DOSSIÊ
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DOSSIÊ
Dossiê Oriente Médio Um novo e imenso Vietna~ para o imperialismo Azerbaijão Uzbequistão Turquia Líbano Jordânia Turcomenistão Síria Iraque Irã Afeganistão Israel Paquistão bernardo cerdeira ediTor de MarxisMo vivo Arábia Saudita O Dossiê deste número de Marxismo Vivo está dedicado a uma vasta região do planeta que é o Oriente Médio, que vive uma aguda situação da luta de classes. O tema não poderia ser mais atual, e abordá-lo exige explicar alguns dos principais aspectos da situação mundial: a derrota da ofensiva Bush, a política atual do imperialismo, o governo Obama, o fundamentalismo islâmico e outros. Em 2009, ano pródigo em datas históricas do calendário revolucionário (60 anos da revolução chinesa, 50 anos da revolução cubana e 30 anos da nicaraguense), também se comemoram trinta anos da revolução iraniana que em janeiro de 1979 derrubou a ditadura do Xá Reza Pahlevi. Em dezembro daquele mesmo ano, pouco depois da revolução, a União Soviética invadiu o Afeganistão. Em setembro de 1980, o Iraque, armado e incentivado pelos Estados Unidos, declarou guerra ao Irã. Estes três acontecimentos, estreitamente ligados entre si, continuam a marcar a situação no Oriente Médio até os dias de hoje. A situação política e militar da região é o centro dos problemas e das preocupações atuais do imperialismo americano no mundo. Os Estados Unidos continuam lutando duas guerras ao mesmo tempo. No Afeganistão, o governo de Barack Obama vive o dilema de incrementar a escalada militar, ou correr o risco de perder a guerra para o Talibã. Enquanto isso, a situação militar piora a cada dia. Além disso, a guerra atravessou a fronteira do Afeganistão com o Paquistão, quando o Talibã estendeu sua organização para aquele país. Não há dúvidas de que a guerra vem provocando a desestabilização da situação interna do Paquistão. Por outro lado, a guerra do Iraque não terminou. Os recentes atentados 34 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê ao ministério da Justiça em plena Zona Verde, a mais protegida da capital, mataram mais de 100 pessoas e são uma amostra viva da instabilidade do país. Os soldados norte-americanos continuam ocupando o Iraque e, mesmo que não patrulhem mais as cidades e que uma boa parte se retire em 2010, deixarão como “garantia” 50 mil soldados aquartelados em grandes bases militares. E isso só para falar nos três países polarizados pela guerra. Mas a luta de classes na região não para por aí. A questão palestina também não sai de cena. Israel, um agente direto do imperialismo americano, atacou a Faixa de Gaza em 2008 e o Líbano em 2006, de onde saiu derrotado pelo Hezbollah. Por outro lado, relacionado com a situação em todos estes países, intensifica-se dia a dia a pressão americana contra o Irã, um país relativamente independente das ordens de Washington e que ameaça produzir armas nucleares. A importância do Oriente Médio para o imperialismo A região que chamamos de Oriente Médio na verdade é tão vasta que se compõe de diferentes sub-regiões que vão desde o Norte da África e a margem leste do Mediterrâneo até a fronteira do Paquistão com a Índia, em seu extremo oeste e a Ásia Central até a fronteira da União Soviética. O próprio imperialismo cunhou a expressão Grande Oriente Médio, hoje utilizada pelo G-8 e que abarca toda esta extensão. Podemos dividir o Oriente Médio em 4 regiões. O Magreb (norte da África): Egito, Líbia, Sudão, Tunísia, Argélia, Marrocos e Saara Ocidental. O chamado Crescente Fértil (ou Oriente Próximo, se a Turquia for considerada) composto por Síria, Líbano, Iraque, Palestina, Israel e Jordânia. A Península Arábica: Arábia Saudita, Iêmen, Bahrein, Omã, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Kuwait. O Oriente Médio propriamente dito: Irã, Afeganistão, Paquistão e as antigas Repúblicas do Sul da ex-URSS, hoje países independentes: Turcomenistão, Cazaquistão, Tajiquistão, Uzbequistão e Quirquistão. Historicamente os países do Oriente Médio foram parte do império do Islã e mantêm influências culturais e religiosas entre si, sendo em sua maioria países islâmicos. Politicamente, a região tem sido o centro das preocupações, das agressões militares e também de derrotas do imperialismo norte-americano pelo menos nestas últimas três décadas. A atual prioridade do Oriente Médio na ação contrarrevolucionária do imperialismo é evidente tanto em termos militares quanto políticos e diplomáticos. Esta é a parte do planeta que concentra o maior deslocamento de tropas norte americanas, aproximadamente 50% dos cerca de 350 mil soldados norte-americanos em atividade no estrangeiro. Por fim, a prioridade diplomática fica clara com o recente número de enviados especiais do governo Obama e da secretária de Estado Hillary Clinton à região. A preocupação do imperialismo americano não é casual. Esta é a parte do mundo que concentra 60% das reservas conhecidas do petróleo do planeta. O imperialismo não só necessita controlar o acesso e a garantia de saque do petróleo, como também a possibilidade de transportá-lo em forma segura até os locais de refino e consumo. Além disso, esta é uma região estratégica que tem fronteiras e laços étnicos e culturais com três dos maiores países do mundo. Calcula-se que existam Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 35 Dossiê entre 15 a 20 milhões de muçulmanos dentro das atuais fronteiras da Rússia, sem contar os laços econômicos e culturais com os países da Ásia Central que faziam parte da ex-URSS. Na China - que tem cerca de 105 milhões de habitantes pertencentes a 56 etnias minoritárias oprimidas pelo governo da maioria han - existem várias nacionalidades muçulmanas como os cazaques, uigures e mongóis. E, finalmente, a Índia tem uma “minoria” de 165 milhões de muçulmanos e uma disputa de décadas com o Paquistão pelo controle da Caxemira, região de maioria muçulmana reivindicada pelo país vizinho. Mas o problema fundamental para o imperialismo é que, como fruto destes problemas estruturais e também da exploração e agressões imperialistas, esta região tem sido o centro da resistência revolucionária das massas, o centro da luta de classes no mundo, pelo menos nas últimas três décadas. Uma guerra permanente do imperialismo contra o Islã A partir do fim da Segunda Guerra Mundial – quando se tornou a potência dominante no mundo, superando a hegemonia dos imperialismos inglês e francês no Oriente Médio – os Estados Unidos vêm travando uma guerra permanente contra o mundo islâmico para saquear suas riquezas, principalmente o petróleo. Um marco nesta guerra foi a criação do Estado de Israel em 1948, um enclave de população européia e um verdadeiro “porta-aviões” ancorado no Oriente Médio, armado e financiado pelos EUA. Sua função é a de reprimir a resistência dos povos e atacar e invadir países islâmicos que tentem rebelarse contra a exploração e romper o jugo do imperialismo. A maior de suas agressões é, sem dúvida, a expulsão dos palestinos de suas terras e a ocupação, colonização e selvagem repressão sobre os territórios de Gaza e Cisjordânia ocupados desde 1967 e hoje transformados em verdadeiros guetos para mais de 3,5 milhões de habitantes. A criação do Estado de Israel significou uma grande derrota para os povos islâmicos. Não é casual que os árabes refiram-se a este acontecimento como a Naqba, ou a Desgraça. No entanto, contraditoriamente, as monstruosas ações e a própria existência do Estado de Israel, geraram uma resistência permanente dos povos árabes. Esta luta foi encabeçada, nas décadas de 50 e 60, pelo nacionalismo pan-árabe (cujo máximo expoente foi Nasser, presidente do Egito) que dominou a maioria dos países da região, principalmente Síria, Iraque, Líbia e Argélia. Mas o nacionalismo pan-árabe entrou em decadência depois de sucessivas derrotas e capitulações diante de Israel e, a partir do fim dos anos 60 até meados dos anos 80, uma variante deste nacionalismo, representado pela OLP de Yasser Arafat e uma guerrilha palestina muito progressista, tornouse a maior referência da resistência anti-imperialista. Atualmente, a maior expressão desta luta contra Israel são o Hezbollah no Líbano e o Hamas nos territórios palestinos ocupados. Um marco: a Revolução de 1979 no Irã Esta luta de resistência dos povos islâmicos teve um marco em 1979: a revolução iraniana que derrubou a sangrenta ditadura do Xá Reza Pahlevi. A revolução desencadeou uma série de novas forças na região. Por um lado, 36 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê enfraqueceu o imperialismo americano e seu agente Israel, por outro, criou um país relativamente independente que hoje influencia vários outros, do Iraque, através dos xiitas, até o Líbano, por meio do Hezbollah e Gaza, onde atua o Hamas. No entanto, a revolução iraniana foi marcada desde o seu início por uma contradição: uma direção nacionalista burguesa, mas de ideologia religiosa islâmica, composta por uma burocracia de clérigos muçulmanos, os aiatolás. Esta burocracia assumiu o poder e transformou o Irã numa república islâmica, que apesar de manter uma relativa independência do imperialismo, assumia características extremamente reacionárias e repressivas em relação aos trabalhadores, às mulheres e às minorias nacionais. Em pouco tempo, o regime dos aiatolás reprimiu o movimento de massas no Irã e prendeu e assassinou milhares de ativistas operários e oposicionistas em geral. A revolução iraniana marcou a ascensão de um novo movimento nacionalista no Oriente Médio: o fundamentalismo islâmico. Este se aproveitou da decadência do velho nacionalismo laico pan-árabe de Nasser, da OLP de Yasser Arafat e do partido Baas que governava o Iraque e governa até hoje a Síria. No entanto, a força da revolução iraniana e a relativa independência do país provocaram a reação imediata do imperialismo americano que armou, financiou e estimulou o Iraque governado por Sadam Hussein a atacar o Irã, levando a uma guerra de oito anos de duração entre os dois países. A invasão soviética do Afeganistão Entre suas muitas repercussões, a revolução iraniana também foi um dos fatores fundamentais para provocar a invasão do Afeganistão pela ex-União Soviética. A burocracia stalinista, que governava este último país, apavorou-se com a possibilidade de que a revolução islâmica se estendesse ao Afeganistão e daí às repúblicas da Ásia Central, que naquela época faziam parte da URSS, constituindo sua fronteira sul. Este foi um dos motivos fundamentais da invasão da URSS ao Afeganistão em fins de 1979, colocando um governo títere à frente do país. O exército soviético teve de enfrentar a resistência armada dos mujaheddines, os chamados “guerreiros da liberdade”, que começaram como uma guerrilha que lutava contra o invasor, mas depois passaram a ser armados e controlados pelo imperialismo americano. Milhares de combatentes muçulmanos de vários países foram combater no Afeganistão, entre eles Osama Bin Laden. Outros atores principais da guerrilha foram os “senhores da guerra”, oligarcas que dirigem as principais nacionalidades do país. A URSS foi finalmente derrotada e retirou-se do país em 1989. A guerrilha islâmica tomou o poder, mas, em seguida, os grupos se dividiram, passaram a se enfrentar e o país mergulhou na guerra civil. O Afeganistão foi chamado com razão de “o Vietnã da URSS”, pela semelhança com a longa guerra e a derrota militar e política dos Estados Unidos no Extremo Oriente. Certamente, o desgaste da guerra e a derrota do exército soviético ajudaram a enfraquecer a União Soviética e aceleraram a decisão da burocracia de restaurar o capitalismo no país. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 37 Dossiê A ofensiva imperialista e a ocupação militar do Iraque e Afeganistão Durante os quinze anos que se seguiram à sua derrota militar no Vietnã em 1975, o imperialismo americano tentou retomar a ofensiva contra os trabalhadores e os povos explorados de todo o mundo. A restauração do capitalismo na ex-URSS, na China e em todos os ex-estados operários burocráticos abriu a possibilidade de concretizar esta contraofensiva. A primeira grande oportunidade apresentou-se no Oriente Médio em 1991com a Guerra do Golfo. Sadam Hussein, que havia atuado como um agente dos Estados Unidos contra o Irã na guerra Irã-Iraque, invadiu o Kuwait esperando que a reação do imperialismo não chegasse à guerra. Mas os Estados Unidos não podiam permitir que a situação saísse de controle, principalmente por se tratar de um país, o Kuwait, detentor da quarta maior reserva conhecida de petróleo do mundo. Os EUA organizaram uma coalizão de todos os países imperialistas, que contou com o apoio da ex-URSS, e derrotaram o Iraque, iniciando doze anos de bloqueio econômico e militar ao país. A década de 90 caracterizou-se por uma ofensiva recolonizadora do imperialismo em todo o mundo, que culminou na tentativa do governo de George W. Bush, Dick Cheney, Donald Rumsfel, Paul Wolfewitz e outros de impor um “século americano” de domínio mundial. A doutrina que dava base a este projeto fundava-se no suposto direito de intervenção militar dos Estados Unidos, inclusive de forma preventiva, em qualquer país que representasse uma “ameaça” aos interesses americanos. Ou seja, o objetivo era impor uma espécie de regime bonapartista mundial. A oportunidade para executar este plano surgiu com os atentados de 11 de setembro de 2001, pois deram ao governo Bush um pretexto para desatar uma “guerra contra o terror”, que na verdade disfarçava uma “guerra contra os povos”. As maiores expressões da ofensiva militar de Bush foram as invasões e ocupações militares do Afeganistão e do Iraque. Em outubro de 2001, usando como pretexto que o governo do Talibã abrigava Osama Bin Laden, Bush ordenou a invasão do Afeganistão. Finalmente, em março de 2003, Bush invadiu o Iraque, acusando o governo de Sadam Hussein de deter armas de destruição em massa a partir de provas forjadas. Desde então, 128 mil soldados americanos se mantêm no Iraque e 68 mil no Afeganistão (de um total de cerca de 100 mil soldados da OTAN). As invasões do Afeganistão e, principalmente, do Iraque representaram uma tremenda derrota para os povos islâmicos. Hoje em dia, são países ocupados por tropas dos Estados Unidos e seus governos não passam de fantoches manipulados por Washington, que trata de encobri-los através de processos eleitorais farsescos. Os dois países retrocederam à situação de verdadeiras colônias. Além disso, a ofensiva de Bush possibilitou a presença de tropas americanas na região durante um longo período. A reação das massas e a derrota da ofensiva militar de Bush Contraditoriamente, se, por um lado, as ocupações do Iraque e do Afeganistão constituíram uma grande derrota, por outro, atearam fogo na região e hoje constituem o maior pesadelo do imperialismo americano. As invasões desencadearam guerras de libertação nacional em ambos os 38 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê países. No Iraque, a resistência encabeçada pela resistência sunita levou os Estados Unidos a sofrerem pesadas perdas que chegaram ao auge em 2006. A longa ocupação militar tem sido um fator de crise porque as Forças Armadas dos Estados Unidos se meteram em um “atoleiro” do qual não sabem como sair. Não só perdem homens e dinheiro, como também não têm perspectivas de ganhar a guerra nem podem se retirar. Desta maneira, esgotam-se soldados que são obrigados a servir no front por até três anos, já que o contingente do exército profissional dos EUA, que já não emprega o recrutamento obrigatório, é limitado. Os Estados Unidos foram obrigados, então, a fazer concessões às organizações xiitas, entregando o governo do país a uma coalizão entre estes e os principais partidos curdos. Hoje o presidente do país é curdo, Jamal Talabani da União Patriótica do Kurdistão, e o primeiro ministro é xiita, Nuri Al-Maliki, representante do Partido Islâmico Dawa, da coalizãoxiita Aliança Popular Iraquiana. Mas, a principal concessão do governo americano que permitiu uma trégua nos combates e uma “estabilidade” relativa no país, foi feita à resistência sunita. O imperialismo foi obrigado a pagar somas que se calculam em 60 milhões de dólares ao mês para que as milícias sunitas não ataquem as tropas americanas. Mesmo assim, esta política só funcionou sob a perspectiva de que os Estados Unidos marcassem a data para a retirada do Iraque. Esta foi a promessa de Obama, ainda em sua campanha eleitoral, assumindo na prática uma derrota na guerra do Iraque. Depois de assumir, Obama ordenou que as tropas norte-americanas se recolhessem às suas bases, não patrulhassem mais as cidades e marcou para agosto de 2010 a retirada definitiva do país. Mas, a instabilidade atual do país, que pode se complicar à medida que se aproxime a data da retirada, ameaça o cumprimento deste cronograma e o próprio compromisso de Obama. A hipótese de prolongar a permanência da maioria do contingente militar é, sem dúvida um cenário de crise para o imperialismo. Mas o problema não termina aí: a situação do Afeganistão também virou um atoleiro para os Estados Unidos. O Talibã voltou a se organizar e desencadeou uma guerra de guerrilhas contra as tropas de ocupação. Este país é hoje é o centro das dores de cabeça de Obama e do Pentágono. E, como dissemos ao princípio, a guerra agora se estendeu ao país vizinho, o Paquistão. Por último, mas não menos importante, a ofensiva bonapartista do governo Bush potencializou o problema das nacionalidades no Oriente Médio, muitos deles provocados artificialmente, desde o domínio britânico. Povos oprimidos e divididos rebelam-se e as guerras atingem diferentes etnias. Um exemplo é o dos pashtuns no Paquistão, divididos artificialmente do resto de seu povo no Afeganistão. Por outro lado, há vasos comunicantes dos povos que vivem no Afeganistão e nas repúblicas da Ásia central com as minorias muçulmanas na China: uzbeques, cazaques, uigures e quirguizes. A conclusão é clara: não só fracassou o projeto do “século americano” e da grande ofensiva bonapartista de George W. Bush e seus “neocons”, como as invasões e ocupações militares incendiaram a região e o atoleiro das guerras enfraqueceu o imperialismo. Este é o motivo das novas táticas de negociação Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 39 Dossiê e das indecisões, ou seja, da debilidade do governo Obama. Uma situação crítica: ficar não é recomendável, mas não é possível sair O imperialismo americano enfrenta uma situação crítica na maior parte dos países deste Grande Oriente Médio. A resistência das massas, as guerras e os problemas nacionais não resolvidos geraram uma relação estreita e uma combinação entre processos de distintos países. O imperialismo enfrenta duas guerras simultâneas. Não resolveu ainda a situação do Iraque e ainda não se retirou. E a guerra do Afeganistão está no seu ponto mais alto desde 2001. Esta situação gera um impasse para o governo de Barack Obama. A prudência recomenda sair o mais rápido possível, antes que a situação destas guerras impopulares piore e gere uma crise interna nos Estados Unidos. No entanto, a própria possibilidade de uma derrota vergonhosa, que provoque uma situação de instabilidade em dois ou três países do Oriente Médio, não só impede o imperialismo de retirar-se totalmente como até pode fazer com que aumente o número de suas tropas no Afeganistão. Neste Dossiê abordamos três países que nos parecem hoje os centros da luta de classes na região. O problema central para o imperialismo é a guerra do Afeganistão. Obama encontra-se em uma encruzilhada: precisa encontrar uma saída negociada com o Talibã, mas não pode negociar em uma posição de fraqueza como a atual. Por outro lado, para fortalecer sua posição e não perder a guerra precisaria de muito mais soldados. Mas uma escalada militar teria sérias repercussões internas nos Estados Unidos onde a guerra já é tremendamente impopular. Por outro lado, a guerra atravessou a fronteira com o Paquistão e está desestabilizando o país vizinho. A guerra está em curso num país tremendamente instável, com um governo débil e em crise. Por fim, um país chave para todo o Oriente Médio é o Irã, o mais poderoso econômica e militarmente da região. Sua influência política estende-se a países fundamentais do Oriente Médio tais como o Iraque (onde a maioria do governo baseado em partidos xiitas tem ligações com o Irã); Líbano, onde apóia o também xiita Hezbollah e inclusive na Palestina, onde apóia o movimento sunita Hamas. Os planos de “paz” de Obama A nova tática do governo Obama para toda a região, e para o mundo é tentar frear e depois fazer retroceder situações explosivas através de negociações e planos de paz. Em especial, o governo dos EUA tenta um acordo com o regime dos aiatolás para aceitar o desenvolvimento da indústria nuclear do país, mas impondo um controle internacional que não permita que este desenvolva armas nucleares. A outra cara desta negociação tem como objetivo obter a colaboração do regime iraniano para ajudar a estabilizar a região, por exemplo, pressionando o Hamas para negociar com Israel um acordo de paz na Palestina e o Hezbollah para chegar a um acordo que estabilize o Líbano. A atual política dos EUA, não é a de invasão do Irã tal como se planejou na época de George W. Bush e Dick Cheney. Ao contrário, o imperialismo tenta atrair a burguesia e o governo iranianos para que estes cumpram o papel 40 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê de estabilizador da região. Tenta o mesmo com o Hezbollah. E tem conseguido avanços do ponto de vista imperialista. O governo iraniano aceitou negociar o beneficiamento do seu urânio na Rússia, sob controle da AIEA. E o Hezbollah já faz parte do governo do Líbano há um ano e tem sido um fator de estabilidade para a burguesia do país. No entanto, o grande problema do imperialismo é que a política de negociação e acordos de paz está cruzada pela guerra no Afeganistão, que por sua vez influencia a situação no Paquistão. E aí reside o dilema do governo Obama. Não aumentar qualitativamente o número de suas tropas significa arriscar a ser derrotado militarmente e não ter condições de negociar nada. Mas, se aceitar dobrar o número de soldados, como pedem seus generais, envolver-se-á ainda mais no conflito e provavelmente sofrerá um aumento da oposição à guerra nos Estados Unidos. Um envolvimento mais longo do que já foi até agora (oito anos) e numa escala tão ampla ameaça transformar-se num novo e enorme Vietnã do Século XXI para os EUA. É, portanto, no terreno político, social e militar da guerra que se resolverá a luta de classes na região. As guerras e revoluções no Oriente Médio exigem uma direção revolucionária As massas de trabalhadores e camponeses dos diferentes países do Oriente Médio – que há décadas enfrentam heroicamente o imperialismo americano e seus agentes, com enormes sacrifícios contados em milhões de vidas humanas e enormes riquezas naturais saqueadas – vivem um drama. Durante várias décadas, sucessivas direções nacionalistas burguesas e pequeno-burguesas mostraram-se incapazes de enfrentar o imperialismo até o fim e terminaram por capitular a ele. A atual direção colaboracionista de Abbas e da OLP é a mais grotesca das caricaturas destas lideranças oportunistas. A situação atual não é melhor. As direções islâmicas, atualmente à frente dos mais importantes movimentos de resistência, já deram mostras de que são uma direção burguesa que não hesita em reprimir os trabalhadores e seus aliados populares, inclusive seus setores mais explorados, como as mulheres e as nacionalidades oprimidas. E também, como toda classe privilegiada, podem capitular ao imperialismo a qualquer momento. Por isso, mais do que nunca, o problema da independência da classe operária diante das organizações burguesas e pequeno-burguesas é fundamental para que esta assuma a vanguarda da luta para expulsar o imperialismo do Oriente Médio. E, para orientar a classe operária neste combate e dirigi-lo rumo a uma Revolução Socialista, que acabe com a exploração dos trabalhadores e a opressão dos povos, é imprescindível construir uma direção revolucionária socialista em toda a região. Este é um grande desafio para os revolucionários de todo o mundo. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 41 Dossiê ~ ~ Ira, 1979: uma revolucao ´ interrompida Marcos Margarido Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) - Brasil O início da década de 1970 conheceu a primeira recessão simultânea e generalizada nos países imperialistas no póssegunda guerra. Os 20 anos do boom da economia, iniciados por volta de 1950, haviam chegado ao fim. O ano de 1975 foi marcado pela queda assombrosa do PIB dos Estados Unidos, Alemanha, Japão, França e Inglaterra. A produção industrial no segundo trimestre de 1975 caiu 14% nos EUA, 20% no Japão e 10% na Inglaterra. Depois de duas décadas de “pleno emprego”, chegou-se a um total oficial de 17 milhões de desempregados no conjunto dos países imperialistas, além de uma alta da inflação que atingiu níveis insuportáveis em todos os países do mundo. Na década de 70, os EUA sofreram sua primeira derrota militar clara no Vietnam. A revolução portuguesa de abril de 1974 abriu um processo que além de derrotar a ditadura salazarista possibilitou a libertação de suas colônias da África e incendiou o continente negro. No Oriente Médio, sucediam-se os enfrentamentos com Israel, em que os países arabes foram derrotados, como na guerra do Yom Kipur, enquanto a guerrilha palestina seguia resistindo e o Líbano ardia em plena guerra civil. A década assistiu ainda ao seu final as revoluções nicaraguense e iraniana. Neste cenário, os países árabes membros da OPEP resolvem quadruplicar o preço do petróleo em 1973, como retaliação à derrota na guerra do Yom Kipur para Israel, gerando uma renda extra aos países exportadores de petróleo, os petrodólares, estimados em US$ 180 bilhões em 19801. O Irã, assim como os demais países produtores de petróleo, inseria-se na divisão mundial do trabalho como exportador de matérias primas - o petróleo - e com um desenvolvimento capitalista totalmente subordinado aos interesses imperialistas. A renda do petróleo aumenta a cobiça imperialista e os conflitos interburgueses pela sua posse, gerando o aumento da miséria da população paralelamente à acumulação capitalista. No Irã, essa combinação atingiu níveis explosivos, que passamos a analisar. O rei dos reis Mohammad Reza Pahlevi foi o segundo Xá da dinastia Pahlevi. Foi empossado após a ocupação do país pelos exércitos da Inglaterra e da União Soviética em 1941, em substituição a seu pai, Reza Khan, soldado do exército 42 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1979: manifestação contra o Xá 1 Os valores em dólares são nominais, relativos ao ano mencionado. Para se obter os valores equivalentes em 2009, deve-se multiplicar o valor dado por 4 se o ano for 1975, 3,3 se for 1978 e 2,6 para 1980. 2 MANDEL, E. A crise do capital. São Paulo: Ed. Ensaio, 1990, p. 39 Dossiê iraniano, que também havia subido ao poder através de um golpe contra o reinado da dinastia Oajar em 1921. O início da década de 50 assistia ao crescimento de uma onda nacionalista que varreu o Oriente Médio e desembocou no nasserismo, o movimento liderado pelo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, que buscava uma independência relativa em relação ao imperialismo, para estabelecer melhores condições de negociação com ele. No Irã, tal movimento era liderado por Mohammed Mossadegh, eleito primeiro-ministro em 1951, um mês depois da nacionalização da Anglo-Iranian Oil Company pelo parlamento iraniano, um golpe ao principal imperialismo da região. Por essa ousadia, os governos imperialistas dos Estados Unidos e Inglaterra, através de seus serviços secretos, planejaram a queda de Mossadegh, conseguida após uma primeira tentativa frustrada, que resultou na queda e exílio do Xá. O general Fazlollah Zahedi foi nomeado primeiro-ministro e Reza Pahlevi reempossado, selando sua submissão aos desígnios norte-americanos. Em 1963 institui a Revolução Branca3, com o objetivo de transformar o Irã na quinta potência mundial e aproximá-lo ao mundo ocidental. A “modernização” buscada pelo Xá seguia a lógica da dominação imperialista de um país semicolonial, com sua abertura ao capital estrangeiro, ávido pela renda do petróleo. Cerca de US$ 250 bilhões acumulados pelo Irã entre 1974 e 1980 pela alta do petróleo foram utilizados na importação de bens de capital e de consumo. Enquanto isso, a burguesia nacional comerciante, conhecida como burguesia do bazar, era reduzida ao papel de “mendigo” que se alimenta dos restos do banquete da exploração capitalista. A expansão industrial do país garantiu a presença maciça de empresas norte-americanas - cerca de 500 segundo a revista Fortune – e a expansão das Forças Armadas iranianas, com 475 mil soldados, para a proteção de sua propriedade. Os Estados Unidos conseguiam, assim, impor seu controle da região a partir do enclave israelense e do Irã, o único país do mundo muçulmano que reconhecia o Estado de Israel. A associação com o capital estrangeiro foi levada a cabo por meio do controle da oposição e do uso da força contra a população. Em 1975 os partidos políticos foram extintos e um regime de partido único, o Partido da Ressurreição, foi fundado, justificado de maneira clara pelo Xá: Uma pessoa que não entrar no novo partido político e não acreditar nos três princípios cardeais tem apenas duas opções. Ou ele é um indivíduo que pertence a uma organização ilegal ou está ligado ao clandestino Partido Tudeh, em outras palavras, é um traidor. Pahlevi dizia que o lugar dos traidores era a prisão ou o exílio, e a Savak, uma das polícias políticas mais cruéis do mundo, desdobrava-se dia e noite para identificá-los, prendê-los, torturá-los e executá-los. Estima-se que cem mil pessoas estavam presas em 1976, mas o regime reconhecia a existência de “apenas” 3500 presos políticos. A situação de miséria e desemprego das massas, gerada pela Revolução Branca, foi agravada pela crise iniciada em 1974. A capitalização do campo causou o êxodo de milhões de camponeses às cidades onde o desemprego e 3 Revolução branca: revolução realizada “por cima”, em oposição às revoluções populares ou socialistas, consideradas “vermelhas”. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 43 Dossiê a inflação os esperava. Estas sequer possuíam redes de água e esgoto, apesar das enormes somas obtidas pela renda do petróleo. Os salários dos trabalhadores foram congelados e até um “passaporte interno” para controlá-los foi instituído. A burguesia do bazar foi prejudicada com o aumento dos impostos. O clero xiita, da religião muçulmana, beneficiava-se politicamente dessa situação ao capitalizar o descontentamento de amplas camadas da população, reunidas nas chamadas cidades santas, como Qom, que se transformavam nos redutos da oposição ao Xá. A revolução dá seus primeiros passos As primeiras mobilizações, realizadas pela juventude e intelectuais, ocorreram em 1977, exigindo o respeito à constituição de 1906 ainda em vigor, a defesa da liberdade de imprensa e da independência do poder Judiciário. Os protestos seriam intensificados em 1978, quando ocorre o Massacre de Qom em 9 de janeiro, a cidade santa que se tornaria a morada oficial do aiatolá Khomeini. A manifestação de 4 mil estudantes e líderes religiosos contra o jornal Ettela’at controlado pelo Xá, que acusava o aiatolá, exilado desde 1963, de ser homossexual, terminou numa repressão brutal com o resultado de pelo menos 10 mortos. A tentativa de calar as vozes da oposição surtiu um efeito contrário; em 18 de fevereiro comemorou-se o arba’een - o luto xiita de 40 dias - com manifestações de massas em todo o país. Em Tabriz, a população de maioria curda ocupa a cidade sem que os militares locais a reprimissem. Pahlevi foi obrigado a deslocar tropas para executar outro banho de sangue. Estima-se em cem pessoas mortas e, mais uma vez, as manifestações alastraram-se, desta vez para Ahwaz, importante centro petrolífero do Irã. Novas manifestações voltam a ocorrer em Isfahan, onde foi imposta a lei marcial em 16 de agosto, após os primeiros sinais de fraqueza do regime ditatorial. O chefe da Savak era substituído por Nasser Moghadam em junho e o próprio Xá prometia a realização de eleições gerais em 1979. Dez dias depois o primeiro-ministro é substituído por Jafar Sharif-Emami, que abole o calendário imperial4 instituído pelo Xá e declara a legalidade de todos os partidos políticos. Era a primeira vitória democrática das massas, embora o núcleo repressor do regime - as Forças Armadas e a Savak - continuasse intacto. O imperialismo mantinha seu apoio a Reza Pahlevi. Numa coletiva à imprensa, o presidente dos EUA, Jimmy Carter, declara que “eu espero que o Xá mantenha o poder... o Xá tem nosso apoio e também tem nossa confiança” e o diretor da CIA, Stansfield Turner, afirma que “recebi um relatório da assessoria onde é dito que o Xá vai sobreviver por mais dez anos” no poder. Morte ao Xá! O grito de guerra da revolução - Morte ao Xá! - foi escutado pela primeira vez em Tabriz e espalhou-se a todas as manifestações do país. Em 4 de setembro uma manifestação de 4 a 5 milhões é realizada em Teerã para comemorar o Eid ul-Fitr, o feriado do fim do Ramadã5, e se transforma num gigantesco protesto político. A lei marcial é decretada em 12 cidades no dia 8, mas, ainda assim, milhares de pessoas voltam a sair às ruas de Teerã para reunir-se na Praça Jaleh, onde as tropas reais começam a atirar contra a multidão, de helicópteros e do solo, assassinando centenas de pessoas6 no 44 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 4 O calendário imperial substituiu o antigo calendário persa, causando a ira do clero xiita. 5 Ramadã: nono mês do calendário islâmico, onde os muçulmanos praticam o jejum. É considerado o mês em que foi revelado o Corão. 6 Este número é motivo de muitas controvérsias, pois na época o clero xiita falava de dezenas de milhares de mortos. Emad al-Din Baghi, historiador da Fundação dos Mártires do Irã, estabeleceu o número de 88 em suas pesquisas. Michel Foulcaut, testemunha ocular, falou em 2 a 3 mil mortos. O número exato nunca será conhecido, mas as imagens do massacre indicam a possibilidade de centenas de mortos. Dossiê massacre conhecido como “sexta-feira negra”. No dia seguinte, Khomeini, do exílio, chama a realização de uma greve geral. Além das mobilizações populares, os métodos e reivindicações típicos da classe operária passam a ser incluídos na agenda revolucionária. As greves começam a pipocar envolvendo milhares de operários e culminam numa greve geral dos petroleiros no fim do mês que, por sua vez, incendiou a população em manifestações e rebeliões de apoio por todo o país. Durante o mês de outubro as greves se sucedem. São bancários, funcionários públicos, mineiros, trabalhadores têxteis, dos correios e telégrafos, transportes e rádio e televisão. Os jornalistas param no dia 11 de outubro. Os bancários paralisam o sistema financeiro do país, com a greve do Banco Central, seguida do incêndio de cerca de 400 agências bancárias pelas massas. Os bancários revelaram que 178 pessoas ligadas ao Xá haviam transferido um bilhão de libras ao exterior. Mas não só seus amigos. Segundo David Rockfeller, presidente do Chase Manhattan Bank, Pahlevi possuía depósitos de US$ 2 bilhões, cuja retirada poderia levar o sistema bancário norte-americano à bancarrota. Finalmente, depois de mobilizações permanentes enfrentando a repressão armada e a prisão de líderes, uma greve geral de petroleiros iniciada em 21 de outubro sela o destino do Xá. Negam-se a produzir petróleo sob a ditadura. O primeiro-ministro Sharif-Emami renuncia em 4 de novembro e o Xá faz um pronunciamento na TV dizendo que “ouvi a voz de sua revolução ... Como Xá do Irã e como cidadão iraniano, eu devo apoiar sua revolução”. Sucedem-se a nomeação do general Reza Azhari para primeiro-ministro que, no entanto, impõe a lei marcial. No início de dezembro, cerca de 9 milhões, num país com 35 milhões de habitantes, saem às ruas exigindo a “morte ao Xá”. Uma declaração de 17 pontos é apresentada com a exigência de “independência, liberdade, república islâmica” e a afirmação de que o aiatolá Khomeini é o líder dos iranianos. Os comandantes não conseguem ordenar a repressão e os manifestantes sobem nos tanques e caminhões para se solidarizar com os soldados, entregandolhes flores. A última jogada do Xá foi a indicação de um antigo líder oposicionista para primeiro-ministro, Shapour Bakhtiar, em 29 de dezembro. Ele tentaria uma transição pacífica ao novo regime em acordo com Mehdi Bazargan, futuro chefe do governo revolucionário provisório de Khomeini. “O roteiro da transição seria: a partida do Xá, a instauração de um Conselho da Coroa, convocação de eleições gerais e livres, instalação de uma Assembléia Constituinte e, por fim, a transferência do poder”7. Mas o retorno de Khomeini em 1º de fevereiro de 1979 e uma gigantesca manifestação de mais de um milhão de pessoas nas ruas de Teerã em 8 de fevereiro exigindo a renúncia de Bahtiar impede qualquer acordo. Em 11 de fevereiro de 1979 completa-se a dissolução da monarquia, com a ocupação de Teerã por forças guerrilheiras, a população armada e tropas rebeldes. Reza Pahlevi não presenciou a queda de seu próprio império, pois em 16 de janeiro de 1979 havia embarcado num Boeing pilotado por ele próprio rumo ao Kuwait, primeiro, e aos Estados Unidos, definitivamente, para “tirar férias e tratar de uma doença”, onde 7 COGGIOLA, O. O Irã no centro do mundo. www.blog.controversia.com.br, acessado em 20/10/2009 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 45 Dossiê morreria em 1981. Uma revolução operária A revolução do Irã foi marcada por grandes manifestações, convocadas pela hierarquia xiita e organizações sindicais e políticas de várias tendências. O protesto de dezembro, com 9 milhões de pessoas nas ruas, é considerado a maior concentração popular da história das revoluções. Mas é necessário olhar para a ação operária para entender a dimensão dessa grandiosa revolução. Nos últimos 15 anos da ditadura, com a “modernização”, uma classe operária poderosa seria formada a partir dos investimentos imperialistas, enquanto a burguesia nacional perdia sua força relativa. Havia, em 1978, dois milhões de operários industriais, além de 750 mil trabalhadores nos setores de transportes e outros serviços, concentrados em bairros da periferia das grandes cidades. A maioria das empresas era de pequeno porte, com 35 a 50 empregados, ao lado de fábricas gigantes que dominavam a cena, principalmente do setor petroquímico, automobilístico e da construção civil, algumas delas com dezenas de milhares de trabalhadores. Pode-se fazer um paralelo com a Rússia na revolução de 1917, que possuía uma classe operária de 4 milhões para 150 milhões de habitantes, enquanto no Irã havia quase o mesmo número de operários para 35 milhões. Foi este contingente que marcou o fim do reinado do Xá, ao paralisar a economia do país com suas greves, principalmente da categoria petroleira. É como afirmava uma declaração da Ala Militante dos Trabalhadores de Indústrias Petrolíferas do Irã de 5 de junho de 1979: Os trabalhadores da indústria petrolífera foram os que derrubaram o regime de 2500 anos de monarquia e despotismo. Quando sua heróica greve deteve o fluxo do petróleo, cortaram a veia jugular da monarquia. E ao romper a barreira representada pela monarquia, abriram as portas à liberdade e à abundância para uma sociedade atrasada como a nossa. As esperanças numa nova liberdade eram enormes, e as massas começaram a exercê-la com a constituição de comitês revolucionários, os shoras. Foram criados para ocuparem-se da distribuição de alimento e combustível à população, durante a greve geral que decretou a queda do Xá, e posteriormente adquiriram um caráter militar, prendendo membros do antigo regime e executando os agentes da odiada Savak. Espalharam-se por todas as cidades do país e na capital, Teerã, chegaram a existir 14 grandes comitês e outros 1500 de menor alcance. Após a queda do Xá, multiplicaram-se e se desenvolveram de forma independente em relação à burguesia, constituindo-se em embriões de duplo poder. O jornal New York Times de 24 de fevereiro de 1979 publicava uma matéria de seu enviado especial, onde se podia ler: Além dessas autoridades centrais há grupos que têm boas conexões e podem conseguir coisas, como os aiatolás e os mulás. Finalmente, quase todos os ministérios, bancos, escritórios ou fábricas têm um comitê de trabalhadores pelos quais todas as ordens devem passar para ter alguma chance de aprovação. O membro do gabinete do primeiro46 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê ministro, Abbas Amir Entezam, reclamou na última quarta-feira que “apesar do comando do Aiatolá, nenhuma das grandes indústrias estão operando porque os operários gastam todo seu tempo realizando reuniões políticas”. Tais reuniões tinham como objetivo organizar a produção sob o controle dos trabalhadores, a conquista de reivindicações econômicas, e a construção de sindicatos. Segundo um jornal da época, “os petroleiros ... formaram recentemente uma organização nacional, o Sindicato Nacional dos Petroleiros. Estão reivindicando jornada semanal imediata de 42 horas e a abertura dos livros de contabilidade das empresas petrolíferas. Se o governo [de Khomeini] não responder em três dias, entrarão em greve”. A burguesia e a hierarquia xiita desejavam a normalização imediata do país e o fim dos comitês revolucionários, mas as condições políticas lhes eram desfavoráveis. Mehdi Barzagan, o primeiro-ministro indicado por Khomeini, reclamava que os comitês estavam se constituindo num “poder paralelo ao meu próprio governo provisório”. Ideologia e realidade O fato de a revolução iraniana ter sido dirigida por líderes religiosos, como o aiatolá Khomeini, levou os propagandistas do imperialismo a afirmar que sua causa fundamental foi religiosa, com muçulmanos fanáticos que repudiavam a modernização ocidental e desejavam retornar à idade média para construir uma República Islâmica, submetida às leis do Corão. Seria, em essência, uma revolução reacionária. É verdade que as medidas de ampliação dos direitos da mulher adotadas pelo Xá, como a permissão para frequentar a universidade, o direito ao voto e ao divórcio8, sofreram a oposição do reacionário clero xiita. É verdade, também, que essa a propaganda religiosa era difundida a todo o mundo por Khomeini desde Paris, seu local de moradia desde 6 de outubro de 1978. Porém, como disse Marx, “cada época acredita piamente no que a época em questão diz de si própria e nas ilusões que cria sobre si própria”9, e isso vale perfeitamente para os ideólogos da República Islâmica. Mas é necessário fazer a distinção entre o que cada um pensa ser e o que realmente é. Vejamos: A República Islâmica defendida por Khomeini tinha duas instituições principais: os poderes executivo e judiciário. Estas instituições teriam a obrigação fundamental de aplicar e defender as leis divinas, escritas no Corão. O sistema judiciário seria composto por pessoas com conhecimento profundo destas leis, o clero xiita. E “no alto do poder temporal encontra-se o imã, em sua função de intérprete supremo das leis divinas, de guia espiritual e de coordenador dos aparelhos judiciário e executivo”10. Khomeini seria confirmado imã após a aprovação da constituição islâmica no plebiscito de 1º de abril de 1979. Para conhecermos o significado concreto de sua investidura, basta remover o manto religioso que encobre a constituição para verificar sua condição de Bonaparte11, com a missão de reconstruir o Estado burguês. Da mesma forma, a burguesia nacional iraniana não entrou em choque com o imperialismo para defender uma hipotética superioridade do islã sobre o cristianismo ocidental, mas para tomar posse da renda do petróleo. Tratava-se 8 A revogação do uso do chador já havia sido adotada por Reza Khan, pai de Pahlevi. 9 MARX, K., ENGELS, F. Feuerbach, a oposição entre as concepções materialista e idealista. Capítulo 1 de A ideologia alemã Lisboa: Ed. Estampa, 1975, p. 72. 10 Declaração de Khomeini em Paris. 11Bonapar tismo: regime de caráter ditatorial, apoiado diretamente nas Forças Armadas e executado pela burocracia estatal. Seu governo “da ordem” apela sempre a um “árbitro inapelável”, capaz de arbitrar entre os distintos setores e classes sociais, com o objetivo de derrotar o movimento operário e estabilizar o Estado burguês. Porém, o governo Khomeini nos primeiros meses da revolução, quando os Comitês Revolucionários exerciam um duplo poder, pode ser caracterizado como kerensquista. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 47 Dossiê de uma burguesia frágil de conjunto, que perdera força perante o movimento de massas com a capitulação do nasserismo ao imperialismo na década de 60 e via nascer “uma nova corrente de massas, que organizava camadas inteiras da pequena burguesia e setores desclassificados”12, através de uma rede de 180 mil mulás que controlavam o movimento através de uma ideologia religiosa. Sem condições de impedir a revolução e temendo muito mais a insurreição operária do que a dominação imperialista, a burguesia volta-se ao islamismo, “que rechaça simetricamente o imperialismo e a emancipação do proletariado”13, para derrotar o processo revolucionário. Por isso, assim que Khomeini assumiu o poder, a indústria petrolífera foi nacionalizada, bem como todo ramo energético e bancário. As propriedades do Xá foram expropriadas e o comércio exterior ficou sob controle estatal. São políticas muito mais próprias de uma burguesia nacional em luta contra o imperialismo para manter sua parte na mais-valia extraída e sob o peso de um processo revolucionário gigantesco, do que de um anticapitalismo reacionário ávido por um retorno à época feudal. A contrarrevolução A queda do Xá causou a liberação das forças revolucionárias da população. Os shoras surgiam em todas as partes, revelando a força do movimento operário. No campo eram criadas organizações semelhantes para a ocupação das terras. As organizações de esquerda saiam da clandestinidade e publicavam inúmeros jornais, enquanto as minorias nacionais de língua árabe, turcomana e curda exigiam autonomia em suas regiões. A burguesia dividia-se, com o surgimento de um setor contrário ao controle total do aparato estatal pelo clero xiita, representado por Bazargan e Bani Sadr. Este setor refletia interesses diversos em relação ao imperialismo e quanto aos métodos utilizados para controlar o movimento operário. Preferia desviar a revolução para o rumo da democracia burguesa, com suas instituições “representativas” e eleições regulares. Mas tais instituições eram inexistentes no Irã, o que debilitou suas posições. Apenas um Bonaparte, capaz de colocar-se “acima” das classes pela sua posição de imã, poderia manobrar adequadamente entre as pressões do imperialismo de um lado e do movimento de massas de outro. Sua ideologia reacionária, posta a serviço da defesa irredutível da propriedade privada, combinada com a repressão brutal foram as formas encontradas pela burguesia do bazar para a defesa de seus interesses históricos de classe. Em junho de 1979 uma nova lei de imprensa foi aprovada, dando o sinal verde para a perseguição aos jornais de esquerda. E agosto a redação do Ayandegan foi fechada, seguindo-se o fechamento de 34 jornais de oposição no mesmo mês. Em setembro os dois maiores jornais burgueses do país, Kayhan e Ettela’at, foram expropriados e transferidos para a Fundação dos Deserdados, controlada pelo clero. Os partidos oposicionistas foram postos na clandestinidade, como o Mujahedeen-e Khalq (Mujadines ou Lutadores do Povo), guerrilha pequenoburguesa de ideologia muçulmana, e o Hezb-e Kargaran-e Sosialist (HKS ou Partido Socialista dos Trabalhadores), trotsquista. Massoud Rajavi, líder dos 48 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1 2 D I V È S, Je a n Phillippe. Uma guerra contra os pueblos de Irak e Irán. Correo Internacional, n. 7, 1985. 13 Idem Dossiê Mujadines, foi obrigado a exilar-se na França, enquanto 14 dirigentes do HKS foram presos, doze dos quais condenados à morte. O único partido operário que permaneceu legalizado durante três anos foi o Tudeh (Partido Comunista Iraniano), de orientação stalinista, por declarar lealdade a Khomeini e apoiar o clero xiita em sua repressão às organizações de esquerda. Apenas em 1982, devido à ocupação do Afeganistão pela burocracia soviética, os membros do Tudeh foram considerados agentes de uma potência estrangeira e postos na ilegalidade. Em fevereiro do ano seguinte Nureddin Kianuri, principal dirigente do Tudeh, foi preso. Kianuri, como bom stalinista, confessou na televisão ser espião da União Soviética. O levante da minoria curda pela autodeterminação foi o mais importante e adquiriu um caráter de massas. Os curdos, dirigidos pelo Partido Democrático, exigiam a autonomia administrativa do Cordestão, o direito à sua própria língua e cultura, uma participação específica na receita nacional e a responsabilidade pelas forças locais de segurança. O descontentamento da minoria curda ficou demonstrado no plebiscito constitucional, rejeitado pela imensa maioria da população sob a palavra de ordem de “abaixo o plebiscito, primeiro a autodeterminação”. Os choques com as forças armadas de Khomeini começaram em agosto de 1979, sob o governo de Bazargan. A guerrilha curda chegou a controlar parte de seu território, até que o exército iniciou uma ofensiva, ocupando a cidade de Bukan em novembro de 1981 e todo o território em 1983. A repressão também atingia os shoras que não se sujeitaram às novas instituições da república islâmica. Segundo a Anistia Internacional, pelo menos 900 pessoas foram executadas entre janeiro de 1980 e junho de 1981, em sua maioria lutadores da esquerda e da minoria curda. Nos doze meses seguintes, mais 2974 mortes foram computadas. Estima-se em 20 mil o número de prisioneiros políticos durante 1981 e, conforme a revista Time, cerca de cem mil em 198414. São números que nada deixam a desejar da época do terror imperial. As forças khomeinistas conseguiram, finalmente, consolidar sua posição em fins de 1981, tomar o controle absoluto do poder e estabilizar relativamente o Estado burguês. Além da sangrenta repressão interna, a invasão do Irã pelo Iraque muito contribuiu para isso. A guerra Irã-Iraque Em 22 de setembro de 1980, Saddam Hussein invade o Irã para impedir que o processo revolucionário avançasse para o território iraquiano através da comunidade xiita, que compõe 70% da população iraquiana, e do levante curdo. O exército iraniano consegue repelir o invasor e no início de 1982 o território iraniano estava liberado. Khomeini, no entanto, decide continuar a guerra, que duraria mais seis anos, ao custo de pelo menos 500 mil vidas. O ataque da ditadura de Hussein ocorreu num momento vital do processo revolucionário. “O movimento independente dos shoras, depois de uma reativação ao calor de uma onda de lutas econômicas da classe operária era o alvo de uma ofensiva frontal por parte do regime. A campanha de “união nacional” que o regime islâmico pôde encarar frente ao ataque iraquiano, 14 Idem Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 49 Dossiê permitiu-lhe dar golpes decisivos contra toda expressão independente da classe operária”15. Apesar de uma guerra sem país vencedor, pois acabou por um acordo na ONU, ela atingiu o objetivo que os Estados Unidos e a burocracia soviética perseguiam ao dar apoio a Hussein: ajudar a derrotar a onda revolucionária. Nesse sentido, pode-se dizer que o maior beneficiado pelo resultado, além do próprio Khomeini, foi o imperialismo, pois esgotava a energia anti-imperialista das massas iranianas e impunha limites ao grau de independência política conseguida pelo Irã com a queda de Pahlevi. As contradições da luta anti-imperialista A revolução iraniana tinha um caráter democrático e anti-imperialista, que estava se transformando em revolução social pelo impulso das massas contra a exploração capitalista. Além de arbitrar o conflito entre a burguesia nacional e a classe operária, Khomeini desempenhava o papel de um bonapartismo sui generis, pois manobrava entre a mobilização das massas e a pressão imperialista para não perder o controle do processo, ao mesmo tempo em que zelava pela manutenção da propriedade privada. Este duplo papel limitava a luta pela independência nacional, devido ao caráter dependente da burguesia. Esta contradição ficou claramente demonstrada quando, em 4 de novembro de 1979, estudantes, incentivados pelo chamado de Khomeini para uma “mobilização geral contra o grande Satanás, os Estados Unidos”, invadiram a embaixada norte-americana sem sua prévia autorização, para exigir a extradição de Reza Pahlevi e a devolução de sua fortuna depositada nos bancos dos EUA. Com a lembrança ainda recente da derrota no Vietnã e a campanha pelos “direitos humanos” do presidente Carter, os Estados Unidos não ousaram invadir o Irã. E ficaram desmoralizados ao realizar uma operação secreta para o resgate dos 66 reféns - a Operação Garra da Águia -, que terminou com a morte de oito soldados no choque de um helicóptero com um avião norteamericanos em território iraniano. Mas a “crise dos reféns”, em vez de uma vitória contra o “grande Satanás”, desembocou numa capitulação vergonhosa do governo iraniano. Os reféns foram libertados em 20 de janeiro de 1981 por um acordo com o novo governo de Ronald Reagan16, pelo qual os EUA liberavam US$11 bilhões de fundos iranianos retidos pelos bancos norte-americanos em troca do pagamento de US$ 5,1 bilhões de empréstimos fraudulentos realizados por Reza Pahlevi. A crise da direção revolucionária Apesar de antiga tradição marxista – a delegação iraniana no Congresso dos Povos do Oriente, organizada pela III Internacional em 1920, era a segunda em tamanho, com 192 membros17 – o longo período da ditadura dos Pahlevi havia impedido seu desenvolvimento. Apenas o Tudeh, de origem stalinista, encontrava-se em condições de organizar uma parcela dos trabalhadores no período revolucionário. Mas seu papel traidor durante seu período de legalidade, seu histórico de capitulações, como o apoio à Revolução Branca do Xá, e sua submissão incondicional à burocracia soviética impediram que se transformasse numa alternativa para a classe operária. 50 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 15 Idem. Para uma análise completa da guerra Irã-Iraque, o artigo referenciado pode ser encontrado em www.archivoleontrotsky.org. 16 A eleição presidencial norte-americana ocorreu em novembro de 1980. Um dos principais fatores que contribuiu para a derrota de Carter em sua tentativa de reeleição foi a crise dos reféns e o fracasso da Operação Garra de Águia. 17 BROUÉ, P. História da Internacional Comunista. São Paulo: Ed. Sundermann, 2008 Dossiê Os jovens partidos marxistas, como o HKS, sofreram uma perseguição implacável e as variantes pequeno-burguesas do islamismo, como os fedaines e os mujadines, embora tenham sido oposição ao regime de Khomeini, apoiavam a República Islâmica e não defendiam a independência de classe em seus programas. Outros grupos, como o Paykar (uma dissidência marxista dos mujadines) e a União dos Comunistas tiveram seus líderes assassinados em 1983, além da prisão e execução de milhares de militantes. Ao drama da revolução, soma-se o da ausência de um partido revolucionário que não pôde ser construído no calor de uma luta tão complexa como a que se deu no Irã, um país muçulmano em que: O combate contra as direções islâmicas [deve ser feito]... pondo no centro as necessidades da luta de classes, o combate ao imperialismo e aos governos lacaios. Desmascarar sua inconsequência, seu palavrório, sua submissão aos interesses burgueses, seu falso igualitarismo, é parte do combate e o fazemos deste ângulo, o da luta dos trabalhadores por cima das crenças religiosas, e não do combate à religião.18 Uma revolução interrompida Com a consolidação do poder por Khomeini em fins de 1981 e uma relativa estabilidade das instituições islâmicas a partir de 1985, com a transformação da burguesia do bazar o do próprio clero xiita numa grande burguesia industrial e financeira, o Irã continua refém de suas contradições internas, com as mais elementares tarefas democráticas não resolvidas. A burguesia iraniana, com seus atuais chefes islâmicos demonstraram na prática esse limite estrutural, histórico, das burguesias coloniais e semicoloniais que são incapazes de realizar até o fim as tarefas democráticas que historicamente as revoluções burguesas cumpriram na aurora do capitalismo, a saber, a independência nacional, a reforma agrária e as liberdades democráticas. Em relação ao imperialismo, o Irã consegue sua independência política com a revolução de 1979. Mas, a partir do momento em que a revolução é congelada nos marcos do capitalismo, quando a burguesia nada tem a oferecer, nem mesmo a realização de suas próprias tarefas históricas, o retrocesso é sempre iminente. Como veremos no artigo seguinte, a tendencia à abertura ao capital estrangeiro e à acomodação ao sistema imperialista vem se intensificando desde a consolidação do novo regime. A revolução iraniana passa à história como uma das mais importantes que a humanidade já conheceu, mas ao não expropriar a burguesia para a construção de uma sociedade socialista sua tarefa não foi terminada, tivemos uma extraordinária revolução desviada e abortada, ao permanecer o domínio capitalista. 18 PARRAS, Angel Luis. Islamismo, expressão distorcida do nacionalismo. Em: O Oriente Médio na perspectiva marxista. São Paulo: Editora Sundermann, 2007, p. 167 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 51 Dossiê ~ Por uma nova revolucao ´ iraniana José Welmowicki Editor de Marxismo Vivo Tito Niegra Partido Socialista dos Trabalhadores (PSTU) - Brasil 2009: Manifestações contra a fraude eleitoral Em 12 de junho passado ocorreram as eleições para a presidência do Irã. Mal havia se encerrado a votação, foram divulgados os resultados oficiais, dando a vitória ao presidente Mahmoud Ahmadinejad, que buscava a reeleição, por 62,3% contra 33,7% de seu principal adversário, Mir-Hossein Mousavi. Imediatamente após a divulgação iniciou-se uma gigantesca onda de mobilizações populares denunciando a fraude. Estima-se em mais de três milhões os manifestantes que ocuparam as ruas de Teerã e de outras importantes cidades por vários dias, desafiando a forte repressão do Estado e dos grupos paramilitares leais ao regime. Esta, que foi a maior revolta popular após a revolução de 1979, retrocedeu em um primeiro momento, após a violenta repressão que assassinou ao menos 17 ativistas e prendeu centenas, mas logo depois, em 18 de setembro, as massas deram provas de que não estavam derrotadas, e aproveitando-se dos atos convocados oficialmente no Dia de Jerusalém, ação anual pró-Palestina e contra Israel, participaram das manifestações, mas com suas próprias bandeiras e slogans contra o regime, desafiando os organizadores, todos vinculadas à hierarquia. Ainda em setembro assistimos a novas manifestações, desta vez contra as prisões políticas e as severas penas que a ditadura quer impor aos que foram detidos nos atos anteriores. No momento em que escrevemos este texto, a imprensa internacional noticia que as forças de segurança cumpriram suas ameaças e reprimiram manifestantes convocados pela oposição, que iriam participar da comemoração, neste 4 de novembro, do 30º aniversário da ocupação da Embaixada americana em Teerã. A burguesia internacional, por meio de seus agentes, os governos, a grande mídia, a União Européia, coerente com seus objetivos geopolíticos e econômicos (que de fato são tão somente econômicos), explora ao máximo 52 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê essas mobilizações, denuncia a fraude e a repressão e exige a “democratização”; interessa-lhe o enfraquecimento do regime para que possa negociar em condições mais vantajosas, acelerar a abertura econômica, as privatizações, e aumentar sua influência na região. E quanto à esquerda? Apoiamos Ahmadinejad e seu discurso antissionista e anti-imperialista? Ou talvez Mousavi com suas promessas de democratização e reforma política? Apoiamos e nos solidarizamos com a mobilização popular que vem sendo violentamente reprimida? Ou essa onda de protestos é coisa das classes médias abastadas, pró-imperialistas e manipuladas pela CIA? Queremos discutir qual o caráter de classe do regime iraniano, e a partir daí nos posicionarmos frente à realidade atual. É de fundamental importância para os trabalhadores iranianos e de toda a região que não se cometa os erros de 30 anos atrás, que levaram à derrota da revolução e à implantação de uma ditadura teocrática. É possível e necessário que se construa uma saída de classe para a crise atual. O regime dos aiatolás Estes recentes protestos populares no Irã são o ápice de um processo que vem sendo fermentado há anos, e para sermos mais exatos, são parte de uma luta que vem sendo travada desde 1979, há 30 anos, portanto, pelos protagonistas de uma das mais impressionantes revoluções do século 20, a classe trabalhadora iraniana, que na origem dirigia-se contra monarquia repressiva corrupta do Xá, e hoje se dirige contra a burguesia encabeçada por um clero islâmico reacionário, que assumiu o poder após a derrubada do Xá, e se impôs principalmente às custas de uma violenta repressão contra os opositores. Uma das questões que ajuda a criar confusão sobre o caráter do regime iraniano é sua origem na revolução de 79. Assumindo o poder à frente desta tremenda revolução e obrigado a utilizar um discurso anti-imperialista pela dimensão da luta e pelos ataques impiedosos que o imperialismo deflagrou desde o início, o clero xiita utilizou expressões típicas da esquerda e das correntes de libertação nacional e nacionalizou a indústria petrolífera e o comércio exterior. Mas, desde o início, a política deste setor que assumiu o poder depois da queda do Xá era reconstruir o poder burguês, estabilizar o capitalismo para terminar com a situação revolucionária e colocar os trabalhadores como seu apêndice, reprimindo-os, caso necessário. O regime teocrático criou, desde o início, dois fortes instrumentos repressores, diretamente vinculados ao Líder Supremo. O primeiro é a Guarda Revolucionária Islâmica (Pasdaran), com a função de preservar a segurança nacional e defender a revolução, atuando na defesa contra ataques externos, e na repressão à oposição interna, seja dos trabalhadores, da juventude, ou das minorias étnicas. O segundo instrumento de repressão são grupos paramilitares não-regulares, conhecidos como milícias Basij, formados principalmente por jovens recrutados na zona rural e entre o lumpesinato. Constitui-se de um efetivo de 90 mil na ativa e dois milhões de reservistas. São uma “força de intervenção popular rápida” e têm como função “combater os inimigos internos da Revolução e fazer respeitar os códigos islâmicos”. São conhecidos pela violência e crueldade na repressão às manifestações de Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 53 Dossiê protesto internas, sendo os responsáveis pelos assassinatos nas manifestações após as eleições deste ano. Tanto os membros da Guarda Revolucionária quanto os das milícias Basij vêm sendo mantidos sob rígido controle por meio de benefícios financeiros e favores, sendo que atualmente as Guardas Revolucionárias expandiram sua atuação também para áreas de indústria e comércio de armamentos, telecomunicações, etc., por meio de fundações, como será visto a seguir. Apesar da violenta repressão por parte do Estado, a classe trabalhadora iraniana não parou de lutar, até porque os ataques às suas condições de vida e aos seus direitos nunca permitiram que as experiências da revolução de 1979 fossem esquecidas. A luta dos trabalhadores e oprimidos Apesar da repressão permanente, o movimento operário iraniano é dos mais fortes e combativos da região. Como descrito em artigo nesta mesma revista1, os Comitês Operários (Shoras) foram a base fundamental da revolução de 79, sendo por isso atacados e reprimidos duramente pela hierarquia xiita. Logo nos primeiros anos no poder, os aiatolás impuseram um modelo repressivo de sindicato, pelo qual os trabalhadores são pretensamente representados pelas Casas de Trabalho, entidades totalmente controladas pelo regime. No entanto, desde o final dos anos 90, apesar da repressão, os operários vêm retomando suas lutas e construindo instrumentos independentes de organização. Desde 2003, os trabalhadores vêm participando dos atos de 1° de maio, procurando dar aos mesmos um caráter de manifestações não oficiais, de reivindicações e de protestos. Mesmo com o regime reprimindo com prisões e demissões, a cada ano mais e mais setores aderem a estas manifestações de protesto, levantando as bandeiras por melhores condições de vida, por liberdade e contra o regime. Na cidade de Tabriz, segunda maior concentração industrial do Irã, o sindicato oficial decidiu que a manifestação do 1º de maio de 2006 seria a favor do programa nuclear iraniano. Os manifestantes (cem mil pessoas, segundo algumas fontes) passaram dos lemas oficiais, a gritar palavras de ordem com suas reivindicações trabalhistas. Alguns setores construíram seus sindicatos ou comitês de empresa independentes: um exemplo são os condutores de ônibus de Teerã. Este vem sendo um sindicato independente muito ativo, que organizou várias greves e lutas vitoriosas contra a prefeitura e o regime. Seu dirigente, Mansur Osanloo, está há vários anos na prisão. A comissão da fábrica de automóveis Khodro é outra vanguarda da reorganização. Há anos eles lutam e resistem às pressões do regime. Recentemente, em maio último, estes trabalhadores obtiveram uma importante vitória quando entraram em greve pelo recebimento de salários atrasados, conseguindo também que os operários temporários fossem efetivados. Aliás, chama a atenção o fato de cada vez mais trabalhadores sairem à luta para, simplesmente, receber os seus salários. Os efeitos da crise econômica mundial, que a burguesia tenta jogar nas costas dos trabalhadores, fez com que ocorressem cada vez mais lutas, nas mais diversas categorias: a mídia 54 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1 Ver Irã,1979: uma revolução interrompida nesta edição. Dossiê internacional noticia que 1700 operários da Wagon Pars Company, grande empresa construtora de vagões ferroviários e recentemente privatizada, localizada em Arak, um dos principais centros industriais do Irã, entraram em greve de fome por não receberem seus salários há mais de 75 dias (a empresa admite atraso de dois meses), e por estes atrasos serem constantes. A greve de fome teve início depois que a empresa demitiu parte dos grevistas. Os operários da Wagon Pars receberam a solidariedade dos trabalhadores da Iran Khodro, cujos operários têm longa tradição de luta. Dentre estas várias greves ocorridas em 2009 contra o atraso dos salários, podemos ainda citar a dos trabalhadores da fábrica de pneus Alborz, com salários atrasados há 5 meses, e a dos trabalhadores de várias fábricas têxteis. Por fim, queremos citar a luta dos professores, dos quais 80% são mulheres, com salários extremamente baixos, que vêm construindo manifestações massivas por melhorias salariais, e são um dos setores de ponta na luta contra o regime. Os trabalhadores e a juventude vêm encontrando interessantes formas de burlar a repressão: participam de manifestações organizadas oficialmente e a partir de um determinado momento começam a gritar as suas próprias palavras de ordem antiregime. Isso ocorreu, além do 1º de Maio, no Dia de Jerusalém e, agora, na comemoração do 30º aniversário da ocupação da embaixada americana em Teerã. Juntamente com as lutas dos trabalhadores, há as lutas por liberdades democráticas dos estudantes e das mulheres, como as que ocorreram em 1999 e foram fortemente reprimidas sob o governo de Khatami. Por fim, as minorias étnicas lutam por seus direitos (e em alguns casos por seus territórios), como os curdos e azeris na região norte e os baluches no sul do Irã. A estrutura econômica do Irã O Irã possui uma população de aproximadamente 67 milhões de habitantes bastante jovem, com uma idade média de 27 anos, sendo 68% concentrada nas cidades. Sua força de trabalho é estimada em 25 milhões de trabalhadores, distribuídos nos setores da agricultura (25%), indústria (31%) e serviços (45%). A taxa de desemprego oficial é de 12,5%, mas estimativas não-oficiais dão números superiores a 20%. A taxa oficial de inflação - certamente subestimada - foi de 25,6% em 2008, uma das mais altas do mundo, e 25% da população vive abaixo do nível de pobreza, segundo o Ministro do Bem Estar Social. A economia iraniana é capitalista, ainda que sua forma de gestão possa confundir um observador desavisado, pois é composta por um emaranhado de empresas estatais, diversas fundações islâmicas (as chamadas Boniads) e empresas privadas. Esta estrutura expressa a forte relação de dependência e interesses mútuos entre a burguesia (a tradicional e a composta pelos altos escalões do Estado) e o clero islâmico, que parasita o Estado, acumulando fortunas incalculáveis. O exemplo das Boniads é bastante ilustrativo: foram criadas no governo do Aiatolá Khomeini, com o objetivo de “redistribuir a riqueza” confiscada do regime do Xá, por meio da construção de casas populares, clínicas de saúde, etc. Atualmente são em torno de 100 grandes fundações (Fundação dos desamparados, Fundação dos mártires, Fundação Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 55 Dossiê dos oprimidos e inválidos de guerra, etc.), que atuam em praticamente todos os ramos da economia iraniana, e movimentam uma fração impressionante do PIB, entre 30 % e 50%. Estas fundações são consideradas entidades privadas, e eram até há pouco tempo isentas de impostos, de taxas de importação, além de gozarem de enormes benefícios e privilégios, de forma que acabam por monopolizar os setores da economia em que atuam. Além disso, o tráfico de influência e a corrupção não permitem que grandes negócios sejam realizados sem a participação ou intermediação de uma fundação. Não há controle algum sobre seus negócios e sua contabilidade, pois só devem prestar contas ao Líder Supremo, que indica e afasta os dirigentes. Por trás destas fundações encontraremos as lideranças religiosas (os mulás e aiatolás), os máximos dirigentes do Estado, os comandantes da Guarda Nacional, e uma rede de aliados, ou seja, a nova burguesia que se formou e se consolidou com o regime islâmico, cujos negócios e acúmulo de riqueza dependem de suas relações com o aparato do Estado. Tomemos como exemplo a Mostazafan & Jambazan Foundation (Fundação para os Oprimidos e Inválidos da Guerra), o segundo maior empreendimento comercial do país, perdendo apenas para a gigante estatal National Iranian Oil Co. Ela emprega mais de 400 mil trabalhadores, possuindo ativos superiores a US$ 10 bilhões, em setores tão díspares como a antiga rede de hotéis Hilton, a companhia de refrigerantes Zam-Zam, sucessora da Pepsi, uma companhia de transportes marítimos, petroquímicas, indústrias de cimento, propriedades rurais e imóveis urbanos. Criada originalmente como uma fundação de assistência social, capitalizada com elevadas somas expropriadas das riquezas do Xá, em 1996 começou a requerer fundos governamentais para cobrir os gastos assistenciais, ao passo que começava a abandonar suas funções para se dedicar exclusivamente às atividades comerciais. Esta fundação esteve até há pouco tempo nas mãos de Mohsen Rafiqdoost, Ministro da Guarda Revolucionária nos tempos de Khomeini e transferido para a Fundação em 1989, quando o aiatolá Ali Akbar Hashemi Rafsanjani assumiu a presidência do país. Atualmente, Rafiqdoost, filho de modestos comerciantes de frutas e verduras à época da revolução, é um dos homens mais ricos e poderosos do regime, e está à frente de outra Fundação, a Noor Foundation, que constrói blocos de apartamentos e atua na importação de produtos farmacêuticos, açúcar, materiais de construção, etc. O poder no Estado Iraniano Os protestos que levaram multidões às ruas, contra os resultados eleitorais no Irã, e que ainda continuam, expõem as profundas divisões na sociedade daquele país. A mídia internacional procura caracterizar as eleições como uma disputa entre o Bem (Mir-Hossein Mousavi) e o Mal (Mahmoud Ahmadinejad), sendo que o primeiro representaria a democracia, a liberdade, e a modernidade enquanto o segundo seria a continuidade de uma ditadura, de um país ligado ao terrorismo internacional. Alguns setores da esquerda entendem de outra forma: Mousavi seria um agente a serviço do imperialismo, um entreguista neoliberal, enquanto Ahmadinejad seria a garantia de um país 56 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê independente, antissionista e que manteria acesa a chama anti-imperialista. Afinal, quem e o que representam e defendem estes personagens? O clero xiita foi a direção política de um setor burguês que se insurgiu contra a espoliação exacerbada realizada pelo imperialismo por meio de seu agente, o Xá. Para isso, o clero se apoiou no protesto das massas. Mas assim que se sentiu fortalecida o suficiente, tratou, conforme seus interesses de classe, de reconstruir o Estado burguês e submeter os trabalhadores. Hoje, o clero segue sendo expressão de setores burgueses que lutam por um espaço próprio no mercado, frente à ofensiva recolonizadora e às limitações impostas pela crise econômica mundial. O Estado iraniano é burguês e tem um regime bonapartista. De tal forma que as disputas eleitorais se dão por dentro das instituições e são um jogo de cartas marcadas. As eleições no Irã são totalmente controladas pelo poder central (o Líder Supremo e o Conselho de Guardiões) que não permite candidaturas independentes, de mulheres, e muito menos de opositores de esquerda. Não há liberdade de organização política. Com isso, as disputas eleitorais vêm se resumindo a embates entre representantes das frações burguesas que dão sustentação ao regime. Antes de analisarmos estas disputas entre os setores da burguesia iraniana, vejamos um pouco da biografia de seus representantes: • Aiatolá Ali Khamenei: teve importante papel na implantação da República islâmica, sendo um colaborador bastante próximo de Khomeini. Foi presidente do Irã de 1981 a 1989, ano em que foi eleito Líder Supremo pelo Conselho de Especialistas, em substituição à Khomeini que falecera. É, portanto, o centro do poder hoje, mas é criticado por vários setores do regime que já começam a discutir sua sucessão • Aiatolá Ali Akbar Hashemi Rafsanjani: presidiu o parlamento iraniano entre 1980 e 1989, sendo posteriormente eleito Presidente do Irã de 1989 a 1997, sucedendo Ali Khamenei. É acusado por vários setores de corrupto e de utilizar seu poder para beneficiar os negócios familiares. Em 2003 foi citado pela revista Forbes como um dos homens mais ricos do Irã. Voltou à cena em 2005 quando disputou a presidência com Ahmadinejad, que o derrotou no segundo turno. Rafsanjani ocupa a presidência do Conselho de Especialistas desde 2007. • Mohammad Khatami: antes de ser eleito presidente, Khatami foi membro do Parlamento (de 80 a 82), Ministro da Cultura e ocupou vários cargos no governo. Exerceu o cargo de presidente por dois mandatos, de 1997 a 2005. Sua primeira eleição, em 1997 foi um marco no processo político iraniano, pois 80% do eleitorado compareceu às urnas (o voto não é obrigatório no Irã) e destes, 70% votaram em Khatami, atraídos pelas propostas que o identificavam como um político reformista. No plano econômico, Khatami deu continuidade ao projeto neoliberal de seu antecessor, Rafsanjani, financiando o setor privado, abrindo a economia e acelerando as privatizações. • Mir-Hossein Mousavi: foi primeiro-ministro do Irã de 1981 a 1989, o período da guerra Irã-Iraque. Teve importante papel nos acordos secretos com os EUA, conhecido como o escândalo Irã-Contras. Após a morte de Khomeini, que lhe dava sustentação política, seu grupo ficou enfraquecido Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 57 Dossiê e ele se afastou da vida pública, retornando nas últimas eleições como o candidato a presidência do setor reformista, derrotado por Ahmadinejad. • Mahmoud Ahmadinejad: após a revolução, fez parte da Agência para a Consolidação da Unidade (OSU), entidade estudantil criada para combater os grupos de esquerda que tradicionalmente atuavam nas universidades. Durante a investida contra as universidades, chamada por Khomeini de Revolução Cultural Islâmica, os militantes da OSU promoveram o expurgo de um grande número de professores e estudantes dissidentes, muitos dos quais foram presos e executados. Ocupou cargos de governador em pequenas províncias, até que em 2003 assumiu a prefeitura da cidade de Teerã. Em 2005 foi eleito presidente com um discurso populista, dizendo-se defensor dos pobres. Como se pode constatar são todos políticos com origem no clero ou em organizações ligadas à hierarquia e que fizeram suas carreiras por dentro do regime, ocupando importantes cargos na estrutura de poder iraniano nos últimos 30 anos. Nenhum destes personagens representa um rompimento com o regime teocrático, continuam fiéis à República Islâmica, colocam-se como seus defensores e disputam posições aceitando suas regras. Na essência, Ahmadinejad e Mousavi representam dois grandes blocos da burguesia que disputam eleitoralmente o controle do aparato estatal para melhor se beneficiarem economicamente. Nesse ponto há muita semelhança com as disputas interburguesas tão comuns na maioria dos países e que se expressam em distintos partidos. Esta disputa tornou-se mais acirrada nas últimas eleições, como consequência da crise econômica e da queda do preço do petróleo, o que significa uma diminuição do tamanho do “bolo” e menos oportunidades de negócio. Reflexo disso foi Ahmadinejad acusar publicamente a Rafsanjani de corrupto, enquanto este defendeu o fim da figura do Líder Supremo, que deveria ser substituído por um Conselho de Aiatolás. Há outra componente, relacionada ao tratamento dado aos movimentos sociais (lutas sindicais, juventude, mulheres, minorias étnicas e religiosas), sobre qual é a melhor tática para não fugirem do controle, e assim não questionem ou enfraqueçam o regime islâmico, mas que também deem sustentação eleitoral a uma ou outra ala. Este é um tema extremamente importante e muito atual, já que o governo vem procurando jogar as consequências da atual crise econômica nas costas dos trabalhadores, aumentando os conflitos e tensões sociais. A ala de Ahmadinejad e de Ali Khamenei investe na repressão, no aparato policial e nas milícias fascistas; atacam as lutas sindicais e por liberdades políticas, prendem seus dirigentes; não reconhecem os direitos das mulheres e das minorias étnicas. E trata de compensar essa posição opressiva com populismo, prometendo mais comida aos pobres, e políticas assistencialistas e compensatórias, embalados por um forte discurso anti-imperialista, utilizado para justificar, tanto as “dificuldades econômicas” quanto a repressão aos “agentes desestabilizadores infiltrados”. O discurso anti-imperialista tem ainda a função de elevar, interna e externamente, o regime iraniano como liderança regional, que se coloca contra os interesses americanos na região, fortalecendo-se e aumentando sua importância nas negociações internacionais. 58 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê A ala reformista, representada por Mousavi, defende um regime com algumas aberturas, com maiores liberdades e, que alivie ou desvie as tensões sociais, evitando que fuja do controle, pois teme uma explosão social que possa derrubar os alicerces do regime, como já ocorreu em situações semelhantes. Apresenta-se como liberal, tanto política como economicamente. A campanha de Mousavi baseou-se em promessas vagas como a justiça social, a igualdade, a liberdade de expressão, o combate à corrupção, etc. Com isso, recuperou a simpatia dos movimentos sociais, particularmente da juventude e de setores da classe média, que haviam se decepcionado com o governo de seu aliado Khatami, que há dez anos uniu-se a Khamenei na repressão violenta às manifestações estudantis por liberdades democráticas, liberdades que iam além dos limites aceitáveis para o regime. Esta é uma ala da burguesia iraniana com maiores ligações com o imperialismo europeu, com o qual tem fortes vínculos comerciais em várias áreas, e por isso defende maior abertura econômica e a aceleração das privatizações. Já vimos que estas alas da burguesia iraniana movem-se em defesa de seus interesses na apropriação das riquezas do Estado, mas se unem quando veem qualquer ameaça ao regime teocrático, numa clara indicação de quão limitada é a “democratização” defendida pela ala de Mousavi. E quanto à gestão da economia? Ainda que haja diferenças nos ritmos que cada um quer impor, não há uma disputa entre os defensores da privatização e os que defendem uma economia estatizada. Ou entre aqueles que querem mais relações comerciais com o imperialismo, e aqueles que as rejeitam. Qualquer análise das medidas tomadas por Ahmadinejad mostram que foi em seu governo, considerado estatizante e anti-imperialista por parte da esquerda, que ocorreu o maior número de privatizações, e quando as relações comerciais com o imperialismo, inclusive o americano, mais se intensificaram. Na página oficial da Organização Iraniana de Privatização é apresentada, como oportunidade de investimento para o mercado internacional, a lista das empresas a serem privatizadas em 2009, por meio da venda de suas ações ou pelo recebimento de ofertas2. A lista envolve petroquímicas, siderúrgicas, companhias de gás, de refino de petróleo, companhias aéreas, bancos, a Companhia Iraniana de Telecomunicações. Somado a isso, tem-se o anúncio do atual Ministro do Comercio do Irã, Masoud Mir-Kazemi, de que o Irã atraiu, em 2008, 300% mais investimentos externos que nos dois anos anteriores; ou ainda o anúncio do Ministério de Assuntos Econômicos e Finanças, de que na gestão Ahmadinejad as privatizações já haviam superado em mais de três vezes as ocorridas nos quinze anos anteriores. Por fim, dados oficiais revelam que, apesar dos choques e da hostilidade no discurso, os governos Bush e Ahmadinejad foram extremamente pragmáticos em termos de parceria comercial: as transações comerciais entre EUA e Irã aumentaram cerca de 600% nos quatro anos do primeiro mandato do presidente iraniano. Como vimos, estas duas alas do regime iraniano são semelhantes, e o que levou o acirramento das disputas entre as mesmas atingir um nível inédito nestas eleições é a crise econômica, que como dissemos, reduz as “oportunidades”. Para se manterem, estas alas têm que, necessariamente, uma tomar 2 www.guardian.com. u k / wo r l d / 2 0 0 9 / oct/12/us-irantrade-mahmoudahmadinejad #historybyline, acessada em 26/10/09 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 59 Dossiê o espaço da outra, e isso enfraquece o regime, provoca fissuras. O problema para eles é que a crise tem outras consequências: ao procurar transferir a conta para os trabalhadores, leva-os a reagirem, a se defenderem, a lutarem... e é isso o que explica o aumento das greves no último período. As massas, ao entrarem em cena na luta por seus interesses, intervêm no processo eleitoral, e acirram ainda mais as contradições do regime bonapartista, levando a uma crise nas alturas. É muito difícil, dado o grau de crise e enfraquecimento do regime, que mesmo com a violenta repressão seja possível voltar ao status anterior, como almeja Ahamadinejad, ou apenas com pequenas aberturas como querem Mousavi e Rafsanajani. A experiência da revolução de 79 poderia servir de lição aos ditadores de hoje, e talvez seja a origem dos fantasmas de suas noites mal dormidas. Esta revolução certamente continua nas mentes e corações dos trabalhadores, que foram novamente despertados para a ação política de massas. Os acordos do Irã com o imperialismo para a estabilização da região Não se pode entender a posição dos imperialismos na crise que vem se arrastando desde junho, sem analisarmos o papel que ultimamente o Irã vem cumprindo na situação regional: se por um lado o imperialismo tenta, desde a revolução de 79, liquidar definitivamente qualquer traço de independência do regime (e isso explica, por exemplo, a pressão que vem fazendo contra o programa nuclear), por outro reconhece a importância do Irã na solução dos vários problemas regionais causados pela desastrosa política da “guerra contra o terror” de Bush, que reduziu significativamente a força de pressão militar dos EUA, apesar das centenas de milhares de soldados enviados ao Iraque e Afeganistão sem conseguir estabilizar a situação. Some-se a isso a derrota de Israel no Líbano em 2006, além de outro componente explosivo, que foi a abertura da “caixa de pandora” das lutas inter-étnicas na região. Hoje os americanos já não podem contar com aliados de peso na região: já não contam mais com ex-aliados, como Sadam Hussein em 1980, antes de ser descartado, nem com a influência que o Egito já teve, hoje governado por Mubarak cada vez mais desmoralizado perante as massas, pelo seu giro à direita; Israel é odiado e saiu enfraquecido do Líbano, e não se pode contar com a monarquia corrupta da Arábia Saudita. O Irã tornou-se o único país com peso suficiente sobre as direções e sobre as massas para desempenhar um papel significativo na estabilização da região. Sua influência sobre o Hezbollah, e nos últimos tempos sobre o Hamas, o fortalece como um fator real de poder na área. Mesmo a Síria, até hoje governada pelo Baas, tem se colocado em uma parceria com os iranianos para subsistir frente à pressão de Israel e dos EUA. O imperialismo viu-se então obrigado a negociar e contar com algum tipo de relação com o mesmo regime acusado de “fora-da-lei”, “terrorista”, etc. E estas negociações começaram ainda durante o governo de Bush, para garantir minimamente a estabilidade no Iraque, com o governo títere de Jaafari e depois de Al Maliki, dirigentes da burguesia xiita iraquiana que eram e são até hoje homens de confiança do Irã. Como explicar que os governos de Jaafari e agora de Al Maliki, totalmente vinculados politicamente ao Irã, 60 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê sejam o braço da ocupação se não por uma aliança prática entre Irã e EUA na sustentação desse “governo”? As negociações entre EUA e Irã desenvolveram-se ainda mais com a mudança da realidade após a derrota da política de guerra contra o terror de G. W. Bush. Apesar dos conflitos com os EUA, estes não impediram que a direção da república islâmica negociasse e colaborasse ativamente com a dominação imperialista na região, sempre que isso permitisse tirar algum proveito, conseguir ao menos uma pequena parte dos despojos da rapina imperialista. Além do exemplo já citado dos acordos para a sustentação dos governos títeres no Iraque, é um fato já documentado que o Irã vem colaborando com os EUA em sua ocupação do Afeganistão. Como os talibãs não estão sob sua esfera de influência, e sob o argumento de que o Talibã pode vir a se tornar um problema para a estabilização da região, o Irã permite que armas americanas atravessem seu território para abastecer as tropas que ocupam o Afeganistão. Além disso, o Irã tem pressionado política e financeiramente o Hezbollah para que se incorpore ao governo burguês do Líbano. Assim, o Irã contribuiu para uma relativa estabilização regional, por acalmar uma das principais organizações que enfrentam militarmente Israel, permitindo um respiro ao Estado sionista. O governo Obama, diante da crítica situação deixada por Bush no Oriente Médio, definiu-se por intensificar as negociações com as forças da região, buscando uma saída honrosa para a retirada de seus soldados, ao mesmo tempo em que tenta uma relativa estabilização da região. Para isso, dispõe-se a uma maior interação com o Irã, o que explica em parte a mudança no tom das negociações. Os EUA mostram-se dispostos a reavaliar uma colaboração com os aiatolás, desde que o regime aceite alguns limites, como o abandono do projeto de enriquecimento de urânio e suas pretensões de produzir armas nucleares. Não por acaso, Obama fez questão de dizer que abriria o diálogo com o regime do Irã em sua campanha eleitoral, apesar de suas diatribes contra Israel. E estimulou abertamente Lula a receber Ahmadinejad em dezembro no Brasil, para convencê-lo a ser mais flexível. O Programa Nuclear Iraniano: mais uma capitulação ao imperialismo Apesar de todas “propostas de diálogo” feitas ao Irã, o imperialismo é muito claro nas negociações referentes ao acordo nuclear: não aceitará que o Irã se dote de uma tecnologia que lhe permita desenvolver armas nucleares, pois isso provocaria muito mais instabilidade da região, particularmente com Israel. No entanto não conseguem demonstrar que o Irã esteja infringindo alguma das regras das convenções internacionais, mesmo considerando-se o Tratado de Não Proliferação vigente, que serve aos interesses das grandes potências. Apesar disso os EUA exigem o fim do programa nuclear iraniano, sob o argumento de que o país não necessita de usinas nucleares para a produção de eletricidade. Esquecem-se que anos antes usaram argumento inverso para poder vender reatores ao Irã, quando esse era dirigido pelo governo fantoche dos americanos. Os EUA têm uma política seletiva para a questão nuclear: apoiou e colaborou com o programa nuclear de Israel e do Paquistão, sem Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 61 Dossiê que estes países, juntamente com a Índia (outra aliada), assinassem o Tratado de Não Proliferação. Nestes anos todos, o Irã tem denunciado publicamente a discriminação pela qual vem passando, e afirmado que não abrirá mão de seu direito de enriquecer urânio. Defendemos o direito do Irã à posse e desenvolvimento da tecnologia nuclear, inclusive a de produzir armas nucleares para defender-se do imperialismo e de Israel. No entanto, a tendência do regime nesse campo também tem sido a de capitular, mantendo o discurso anti-imperialista para seu público interno, e buscando conseguir melhores condições nas negociações conduzidas pela AIEA e pelo Conselho de Segurança da ONU. O Irã vem cedendo cada vez mais sua autonomia, chegando ao ponto de aceitar, mesmo com idas e vindas, abrir mão de seu programa de enriquecimento, e enviar seu urânio estocado (enriquecido a 3,5%) para ser enriquecido na Rússia e França ao nível de 18,5%, retornando já como elementos combustíveis montados em reator nuclear para a produção de radio-fármacos utilizados no diagnóstico e tratamento de câncer. Assim, o Irã não teria urânio em quantidade suficiente para promover o enriquecimento nos níveis necessários para a construção de armas nucleares. Qual a saída para o Irã sob a ótica da classe trabalhadora? A única saída viável para o Irã é uma revolução que derrube o Estado vigente e aponte a tomada do poder pela classe operária aliada aos camponeses e setores populares. Os diversos processos de luta que vêm ocorrendo ultimamente se enfrentam diretamente com o inimigo verdadeiro: a ditadura teocrática, que reprime os trabalhadores, a juventude, as mulheres, as minorias étnicas e religiosas, e todos os opositores de um modo geral. Como dissemos no início deste texto, as manifestações de junho foram as maiores desde 79, e fez com que todos se recordassem daquele processo. Mas muitos detratores do movimento dizem que eram apenas manifestações da “classe média” urbana, manipuladas pelo imperialismo. Qualquer análise séria mostra que nas manifestações de junho havia uma participação do movimento operário organizado, seja através de presença física de trabalhadores ou de manifestos como o da Iran Khodro e dos condutores de Teerã. Por isso, houve fortes manifestações não somente em Teerã, mas também em cidades industriais como Isfahan, ou Tabriz (na região azerbaijã). Por outro lado, houve uma participação importante dos professores, das mulheres, do movimento estudantil e de intelectuais. Isso se deu porque a classe operária e os setores populares estão fartos de serem reprimidos e sofrerem as consequências da exploração capitalista, avalizada pela hierarquia xiita. Ou seja, foi de fato um levante operário e popular contra um regime burguês repressivo, apesar de sua direção ser capitalizada por uma ala da burguesia. Em um enfrentamento entre as massas e esse regime, não pode haver nenhuma dúvida quanto ao lado que nos posicionamos: do lado das massas que exigem seus direitos democráticos, ao mesmo tempo em que denunciamos a direção política burguesa e pró-imperialista, representada por Mousavi. Não se pode permitir que os mesmos erros de 79 se repitam, e que a burguesia, (seja a governante, ou as frações opositoras), tome a direção deste 62 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê processo de lutas; isso novamente levaria as massas a um beco sem saída. É preciso que a classe operária iraniana avance em suas instâncias e métodos de organização, postule-se como direção dos demais setores oprimidos, e construa uma saída classista para o Irã, oposta ao regime dos aiatolás, e contra a oposição burguesa e o imperialismo; uma saída que aponte para uma sociedade socialista. A defesa das liberdades democráticas não pode ficar nas mãos do imperialismo O governo Ahmadinejad continua a perseguição aos opositores após as manifestações de junho, sob o pretexto de que são organizados pelo imperialismo. Infelizmente, uma parte significativa da esquerda, particularmente a ligada aos partidos stalinistas e aos chavistas, alinha-se a esta posição e defende o governo de Ahmadinejad, classificando os protestos como uma “conspiração da CIA”. Dessa forma, acabam defendendo a sangrenta repressão do governo iraniano sobre as massas, alegando que é justificável a repressão ao povo para defender-se do imperialismo. Essa postura, na prática, é uma valiosa contribuição ao imperialismo, pois deixa em suas mãos sujas de sangue a bandeira da defesa das liberdades democráticas e da denúncia da repressão. Estas bandeiras devem estar nas mãos das organizações dos trabalhadoresàs quais é destinado o papel de capitanear o processo de luta dos oprimidos, chamando a mais ampla unidade de ação em defesa dos direitos democráticos. Por liberdade de expressão e de imprensa, eleições livres, liberdade de organização política, por uma Assembleia Constituinte e laica, pelo direito a organizar sindicatos livres, pelos direitos de organização e expressão das minorias, e pelo fim de todas as instituições bonapartistas típicas do regime teocrático. E devem, neste processo, colocar suas bandeiras de classe contra a exploração capitalista e por seu direito à organização independente. Esse é o caminho para desmascarar Mousavi e sua ala, que têm como limite a defesa do regime. É preciso combatê-la por dentro do processo de mobilização para que não canalizem as legítimas aspirações das massas iranianas para o beco sem saída da reforma do regime e da abertura cada vez maior ao imperialismo. Repetimos que, se os trabalhadores e a esquerda mundial não assumirem a bandeira das liberdades democráticas no Irã, estas serão arrebatadas por setores da burguesia e do imperialismo, que acabarão ganhando o respaldo das massas. Defender a repressão às manifestações em nome de uma suposta natureza anti-imperialista de Ahmadinejad e do regime é repetir a traição do Tudeh iraniano e da esquerda anti-Khomeini após 79, o que permitiu o fortalecimento do regime, e a repressão ao desenvolvimento de uma alternativa independente de classe no Irã. A esquerda revolucionária deve impulsionar a luta contra a ditadura dos aiatolás, e ao mesmo tempo denunciar qualquer ilusão na oposição burguesa e no imperialismo. A tomada do poder pela classe trabalhadora é o único caminho para expulsar de vez o imperialismo e acabar com a exploração capitalista no Irã. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 63 Dossiê Afeganistã~ao: Uma encruzilhada para o imperialismo Bernardo Cerdeira Editor de Marxismo Vivo 2001: ocupação do Afeganistão pelos EUA A atual situação do Afeganistão está marcada por três problemas fundamentais. O primeiro é, obviamente, a guerra, que já dura oito anos, entre os mais de cem mil soldados das forças de ocupação imperialista e a guerrilha do Talibã. O segundo é a crise do governo e do regime político colonial, montados e sustentados pelos EUA, afundados em corrupção, tráfico de drogas e fraudes eleitorais. O terceiro é o dilema da política global do imperialismo, que deve decidir entre aumentar a escalada militar de envio de tropas e armamentos ou se arriscar a que o Talibã tome outra vez o poder. Partindo da análise destes três aspectos, queremos chegar às questões mais importantes que estão em jogo na guerra do Afeganistão. A guerra No Correio Internacional de setembro deste ano, a LIT resumia assim a atual situação militar dos Estados Unidos neste conflito: Tropas dos Estados Unidos ocupam o Afeganistão há oito anos, um período quase 50% mais longo que o envolvimento do país nas duas Guerras Mundiais. No entanto, depois de todo este tempo, o Talibã, que foi deposto do governo no momento da ocupação em 2001, mantém uma atividade guerrilheira permanente em quase todo o país. Segundo o centro de estudos britânico International Council on Security and Development (citado pelo Estado de São Paulo de 11/09/2009) o Talibã age em 97% do território afegão. Em 80% do país a presença de insurgentes seria permanente. Esta porcentagem vem crescendo 64 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê rapidamente, já que em novembro de 2007 era de 54% e em 2008, 72%, segundo o mesmo estudo. Um mapa produzido pelo instituto mostra que quase metade do país está sob controle dos Talibãs ou sob risco de ataque. Nos últimos meses, os insurgentes aumentaram seus ataques no norte do país, uma região que até então era considerada pacífica. As baixas americanas e dos outros países da OTAN vêm crescendo constantemente e atingiram seu número mais alto este ano. As tropas de ocupação controlam apenas a região da capital Cabul, mas mesmo assim não conseguem evitar os ataques do Talibã, inclusive um atentado a bomba em frente ao quartel-general da OTAN que matou 7 pessoas.1 A situação descrita acima não só se confirmou como se agravou sensivelmente nos últimos dois meses. Em outubro morreram 55 soldados americanos, o maior número de baixas em um único mês desde o início da guerra. Por outro lado, o Talibã intensificou os ataques aos caminhões que abastecem regularmente as tropas imperialistas com combustíveis, alimentos e suprimentos. Vários comboios que vêm do Paquistão, atravessando as montanhas pela rota do Passo Khyber, têm sido atacados e destruídos. O aumento de ações do Talibã prossegue apesar do governo Obama ter procurado fortalecer sua posição militar este ano: enviou mais 30 mil soldados ao país e deslocou quatro mil deles para a província de Helmand, para combater a presença dos insurgentes na região, uma das mais conflagradas do Afeganistão. Atualmente, 68 mil soldados dos Estados Unidos e 32 mil de outros países da OTAN ocupam o país, totalizando 100 mil militares, o maior número desde o começo da guerra. As forças da OTAN, além dos EUA, são compostas principalmente por soldados de países imperialistas europeus: a Inglaterra com 8300 homens; a Alemanha tem 3600; França, 3300; Espanha, 2400; Itália 2800. Mesmo assim, o general Stanley McChrystal, comandante das forças de ocupação no Afeganistão, pediu ao governo o envio de mais 40 mil soldados, sem os quais, segundo ele, os EUA estariam sob risco de sair derrotados desta guerra. Não é necessária tal declaração para se concluir que os Estados Unidos e a OTAN estão com graves problemas do ponto de vista militar. A maior evidência é o próprio pedido de aumentar as tropas americanas em 60%, o que significa um esforço de guerra extraordinário, com o equivalente em armas e suprimentos. Com as Forças Armadas dos EUA esgotadas depois de combater durante oito anos em duas guerras simultâneas, é fácil entender que não se apelaria para tal medida se esta não fosse decisiva. O imperialismo não pode se dar ao luxo de sofrer outra derrota militar, desta vez no Afeganistão. A derrota no Vietnã custou anos de crise até que os Estados Unidos pudessem retomar sua ofensiva contra os povos explorados do mundo. A derrota no Iraque, ainda que o governo dos EUA tente atenuar seus efeitos e busque uma retirada “honrosa”, significou o fim do projeto de um novo “século americano” e da ofensiva bonapartista que o acompanhava. Uma derrota no Afeganistão pode abrir uma nova crise de grandes proporções. 1 Correio Internacional, n. 152, setembro 2009 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 65 Dossiê O Talibã e a extensão da guerra ao Paquistão Outro aspecto fundamental da situação militar é a facilidade geográfica que o Talibã encontra para desenvolver sua atividade guerrilheira. Como todos os movimentos de guerrilha bem-sucedidos, o Talibã se fortalece porque tem um país vizinho, neste caso o Paquistão, que pode utilizar como refúgio para seus militantes. Os insurgentes do Talibã atravessam a fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, porosa e com muito pouca vigilância, e se abrigam no país vizinho. Aproveitam-se dos laços étnicos, culturais e até familiares, já que sua principal base de apoio encontra-se entre o mesmo povo, os pashtun, que vive dos dois lados da fronteira. O povo pashtun, que constitui a maior etnia do Afeganistão com 40% da população, também está presente em grande número no Paquistão, principalmente na chamada Província da Fronteira Noroeste, nas Áreas Tribais e no norte da Província do Baluquistão. Além disso, no Paquistão existem mais de cinco milhões de refugiados afegãos, a maioria de pashtuns, uma grande parte concentrada ao redor da cidade de Peshawar. No total, 26 milhões de pashtuns vivem no Paquistão. O Talibã chegou a dominar uma região, o Vale do Swat na Província da Fronteira Noroeste, onde implantaram a Lei muçulmana da sharia2, com o acordo implícito do governo paquistanês. Recentemente, o governo rompeu o acordo e atacou o Talibã, expulsando-o do Vale. No entanto, a ofensiva do exército paquistanês gerou mais de dois milhões de refugiados paquistaneses em seu próprio país. Nos últimos dias de outubro, o exército paquistanês começou outra ofensiva, desta vez para tentar desalojar o Talibã do Waziristão do Sul, uma região das chamadas Áreas Tribais do Paquistão. Para se ter uma idéia do que significa a presença do Talibã nesta área, é interessante ver o depoimento do jornalista David Rohde do New York Times. Rohde foi sequestrado no Afeganistão e mantido como refém durante sete meses pelos Haqqani, uma das facções do Talibã. Depois foi levado para o Waziristão do Sul e mais tarde para o Waziristão do Norte. Ali, o Talibã criou um mini-Estado, um “emirado islâmico” no feitio do que havia no Afeganistão antes da invasão das tropas dos EUA. O jornalista afirma: “A perda de milhares de vidas afegãs, paquistanesas e americanas e bilhões de dólares em ajuda americana apenas deslocaram o Estado alguns quilômetros para o leste, não o eliminaram”.3 O que fica evidente com as campanhas do exército paquistanês no Vale do Swat e no Waziristão é que a guerra estendeu-se ao Paquistão. As razões são políticas e sociais, facilitadas pela geografia. Os dois países compartilham 2400 quilômetros de fronteira, mas esta linha existe somente nos mapas. Ou seja, como pano de fundo da extensão do conflito ao Paquistão está uma questão nacional muito presente nesta região: a divisão artificial do povo pashtun promovida pelo imperialismo britânico em 1893, quando estabeleceu a Linha Durand, uma fronteira traçada entre a Índia Britânica e o território afegão. Durante décadas, nacionalistas pashtuns defenderam a criação do Pashtunistão como um país independente, constituído pelas áreas sob domínio desta etnia no Afeganistão e Paquistão. 66 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 2 Corpo de Direito islâmico, adotado pela maioria dos mussulmanos. Constitui um código detalhado de conduta, na qual se incluem também as normas relativas aos modos do culto, os critérios da moral e da vida, as coisas permitidas ou proibidas, as regras separadoras entre o bem e o mal. 3 The New York Times, artigo reproduzido pela Folha de S. Paulo (02/11/2009) Dossiê Esse processo, portanto, deve ser entendido no seu contexto regional e mundial. A guerra do Afeganistão é uma guerra de libertação nacional contra a ocupação militar imperialista. Por isso une diferentes etnias de países da região, que também lutam contra a opressão do imperialismo e seus agentes nacionais e a divisão promovida pelo imperialismo. A guerra não só já está desestabilizando o Paquistão como pode chegar a desestabilizar toda a região, porque, além disso, o Afeganistão tem uma posição estratégica no Oriente Médio: está localizado entre o Irã, a Ásia Central e o subcontinente indiano e tem laços étnicos com os povos iranianos, turcos e indianos de vários países da região. Porém, o mais importante é que esta guerra de libertação nacional se insere no contexto geral da luta dos povos islâmicos contra o imperialismo. Por isso, assistimos ao fenômeno de combatentes de diferentes nacionalidades islâmicas apoiando a insurgência. Por fim, ao golpear e enfraquecer diretamente o imperialismo, a guerra de libertação nacional do povo afegão transforma-se em um fato de repercussão mundial para os trabalhadores e os povos de todo o mundo. Antes, porém, de abordar a situação política da ocupação militar e a política de Obama, parece-nos útil aportar alguns dados que permitam compreender melhor o Afeganistão e alguns elementos de sua história recente. O que é o Afeganistão? O Afeganistão é um país com 85% do seu território formado por montanhas, numa área de 647,5 mil km². Sua população estava estimada em cerca de 32 milhões de habitantes em 2008. É um dos países mais pobres do mundo. A taxa de mortalidade infantil é de 160,23 mortes a cada 1000 nascimentos. A expectativa de vida é de 43 anos. A instabilidade política e os conflitos internos arruinaram a já débil economia e infra-estrutura. Hoje, cerca de 1/3 da população afegã já abandonou o país. No Afeganistão convivem diferentes grupos étnicos que em sua maioria são povos iranianos, ou seja, falam idiomas indo-europeus do subgrupo das línguas iranianas (os pashtuns, os tadjiques e os balúchis, por exemplo). Outras etnias falam línguas do grupo turco (como os uzbeques e turcomanos). O idioma dari, também chamado de persa oriental ou farsi oriental, é falado em 50% do país e utilizado como língua franca de comunicação entre os diferentes povos iranianos. Como não há um censo sistemático no país, não existem estatísticas exatas do tamanho e da composição dos variados grupos étnicos. Segundo o CIA World FactBook4, uma distribuição aproximada é a seguinte: pashtuns, 42%, tadjiques 27%, hazaras 9%, uzbeques 9%, aimaks 4%, turcomanos 3% e balúchis 2%.5 Estes grupos étnicos vivem também em vários dos países com os quais o Afeganistão faz fronteira. Por exemplo, existem cerca de 26 milhões de pashtuns no Paquistão, segundo o último censo. A maioria vive na Província da Fronteira Noroeste, cuja capital é Peshawar, mas também existem 3,5 milhões de pashtuns em Karachi, a maior cidade do Paquistão e que abriga a maior concentração da etnia pashtun em uma única cidade. Outras etnias 4 Espécie de anuário da CIA onde analisam dados geográficos, econômicos e sociais de todos os países do mundo. 5 CIA World FactBook, 2007. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 67 Dossiê são majoritárias em países vizinhos, como Tadjiquistão, Uzbequistão e Turcomenistão. As bases históricas da guerra atual Os elementos da história recente do Afeganistão que explicam as raízes da guerra atual começaram a ser gerados há três décadas: a Revolução iraniana e a invasão soviética do Afeganistão. Em 1979, uma revolução operária e popular no Irã derrubou a ditadura do Xá Reza Pahlevi. Este acontecimento teve um tremendo impacto sobre os povos islâmicos oprimidos pelo imperialismo. Também teve repercussão entre as então Repúblicas de maioria islâmica da fronteira sul da ex-União Soviética (Uzbequistão, Cazaquistão, Turcomenistão, Tadjiquistão, Quirquistão)6, assim como entre as etnias islâmicas dentro da Rússia (como os chechenos), todas oprimidas pelo “chauvinismo” grão russo, incentivado pela burocracia stalinista. O Afeganistão tinha um governo próximo ao da União Soviética, mas ameaçado por uma crescente oposição islâmica e problemas internos. Temendo a constituição de uma república islâmica na sua fronteira e a possível extensão da revolução islâmica a suas repúblicas da Ásia Central, a União Soviética invadiu o Afeganistão. A invasão soviética desencadeou uma luta guerrilheira de resistência. Os Estados Unidos aproveitaram-se da insatisfação gerada pela invasão para combater a influência soviética nessa parte do mundo e desgastar a burocracia comunista. Para isso, apoiaram e armaram uma guerrilha muçulmana, os “mujaheddin”, à qual se uniram combatentes islâmicos de vários países, entre os quais Osama Bin Laden e boa parte das organizações islâmicas fundamentalistas atuais. Alguns dos principais atores da guerrilha foram os “senhores da guerra”, oligarcas que hoje dirigem as principais nacionalidades do país. Depois de dez anos, a guerrilha islâmica expulsou os soviéticos em 1989 e tomou o poder, mas, em seguida, os grupos se dividiram, passaram a se enfrentar e o país mergulhou na guerra civil. Diante desta situação, os Estados Unidos, agindo por meio de seu aliado, a ditadura militar que governava o Paquistão, buscaram criar um instrumento para estabilizar o país. O ISI (organismo de segurança do governo paquistanês) incentivou a formação de uma organização de estudantes das Madrassas (escolas islâmicas) da região onde predomina a etnia pashtun. Seus membros ficaram conhecidos como Talibãs, palavra emprestada do árabe talib (estudante ou quem estuda o livro, isto é, o Corão) e utilizada no plural Talibã (em farsi e em pashtun). O Talibã entrou na guerra civil e, depois de uma campanha militar vitoriosa, conseguiu tomar o poder e governar o país de 1996 a 2001. No princípio, o Talibã foi visto com muita simpatia porque trazia ordem a um país mergulhado no caos e na destruição devido aos confrontos entre os “senhores da guerra”. Depois, no entanto, foi se desgastando, à medida que foi instituindo uma república islâmica das mais reacionárias e repressivas do mundo, especialmente em relação às mulheres. No entanto, por mais reacionário que fosse, o governo do Talibã não gozava da confiança dos Estados Unidos, pois não estava sob seu controle. O 68 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 6 O nome desses países é formado pela adição do sufixo ostan (que quer dizer “lugar” em farsi ou persa) e o nome da etnia principal do país. Assim, Uzbequistão significa “lugar ou terra dos uzbeques”, Tadjiquistão, “lugar ou terra dos tadjiques” etc. Afeganistão significa “lugar, terra ou país dos afegãos”, que é o nome pelo qual eram conhecidos os pashtuns. Dossiê atentado de 11 de setembro de 2001 e o objetivo declarado de capturar Osama Bin Laden, aliado do governo Talibã, foi o pretexto para Bush invadir o país. Mas as verdadeiras razões da guerra eram econômicas e geopolíticas. Um dos objetivos centrais do imperialismo é o escoamento da produção das principais empresas petrolíferas dos países da Ásia Central (Cazaquistão, Uzbequistão) por um oleoduto que atravessaria todo o Afeganistão até um porto no Paquistão. Desta maneira, aquele teria o controle total sobre os oleodutos e gasodutos, ou seja, o transporte do petróleo que atualmente está nas mãos da Rússia. Além disso, o Afeganistão tem uma posição geográfica estratégica para a estabilidade da região. Está localizado entre o Oriente Médio, região detentora das maiores reservas de petróleo do mundo, a Ásia Central, que também tem importantes reservas, e o subcontinente indiano. Um dos objetivos da ocupação era manter bases militares permanentes dos EUA no Afeganistão. Expulso do governo, o Talibã voltou a se organizar e desencadeou uma guerra de guerrilha contra as tropas de ocupação. O imperialismo, mais uma vez, atuou como “aprendiz de feiticeiro”, criando um instrumento que mais tarde voltou-se contra ele. Contraditoriamente, um movimento reacionário atualmente luta de armas na mão contra o imperialismo. A crise política da dominação colonial Com a ocupação militar por tropas do imperialismo norte-americano e seus aliados, o Afeganistão transformou-se numa verdadeira colônia, sem independência política ou econômica. Como na maioria das colônias, a ”metrópole” procura transferir para um regime político e um governo “local” algumas tarefas da administração da máquina estatal civil e, inclusive, uma parte da repressão interna (embora, no caso do Afeganistão, a guerra de libertação nacional force a que a maior parte da repressão seja assumida pelas forças de ocupação). Os Estados Unidos nomearam diretamente o governo de Hamid Karzai para cumprir este papel no Afeganistão. É um governo colonial fantoche que depende totalmente das tropas de ocupação. E se baseia em um regime de democracia colonial farsesco, em que todas as instituições se apoiam nas tropas de ocupação ou em organismos internacionais para poder existir. Mas, apesar disso, o imperialismo tenta conferir ao regime uma aparência democrática e ao governo um reconhecimento internacional que justifique a ocupação militar. No entanto, os Estados Unidos enfrentam uma dificuldade enorme não só para montar este regime e governo coloniais locais como para organizar o próprio Estado. O aparato estatal e a própria infraestrutura do país são muito débeis devido ao atraso, às dificuldades geográficas e aos quase trinta anos de guerras permanentes desde a invasão pela União Soviética. O próprio exército afegão, a mais importante instituição de qualquer Estado, não passa de uma junção dos exércitos dos “senhores da guerra”, que controlam as principais etnias do país (tadjiques, uzbeques e hazaras). A polícia afunda-se em incompetência e corrupção e o tráfico de ópio e heroína atinge os principais escalões do governo. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 69 Dossiê A produção de drogas é um dos elementos não só de corrupção, mas também de fragilização do Estado. E não é um problema qualquer: no Afeganistão, o ópio, proveniente das plantações de papoula, é o principal produto de exportação, com um valor estimado em US$ 5 bilhões anuais. O país produz 93% da matéria-prima mundial necessária para a fabricação da heroína. O imperialismo utiliza frequentemente as drogas como uma arma política. Mas, neste caso, existe um grande risco, nos dois sentidos. Por um lado, não há como controlar as plantações de papoula, principalmente nas regiões mais conflagradas. Por isso, o dinheiro da droga é uma das principais fontes de financiamento do Talibã. A província de Helmand, com forte presença do Talibã, produz 70% do ópio afegão. Por outro lado, o narcotráfico infiltra-se diretamente no aparato do Estado fantoche. Um dos principais traficantes do país é Walid Karzai, irmão do atual presidente e denunciado como sendo um agente pago pela CIA desde 2001. Neste aspecto, a situação no Afeganistão se parece cada vez mais com o Vietnã, onde os principais traficantes do país chegaram a ser Nguyen Van Thieu e Cao Ky, respectivamente presidente e vice-presidente do governo fantoche do Vietnã do Sul. O perigo para Karzai é terminar como Cao Ky ou Ngo Dinh Diem, alijados do poder por disputas internas entre os grupos de traficantes do governo. Esses problemas estruturais do regime colonial, que têm a ver com uma produção econômica e uma burguesia local extremamente frágeis e com o apoio maciço à insurgência guerrilheira, constituem o pano de fundo da atual crise política do processo eleitoral e do governo de Karzai. Em setembro, o Correio Internacional já assinalava a crise do processo eleitoral e os problemas que isso trazia para o objetivo do imperialismo de tentar dar uma aparência de legitimidade à ocupação militar e à guerra. Esta conclusão tornou-se evidente com as últimas eleições presidenciais no país, realizadas em 21 de agosto. O processo eleitoral custou 300 milhões de dólares e muito esforço para seus organizadores, mas o desfecho é de crise. Calcula-se que somente compareceram às urnas cerca de 40% a 50% dos 15,6 milhões de eleitores em condições de votar. O resultado é bem inferior à eleição anterior, realizada em 2004, quando a participação, segundo os organizadores, chegou a 70% dos eleitores. A abstenção eleitoral mostrou a fragilidade do governo afegão e das “instituições” criadas pelo imperialismo. Um só dado mostra bem esta situação: em Kandahar, província e cidade do mesmo nome, localizada no sul do país e santuário do Talibã, a abstenção pode ter chegado à incrível porcentagem de 95% de um milhão de eleitores registrados, segundo observadores internacionais independentes. O processo de votação esteve marcado pelas denúncias de fraude que favoreceram o presidente Karzai, que tenta ganhar no primeiro turno para evitar o prolongamento da campanha eleitoral até 1º de outubro, quando se daria o segundo turno.7 Das eleições para cá, a crise e o desmascaramento da farsa só aumentaram. As denúncias de fraude nas eleições foram tão grandes que obrigaram os organismos internacionais a pedirem a anulação de mais de um milhão de votos. 70 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 7 Correio Internacional, 152, setembro de 2009. Dossiê A pressão obrigou a Comissão Eleitoral Independente (sic), ligada a Karzai, a anular estes votos. Com a anulação, Karzai não atingiu a maioria para ser eleito no primeiro turno, o que obrigaria a realização de um segundo turno. O imperialismo, que antes das eleições já percebia a ineficiência do governo de Karzai para cumprir seu papel de fantoche com um mínimo de credibilidade, pressionava para um acordo para a participação de Abdullah Abdullah e outros candidatos no novo governo. O segundo turno chegou a ser anunciado, mas o candidato de oposição Abdullah Abdullah, que deveria enfrentar Karzai, renunciou da segunda, denunciando que não havia garantias mínimas para uma eleição democrática. Com isso, Karzai foi declarado finalmente vencedor (sic), depois de dois meses de crise que só confirmaram a fraude do sistema eleitoral e do regime. Ou seja, um verdadeiro desastre político. A conclusão a que chegava o Correio Internacional há dois meses é mais válida que nunca: “(...) as eleições serviram muito pouco ao propósito do imperialismo de criar a imagem de um regime democrático e de uma situação mais estável, apesar da guerra”8. Esta crise política do regime colonial de dominação faz recair mais ainda sobre as tropas de ocupação o peso do combate à insurgência guerrilheira. A política de Obama A estratégia e as táticas do atual governo dos Estados Unidos para a guerra do Afeganistão só podem ser consideradas no marco da política geral do imperialismo contra os trabalhadores e os povos explorados de todo o mundo. Esta política é analisada por Alejandro Iturbe em outro artigo deste número da Marxismo Vivo, que explica a mudança de tática do imperialismo para continuar enfrentando a luta dos trabalhadores e povos do mundo no novo cenário criado pela derrota da ofensiva militar do governo Bush. A nova política do imperialismo está marcada por duas orientações gerais. Por um lado, continua sendo imperialismo e, por isso, mesmo com um presidente negro que utiliza um discurso conciliador, democrático, que prega a união de povos e classes, continua tendo como objetivo principal explorar a classe operária de todo o mundo e saquear as riquezas dos países explorados. Para isso, continua disposto a utilizar todos os recursos e a violência necessária e possível na atual situação mundial. Mas, por outro lado, a derrota do projeto de Bush enfraqueceu o imperialismo e obrigou-o a adotar uma tática preferencial de negociações, planos de “paz” e manobras “democráticas” para desviar e derrotar revoluções e processos de insurgência armada. Isso não significa que o imperialismo abandone as guerras e as ações armadas, mas que prioriza a tática das negociações, utilizando a força para pressionar os inimigos e obrigá-los a claudicar, capitular e a colaborar em troca de concessões “democráticas”. Mas, quando passamos da análise da tática mundial do imperialismo para abordar a situação concreta do Afeganistão, parece haver uma contradição: o novo governo de Barack Obama vem intensificando a intervenção militar neste país. Desde a campanha eleitoral, Obama vem defendendo que é no Afeganistão que se trava a principal batalha contra o terrorismo e que agora, 8 Idem Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 71 Dossiê ao contrário da guerra do Iraque, as tropas americanas podem sair vitoriosas. Depois da posse, Obama mandou mais 30 mil soldados ao país e prometeu transformar o Afeganistão no centro da “guerra contra o terrorismo”. Utiliza os mesmos argumentos de Bush, de que esta seria uma “guerra justa” porque é contra o terrorismo, e prometeu “destruir, desmantelar e derrotar a Al-Qaeda e seus aliados extremistas”, inclusive os talibãs. Este discurso e estas iniciativas poderiam indicar que o presidente dos EUA estaria preparando uma volta à ofensiva guerreira de Bush, senão em todo o planeta, pelo menos no Afeganistão? Em nossa opinião é o contrário: este é um dos países onde o governo Obama mais busca aplicar sua nova tática. O problema é que também é o lugar onde o imperialismo está em piores condições de aplicar qualquer política. Obama sabe que o curso desta guerra não pode ser mudado com o envio de mais tropas, a não ser em uma escala que não seria aceita pela opinião pública norte-americana. Um ex-agente da CIA chegou a afirmar que seriam necessários um milhão de soldados para derrotar o Talibã e estabilizar o país. Por quê? Porque é evidente que a insurgência guerrilheira tem apoio de massas entre a população. Se não, não seria possível para o Talibã desenvolver uma ação permanente em 80% do país. E por que os insurgentes têm apoio? Porque a ocupação militar piorou muito a situação do país. Produziu bombardeios constantes que atingem indiscriminadamente a população e já mataram dezenas de milhares de civis. Só em 2008, os EUA realizaram 3572 ataques aéreos, boa parte por meio de drones, aviões sem piloto. O regime político, agora supostamente “democrático”, governa baseado na corrupção, na fraude eleitoral, na violência e, principalmente, nas tropas estrangeiras. A situação de atraso do país, que gera a violência contra a mulher, não mudou, mantendo-se inclusive o amplo uso da burka. Em resumo, o Talibã recebe apoio simplesmente porque as massas não aceitam mais a presença das tropas de ocupação. Uma das ironias desta guerra é que o reacionário Talibã encabece a luta armada contra o imperialismo. Esta contradição não é casual. A política sistemática de recolonização dos países periféricos e o ataque militar brutal protagonizado pelo governo Bush acabaram levando a que uma força aliada do imperialismo até pouco tempo atrás terminasse se enfrentando com ele. Diante desta situação extremamente difícil, o governo Obama e a burguesia norte-americana estão discutindo possíveis saídas. E existem divergências, como seria previsível face à delicada posição dos Estados Unidos na guerra. Há setores do imperialismo - inclusive conservadores como o conhecido colunista reacionário do Washington Post, George Will, que escreveu um artigo com o sugestivo título É preciso saber quando se deve parar – que começam a se declarar contra a continuidade da intervenção no Afeganistão. Entre os setores que defendem a continuidade da ocupação e da guerra e no próprio governo Obama existe uma divergência interna, ou pelo menos duas tendências, sobre a estratégia a seguir. Segundo a informação vazada por integrantes do governo para a imprensa americana9, haveria dois grandes esquemas em discussão e em disputa. Um, encabeçado pelo comandante americano no Afeganistão, Stanley McChrystal, prevê manter a tática atual e um 72 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 9 Noticiado por Sérgio Dávila, correspondente em Washington da Folha de S. Paulo (11/10/2009). Dossiê acréscimo de 40 ou até 60 mil homens na força militar. O outro, defendido pelo vice-presidente Joe Biden, manteria o atual contingente, mas substituiria uma parte dos soldados por oficiais treinadores que teriam o objetivo de formar uma força de segurança afegã. Mas, segundo a mesma notícia, a discussão mais importante seria sobre uma nova estratégia para a guerra. O foco, ou seja, os alvos da ação militar norte-americana dividir-se-iam em dois. A prioridade passaria a ser eliminar os líderes do Al Qaeda, vistos por Washington como uma rede global jihadista que procura atacar os EUA. Esta é, evidentemente, uma declaração pró-forma, porque o Al Qaeda não tem nenhuma influência no movimento de resistência. Quanto ao Talibã, que constitui a organização central do movimento de resistência e tem apoio de massas, continuaria a sofrer ataques do imperialismo e do exército paquistanês, “mas não estaria descartada a negociação com o baixo clero da organização e até a possibilidade de se negociar uma trégua”10. Analisando essas diferentes posições e variantes, fica claro que nenhuma tem como estratégia conseguir uma vitória militar nesta guerra, isto é, que as tropas de ocupação esmaguem a resistência e destruam o Talibã. Isso porque, obviamente, a situação da luta de classes em todos os seus aspectos – a insatisfação das massas com a guerra e a ocupação, o repúdio às tropas invasoras, o apoio ou neutralidade em relação ao Talibã, a debilidade do governo fantoche – torna impossível a vitória. A própria posição do general McChrystal assemelha-se à política do Surge11 no Iraque, da qual ele foi o principal executor militar. Esta política consistiu num aumento de tropas, mas com o objetivo de pressionar a resistência sunita a um acordo baseado em concessões políticas e econômicas. O aumento de tropas explica por que o imperialismo americano não pode aceitar, pelo menos num primeiro momento, a posição do setor burguês que propõe uma retirada imediata. Uma decisão desse tipo provavelmente teria como conseqüência uma vitória rápida da resistência e a volta do Talibã ao poder. Um fato desta dimensão significaria, sem dúvida, um golpe no imperialismo e abriria uma crise no governo Obama. Esse dilema do governo Obama reflete a própria situação da guerra e do imperialismo. Mas, justamente por isso, reafirmamos o que dissemos anteriormente: o imperialismo não só tenta aplicar no Afeganistão sua tática de negociações como esta é a melhor tática de que dispõe para tentar derrotar a insurgência. E será neste país que esta política será submetida ao seu mais duro teste. Neste contexto, pode ser até que o governo Obama envie ainda mais tropas, mas sempre com o objetivo de negociar um acordo com o Talibã para estabilizar o país e permitir uma saída negociada das tropas imperialistas. A ofensiva militar subordina-se ao aspecto principal da política, isto é, a ação militar busca pressionar o Talibã a negociar, obter uma posição mais vantajosa para o imperialismo e, se possível, a capitulação da resistência. Na verdade, tudo indica que esta política de negociação já está em curso. Segundo a Red IslamOnline.net, um alto funcionário do governo afegão informou a este órgão, sob a condição de permanecer anônimo, que o governo dos EUA já teria feito uma primeira proposta ao Talibã, por meio dos governos da Arábia Saudita e Turquia. A proposta consistiria em ceder a este movimento 10 Idem. 11 Surge: Política de Bush en 2007 para aumentar as tropas no Iraque. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 73 Dossiê o governo de seis províncias (Kandahar, Zabul, Helmand, Orazgan, no sul, e Nuristán e Kunar, no nordeste do país). Em troca, o Talibã aceitaria a presença das forças da OTAN e a existência permanente de oito grandes bases militares imperialistas no país.12 É certo que, aparentemente, o Talibã rechaçou a proposta, mas o mais importante é constatar qual é a verdadeira política do imperialismo. Outras notícias informam que Hillary Clinton, em sua recente viagem ao Paquistão, teria acertado com os militares deste país que seriam eles os interlocutores das negociações com o Talibã. Se non è vero... Os revolucionários não são neutros nesta guerra: lutamos pela vitória da resistência e pela derrota do imperialismo A guerra do Afeganistão estará cada vez mais no centro dos acontecimentos mundiais e, portanto, exigirá dos revolucionários, das organizações de esquerda e de todos os ativistas dos movimentos sociais tomar uma posição. Isso é ainda mais importante porque grande parte da esquerda, inclusive uma parte da que se reivindica trotsquista, tomou uma posição de “neutralidade” quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão há oito anos. Na época, a Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI) posicionou-se na trincheira militar do reacionário Talibã contra os Estados Unidos “democráticos”. Acreditamos que o balanço desses oito anos de guerra nos deu razão. Mas agora a situação é ainda mais evidente: trata-se de uma guerra de libertação nacional contra um exército imperialista de ocupação formado por mais de 100 mil homens. Nenhum ativista anti-imperialista do mundo pode vacilar quanto ao lado da trincheira em que deve estar. Neste sentido, a posição recente da LIT resume o que está em jogo nesta luta. O destino da guerra do Afeganistão interessa a todos os trabalhadores e povos explorados do mundo. Uma derrota do imperialismo americano nesta guerra pode significar um golpe tremendo contra o opressor. É preciso lutar para que esta guerra termine sendo o Vietnã de Barack Obama. Por isso, a LIT chama todas as organizações populares e democráticas do mundo a denunciar a ocupação militar do Afeganistão e exigir a retirada das tropas invasoras. Chamamos especialmente os trabalhadores de países imperialistas que mantêm tropas de ocupação no país, como é o caso da Inglaterra, Alemanha e Espanha, entre outros, a mobilizarem-se para exigir de seus governos a retirada imediata de seus soldados. Nós não somos neutros na guerra que está sendo travada nas montanhas daquele país. Estamos do lado dos oprimidos e agredidos pela invasão e ocupação imperialista. A luta do povo afegão é para expulsar as tropas imperialistas de ocupação e conseguir a verdadeira independência nacional do Afeganistão. Por isso, sem que signifique qualquer tipo de apoio político às posições do Talibã, a LIT declara seu apoio às ações militares da resistência. A luta guerrilheira que enfrenta o imperialismo, ainda que dirigida por uma organização burguesa reacionária, é um dos fatores fundamentais para as baixas e o desgaste das tropas, para a crescente queda de popularidade do governo Obama e para a crise da ocupação militar. É esta luta militar de resistência, junto às mobilizações e à pressão da opinião pública principalmente dos países imperialistas, que pode infligir uma derrota ao imperialismo.13 74 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 12 LATIFF, Aamir. Los talibanes rechazan la oferta de EE.UU. de 6 provincias por 8 bases. www.IslamOnline.net, 05/11/2009, reproduzido por Rebelión.org. 13 Correio Internacional, n. 152, setembro de 2009 Dossiê A guerra, o imperialismo e a questaã~o nacional polarizam o Paquistaã~o Bernardo Cerdeira Editor de Marxismo Vivo A guerra do Afeganistão estendeu-se de tal maneira ao Paquistão que hoje o mais correto seria falar de uma só guerra do Afeganistão-Paquistão. O próprio imperialismo já fala de uma só “entidade”, que ele denomina Afpak, e tem uma política de conjunto para ela. Chegou a designar um enviado especial do Departamento de Estado, Richard Holbrook, para dar atenção aos dois países. A guerra está presente em toda a situação política do Paquistão, desde o crescimento da insurgência guerrilheira até as tremendas pressões do imperialismo sobre o governo Zardari, que forçaram a atual ofensiva do exército sobre a região de influência do Talibã em aliança com grupos locais. No entanto, a realidade da guerra se ergue sobre enormes contradições que o país alberga desde sua fundação em 1947, especialmente a questão nacional, que atinge algumas de suas diferentes etnias. A ofensiva do exército paquistanês O Paquistão está envolvido nesta guerra desde seu princípio em 2001. Com o fluxo de refugiados e combatentes do Afeganistão que atravessaram a fronteira buscando refúgio dos ataques militares das tropas norte-americanas veio também a guerra. Os refugiados guardam laços étnicos com a população paquistanesa da região – são do povo pashtun que vive nos dois países – e também relações políticas e religiosas, já que a constituição do Talibã, organização que dirigia o Estado afegão, deu-se nas escolas islâmicas do Paquistão (Madrassas), estimulados por uma política do governo e do ISI, serviço paquistanês de segurança e informação. Uma aliança do Talibã com grupos islâmicos insurgentes locais desenvolveu uma forte presença no Waziristão do Norte e do Sul, regiões localizadas nas Áreas Tribais do Paquistão, assim como na Província da Fronteira Noroeste, onde chegaram a estabelecer a sharia (lei islâmica) na região do vale do Swat, com a própria anuência do governo. O exército paquistanês, pressionado pelos EUA, vem reagindo com intensas e amplas ofensivas militares nestas regiões. Esta intensificação da guerra vem acompanhada por métodos brutais utilizados pelo exército do Paquistão, Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 75 Dossiê que provocaram a fuga de milhões de refugiados civis em seu próprio país. Em abril e maio deste ano, o exército paquistanês empreendeu um importante ataque ao Vale do Swat, na Província da Fronteira Noroeste, tentando esmagar o movimento islâmico pashtun Teheek-e-Nafaz-e-Shariate-Mohammadi (TNSM), que tem ligações com o Talibã e cuja crescente influência reflete o apoio que a organização afegã tem entre a população pashtun do Paquistão. O ataque foi uma exigência de Washington, que temia que a trégua assinada em princípios deste ano entre o TNSM e o governo paquistanês permitisse que muitos militantes passassem ao Afeganistão para se unir à resistência. Durante os combates, segundo o exército paquistanês, foram mortos 1800 combatentes do TNSM e outros 900 foram capturados. O ataque provocou a fuga de dois milhões de civis, devido aos ataques aéreos e bombardeios do exército. Centenas de milhares ainda não voltaram, por medo ou porque suas casas estão destruídas. O Vale do Swat continua ocupado por uns cinquenta mil soldados e policiais. A Comissão de Direitos Humanos do Paquistão afirma que as forças de segurança estão assassinando partidários do TNSM. Foram descobertas fossas comuns que continham corpos de supostos militantes executados pelo exército. Depois se encontraram outros 75 corpos perto do povoado de Kabal. Mais recentemente, em fins de outubro, trinta mil soldados paquistaneses, apoiados pela Força Aérea, iniciaram nova ofensiva no Waziristão do Sul, na região das Áreas Tribais autônomas, bastiões do Tehrik-e-Taliban paquistanês, um movimento islâmico pashtun que proporciona um refúgio seguro aos insurgentes afegãos que lutam na fronteira contra a ocupação dos Estados Unidos e da OTAN. A ofensiva está concentrada na área da tribo Mehsud que também é o quartel-general do Tehrik-e-Taliban Pakistan (TTP). A zona tribal, pobre e abandonada pelo governo central, sofreu um duro castigo com as diferentes operações militares das Forças Armadas paquistanesas. A economia entrou em colapso com os bloqueios econômicos e a existência de dois milhões de refugiados internos e, por outro lado, aumentou o tráfico de armas e drogas. No entanto, a eficácia das operações militares é duvidosa. A maioria dos insurgentes escapou da região em meio às centenas de milhares de refugiados. Em contrapartida, os grupos militantes ampliaram suas ações em todo o país: ataques contra o quartel-general do exército, um importante comboio militar, diferentes edifícios policiais de Lahore, os escritórios da ONU na capital, etc. Somente na primeira semana de novembro morreram mais de 200 pessoas em atentados a bomba em diferentes cidades e regiões do Paquistão. Esta polarização abre a possibilidade de que o TTP (que é uma aliança de grupos) chegue a um acordo com grupos jihadistas do Punjab ou da Caxemira, não só fortalecendo sua ação militar na região (o que parece já estar acontecendo) como a ampliando ao conjunto do país. Por outro lado, existe uma ação direta das Forças Armadas dos Estados Unidos dentro do Paquistão que ajuda a exacerbar a situação. Os EUA têm um “programa” de assassinatos de dirigentes dos talibãs e da resistência em geral, que visa também aterrorizar a população civil. O instrumento utilizado 76 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê para esta verdadeira campanha de terror são aviões sem piloto teledirigidos, os drones Predator. Em 5 de agosto, mísseis lançados por um Predator mataram o ex-chefe do Tehrik-e-Taliban, Baitullah Mehsud, assim como sua mulher e outras 17 pessoas. Desde agosto deste ano, os ataques aéreos dos Estados Unidos mataram mais de 700 civis paquistaneses. O vicepresidente Joe Biden é um dos defensores deste tipo de ações e quer pôr mais ênfase nos ataques aéreos com drones e nas forças de operações especiais. No entanto, este tipo de intervenção direta dos EUA com uma clara agressão militar dentro do Paquistão provoca repúdio geral. Uma recente pesquisa americana no país apontou que “76% dos entrevistados opunhamse a que o Paquistão se associasse aos EUA nos ataques com mísseis contra extremistas por aviões drones norte-americanos” Frente a esta reação, o governo paquistanês também se viu obrigado a protestar contra os ataques de mísseis dos Estados Unidos, lançados a partir de aviões sem tripulantes contra alvos talibãs dentro do Paquistão. Ou seja, as ofensivas combinadas das tropas imperialistas no Afeganistão e do Exército paquistanês provocaram uma reação de atentados, resistência popular e muito ódio à ocupação e às agressões militares imperialistas. A segunda conclusão é que esta reação das massas – que se dá principalmente nos territórios pashtun do Paquistão – ameaça servir de catalisador das insatisfações populares do resto do país e da crescente oposição ao governo de Zardari. E, por último, a resistência guerrilheira às tropas imperialistas e seus aliados vem se colocando cada vez mais como o polo aglutinador dos combatentes não só no Afeganistão, mas também no Paquistão. A pressão brutal do imperialismo Quanto mais os Estados Unidos se metem no “atoleiro” da Guerra no Afeganistão, mais são obrigados a intervir no Paquistão, política e militarmente. Esta intervenção ocorre em forma direta (bombardeios, assessores militares, espionagem) e indireta (através de violentas pressões sobre o governo, as Forças Armadas e outras instituições do país) para que combatam o Talibã e seus aliados deste lado da fronteira. Do ponto de vista militar, o imperialismo vem intensificando sua presença no Paquistão. O General Stanley McChrystal, comandante das tropas norte-americanas no Afeganistão e o General David Petraeus, comandante em chefe das tropas norte-americanas, estão frequentemente no país. As Forças Armadas dos EUA mostraram-se especialmente satisfeitas com a ofensiva do exército. O general Petraeus expressou seu apoio à brutal campanha e elogiou as “firmes operações militares paquistanesas” que “limparam de militantes” o vale do Swat e outras zonas da Província da Fronteira Noroeste. No Pentágono foi criado um programa de especialistas afegãos e uma Célula de Coordenação Paquistão-Afeganistão, duas unidades concentradas na melhoria do rendimento militar no teatro de operações Af-Pak durante os próximos três a cinco anos. Por outro lado, o Pentágono revelou que mais de 70 conselheiros militares dos EUA trabalharam no Paquistão. Também estão presentes os mercenários da Blackwater na Província da Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 77 Dossiê Fronteira Noroeste. Blackwater é formalmente uma companhia de segurança, mas, na prática é um exército mercenário, formado por vários milhares de exmilitares, que trabalha sob ordens das Forças Armadas dos Estados Unidos e da CIA, fazendo seu “trabalho sujo”. Segundo denúncias, a Blackwater estaria operando em Peshawar, a partir do escritório de uma ONG americana, Creative Associates International Inc., CAII, que trabalha em projetos nas agências tribais perto do Paquistão, vinculados com o governo dos EUA. Do ponto de vista político e diplomático, os Estados Unidos aprovaram o pacote Kerry-Lugar (promovido pelo senador John Kerry, da Comissão de Relações Externas do Senado norte-americano) de “ajuda” de US$ 7,5 bilhões ao Paquistão para os próximos cinco anos. É a maior soma de dinheiro com fins não-militares já recebido pelo Paquistão. Este pacote, que consiste em uma ajuda “civil” para fins sociais, estipula dois condicionantes: um, que o orçamento militar esteja subordinado ao orçamento nacional e dois, que não exista mais intervenção militar em assuntos políticos e judiciais. Ou seja, condiciona a ajuda a que o governo do presidente Zardari controle as Forças Armadas, o que provocou uma reação dos militares e um escândalo político sobre a ingerência dos Estados Unidos na vida política interna do país. O Departamento de Estado americano nomeou o enviado especial Richard Holbrook para o Paquistão e o Afeganistão. Um jornalista americano descrevia assim a atitude de Holbrook durante uma recente passagem pelo Afeganistão: “Parecia menos um emissário de visita que um pró-cônsul inspecionando uma vasta operação sobre a qual tem uma parte da autoridade”. A própria secretária de Estado, Hillary Clinton, visitou o Paquistão e cobrou, publicamente e da forma mais arrogante, a necessidade do governo paquistanês incrementar o combate ao Talibã e à Al-Qaeda. Como símbolo desta intervenção crescente, os EUA estão construindo o que será a maior embaixada-fortaleza dos Estados Unidos no mundo e que deve servir de ponta de lança para a presença norte-americana no Paquistão. Mil marines chegaram a Islamabad para defendê-la. O custo total da presença dos “marines” será de US$ 112,5 milhões. Segundo a embaixadora Anne W. Patterson, “US$ 5 milhões serão para alojamento dos marines, US$ 53,5 milhões para infra-estrutura de alojamento, US$ 18 milhões para a melhoria da área dos escritórios de serviços gerais e US$ 36 milhões para alojamentos temporários e instalações de apoio comum”. A explicação de Patterson para a gigantesca expansão da embaixada é que esta “...reflete o compromisso de longo prazo dos Estados Unidos com o Paquistão. Além disso, disse, a quadruplicação da ajuda social, econômica e militar chegaria a US$ 4 bilhões por ano durante os próximos 18 meses, e requer um aumento de pessoal.” Toda esta pressão do imperialismo, e a subserviência do governo do PPP (Partido do Povo do Paquistão de Ali Zardari) às suas exigências, têm exacerbado ao máximo não só os enfrentamentos diretos na luta de classes, principalmente na guerra, mas também as tensões entre a burguesia e os setores do aparato de Estado. Estas tensões expressam-se em elementos de insatisfação e de crise no 78 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 Dossiê Exército paquistanês. Um exemplo foi a reação aos condicionantes da Lei Kerry-Lugar mencionada acima. Também a decisão dos Estados Unidos de construir mais bases no Paquistão com permissão do governo irritou o exército. Por trás destas tensões estão dois problemas estruturais. O imperialismo está pressionando para que o exército ataque seu próprio povo, pashtuns paquistaneses muçulmanos, com métodos de guerra civil. Vinte e seis milhões de pashtuns vivem no Paquistão, muitos em grandes cidades e outros tantos estão no exército. Por isso, há cada vez mais notícias de jovens que desertam. Por outro lado, existe um problema político na superestrutura do Exército. O ISI, com o aval da cúpula do Exército (e sob a orientação do imperialismo naquela época) foi um dos responsáveis diretos pela organização e fundação da milícia do Talibã no princípio da década de 90, a partir dos estudantes das Madrassas das áreas pashtun no Paquistão. Desde então, o Talibã sempre esteve ligado ao ISI e ao Exército paquistanês. Hoje, a cúpula do exército está de acordo em combater o Talibã paquistanês, mas reluta em combater o Talibã afegão com quem continua mantendo vínculos. O problema é que estas organizações estão cada vez mais ligadas e, à medida que a guerra avança, tendem a ser uma coisa só. As contradições no Exército (e entre este e o governo do país) refletem a debilidade do Estado e do regime de um país semicolonial, tremendamente acossado pelo imperialismo. Mas, além disso, o fraco desenvolvimento da economia do Paquistão, a debilidade de sua burguesia, a pressão do imperialismo norte-americano por um lado e a URSS e a Índia por outro, levaram a burguesia paquistanesa a apelar tradicionalmente para regimes fortes, apoiados nas Forças Armadas, que denominamos de maneira geral regimes bonapartistas. Nos 62 anos de existência do país, nunca houve um período mais ou menos longo de funcionamento de um regime democrático-burguês minimamente estável. A norma foi de governos militares. Nas poucas vezes em que os civis governaram, o regime político sempre teve características marcadamente autoritárias, bonapartistas. O próprio Estado paquistanês reflete estas características. Apesar de ser um país pobre, o Paquistão tem a sexta maior força militar do mundo em número de soldados, contando com setecentos mil homens. O país possui armas nucleares e mísseis balísticos. Mas, a contradição da situação atual é que as Forças Armadas saíram bastante debilitadas depois da queda do governo do general Pervez Musharraf, no poder por oito anos (1999 a 2008). A ditadura de Musharraf terminou em uma situação que combinava o desgaste com o envolvimento do Paquistão na guerra do Afeganistão e as mobilizações populares por reivindicações democráticas, tais como o fim da suspensão do juiz Muhammad Chaudhry, presidente da Suprema Corte, pelo governo. O imperialismo e a questão nacional Um dos elementos centrais que transparece tanto na questão da guerra quanto na presença do imperialismo e no desenvolvimento da luta de classes no Paquistão é a questão nacional ou da autodeterminação nacional das Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 79 Dossiê diversas etnias, que também é um elemento presente em todo o Grande Oriente Médio e o subcontinente indiano. No entanto, o problema nacional no Paquistão é especialmente explosivo, devido às condições em que o país foi fundado. Para compreender as contradições atuais do problema nacional é preciso entender os elementos estruturais que têm sua base na própria formação do país. Não é possível, até por razões de espaço, estender-nos longamente sobre este tema, mas podemos assinalar, grosso modo, os seguintes elementos. Até sua independência em 1947, a região onde fica hoje o Paquistão fazia parte da Índia Britânica ou mais precisamente do domínio colonial do império britânico sobre a Índia. Antes desta dominação, o atual Paquistão constituía uma região de maioria muçulmana, parte do antigo Império Mongol (1526 até meados do Século XIX) que compreendia também o norte da atual Índia (por exemplo, as cidades de Déli e Agra). A dominação britânica sobre a Índia abarcava todo o subcontinente indiano, isto é, a região formada hoje pelo Paquistão, a atual Índia, Bangladesh, Sri Lanka (na época, Ceilão), Nepal e Butão. O Paquistão, assim como toda a região, foi marcado pela dominação colonial imperialista britânica e a luta pela independência nacional. O imperialismo britânico teve uma política permanente de “dividir os povos para melhor reinar”, promovendo várias divisões artificiais. Esta política começou já no século XIX, por exemplo, com a divisão da província de Bengala entre Ocidental e Oriental (hoje Bangladesh). Outro exemplo foi o da região dos Pashtuns (Pashtunistão) dividida pela chamada linha Durand em 1893 (e que hoje pertence parte ao Afeganistão e parte ao Paquistão). Mas esta política chegou ao seu ponto máximo no processo de independência da Índia, resultado de uma longa luta do povo indiano. O imperialismo britânico, diante da certeza de perder sua maior colônia, impulsionou artificialmente a divisão do subcontinente para enfraquecer a Índia e fazer com que o processo de independência gerasse vários países mais fracos, que permanecessem na Commonwealth1 com o status de Dominions2. Esta política obteve resultado por meio do estímulo à política separatista da burguesia muçulmana, dirigida pelo partido Liga Muçulmana, de Muhamad Ali Jinnah. O Paquistão constituiu-se então, em 1947, como um país islâmico, dirigido pela Liga Muçulmana nas províncias do Sindh e no Punjab. O Baluquistão e o Pashtunistão, regiões de etnias irânicas (baluches e pashtuns), foram divididos entre o Paquistão e o Afeganistão. Bengala Oriental integrou-se ao país na sua fundação com o nome de Paquistão Oriental. Em 1971, declararia sua independência, passando a chamar-se Bangladesh. A Caxemira, antigo principado, foi dividida entre a Índia e o Paquistão, gerando uma disputa que dura até os dias atuais. Portanto, o Paquistão concentra vários problemas nacionais explosivos desde a sua fundação, que tendem a polarizar o país. No Pashtunistão, cada vez mais os movimentos insurgentes que lutam contra a ocupação imperialista unem-se e retomam seus laços étnicos e políticos. No Baluquistão, existe um movimento independentista que luta por um país constituído pelos territórios baluches do Irã, Afeganistão e Paquistão. 80 Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 1 Commonwealth of Nations: Comunidade de países que substituiu o Império Britânico, formada pela Grã-Bretanha com suas ex-colônias. O objetivo britânico era manter estes países em sua órbita, como semicolônias. 2 Nações independentes, membros da Commonwealth, mas que mantinham a Rainha da Inglaterra como Chefe de seus Estados. Paquistão, Ceilão e Quênia, por exemplo, tiveram este status. Dossiê E na fronteira com a Índia, a guerra no Vale da Caxemira já dura 20 anos e custou umas 70 mil vidas. Dezenas de milhares de pessoas foram torturadas e milhares “desapareceram”. Quinhentos mil soldados indianos patrulham o vale da Caxemira, convertendo-o na zona mais militarizada do mundo. No verão de 2008, uma disputa por terra designada para o Comitê do Santuário Amarnath converteu-se num levante maciço e não-violento. Dia após dia, centenas de milhares de pessoas desafiaram soldados e policiais e encheram as ruas. As tropas dispararam diretamente contra as multidões, matando muita gente. As multidões gritavam: Azadi! Azadi! (Liberdade). Os protestos duraram vários dias. Arundhati Roy, uma escritora indiana afirma: …a Caxemira irá converter-se no conduto pelo qual toda a violência que se desenvolve no Afeganistão e no Paquistão derramar-se-á em direção à Índia, onde encontrará aceitação na cólera dos jovens entre os 150 milhões de muçulmanos da Índia que foram brutalizados, humilhados e marginalizados. O aviso foi dado pela série de ataques terroristas que culminaram nos ataques de Mumbai de 2008.3 Todos estes problemas nacionais, que vão desde a luta pela unificação de povos ou por sua autodeterminação e inclusive sua independência, estão atravessados pela ação política e militar do imperialismo norte-americano na região. Depois de sua fundação, o Paquistão tornou-se uma semicolônia dos Estados Unidos, transformando-se num importante país auxiliar da potência imperialista em sua política de pressão e controle da Índia e da URSS durante a Guerra Fria. Atualmente, esta intervenção do imperialismo é elevada à enésima potência, principalmente pela guerra do Afeganistão-Paquistão. A resistência das massas hoje se concentra em três processos: a luta para expulsar o imperialismo do Afeganistão e do Paquistão, que se combina com a luta pela autodeterminação nacional dos diferentes povos e a luta contra o regime do Exército e o governo de Zardari, subserviente ao imperialismo. A grande tarefa dos povos do Paquistão, do Grande Oriente Médio e do subcontinente indiano é expulsar o imperialismo da região o que significa em primeiro lugar a luta para derrotar o imperialismo na guerra do AfeganistãoPaquistão. Mas, ao mesmo tempo, é necessário levantar a bandeira da autodeterminação nacional dos povos de todos os países da região e o direito a se separarem dos Estados aos quais se encontram submetidos atualmente e a se organizarem em novos Estados nacionais se assim o preferirem. Os socialistas revolucionários reconhecem e apoiam o direito à autodeterminação de todas as etnias. Mas, ao mesmo tempo, assinalamos que a única possibilidade de que estes povos se livrem de toda a exploração e desenvolvam suas riquezas e potencialidades humanas em liberdade é a construção do socialismo e a unidade de todos os povos em Federações de Repúblicas Soviéticas em regiões como o Oriente Médio e o subcontinente indiano. 3 ROY, Arundhati. Una nueva guerra fría en Cachemira. A autora é uma escritora, atriz e roteirista de cinema que vive em Nova Déli. Escreveu, entre outras coisas, o romance O Deus das coisas pequenas pelo qual recebeu o Prêmio de Booker de 1997. Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009 81 Dossiê Alguns dados sobre o Paquistãa~o O nome Paquistão (ou Pakistan em urdu) significa “terra (ostan) dos puros (pak)” em Urdu e em farsi (ou persa). Mas também, em sua origem, foi um nome composto pelas iniciais de quatro das cinco províncias de maioria muçulmana da Índia britânica mais o sufixo stan. O nome foi cunhado em 1934 por Choudhary Rahmat Ali, um nacionalista muçulmano, que em seu folheto Agora ou nunca referiu-se aos “trinta milhões de muçulmanos do Paquistão (Pakistan) que vivem nas cinco províncias do Raj Britânico – Punjab, Afghan (hoje Província da Fronteira Noroeste), Kashmir (Caxemira), Sind e Balochistan (Baluquistão)”. A população do Paquistão está estimada em 168 milhões, o que o torna o sexto país mais populoso do mundo. Sua área é de 803.940 km2. Estima-se que o PIB paquistanês (PPC) seja de US$ 475,4 bilhões e a renda per capita de US$ 2942. A taxa de pobreza é estimada entre 23% e 28% da população. O Paquistão é uma federação com quatro províncias: Punjab, Sind, Baluquistão e Província da Fronteira Noroeste. Além disso, existe um distrito federal onde está a capital Islamabad, e áreas tribais administradas pelo governo federal. O governo paquistanês exerce jurisdição de facto sobre partes da Caxemira, a chamada Caxemira Livre (Azad Kashmir), e as Áreas do Norte, uma parte da Caxemira também reivindicada pela Índia. O Paquistão também reivindica o estado de Jammu e Caxemira, controlado pela Índia. As etnias punjabi e sind são povos hindus, sendo que a etnia punjab é a mais populosa do país. No entanto, parte da população do país é composta por etnias de idiomas e culturas irânicas ou indo-arianas: os pashtuns (15,4% da população) e os baluches (3,6%). Os baluches vivem ao sudoeste do país e os pashtuns ao noroeste. O urdu é uma língua franca utilizada como idioma de comunicação entre as diversas etnias e é o idioma oficial do país. Mas, para apenas 7,57% da população é o idioma materno. Os estudiosos consideram que o urdu é basicamente o mesmo idioma híndi (o mais falado na Índia), porém escrito com o alfabeto árabe (em sua versão persa). Províncias 2 6 5 3 1 4 82 8 7 e territórios do Paquistão Províncias: 1. Baluquistão 2. Província da Fronteira Noroeste 3. Punjab 4. Sindh Territórios: 5. Distrito Federal - Capital Islamabad 6. Áreas Tribais 7. Azad Jammu e Kashmir (ocupada pela Índia) 8. Gilgit-Baltistan Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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