O Diário de Minerva

Transcrição

O Diário de Minerva
O DIÁRIO DE MINERVA
AUTORA: CLEUZA BRANDÃO
(pseudômino de Cleuza Cubas Ribeiro Brandão)
SINOPSE
Tragicomédia que trata do drama de uma transexual feminina em busca de emprego. Em seu
pequeno apartamento, ela cria o seu próprio mundo de fantasias, vivendo uma dupla
personalidade: Hermes (corpo) e Minerva (alma). Além de Dr. X, um boneco de pano que se
transforma em seu psicanalista. Nesse mundo de fantasias, Hermes é seu melhor amigo, mas
os dois lutam pelo mesmo espaço. Quem sobreviverá?
PERSONAGENS
MINERVA: cerca de 40 anos de idade, extremamente vaidosa, delicada e amante de tudo o
que é místico. Ela se diz uma bruxa do bem. Seu temperamento é quase um distúrbio bipolar,
alternando momentos de grande entusiasmo com momentos de melancolia. Ainda sonha em
encontrar seu grande amor, quem sabe durante a uma viagem à Veneza. Mas para isto,
precisa juntar dinheiro e para juntar dinheiro, precisa de um emprego melhor. Então...
HERMES: melhor amigo de Minerva, foi criado para ser o seu oposto: organizado, forte, bem
sucedido. Mas no fundo, Hermes é apenas um pobre apaixonado, que ama Minerva em
silêncio e se sujeita a todas as suas vontades.
DR X: boneco de pano, que no mundo de Minerva se transforma em psicanalista. Ele é a voz
de sua consciência.
DURAÇÃO: 1:15
CENSURA RECOMANDADA: 12 anos
LOCALIZAÇÃO NO TEMPO: Contemporâneo
LUGAR: Brasil, centro de qualquer metrópole.
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I ATO
Quarto/sala de Minerva
CENÁRIO: ambiente que inspira conforto, aconchego e bom gosto na decoração. Muitos
objetos místicos. Destaques:
− mesinha de centro coberto por uma toalha de mesa de cetim roxo.
− caldeirão onde Minerva faz suas poções mágicas.
− Cama, sofá ou puff gigante
− Boneco de pano ou pelúcia gigante.
− Penteadeira com muitos produtos de beleza e acessórios
− Espelhos de tamanhos e formatos variados.
CENA I
Hermes
São 23:55 min do dia 31 de dezembro. O ano velho está para terminar e o Ano Novo se
aproxima. Fogos de artifício explodem em todas as direções. Hermes está sentado na sala,
de pijama. Em seu colo, o roupão rosa-choque de Minerva. Nas mãos, um bilhete de Minerva
e o seu diário. O Diário de Minerva.
HERMES
Aqui está tão frio sem você...
Como podes partir assim,
Deixando apenas este bilhete...
É tudo o que tens a dizer,
Depois de tudo o que vivemos juntos?
E este diário?
O que é que eu faço com ele, Minerva?
Eu nem sabia que tu tinhas.
Que ironia do destino.
Durante todos esses anos
Eu tentei descobrir teus segredos...
Não os segredos de magia,
Nunca quis ser feiticeiro.
Mas os teus segredos comuns,
Os corriqueiros...
Porque tu tinhas!
Ah, se tinhas!
Eu entenderia teus deslizes,
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Por mais volúveis que fossem.
(sorriso pálido) E agora, estão todos aqui,
Ao meu alcance...
Por que não me contastes tudo,
De tua própria boca?
Desses teus lábios tão doces...
Tinhas que manter segredos em um diário?
Segredos de mim, que sou parte de ti?
Poderia ter-me contado tudo em vida
E livrar-me de estar agora como o juiz dos teus atos
E nem estás aqui para defender-te!
Será um castigo?
Um castigo por ter me omitido
Nos teus momentos mais confusos
E por invejar-te em segredo?
Me perdoa...
Foi sem querer-te mal.
(grito de dor) Minerva!!!!!!!!!!
(lamento) Tinhas vergonha de mim, eu sei.
Não me levavas a lugar algum.
Será que escrevestes algo sobre mim?
(grito de dor) Ah, Mineeeeeervaaaaa!!
Me desculpa por estar chorando.
Me ensinastes a erguer a cabeça
Em qualquer situação.
E nunca deixar de sorrir...
E cá estou chorando
Diante de um presente teu,
Tão valioso... misterioso...
O Diário de Minerva!
(Veste o roupão por cima do pijama)
Mas é a saudade, me desculpa.
Às vezes não posso evitar.
É claro que, vindo de ti,
Este presente só pode trazer-me alegria.
A alegria de estar contigo novamente,
Em lembrança...
Um dia perguntei à Minerva o que mais a amedrontava
E ela disse sem titubear: “O tempo!”
Ela se dedicava tanto à beleza física...
Aquela que o tempo leva embora.
Ás vezes, fico pensando se existe no mundo
Mulher igual a ela,
Exatamente igual, sem tirar nem pôr.
Não um clone ou sósia.
Mas uma outra Minerva.
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Espalhafatosa, safada.
Tão sensível...
Poderosa!
Não só por ser uma bruxa,
DO BEM!
Mas poderosa na personalidade, na firmeza das decisões.
Ela sabia o que queria.
Ah, Minerva...
Poderia muito bem chamar-se Vênus,
A deusa da beleza.
Ou a sua versão grega, Afrodite!
Bela e audaciosa, sedutora, vulnerável...
É... às vezes Minerva era vulnerável...
Ou Ártemis, a caçadora!
Minerva sabia ir à caça
Mas a caça mesmo eu nunca vi! (risadas)
Ah!
Minerva mesmo.
Uma guerreira virgem.
Isso que ela era.
Virgem como azeite de oliva.
Suponho eu!
Ela sonhava com um príncipe encantado,
Casar-se um homem digno.
(volta-se para o diário)
Sabe-se lá o que tem neste diário!
Sinto até receio de abrir...
Sabe-se lá.
(observando o diário)
As páginas já estão amareladas pelo tempo.
Quero abrir, mas não consigo...
Ah, Minerva...
Minerva tinha feitiços para tudo,
Para o amor, para felicidade, para dinheiro...
Ela nunca me deixou tocar no livro de feitiços.
Porque somente os bruxos podem tocar!
Tu fostes uma bruxa do bem...
E não conseguistes fazer o bem a ti mesma!
A morte nunca é um bem...
Quando não vem de Deus!
Ah, Minerva, onde estás agora?
No paraíso?
Não, não...
Tu tinhas defeitos,
Pequeninos defeitos,
Mas eram defeitos.
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Às portas do purgatório, mas entre os justos?
Purificando tua alma
Para depois ser admitida na bem-aventurança?
Não, não...
Quem sabe no umbral...
Não é um lugar agradável
Mas o sofrimento será mais ameno.
Ah, meu Deus, tomastes a poção da morte!
Pecado imperdoável!
Podes ter ido direto para o inferno...
Lugar selvagem, cruel e amargo.
Arderás nas chamas do teu pecado mortal!
Oh, não desejo isto para ti!
Quem sabe consegue perdão...
Tu tinhas bom coração...
Irás para o purgatório, com certeza!
Mas pensando bem,
Tu nem acreditavas em céu ou inferno.
Os bruxos não aceitam esse conceito.
Irás curar teus karmas é na reencarnação!
Cuidarás da tua evolução aqui mesmo, na Terra!
Virás como homem?
Ou como mulher, novamente?
Em berço de ouro ou nascerás humildemente,
Para aprender outros valores?
Eu queria tanto estar aqui quando retornares...
Quem sabe até já reencarnaste, na forma de uma borboleta!
Não, de uma borboleta, não!
Uma butterfly!
(uma abelha aparece – som – e começa a incomodá-lo)
Sai abelha!
(muda de idéia) Não! Espere!
É você Minerva, em forma de abelha?
A procurar o mel de minha boca?
Não, não...
Tu nunca tocarias em meus lábios...
Pelo menos em vida.
E além do mais...
Tua morte foi muito recente.
E não se reencarna assim, de maneira tão rápida.
(sorri) Mas quem sabe!
Tratando-se de ti.
Tudo pode acontecer!
(finalmente resolve abrir o diário) Que letra linda...
(surpreso)Tu escrevestes isto?
Ora... isto não é segredo para mim!
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(suspiro de prazer) E eu me lembro de cada momento!
Por que eu sempre estava aqui,
Na hora em que tu acordavas...
(começa a ler o Diário)
“Acordo cedo, tipo sete da manhã,
Exceto quando é dia de malhação
E tenho que acordar às seis,
Prá estar na academia às seis e trinta. “
(luz vai apagando)
CENA II
Minerva
MINERVA
Ai... está tudo girando...
Que dor de cabeça extrema...
Que horas são? Cadê o relógio?
06 horas!
(Olha o relógio) Hora de levantar.
Sinto que estou descabelada...
Com olheiras... toda amarrotada...
Que nem meus lençóis.
Com uma diferença: os lençóis posso passar.
Já este belo rostinho...
Imagina.
Chapinha só no cabelo!
Ai, chega de conversa. Vou levantar!
(se joga na cama novamente)
Hum... eu acho que não...
Que preguiça gostosa...
É sempre bom levantar com o pé direito,
Já dizia minha avó.
Tem gente que não acredita em superstição.
Mas eu acredito.
Qual é o pé direito mesmo?
Eu não sou burra, sou canhota!
Todo canhoto confunde esquerda e direita, ok!
Direita e esquerda!
Preciso de um tempo pra pensar...
É bom dar uma bela espreguiçada antes de levantar! Ah.....
Acorda para a vida Minerva!
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Luz acende
Isto não é superstição.
É conselho do meu personal trainer!
Que nome chique!
(espreguiça) Ahhhhh...!!
Que dia é hoje mesmo?
Onde está meu calendário?
(olhando o calendário) Nossa, 31 de dezembro.
O ano está acabando!
Que lua teremos hoje?
Vejamos...
Tomara que seja lua cheia!
Vamos ver...
Lua cheia!! Teremos lua cheia!
Quando a lua cheia cai no último dia do ano,
Significa que o ano novo será cheio de momentos mágicos!
(pensativa) Momentos mágicos...
Já tive muitos!
E terei muitos no ano novo também!
E sabe porque?
Porque hoje teremos lua cheia!
Feliz Ano Novo, Minerva!!!
Por falar nisso, preciso comprar um vestido branco, pra ter paz.
E calcinha amarela, pra ter dinheiro.
Ai, porque sempre deixo tudo para última hora?
Pensando bem,
Vestidos brancos devem estar em liquidação!
Afinal,
Quem vai comprar vestido branco no último dia do ano?
É como comprar árvore de natal no dia 24 de dezembro!
Só eu, né?
(fogos de artifício começam a explodir lá fora)
Nossa, mal nasceu o dia e já soltam fogos...
(cantarolando) Adeus ano velho... feliz ano novo...
Ah! Não posso esquecer de comprar uma vela branca
Prá acender no primeiro degrau da escada!
Isto significa que estarei disposta a receber todas as luas do ano novo!
Pra quem não sabe, os primeiros dias de janeiro são poderosos...
Poderosos para rituais de novos começos.
Começo de um novo amor... por exemplo!
Um novo amor... (suspira)
Devemos servir nossas visitas com brownies.
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Bolos de chocolate com nozes, ok!
Engordam, mas são gostosos...
Fevereiro...
Fevereiro é o mês das fadas caseiras,
Mês de enfeitar os vasos de plantas com laços vermelhos,
Para proteger a casa durante o restante do ano.
Março é o mês do Deus Marte, da guerra.
É bom recolher água da chuva em potes
Para fazer encantamentos especiais.
E abril!!!
Este é o mês de Afrodite, minha deusa preferida!
Os amores nascidos no mês de abril são duradouros...
E calientes!
Oh, deuses do Olimpo, me ajudem a arranjar um namorado em abril!
Julho...
Em julho devemos dar maçãs aos Duendes dos bosques,
Em agradecimento aos 7 meses passados.
E também pra ter sorte na 2ª metade do ano!
Eu tive sorte o ano inteiro, não tenho do que me queixar!
Exceto com relação ao amor. E emprego.
Mas o ano ainda não acabou, né?
Outubro...
Ah, outubro...
O mais mágico dos meses.
A mãe Natureza transforma criaturas encantadas em formigas,
... para expiarem os humanos!
É bom espalhar pratinhos com açúcar pela casa.
Bem menina, chega de devaneios!
Hoje é dia de ação!!
Tenho que fazer uma lista
Com todos os desejos realizados neste ano.
E depois,
Vou plantar uma semente para cada desejo realizado
Para agradecer...
Isto é como pedir renovação da fé!
A minha lista vai ser enorme!
Mas hoje, hoje será o grande dia!
Hoje realizarei o maior de todos os meus sonhos!
Quer dizer, o maior de todos é encontrar meu grande amor...
Mas um novo emprego também é muito importante!
Porque através deste os outros virão!
Vou poder comprar um carro novo, roupas novas,
E juntar dinheiro pra minha viagem à Veneza.
É lá que eu vou encontrar meu grande amor...
Luz vai apagando.
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CENA III
Hermes
Retorna a luz em Hermes
HERMES
Naquele dia Minerva estava radiante.
Extremamente feliz!
Ah, ela adorava olhar-se no espelho.
Ou melhor, em cada um dos seus inúmeros espelhos.
O favorito era o marroquino.
Porque ela se via mais bonita nele!
Sabe-se lá por que!
Nem sei quando Minerva começou a colecionar espelhos.
São tantos os motivos para se começar uma coleção...
De qualquer forma, os colecionadores têm algo em comum:
O desejo de parar o tempo,
Ter peças em perfeito estado!
Impossível.
Uma peça pode estar aparentemente imaculada,
Porém basta prestar atenção,
E acaba-se encontrando algum vestígio de restauração...
Assim é com as coisas,
Assim é com as pessoas.
Eu acho que Minerva ainda não tinha nenhuma restauração.
Embora estivesse precisando...
Talvez um silicone aqui, outro ali.
Acho que a bunda ainda estava na validade.
Luz vai apagando.
CENA IV
Minerva
Iluminação total.
MINERVA
(se olha no espelho e leva um susto) Ai!! Que coisa feia!!
Este espelho está com defeito... só pode.
É antigo demais!
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Vamos ver este outro...
(susto) Não é possível!
Eu vejo rugas!
Só pode ser poeira!
Cadê meu limpador de espelhos?
(começa a procurar o espanador)
É impossível encontrar qualquer coisa no meio de toda esta bagunça!
O Hermes não tem ajudado em nada, ultimamente!
Aqui está!
(limpa o espelho)
Vejamos agora...
Não acredito...
Sou eu mesma?
Pareço uma bruxa!
Uma bruxa má!
Sim, porque somente as bruxas más são feias!
Mas eu sou uma bruxa do bem.
Será que estou virando uma bruxa má?
(grito) Minha bochecha!!!
Minha bochecha está caindo!!!!!
Oh, mãe natureza!
Envelheci do dia para a noite!
Ou melhor, da noite para o dia!
Estou me sentindo dez anos mais velha...
E minha bunda, meus peitos!!!
Ó, crueldade! Uma deusa jamais poderia envelhecer!
Doutoraa X, cadê doutoraa X?
(ajeita a boneca e começa a conversar com ela)
Bom dia doutoraa!
Como vai?
(respondendo a uma pergunta da doutora imaginária)
Eu?
Ah, hoje eu acordei mal...
Quer dizer, acordei muito bem.
Porque hoje é o último dia do ano e teremos lua cheia!
Mas depois que meus espelhos se manifestaram...
Acho que é a velhice, doutoraa...
Ela está chegando...
Sei que preciso conviver com a idéia de envelhecer,
Afinal de contas, apesar de ser uma deusa...
Estou entre os mortais!
Mas confesso: tenho medo!
Apesar de ainda ser tão jovem...
Sinto uma velhice precoce!
(respondendo a uma pergunta da doutora imaginária)
Não, não, doutora. Não é menopausa!
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Ainda não sinto o fogo subindo pelas pernas.
Pode ser uma simples questão de hormônios...
Alguma disfunção...
Algo que eu tenha comido,
Ou bebido...
A senhora sabe,
A velhice não tem nada a ver com a idade cronológica.
Já dizia minha avó.
Por falar em avó,
A senhora sabia, doutora,
Que mais de um quarto da população tem mais que 65 anos?
Sabia disso, doutora?
E que já não tem dentes?
Eu não quero ficar sem dentes.
Lembro da minha avó...
Todo dia de manhã aquela coisa estava lá,
Aquela perereca nadando num copinho com água.
(respondendo a uma pergunta da doutora imaginária)
Não, não era uma perereca de verdade!
Às vezes a senhora diz cada bobagem, sinceramente...
Imagine, só:
Meus dentes postiços nadando num copinho com água!
Ah, isto é patético...
Vou juntar dinheiro para o implante!
Dizem que uma pessoa está velha
Quando começa a arrastar os chinelos...
Eu ainda não arrasto chinelos...
Ah, doutora, estamos neste papo furado e o fato é:
EU TENHO MEDO DE ENVELHECER!
(irritada) Diz alguma coisa, doutora!
Eu aqui envelhecendo,
E a senhora aí, só ouvindo...
Não tem nada pra dizer num momento destes?
Se continuar calada, lhe jogo no caldeirão!
Faço picadinho e...
(com medo, a doutora imaginária reage e diz algo sobre a juventude)
O que?
Ah, juventude é estado de espírito?
É. Concordo com a senhora.
Como?
O segredo está na espontaneidade de uma alma ativa?
Sim, sim, eu também acho que velhice não é questão de tempo,
Mas de rigidez.
À medida que as pessoas tornam-se rígidas,
É sinal de que estão envelhecendo.
O que? Uma questão sócio-cultural?
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Ora, lá vem a senhora falando difícil!
Mas já que estamos falando em questão social,
E como estou envelhecendo...
A senhora não acha que preciso pensar na aposentadoria?
O que me diz?
Devo fazer um plano de previdência privada?
Engajar-me num trabalho voluntário,
Entrar para o clube da terceira idade?
(espanta-se com a observação da doutora imaginária)
O que? Ter netos?
(reflexiva) É... pensando bem...
Seria um privilégio desfrutar o crescimento de uma nova geração.
A geração Minerva II...
Nunca pensei nesta possibilidade.
Meu Zeus, quanto tempo me resta até a velhice?
Imagine, uma velha sem netos!
Preciso de um marido, urgente!
(reflete) Que loucura, eu aqui tão jovem,
Falando de velhice!
Nem fiz quarenta!
Ai, doutoraX, fala mais alguma coisa,
Às vezes a senhora é tão poética...
É... sabe que a senhora tem razão?
Fala mais, doutora, fala mais!
(espanta-se) O que á que tem a morte, doutora?
(repete o que ouviu da doutora) Esta é pior ainda que a velhice?
Ora, doutora, não me venha falar em morte!
Deusas não morrem!
Ora, eu lhe procuro para ouvir coisas boas,
Para levantar minha auto-estima,
E a senhora vem me falar de morte!
Tenha paciência!
Me diz algo de bom
(impaciente) Ou lhe faço de picadinho!
Lhe jogo no caldeirão e....
(a doutora imaginária reage rapidamente e pergunta: você sabe o que o repórter perguntou a
John Lenon?)
Ãh? O que foi que o repórter perguntou a John Lennon?
Ah, perguntou se ele não tinha medo de envelhecer
E ser esquecido pelos fãs.
Tá, e o que John Lennon respondeu?
(risadas) Ah, boa! Boa!
Ele disse:
"Não, porque nossos fãs também envelhecem"
Boa, boa!!
Este é o doutoraX que eu conheço!
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Faz-me rir! (risadas)
Agora vamos lá,
Me dê a receita da juventude!
Vamos lá doutora, abre o jogo!
Você jamais envelhece.
Está aí há anos e não criou uma ruguinha sequer!
(verificando os tecidos da boneca) Tem uns furinhos aqui, outros ali...
Um cheirinho de mofo... (tampa o nariz)
Mas de um modo geral, rugas não tem!
Qual o seu segredo, heim?
Se não falar eu... (se enfurece novamente e a doutora imaginária reage)
(repetindo o que a doutora imaginária falou)
Prática sexual constante?
É mesmo? Gostei, continua!
Quem faz sexo no mínimo três vezes por semana
Aparenta ter dez anos a menos?
Oh....
O que? Certo, qual é a regra número 01?
Ter orgasmos? Oh!!!.
Principalmente as mulheres?
É, realmente fico mais relaxada quando tenho orgasmos...
Concordo com a senhora.
Os hormônios são verdadeiros exércitos contra os radicais livres!
Quero ter orgasmos agora mesmo!
Quantos por dia, doutora? Quantos?
(silêncio)
Quantos, doutora?
Ficou muda novamente.
Ta pensando o que?
Não quero nada com a senhora não!
Pode ficar tranqüila!
(despertador toca – consulta finalizada)
Bem, acho que nosso tempo acabou.
De qualquer forma,
Sinto-me bem melhor agora.
Obrigada, fofa!
E não se preocupe.
A senhora não faz o meu tipo e eu não sou bi.
(volta para frente do espelho)
Orgasmos, orgasmos!
Preciso ter orgasmos...
Heis a razão de minha velhice precoce...
Meus orgasmos não tem sido de boa qualidade!
Não que eu esteja encalhada.
Ao contrário.
Sou assediada quase que diariamente!
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Mas eu não posso sair com qualquer um.
Sou uma deusa,
Meu homem tem que ser no mínimo herói
Ou príncipe...
(Olha o relógio) Pena que não há tempo para liberar hormônios agora,
Está quase na hora da entrevista de emprego.
A última que farei este ano.
Também, é o último dia do ano, né?
Mas desta vez vai dar tudo certo.
Eu sinto isto!
Ai, sinto a vibração....
Sinto tanto que chega a dar arrepios...
Ai, é quase como ter um orgasmo...
(se olha no espelho e nota os cabelos arrepiados) Cadê o laquê?
Cadê o laque?!!!
São Longuinho, cadê o laquê?
Faz eu achar que eu dou três pulinhos!
Deu certo!! Deu certo!
Achei!
Olha, São Longuinho, não posso pular muito senão a bunda cai!
É a lei da gravidade!!
Então, vou bem devagarinho...
Brigada São Longuinho! (olha prá bunda)
Brigada São Longuinho! (olha prá bunda)
Brigada São Longuinho! (olha prá bunda)
Hum...
Acho que pulei demais! (ajeita o silicone)
Luz vai apagando.
CENA V
Hermes
Retorna foco em Hermes.
HERMES
Morri de rir ao ler essas primeiras páginas,
Pois durante anos tive a sorte de testemunhar os rituais matutinos de Minerva.
Inclusive os rituais de bruxaria.
Ela tem um caldeirão!
E coisas estranhas também.
Mas inofensivas... Eu acho.
Asa de barata, perna de aranha, dente de morcego.
Antena de mariposa!
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Patinhas de bufus granulosus!!
Diga-se, sapo!
Mas no geral ela só usava as ervas aromáticas.
(risos) Ela era uma bruxa do bem.
Eu nunca conheci uma bruxa do mal.
Acho que nem existe...
Mas não custa nada respeitar...
No começo eu tinha medo.
Depois, vi que nem fazia efeito!
Eu acho...
Para mim, o que vale é o poder da mente!
Do pensamento positivo!
Até hoje não sei como nosso relacionamento começou
E muito menos como pôde durar tanto tempo...
Sinto-me orgulhoso por isso.
Apesar do stress...
Ela sempre me pedia opinião
Sobre essa ou aquela roupa que queria vestir.
Mas na maioria das vezes me ignorava,
As roupas ficavam no chão, para eu guardar depois.
Como se eu fosse um simples camareiro...
No início, eu me sentia um lixo!
Depois, nem me importava.
Era o jeito dela!
Tudo o que eu queria era estar com ela...
Sentia-me protegido.
Afinal, ela era uma deusa guerreira!
É certo que quase nunca usava a lança.
Acho que na verdade nunca usou.
No fundo, ela totalmente passiva!
Quer dizer, pacífica.
Faça amor, não faça a guerra.
Luz apagando.
CENA VI
Minerva
Retorna luz total. Telefone toca. Minerva procura o aparelho.
MINERVA
(finalmente encontra o telefone)
Luluca, minha sobrinha, o que houve?
Calma, calma, querida...
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Conta pra titia, mas conta devagar...
O que?
Ah, minha princezinha, você menstruou...
Não, não, escute... Calma...
Esta é apenas a primeira de 450 que ainda terá!
Não, não se assuste!
Escuta, escuta a titia...
Não, não! Pára de falar só um minutinho... Psiiiiiiii
(grita) Quieta!!!!!
Posso falar agora?
Veja os pontos positivos:
Já que menstruou, você poderá ser iniciada nos rituais de bruxaria e...
O quê?
Eu não menstruo mesmo e daí?
Eu sou uma bruxa e as bruxas controlam seus ciclos...
Eu resolvi que não vou menstruar e pronto, ora!
Eu tenho outras prioridades.
Quê?
Ah, você já menstrua há 02 anos?
Não é novidade?
Ah, sei... seu absorvente acabou e você tá sem grana.
Sua mãe não está em casa, a empregada não tem absorventes...
Ah...
Pois a titia Minerva também não tem, pois como eu disse antes,
Bruxas não mens... (interrompida)
Tudo bem.
Olha, eu tenho uma entrevista de emprego daqui a pouco e...
Não, não...
Escuta. Põe uma toalhinha. No tempo da minha avó...
(a sobrinha desliga)
Desligou!
Que mico!
As adolescentes de hoje não dão a menor bola pros nossos conselhos.
Já nascem sabendo tudo!
Quer saber?
Página virada!!
Hoje eu não posso me estressar!
(enquanto troca de roupa...)
Ah... com o salário que vou ganhar,
Vou poder fazer tanta coisa...
Quero conhecer Veneza, a cidade dos meus sonhos...
Ah, é tão romântico...
As gôndolas... violinista...
Meu grande amor...
Mas tudo vai depender do dia de hoje.
Pôxa, que roupa vou vestir?
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(Vai jogando as roupas no chão)
Este não. Nem este. Nem aquele ali...
Este vai deixar meus ombros mais largos do que já são!
Mulher tem que parecer delicada!
Não basta ser, tem que parecer!
Não sei onde estava com a cabeça quando comprei esta blusa!
Foi influência do Hermes.
Que mal gosto!
Será que visto saia?
Vejamos...
Acho que a calça jeans vai cair bem... Não, não vai não.
Uma bluzinha de seda estampadinha...
Dá um ar mais jovial!
Meia fina ¾ ...
Comprei na feira do Paraguai.
E quem precisa saber?
Cadê o Hermes?
Ele nunca está aqui na hora de arrumar a bagunça!
Às vezes eu acho que ele queria era ser como eu!
Pensa que eu nunca percebi?
Outro dia ele vestiu uma roupa minha.
Meu roupão rosa-choque.
Senti o cheiro dele.
Ele diz que me ama!
E pra dizer a verdade,
Eu também não sei viver sem ele....
Nem que eu quisesse,
Ele não desgruda de mim!
Sabe que eu já vi o Hermes nu?
(risadas) Oh, se vi!
Se ao menos ele me desse orgasmos...
Não existe relação a dois quando um não quer.
Somos amigos demais...
Almas gêmeas.
(se veste e vai para frente do espelho)
Droga, que pele ressecada!
Não tem hidratante que dê jeito.
Hora do pan-kake,
(Minerva se enche de cosméticos)
E batom! Que cor eu escolho?
Vermelho sedução?
Rosinha ternura? Cobre aceso?
É isso! Cobre aceso!
Pra combinar com a sombra – dourada!
(admira-se) Nossa, você está uma gata!
Parece ter menos de trinta!
17/33
Agora, vamos à sandália!
(escolhendo entre as diversas)
Ah, aqui está! Salto 15!
Vou passar de 1,70m. Talvez 1,72m!
Êta mulherão!
Como é difícil achar sandálias para os meus pezinhos...
Não que eles sejam grandes, não é isto.
Ai, o perfume!
De Paris!
Também comprei na feira do Paraguai.
Mas é de Paris.
Agora, um pequeno feitiço...
Prá dar sorte no dia de hoje...
(vai pra frente do caldeirão, folheia o livro dos feitiços)
Vejamos...
Feitiço prá neutralizar mau olhado...
Não sinto que vou precisar deste hoje.
Magia do amor eterno...
Poção das duas luas...
Ah! Aqui está!
Simpatia para novo emprego!
Não há mal algum em fazer esta simpatia.
Pois trabalhar é cumprir os desígnios que Deus determinou ao homem
Quando o expulsou do Paraíso.
Vejamos:
Copiar na contracapa da Carteira Profissional
O trecho da Bíblia de Gênesis 3,19:
"No suor do rosto comerás o teu pão,
até que tornes à terra,
porque dela foste formado:
porque és pó e ao pó retornarás.”
Sempre que for pedir um emprego
Ou antes de preencher uma ficha...”
(impaciente) Não, não, não!
Esta simpatia é muito longa e agora não tenho tempo!
Vamos ver, vamos ver...
Ah, o jogo do EU!
Este jogo é muito bom quando se tem algo importante a fazer.
Se eu não passar na entrevista de hoje, me mato!
(som de trovões – relâmpagos, trevas)
(com medo da ira dos deuses e demônios) Brincadeirinha...
Não me mato não...
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Não está mais aqui quem falou...
Onde está meu baralho?
(embaralhando as cartas)
São 60 cartas, cada qual tem uma dica.
Esse jogo não tem regras fixas.
O básico é ler atentamente as mensagens
E escolher um dos exercícios.
Vejamos...
(fecha os olhos e pega uma carta)
Esta! Vejamos.
(lendo o que diz o baralho)
“Tire parte de seu dia hoje para ficar só.
Procure fazer companhia a si mesma
Sem se utilizar de artifícios para se distrair.
Fique pensando,
Lembre-se das coisas que fez hoje ou ontem,
Nas pessoas que ama,
Faça uma massagem em seus pés,
Enfim, seja você mesmo o seu próprio entretenimento.
Descubra se você gosta de sua própria companhia.”
(tentando entender a mensagem da carta)
Ué... o que isto tem a ver com meu novo emprego?
Não entendi...
Ah, deixa pra lá.
Nem sempre as cartas estão certas.
Agora eu tenho que ir.
(tropeça na porta de saída)
Puts! Ai, meu pé!
Ah! É o meu potinho de terra...
Quase ía me esquecendo!
O Feitiço de Proteção da Terra
Hoje completa uma semana!
Deixa ver, deixa ver...
Hoje teremos lua cheia, certo?
Então vamos ao encantamento:
(segura o pote e recita as palavras mágicas)
Terra, criadora de toda a vida,
Recolhe em ti todo mal mandado.
Fertiliza os meus sonhos,
E os germina com teu manto sagrado.
E que assim seja,
E assim se faça!
(Solta o cabelo e sai)
FIM DO PRIMEIRO ATO
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SEGUNDO ATO
Local da entrevista de emprego.
CENÁRIO: Corredor com alguns bancos ou cadeiras.
CENA I
Minerva
Minerva e candidatas (imaginárias) esperam para serem chamadas para a entrevista.
MINERVA
(aborrecida)
Isto está parecendo INSS.
Lotadaço!
Emprego tá concorrido, né?
As outras candidatas que me desculpem,
Mas hoje é o meu dia!
(olhando para uma candidata) Bonito o sapato dela...
Mas não combina com o vestido.
E também não faz conjunto com a bolsa.
(observando o piso) Adoro piso azul.
Acho que vou tomar um chazinho...
(perguntando para uma candidata) Sabe se tem chazinho aqui?
Não?
Ah...
É até melhor.
Vai que dá gazes e eu peido lá dentro!
Já pensou?
Vão me reprovar na hora!
Sim, porque às vezes eu tenho revertério com chá.
Outro dia eu tomei um de florais e saí pra dar umas voltas.
Eu estava no elevador,
Lotadasso!
Só gente chique.
Exceto um moço mais simpleszinho.
Então aconteceu.
Vocês sabem...
Saiu fininho, sem fazer barulho,
Mas o cheiro....
Meu bem! Sai de baixo!
Eu fiquei na minha, claro.
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Todo mundo olhou pra quem?
Pro moço simpleszinho, claro! (risadas)
Teve uma moça que até desceu na primeira parada
Chingando o mal educado que fez aquilo.
Alguém grita da sala de entrevista – “Próximo!”
MINERVA
Sou eu!!!
Minerva entra na sala de entrevista e sai de cena.
TERCEIRO ATO
CENA I
Minerva
CENÁRIO: Casa de Minerva.
TEMPORALIDADE: Noite de 31 de dezembro
MINERVA
(bêbada, aos soluços, entra com uma garrafa de conhaque em baixo do braço)
Tudo bem...
Não era pra ser desta vez.
Também... eu nem gostei daquele lugar...
Detesto piso azul.
(aos prantos) Mentiiiiiiiira...
Eu adoro azul....
Meu coração está partido....
Eles olharam pra ficha,
Olharam pra mim,
Olharam pra ficha
Olharam pra mim...
O que é???
Não foram com a minha cara?
O que é que saiu errado desta vez?
Eu já encaminhei meu currículo pra milhões de empresas.
E sempre fui chamada pra entrevista
Porque meu currículo é bom!
Eu tenho até curso de operador de call center!
E toda vez era assim.
Eles olhavam pra mim
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E olhavam pro currículo,
Olhavam pra mim.
E olhavam pro currículo.
Depois perguntavam com cara de espanto:
Hermes?
Eu dizia: não, Minerva.
Pronto, a merda tava feita.
Nunca me ligaram!
Nem prá dizer que tinha sido reprovada!
E sabe o que eu descobri?
Que eu mandava o meu currículo
Mas colocava o nome do Hermes.
Sei lá por que!
Confusão da minha cabeça.
Às vezes o Hermes me deixa louca!
Mas desta vez eu fiz tudo certinho...
Foi o meu nome que eu coloquei no currículo.
(grita) O meu nome!!!!
(grita) Minerva!!!!!!!!!!!!!
MINEEEEEERVA!!!!
Merda!
Eles olharam pra mim
Olharam pro currículo
Depois pediram a identidade
Então teve um que deu uma risadinha.
Quase que eu mandei ele se f...
Claro,
Disseram que vão me ligar.
Merda!!!
Eu precisava tanto do emprego...
Ai, como sou infeliz....
(encara doutora X) Que é que tá olhando aí?
Esse olho arregalado...
Já que não fala nada,
Não precisava nem olhar!
(o telefone toca. Atende nervosa.) Que é!!!
O que?
O absorvente?
Não, (GRITA) EU NÃO USO ABSORVENTE!!!!
(bate o telefone) Só pode ser trote de moleque.
Prá curtir com a minha cara.
(o telefone toca novamente) EU JÁ DISSE QUE....
Hã?
Luluca?
Oh, minha princezinha...
Seu absorvente?
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Ah, é mesmo...
A toalhinha não deu certo?
Olha, você quer que eu... (a sobrinha interrompe)
Bêbada, eu? Oh, não...
Foi uma poção mágica que eu tomei e... (soluços)
Não, não desliga não...
(a sobrinha desliga o telefone)
Foda-se (soluços)
Doutora X!
Vamos voltar ao assunto!
Onde paramos mesmo?
Puta que o pariu, puta que o pariu!!!!!!
(chora)
Já sei!!!
Foi a foto! Foi a foto!
Eu estava ruiva na foto!
Foi por isto eles olharam a identidade
E olharam pra mim
E olharam pro currículo
E perguntaram meu nome duas vezes!
E duas vezes eu disse: MINERVA!
(encara a boneca) Múmia!
Tá sempre aí, parada...
Sou sua única cliente, não é?!
Confessa!
Eu devia cobrar aluguel de você.
Ainda bem que você não come, não bebe e não peida!
Vai um gole?
Nem pra isto serve.
A gente briga, mas gosto da senhora.
Posso te chamar de você?
Por falar nisso... (senta no colo da boneca)
Estou precisando de filhos, para ter netos... (soluços)
E de marido, naturalmente.
A senhora mora comigo há tantos anos...
Está mofando... eu sei.
Mas eu não me importo.
Tem certeza de que está viva?
(oferece bebida) Vai um gole aí?
Já pensou em liberar hormônios?
(a boneca não reage)
Esquece o que eu disse.
Vivemos uma solidão a dois, não é doutora?
A senhora não sente falta de uma companheira?
Irc! Tô bêbada.
Vou fazer uma poção pra curar ressaca!
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Tô num período tão cinza da minha vida.
Cadê o livro das bruxas?
Vamos ver, vamos ver...
Poção mágica prá curar ressaca!
Aqui!
“Capa de filé, caldo de mocotó,
Ressaca que não cura com água
Cura-se por si só...
Unha de morcego, asa de barata,
Cabeça de lagarta!”
(bebe a poção e corre para o banheiro)
(vômito) Ai, que alívio.
To fedendo. Vô pro banho.
Sai e volta ainda tonta, enrolada numa toalha.
Ai, assim está melhor!
O que é isto no meu dente?
Asa de barata, irc!
Hummmm, pensando bem... É crocante....
Não consigo esquecer o cara da risadinha.
Aquele puto!
Vou fazer uma mandinga prá ele....
(muda de idéia) Não!
Pode voltar prá mim.
Nunca se deve usar os poderes para o mal.
(depara-se com o espelho) Ai!!!!!!
Parece uma bruxa de tão feia!!!!
Uma bruxa má, claro.
Ai, como sou infeliz....
Assim não arranjo marido.
(joga-se no puf) Doutora...
Já que não consegui o emprego
Preciso pelo menos arranjar um marido.
(Dra. x parece perguntar algo)
O que? Hermes?
Não, não...
Convivo com ele por falta de opção.
Somos apenas amigos.
Mas sabe,
Às vezes penso que ele tem inveja de mim.
Porque eu sou uma deusa.
A senhora acha que eu devo voltar para o Olimpo, doutora?
Doutora, fala alguma coisa...
Doutora!!
Eu te contrato 24 horas por dia
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E a senhora não fala nada!
Estou tão carente....
Doutora...
Falta diálogo entre nós!
Sabia?
Não, não entre eu e o Hermes!!
É entre a senhora e eu, doutora!!!
(idéia)
Sabe o que é bom pra falta de diálogo?
Champanhe!
(lha o relógio)
Mas agora não.
Somente após as dez horas!
Pra dar sorte no relacionamento.
Ah, eu sei de tanta coisa...
(recaída) Eu precisava tanto aquele emprego...
Aquele puto da risadinha.
Foi ele! Foi ele que me reprovou!
De vez em quando ele olhava pros meus pés.
(idéia)
É isto!
O problema foi com os meus pés!
Eu sabia que não devia usar aquelas sandálias...
Elas deixam meus pés maiores do que realmente são...
Pensaram que eu fosse sapatão!
Doutora, a senhora acha que eu pareço sapatão?
Meus pés são tão grandes assim?
Doutora, fale alguma coisa!
Eu pareço mulher macho?
(a boneca parecer dizer algo...)
Ãh? O que disse seu amigo Aristófanes (soluços)?
Que a raça humana possui três gêneros?
Os duplamente machos,
As duplamente fêmeas
E os que são macho e fêmea ao mesmo tempo?
O que?
Conversar com meu corpo?
Não doutora, eu nunca conversei com meu corpo.
Claro que não!!!!... (soluços)
Sou duplamente fêmea!
Quê? A senhora acha que eu tenho uma a mais?
Aonde?
Nos meus pés?
Que é que é isso!
Que papo é esse?
Quer que eu leia novamente o baralho?
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Hum...
Tá bom.
Cadê o baralho?
(procura o baralho e faz a leitura da carta que pegou pela manhãr)
“Procure fazer companhia a si mesma
Descubra se você gosta de sua própria companhia...”
(reflete)
Não entendi.
Doutora,
A senhora acha que estes pés são mesmo desproporcionais?
Oh, Deuses do Olimpo!!!
Ninguém vai me querer!
Eu não vou conseguir casar!
(a boneca fala algo)
Como?
O amor verdadeiro não exige nada?
E também não pensa em nada?
Só quer a felicidade do ser amado. (sínica) Hum!
A senhora está fora da realidade, doutora!
Está precisando sair para o mundo.
O amor verdadeiro exige, sim!
E exige muito!!!
Fica feia e flácida pra ver?
Como?
(reflexiva) Bonita a sua frase...
“Só a alma pode e sabe amar
E nesse caso, o corpo nada importa”
Acha mesmo que um homem me amaria
Mesmo com estes enormes pés de macho?
Nem precisa responder.
(idéia) E se eu fizesse uma cirurgia de redesignação dos pés?
(a boneca diz alguma coisa)
A senhora não faria esse tipo de coisa?
Por que?
Porque a nova aparência poderia não agradar?
E além do mais é irreversível?
Melhor ainda!
A senhora conhece alguém que faria isto por mim?
Por favor, doutora!
Responda senão eu jogo a senhora pela jan...
(a boneca responde rapidamente)
Hospitais universitários ou públicos?
E somente para fins de pesquisa?
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Não importa!
É tudo o que eu quero!
Pés de fêmea!!
O que? Terei que mudar meus hábitos?
E comprar meias novas?
Sapatos Novos?
Bem, isto custaria uma fortuna...
Tenho mais de 100 pares de sapatos!
Mas eu gasto o que for preciso, doutora.
Tudo para ser feliz!
Vamos lá, me dê o nome do seu colega.
Ora, quem!!!
O Podólogo!
Mas enquanto não opero...
Se ao menos eu pudesse disfarçar esses pés enormes...
Posso procurar mulheres do meu tipo,
Saber como elas vivem,
Que modelo de sandália elas usam...
(irritada) O que????
Conhecer as vantagens de se ter pés grandes?
Que é isto?
E desde quando é vantagem para uma mulher ter pés grandes?
Como?
As assumidas não têm vergonha dos seus pé?
Sé me faltava esta!
Esqueça. Prefiro operar.
(irritada) Eu não quero esses pés, eu já disse!
Esta foi a causa da minha reprovação na entrevista.
Nome de mulher, foto de mulher, cara de mulher,
Pés de homem!
As cartas! Vou perguntar para as cartas!
Elas nunca mentem!
(a boneca fala algo)
O que?
Ora, você insiste nessa pergunta idiota!
Claro que eu nunca parei pra conversar com meu corpo!
Eu não sou maluca que nem você!
(o doutora insiste na pergunta. Minerva se irrita)
Naaaaaaaão!!!!!!!!
Eu nunca parei pra conversar com meu corpo!!!!!
Eu não quero conversar com meu corpo!
Posso estar bêbada. Maluca não!
Chega, Doutora, chega!! Pare com isto!
Você está me deixando loooouca!
(tapa os ouvidos) Chega, chega, chega!!!!
Eu não vou conversar com meu corpo!
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O que?
O que é que tem as minhas mãos, doutora?
Também são grandes?
(observa as mãos) E não é que são mesmo?
(vai para o espelho e observa o pescoço) Meu pescoço também parece mais largo...
Será uma revolta? Vocês estão crescendo de propósito?
(deixa-se) Venham, queridos membros, vamos nos harmonizar.
Quem sabe vocês voltam para o tamanho normal.
Oi, pezinhos, oi mãozinhas...
Tudo bem com vocês?
Como foi o dia hoje?
Estou conversando com meu corpo, está ouvindo Dra. X?
(depois de um tempo, descobre que tem um volume a mais nas entranhas...) O que é isto?
(levanta-se e corre para o espelho – abre o roupção. Grito de desespero)
Não!!!!!!!!!
O que é isto?????????????
Virei um monstro!!!!!!!!!
Eu estou me transformando!!!!!!!!
(Enrola-se na toalha e sai correndo. Abre a toalha na frente do Doutora X e mostra a
situação)
Doutora, socorro!!!!!!!!!!!!
O que é isto???
Uma verruga gigante???
Eu sei que bruxas têm verruga no nariz...
Mas nunca ouvi dizer que têm verruga na perereca!!!
E eu não sou uma bruxa má!!!
Será castigo dos deuses?
(tentando arrancar o pênis) Sai daqui, sai daqui!!!!
Estou em metamorfose!!!
Onde está a faca?
(volta pra frente do espelho... espanto)
Hermes...?
O que você está fazendo aqui?
Ai, meu Zeus!!!!
Estamos nos fundindo em um só corpo!
Hermes! Você usou o meu livro dos feitiços!
Este livro só pode ser usado por bruxos,
Você não está habilitado!
Veja só o que você fez!!!
Ai, eu te odeio!!!!!!
Eu vou te matar!!!
Tenho que revertes isto.
Onde está o livro dos feitiços?
(cai em prantos)
Seu idiota!
Cadê meu corpo????????????????????
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Onde foi que você colocou o meu corpo Hermes???
Está com você, não é?
Eu sei,
Você sempre me invejou.
Até vestia minhas roupas escondido.
Cadê você com meu corpo?
Cadê você?
(procura em todos os lugares, até de baixo da cama)
Qual foi o feitiço que você usou? Hein???
Fala Hermes!!!!!
(desespero) Eu quero sair daquiiiiiiiiiiiiii!!!
Este corpo, este corpo não me serve.
(grita) Ele é seu!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Não vai aparecer?
Então tá.
Eu furo o seu coro todinho e saio daqui!
Cadê a faca?
(pega uma faca e tenta apunhalar-se)
Não, não posso fazer isto...
Não posso estragar o corpo do Hermes....
Ele não fez por mal.
(tenta se olhar por dentro) Por acaso você está aqui dentro, Hermes?
(grita) Depois que eu sair daqui, mato!!!
Deixa pensar... deixa pensar...
Deve haver uma maneira de sair daqui sem te furar.
Já sei!
A porção da morte!
É isto...
Eu saio daqui, depois procuro meu corpo.
(pensando bem) E se eu não encontrar?
Ah! Prefiro a morte do que passar o resto da vida neste corpo horroroso.
Desculpa Hermes, mas é isto mesmo.
Mas per’aí.
Que lua é hoje?
Será que é um bom dia para morrer?
Cadê meu calendário?
(olhando o calendário) Lua cheia!
É mesmo!!
Hoje é o último dia do ano e teremos lua cheia.
Tenho que fazer a lista dos desejos realizados!
Cadê meu bloquinho?
(pega o bloco de anotações e a caneta e tenta se lembrar das realizações do ano)
Não estou conseguindo me lembrar...
Mas eu tenho certeza de realizei muitos desejos este ano...
Hum... (não consegue se lembrar)
Droga!
29/33
Como vou agradecer se não consigo me lembrar?
Vou começar de trás pra frente...
Vejamos, mês passado...
Hã...
Droga!
Não tente se enganar Minerva.
Você não realizou nada.
Também, que diferença faz?
Vou morrer mesmo.
Mas eu não posso reclamar desta vida, não.
Já tive meus dias de glória.
(Os olhos brilham, parecer sonhar...)
Já fui até Miss Primavera.
Foi quando eu comprei meu primeiro vestido de paetê.
Coloridíssimo!
Tinha uns 19 anos....
Pura flor do campo!
Naquela época eu já morava sozinha.
Meus pais me expulsaram de casa
Quando eu disse que era...
Uma deusa.
O vestido ainda está no armário.
As coisas boas da vida a gente tem que guardar.
(pega o vestido no baú)
Eu também usei pra a festa de 15 anos de Isadora...
Minha sobrinha.
Eu nunca tive uma festa de 15 anos.
E também nunca tive um namorado.
Sou virgem.
Tudo culpa do Hermes
Eu sei que ele me ama secretamente
E espanta meus pretendentes.
Mas eu vou deixar meu AP pra ele.
Não tenho pra quem deixar mesmo.
Pros meus pais mortais não.
Já que eles me expulsaram de casa.
Será que o Hermes vai chorar muito?
Será que vai chorar muito por muito tempo?
Dizem que homem não chora.
E logo ele arranja logo outra.
(risos) Ou outro.
(chora)
Chega!!!
Cadê meu livro de feitiços?
Vamos ver, vamos ver...
Poção da morte!
30/33
Efeitos de luz e som: os deuses das trevas alertam para o grande pecado – o suicídio.
Não tenho medo!
Vou desta para melhor!
Vou voltar pro Olimpo!
Que é o meu lugar!
Eu sou uma deusa entre os mortais.
Podem gritar, seres das trevas, podem gritar!
Efeitos de luz e som: o ano novo está para acontecer, os fogos de artifício se intensificam.
O que é agora?
(no caldeirão)
Rabo de papagaio magro
Perna de galinha manca
Gelatina branca e agulha de apucuntura.
Penas de pomba branca, pura criatura...
(reflete) Pura criatura...
Acho que minha vida não teve pecados
Só os pecadinhos normais
Como os de todo mundo...
Usei poderes mágicos
Mas somente para o bem...
Ou para me proteger do mal olhado, da inveja, do olho gordo...
Efeitos de luz e som: o ano novo está para acontecer, os fogos de artifício se intensificam.
(continua no caldeirão)
Rabo de lagartixa, lama do Brejo Seco,
Mijo de sapo cururu, bico de urubu...
(experimenta a poção)
Herrr, está horrível.
Cadê a wodka....?
Um pouco de conhaque....
(prova novamente) Hum... agora está melhor.
Efeitos de luz e som: o ano novo está para acontecer, os fogos de artifício se intensificam.
Vou beber.
(pára tudo) Epa!
Não posso morrer sem fazer a última leitura do jogo das cartas!
E vai que as cartas me dão um conselho melhor?
(puxa uma carta) Vamos ver...
(faz a leitura da carta)
Procure momentos mágicos em sua vida
31/33
O poeta já disse, "nem sempre se vê mágica no absurdo".
(reflete) Hermes...
Quando eu estiver no Olimpo,
Vou olhar por você, tá?
Ah, e não vai esquecer das luas!
Eu vou escrever no diário...
Pra você fazer tudo certinho.
Cadê minha caneta?
(vai escrevendo e lendo em voz alta)
A primeira lua cheia do ano deve ser comemorada.
Acenda uma vela branca no 1º degrau da escada.
Pra mostrar que você está disposto a receber todas as luas do ano.
E se o último dia for de lua cheia,
Prepare-se!
Pois vem por aí um ano cheio!
Cheio de momentos mágicos.
Bem...
Adeus Hermes!
E me perdoe por qualquer coisa...
(termina de escrever e leva o copo à boca, mas algo parece puxar seu braço para impedi-la)
Solta minha mão!
É você, Hermes?
Está invisível?
Me dá minha poção!
Não!!! Não!!! Solta!!!
Me dá isto aqui!
A poção é minha!!!!
(consegue se soltar) Última chance: onde está meu corpo?
Não vai falar?
Minerva Tenta novamente tomar a poção e Hermes tenta impedi-la. Em meio ao tumulto,
enfim consegue e cai na cama agonizante. Efeitos de luz e som: seres das trevas gritam.
Minutos de silêncio.
(somente a voz de Minerva)
A primeira lua cheia do ano deve ser comemorada.
Acenda uma vela branca no 1º degrau da escada.
Pra mostrar que você está disposto a receber todas as luas do ano.
E se o último dia for de lua cheia,
Prepare-se!
Pois vem por aí um ano cheio!
Cheio de momentos mágicos.
Efeitos de luz e som: o ano novo explode em fogos de artifício. Da janela, surge uma enorme
lua cheia.
32/33
II ATO
Quarto/sala de Minerva
CENA I
Hermes
Meia-noite, Ano Novo. Fogos de artifício explodem em todas as direções. Hermes está
sentado, tendo em seu colo o roupão rosa-choque de Minerva. Nas mãos, um bilhete o diário
de Minerva.
HERMES
Aqui está tão frio sem você...
BLACKOUT. HERMES SAI DO PALCO.
CENA II
Minerva
MÚSICA PULSANTE.
MINERVA APARECE FELIZ E RADIANTE, ENTRE AS NUVENS (FUMAÇA), VESTIDA COM SEU
ROUPÃO ROSA CHOQUE, CAPACETE E A LANÇA DA DEUSA MINERVA.
FIM
33/33