVADA A Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 343 PARTICIPAÇÃO DE POLÍCIAIS POR AÇÃO OU OMISSÃO, OS CULPADOS SERÃO PUNIDOS NA FORMA DA LEI. DIANTE DA REALIDADE SUPRACITADA, CONSIDERAMOS INEXISTIREM RAZÕES OU CONDIÇÕES QUE JUSTIFICASSEM INTERVENÇÃO. O ESTADO DE MATO GROSSO VIVE, A EXEMPLO DA MAIORIA DOS ESTADOS, AGUDA CRISE FINANCElRA QUE DIFICULTA EXTREMAMENTE O CUMPRlMENTO DOS PRAZOS RELATIVOS À REMUNERAÇÃO DO FUNCIONALISMO. A SOLUÇÃO, ENTRETANTO, INDEPENDE DA VONTADE OU DA AÇÃO EXCLUSIVA DO EXECUTlVO ESTADUAL JÁH QUE INTEGRAMO-NOS NO CONTEXTO DE UMA CRISE DA ECONOMIA NACIONAL. CORDIAIS SAUDAÇÕES - SANTO SCARAVELLI SECRETARIO CHEFE DA CASA CIVIL GOVERNO DO ESTADO DE MATO GROSSO" O Secretario da Justiça do mesmo Estado informou o seguinte (fls. 27): "INFORMO A VOSSA EXCELÊNCIA QUE QUANTO AO DESUMO E DEPLORÁVEL FATO OCORRIDO NO DIA 21/11/9o, NA CIDADE DE MATUPÁ REGIÃO NORTE DESTE ESTADO, DISTANTE DESTA CAPITAL CERCA DE 700 KM, OCASIÃO EM QUE o3 ELEMENTOS FORAM SUMARIAMENTE EXECUTADOS PELA ENFUREClDA POPULAÇÃO LOCAL APÓS TEREM PERMANECIDO 16:00 HS, NO INTERIOR DE UMA RESlDÊNCIA, MANTENDO COMO REFÉNS MULHERES E CRIANÇAS EXIGINDO QUANTlA EM DINHEIRO E CONDUÇÃO PARA A FUGA EM DECORRÊNCIA DE FRUSTRADO ASSALTO. AS PROVIDÊNCIAS DE COMPETÊNCIA DA POLÍCIA JUDICIÁRIA FORAM TOMADAS COM A IMEDIATA INSTAURAÇÃO DO I.P. E REMESSA AO PODER JUDICIÁRIO, NO PRAZO LEGAL, COM PEDIDO DE BAlXA PARA PROSSEGUIMENTO DAS INVESTIGAÇÕES VISANDO IDENTIFICAR MAIS ENVOLVIDOS. ESCLARECEMOS A VOSSA EXCELÊNCIA QUE A POPULAÇÃO DO NORTE DO ESTADO É FLUTUANTE VEZ QUE A PRINCIPAL ATIVIDADE DA REGIÃO É A EXPLORAÇÃO DO GARIMPO DE OURO, SENDO O GARIMPEIRO, NA SUA MAIORIA, CONHECIDO APENAS POR APELIDO, NÃO POSSUI RESIDÊNCIA FlXA, NÃO PORTA DOCUMENTOS, O QUE DE CERTA FORMA DIFICULTA O TRABALHO POLÍCIAL. QUANTO A SUSPEITA Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 344 DA PARTICIPAÇÃO DA POLÍCIA NO EVENTO, SEJÁ POR AÇÃO OU OMISSÃO, SE COMPROVADA, OS CULPADOS SERÃO PUNIDOS NA FORMA DA LEI. INFORMO MAIS A VOSSA EXCELÊNCIA QUE A FITA CASSETE EXIBIDA A NÍVEL NACIONAL PELOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO FOI APREENDIDA E JUNTADA AOS AUTOS." Veio também, a pedido do Dr. Procurador-Geral da República, aos autos, o relatório do inquérito policial onde se lê (fls. 31/36): "No dia 22 de novembro, próximo passado, por volta das 20:00 horas aproximadamente, alguns elementos invadiram a residência do Sr. Carlos Mazonetto, nesta cidade, com o intuito de praticarem um furto. Ao serem descobertos quando ainda se encontravam no interior da casa, esses elementos tomaram as Sras. ELENI ANTONINHA PIOVESAN MAZONETTO e ROSlMAR ANESI, esposa e sobrinha de CARLOS MAZONETTO e ainda cinco (5) crianças pequenas como reféns e, trancando-se na casa, passaram a exigir a soma de cinco milhões em dinheiro, um carro, várias armas com farta munição, bem como a garantia da não interferência da Polícia no decorrer da fuga. Tomando conhecimento destes acontecimentos, fomos o mais depressa possível para o local e, ao chegarmos, encontramos este já cercado por um Soldado PM, desta cidade e três agentes e um Escrivão desta Delegacia de Polícia, além de cerca de 3oo a 5oo pessoas fortemente armadas com todas as armas imagináveis e possíveis. Eram mais ou menos 20:30 horas quando passamos a negociar diretamente com os assaltantes, que erroneamente pensávamos fossem em número de dois. Também providenciamos a vinda do esposo e pai dos reféns que se encontrava num garimpo próximo a esta cidade. Com a chegada deste começamos a providenciar o dinheiro e tentar cumprir as outras exigências feitas pelos assaltantes. As negociações arrastaram-se por toda a noite sem uma solução para o caso. Por volta das 03:00 horas da madrugada, os familiares e amigos dos reféns que estavam empenhados em arranjarem a quantia exigida, constataram que nem no Banco local nem nos bancos das vizinhas cidades de Peixoto de Azevedo e Guarantã do Norte existia a quantia exigida pelos assaltantes. Só depois de grande esforço junto aos bancos mencionados e alguns comerciantes locais, é que conseguiram a importância de quinhentos mil cruzeiros e um quilo de ouro. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 345 De posse dessa quantia, levamos a proposta aos criminosos, explicando-lhes a impossibilidade de arrecardar-se o total de cinco milhões. Já eram quase quatro (04:00) horas da manhã quando oferecemos os quinhentos mil cruzeiros, o quilo de ouro, as armas por eles exigidas e ainda um automóvel Del Rey em excelente estado de conservação (semi-novo), totalmente abastecido e que foi colocado em frente à casa e ainda a garantia da Polícia não perseguí-Ios com a única condição deles libertarem a mulher gestante e as cinco crianças pequenas, levando a outra mulher com eles. Essa proposta foi terminantemente recusada pelos assaltantes, que se mantinham irredutíveis, só aceitando os cinco milhões de cruzeiros. Diante desse impasse o dia amanheceu e a situação se tornava, a cada minuto que passava, insustentável, com a multidão armada aumentando a todo instante, bem como o ódio do povo pelos assaltantes. Por volta das 09:00 horas "do dia seguinte, 23.11.90, chegou a esta cidade e no palco dos acontecimentos o Capitão PM/EDYR, comandante da 5° Cia. Independente de Polícia Militar de Alta Floresta. Com a presença desse Oficial que veio de Alta Floresta de avião, trazendo em sua companhia alguns policiais e, diante do impasse criado pelos assaltantes, conjuntamente optamos pela invasão da residência. Decidido isto, o Capitão EDYR comandou a operação com êxito, conseguindo libertar os reféns sem que ninguém saísse ferido. Terminada a operação, dirigimo-nos para esta Delegacia de Polícia, enquanto os presos, por medida de segurança, eram conduzidos no veículo Opala do Sr. Prefeito, que durante algum tempo permaneceu em poder dos assaltantes como refém, para o aeroporto local, onde uma aeronave estava à espera dos mesmos para que fossem levados para outra cidade, pois o cubículo que serve como cela e também o prédio desta Delegacia (uma casa residencial comum) não oferecia a menor condição de segurança diante de uma multidão incalculável e enfurecida, que já manifestara o desejo de linchar os presos a saída da residência das vítimas. O Prefeito da cidade, ADARIO MARTINS DE ALMEIDA, em seu depoimento, esclarece que à revelia dos presentes e sem o conhecimento da Polícia, sorrateiramente, acionou um mecanismo secreto, existente em seu veiculo, fazendo com que dessa maneira o combustível do carro fosse interrompido e conseqüentemente isto impedisse o seu funcionamento, o que realmente aconteceu a algumas quadras de distância da casa, obrigando assim aos policiais da escolta a perderem um tempo precioso na transferência dos presos para outro veículo que naquele momento ia casualmente passando por aquele lugar. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 346 De acordo com as declarações do proprietário do segundo veículo, se os policiais não tivessem agilizado a transferência dos presos e se afastado rapidamente dali, o linchamento teria ocorrido naquele local, devido à rapidez com que dezenas de carros e centenas de pessoas se aproximavam correndo no intuito de alcançar os presos e sua escolta. Os quatro policiais da escolta afirmam que ao aeroporto encontraram este tomado pela população enfurecida, que cercando completamente a aeronave e ocupando a pista de pouso, impediam que o avião decolasse. Diante dessa impossibilidade, o comandante da escolta, Sargento LUCIO, determinou que os presos fossem recolocados no carro e abrindo passagem com a viatura policial tentaram alcançar a cidade de Peixoto de Azevedo e posteriormente Colider, destino final da viagem. No entanto, os policiais e o motorista do carro que levava os presos, "ROBERTÃO", afirmam que os dois carros ao atingirem a BR/163 foram separados por um veículo que se atravessou na rodovia, impedindo assim que o automóvel em que iam os presos prosseguisse viagem, ao mesmo tempo em que a viatura policial também ficava impossibilitada de retornar e defender os presos da fúria homicida da população. O motorista "ROBERTÃO" e o Soldado VALTER que iam no carro junto com os presos, afirmam que ao serem separados da escolta, viram-se de repente cercados pela multidão, que tentava de todas as maneiras capotar o carro. Em seus relatos, "ROBERTÃO" e o Soldado VALTER, confessam que ao se verem sem a proteção da escolta e cercados pela multidão, os presos começaram a gritar, pedindo-lhes que os livrassem das algemas para que eles pudessem correr. "ROBERTÃO" e VALTER afirmam que ao sentirem na iminência de serem linchados juntamente com os presos e sabendo que nada mais poderiam fazer para defendê-Ios, resolveram tirar as algemas dos presos e, feito isso, saltaram do carro e saíram correndo para escaparem da multidão. Afirmam ainda "ROBERTÃO" e VALTER, que ao saírem correndo viram que os presos também saiam correndo pelo outro lado. O Soldado VALTER fala em sua declaração quando saiu correndo ainda ouviu disparos de arma de fogo. Já o Sargento LUCIO e os três soldados que iam na viatura são unânimes em afirmarem em suas declarações que ao saírem do aeroporto, entraram na BR/163 e tomaram a direção de Peixoto de Azevedo, mas, esta rodovia, àquela altura, se encontrava bastante congestionada de carros e populares. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 347 Esclarece ainda o Sargento LUCIO, que, em dado momento, estando concentrado em abrir caminho no meio dos carros, notou que o VOYAGE com os presos não mais os acompanhava e que ao tentar voltar para procurar o carro, viu-se impedido por veículos e pessoas que interditavam a estrada, tanto na direção de Matupá, quando no sentido de Peixoto de Azevedo. São unânimes os policiais da escolta quando afirmam terem ficado ilhados pela multidão sem nada poderem fazer para saírem em socorro do veículo que trazia os presos. Quanto ao número de policiais que participaram da operação de libertação dos reféns e prisão dos assaltantes, foram dezessete (17) militares e quatro (o4) policiais civis desta Delegacia de Polícia, mais três (o3) de Cuiabá que se encontravam em trânsito por esta cidade, só que após a rendição dos assaltantes somente quatro policiais militares escoltaram os presos até o aeroporto na única viatura policial que era da cidade de Colider e que se concentrava nesta cidade (esta Delegacia não possui viatura), ficando o restante dos policiais em frente a residência das vítimas, tentando segurar a população enfurecida, conforme se vê nas cenas gravadas em fita de Vídeo Cassete, apreendidas e juntadas a estes autos. Outro motivo da permanência do restante dos policiais no local do seqüestro, deveu-se ao fato de meios de locomoção de vez que, como já afirmamos antes, não existia outra viatura além da de Colider e que saiu escoltando os presos. Com a ida dos presos para o aeroporto, os policiais civis das outras Delegacias dispersaram-se regressando às suas cidades. Quanto a nós, voltamos para esta Delegacia onde permanecemos. Vale salientar que esta Delegacia fica em frente ao aeroporto local, motivo pelo qual assistimos a passagem do Voyage com os presos, escoltados pela viatura policial, quando se dirigiam para o avião. Vimos também quando a pista foi interditada pela multidão que cercou a aeronave, impedindo deste modo que ela decolasse. Assistimos ainda quando a viatura e o Voyage saíram de perto do avião, rumando para a saída do aeroporto. Diante desses fatos, ficamos na expectativa, sem sabermos se os presos seriam trazidos para cá ou seriam levados para Peixoto de Azevedo ou Colider, haja visto que, embora o aeroporto fique quase em frente a esta Delegacia, sua saída dista cerca de quatrocentos (4oo) metros a setecentos (7oo) metros, à nossa esquerda, sendo que naquele momento dezenas e dezenas de carros e centenas de pessoas circulavam entre esta Delegacia de Polícia e a referida Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 348 saída do aeroporto. Em virtude disto não mais conseguimos ver os veículos com os policiais e os presos. Em virtude do pequeno numero de policiais existentes e presentes nesta Delegacia (04), bem como da inexistência de qualquer viatura, determinamos que os policiais tomassem posição para uma eventual defesa da Delegacia, caso os presos aqui chegassem, pois era quase certo que a população atacaria se os presos ficassem aqui. O tempo foi passando e policiais não chegavam aqui, quando então, concluímos que o destino dos presos e policiais teria sido Peixoto de Azevedo. No entanto, a população ou grande parte desta continuava circulando ao redor desta Delegacia de Polícia, causando imenso barulho e levantando muita poeira em suas idas e vindas. De repente, vimos uma espiral de fumaça elevar-se nas proximidades da BR/163 a uma distância de seiscentos (600) metros. A princípio, pensamos que a população frustrada por não ter alcançado seu objetivo de por a mão nos presos, havia posto fogo em alguma coisa ou veículo, já que não ouvimos em momento alguns disparos de arma de fogo. Em virtude de constantemente continuarem chegando veículos e pessoas nas imediações desta Delegacia de Polícia, optamos por permanecermos nas dependências da Delegacia, dando proteção ao preso de Justiça que estava trancafiado na nossa cela até termos certeza do que realmente estava acontecendo. A esta altura dos acontecimentos, chega aqui o cidadão MARCO ANTONIO YAMANAKA, vulgo "CHINA", nos comunicando que a população havia tomado os presos das mãos da Polícia e estes estavam sendo queimados vivos, acrescentando, ainda, que tentara prestar socorro a uma das vítimas, mas tinha sido impedido pelas pessoas que estavam ao redor dos corpos e que tentaram, inclusive, lhe agredir. Diante dessa notícia, determinamos que nosso Escrivão e dois agentes, sendo um deles do sexo feminino, fossem até o local da chacina para tentarem fazer alguma coisa pelo sobrevivente ou sobreviventes. Com muita dificuldade os três por entre a multidão até onde se encontravam os corpos das vítimas. Quando ali chegaram, porém, já era tarde para salvar qualquer das vítimas, tendo, então, aqueles policiais providenciado a presença do médico legista, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 349 bem como o levantamento fotográfico e a remoção dos cadáveres para o cemitério. Os dois policiais restantes permaneceram em nossa companhia para garantirmos a integridade física do preso que estava recolhido em nossas celas. Diante do exposto, determinamos a imediata instauração do competente Inquérito Policial para apurar responsabilidade e individualizar autoria. Durante todo este mês foram ouvidas cerca de quarenta pessoas que direta ou indiretamente participaram dos acontecimentos acima narrados. Fizemos apreensão de duas (02) fitas de Vídeo Cassete e através destas conseguimos identificar e localizar a maior parte dos que foram ouvidos nestes autos. Até o presente momento, só conseguimos indiciar a pessoa que jogou gasolina sobre os corpos. Em virtude de essa pessoa se encontrar foragida, foi feita sua Qualificação Indireta. O trabalho da Polícia tornou-se mais difícil ainda neste caso em virtude do manto de silêncio que cobriu a cidade, com seus habitantes, guardando sigilosamente o segredo da identidade daqueles que praticaram tão bárbaro crime. Conseguimos também descobrir através das declarações dos senhores ADAO CHAGAS MENEZES e NACOR ALVES CATARINO, que as vítimas eram assaltantes contumazes, embora isso não justifique o trágico fim das mesmas. Apesar das dificuldades, acreditamos firmemente que iremos conseguir êxito nas investigações para descobrir os culpados pelas mortes dos assaltantes, pois nosso trabalho esta apenas começando, motivo pelo qual requeiro de V.Exa. a baixa destes autos a esta Delegacia, para o prosseguimento das investigações, no sentido de localizar e identificar os autores e participantes da chacina das vítimas, responsabilizando-os criminalmente pelo delito." (sic) Dr. Procurador-Geral pediu, ainda, a juntada de um telex que, precisamente, tem o mesmo teor das informações que foram prestadas pelo Chefe da Casa Civil à Presidência e que tive oportunidade de ler. Por último, o Dr. Procurador-Geral da República pediu a juntada do relatório que Ihe foi encaminhado pelo Sr. Ministro da Justiça, como nota reservada a respeito das ocorrências de Matupá, e, também, com recortes, o que deferi. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 350 Este é o relatório do chamado "caso Matupá". VOTO O SENHOR MINISTRO NERI DA SILVEIRA (PRESIDENTE E RELATOR) Srs. Ministros. Esta matéria, ao que parece, é inédita na Corte: pedido de intervenção federal em um Estado, em razão de ato de extrema violência acontecido em Município do interior da Unidade da Federação. Os fatos narrados na inicial, como objeto representação, são de indiscutível gravidade, considerados os aspectos de perversidade e violência que os envolvem. Dessa violência e atos criminosos resultou a morte de três pessoas. As peças que Ii ao Tribunal relatam ora a presença autoridade policial matogrossense, ora a sua ausência, nos termos pelas razões aludidas no relatório policial encaminhado ao Juízo Direito. Há, de outra parte, inquérito policial em curso e providências judiciais já determinadas, sendo certo, inclusive, que se deferiu a devolução do inquérito policial para o prosseguimento das averiguações em torno dos responsáveis. Não há dúvida alguma, a meu ver, de que os direitos da pessoa humana, considerados na sua compreensão mais ampla, estão em causa, diante da insegurança que os acontecimentos revelam na espécie: insegurança pela falta de proteção dos presos e, também, para as próprias instalações da Polícia Civil, no local onde se encontrava recolhido outro indiciado em crime diverso. As próprias autoridades policiais manifestaram o temor, segundo se depreende relatório, que a multidão enfurecida lhes causava. Dá-se, porém, que não entendo possível, no caso concreto e em face da Constituição, ter como configurada causa que viabilize a decretação de intervenção federal no Estado, ou o reconhecimento de uma situação que justifique a requisição de intervenção federal por parte desta Corte Suprema. Os fatos, como referi, são de inequívoca gravidade: direitos da pessoa humana, na sua visão ampla, foram atingidos, não só porque mortos três membros da comunidade, ou três pessoas que deveriam merecer a proteção das autoridades policiais, mas, também, pela falta de segurança aos direitos à vida, à liberdade e mesmo à propriedade de quantos pretendessem se opor à prática do ilícito que então se perpetrava. Tudo isso é insuscetível de qualquer controvérsia. Dispondo sobre a intervenção federal, a Constituição, no art. 34, inciso VII, alínea “b” estipula como uma de suas causas: "VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 351 b) direitos da pessoa humana." Ao lado desses, outros princípios sensíveis da Constituição são enumerados: "a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública direta e indireta." Certo a Carta de 1988 inovou, com a inserção dessa causa nova inscrita como princípio sensível da Constituição. Não me parece possível; desde logo, entretanto, na espécie, ter-se como verificada essa causa para os efeitos da restrição à autonomia do Estado-membro. Penso que um só episódio como esse não seja suficiente para a União intervir em um Estado-membro, tendo em vista que um dos postulados fundamentais do Estado brasileiro é o regime federativo, que há um século preside a organização política do País. Louvo, é exato, o esforço para reprimir a violência, por parte do Ministério Publico Federal, tendo à frente seu ilustre Chefe, o Dr. Procurador-Geral da República. Todos sabemos, de outra parte, que os Estados-membros, em virtude de sua autonomia, organizam seus serviços e, em particular, os serviços de segurança e de justiça. É da historia de nosso país a existência de diversidade muito significativa entre a prestação dos serviços públicos essenciais, incluídos os de segurança e de justiça, de Estado para Estado da Federação. Há Estados em que, por falta de recursos, a estrutura judiciária é reduzida. O mesmo ocorre quanto às forças policiais. Nesse sentido, recente levantamento feito pelo Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário demonstrou que, se a média nacional é de um cargo de juiz de direito para cada 23.500 habitantes, existem Estados da Federação onde o quadro de magistrados é composto em proporção de apenas um cargo para 42.000 habitantes, relação esta que cresce na sua expressão, à medida que muitos cargos não estão providos. As condições de prestação dos serviços de segurança são também diversificadas, variáveis; ora em virtude das condições topográficas, de comunicação e das condições decorrentes da densidade demográfica; ora, ainda, por condições climáticas, que, em determinadas fases, certos períodos do ano, impossibilitam, praticamente, a atuação da polícia organizada, ou porque os meios de comunicação ficam interditados, ou porque são essas precárias forças de segurança removidas para locais onde mais prestantes possam estar nesses períodos de dificuldades climáticas. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 352 Essa a realidade do país. Crimes com expressões de perversidade – como o ora narrado na Representação do eminente Procurador-Geral da República têm, lamentavelmente, sucedido, não só em Estados de difíceis condições de comunicação, tal como o Estado de Mato Grosso – este local Matupá, segundo as informações, está a 700 Km de distancia de Cuiabá, - mas também em nossas grandes metrópoles, nos meios urbanos mais densos e em condições privilegiadas dentro da realidade nacional. Crimes tão hediondos, como esses, têm sucedido, segundo os noticiários da imprensa. Certo está que todos eles merecem o repúdio da Nação e desta Corte. O Supremo Tribunal Federal, à evidência, não pode ser complacente diante da violência e do crime. E a sua jurisprudência, no que concerne à matéria criminal, é bem indicativa de sua compreensão, quanto ao papel que lhe cabe, também, na repressão à violência e ao crime. Sucede, porém, que esta Corte – a quem a Constituição confere a sua competência maior de garantir o equilíbrio da Federação, de atuar como um autêntico poder moderador nas relações entre a União e os Estados-membros, ou nos conflitos que ocorram entre essas Unidades da Federação ou seus Poderes, - por mais sensibilizada fique com acontecimentos de tão profundo teor humano, os quais merecem a mais veemente reprovação, não só dos membros do Tribunal, mas de toda a sociedade, não pode deixar de ter presente o bem maior do equilíbrio federativo. Dai o caráter excepcional da intervenção federal. No caso concreto, o Estado de Mato Grosso, segundo as informações, está procedendo a apuração do crime. Instaurou-se inquérito policial. No prazo de trinta dias os autos foram encaminhados à autoridade judiciária, que os devolveu, a pedido da autoridade policial, para que prosseguissem as averiguações. De outra parte, há expressa manifestação das autoridades judiciárias, com igual preocupação das autoridades do Poder Executivo, no sentido de se apurarem as responsabilidades. Penso que o assunto que é da estrita competência do Poder Judiciário estadual, com a colaboração da Polícia Judiciária, - não comporta tratamento diferente, à vista do estado em que se encontram a apuração dos eventos e a atuação das autoridades policiais. Dir-se-á que seria possível, no caso concreto, deferir o pedido, para que se autorizasse a requisição da autoridade policial federal, em ordem a esta agir no local, limitadamente, em termos geográficos, tão-só na região onde o crime aconteceu, e, em lugar da autoridade policial estadual, apurar as responsabilidades, com o que se assegurariam, de um lado, os direitos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 353 humanos, e se traria tranqüilidade para a sociedade que vive em estado de sobressalto, segundo se informa nos autos. Também essa medida não tenho como aconselhável, nas circunstâncias do caso concreto. A atuação da Polícia Federal é demarcada no Texto Constitucional: integra o rol daqueles órgãos que devem promover a Segurança Pública. O art. 144 da Constituição estipula: "A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. § 1. A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se a: I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras; IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária e da União. § 2. A polícia rodoviária federal, órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais. § 3. A polícia ferroviária federal, órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 354 § 4. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. § 5. Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. § 6. As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. § 7. A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública de maneira a garantir a eficiência de suas atividades. § 8. Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei." Parece fora de dúvida, em hipótese como a dos autos, que os fatos criminosos, assim como referidos tanto na representação quanta nas peças do inquérito devem ser apurados pelos órgãos policiais estaduais. A determinação de a Polícia Federal intervir, para apurar esse acontecimento ilícito, hediondo, horrendo mesmo, implicaria, sem dúvida, intervenção da União no Estado de Mato Grosso. Com essas considerações, não vejo, para o caso concreto, seja cabível atender-se a louvável preocupação do eminente Procurador-Geral da República, no sentido de julgar-se procedente a representação ou requisitar-se intervenção federal restrita, o que é matéria que demandaria, sem dúvida, uma altíssima indagação quanto a sua possibilidade. Não tenho como admissível, na espécie, o Supremo Tribunal Federal requisite ao Poder Executivo federal a Polícia Federal para agir na apuração desses fatos. O equilíbrio federativo deve ser posto em primeiro plano, no exame de pedidos de intervenção federal. Este Tribunal não fica, assim, indiferente a realidade da violência, mas entende, também, que lhe incumbe o dever de determinar o procedimento repressivo, tão só, dentro dos limites que a Constituição e a lei autorizam. Fora dos limites de competência que a Constituição estabelece aos Poderes dos Estados e as Unidades da Federação, há o risco de os fatos comandarem as leis e isso não serve nem à integridade nacional e, menos ainda, à pureza da ordem jurídica. Com essas considerações, meu voto é no sentido, no caso concreto, de julgar improcedente a representação. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 355 VOTO O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Senhor Presidente, em primeiro lugar, estimo registrar a compreensão pela iniciativa do Ministério Público em relação a esse episódio. Isto face aos deveres a ele atribuídos e, também, ao risco pertinente à pecha de negligente. A intervenção, em si, é uma medida extrema, e conforme salientou, com proficiência, V. Exa. em seu voto, não se tem no episódio até aqui isolado naquele Estado, hipótese que atraia a pertinência do disposto no artigo 34, inciso VII, alínea b, da Constituição Federal, mesmo porque, conforme deu conhecimento V. Exa. à Corte, as autoridades locais diligenciaram objetivando apurar as responsabilidades pelo linchamento. Não se cuida, na hipótese em si, de tomada de providências indispensáveis, necessárias a assegurar a observância desse princípio básico constitucional, porque ligado à dignidade do homem, que é o respeito aos direitos da pessoa humana. Por isso, acompanho V. Exa., endossando, na integralidade, o voto que proferiu. VOTO O Sr. MINISTRO CARLOS VELLOSO: - Senhor Presidente, examino, primeiro que tudo, o cabimento da representação, ou seu conhecimento, por isso que o pedido é inédito – intervenção federal para o fim de assegurar a observância de direitos da pessoa humana, CF, art. 34, VII, "b" – certo que a Constituição 1.967 e a de 1.946 não o autorizavam. É que a Constituição de 1.988 considera os direitos da pessoa humana como princípio constitucional sensível. Examinemos, então, o cabimento do pedido. Conforme falamos, a Constituição de 1.988 estabelece que os direitos da pessoa humana constituem princípio constitucional sensível, assim capaz de autorizar, a sua não observância parte do Estado-membro, a medida patológica da intervenção federal. Com efeito. Expresso está, no art. 34, VII, "b", da C.F., que intervenção federal poderá ocorrer para assegurar a observância dos direitos da pessoa humana, direitos que foram elevados à condição de princípio constitucional sensível. A intervenção, nesse caso, vale dizer, no caso de inobservância, por parte do Estado-membro, desse princípio, ocorrerá se o Supremo Tribunal Federal der Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 356 provimento à representação do Procurador-Geral da República (C.F., art. 36, III). Acontece que o § 3º do art. 36 dispõe: “art.36 .......................................................................................................................... § 3º - Nos casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional ou pela Assembléia Legislativa, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade. " Os termos do dispositivo constitucional acima transcrito - § 3 do art. 36 – numa interpretação literal, estariam a indicar que somente um ato comissivo do Estado-membro, de descumprimento do princípio, assim de violação dos direitos da pessoa humana, é que autorizaria a intervenção federal. É que, estabelecendo o § 3º do art. 36 que o decreto do Presidente da República “limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado,” se não houver esse ato não haverá a intervenção. Seria de ser assim, Senhor Presidente? Penso que não. Dou os motivos do meu convencimento. A Constituição de 1.988 preocupa-se, sobremaneira, com os direitos fundamentais do homem, com os direitos humanos. O só fato de os direitos e garantias fundamentais terem sido colocados no início da Constituição, assim nos seus artigos 5º (direitos e deveres individuais e coletivos), 6º, 7º, 8º, 9º, 10 e 11 (direitos sociais e coletivos), 12 (direito a nacionalidade), 14 a 17 (direitos políticos), demonstra que o constituinte quis emprestar posição de realce a esses direitos frente à organização estatal. Os comparatistas, aliás, para efeito do estudo dos direitos fundamentais, costumam adotar, como critério, dentre outros, o do lugar desses direitos na sistematização constitucional. Confira-se, a propósito, o notável "Manual de Direito Constitucional", Tomo IV, que cuida dos Direitos Fundamentais, do Prof. JORGE MIRANDA, pags. 109 e segs. (Coimbra Editora, 1988). A hermenêutica constitucional, lembra o Professor Fabio Konder Comparato, apresenta especificidade. (RTJ 93/62). A frase de Marshall, invocada por Comparato, no acórdão do famoso caso McCulloch vs. Maryland, de 1.819, no sentido de que We must never forget that it is a constitution we are expounding – não devemos esquecer que é a Constituição que estamos expondo; que são Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 357 normas constitucionais que estamos interpretando – dá bem a medida dessa especificidade, a indicar que, porque a Constituição é o diploma validador de todas as outras normas, assim o sistema em que se funda toda a ordem jurídica, o alcance das normas constitucionais há de ser entendido com extensão e eficácia muito maior do que o das normas comuns, o registro e ainda do Prof. Comparato, que menciona trás princípios que precisam ser observados pelo intérprete da Constituição: o princípio da concretização, o princípio da interpretação sistemática e o princípio da harmonização funcional. Pelo primeiro, o intérprete não deve se limitar a verificar o sentido visível da norma, mas deve completá-la, de modo a fazê-la aplicave1 em concreto; pelo segundo, procurara o intérprete "identificar o campo ou âmbito normativa no que se insere o problema proposto"; e pelo terceiro, recomenda-se que se busque na Constituição os princípios maiores que ela consagra e, no rumo de tais princípios, deve orientar-se o intérprete. Busquemos nos inspirar nos princípios de hermenêutica constitucional acima indicados, que o Prof. Fabio Comparato desenvolve no trabalho já mencionado (RTJ 93/62). A Constituição, Senhor Presidente, no Titulo I, ao cuidar "Dos princípios Fundamentais", deixa expresso, no art. 19, III, que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento, dentre outros, a dignidade da pessoa humana (art. 19, III). E não fica apenas nisto. No art. 39, IV, estabelece que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, promover o bem de todos. E, ao indicar os princípios segundo os quais deve a República Federativa do Brasil reger-se, nas suas relações internacionais, menciona, no inc. II do art. 49, a prevalência dos direitos humanos. E há mais, ainda. Prescrevendo limitações materiais ao constituinte derivado, estabelece a Constituição que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir" os direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 49, IV). Verifica-se, pois, que os direitos humanos, os direitos e garantias individuais, constituem princípio maior no sistema constitucional brasileiro. Bem por isso, foram tais direitos erigidos a condição de princípio constitucional sensível (CF, art. 34, VII, "b"). Posta assim a questão, devo emprestar ao dispositivo constitucional - o art. 34, VII, "b" - a maior carga possível de efetividade. Ora, a interpretação literal do § 39 do art. 36 retira do referido art. 37, VII, "b", efetividade, ou diminui-lhe, consideravelmente, a efetividade. E que, e fácil perceber, a inobservância do Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 358 princípio constitucional dos direitos da pessoa humana decorre, muita vez, da omissão das autoridades, da omissão do Executivo estadual em fazer respeitados esses direitos. Estou convencido, Senhor Presidente, que esses atos omissivos dos Estadosmembros, que tratam mal os direitos da pessoa humana, também autorizam a intervenção federal. Sou federalista, Senhor Presidente, quero ver realizada, no Brasil, a federação. Mas antes de ser federalista, sou ser humano. E devo compreender que a Constituição, que consagra essa forma de Estado, quer que a federação sirva ao homem, porque deixa expresso que a República Federativa do Brasil, que se constitui em Estado Democrático de Direito, tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 19, III). Por isso, se o Estado-membro desrespeita essa dignidade, ou não faz por fazer respeitados os direitos da pessoa humana, tenho como autorizada a medida patológica da intervenção federal. Assim quer a Constituição. Estou, pois, de acordo com V.Exa., Senhor Presidente, quando conhece da representação. E louvo a atitude máscula: do Procurador-Geral da República, Chefe do Ministério Público Federal, ao fazer a representação a esta Corte, buscando a intervenção federal para o fim de efetivar proteção aos direitos da pessoa humana. Com este julgamento, um dos mais importantes da sua história, o Supremo Tribunal Federal deixa abertas as suas portas - portas, aliás, que nunca estiveram fechadas ao clamor da liberdade - também para essa forma de tornar efetivos os direitos humanos e assim efetiva a Constituição. Conheço, pois, da representação. Enfrento-lhe o mérito. Também aqui estou de acordo com o Relator, o nosso Presidente. E que se tem, no caso, um fato que, não obstante lamentável, que chega a nos envergonhar, e um fato isolado e que está sendo apurado pelas autoridades estaduais, conforme deu notícia o eminente Relator. O indeferimento, no caso, da medida patológica da intervenção federal, é o que se recomenda. Com essas considerações, Senhor Presidente, acompanho o douto voto de V.Exa.: conheço da representação, mas tenho como procedente, pelo que a indefiro. VOTO (PRELIMINAR) Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 359 O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - A intervenção federal configura expressivo elemento de estabilização da ordem normativa plasmada na Constituição da República. É, dela, indissociável a sua condição de instrumento de defesa dos postulados sobre os quais se estrutura, em nosso País, a ordem republicano-federativa. "O instituto da intervenção" – adverte ERNESTO LEME ("A Intervenção Federal nos Estados", p. 25, item nº 20, 2ª ed., 1930 RT) - "é (...) da essência do sistema federativo". Sem esse mecanismo de ordem político-jurídica, que assegura a intangibilidade do pacto federal, assevera JOÃO BARBALHO ("Constituição Federal Brasileira - Comentários", p. 31, 2ª ed., 1924, Rio de Janeiro, Briguiet e Cia. Editores), "a União seria um nome vão. E as garantias e vantagens, que a Federação deve proporcionar aos Estados e ao povo, se reduziriam a simples miragem". Se é inquestionável a correção de tais premissas, que encontram suporte na "communis opinio", é também irrecusável o consenso doutrinário, fundado na necessidade de respeito ao próprio princípio federativo, sobre a excepcionalidade da intervenção federal, dado o caráter extremamente perturbador que assume qualquer interferência do Governo Federal nos assuntos regionais e na esfera dos autônomos interesses dos Estadosmembros (CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Brasileira”, p. 158, item n. 128, 3ª ed., 1929, Globo; THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, “A Constituição Federal Comentada", vol. I/183, 3ª ed., 1956, Konfino; FÁVILA RIBEIRO, "A Intervenção Federal nos Estados”, p.48, tese de concurso, 1960, Editora Jurídica, Fortaleza). Não se pode perder de perspectiva, por isso mesmo, a circunstância, de extremo relevo político-jurídico, de que a intervenção federal representa a própria negação, ainda que revestida de transitoriedade, da autonomia reconhecida aos Estados-membros pela Constituição. Essa autonomia, de índole constitucional, configura um dos postulados fundamentais da organização político-jurídica de nosso sistema federativo. O poder autônomo, que a ordem jurídico-constitucional atribuiu aos Estados-membros, traduz, na significativa concreção de sua existência, um dos pressupostos conceituais inerentes à compreensão mesma do federalismo. Daí, a estrita disciplina imposta pela Constituição ao instituto da intervenção federal, cujos pressupostos de admissibilidade foram por ela taxativamente enumerados, em "numerus clausus", em obséquio ao princípio maior do equilíbrio federativo, em face do caráter de absoluta excepcionalidade de que se reveste o ato interventivo, em função de sua natureza mesma e de seus próprios efeitos jurídicos e conseqüências político-administrativas. Tal circunstância justifica, plenamente, a advertência constante do magistério doutrinário de PONTES DE MIRANDA ("Comentários à Constituição de 1967", Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 360 tomo 2/198, 1967, RT), para quem "a intervenção nos Estados-membros constitui, pelo menos, teoricamente, o "punctum dolens" do Estado Federal". A Constituição brasileira de 1988 definiu, dentre as condições de admissibilidade da intervenção federal, a ofensa ao princípio sensível da intangibilidade dos direitos da pessoa humana. "A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal" - proclama o art. 34 de nossa Lei Fundamental - "exceto para (...) VII. assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: (...) b) direitos da pessoa humana..." O legislador constituinte agiu, nesse tema, com extrema coerência, eis que o compromisso do Estado brasileiro com a intangibilidade e o respeito aos direitos da pessoa humana é irrecusável. Ele deriva do preâmbulo de nossa Carta Política; exprime-se na proclamação da dignidade da pessoa humana e na necessidade de sua defesa, erigidas à condição de pressupostos fundamentais da própria organização da República Federativa do Brasil (art. 1º, III); exterioriza-se no domínio tributário, ao elevar a indenidade dos direitos individuais ao plano das limitações constitucionais ao poder estatal de tributar (art. 145, § 1º). A indeclinabilidade desse compromisso estatal – que proclama a prevalência dos direitos humanos – mais se evidencia e se intensifica na medida em que ele se projeta como um dos princípios estruturadores da atuação e do comportamento do próprio Estado brasileiro no plano das relações internacionais (art. 4º, II). Ressalte-se, no entanto, não obstante o elevado valor e importância dessa opção política do legislador constituinte, que a inclusão, na Constituição de 1988, do desrespeito aos direitos da pessoa humana no rol das condições legitimadoras da intervenção federal, não se revestiu de originalidade, eis que precedentes, extraídos da evolução histórica de nosso próprio constitucionalismo republicano, atestam que, já sob a égide da Constituição de 1891 (art. 6º, II, "j", com a redação introduzida pela Reforma Constitucional de 1926) e, curiosamente, da de 1937 (art. 9º, "e", n.3), o princípio da intangibilidade daqueles direitos inscrevia-se dentre os pressupostos autorizadores da intervenção do poder central na esfera das coletividades autônomas locais. Qualquer que possa ser a noção conceitual da locução constitucional "direitos da pessoa humana", é certo que essa expressão assume, no plano das relações jurídicas da pessoa com o Estado, uma abrangência incomparavelmente maior que aquela propiciada pelo conceito limitado de direito individual. A inferência desse sentido de maior latitude deriva, quer do magistério da doutrina (BERNARD SCHWARTZ, "Os Grandes Direitos da Humanidade", 1979, Forense Universitária, trad. de A.B. Pinheiro de Lemos; JEAN RIVERO, "Les Libertés Publiques", vol. 1/9-26, 1973, Presses Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 361 Universitaires de France, Paris; GEORGES BURDEAU, "Les Libertés Publiques", 4ª ed., 1972, Librairie Générale de Droit e de Jurisprudence, Paris; JOSÉ CRETELLA JR., "Liberdades Públicas", 1974, Bushatsky, São Paulo; DALMO DE ABREU DALLARI, "Elementos de Teoria Geral do Estado", p. 180/186, 1972, Saraiva; MIGUEL REALE, "Liberdade antiga e liberdade moderna", "in" "Horizontes do Direito e da História", p. 15/44, 1956, Saraiva), quer dos grandes documentos e atos internacionais, concernentes aos direitos do Homem (Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776; Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789; Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, Bogotá, 1948; Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948; Convenção Européia sobre a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950, e seus sucessivos Protocolos Adicionais; Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, 1969). Caberá ao Supremo Tribunal Federal, investido da alta missão institucional de interpretar esta Constituição, definir o sentido, o conteúdo e o alcance exatos da cláusula constitucional referente aos direitos da pessoa humana, para que, então, a partir da extensão temática que se lhe de, venha a fixar os parâmetros, necessários e essenciais, da intervenção federal nos Estadosmembros, por inobservância desse magno princípio sensível. Assentadas estas premissas, cuja análise reputei imprescindível, passo a apreciar a presente ação direta interventiva. A ação direta interventiva, introduzida direito positivo pela CF/34, faz instaurar, entre o poder central e as coletividades autônomas periféricas, um litígio constitucional, cujo objetivo precípuo consiste em dar solução jurisdicional a um conflito federativo. Impõe-se ao Supremo Tribunal Federal, no âmbito desse procedimento especial, o dever de compor tal situação de conflito e de litigiosidade constitucional entre a União Federal e o Estado-membro. A ofensa do Estado-membro aos princípios constitucionais sensíveis (art. 34, VII) configura um nítido ilícito constitucional, cuja prática gera, em seus efeitos, dupla conseqüência: uma, de ordem jurídica, consistente na declaração de inconstitucionalidade do comportamento estatal impugnado; outra, de ordem político-administrativa, consistente na decretação de intervenção federal no Estado, por ato do Presidente da República, em virtude de requisição emanada do Supremo Tribunal Federal. A doutrina e a jurisprudência têm salientado, na análise do objeto da representação interventiva, que o que nela se pressupõe é a existência de ato normativo ofensivo aos princípios constitucionais sensíveis, pois o comprometimento da ordem constitucional, por meros FATOS, não justifica, e Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 362 nem se reveste de aptidão suficiente para viabilizar, sequer, o próprio conhecimento da ação direta interventiva. O voto proferido pelo saudoso Min. CASTRO NUNES, no julgamento, por esta Corte, da Rp.nº 94, salientou, de modo expressivo, essa circunstância: "O nº VII contém um elenco de princípios, e o que aí se pressupõe é a ordem jurídica comprometida, não por fatos, mas por atos legislativos destoantes daquelas normas fundamentais. Esses princípios são somente os enumerados para o efeito da intervenção, que é a sanção prevista para os efetivar. Não serão outros, que os há na Constituição, mas cuja observância está posta sob a égide dos tribunais, em sua função normal." E a razão desse entendimento, justificou-a o eminente Min. CASTRO NUNES, no julgamento da Rp. nº 96, "verbis": "Basta considerar que a sanção adstrita ao 'veredictum' do Tribunal é a intervenção, para mostrar o seu caráter excepcional. O Tribunal pode conhecer de quaisquer das argüições, mas, pela via comum. Mediante os remédios judiciais adequados, poderão essas argüições vir aos tribunais competentes e chegar até ao Supremo Tribunal Federal. Mas, para exercer a atribuição do art. 8º, parágrafo único, que Ihe dá o poder de declaração da inconstitucionalidade, em tese, e, como conseqüência, a intervenção federal, ele está adstrito e obrigado a verificar, em cada argüição, a sua filiação, o seu entroncamento em alguns dos princípios enumerados na Constituição. Do contrário, estaríamos ampliando uma atribuição que é do seu natural, excepcionalíssima, e de certa forma diminuindo e ameaçando a autonomia dos Estados." O ilustre Procurador da República, GILMAR FERREIRA MENDES, ao dissertar sobre o tema do objeto do controle de constitucionalidade, no plano da representação interventiva, bem definiu, com suporte no magistério doutrinário de PONTES DE MIRANDA, CASTRO NUNES e OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO, o âmbito de sua atuação ("Controle de Constitucionalidade – Aspectos jurídicos e políticos", p.233/234, 1990, Saraiva): "A controvérsia envolve os deveres do Estado--membro quanta à observância dos princípios constitucionais sensíveis (CF 1967/1969, arts. 13, I, e 10, VII) e à aplicação da lei federal (CF 1967/1969, art. 10, VI, 1º parte). Essa violação de deveres consiste, fundamentalmente, na edição de atos normativos infringentes dos princípios previstos no art. 10, VII, da Constituição de 1967/1969. 'O legislador constituinte usou da palavra ato – lecionava Castro Nunes – na sua acepção mais ampla e compreensiva, para abranger no plano legislativo as normas de qualquer hierarquia que comprometam algum dos princípios enumerados'. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 363 .............. Vê-se, pois, que a afronta aos princípios contidos no art. 10, VII, da Constituição Federal de 1967/1969, há de provir, basicamente, de atos normativos dos poderes estaduais, não se afigurando suficiente, em princípio, a alegação da ofensa, em concreto. 'A violação, em concreto, por parte do Estado federado, - ensina Bandeira de Mello, - não diz respeito aos princípios constitucionais propriamente ditos, a que devia observar, mas ao exercício da ação dos poderes federais, de execução das leis federais ( ... )’. .................................................................................................... Tendo por fundamento estas considerações, Sr. Presidente – e adstringindome a critérios de índole exclusivamente técnica –, não vejo como possa sequer conhecer da presente ação direta interventiva, eis que entendo, coerente com a linha exposta neste voto, que o desrespeito concreto aos direitos da pessoa humana, mesmo que lamentavelmente traduzido em atos tão desprezíveis quão inaceitáveis, como estes, decorrentes do tríplice linchamento ocorrido em Matupá - MT, não tem o condão de justificar a cognoscibilidade desta representação interventiva, cujo objeto – reitero – só pode ser ato estatal, de caráter normativo, apto a ofender, de modo efetivo ou potencial, qualquer dos princípios sensíveis elencados no inciso VII do art. 34 da Constituição Federal. Com estas observações, Sr. Presidente, peço vênia para dissentir de V. Exa. e, em o fazendo, não conhecer da presente ação direta interventiva. Desejo registrar, no entanto, o meu respeito pela iniciativa processual do eminente Procurador-Geral da República, Dr. ARISTIDES JUNQUEIRA ALVARENGA, cuja notável atuação, como Chefe do Ministério Publico da União, só tem evidenciado estar, S. Exa., à altura da importância e dignidade da grande Instituição que dirige. Não conheço da presente ação. É o meu voto. VOTO O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE - Senhor Presidente, sem provocar polêmica, pretendo, no mínimo de palavras possível, dar apenas as razões da minha convicção. Começo por louvar a iniciativa do eminente Procurador-Geral da República, que é o elemento ativo da guarda da Constituição: suas provocações, quando tocam em temas inéditos nos anais da Corte, são uma colaboração Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 364 imprescindível à nossa tarefa quotidiana de concretização jurisprudencial da Constituição, cometimento maior do Tribunal. Como a democracia, também as constituições democráticas são obras permanentemente inacabadas. Por isso, a minha preocupação é não fechar antecipadamente caminhos, pois há situações, que a evolução políticoconstitucional do País poderá apresentar amanhã, a exigir soluções criativas da Corte. Creio imprescindível, Senhor Presidente, lembrar que esta representação interventiva, como fase necessária da intervenção federal, por violação dos princípios constitucionais sensíveis, surge e desenvolve-se, durante grande parte de sua história, como mecanismo de controle direto da constitucionalidade de atos dos poderes estaduais, E, como tal, já há muito se disse que, desde 1965, com a criação da representação genérica, tornou-se um instituto quase agônico na prática constitucional brasileira, porque, na totalidade dos casos em que foi aplicada – como a suspensão do até decorria do julgamento da procedência da representação genérica –, a representação interventiva perdera a sua grande utilidade prática, dado que, desde quando instituída, jamais ela provocou uma intervenção efetiva, uma intervenção de fato, mas, apenas, a intervenção jurídica consistente, exatamente, também, na suspensão da eficácia do ato impugnado. É certo que, em 1934, essa representação surge no direito constitucional brasileiro, tendo como objeto direto a lei de intervenção, mas, reflexamente, levando ao exame da existência do motivo da lei de intervenção, vale dizer, do ato estadual que se inquinava de violador dos princípios constitucionais. Em 1946, inverte-se o modelo: já não é a lei de intervenção, já editada, que se submete ao Tribunal, e sim o próprio ato estadual, suscetível de motivá-la. A Constituição de 34 dispunha que a intervenção não se efetivaria antes que a lei federal que a decretasse fosse julgada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Invertido o processo, a Constituição de 46 veio a dispor que a intervenção dependia da prévia declaração de inconstitucionalidade do ato impugnado. Até então não havia dúvidas, cuidava-se, efetivamente, de um sistema de controle concentrado e direto de constitucionalidade e, com esse sentido, o Ministro Alfredo Buzaid teorizou sobre o instituto, na sua conhecida Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade. Por isso, desde o início, sem discutir se era necessário um ato jurídico público nos Estados, o que se pôs foi o problema de saber que natureza deveria ter esse ato jurídico para poder submeter-se à representação. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 365 Na Representação 94, já referida pelo eminente Ministro Celso de Mello, o saudoso Ministro Castro Nunes antecedeu o seu voto sobre o caso concreto, onde não havia dúvidas – tratava-se da conhecida representação sobre a Constituição de feitio parlamentarista do Estado do Rio Grande do Sul –, de uma longa dissertação sobre a natureza do instituto novo da representação interventiva e sustentou, então, como aqui já se recordou, que se trataria exclusivamente de atos da Assembléia Legislativa, em função legiferante ou constituinte. É verdade, no entanto, que o ponto não constituiu decisão do Tribunal, cuidou-se de uma exposição teórica de introdução ao voto de Castro Nunes. Não estava em causa o problema. Surgiu na doutrina a crítica de Pontes de Miranda (1º volume, pagina 489, de seus "Comentários à Constituição de 46"), a sustentar, em oposição radical à tese de Castro Nunes, que o objeto da representação não seria necessariamente um ato normativo; poderia ser, sim, um ato concreto de qualquer dos Poderes do Estado, do Poder Executivo, do Poder Judiciário, até do Poder Legislativo, em função não legislativa. E dava exemplos: a prisão de Membros do Tribunal de Justiça, a dispensa pelo Tribunal de Contas da prestação de contas do Governador. Não esperava que este caso viesse hoje à Mesa. Por isso, não conferi minhas recordações. Mas, salvo engano, o Supremo Tribunal chegou a admitir a representação interventiva contra atos concretos. A ela certamente se referiu Victor Nunes, num caso, porém, em que o ato concreto era conseqüência da apreciação de um ato normativo. Tratava-se da auto-convocação de uma Assembléia Legislativa, cuja constitucionalidade se discutia. Além desse, com a ressalva de verificação nos nossos anais, lembro-me do julgamento de um mandado de segurança, em que se chegou a admitir a sua conversão em representação de inconstitucionalidade, para discutir o ato de nomeação, pelo Governador do Estado, de um Diretor do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul. Mas pouco importa! O certo é que, sempre, a representação se punha como controle direto e concentrado de um ato jurídico público dos Poderes estaduais. Subsiste esse limite objetivo à representação interventiva? Pretende que não o eminente Procurador-Geral da República. Ao que entendi da sustentação com que, hoje, brindou o Tribunal, a S. Exa. parece que a introdução, entre os princípios constitucionais sensíveis, dos direitos humanos, erigidos assim em princípio da ordem constitucional, Ievaria à admissão da intervenção federal para suprir omissão de fato dos Poderes estaduais, de que resulta a insegurança de direitos humanos. Alega-se em contrario – e confesso que o argumento me impressionou – com o art. 36, § 3º, da Constituição, segundo o qual, em tais casos, "dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 366 medida bastar ao restabelecimento da normalidade". Por essa oração condicional, eu me convenço, porém, de que o argumento, data venia, não é definitivo. O decreto se limitará à suspensão, à vista das circunstancias – e, digo eu, da motivação do julgamento que der provimento à representação – se e quando essa intervenção puramente jurídica, isto é, suspensão por decreto do Presidente da República de um ato estadual, bastar ao restabelecimento da normalidade. E assim tem sido sabidamente a prática constitucional brasileira, que eliminou, desde 1946, as intervenções de fato da União nos Estados, por violação dos princípios constitucionais sensíveis que passaram a resolver-se sob a forma civilizadíssima de um julgamento do Supremo Tribunal, declaratório da inconstitucionalidade do ato estadual, e do decreto presidencial de execução dele. A mim me parece, no entanto, Senhor Presidente, que pode haver situações de anormalidade que não se reduzam à desarmonia normativa entre uma norma ou ato jurídico estadual e os princípios constitucionais sensíveis; que não se possam reduzir a um ato formal de agressão a esses princípios. Pode haver anormalidades de fato, a cuja cessação não baste a suspensão de um ato estatal determinado. A conseqüência é que então se imporá a intervenção efetiva, com as medidas necessárias à superação da anormalidade, óbvio, então, já não dispensada a participação do Congresso na homologação do ato presidencial que a decretar. O que é necessário, a meu ver, é que haja uma situação de fato de insegurança global dos direitos humanos, desde que imputável não apenas a atos jurídicos estatais, mas à ação material ou à omissão por conivência, por negligência ou por impotência, dos poderes estaduais, responsáveis. Seria essa interpretação incompatível com a natureza da representação? A reflexão sobre o tema, embora apressada, levou-me a convicção contrária. Não tanto, como sustenta o eminente Procurador-Geral da República, em virtude da introdução dos direitos humanos, no rol dos princípios constitucionais sensíveis, os quais como os demais princípios constitucionais sensíveis, obviamente podem ser ofendidos por atos normativos ou por atos jurídicos concretos estaduais, estes, se se vai até o ponto a que chegou Pontes de Miranda. O que me parece decisivo é que desde a Constituição de 1967, o teor da Constituição já não restringe a representação interventiva ao mecanismo de controle de constitucionalidade de atos jurídicos do Estado. Dizia-se em 1934 que “A intervenção só se efetivará depois de o Supremo Tribunal declarar a constitucionalidade da lei que a decretar". Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 367 Ou, como se prescrevia no texto de 46, depois que o Supremo Tribunal, mediante representação do Procurador-Geral da República, julgar inconstitucional o ato impugnado". Nos textos constitucionais seguintes, porém, desde 1967, o que se dispõe é que, em tais casos, a intervenção dependerá de provimento, pelo Supremo Tribunal, da representação do Procurador-Geral da República: se for o caso, representação fundada na violação dos princípios constitucionais sensíveis, violação que, a meu ver, tanto pode dar-se por atos formais, normativos ou não, quanto por ação material, ou omissão de autoridade estadual, que leve a uma situação de fato de anormalidade, ofensiva, contrária à salvaguarda, à violência social e a efetividade daqueles princípios. Portanto, a meu ver, já não há agora o obstáculo, que a literalidade das Constitui9oes de 1934 e de 1946 representavam, para que a representação interventiva, que, no passado, era exclusivamente uma representação por inconstitucionalidade de atos sirva, hoje, à verificação de situações de fato. É claro que isso imporá adequações, se for o caso, do procedimento desta representação à necessidade da verificação, não da constitucionalidade de um ato formal, mas da existência de uma grave situação de fato atentatória à efetividade dos princípios constitucionais, particularmente, aos direitos humanos fundamentais. Portanto, Senhor Presidente, como parece resultar dos votos de V.Exa. e dos eminentes Ministros Marco Aurélio e Carlos Velloso, com as vênias do eminente Ministro Celso de Mello, conheço da representação. Também estou com V.Exa. em que, para que se verifique este caso, que há de ser excepcionalismo, de uma situação global de desrespeito aos direitos humanos, não basta alegar e provar um caso isolado, apesar da dramaticíssima gravidade do fato, que nos trouxe o eminente Chefe do Ministério Público da União. Na omissão indevida por conivência ou por negligência das autoridades locais, em um caso isolado, os alvitres de superação ou repressão decorrem do sistema constitucional. Ele está, primeiro, no mecanismo normal – a responsabilidade do governante e das autoridades omissas –, ao qual a Constituição de 88, muito criticada neste ponto, trouxe, no entanto, um reforço significativo, que é a competência de um alto Tribunal da União, o STJ, para o julgamento dos Governadores de Estado. Se isso não bastar, se for o caso de o fato isolado e qualificado por essa omissão acarretar um grave comprometimento da ordem pública no Estado, estaremos em face de outra hipótese de intervenção federal, esta não dependente da representação do Procurador-Geral, mas da competência, da iniciativa privativa, do Presidente da República. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 368 Finalmente, nos limites estritos da parte final do art. 144 da Constituição, há poderes de intervenção normal da Polícia Federal naqueles casos de crimes, ainda não comportáveis na sua competência ordinária, cujá pratica tenha repercussão internacional ou interestadual e exija repressão uniforme. Com essas breves considerações, Senhor Presidente, acompanhando o voto de V.Exa., conheço da representação, mas não Ihe dou provimento. VOTO O SENHOR MINISTRO PAULO BROSSARD – Senhor Presidente, como V. Exa. acentuou, no inicio, é a primeira que a Corte se defronta com um problema dessa natureza, e por isso mesmo, não há precedentes, quase tudo é novidade. A propósito da intervenção, embora o tema seja fascinante e os votos até agora enunciados mostrem como há vários aspectos a serem abordados e aprofundados, procurarei ser muito breve. Limitar-me-ei a dizer que os institutos da Intervenção Federal e do Estado de Sítio, no Brasil, ao juízo de Rui Barbosa, deram margem a abusos inomináveis. Num de últimos livros ele diz mesmo que foram duas instituições funestas na sua aplicação desvairada: o sitio e a intervenção. É certo, Senhor Presidente, que, pelo texto da Constituição de 91, o famoso art. 6º, o seu laconismo dava margem às mais variadas interpretações. Basta dizer que ele começava dizendo assim: "O Governo Federal não intervirá...” E a primeira questão que se levantava era esta: O que é Governo Federal? O Governo Federal é o Poder Executivo? ou O Governo Federal são os três poderes, conforme as circunstancias, conforme os casos. A divergência começava aí. Já não falo na outra: "não intervirá". No Rio Grande do Sul, por exemplo, durante um ano houve uma guerra civil e não houve pedido de intervenção federal. E o sábio Dr. Borges de Medeiros sobradas razões em não solicitá-la, e não foi feita intervenção federal; houve uma intervenção diplomática, que levou à paz em 14 de dezembro 1923. Dois anos antes, na Bahia, ocorreu o contrario: o Governador da Bahia, diante da sublevação do sertão baiano, solicitou a intervenção federal ao Presidente Epitácio Pessoa, e este a decretou imediatamente. Dizia-se, antes disso, que Epitácio tinha assegurado que não mandaria à Bahia um soldado, e se disse na época que ele havia cumprido a palavra, porque não tinha mandado um, mandou seis mil. Sustentou o Presidente Epitácio Pessoa, que foi membro desta Casa e era um jurista ilustre, que o requerimento do Governador obrigava o Presidente a decretar a intervenção. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 369 Rui Barbosa mostrou que o poder de decisão era do Presidente e não do Governador. Se fora assim, a intervenção não seria intervenção federal, seria um socorro do Governo Federal à solicitação do Governador; a intervenção era decidida pelo Governador e não pelo Presidente da República. Mas essas são coisas do passado, que lembro apenas para mostrar as discussões havidas a respeito do instituto. Com a reforma de 26, o texto de 91 melhorou extraordinariamente e inclusive se definiram mais ou menos os papéis dos poderes federais: Executivo, Legislativo e também o Judiciário. A Constituição de 34 deu um passe além no sentido da sistematização do instituto. Mais do que todas, penso eu, foi a de 46, já com a experiência mais que cinqüentenária; no art. 7º trabalhou muito o então Deputado Prado Kelly, que veio a ser também membro ilustre deste Supremo Tribunal Federal e um dos seus ornamentos. A Constituição de 46, no meu modo de ver, regulou o assunto de maneira quase perfeita. A harmonia da distribuição dos poderes, da contenção dos poderes, com que todos eles tinham um limite em outro poder, embora fosse a sua decisão predominante ou decisiva, fez com que o texto de 46 fosse realmente admirável. Não estranha que tenha sido abandonada em 67 e 69. A verdade, Senhor Presidente, é que, depois de 37, com exceção de 64, nos casos de Goiás e de Alagoas, creio que não houve mais intervenções. Parece que o capítulo das intervenções federais, que deu margem a tantos abusos, está mais ou menos recolhido ao museu das nossas antiguidades constitucionais. E queira Deus que assim seja, Senhor Presidente. Eu gostaria de observar que a intervenção, talvez por este motivo, pelos abusos a que deu margem, é muitas vezes visto como um instituto de exceção. Em verdade, a intervenção é um instituto fundamental no direito federal. Ele visa, fundamentalmente, a conservação da Nação e da Federação. Na Nação, em certos casos: invasão do território nacional por força estrangeira, da Federação: invasão de um Estado em outro Estado. Ele é um instituto mais do que regular, mais do que lícito, é um instituto necessário à harmonia federativa. Claro que pode haver, aqui e ali, excessos, abusos, incompreensões, mas isso não compromete o instituto em si mesmo. Feitas essas observações tão singelas, queria dizer, em primeiro lugar, que a ação do eminente Procurador-Geral da República, só merece louvores. Aliás, a ação de S.Exa., tem sido tão diligente e criteriosa, que são gerais os aplausos que S.Exa. colhe em toda parte, em todo o País. De modo que não precisava S.Exa. preocupar-se com alguma interpretação desairosa a sua iniciativa. Ao contrario, acho que S. Exa. prestou um bom serviço ao propor questão desta Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 370 delicadeza e desta importância ao exame do Supremo Tribunal. Realmente, o caso, em si, é desses que clama aos céus, e desses que desonra o nome do País dentro e fora das suas fronteiras. A diligência do eminente Procurador-Geral, da minha parte, só merece louvores, S.Exa. não fique preocupado, jamais passaria pela cabeça de ninguém que fosse um ato de oportunismo ou exibicionismo. Dito isso, Senhor Presidente, vou-me abster de fazer comentários sobre os temas que, como disse, são fascinantes, e vou limitar-me a decidir o caso em exame. Embora a intervenção, como disse, seja um expediente regular, ainda que não ordinário, entendo que descabe na hipótese. Senhor Presidente, com o perdão do Ministro CELSO DE MELLO, tomo conhecimento para indeferi-lo. Entendo que, no caso, não se justifica a medida que é extrema, sem deixar de ser normal: entendo que, no caso, não seria de ser tomada a providência requerida. Pelo relatório que V.Exa. fez, parece-me que, dentro da imensa precariedade de recursos, neste País imenso, onde as coisas são mais difíceis do que parece a pessoas que moram e trabalham na capital, entendo que tem sido tomadas providências que não destoam do comum das providências. Antes de chegar ao Tribunal, tive a honra de ser Ministro da Justiça e tive o desprazer de tratar de assuntos de tirar o sono. Realmente, as nossas realidades são perturbadoras. Estive em certos lugares e falei com certas pessoas, e verifiquei como era difícil fazer funcionar o aparelho judiciário. De modo que, dentro desses condicionamentos que são o ônus da nossa imponência geográfica, foram e estão sendo tomadas providências que não chegam a caracterizar omissão, – embora não tenha sido feito o ideal – diante de um fato dramático como esse que V.Exa. traz ao conhecimento do Tribunal e que, além de tudo, ainda é revestido de tintas de perversidade. Penso que, no caso concreto, descabe a medida requerida – a intervenção federal no Estado. Voto com V.Exa., Senhor Presidente, com a vênia do Ministro CELSO DE MELLO, renovando, mais uma vez, as minhas homenagens à diligência e ao critério com que se houve o eminente Procurador-Geral. VOTO O SR. MINISTRO CÉLIO BORJA: Sr. Presidente, a manifestação de V.Exa. seria suficiente para a conclusão do voto que irei proferir, mas, o debate tão rico que aqui se travou obriga a definição de alguns pontos controversos do art. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 371 34 da Constituição. O primeiro que se suscita é com relação ao tipo ou à natureza do ato que é capaz de gerar a intervenção prevista no inciso VII do art. 34, que é, diz-se, da mesma natureza daquelas que declaravam os princípios constitucionais sensíveis e submetiam as violações respectivas ao crivo do Supremo Tribunal Federal. E, então, se pronunciada inconstitucionalidade, tinha lugar a intervenção, se não bastasse a suspensão, por decreto do Presidente da República, do ato tido por contrario à Constituição. Penso que não, Sr. Presidente. E digo por que. Em primeiro lugar, sabemos que instituto da intervenção no Brasil sofreu uma evolução acidentada, para dizer o menos. Em 1891, o texto extremamente singelo do art. 6º, como acentuou, ainda há pouco, o Ministro Paulo Brossard, ensejou debate nacional a cada vez que, no Congresso, na Presidência e nos próprios Tribunais, cogitou-se de intervenção nesse ou naquele Estado. Ninguém participou com maior intensidade desse debate do que Rui Barbosa e as suas opiniões estão, coligidas e reunidas, por Homero Pires, em livro que denominou Comentários a Constituição de 91. Creio que, se fosse necessário estabelecer, com exatidão, o que significa cada uma daquelas hipóteses previstas no art. 6º do texto primitivo de 91, encontrarse-ia a resposta na palavra de Rui Barbosa, tal como reproduzida e coligida pelo meu antigo mestre, Homero Pires. Mas, aí, entra um outro problema, Sr. Presidente. As disposições do texto primitivo da primeira Constituição republicana foram consideradas insuficientes e o Presidente Arthur Bernardes, na campanha presidencial, colocou no seu programa de candidato a regulamentação da intervenção federal nos Estados, como um reclamo urgente da nação brasileira, e, em conseqüência disso, passou-se, no Direito Constitucional deste País, a entender que a intervenção, que é um instituto – o Ministro Paulo Brossard ainda há pouco chamava a atenção para esse dado da cultura política e jurídica brasileira – olhado com certa desconfiança, com certa reserva, porque, tal como o estado de sitio, pode dar margem a atos de violência ou a atos contrários aos direitos das pessoas, colocando em risco a segurança dos indivíduos e até das instituições, o instituto da intervenção passou a reclamar regulamentação. A regulamentação do instituto da intervenção, que vigia até o advento da Constituição de 5 de outubro de 1988, dava à representação para fins interventivos, uma configuração precisa, que o Supremo Tribunal desenvolveu de maneira exemplar. Entretanto, foi ela alterada pela Constituição de 5.10.88. Assim, no caso do inciso VII, do art. 34, a intervenção dependerá de provimento pelo Supremo Tribunal Federal e de representação do Procurador-Geral da República, e só. Legitimado o Procurador-Geral, cabe ao Supremo Tribunal, em juízo político – já não mais em jurisdição constitucional, porque antes era apenas jurisdição constitucional, mas agora também em juízo político – dizer se Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 372 requisita ou não a intervenção ao Presidente, se dá ou não provimento ao que pede o Procurador-Geral. Sr. presidente, a palavra princípios, poderia levar-me a uma conclusão distinta dessa a que chego, porque, quando o constituinte se refere aos princípios da Constituição, estaria supondo a mediação do legislador, a transformação daquilo que é idéia e fundamento da ordem jurídica, em norma. Mas, recordeime da lição de Biscaretti di Ruffía a respeito dos princípios gerais da ordem jurídica positiva do Estado. Segundo ele, são, esses princípios, eficazes desde logo, porque eles são ínsitos ao Estado. Se se admite a violação deles, admitese a dissolução do Estado, admite-se que o Estado possa ser desfeito, possa ter a sua Constituição violada, as suas instituições comprometidas. Daí porque, quando se trata de princípios da ordem jurídica positiva do Estado, não há que se hesitar com relação a sua eficácia. Tanto que o constituinte exige dos Estados, desde logo, a observância deles. Sr. Presidente, embora criticada essa denominação de direitos humanos, que acabou, afinal, universalizando-se, o fato é que eles estão acolhidos na Constituição e são parte dela. Concordo que é preciso o esforço do intérprete para dizer o que são direitos humanos. Penso que eles concernem a um bem ou atributo essencial à condição humana ou à dignidade do ser humano, cuja negação importa na degeneração da espécie. De outra parte, o bem assim tutelado, predica-se de um indivíduo, portanto, de um titular. É mister a ocorrência de lesão a esse direito, para que o Procurador-Geral da República possa agir. A segunda, é a insuficiência dos meios estaduais e a imprescindibilidade dos meios federais para assegurar a fruição, o exercício ou o gozo desses direitos humanos. Não me parece, portanto, que se exija um ato comissivo do Estado-membro, para que se vá, como que punindo, intervir nos seus negócios. Não! Não me parece, também, que a circunstância de o poder de polícia judiciária pertencer ao Estado, em casos de violação que deva ser reprimida pela polícia judiciária e pelo Poder Judiciário locais, se deva intervir, porque a finalidade da intervenção é exatamente essa: afastar as autoridades locais dos seus cargos, como se dizia antigamente; deslocar a competência para a União, essa a finalidade da intervenção. Não é apenas para afastar pessoas, é para deslocar competência, é para fazer com que um outro agente exerça a competência que pertenceria de direito a terceiro. Portanto, até aqui, nada me demove, uma vez que isso me parece ser a finalidade da norma e a finalidade da intervenção nessa hipótese, especificamente, da tutela dos direitos humanos. Verificada a materialidade da lesão e constatada a insuficiência dos meios estaduais – já não digo, sequer, um ato comissivo que possa ocorrer, mas não é necessário –, essa mera insuficiência, a impossibilidade de garantir aos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 373 cidadãos, que são cidadãos brasileiros e titulares de direitos individuais e subjetivos, assegurados pela ordem jurídica nacional, e, particularmente, por normas da União; verificado isso e a imprescindibilidade dos meios da União, penso que é possível o Supremo Tribunal começar a examinar o pedido do Procurador-Geral da República... A verdade, Sr. Presidente, é que a Constituição deu o poder de verificar, in casu, a conveniência e a oportunidade da intervenção ao mais alto Tribunal do País, confiou, ainda, o ato de intervenção propriamente dito ao Presidente da República. Tal como, na hipótese de declaração de guerra que é um ato político da maior gravidade, porque atinge o País inteiro, o constituinte, para impedir que guerra se declare de maneira precipitada, inconveniente, ruinosa para o País, confia a mais de um poder, a atribuição de declará-la, assim como o de fazer a paz. Dividiu-se o poder para contê-lo, segundo a velha máxima de Montesquieu. No caso de intervenção, o mesmo ocorre, pois, a decisão do Supremo Tribunal que a concedesse, a instâncias do Procurador-Geral, é contra-arrestada pela apreciação do Presidente da República, que poderá ou não decretá-la. Com essas considerações, Sr. Presidente, creio que posso concluir, sem violência a mim mesmo e com a vênia, dos que pensam em sentido contrario que, a intervenção, para a tutela dos direitos humanos, pode dar-se em razão de atos e não, exclusivamente, de normas. É claro que normas também podem, de alguma forma, suscitar esse tipo de intervenção, no meu entendimento. Sr. Presidente, o drama do Supremo Tribunal é que ele nunca decide exclusivamente para o caso; tudo por ele decidido converte-se em precedente. Sendo a intervenção, como assinalou o Ministro Paulo Brossard, um instituto de extrema delicadeza, que exige um manuseio, um trato cuidadosíssimo, não pode ser concedida apenas porque, numa certa circunstância, dolorosa, indesculpável, seres humanos sofreram algum tipo de violência que repugna a qualquer resquício de sentimento de humanidade. Com essas considerações, peço vênia aos que pensam de maneira contrária, para acompanhar o voto do eminente Ministro Relator, conhecendo do pedido e o indeferindo. VOTO O SENHOR MINISTRO OCTAVIO GALLOTTI:- Sem embargo de compartilhar do reconhecimento dos louvores merecidamente atribuídos, por todo o Tribunal à iniciativa do eminente Procurador-Geral da República, conheço da representação,mas julgo pedido improcedente. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 374 Peço vênia para fazê-lo, adotando os fundamentos constantes do voto de V. Exa., Sr. Presidente, considerando que, em suma, e a despeito da gravidade dos fatos concretos apontados, não se acha configurado, em sua amplitude, um conflito federativo suscetível de acarretar a medida excepcional de que ora se cogita. Com a vênia do eminente Ministro CELSO DE MELLO conheço do pedido, para julgá-lo improcedente. VOTO (Sobre Preliminar de não conhecimento) O SENHOR MINISTRO SYDNEY SANCHES: Peço vênia ao eminente Ministro CELSO DE MELLO, para conhecer da representação, pois nela se procura, mediante a intervenção requerida, compelir o Estado a assegurar a observância de princípios constitucionais relacionados como os direitos da pessoa humana (art. 34, VII, "b" da C.F. 1988), como é o direito do preso a proteção de sua vida. com a alegação de que o Estado vem se omitindo no cumprimento desse dever. Não me parece que, na Constituição atual, a representação para intervenção federal só possa se voltar contra atos normativos, ao menos na hipótese dos referidos artigo, inciso e alínea. E não me parece que o parágrafo 3º do art. 36 impeça esse entendimento. VOTO O SENHOR MINISTRO ALDIR PASSARINHO: – Sr. Presidente, poder-se-ia, entender em face da Constituição de 1946, que havia necessidade de um ato normativo que desbordasse dos princípios assegurados na Constituição, para que pudesse haver a intervenção nos Estados, como exceção à regra da autonomia. A par da inclusão de outros princípios não figurados em Constituições anteriores, cujo ferimento possibilitava a intervenção, veio a Constituição de 1988, pelo seu art. 34, VII, "b", a incluir o da asseguração dos direitos humanos, que Constituição de 46, embora sem dúvida liberal, não previa. Desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, que estavam postos em relevo princípios inerentes à segurança e à dignidade do cidadão. Posteriormente, em face da repercussão provocada pelos crimes hediondos cometidos na Segunda Guerra, passou-se a ter a Declaração Universal dos Direitos do Homem, onde há um elenco de garantias asseguradas à pessoa humana, inclusive as referentes à vida, e repelindo Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 375 frontalmente a tortura. De certo modo, até surpreende que só agora, na Constituição de 1988, se inclua, expressamente, esse princípio como um dos que, sendo ferido, possa provocar a intervenção nos Estados. Óbvio está que só se justificaria a intervenção, se demonstrado que o Estado atingia deliberadamente os direitos humanos, ou se mostrava absolutamente incapaz de protegê-los. Parece-me o disposto no § 3º do art. 36 da Constituição não deve ser entendido da maneira restrita como, é certo, resultava do texto da Constituição de 46. É que diz o § 3º do aludido art. 36 que, nos casos ali indicados, entre os quais inclui o do item VII do art. 34, "o decreto limitar-se-á, a suspender a execução do ato impugando, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade". A meu ver, deve ser considerado necessário um decreto, apenas naqueles casos em que exista um ato expresso, que esteja sendo impugnado, mas não quando se tenha ocorrente as hipóteses do item VII, letra “b”, que pode verificar-se, em face de sua própria natureza, sem que haja ato expresso, suscetível de ser suspenso por decreto. Estou, assim, de acordo com os meus ilustres pares que pensam que atos omissos do Governo estadual podem, também, provocar a intervenção federal, desde que essa omissão seja de tal monta que fira frontalmente aqueles princípios que a Constituição protege, como essenciais. Assim, nesta parte preliminar, entendo possível a intervenção, mesmo que haja omissão, sem existência, portanto, de ato concreto. Passando ao mérito, Sr. Presidente, igualmente acompanho o entendimento de V.Exa. Vemos este caso de Mato Grosso, que obteve uma repercussão enorme na Imprensa, pelo seu extremo de crueldade. Mas fora o aspecto de crueldade, o que se verifica, na verdade é um caso isolado, e em relação ao qual estão sendo tomadas providências. A insegurança que há, no tocante à preservação da vida humana, está atingindo o Brasil todo. Li outro dia, em um prestigioso jornal do Rio de Janeiro, como episódio que o cotidiano fez com que a noticia ocupasse espaço secundário – o que demonstra a falta de segurança em que vivemos – que alguns homens fortemente armados invadiram um botequim, de lá retiraram cinco rapazes, obrigando-os a deitarem-se na rua e os assassinaram com tiros na nuca. Execução absolutamente sumária. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 376 O noticiário do Rio mostra a extraordinária freqüência de atentados contra a vida humana, com fuzilamentos sumários, e não somente na chamada Baixada Fluminense. Casos assim surpreendem até pelo seu número e em muitos deles se verificam, também, requintes de crueldade. São muitos os cadáveres que são encontrados, depois de sumariamente executados, com marcas de torturas, freqüentemente com queimaduras de cigarros. Este caso de Mato Grosso, realmente, pela sua crueldade, chocou a Nação, talvez mais par se tratar de um linchamento. O episódio não despertaria tanto interesse, não fosse isso. De qualquer sorte, trata-se de um caso isolado, e é de ver que a intervenção da Polícia Federal – ainda que possa ter sido indevida – não poderia gerar a intervenção federal. Assim, Sr. Presidente, pedindo vênia aos que discordam desse entendimento, acompanho integralmente a decisão de V.Exa. sem deixar, contudo, de, ao final, dar, como já fizeram alguns dos que já votaram, uma palavra de encômios à atuação da Procuradoria-Geral da República, inclusive nesse caso, embora discordemos da solução procurada por S.Exa. É preciso que atitudes dessa natureza, como a do Sr. Procurador-Geral da República, sejam adotadas, para mais sensibilizar a Nação para o que está acontecendo nesta área. S.Exa., portanto, não tema qualquer crítica que possa ter havido com relação à sua representação. Ela só é digna de elogios. Meu voto é, assim, contrario a intervenção. VOTO PRELIMINAR O SR. MINISTRO MOREIRA ALVES: – Sr. Presidente, data venia da maioria que se formou, acompanho o eminente Ministro Celso de Mello, não conhecendo do pedido. VOTO MÉRITO O SR. MINISTRO MOREIRA ALVES: – Sr. Presidente, entendo que só em casos excepcionais – o que não ocorre – seria possível intervenção federal dessa natureza. Acompanho, pois, V. Exa., vencido na preliminar. VOTO (Sobre o Mérito) O SENHOR MINISTRO SYDNEY SANCHES: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 377 O episódio, de que tratam os autos, é, sem dúvida, estarrecedor e justificou a enorme repercussão alcançada na imprensa nacional e internacional. Trata-se, porém, de fato isolado, que não caracteriza permanente omissão da Administração do Estado de Mato Grosso em face do dever constitucional de preservar a observância dos direitos humanos no âmbito de sua jurisdição. Não me parece, então, o caso de se decretar a intervenção federal no Estado, para que se restaure a normalidade de tal preservação. Tanto mais porque o referido fato isolado está sendo objeto de apuração mediante inquérito policial, realizado por aquela unidade da federação. Se houver negligência na condução do inquérito, o Ministério Público estadual terá meios para provocar a jurisdição penal contra os agentes eventualmente omissos. Mas não parece ser essa a hipótese dos autos. E sua ocorrência também não há de ser presumida. Louvando, embora, o zelo do eminente Procurador Geral da República, acompanho o voto de V. Exa., Sr. Presidente e os dos Ministros que o seguiram. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 378 19- MANDADO DE SEGURANÇA Nº 21.041-9/RO Data da Decisão: 12/06/1991. Relator: Min. Celso de Mello. Tipo de Ação: Intervenção Federal. Modalidade de Jurisdição: Originária. Pólo Ativo: Governo do Estado de Rondônia. Pólo Passivo: Governador do Estado do Acre, Ministro da Justiça e Presidente da República. Órgão Judicante: Tribunal Pleno. EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA – DIVISA ENTRE OS ESTADOS DO ACRE E DE RONDÔNIA – PONTA DO ABUNà – ADCT/88, ART. 12, § 5º ATOS EMANADOS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, DO MINISTRO DA JUSTIÇA E DO GOVERNADOR DO ACRE – ATO COMPLEXO NÃO CONFIGURADO – COAÇÃO INEXISTENTE. MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA – AUTORIDADE NÃO SUJEITA À JURISDIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – INCOMPETÊNCIA DA CORTE – MANDADO DE SEGURANÇA NÃO CONHECIDO. PRESIDENTE DA REPÚBLICA – INTERVENÇÃO FEDERAL – PODER DISCRICIONÁRIO – OMISSÃO INEXISTENTE – “WRIT” DENEGADO. MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO POR ESTADO-MEMBRO EM FACE DE ATOS DO GOVERNSDOR DE OUTRA UNIDADE DA FEDERAÇÃO – COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – INTELIGÊNCIA DO ART. 102, I, “f”, da CONSTITUIÇÃO FEDERAL – “WRIT” CONHECIDO, MAS DENEGADO. - O instituto da intervenção federal, consagrado por todas as Constituições republicanas, representa um elemento fundamental na própria formulação da doutrina do federalismo, que dele não pode prescindir – inobstante a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 379 expecionalidade de sua aplicação -, para efeito de preservação da intangibilidade do vínculo federativo, da unidade do Estado Federal e da integridade territorial das unidades federadas. A invasão territorial de um Estado por outro constitui um dos pressupostos de admissibilidade da intervenção federal. O Presidente da República, nesse particular contexto, ao lançar mão da extraordinária prerrogativa que lhe defere a ordem constitucional, age mediante estrita avaliação discricionária da situação que se lhe apresenta, que se submete ao seu exclusivo juízo político, e que se revela, por isso mesmo, insuscetível de subordinação à vontade do Poder Judiciário, ou de qualquer outra instituição estatal. Inexistindo, desse modo, direito do Estado impetrante à decretação, pelo Chefe do Poder Executivo da União, de intervenção federal, não se pode inferir, da abstenção presidencial quanto à concretização dessa medida, qualquer situação de lesão jurídica passível de correção pela via do mandado de segurança. - Sendo, o Governador, a expressão visível da unidade orgânica do Estadomembro e depositário de sua representação institucional, os atos que pratique no desempenho de sua competência político-administrativa serão plenamente imputáveis à pessoa política que representa, de tal modo que o ajuizamento da ação de mandado de segurança, por outro Estado, contra decisões que tenha tomado, nessa qualidade, sobre traduzir uma clara situação de conflito federativo, configura, para os efeitos jurídico-processuais, causa para os fins previstos no art. 102, I, “f”, da Constituição. A Constituição da República, ao prever a competência Originária do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar “as causas e os conflitos” entre as entidades estatais integrantes da Federação (art. 102, I, “f”), utilizou expressão genérica, cuja latitude revela-se apta a abranger todo e qualquer procedimento judicial, especialmente aquele de jurisdição contenciosa, que tenha por objeto uma situação de litígio envolvendo, como sujeitos processuais, dentre outras pessoas públicas, dois ou mais Estados-membros, alcançada, com isso, a hipótese de mandado de segurança impetrado por Estado-membro em face de atos emanados de Governador de outra unidade da Federação. RELATÓRIO Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 380 O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – O Ministério Público Federal, em parecer da lavra da Dra. ODÍLIA FERREIDRA DA LUZ OLIVEIRA, Subprocuradora-Geral, assim resumiu a espécie (fls. 309/310), “verbis”; “O GOVERNO DO ESTADO DE RONDÔNIA impetra este mandado de segurança contra atos do Governo do Estado do Acre, do Ministro da Justiça e do Presidente da República. Historia o procedimento de fixação das divisas entre os Estados do Acre e de Rondônia, que culminou com a elaboração de laudo Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, ao qual se seguiu a aviventação dos marcos delimitadores, para cumprimento do disposto no art. 12, § 5º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Desenvolve, ainda, longa argumentação para demonstrar quais são essas divisas e afirma que o laudo do IBGE, como fruto de delegação feita pelos Estados interessados, é documento público, meio de prova indiscutível, tanto que foi homologado pelo legislador constituinte. Diz-se titular do direito líquido e certo de administrar o seu território, daí derivando a obrigação do Estado do Acre de observar as divisas entre ambos. São os seguintes, segundo o impetrante, os atos ilegais violadores de tal direito: a)Do Governador do Acre, a manutenção na área de autoridades acreanas, decorrente da omissão de acatar o laudo do IBGE; b)Do Ministro da Justiça, a determinação de enviar os autos de procedimento administrativo ao Procurador-Geral da República, para propositura de ação desconstitutiva do §5º do art. 12, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; c)Do Presidente da República, a omissão de decretar intervenção no Estado do Acre, com base no art. 34, inc. II, da Constituição da República. Por fim, formula os seguintes pedidos: a)que se determine ao Governador do Acre a retirada de todas as autoridades acreanas da área que integra o território de Rondônia; b)que ‘seja considerado arbitrário e sem juridicidade’ o despacho do Ministro da Justiça, já referido; Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 381 c)que se determine ao Presidente da República que assegure ao impetrante sua autonomia, inclusive por via de intervenção no Estado do Acre, se necessária.” A questão posta nos autos diz respeito, em última análise, às controvérsias existentes quanto à fixação da linha de divisas entre os Estados do Acre e de Rondônia, na região denominada Ponta do Abunã. Inobstante a Assembléia Nacional Constituinte tenha pretendido por termo às discussões em torno dos limites entre os Estados do Acre, Rondônia e Amazonas, editando a norma do art. 12, § 5º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, fato é que persistem as divergências, que, agora, se situam em torno do conteúdo da regra transitória, assim enunciada: “§ 5º Ficam reconhecidos e homologados os atuais limites do Estado do Acre com os Estados do Amazonas e de Rondônia, conforme levantamentos cartográficos e geodésicos realizados pela Comissão Tripartite integrada por representantes dos Estados e dos serviços técnico-especializados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.” A referida regra transitória é objeto, nesta Corte, das ações cíveis nº 414, ajuizada pela União Federal e nº 415, ajuizada pelo Estado do Acre, esta última precedida de ação cautelar inominada (Pet 409), em que s discute , precisamente, o domínio territorial sobre a Ponta do Abunã. Este mandado de segurança, portanto, constitui o quarto processo em trâmite neste Tribunal. Na impetração, o Estado de Rondônia invoca a mesma norma transitória para demonstrar o seu alegado direito líquido e certo de exercer o poder admnistrativo e jurisdicional na Ponta do Abunã. Para tanto, insurge-se contra a permanência de autoridades acreanas no local, determinada pelo Governador do Acre; contra o despacho do Ministro da Justiça que solicitou à Procuradoria-Geral da República a propositura de ação desconstitutiva do § 5º do art. 12 do ADCT; e, ainda, contra a omissão do Presidente da República em fazer cessar, mediante intervenção federal, a alegada invasão do Estado do Acre no que pretende seja território rondoniense. É o relatório. O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – Trata-se de mandado de segurança, impetrado contra as autoridades político-administrativas diversas – o Presidente da República, o Ministro da Justiça e o Governador do Estado do Acre -, e que se persegue tríplice objetivo: (1) o de compelir o Presidente da República a decretar intervenção federal no Estado do Acre; (2) o de invalidar o despacho do Ministro da Justiça que, ao encaminhar expediente à Procuradoria Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 382 Geral da República, neste solicitou que se propusesse, perante o Supremo Tribunal federal, ação desconstitutiva da regra inscrita no § 5º do art. 12 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988; (3) o de impor ao Governador do Acre a submissão do seu Estado às conclusões do laudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, datado de 25/11/87, alegadamente reconhecido e homologado pela Assembléia Nacional Constituinte na regra transitória referida. Não obstante a imprópria qualificação dos atos impugnados como integrantes de uma estrutura unitária complexa – o impetrante sustenta que os autônomos comportamentos administrativos das autoridades apontadas como coatora subsumem-se à noção de ato complexo – não vislumbro, na espécie, configurado esse perfil conceitual à luz da própria doutrina do ato complexo, que o define como expressão forma e última de pronunciamentos sucessivos e coalescentes, que convergem para formulação de uma única e final declaração de vontade estatal (CAIO TÁCITO, RDA 53/222; MIGUEL REALE “Revogação e Anulamento do Ato Administrativo”, p. 43/44, 2ª Ed., 1980, Forense; HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 148, 15ª Ed, 1990, RT; DIÓGENES GASPARINI, “Direito Administrativo”, p. 69, 1989, Saraiva). O que se verifica, no presente caso, são, na realidade, três comportamentos estatais heterogêneos e independentes entre si, que não se conexionam e nem interagem reciprocamente, conservando, cada qual, sua própria individualidade, sem que componham, por isso mesmo, qualquer procedimento unitário ou “iter” formativo vocacionado à final exteriorização de uma só vontade do Poder Público. Desse aspecto, teve clara percepção a douta Procuradoria geral da República, quando, ao repelir a pretendida caracterização de ato complexo – alegada, de resto, numa tentativa de legitimar a competência originária desta Corte para apreciar, conglobadamente, as condutas administrativas atribuídas a autoridades tão distintas – observou (fls. 311), “verbis”: “Como bem acentua o Estado do Acre este mandado de segurança contém na verdade, três pedidos autônomos e diferentes, dirigidos contra três autoridades públicas distintas. Há três ações, sem nenhuma conexão entre elas, pois tantos os réus quantos os pedidos são diversos. O impetrante afirma que se trata de ato complexo, mas não justifica. E nem poderia fazê-lo, porque aponta, repita-se, três atos independentes, que nem ao menos se inserem num mesmo procedimento. As pretensões são autônomas, dirigem-se contra diferentes sujeitos e não podem ser cumuladas e um mesmo mandado de segurança. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 383 Evidencia-se, ainda, a inexistência de litisconsórcio passivo necessário, porque nenhum vínculo liga os autores dos atos apontados nesta ação e nem os próprios atos. Injustificável e impossível, por isso, a unidade decisão.” Disso decorre, no que concerne ao ato atribuído ao Ministro da Justiça - mera solicitação ao Procurador Geral da República para adoção de determinada providência judicial -, que, ainda que reconhecida a possibilidade de sua impugnação por via mandamental, falece competência a esta corte para apreciá-la, eis que, no rol das atribuições constitucionais originárias deferidas ao Supremo Tribunal Federal, não se inclui o processo e julgamento de mandado de segurança contra ato de Ministro de Estado (CF art. 102, I, “d”). Por esta razão, não conheço da presente ação de mandado de segurança, na parte em que impugna ato emando do Ministro da Justiça. Conheço, no entanto, do “writ” nos pontos em que a sua impetração objetiva impugnar comportamentos atribuídos ao Governo do Estado do Acre e ao Presidente da República. Quanto ao chefe do Poder Executivo da União, a expressa regra de competência constitucional – art. 102, II, “d” – que legitima o controle de seus atos pelo Supremo Tribunal Federal, pela via do mandado de segurança. Dúvida, talvez, pudesse suscitar a questão da competência desta Corte para apreciar, originariamente, mandado de segurança impetrado por Estado membro contra ato de Governador de outra unidade da federação. Ao apreciar este, o Ministério Público Federal reputou incompetente esta Corte, argumentando que, por tratar-se de mandado de segurança ajuizado por um Estado (o de Rondônia) contra o Governador de outro (o do Acre), nele se acha caracterizada, para os fins do art. 102, I, “f”, do texto constitucional, situação de litígio entre Estados-membros da Federação. Não me parece assistir razão à douta Procuradoria Geral da República, pois entendo claramente configurada na espécie, uma situação de litigiosidade evidente entre duas unidades da federação, na medida em que esta causa foi instaurada por um Estado-membro em face de atos imputados ao Governador de outro Estado, que agiu, no exercício dos atos ora impugnados, no desempenho estrito de suas funções de Chefe do Poder Executivo local e representante político-administrativo da unidade da federação que dirige. Não se pode perder de perspectiva no plano de nossa organização federativa e da divisão funcional do poder, o magistério do saudoso Ministro OSWALDO TRIGUEIRO (“Direito Constitucional Estadual”, p. 179, item 95, 1980, Forense), para quem “O Governador desempenha as chamadas funções executivas ‘como head of the State, representando-o como um todo em sua capacidade Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 384 corporativa, bem como exercendo supervisão quanto à realização da política formulada e decretada pelo ramo legislativo do governo’. Essas funções abrangem a representação protocolar do Estado em suas relações com o Governo Federal e as outras unidades da Federação”. Sendo, o Governador, a expressão visível da unidade orgânica do Estadomembro e depositário de sua representação institucional – especialmente no que se refere às suas “relações jurídicas, políticas, administrativas e sociais” JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 528, 5ª Ed., 1989, RT) – os atos que pratique no desempenho de sua competência político-administrativas serão plenamente imputáveis à pessoa política que representa, de tal modo que o ajuizamento da ação de mandado de segurança, por outro Estado, contra decisões que tenha tomado, nessa qualidade, sabe traduzir uma clara situação de conflito federativo, configura, para os efeitos jurídico-processuais, causa para os fins previstos no art. 102, I, “f”, da Constituição. Não fosse assim, - e não se tivesse o Supremo Tribunal Federal como juízo natural desse conflito de interesses – impor-se-ia a submissão de um certo Estado-membro à jurisdição de outro, como na hipótese de mandado de segurança impetrado por uma unidade da Federação perante Tribunal de Justiça de outra, num inqualificável rompimento de igualdade político-jurídica que é corolário necessário do federalismo de equilíbrio institucionalizado, e sucessivamente reafirmado, por nosso constitucionalismo republicano. Não se pode desconhecer, a propósito da norma de competência inscrita no art. 102, I, “f”, da Constituição – que é, essencialmente, reprodução de preceito constante de todas as nossas Constituições federais – que a “ratio” a ela subjacente diz com a necessidade de outorgar a um órgão judiciário de dimensão nacional (o Supremo Tribunal Federal, enquanto Tribunal da Federação) a competência para dirimir controvérsias entre as unidades federadas, subtraindo-se, desse modo, caso prevalecessem as regras ordinárias de competência, à jurisdição doméstica de qualquer dos Estados interessados ou diretamente envolvidos no litígio. Esse aspecto da questão, que reflete um dos temas centrais as relações político-institucionais que se estabelecem no âmbito da federação, tem sido realçado pelo magistério doutrinário. Assim, MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (“Comentários à Constituição Brasileira”, p. 471/472, 5ª Ed., 1984, Saraiva), comentando a função desta Corte na solução de tais litígios, observa que “reponta aqui o papel do Supremo Tribunal Federal como órgão de equilíbrio do sistema federativo”, eis que – consoante adverte JOÃO BARBALHO (“Constituição Federal Brasileira – Comentários”, p. 237, 1902, Rio de Janeiro) – “as questões entre dois ou mais Estados não poderiam ser Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 385 decididas pela justiça de algum deles. Interessando o caso a mais de um e sendo todos iguais em categoria, com que direito ficaria a este ou àquele decidi-lo por seus tribunais? Cabe isso à União que superintende as relações interestaduais e muito bem se enquadra essa competência na jurisdição originária e privativa do Supremo Tribunal Federal, visto o caráter dos litigantes”. A Constituição da República, ao prever a competência originária do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar “as causa e os conflitos” entre as entidades estatais integrantes da federação (art. 102, I, “f”), utilizou expressão tão genérica cuja latitude revela-se apta a abranger todo e qualquer procedimento judicial, especialmente aquele de jurisdição contenciosa, que tenha por objeto uma situação de litígio envolvendo, como sujeitos processuais, dentre outras pessoas públicas, dois ou mais Estados-membros, alcançado com isso, a hipótese de mandado de segurança impetrado por Estado-membro em face de atos emanados do Governador de outra unidade da Federação. Não obstante assim caracterizada a competência originária desta Corte para a apreciação da presente causa mandamental, tenho que inexiste direito líquido e certo, tutelável na espécie. O exame dos autos revela que o Estado do Rondônia, ao impetrar o “writ”, objetivou solucionar, nesta via sumaríssima, um grave litígio territorial que mantêm, pendentes de resolução perante esta Corte, o Estado do Acre, em processos vários, de rito ordinário, em que se controverte, precisamente, sobre o próprio “thema decidendum”. Na realidade, três são os processos em trâmite nesse tribunal – ACOR 414, ajuizada pela União Federal contra os Estados de Rondônia, Acre e Amazonas; PET 409 (ação cautelar inominada, ajuizada pelo Estado do Acre contra Rondônia e Amazonas) e ACOR 415, que se lhe seguiu como ação principal, ajuizada entre as mesmas partes -, o que indica, até mesmo pelo protesto quanto à produção de provas, inclusive quanto a natureza pericial (levantamentos topográficos e geodésicos, dentre outros), a evidente iliquidez dos fatos motivadores do presente mandando segurança. Tanto que o Governado do Estado do Acre, ora impetrado, após historiar a evolução do litígio territorial, destacou que “...antes do ajuizamento desta impetração, três alternativas, ante a ameaça de invasão feita pelo Estado de Rondônia, se colocavam diante do Estado do Acre: a uma, utilizar-se de medida drástica e violenta consistente no pedido de intervenção federal; a duas, propor perante este egrégio Supremo Tribunal Federal, ação cautelar inominada visando a preservação de sua livre e autônoma administração e o poder jurisdicional que sobre a referida área de seu território, inequivocadamente detêm, como antecedente da ação de demarcação de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 386 parte dos limites definidos pelo referido art. 12, § 5º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; a três, solicitar a intermediação da União para uma solução amigável. A terceira hipótese – mediação da União para solução do conflito (da qual se esperavam resultados positivos quer em face da clareza da disposição constitucional, quer em face do nível das partes envolvidas) foi a inicialmente adotada e dela resultou o envio de tropas federais para região e a determinação do então Excelentíssimo Senhor Ministro da Justiça, DOUTOR OSCAR DIAS CORRÊA, ao IBGE, no sentido de que lançasse no solo a linha de divisas definida pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Ocorreu, todavia, que o IBGE entendeu de agir como juiz da questão, tendo por inócua a referida disposição do art. 12, § 5º, ao argumento de que não teria havido acordo entre as partes para a definição da linha de limites, quando, na verdade, a ausência do dito acordo foi exatamente o pressuposto da determinação da Assembléia Nacional Constituinte. Aliás, estranho seria se tendo havido acordo entre as partes quanto à fixação desses limites, viesse a Assembléia Nacional Constituinte dispor de modo diverso. Mas estranho ainda seria a Assembléia Nacional Constituinte dizer atuais as divisas homologadas se acaso estivesse se referindo à divisa original. É de se dizer, outrossim, que o IBGE teria razão de dizer inócua a disposição constitucional em apreço, com a mesma razão que o Estado de Goiás diria inócua a disposição constitucional que criou o Estado de Tocantins. Tendo por base esse enganado entendimento, o IBGE iniciou os trabalhos levantamento da denominada – linha Cunha Gomes –, que se constituía antigo limite jurídico (nunca de fato!) do território do Estado do Acre com Estados do Amazonas e Rondônia, negando-se a efetuar a demarcação linha fixada como limite pela Assembléia Nacional Constituinte. de do os da O Estado do Acre, inconformado, com justa razão, solicitou então ao Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado da Justiça que determinasse a pronta suspensão desse trabalho e que outro fosse iniciado nos termos do estabelecido pelo art. 12, § 5º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (fls 299/301 – itens 59 a 63).” As próprias conclusões dessa ilustre autoridade impetrada, que é o Governador do estado do Acre, no sentido de que “a porção territorial sobre que versa a impetração é território acreano” (fls. 305), e não rondoniense, como requer o Estado impetrante, cujo alegado direito é questionado até mesmo no plano de sua existência, uma vez que o limite do seu território não mais seria a linha geodésica “Beni-Javary”, induzem apenas a uma certeza: a da absoluta inidoneidade da via processual eleita. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 387 É preciso ter presente que o conceito de direito líquido e certo, para os fins da ação civil de mandado de segurança, não constitui noção redutível à categoria do direito material reclamado pelo impetrante do “writ”. Formulação conceitual do direito líquido e certo, que constitui requisito de cognoscibilidade da ação de mandado de segurança, encerra, por isso mesmo, no plano de nossa dogmática jurídica, uma nossa de conteúdo eminentemente processual. Insensurável, a respeito o magistério doutrinário de CELSO RIBEIRO BASTOS (“Do Mandado de Segurança”, p.15, 1978, Saraiva), segundo o qual “...direito líquido e certo é conceito de ordem processual, que exige a comprovação dos pressupostos fáticos da situação jurídico a preservar. Conseqüentemente, direito líquido e certo é “conditio sine qua non” do conhecimento do mandado de segurança, mas na é “conditio per quan” para a concessão da providência judicial. Dentro dessa perspectiva, precedentes judiciais dessa própria Cote (RE 79.257-BA, RTJ83/130; RE 80.444- PB, RTJ 83/855), de que foi relator o eminente Ministro SOARES MUÑOS, deixaram assinalado que o direito líquido e certo, apto a autorizar o ajuizamento da ação de mandado de segurança, é, tão somente, aquele que pertine a fatos incontroversos, constatáveis de plano, mediante prova literal inequívoca: “...direito líquido e certo é o que resulta de fato certo, e fato certo é aquele capaz de ser comprovado, de plano, por documento inequívoco” (RTJ 83/130). “o mandado de segurança labora em torno de fatos certos e como tais se entende aqueles cuja existência resulta de prova documental inequívoca...” (RTJ 83/8555). É por essa razão que a doutrina acentua a incomportabilidade de qualquer dilação probatória no âmbito desse “writ” constitucional, que supõe a produção liminar pelo impetrante, das provas préconstituídas destinadas a evidenciar a incontestabilidade do direito público subjetivo por ele titularizado. Por isso mesmo, adverte HELY LOPES MEIRELLES (“Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção e Habeas Data”, p. 14/15, 13ª Ed., 1989, RT), “As provas tendentes a demonstrar a iliquidez e certeza do direito podem ser de todas as modalidades admitidas em lei, desde que acompanhem a inicial (...). O que se exige é prova préconstituída das situações e fatos que embasam o direito invocado pelo impetrante”. Essa comprovação documental traduz, para os efeitos da ação mandamental, um dever jurídico que vincula o impetrante, sobre cuja atividade incide, de modo indeclinável, a exigência de satisfação dessa verdadeira obrigação processual, tanto que, desatendida, legitima o indeferimento liminar da petição inicial. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 388 Isto posto, indefiro a segurança no que ataca ato do Governador do Estado do Acre, observando, como já assinalado, que essa questão já está posta, perante esta própria Corte, em sede processual adequada, onde há ampla possibilidade de dilação probatória. Resta, finalmente, apreciar a postulação do Estado ora impetrante, que pretende seja determinado ao Presidente da República a adoção dos meios cabíveis, especialmente para a decretação da intervenção federal no Estado do Acre, para preservar a autonomia de Rondônia. Analisando esse pedido, manifestou-se a douta Procuradoria Geral da República no sentido da absoluta inadmissibilidade do “writ”, por falecer ao ora impetrante qualquer direito público subjetivo a decretação, pelo Presidente da República, de intervenção federal (fls. 312/313): “A inviabilidade da pretensão é evidente. A expedição das providências pedidas das quais o impetrante só especifica a intervenção no Estado do Acre, fundada no art. 34, inc. II, da Constituição, tem caráter nitidamente discricionário, porque baseada em critérios políticos e independe de solicitação ou provocação de outros órgãos ou Poderes do Estado. Se os motivos e o objeto da intervenção estão previstos em lei, é inegável que a conveniência e a oportunidade de sua decretação sujeitam-se ao livre exame do Chefe do Executivo e a controle exclusivamente político pelo legislativo (art. 36, § 1º da Constituição). Se ao Judiciário é vedado apreciar os critérios discricionários adotados pelo Presidente da República, com maior razão não lhe pode determinar que decrete a intervenção.” Entendo não assistir, também, nesse ponto, qualquer razão jurídica ao impetrante, que busca, na realidade, mediante inadequado procedimento judicial, constranger o Presidente da República a exercer uma prerrogativa que, no caso, situa-se, plenamente, nos domínios de sua vontade política e discricionária. O instituto da intervenção federal, consagrado por todas as Constituições Republicanas, representa um elemento fundamental na própria formulação da doutrina do federalismo, que dele não pode prescindir – inobstante a excepcionalidade de sua aplicação –, para efeito de preservação da intangibilidade do vínculo federativo, da unidade do Estado Federal e da integridade territorial das unidades federadas. A intervenção federal configura assim, expressivo elemento de estabilização da ordem normativa plasmada na Constituição da República. É dela indissociável a sua condição de instrumento de defesa dos postulados sobre os quais se estrutura, em nosso País, a ordem republicano-federativa. “O instituto da Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 389 intervenção federal" - adverte ERNESTO LEME (“A Intervenção Federal nos Estado”, p. 25, item n. 20, 2ª ed., 1930, RT) – “É (...) da essência do sistema federativo”. Sem esse mecanismo de ordem político-jurídica, que assegura a intangibilidade do pacto federal, assevera JOÃO BARBALHO, (Constituição Federal Brasileira – Comentários”, p. 31, 2ª ed., 1924, Rio de Janeiro, Briguiet e Cia. Editores), “ A União seria um nome vão. E as garantias e vantagens, que a Federação deve proporcionar aos Estados e ao povo, se reduziriam a simples miragem”. É também irrecusável o consenso doutrinário, fundado na necessidade de respeito ao próprio princípio federativo, sobre a excepcionalidade da intervenção federal, dado o caráter extremamente perturbador que assume qualquer interferência do Governo Federal nos assuntos regionais e na esfera dos autônomos interesses dos Estadosmembros (CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Brasileira”, p. 158, item n. 128, 3ª Ed., 1929, Globo; THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, “A Constituição Federal Comentada” vol. I/183, 3ª ed., 1956, Konfino; FÁVILA RIBEIRO, “A Intervenção Federal nos Estados”, p. 48, tese de concurso, 1960, Editora Jurídica, Fortaleza). Não se pode perder de perspectiva, por isso mesmo, a circunstância, de extremo relevo político-jurídico, de que a intervenção federal representa a própria negação, ainda que revestida de transitoriedade, da autonomia reconhecida aos Estados-membros pela Constituição. Essa autonomia, que de índole constitucional, configura um dos postulados fundamentais da organização político-jurídica de nosso sistema Federativo. O poder autônomo, que a ordem jurídico-constitucional atribuiu aos Estados-membros, traduz na significativa concreção de sua existência, um dos pressupostos conceituais inerentes à compreensão mesma do federalismo. Daí a estrita disciplina imposta pela Constituição ao instituto da intervenção federal, cujos pressupostos de admissibilidade foram por ela taxativamente enumerados, “Numerus clausus”, em obséquio ao princípio maior do equilíbrio federativo, em face do caráter de absoluta excepcionalidade de que se reveste o ato interventivo, em função de sua natureza mesma e de seus próprios efeitos jurídicos e conseqüências político-administrativos. Tal circunstância justifica, plenamente, a advertência constante do magistério doutrinário de PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967”, tomo 2/198, 1967, RT), para quem “a intervenção nos Estados-membros constitui, pelo menos, teoricamente, o ‘punctum dolens’ do Estado Federal”. A invasão territorial de um Estado por outro constitui um desses pressupostos de admissibilidade da intervenção federal (JOÃO BARBALHO, (Comentários à Constituição Federal Brasileira, p. 22, 1902, Rio de Janeiro; THEMISTOCLES B. CAVALCANTE, “A Constituição Federal Comentada, vol. 1/185, 3ª Ed., Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 390 1956, José Konfino; CARLOS MAXIMILIANO, “Cometários à Constituição Brasileira”, vol. 1/213, item 132, 5ª Ed., 1954, Freitas Bastos). O Presidente da República neste particular contexto, ao lançar mão da extraordinária prerrogativa que lhe defere a ordem constitucional, age mediante estreita avaliação discricionária da situação que se lhe apresenta, que se submete ao seu exclusivo juízo político, e que se revela, por isso mesmo, insuscetível de subordinação à vontade do Poder Judiciário, ou de qualquer outra instituição estatal. Daí, o magistério de SEABRA FAGUNDES (RDA 40/441-443), de RUY BARBOSA (“Comentários à Constituição Federal Brasileira”, vol. 1/152, coligidos por Homero Pires, 1932, Saraiva), e de PONTES DE MIRANDA(“Comentários à Constituição de 1967, com a emenda nº 1, de 1969”, tomo II/248, 2ª Ed., 1970, RT), que encontra respaldo, inclusive, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 119/939), acentuando que, nas hipóteses, como a presente de atuação discricionária do Presidente da República, não pode ele ser constrangido, nem mesmo por esta Corte, a decretar a intervenção federal, pois é ele – e não o Poder Judiciário - o juiz das circunstâncias, da oportunidade e da conveniência da efetivação dessa radical medida político-administrativo. Inexistindo, desse modo, direito do Estado impetrante à decretação, pelo Chefe do Poder Executivo da União, não se pode inferir, da abstenção presidencial quanto à concretização dessa medida, qualquer situação de lesão jurídica passível de correção pela via do mandado de segurança. Isto posto, denego a segurança. É o meu voto. VOTO O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Sr. Presidente, acompanho Sua Exa. o Ministro Relator. Também entendo que não cabe a esta Corte o julgamento do mandado de segurança no que impetrado contra ato do Ministro da Justiça. Por outro lado, não reconheço o concurso da primeira condição do mandado de segurança, que é o direito líquido e certo, interposto contra o ato do Governador do Estado do Acre, pelas razões salientadas por S. Exa. e tendo presente, principalmente, a necessidade de se partir para fase probatória. Inclusive, há ajuizada, nesta Corte, uma ação ordinária originária. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 391 Por último, em relação ao ato omissivo do Presidente da República, que seria a ausência de Decretação da intervenção, tenho-o, também, como ato discricionário. Portanto, acompanho S. Exa., o eminente Ministro Relator, denegando o mandado de segurança no tocante aos dois últimos tópicos, permitindo-me, no primeiro, ficar com a nomenclatura que adoto, que é a relativa à carência da demanda proposta. É o meu voto. VOTO O SENHOR MINISTRO PAULO BROSSARD: Senhor Presidente, tive ocasião de ir ao local em torno do qual os Estados do Acre e Rondônia litigam, não em juízo, mas de fato, cada qual pretendendo, como seu, o território. Sugeri a constituição de um juiz arbitral para dirimir, de uma vez, a controvérsia em torno de uma faixa relativamente pequena e de que nada justificava se perpetuasse. Um dos Estados chegou a votar uma lei, o Estado de Rondônia, chegou a votar lei autorizando o seu Governador a firmar o compromisso, de arbitramento, mas mesmo não fez o Estado do Acre. Mas isso foi antes da Constituição, quando ocupava o Ministério da Justiça. Sugeri ao Presidente da República, a remessa de uma força militar para a região a fim de evitar um possível conflito, que era, se não iminente, pelo menos possível. Nesse local, durante vários meses, permaneceu um contingente de exército exatamente para evitar o conflito. De modo que esta é uma questão que me é quase familiar, Sr.Presidente. Depois disso, felizmente, o constituinte enunciou no § 5º do art. 12 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, esta regra: “§ 5º. Ficam reconhecidos e homologados os atuais limites do Estado do Acre com os Estados do Amazonas e de Rondônia, conforme levantamento cartográficos e geodésicos realizados pela comissão tripartite integrada por representantes dos Estados e dos serviços técnico-especializados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.” Assim, deixou de haver um litígio propriamente dito, existe solução e esta foi dada pelo constituinte. Todo problema está, digamos assim, em verificar, no solo, qual é linha definida pelo laudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 392 Em verdade, o litígio deixou de existir por decisão soberana da Assembléia Constituinte. O que Estado de Rondônia pretende, no entanto, me parece difícil de ser atendido. Não se obriga o Presidente da República a decretar a intervenção federal por via de mandado de segurança. O Juiz, no caso, é o Presidente da República. É desses casos em que a participação dos outros poderes inexiste, a sua decisão é incondicionada. Há casos em que o Presidente decreta a intervenção, havendo solicitação. Há casos em que o Presidente decreta a intervenção havendo requisição. Há casos em que ele decreta intervenção incondicionadamente, servindo-se, apenas, do seu critério, do seu senso de responsabilidade, este é um deles; caso de invasão estrangeira no território nacional, é outro. De modo que, também como eminente Relator, excluo o primeiro pedido. Relativamente ao pedido que envolve um despacho do Ministério da Justiça, também me parece que foge a competência do Supremo Tribunal Federal conhecer do pedido, sem que isto importe em qualquer apreciação do merecimento desse pedido ou mesmo do despacho do ex Ministro da Justiça. Por derradeiro, Sr. Presidente, não me parece que caiba por via de mandado de segurança, impor ao Governador do Acre a submissão do seu Estado às conclusões do laudo, porque o mesmo independe da vontade dos Estados. O Laudo existe, é uma decisão nacional irrecorrível. Cabe ao Poder Executivo fazer com que ambos os Estados observem o que está consagrado no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, fazendo as gestões adequadas para esse fim. Acompanho inteiramente o voto do eminente Ministro Relator, que esclareceu as questões capitais que estão subjacentes nesta importante ação trazida por um Estado à apreciação do Supremo Tribunal Federal. VOTO O SENHOR MINISTRO CÉLIO BORJA: - Sr. Presidente, o douto voto, cientificamente exato, do Ministro Celso de Mello repele qualquer adendo. O Ministro já havia, aliás, assinalado essa circunstância. Portanto, apenas complementando o Relator pelo magnífico voto que proferiu, acompanho S. Exa. Denego a ordem.