DOSSIÊ

Transcrição

DOSSIÊ
Dossiê
Oriente Médio
Um novo e imenso
Vietna~ para o
imperialismo
Azerbaijão
Uzbequistão
Turquia
Líbano
Jordânia
Turcomenistão
Síria
Iraque
Irã
Afeganistão
Israel
Paquistão
bernardo cerdeira
ediTor de MarxisMo vivo
Arábia
Saudita
O Dossiê deste número de Marxismo Vivo está dedicado a uma vasta
região do planeta que é o Oriente Médio, que vive uma aguda situação da
luta de classes. O tema não poderia ser mais atual, e abordá-lo exige explicar
alguns dos principais aspectos da situação mundial: a derrota da ofensiva
Bush, a política atual do imperialismo, o governo Obama, o fundamentalismo
islâmico e outros.
Em 2009, ano pródigo em datas históricas do calendário revolucionário
(60 anos da revolução chinesa, 50 anos da revolução cubana e 30 anos da
nicaraguense), também se comemoram trinta anos da revolução iraniana que
em janeiro de 1979 derrubou a ditadura do Xá Reza Pahlevi. Em dezembro
daquele mesmo ano, pouco depois da revolução, a União Soviética invadiu
o Afeganistão. Em setembro de 1980, o Iraque, armado e incentivado pelos
Estados Unidos, declarou guerra ao Irã. Estes três acontecimentos, estreitamente ligados entre si, continuam a marcar a situação no Oriente Médio
até os dias de hoje.
A situação política e militar da região é o centro dos problemas e das
preocupações atuais do imperialismo americano no mundo. Os Estados
Unidos continuam lutando duas guerras ao mesmo tempo. No Afeganistão,
o governo de Barack Obama vive o dilema de incrementar a escalada militar,
ou correr o risco de perder a guerra para o Talibã. Enquanto isso, a situação
militar piora a cada dia.
Além disso, a guerra atravessou a fronteira do Afeganistão com o Paquistão, quando o Talibã estendeu sua organização para aquele país. Não
há dúvidas de que a guerra vem provocando a desestabilização da situação
interna do Paquistão.
Por outro lado, a guerra do Iraque não terminou. Os recentes atentados
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ao ministério da Justiça em plena Zona Verde, a mais protegida da capital,
mataram mais de 100 pessoas e são uma amostra viva da instabilidade do país.
Os soldados norte-americanos continuam ocupando o Iraque e, mesmo que
não patrulhem mais as cidades e que uma boa parte se retire em 2010, deixarão
como “garantia” 50 mil soldados aquartelados em grandes bases militares.
E isso só para falar nos três países polarizados pela guerra. Mas a luta
de classes na região não para por aí. A questão palestina também não sai de
cena. Israel, um agente direto do imperialismo americano, atacou a Faixa de
Gaza em 2008 e o Líbano em 2006, de onde saiu derrotado pelo Hezbollah.
Por outro lado, relacionado com a situação em todos estes países, intensifica-se dia a dia a pressão americana contra o Irã, um país relativamente independente das ordens de Washington e que ameaça produzir armas nucleares.
A importância do Oriente Médio para o imperialismo
A região que chamamos de Oriente Médio na verdade é tão vasta que se
compõe de diferentes sub-regiões que vão desde o Norte da África e a margem leste do Mediterrâneo até a fronteira do Paquistão com a Índia, em seu
extremo oeste e a Ásia Central até a fronteira da União Soviética. O próprio
imperialismo cunhou a expressão Grande Oriente Médio, hoje utilizada pelo
G-8 e que abarca toda esta extensão.
Podemos dividir o Oriente Médio em 4 regiões. O Magreb (norte da
África): Egito, Líbia, Sudão, Tunísia, Argélia, Marrocos e Saara Ocidental. O
chamado Crescente Fértil (ou Oriente Próximo, se a Turquia for considerada)
composto por Síria, Líbano, Iraque, Palestina, Israel e Jordânia. A Península
Arábica: Arábia Saudita, Iêmen, Bahrein, Omã, Qatar, Emirados Árabes
Unidos, Kuwait. O Oriente Médio propriamente dito: Irã, Afeganistão, Paquistão e as antigas Repúblicas do Sul da ex-URSS, hoje países independentes:
Turcomenistão, Cazaquistão, Tajiquistão, Uzbequistão e Quirquistão.
Historicamente os países do Oriente Médio foram parte do império
do Islã e mantêm influências culturais e religiosas entre si, sendo em sua
maioria países islâmicos. Politicamente, a região tem sido o centro das preocupações, das agressões militares e também de derrotas do imperialismo
norte-americano pelo menos nestas últimas três décadas.
A atual prioridade do Oriente Médio na ação contrarrevolucionária do
imperialismo é evidente tanto em termos militares quanto políticos e diplomáticos. Esta é a parte do planeta que concentra o maior deslocamento de
tropas norte americanas, aproximadamente 50% dos cerca de 350 mil soldados norte-americanos em atividade no estrangeiro. Por fim, a prioridade
diplomática fica clara com o recente número de enviados especiais do governo
Obama e da secretária de Estado Hillary Clinton à região.
A preocupação do imperialismo americano não é casual. Esta é a parte do
mundo que concentra 60% das reservas conhecidas do petróleo do planeta.
O imperialismo não só necessita controlar o acesso e a garantia de saque do
petróleo, como também a possibilidade de transportá-lo em forma segura
até os locais de refino e consumo.
Além disso, esta é uma região estratégica que tem fronteiras e laços étnicos
e culturais com três dos maiores países do mundo. Calcula-se que existam
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entre 15 a 20 milhões de muçulmanos dentro das atuais fronteiras da Rússia,
sem contar os laços econômicos e culturais com os países da Ásia Central
que faziam parte da ex-URSS. Na China - que tem cerca de 105 milhões de
habitantes pertencentes a 56 etnias minoritárias oprimidas pelo governo da
maioria han - existem várias nacionalidades muçulmanas como os cazaques,
uigures e mongóis. E, finalmente, a Índia tem uma “minoria” de 165 milhões
de muçulmanos e uma disputa de décadas com o Paquistão pelo controle
da Caxemira, região de maioria muçulmana reivindicada pelo país vizinho.
Mas o problema fundamental para o imperialismo é que, como fruto destes
problemas estruturais e também da exploração e agressões imperialistas, esta
região tem sido o centro da resistência revolucionária das massas, o centro
da luta de classes no mundo, pelo menos nas últimas três décadas.
Uma guerra permanente do imperialismo contra o Islã
A partir do fim da Segunda Guerra Mundial – quando se tornou a potência
dominante no mundo, superando a hegemonia dos imperialismos inglês e
francês no Oriente Médio – os Estados Unidos vêm travando uma guerra
permanente contra o mundo islâmico para saquear suas riquezas, principalmente o petróleo.
Um marco nesta guerra foi a criação do Estado de Israel em 1948, um
enclave de população européia e um verdadeiro “porta-aviões” ancorado no
Oriente Médio, armado e financiado pelos EUA. Sua função é a de reprimir
a resistência dos povos e atacar e invadir países islâmicos que tentem rebelarse contra a exploração e romper o jugo do imperialismo. A maior de suas
agressões é, sem dúvida, a expulsão dos palestinos de suas terras e a ocupação,
colonização e selvagem repressão sobre os territórios de Gaza e Cisjordânia
ocupados desde 1967 e hoje transformados em verdadeiros guetos para mais
de 3,5 milhões de habitantes.
A criação do Estado de Israel significou uma grande derrota para os povos
islâmicos. Não é casual que os árabes refiram-se a este acontecimento como
a Naqba, ou a Desgraça. No entanto, contraditoriamente, as monstruosas
ações e a própria existência do Estado de Israel, geraram uma resistência permanente dos povos árabes. Esta luta foi encabeçada, nas décadas de 50 e 60,
pelo nacionalismo pan-árabe (cujo máximo expoente foi Nasser, presidente
do Egito) que dominou a maioria dos países da região, principalmente Síria,
Iraque, Líbia e Argélia.
Mas o nacionalismo pan-árabe entrou em decadência depois de sucessivas derrotas e capitulações diante de Israel e, a partir do fim dos anos 60
até meados dos anos 80, uma variante deste nacionalismo, representado pela
OLP de Yasser Arafat e uma guerrilha palestina muito progressista, tornouse a maior referência da resistência anti-imperialista. Atualmente, a maior
expressão desta luta contra Israel são o Hezbollah no Líbano e o Hamas nos
territórios palestinos ocupados.
Um marco: a Revolução de 1979 no Irã
Esta luta de resistência dos povos islâmicos teve um marco em 1979: a
revolução iraniana que derrubou a sangrenta ditadura do Xá Reza Pahlevi.
A revolução desencadeou uma série de novas forças na região. Por um lado,
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enfraqueceu o imperialismo americano e seu agente Israel, por outro, criou
um país relativamente independente que hoje influencia vários outros, do
Iraque, através dos xiitas, até o Líbano, por meio do Hezbollah e Gaza, onde
atua o Hamas.
No entanto, a revolução iraniana foi marcada desde o seu início por uma
contradição: uma direção nacionalista burguesa, mas de ideologia religiosa
islâmica, composta por uma burocracia de clérigos muçulmanos, os aiatolás.
Esta burocracia assumiu o poder e transformou o Irã numa república
islâmica, que apesar de manter uma relativa independência do imperialismo,
assumia características extremamente reacionárias e repressivas em relação
aos trabalhadores, às mulheres e às minorias nacionais. Em pouco tempo,
o regime dos aiatolás reprimiu o movimento de massas no Irã e prendeu e
assassinou milhares de ativistas operários e oposicionistas em geral.
A revolução iraniana marcou a ascensão de um novo movimento nacionalista no Oriente Médio: o fundamentalismo islâmico. Este se aproveitou da
decadência do velho nacionalismo laico pan-árabe de Nasser, da OLP de Yasser
Arafat e do partido Baas que governava o Iraque e governa até hoje a Síria.
No entanto, a força da revolução iraniana e a relativa independência do
país provocaram a reação imediata do imperialismo americano que armou,
financiou e estimulou o Iraque governado por Sadam Hussein a atacar o Irã,
levando a uma guerra de oito anos de duração entre os dois países.
A invasão soviética do Afeganistão
Entre suas muitas repercussões, a revolução iraniana também foi um dos
fatores fundamentais para provocar a invasão do Afeganistão pela ex-União
Soviética. A burocracia stalinista, que governava este último país, apavorou-se
com a possibilidade de que a revolução islâmica se estendesse ao Afeganistão
e daí às repúblicas da Ásia Central, que naquela época faziam parte da URSS,
constituindo sua fronteira sul. Este foi um dos motivos fundamentais da
invasão da URSS ao Afeganistão em fins de 1979, colocando um governo
títere à frente do país.
O exército soviético teve de enfrentar a resistência armada dos mujaheddines, os chamados “guerreiros da liberdade”, que começaram como uma
guerrilha que lutava contra o invasor, mas depois passaram a ser armados e
controlados pelo imperialismo americano. Milhares de combatentes muçulmanos de vários países foram combater no Afeganistão, entre eles Osama Bin
Laden. Outros atores principais da guerrilha foram os “senhores da guerra”,
oligarcas que dirigem as principais nacionalidades do país.
A URSS foi finalmente derrotada e retirou-se do país em 1989. A guerrilha
islâmica tomou o poder, mas, em seguida, os grupos se dividiram, passaram
a se enfrentar e o país mergulhou na guerra civil.
O Afeganistão foi chamado com razão de “o Vietnã da URSS”, pela
semelhança com a longa guerra e a derrota militar e política dos Estados
Unidos no Extremo Oriente. Certamente, o desgaste da guerra e a derrota
do exército soviético ajudaram a enfraquecer a União Soviética e aceleraram
a decisão da burocracia de restaurar o capitalismo no país.
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A ofensiva imperialista e a ocupação militar do Iraque e Afeganistão
Durante os quinze anos que se seguiram à sua derrota militar no Vietnã em
1975, o imperialismo americano tentou retomar a ofensiva contra os trabalhadores e os povos explorados de todo o mundo. A restauração do capitalismo
na ex-URSS, na China e em todos os ex-estados operários burocráticos abriu
a possibilidade de concretizar esta contraofensiva.
A primeira grande oportunidade apresentou-se no Oriente Médio em
1991com a Guerra do Golfo. Sadam Hussein, que havia atuado como um
agente dos Estados Unidos contra o Irã na guerra Irã-Iraque, invadiu o Kuwait
esperando que a reação do imperialismo não chegasse à guerra. Mas os Estados
Unidos não podiam permitir que a situação saísse de controle, principalmente
por se tratar de um país, o Kuwait, detentor da quarta maior reserva conhecida
de petróleo do mundo. Os EUA organizaram uma coalizão de todos os países
imperialistas, que contou com o apoio da ex-URSS, e derrotaram o Iraque,
iniciando doze anos de bloqueio econômico e militar ao país.
A década de 90 caracterizou-se por uma ofensiva recolonizadora do
imperialismo em todo o mundo, que culminou na tentativa do governo de
George W. Bush, Dick Cheney, Donald Rumsfel, Paul Wolfewitz e outros de
impor um “século americano” de domínio mundial. A doutrina que dava base a
este projeto fundava-se no suposto direito de intervenção militar dos Estados
Unidos, inclusive de forma preventiva, em qualquer país que representasse
uma “ameaça” aos interesses americanos. Ou seja, o objetivo era impor uma
espécie de regime bonapartista mundial. A oportunidade para executar este
plano surgiu com os atentados de 11 de setembro de 2001, pois deram ao
governo Bush um pretexto para desatar uma “guerra contra o terror”, que
na verdade disfarçava uma “guerra contra os povos”.
As maiores expressões da ofensiva militar de Bush foram as invasões e
ocupações militares do Afeganistão e do Iraque. Em outubro de 2001, usando
como pretexto que o governo do Talibã abrigava Osama Bin Laden, Bush
ordenou a invasão do Afeganistão. Finalmente, em março de 2003, Bush
invadiu o Iraque, acusando o governo de Sadam Hussein de deter armas de
destruição em massa a partir de provas forjadas. Desde então, 128 mil soldados americanos se mantêm no Iraque e 68 mil no Afeganistão (de um total
de cerca de 100 mil soldados da OTAN).
As invasões do Afeganistão e, principalmente, do Iraque representaram
uma tremenda derrota para os povos islâmicos. Hoje em dia, são países
ocupados por tropas dos Estados Unidos e seus governos não passam de
fantoches manipulados por Washington, que trata de encobri-los através
de processos eleitorais farsescos. Os dois países retrocederam à situação de
verdadeiras colônias. Além disso, a ofensiva de Bush possibilitou a presença
de tropas americanas na região durante um longo período.
A reação das massas e a derrota da ofensiva militar de Bush
Contraditoriamente, se, por um lado, as ocupações do Iraque e do Afeganistão constituíram uma grande derrota, por outro, atearam fogo na região
e hoje constituem o maior pesadelo do imperialismo americano.
As invasões desencadearam guerras de libertação nacional em ambos os
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países. No Iraque, a resistência encabeçada pela resistência sunita levou os
Estados Unidos a sofrerem pesadas perdas que chegaram ao auge em 2006.
A longa ocupação militar tem sido um fator de crise porque as Forças
Armadas dos Estados Unidos se meteram em um “atoleiro” do qual não
sabem como sair. Não só perdem homens e dinheiro, como também não
têm perspectivas de ganhar a guerra nem podem se retirar. Desta maneira,
esgotam-se soldados que são obrigados a servir no front por até três anos, já
que o contingente do exército profissional dos EUA, que já não emprega o
recrutamento obrigatório, é limitado.
Os Estados Unidos foram obrigados, então, a fazer concessões às organizações xiitas, entregando o governo do país a uma coalizão entre estes
e os principais partidos curdos. Hoje o presidente do país é curdo, Jamal
Talabani da União Patriótica do Kurdistão, e o primeiro ministro é xiita,
Nuri Al-Maliki, representante do Partido Islâmico Dawa, da coalizãoxiita
Aliança Popular Iraquiana.
Mas, a principal concessão do governo americano que permitiu uma trégua
nos combates e uma “estabilidade” relativa no país, foi feita à resistência sunita.
O imperialismo foi obrigado a pagar somas que se calculam em 60 milhões de
dólares ao mês para que as milícias sunitas não ataquem as tropas americanas.
Mesmo assim, esta política só funcionou sob a perspectiva de que os
Estados Unidos marcassem a data para a retirada do Iraque. Esta foi a promessa de Obama, ainda em sua campanha eleitoral, assumindo na prática uma
derrota na guerra do Iraque.
Depois de assumir, Obama ordenou que as tropas norte-americanas se
recolhessem às suas bases, não patrulhassem mais as cidades e marcou para
agosto de 2010 a retirada definitiva do país. Mas, a instabilidade atual do país,
que pode se complicar à medida que se aproxime a data da retirada, ameaça
o cumprimento deste cronograma e o próprio compromisso de Obama. A
hipótese de prolongar a permanência da maioria do contingente militar é,
sem dúvida um cenário de crise para o imperialismo.
Mas o problema não termina aí: a situação do Afeganistão também virou
um atoleiro para os Estados Unidos. O Talibã voltou a se organizar e desencadeou uma guerra de guerrilhas contra as tropas de ocupação. Este país
é hoje é o centro das dores de cabeça de Obama e do Pentágono. E, como
dissemos ao princípio, a guerra agora se estendeu ao país vizinho, o Paquistão.
Por último, mas não menos importante, a ofensiva bonapartista do governo Bush potencializou o problema das nacionalidades no Oriente Médio,
muitos deles provocados artificialmente, desde o domínio britânico.
Povos oprimidos e divididos rebelam-se e as guerras atingem diferentes
etnias. Um exemplo é o dos pashtuns no Paquistão, divididos artificialmente
do resto de seu povo no Afeganistão. Por outro lado, há vasos comunicantes
dos povos que vivem no Afeganistão e nas repúblicas da Ásia central com
as minorias muçulmanas na China: uzbeques, cazaques, uigures e quirguizes.
A conclusão é clara: não só fracassou o projeto do “século americano” e
da grande ofensiva bonapartista de George W. Bush e seus “neocons”, como
as invasões e ocupações militares incendiaram a região e o atoleiro das guerras
enfraqueceu o imperialismo. Este é o motivo das novas táticas de negociação
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e das indecisões, ou seja, da debilidade do governo Obama.
Uma situação crítica: ficar não é recomendável, mas não é possível sair
O imperialismo americano enfrenta uma situação crítica na maior parte
dos países deste Grande Oriente Médio. A resistência das massas, as guerras
e os problemas nacionais não resolvidos geraram uma relação estreita e uma
combinação entre processos de distintos países.
O imperialismo enfrenta duas guerras simultâneas. Não resolveu ainda a
situação do Iraque e ainda não se retirou. E a guerra do Afeganistão está no
seu ponto mais alto desde 2001.
Esta situação gera um impasse para o governo de Barack Obama. A
prudência recomenda sair o mais rápido possível, antes que a situação destas
guerras impopulares piore e gere uma crise interna nos Estados Unidos. No
entanto, a própria possibilidade de uma derrota vergonhosa, que provoque
uma situação de instabilidade em dois ou três países do Oriente Médio, não
só impede o imperialismo de retirar-se totalmente como até pode fazer com
que aumente o número de suas tropas no Afeganistão.
Neste Dossiê abordamos três países que nos parecem hoje os centros da
luta de classes na região. O problema central para o imperialismo é a guerra
do Afeganistão. Obama encontra-se em uma encruzilhada: precisa encontrar
uma saída negociada com o Talibã, mas não pode negociar em uma posição
de fraqueza como a atual. Por outro lado, para fortalecer sua posição e não
perder a guerra precisaria de muito mais soldados. Mas uma escalada militar
teria sérias repercussões internas nos Estados Unidos onde a guerra já é
tremendamente impopular.
Por outro lado, a guerra atravessou a fronteira com o Paquistão e está
desestabilizando o país vizinho. A guerra está em curso num país tremendamente instável, com um governo débil e em crise.
Por fim, um país chave para todo o Oriente Médio é o Irã, o mais poderoso econômica e militarmente da região. Sua influência política estende-se
a países fundamentais do Oriente Médio tais como o Iraque (onde a maioria
do governo baseado em partidos xiitas tem ligações com o Irã); Líbano,
onde apóia o também xiita Hezbollah e inclusive na Palestina, onde apóia o
movimento sunita Hamas.
Os planos de “paz” de Obama
A nova tática do governo Obama para toda a região, e para o mundo é
tentar frear e depois fazer retroceder situações explosivas através de negociações e planos de paz. Em especial, o governo dos EUA tenta um acordo
com o regime dos aiatolás para aceitar o desenvolvimento da indústria nuclear
do país, mas impondo um controle internacional que não permita que este
desenvolva armas nucleares. A outra cara desta negociação tem como objetivo
obter a colaboração do regime iraniano para ajudar a estabilizar a região, por
exemplo, pressionando o Hamas para negociar com Israel um acordo de paz
na Palestina e o Hezbollah para chegar a um acordo que estabilize o Líbano.
A atual política dos EUA, não é a de invasão do Irã tal como se planejou
na época de George W. Bush e Dick Cheney. Ao contrário, o imperialismo
tenta atrair a burguesia e o governo iranianos para que estes cumpram o papel
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de estabilizador da região. Tenta o mesmo com o Hezbollah. E tem conseguido avanços do ponto de vista imperialista. O governo iraniano aceitou
negociar o beneficiamento do seu urânio na Rússia, sob controle da AIEA.
E o Hezbollah já faz parte do governo do Líbano há um ano e tem sido um
fator de estabilidade para a burguesia do país.
No entanto, o grande problema do imperialismo é que a política de negociação e acordos de paz está cruzada pela guerra no Afeganistão, que por
sua vez influencia a situação no Paquistão. E aí reside o dilema do governo
Obama. Não aumentar qualitativamente o número de suas tropas significa
arriscar a ser derrotado militarmente e não ter condições de negociar nada.
Mas, se aceitar dobrar o número de soldados, como pedem seus generais,
envolver-se-á ainda mais no conflito e provavelmente sofrerá um aumento
da oposição à guerra nos Estados Unidos.
Um envolvimento mais longo do que já foi até agora (oito anos) e numa
escala tão ampla ameaça transformar-se num novo e enorme Vietnã do Século
XXI para os EUA. É, portanto, no terreno político, social e militar da guerra
que se resolverá a luta de classes na região.
As guerras e revoluções no Oriente Médio exigem uma direção
revolucionária
As massas de trabalhadores e camponeses dos diferentes países do Oriente
Médio – que há décadas enfrentam heroicamente o imperialismo americano e
seus agentes, com enormes sacrifícios contados em milhões de vidas humanas
e enormes riquezas naturais saqueadas – vivem um drama. Durante várias
décadas, sucessivas direções nacionalistas burguesas e pequeno-burguesas
mostraram-se incapazes de enfrentar o imperialismo até o fim e terminaram
por capitular a ele. A atual direção colaboracionista de Abbas e da OLP é a
mais grotesca das caricaturas destas lideranças oportunistas.
A situação atual não é melhor. As direções islâmicas, atualmente à frente
dos mais importantes movimentos de resistência, já deram mostras de que
são uma direção burguesa que não hesita em reprimir os trabalhadores e seus
aliados populares, inclusive seus setores mais explorados, como as mulheres e
as nacionalidades oprimidas. E também, como toda classe privilegiada, podem
capitular ao imperialismo a qualquer momento.
Por isso, mais do que nunca, o problema da independência da classe operária diante das organizações burguesas e pequeno-burguesas é fundamental
para que esta assuma a vanguarda da luta para expulsar o imperialismo do
Oriente Médio.
E, para orientar a classe operária neste combate e dirigi-lo rumo a uma
Revolução Socialista, que acabe com a exploração dos trabalhadores e a
opressão dos povos, é imprescindível construir uma direção revolucionária
socialista em toda a região. Este é um grande desafio para os revolucionários
de todo o mundo.
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Dossiê
~
~
Ira,
1979: uma revolucao
´
interrompida
Marcos Margarido
Partido Socialista
dos
Trabalhadores Unificado (PSTU) - Brasil
O início da década de 1970 conheceu a primeira recessão
simultânea e generalizada nos países imperialistas no póssegunda guerra. Os 20 anos do boom da economia, iniciados
por volta de 1950, haviam chegado ao fim. O ano de 1975 foi marcado pela
queda assombrosa do PIB dos Estados Unidos, Alemanha, Japão, França e
Inglaterra. A produção industrial no segundo trimestre de 1975 caiu 14% nos
EUA, 20% no Japão e 10% na Inglaterra. Depois de duas décadas de “pleno
emprego”, chegou-se a um total oficial de 17 milhões de desempregados no
conjunto dos países imperialistas, além de uma alta da inflação que atingiu
níveis insuportáveis em todos os países do mundo.
Na década de 70, os EUA sofreram sua primeira derrota militar clara no
Vietnam. A revolução portuguesa de abril de 1974 abriu um processo que além
de derrotar a ditadura salazarista possibilitou a libertação de suas colônias da
África e incendiou o continente negro. No Oriente Médio, sucediam-se os
enfrentamentos com Israel, em que os países arabes foram derrotados, como
na guerra do Yom Kipur, enquanto a guerrilha palestina seguia resistindo e
o Líbano ardia em plena guerra civil. A década assistiu ainda ao seu final as
revoluções nicaraguense e iraniana.
Neste cenário, os países árabes membros da OPEP resolvem quadruplicar o preço do petróleo em 1973, como retaliação à derrota na guerra do
Yom Kipur para Israel, gerando uma renda extra aos países exportadores de
petróleo, os petrodólares, estimados em US$ 180 bilhões em 19801.
O Irã, assim como os demais países produtores de petróleo, inseria-se
na divisão mundial do trabalho como exportador de matérias primas - o petróleo - e com um desenvolvimento capitalista totalmente subordinado aos
interesses imperialistas. A renda do petróleo aumenta a cobiça imperialista e
os conflitos interburgueses pela sua posse, gerando o aumento da miséria da
população paralelamente à acumulação capitalista. No Irã, essa combinação
atingiu níveis explosivos, que passamos a analisar.
O rei dos reis
Mohammad Reza Pahlevi foi o segundo Xá da dinastia Pahlevi. Foi empossado após a ocupação do país pelos exércitos da Inglaterra e da União
Soviética em 1941, em substituição a seu pai, Reza Khan, soldado do exército
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1979: manifestação
contra o Xá
1 Os valores em dólares são nominais,
relativos ao ano mencionado. Para se obter
os valores equivalentes em 2009, deve-se
multiplicar o valor
dado por 4 se o ano
for 1975, 3,3 se for
1978 e 2,6 para 1980.
2 MANDEL, E. A
crise do capital. São
Paulo: Ed. Ensaio,
1990, p. 39
Dossiê
iraniano, que também havia subido ao poder através de um golpe contra o
reinado da dinastia Oajar em 1921.
O início da década de 50 assistia ao crescimento de uma onda nacionalista que varreu o Oriente Médio e desembocou no nasserismo, o movimento
liderado pelo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, que buscava uma independência relativa em relação ao imperialismo, para estabelecer melhores
condições de negociação com ele. No Irã, tal movimento era liderado por
Mohammed Mossadegh, eleito primeiro-ministro em 1951, um mês depois
da nacionalização da Anglo-Iranian Oil Company pelo parlamento iraniano,
um golpe ao principal imperialismo da região.
Por essa ousadia, os governos imperialistas dos Estados Unidos e Inglaterra, através de seus serviços secretos, planejaram a queda de Mossadegh,
conseguida após uma primeira tentativa frustrada, que resultou na queda e exílio do Xá. O general Fazlollah Zahedi foi nomeado primeiro-ministro e Reza
Pahlevi reempossado, selando sua submissão aos desígnios norte-americanos.
Em 1963 institui a Revolução Branca3, com o objetivo de transformar o
Irã na quinta potência mundial e aproximá-lo ao mundo ocidental. A “modernização” buscada pelo Xá seguia a lógica da dominação imperialista de um
país semicolonial, com sua abertura ao capital estrangeiro, ávido pela renda do
petróleo. Cerca de US$ 250 bilhões acumulados pelo Irã entre 1974 e 1980
pela alta do petróleo foram utilizados na importação de bens de capital e de
consumo. Enquanto isso, a burguesia nacional comerciante, conhecida como
burguesia do bazar, era reduzida ao papel de “mendigo” que se alimenta dos
restos do banquete da exploração capitalista.
A expansão industrial do país garantiu a presença maciça de empresas
norte-americanas - cerca de 500 segundo a revista Fortune – e a expansão
das Forças Armadas iranianas, com 475 mil soldados, para a proteção de sua
propriedade. Os Estados Unidos conseguiam, assim, impor seu controle da
região a partir do enclave israelense e do Irã, o único país do mundo muçulmano que reconhecia o Estado de Israel.
A associação com o capital estrangeiro foi levada a cabo por meio do
controle da oposição e do uso da força contra a população. Em 1975 os partidos políticos foram extintos e um regime de partido único, o Partido da
Ressurreição, foi fundado, justificado de maneira clara pelo Xá:
Uma pessoa que não entrar no novo partido político e não acreditar nos
três princípios cardeais tem apenas duas opções. Ou ele é um indivíduo
que pertence a uma organização ilegal ou está ligado ao clandestino
Partido Tudeh, em outras palavras, é um traidor.
Pahlevi dizia que o lugar dos traidores era a prisão ou o exílio, e a Savak,
uma das polícias políticas mais cruéis do mundo, desdobrava-se dia e noite
para identificá-los, prendê-los, torturá-los e executá-los. Estima-se que cem
mil pessoas estavam presas em 1976, mas o regime reconhecia a existência
de “apenas” 3500 presos políticos.
A situação de miséria e desemprego das massas, gerada pela Revolução
Branca, foi agravada pela crise iniciada em 1974. A capitalização do campo
causou o êxodo de milhões de camponeses às cidades onde o desemprego e
3 Revolução branca:
revolução realizada
“por cima”, em oposição às revoluções
populares ou socialistas, consideradas
“vermelhas”.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
43
Dossiê
a inflação os esperava. Estas sequer possuíam redes de água e esgoto, apesar
das enormes somas obtidas pela renda do petróleo. Os salários dos trabalhadores foram congelados e até um “passaporte interno” para controlá-los foi
instituído. A burguesia do bazar foi prejudicada com o aumento dos impostos. O clero xiita, da religião muçulmana, beneficiava-se politicamente dessa
situação ao capitalizar o descontentamento de amplas camadas da população,
reunidas nas chamadas cidades santas, como Qom, que se transformavam nos
redutos da oposição ao Xá.
A revolução dá seus primeiros passos
As primeiras mobilizações, realizadas pela juventude e intelectuais, ocorreram em 1977, exigindo o respeito à constituição de 1906 ainda em vigor,
a defesa da liberdade de imprensa e da independência do poder Judiciário.
Os protestos seriam intensificados em 1978, quando ocorre o Massacre
de Qom em 9 de janeiro, a cidade santa que se tornaria a morada oficial do
aiatolá Khomeini. A manifestação de 4 mil estudantes e líderes religiosos contra o jornal Ettela’at controlado pelo Xá, que acusava o aiatolá, exilado desde
1963, de ser homossexual, terminou numa repressão brutal com o resultado
de pelo menos 10 mortos. A tentativa de calar as vozes da oposição surtiu
um efeito contrário; em 18 de fevereiro comemorou-se o arba’een - o luto
xiita de 40 dias - com manifestações de massas em todo o país. Em Tabriz, a
população de maioria curda ocupa a cidade sem que os militares locais a reprimissem. Pahlevi foi obrigado a deslocar tropas para executar outro banho de
sangue. Estima-se em cem pessoas mortas e, mais uma vez, as manifestações
alastraram-se, desta vez para Ahwaz, importante centro petrolífero do Irã.
Novas manifestações voltam a ocorrer em Isfahan, onde foi imposta a
lei marcial em 16 de agosto, após os primeiros sinais de fraqueza do regime
ditatorial. O chefe da Savak era substituído por Nasser Moghadam em junho
e o próprio Xá prometia a realização de eleições gerais em 1979. Dez dias
depois o primeiro-ministro é substituído por Jafar Sharif-Emami, que abole
o calendário imperial4 instituído pelo Xá e declara a legalidade de todos os
partidos políticos. Era a primeira vitória democrática das massas, embora o núcleo repressor do regime - as Forças Armadas e a Savak - continuasse intacto.
O imperialismo mantinha seu apoio a Reza Pahlevi. Numa coletiva à
imprensa, o presidente dos EUA, Jimmy Carter, declara que “eu espero que
o Xá mantenha o poder... o Xá tem nosso apoio e também tem nossa confiança” e o diretor da CIA, Stansfield Turner, afirma que “recebi um relatório da
assessoria onde é dito que o Xá vai sobreviver por mais dez anos” no poder.
Morte ao Xá!
O grito de guerra da revolução - Morte ao Xá! - foi escutado pela primeira vez em Tabriz e espalhou-se a todas as manifestações do país. Em 4
de setembro uma manifestação de 4 a 5 milhões é realizada em Teerã para
comemorar o Eid ul-Fitr, o feriado do fim do Ramadã5, e se transforma
num gigantesco protesto político. A lei marcial é decretada em 12 cidades
no dia 8, mas, ainda assim, milhares de pessoas voltam a sair às ruas de Teerã
para reunir-se na Praça Jaleh, onde as tropas reais começam a atirar contra a
multidão, de helicópteros e do solo, assassinando centenas de pessoas6 no
44
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
4 O calendário imperial substituiu o antigo calendário persa,
causando a ira do
clero xiita.
5 Ramadã: nono mês
do calendário islâmico,
onde os muçulmanos
praticam o jejum. É
considerado o mês
em que foi revelado
o Corão.
6 Este número é motivo de muitas controvérsias, pois na
época o clero xiita
falava de dezenas de
milhares de mortos.
Emad al-Din Baghi,
historiador da Fundação dos Mártires
do Irã, estabeleceu
o número de 88 em
suas pesquisas. Michel Foulcaut, testemunha ocular, falou
em 2 a 3 mil mortos. O número exato
nunca será conhecido, mas as imagens
do massacre indicam
a possibilidade de
centenas de mortos.
Dossiê
massacre conhecido como “sexta-feira negra”.
No dia seguinte, Khomeini, do exílio, chama a realização de uma greve
geral. Além das mobilizações populares, os métodos e reivindicações típicos
da classe operária passam a ser incluídos na agenda revolucionária. As greves
começam a pipocar envolvendo milhares de operários e culminam numa greve
geral dos petroleiros no fim do mês que, por sua vez, incendiou a população
em manifestações e rebeliões de apoio por todo o país.
Durante o mês de outubro as greves se sucedem. São bancários, funcionários públicos, mineiros, trabalhadores têxteis, dos correios e telégrafos,
transportes e rádio e televisão. Os jornalistas param no dia 11 de outubro.
Os bancários paralisam o sistema financeiro do país, com a greve do Banco
Central, seguida do incêndio de cerca de 400 agências bancárias pelas massas.
Os bancários revelaram que 178 pessoas ligadas ao Xá haviam transferido um
bilhão de libras ao exterior. Mas não só seus amigos. Segundo David Rockfeller, presidente do Chase Manhattan Bank, Pahlevi possuía depósitos de US$
2 bilhões, cuja retirada poderia levar o sistema bancário norte-americano à
bancarrota.
Finalmente, depois de mobilizações permanentes enfrentando a repressão
armada e a prisão de líderes, uma greve geral de petroleiros iniciada em 21 de
outubro sela o destino do Xá. Negam-se a produzir petróleo sob a ditadura.
O primeiro-ministro Sharif-Emami renuncia em 4 de novembro e o Xá faz
um pronunciamento na TV dizendo que “ouvi a voz de sua revolução ...
Como Xá do Irã e como cidadão iraniano, eu devo apoiar sua revolução”.
Sucedem-se a nomeação do general Reza Azhari para primeiro-ministro que,
no entanto, impõe a lei marcial.
No início de dezembro, cerca de 9 milhões, num país com 35 milhões de
habitantes, saem às ruas exigindo a “morte ao Xá”. Uma declaração de 17
pontos é apresentada com a exigência de “independência, liberdade, república
islâmica” e a afirmação de que o aiatolá Khomeini é o líder dos iranianos. Os
comandantes não conseguem ordenar a repressão e os manifestantes sobem
nos tanques e caminhões para se solidarizar com os soldados, entregandolhes flores.
A última jogada do Xá foi a indicação de um antigo líder oposicionista
para primeiro-ministro, Shapour Bakhtiar, em 29 de dezembro. Ele tentaria
uma transição pacífica ao novo regime em acordo com Mehdi Bazargan,
futuro chefe do governo revolucionário provisório de Khomeini. “O roteiro
da transição seria: a partida do Xá, a instauração de um Conselho da Coroa,
convocação de eleições gerais e livres, instalação de uma Assembléia Constituinte e, por fim, a transferência do poder”7. Mas o retorno de Khomeini
em 1º de fevereiro de 1979 e uma gigantesca manifestação de mais de um
milhão de pessoas nas ruas de Teerã em 8 de fevereiro exigindo a renúncia de
Bahtiar impede qualquer acordo. Em 11 de fevereiro de 1979 completa-se a
dissolução da monarquia, com a ocupação de Teerã por forças guerrilheiras,
a população armada e tropas rebeldes. Reza Pahlevi não presenciou a queda
de seu próprio império, pois em 16 de janeiro de 1979 havia embarcado num
Boeing pilotado por ele próprio rumo ao Kuwait, primeiro, e aos Estados
Unidos, definitivamente, para “tirar férias e tratar de uma doença”, onde
7 COGGIOLA, O.
O Irã no centro do mundo. www.blog.controversia.com.br, acessado em 20/10/2009
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
45
Dossiê
morreria em 1981.
Uma revolução operária
A revolução do Irã foi marcada por grandes manifestações, convocadas
pela hierarquia xiita e organizações sindicais e políticas de várias tendências.
O protesto de dezembro, com 9 milhões de pessoas nas ruas, é considerado
a maior concentração popular da história das revoluções.
Mas é necessário olhar para a ação operária para entender a dimensão dessa
grandiosa revolução. Nos últimos 15 anos da ditadura, com a “modernização”, uma classe operária poderosa seria formada a partir dos investimentos
imperialistas, enquanto a burguesia nacional perdia sua força relativa.
Havia, em 1978, dois milhões de operários industriais, além de 750 mil
trabalhadores nos setores de transportes e outros serviços, concentrados
em bairros da periferia das grandes cidades. A maioria das empresas era de
pequeno porte, com 35 a 50 empregados, ao lado de fábricas gigantes que
dominavam a cena, principalmente do setor petroquímico, automobilístico e
da construção civil, algumas delas com dezenas de milhares de trabalhadores.
Pode-se fazer um paralelo com a Rússia na revolução de 1917, que possuía
uma classe operária de 4 milhões para 150 milhões de habitantes, enquanto
no Irã havia quase o mesmo número de operários para 35 milhões.
Foi este contingente que marcou o fim do reinado do Xá, ao paralisar a
economia do país com suas greves, principalmente da categoria petroleira. É
como afirmava uma declaração da Ala Militante dos Trabalhadores de Indústrias
Petrolíferas do Irã de 5 de junho de 1979:
Os trabalhadores da indústria petrolífera foram os que derrubaram o
regime de 2500 anos de monarquia e despotismo. Quando sua heróica
greve deteve o fluxo do petróleo, cortaram a veia jugular da monarquia.
E ao romper a barreira representada pela monarquia, abriram as portas
à liberdade e à abundância para uma sociedade atrasada como a nossa.
As esperanças numa nova liberdade eram enormes, e as massas começaram a exercê-la com a constituição de comitês revolucionários, os shoras.
Foram criados para ocuparem-se da distribuição de alimento e combustível
à população, durante a greve geral que decretou a queda do Xá, e posteriormente adquiriram um caráter militar, prendendo membros do antigo regime
e executando os agentes da odiada Savak. Espalharam-se por todas as cidades
do país e na capital, Teerã, chegaram a existir 14 grandes comitês e outros
1500 de menor alcance.
Após a queda do Xá, multiplicaram-se e se desenvolveram de forma independente em relação à burguesia, constituindo-se em embriões de duplo
poder. O jornal New York Times de 24 de fevereiro de 1979 publicava uma
matéria de seu enviado especial, onde se podia ler:
Além dessas autoridades centrais há grupos que têm boas conexões
e podem conseguir coisas, como os aiatolás e os mulás. Finalmente,
quase todos os ministérios, bancos, escritórios ou fábricas têm um
comitê de trabalhadores pelos quais todas as ordens devem passar para
ter alguma chance de aprovação. O membro do gabinete do primeiro46
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Dossiê
ministro, Abbas Amir Entezam, reclamou na última quarta-feira que
“apesar do comando do Aiatolá, nenhuma das grandes indústrias estão operando porque os operários gastam todo seu tempo realizando
reuniões políticas”.
Tais reuniões tinham como objetivo organizar a produção sob o controle
dos trabalhadores, a conquista de reivindicações econômicas, e a construção
de sindicatos. Segundo um jornal da época, “os petroleiros ... formaram recentemente uma organização nacional, o Sindicato Nacional dos Petroleiros.
Estão reivindicando jornada semanal imediata de 42 horas e a abertura dos
livros de contabilidade das empresas petrolíferas. Se o governo [de Khomeini]
não responder em três dias, entrarão em greve”.
A burguesia e a hierarquia xiita desejavam a normalização imediata do
país e o fim dos comitês revolucionários, mas as condições políticas lhes eram
desfavoráveis. Mehdi Barzagan, o primeiro-ministro indicado por Khomeini,
reclamava que os comitês estavam se constituindo num “poder paralelo ao
meu próprio governo provisório”.
Ideologia e realidade
O fato de a revolução iraniana ter sido dirigida por líderes religiosos, como
o aiatolá Khomeini, levou os propagandistas do imperialismo a afirmar que sua
causa fundamental foi religiosa, com muçulmanos fanáticos que repudiavam
a modernização ocidental e desejavam retornar à idade média para construir
uma República Islâmica, submetida às leis do Corão. Seria, em essência, uma
revolução reacionária.
É verdade que as medidas de ampliação dos direitos da mulher adotadas
pelo Xá, como a permissão para frequentar a universidade, o direito ao voto
e ao divórcio8, sofreram a oposição do reacionário clero xiita. É verdade,
também, que essa a propaganda religiosa era difundida a todo o mundo por
Khomeini desde Paris, seu local de moradia desde 6 de outubro de 1978.
Porém, como disse Marx, “cada época acredita piamente no que a época
em questão diz de si própria e nas ilusões que cria sobre si própria”9, e isso
vale perfeitamente para os ideólogos da República Islâmica. Mas é necessário
fazer a distinção entre o que cada um pensa ser e o que realmente é. Vejamos:
A República Islâmica defendida por Khomeini tinha duas instituições
principais: os poderes executivo e judiciário. Estas instituições teriam a obrigação fundamental de aplicar e defender as leis divinas, escritas no Corão. O
sistema judiciário seria composto por pessoas com conhecimento profundo
destas leis, o clero xiita. E “no alto do poder temporal encontra-se o imã,
em sua função de intérprete supremo das leis divinas, de guia espiritual e de
coordenador dos aparelhos judiciário e executivo”10. Khomeini seria confirmado imã após a aprovação da constituição islâmica no plebiscito de 1º de
abril de 1979. Para conhecermos o significado concreto de sua investidura,
basta remover o manto religioso que encobre a constituição para verificar
sua condição de Bonaparte11, com a missão de reconstruir o Estado burguês.
Da mesma forma, a burguesia nacional iraniana não entrou em choque
com o imperialismo para defender uma hipotética superioridade do islã sobre o
cristianismo ocidental, mas para tomar posse da renda do petróleo. Tratava-se
8 A revogação do
uso do chador já havia sido adotada por
Reza Khan, pai de
Pahlevi.
9 MARX, K., ENGELS, F. Feuerbach,
a oposição entre as concepções materialista e
idealista. Capítulo 1
de A ideologia alemã
Lisboa: Ed. Estampa,
1975, p. 72.
10 Declaração de
Khomeini em Paris.
11Bonapar tismo:
regime de caráter
ditatorial, apoiado
diretamente nas Forças Armadas e executado pela burocracia
estatal. Seu governo
“da ordem” apela
sempre a um “árbitro
inapelável”, capaz
de arbitrar entre os
distintos setores e
classes sociais, com
o objetivo de derrotar o movimento
operário e estabilizar
o Estado burguês.
Porém, o governo
Khomeini nos primeiros meses da revolução, quando os
Comitês Revolucionários exerciam um
duplo poder, pode
ser caracterizado
como kerensquista.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
47
Dossiê
de uma burguesia frágil de conjunto, que perdera força perante o movimento
de massas com a capitulação do nasserismo ao imperialismo na década de 60 e
via nascer “uma nova corrente de massas, que organizava camadas inteiras da
pequena burguesia e setores desclassificados”12, através de uma rede de 180
mil mulás que controlavam o movimento através de uma ideologia religiosa.
Sem condições de impedir a revolução e temendo muito mais a insurreição
operária do que a dominação imperialista, a burguesia volta-se ao islamismo,
“que rechaça simetricamente o imperialismo e a emancipação do proletariado”13, para derrotar o processo revolucionário.
Por isso, assim que Khomeini assumiu o poder, a indústria petrolífera foi
nacionalizada, bem como todo ramo energético e bancário. As propriedades
do Xá foram expropriadas e o comércio exterior ficou sob controle estatal.
São políticas muito mais próprias de uma burguesia nacional em luta contra o
imperialismo para manter sua parte na mais-valia extraída e sob o peso de um
processo revolucionário gigantesco, do que de um anticapitalismo reacionário
ávido por um retorno à época feudal.
A contrarrevolução
A queda do Xá causou a liberação das forças revolucionárias da população. Os shoras surgiam em todas as partes, revelando a força do movimento
operário. No campo eram criadas organizações semelhantes para a ocupação
das terras. As organizações de esquerda saiam da clandestinidade e publicavam
inúmeros jornais, enquanto as minorias nacionais de língua árabe, turcomana
e curda exigiam autonomia em suas regiões.
A burguesia dividia-se, com o surgimento de um setor contrário ao
controle total do aparato estatal pelo clero xiita, representado por Bazargan
e Bani Sadr. Este setor refletia interesses diversos em relação ao imperialismo e quanto aos métodos utilizados para controlar o movimento operário.
Preferia desviar a revolução para o rumo da democracia burguesa, com suas
instituições “representativas” e eleições regulares. Mas tais instituições eram
inexistentes no Irã, o que debilitou suas posições. Apenas um Bonaparte,
capaz de colocar-se “acima” das classes pela sua posição de imã, poderia manobrar adequadamente entre as pressões do imperialismo de um lado e do
movimento de massas de outro. Sua ideologia reacionária, posta a serviço da
defesa irredutível da propriedade privada, combinada com a repressão brutal
foram as formas encontradas pela burguesia do bazar para a defesa de seus
interesses históricos de classe.
Em junho de 1979 uma nova lei de imprensa foi aprovada, dando o sinal
verde para a perseguição aos jornais de esquerda. E agosto a redação do
Ayandegan foi fechada, seguindo-se o fechamento de 34 jornais de oposição
no mesmo mês. Em setembro os dois maiores jornais burgueses do país,
Kayhan e Ettela’at, foram expropriados e transferidos para a Fundação dos
Deserdados, controlada pelo clero.
Os partidos oposicionistas foram postos na clandestinidade, como o
Mujahedeen-e Khalq (Mujadines ou Lutadores do Povo), guerrilha pequenoburguesa de ideologia muçulmana, e o Hezb-e Kargaran-e Sosialist (HKS ou
Partido Socialista dos Trabalhadores), trotsquista. Massoud Rajavi, líder dos
48
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
1 2 D I V È S, Je a n
Phillippe. Uma guerra
contra os pueblos de Irak
e Irán. Correo Internacional, n. 7, 1985.
13 Idem
Dossiê
Mujadines, foi obrigado a exilar-se na França, enquanto 14 dirigentes do HKS
foram presos, doze dos quais condenados à morte.
O único partido operário que permaneceu legalizado durante três anos foi
o Tudeh (Partido Comunista Iraniano), de orientação stalinista, por declarar
lealdade a Khomeini e apoiar o clero xiita em sua repressão às organizações
de esquerda. Apenas em 1982, devido à ocupação do Afeganistão pela burocracia soviética, os membros do Tudeh foram considerados agentes de uma
potência estrangeira e postos na ilegalidade. Em fevereiro do ano seguinte
Nureddin Kianuri, principal dirigente do Tudeh, foi preso. Kianuri, como
bom stalinista, confessou na televisão ser espião da União Soviética.
O levante da minoria curda pela autodeterminação foi o mais importante e adquiriu um caráter de massas. Os curdos, dirigidos pelo Partido
Democrático, exigiam a autonomia administrativa do Cordestão, o direito à
sua própria língua e cultura, uma participação específica na receita nacional
e a responsabilidade pelas forças locais de segurança. O descontentamento
da minoria curda ficou demonstrado no plebiscito constitucional, rejeitado
pela imensa maioria da população sob a palavra de ordem de “abaixo o plebiscito, primeiro a autodeterminação”. Os choques com as forças armadas
de Khomeini começaram em agosto de 1979, sob o governo de Bazargan. A
guerrilha curda chegou a controlar parte de seu território, até que o exército
iniciou uma ofensiva, ocupando a cidade de Bukan em novembro de 1981 e
todo o território em 1983.
A repressão também atingia os shoras que não se sujeitaram às novas
instituições da república islâmica. Segundo a Anistia Internacional, pelo
menos 900 pessoas foram executadas entre janeiro de 1980 e junho de 1981,
em sua maioria lutadores da esquerda e da minoria curda. Nos doze meses
seguintes, mais 2974 mortes foram computadas. Estima-se em 20 mil o número de prisioneiros políticos durante 1981 e, conforme a revista Time, cerca
de cem mil em 198414. São números que nada deixam a desejar da época do
terror imperial.
As forças khomeinistas conseguiram, finalmente, consolidar sua posição
em fins de 1981, tomar o controle absoluto do poder e estabilizar relativamente o Estado burguês. Além da sangrenta repressão interna, a invasão do
Irã pelo Iraque muito contribuiu para isso.
A guerra Irã-Iraque
Em 22 de setembro de 1980, Saddam Hussein invade o Irã para impedir
que o processo revolucionário avançasse para o território iraquiano através
da comunidade xiita, que compõe 70% da população iraquiana, e do levante
curdo. O exército iraniano consegue repelir o invasor e no início de 1982 o
território iraniano estava liberado. Khomeini, no entanto, decide continuar
a guerra, que duraria mais seis anos, ao custo de pelo menos 500 mil vidas.
O ataque da ditadura de Hussein ocorreu num momento vital do processo revolucionário. “O movimento independente dos shoras, depois de uma
reativação ao calor de uma onda de lutas econômicas da classe operária era
o alvo de uma ofensiva frontal por parte do regime. A campanha de “união
nacional” que o regime islâmico pôde encarar frente ao ataque iraquiano,
14 Idem
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
49
Dossiê
permitiu-lhe dar golpes decisivos contra toda expressão independente da
classe operária”15.
Apesar de uma guerra sem país vencedor, pois acabou por um acordo na
ONU, ela atingiu o objetivo que os Estados Unidos e a burocracia soviética
perseguiam ao dar apoio a Hussein: ajudar a derrotar a onda revolucionária.
Nesse sentido, pode-se dizer que o maior beneficiado pelo resultado, além do
próprio Khomeini, foi o imperialismo, pois esgotava a energia anti-imperialista
das massas iranianas e impunha limites ao grau de independência política
conseguida pelo Irã com a queda de Pahlevi.
As contradições da luta anti-imperialista
A revolução iraniana tinha um caráter democrático e anti-imperialista,
que estava se transformando em revolução social pelo impulso das massas
contra a exploração capitalista. Além de arbitrar o conflito entre a burguesia
nacional e a classe operária, Khomeini desempenhava o papel de um bonapartismo sui generis, pois manobrava entre a mobilização das massas e a pressão
imperialista para não perder o controle do processo, ao mesmo tempo em que
zelava pela manutenção da propriedade privada. Este duplo papel limitava a
luta pela independência nacional, devido ao caráter dependente da burguesia.
Esta contradição ficou claramente demonstrada quando, em 4 de novembro de 1979, estudantes, incentivados pelo chamado de Khomeini para
uma “mobilização geral contra o grande Satanás, os Estados Unidos”, invadiram a embaixada norte-americana sem sua prévia autorização, para exigir
a extradição de Reza Pahlevi e a devolução de sua fortuna depositada nos
bancos dos EUA.
Com a lembrança ainda recente da derrota no Vietnã e a campanha pelos
“direitos humanos” do presidente Carter, os Estados Unidos não ousaram
invadir o Irã. E ficaram desmoralizados ao realizar uma operação secreta para
o resgate dos 66 reféns - a Operação Garra da Águia -, que terminou com a
morte de oito soldados no choque de um helicóptero com um avião norteamericanos em território iraniano.
Mas a “crise dos reféns”, em vez de uma vitória contra o “grande Satanás”,
desembocou numa capitulação vergonhosa do governo iraniano. Os reféns
foram libertados em 20 de janeiro de 1981 por um acordo com o novo governo
de Ronald Reagan16, pelo qual os EUA liberavam US$11 bilhões de fundos
iranianos retidos pelos bancos norte-americanos em troca do pagamento de
US$ 5,1 bilhões de empréstimos fraudulentos realizados por Reza Pahlevi.
A crise da direção revolucionária
Apesar de antiga tradição marxista – a delegação iraniana no Congresso
dos Povos do Oriente, organizada pela III Internacional em 1920, era a segunda em tamanho, com 192 membros17 – o longo período da ditadura dos
Pahlevi havia impedido seu desenvolvimento. Apenas o Tudeh, de origem
stalinista, encontrava-se em condições de organizar uma parcela dos trabalhadores no período revolucionário. Mas seu papel traidor durante seu período
de legalidade, seu histórico de capitulações, como o apoio à Revolução Branca
do Xá, e sua submissão incondicional à burocracia soviética impediram que
se transformasse numa alternativa para a classe operária.
50
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
15 Idem. Para uma
análise completa da
guerra Irã-Iraque, o
artigo referenciado
pode ser encontrado
em www.archivoleontrotsky.org.
16 A eleição presidencial norte-americana
ocorreu em novembro de 1980. Um dos
principais fatores que
contribuiu para a derrota de Carter em sua
tentativa de reeleição
foi a crise dos reféns
e o fracasso da Operação Garra de Águia.
17 BROUÉ, P. História
da Internacional Comunista. São Paulo: Ed.
Sundermann, 2008
Dossiê
Os jovens partidos marxistas, como o HKS, sofreram uma perseguição
implacável e as variantes pequeno-burguesas do islamismo, como os fedaines e os mujadines, embora tenham sido oposição ao regime de Khomeini,
apoiavam a República Islâmica e não defendiam a independência de classe em
seus programas. Outros grupos, como o Paykar (uma dissidência marxista
dos mujadines) e a União dos Comunistas tiveram seus líderes assassinados
em 1983, além da prisão e execução de milhares de militantes.
Ao drama da revolução, soma-se o da ausência de um partido revolucionário que não pôde ser construído no calor de uma luta tão complexa como
a que se deu no Irã, um país muçulmano em que:
O combate contra as direções islâmicas [deve ser feito]... pondo no
centro as necessidades da luta de classes, o combate ao imperialismo e
aos governos lacaios. Desmascarar sua inconsequência, seu palavrório,
sua submissão aos interesses burgueses, seu falso igualitarismo, é parte
do combate e o fazemos deste ângulo, o da luta dos trabalhadores por
cima das crenças religiosas, e não do combate à religião.18
Uma revolução interrompida
Com a consolidação do poder por Khomeini em fins de 1981 e uma relativa estabilidade das instituições islâmicas a partir de 1985, com a transformação da burguesia do bazar o do próprio clero xiita numa grande burguesia
industrial e financeira, o Irã continua refém de suas contradições internas,
com as mais elementares tarefas democráticas não resolvidas.
A burguesia iraniana, com seus atuais chefes islâmicos demonstraram
na prática esse limite estrutural, histórico, das burguesias coloniais e semicoloniais que são incapazes de realizar até o fim as tarefas democráticas que
historicamente as revoluções burguesas cumpriram na aurora do capitalismo, a
saber, a independência nacional, a reforma agrária e as liberdades democráticas.
Em relação ao imperialismo, o Irã consegue sua independência política
com a revolução de 1979. Mas, a partir do momento em que a revolução é
congelada nos marcos do capitalismo, quando a burguesia nada tem a oferecer,
nem mesmo a realização de suas próprias tarefas históricas, o retrocesso é
sempre iminente. Como veremos no artigo seguinte, a tendencia à abertura
ao capital estrangeiro e à acomodação ao sistema imperialista vem se intensificando desde a consolidação do novo regime.
A revolução iraniana passa à história como uma das mais importantes
que a humanidade já conheceu, mas ao não expropriar a burguesia para a
construção de uma sociedade socialista sua tarefa não foi terminada, tivemos
uma extraordinária revolução desviada e abortada, ao permanecer o domínio
capitalista.
18 PARRAS, Angel
Luis. Islamismo, expressão distorcida do
nacionalismo. Em:
O Oriente Médio na
perspectiva marxista.
São Paulo: Editora
Sundermann, 2007,
p. 167
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
51
Dossiê
~
Por uma nova revolucao
´
iraniana
José Welmowicki
Editor de Marxismo Vivo
Tito Niegra
Partido Socialista dos Trabalhadores (PSTU) - Brasil
2009: Manifestações contra a fraude eleitoral
Em 12 de junho passado ocorreram as eleições para a presidência do Irã.
Mal havia se encerrado a votação, foram divulgados os resultados oficiais,
dando a vitória ao presidente Mahmoud Ahmadinejad, que buscava a reeleição,
por 62,3% contra 33,7% de seu principal adversário, Mir-Hossein Mousavi.
Imediatamente após a divulgação iniciou-se uma gigantesca onda de
mobilizações populares denunciando a fraude. Estima-se em mais de três
milhões os manifestantes que ocuparam as ruas de Teerã e de outras importantes cidades por vários dias, desafiando a forte repressão do Estado e dos
grupos paramilitares leais ao regime. Esta, que foi a maior revolta popular
após a revolução de 1979, retrocedeu em um primeiro momento, após a
violenta repressão que assassinou ao menos 17 ativistas e prendeu centenas,
mas logo depois, em 18 de setembro, as massas deram provas de que não
estavam derrotadas, e aproveitando-se dos atos convocados oficialmente
no Dia de Jerusalém, ação anual pró-Palestina e contra Israel, participaram
das manifestações, mas com suas próprias bandeiras e slogans contra o
regime, desafiando os organizadores, todos vinculadas à hierarquia. Ainda
em setembro assistimos a novas manifestações, desta vez contra as prisões
políticas e as severas penas que a ditadura quer impor aos que foram detidos
nos atos anteriores. No momento em que escrevemos este texto, a imprensa
internacional noticia que as forças de segurança cumpriram suas ameaças e
reprimiram manifestantes convocados pela oposição, que iriam participar
da comemoração, neste 4 de novembro, do 30º aniversário da ocupação da
Embaixada americana em Teerã.
A burguesia internacional, por meio de seus agentes, os governos, a
grande mídia, a União Européia, coerente com seus objetivos geopolíticos e
econômicos (que de fato são tão somente econômicos), explora ao máximo
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essas mobilizações, denuncia a fraude e a repressão e exige a “democratização”; interessa-lhe o enfraquecimento do regime para que possa negociar em
condições mais vantajosas, acelerar a abertura econômica, as privatizações, e
aumentar sua influência na região.
E quanto à esquerda? Apoiamos Ahmadinejad e seu discurso antissionista
e anti-imperialista? Ou talvez Mousavi com suas promessas de democratização
e reforma política? Apoiamos e nos solidarizamos com a mobilização popular
que vem sendo violentamente reprimida? Ou essa onda de protestos é coisa
das classes médias abastadas, pró-imperialistas e manipuladas pela CIA?
Queremos discutir qual o caráter de classe do regime iraniano, e a partir
daí nos posicionarmos frente à realidade atual. É de fundamental importância
para os trabalhadores iranianos e de toda a região que não se cometa os erros
de 30 anos atrás, que levaram à derrota da revolução e à implantação de uma
ditadura teocrática. É possível e necessário que se construa uma saída de
classe para a crise atual.
O regime dos aiatolás
Estes recentes protestos populares no Irã são o ápice de um processo que
vem sendo fermentado há anos, e para sermos mais exatos, são parte de uma
luta que vem sendo travada desde 1979, há 30 anos, portanto, pelos protagonistas de uma das mais impressionantes revoluções do século 20, a classe
trabalhadora iraniana, que na origem dirigia-se contra monarquia repressiva
corrupta do Xá, e hoje se dirige contra a burguesia encabeçada por um clero
islâmico reacionário, que assumiu o poder após a derrubada do Xá, e se impôs
principalmente às custas de uma violenta repressão contra os opositores.
Uma das questões que ajuda a criar confusão sobre o caráter do regime
iraniano é sua origem na revolução de 79. Assumindo o poder à frente desta
tremenda revolução e obrigado a utilizar um discurso anti-imperialista pela
dimensão da luta e pelos ataques impiedosos que o imperialismo deflagrou
desde o início, o clero xiita utilizou expressões típicas da esquerda e das
correntes de libertação nacional e nacionalizou a indústria petrolífera e o
comércio exterior. Mas, desde o início, a política deste setor que assumiu o
poder depois da queda do Xá era reconstruir o poder burguês, estabilizar o
capitalismo para terminar com a situação revolucionária e colocar os trabalhadores como seu apêndice, reprimindo-os, caso necessário.
O regime teocrático criou, desde o início, dois fortes instrumentos repressores, diretamente vinculados ao Líder Supremo. O primeiro é a Guarda
Revolucionária Islâmica (Pasdaran), com a função de preservar a segurança
nacional e defender a revolução, atuando na defesa contra ataques externos,
e na repressão à oposição interna, seja dos trabalhadores, da juventude,
ou das minorias étnicas. O segundo instrumento de repressão são grupos
paramilitares não-regulares, conhecidos como milícias Basij, formados
principalmente por jovens recrutados na zona rural e entre o lumpesinato.
Constitui-se de um efetivo de 90 mil na ativa e dois milhões de reservistas.
São uma “força de intervenção popular rápida” e têm como função “combater
os inimigos internos da Revolução e fazer respeitar os códigos islâmicos”.
São conhecidos pela violência e crueldade na repressão às manifestações de
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Dossiê
protesto internas, sendo os responsáveis pelos assassinatos nas manifestações
após as eleições deste ano. Tanto os membros da Guarda Revolucionária
quanto os das milícias Basij vêm sendo mantidos sob rígido controle por
meio de benefícios financeiros e favores, sendo que atualmente as Guardas
Revolucionárias expandiram sua atuação também para áreas de indústria e
comércio de armamentos, telecomunicações, etc., por meio de fundações,
como será visto a seguir.
Apesar da violenta repressão por parte do Estado, a classe trabalhadora
iraniana não parou de lutar, até porque os ataques às suas condições de vida
e aos seus direitos nunca permitiram que as experiências da revolução de
1979 fossem esquecidas.
A luta dos trabalhadores e oprimidos
Apesar da repressão permanente, o movimento operário iraniano é dos
mais fortes e combativos da região. Como descrito em artigo nesta mesma
revista1, os Comitês Operários (Shoras) foram a base fundamental da revolução de 79, sendo por isso atacados e reprimidos duramente pela hierarquia
xiita. Logo nos primeiros anos no poder, os aiatolás impuseram um modelo
repressivo de sindicato, pelo qual os trabalhadores são pretensamente representados pelas Casas de Trabalho, entidades totalmente controladas pelo
regime. No entanto, desde o final dos anos 90, apesar da repressão, os operários vêm retomando suas lutas e construindo instrumentos independentes
de organização.
Desde 2003, os trabalhadores vêm participando dos atos de 1° de maio,
procurando dar aos mesmos um caráter de manifestações não oficiais, de
reivindicações e de protestos. Mesmo com o regime reprimindo com prisões
e demissões, a cada ano mais e mais setores aderem a estas manifestações de
protesto, levantando as bandeiras por melhores condições de vida, por liberdade e contra o regime. Na cidade de Tabriz, segunda maior concentração
industrial do Irã, o sindicato oficial decidiu que a manifestação do 1º de maio
de 2006 seria a favor do programa nuclear iraniano. Os manifestantes (cem
mil pessoas, segundo algumas fontes) passaram dos lemas oficiais, a gritar
palavras de ordem com suas reivindicações trabalhistas.
Alguns setores construíram seus sindicatos ou comitês de empresa independentes: um exemplo são os condutores de ônibus de Teerã. Este vem
sendo um sindicato independente muito ativo, que organizou várias greves e
lutas vitoriosas contra a prefeitura e o regime. Seu dirigente, Mansur Osanloo,
está há vários anos na prisão.
A comissão da fábrica de automóveis Khodro é outra vanguarda da
reorganização. Há anos eles lutam e resistem às pressões do regime. Recentemente, em maio último, estes trabalhadores obtiveram uma importante
vitória quando entraram em greve pelo recebimento de salários atrasados,
conseguindo também que os operários temporários fossem efetivados.
Aliás, chama a atenção o fato de cada vez mais trabalhadores sairem à luta
para, simplesmente, receber os seus salários. Os efeitos da crise econômica
mundial, que a burguesia tenta jogar nas costas dos trabalhadores, fez com
que ocorressem cada vez mais lutas, nas mais diversas categorias: a mídia
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1 Ver Irã,1979: uma
revolução interrompida
nesta edição.
Dossiê
internacional noticia que 1700 operários da Wagon Pars Company, grande
empresa construtora de vagões ferroviários e recentemente privatizada, localizada em Arak, um dos principais centros industriais do Irã, entraram em
greve de fome por não receberem seus salários há mais de 75 dias (a empresa
admite atraso de dois meses), e por estes atrasos serem constantes. A greve
de fome teve início depois que a empresa demitiu parte dos grevistas. Os
operários da Wagon Pars receberam a solidariedade dos trabalhadores da Iran
Khodro, cujos operários têm longa tradição de luta. Dentre estas várias greves
ocorridas em 2009 contra o atraso dos salários, podemos ainda citar a dos
trabalhadores da fábrica de pneus Alborz, com salários atrasados há 5 meses,
e a dos trabalhadores de várias fábricas têxteis. Por fim, queremos citar a luta
dos professores, dos quais 80% são mulheres, com salários extremamente
baixos, que vêm construindo manifestações massivas por melhorias salariais,
e são um dos setores de ponta na luta contra o regime.
Os trabalhadores e a juventude vêm encontrando interessantes formas
de burlar a repressão: participam de manifestações organizadas oficialmente
e a partir de um determinado momento começam a gritar as suas próprias
palavras de ordem antiregime. Isso ocorreu, além do 1º de Maio, no Dia
de Jerusalém e, agora, na comemoração do 30º aniversário da ocupação da
embaixada americana em Teerã.
Juntamente com as lutas dos trabalhadores, há as lutas por liberdades
democráticas dos estudantes e das mulheres, como as que ocorreram em
1999 e foram fortemente reprimidas sob o governo de Khatami. Por fim, as
minorias étnicas lutam por seus direitos (e em alguns casos por seus territórios), como os curdos e azeris na região norte e os baluches no sul do Irã.
A estrutura econômica do Irã
O Irã possui uma população de aproximadamente 67 milhões de habitantes bastante jovem, com uma idade média de 27 anos, sendo 68%
concentrada nas cidades. Sua força de trabalho é estimada em 25 milhões de
trabalhadores, distribuídos nos setores da agricultura (25%), indústria (31%)
e serviços (45%). A taxa de desemprego oficial é de 12,5%, mas estimativas
não-oficiais dão números superiores a 20%. A taxa oficial de inflação - certamente subestimada - foi de 25,6% em 2008, uma das mais altas do mundo,
e 25% da população vive abaixo do nível de pobreza, segundo o Ministro do
Bem Estar Social.
A economia iraniana é capitalista, ainda que sua forma de gestão possa
confundir um observador desavisado, pois é composta por um emaranhado
de empresas estatais, diversas fundações islâmicas (as chamadas Boniads) e
empresas privadas. Esta estrutura expressa a forte relação de dependência e
interesses mútuos entre a burguesia (a tradicional e a composta pelos altos
escalões do Estado) e o clero islâmico, que parasita o Estado, acumulando
fortunas incalculáveis. O exemplo das Boniads é bastante ilustrativo: foram
criadas no governo do Aiatolá Khomeini, com o objetivo de “redistribuir
a riqueza” confiscada do regime do Xá, por meio da construção de casas
populares, clínicas de saúde, etc. Atualmente são em torno de 100 grandes
fundações (Fundação dos desamparados, Fundação dos mártires, Fundação
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dos oprimidos e inválidos de guerra, etc.), que atuam em praticamente todos
os ramos da economia iraniana, e movimentam uma fração impressionante do
PIB, entre 30 % e 50%. Estas fundações são consideradas entidades privadas,
e eram até há pouco tempo isentas de impostos, de taxas de importação,
além de gozarem de enormes benefícios e privilégios, de forma que acabam
por monopolizar os setores da economia em que atuam. Além disso, o tráfico de influência e a corrupção não permitem que grandes negócios sejam
realizados sem a participação ou intermediação de uma fundação. Não há
controle algum sobre seus negócios e sua contabilidade, pois só devem prestar
contas ao Líder Supremo, que indica e afasta os dirigentes. Por trás destas
fundações encontraremos as lideranças religiosas (os mulás e aiatolás), os
máximos dirigentes do Estado, os comandantes da Guarda Nacional, e uma
rede de aliados, ou seja, a nova burguesia que se formou e se consolidou com
o regime islâmico, cujos negócios e acúmulo de riqueza dependem de suas
relações com o aparato do Estado.
Tomemos como exemplo a Mostazafan & Jambazan Foundation (Fundação para os Oprimidos e Inválidos da Guerra), o segundo maior empreendimento comercial do país, perdendo apenas para a gigante estatal National
Iranian Oil Co. Ela emprega mais de 400 mil trabalhadores, possuindo
ativos superiores a US$ 10 bilhões, em setores tão díspares como a antiga
rede de hotéis Hilton, a companhia de refrigerantes Zam-Zam, sucessora da
Pepsi, uma companhia de transportes marítimos, petroquímicas, indústrias
de cimento, propriedades rurais e imóveis urbanos. Criada originalmente
como uma fundação de assistência social, capitalizada com elevadas somas
expropriadas das riquezas do Xá, em 1996 começou a requerer fundos governamentais para cobrir os gastos assistenciais, ao passo que começava a abandonar suas funções para se dedicar exclusivamente às atividades comerciais.
Esta fundação esteve até há pouco tempo nas mãos de Mohsen Rafiqdoost,
Ministro da Guarda Revolucionária nos tempos de Khomeini e transferido
para a Fundação em 1989, quando o aiatolá Ali Akbar Hashemi Rafsanjani
assumiu a presidência do país.
Atualmente, Rafiqdoost, filho de modestos comerciantes de frutas e
verduras à época da revolução, é um dos homens mais ricos e poderosos do
regime, e está à frente de outra Fundação, a Noor Foundation, que constrói
blocos de apartamentos e atua na importação de produtos farmacêuticos,
açúcar, materiais de construção, etc.
O poder no Estado Iraniano
Os protestos que levaram multidões às ruas, contra os resultados eleitorais
no Irã, e que ainda continuam, expõem as profundas divisões na sociedade
daquele país. A mídia internacional procura caracterizar as eleições como
uma disputa entre o Bem (Mir-Hossein Mousavi) e o Mal (Mahmoud Ahmadinejad), sendo que o primeiro representaria a democracia, a liberdade,
e a modernidade enquanto o segundo seria a continuidade de uma ditadura,
de um país ligado ao terrorismo internacional. Alguns setores da esquerda
entendem de outra forma: Mousavi seria um agente a serviço do imperialismo,
um entreguista neoliberal, enquanto Ahmadinejad seria a garantia de um país
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independente, antissionista e que manteria acesa a chama anti-imperialista.
Afinal, quem e o que representam e defendem estes personagens?
O clero xiita foi a direção política de um setor burguês que se insurgiu
contra a espoliação exacerbada realizada pelo imperialismo por meio de seu
agente, o Xá. Para isso, o clero se apoiou no protesto das massas. Mas assim
que se sentiu fortalecida o suficiente, tratou, conforme seus interesses de
classe, de reconstruir o Estado burguês e submeter os trabalhadores. Hoje,
o clero segue sendo expressão de setores burgueses que lutam por um espaço
próprio no mercado, frente à ofensiva recolonizadora e às limitações impostas
pela crise econômica mundial.
O Estado iraniano é burguês e tem um regime bonapartista. De tal forma
que as disputas eleitorais se dão por dentro das instituições e são um jogo de cartas marcadas. As eleições no Irã são totalmente controladas pelo poder central
(o Líder Supremo e o Conselho de Guardiões) que não permite candidaturas
independentes, de mulheres, e muito menos de opositores de esquerda. Não
há liberdade de organização política. Com isso, as disputas eleitorais vêm se
resumindo a embates entre representantes das frações burguesas que dão
sustentação ao regime. Antes de analisarmos estas disputas entre os setores
da burguesia iraniana, vejamos um pouco da biografia de seus representantes:
• Aiatolá Ali Khamenei: teve importante papel na implantação da República islâmica, sendo um colaborador bastante próximo de Khomeini.
Foi presidente do Irã de 1981 a 1989, ano em que foi eleito Líder Supremo
pelo Conselho de Especialistas, em substituição à Khomeini que falecera.
É, portanto, o centro do poder hoje, mas é criticado por vários setores do
regime que já começam a discutir sua sucessão
• Aiatolá Ali Akbar Hashemi Rafsanjani: presidiu o parlamento iraniano entre 1980 e 1989, sendo posteriormente eleito Presidente do Irã de 1989
a 1997, sucedendo Ali Khamenei. É acusado por vários setores de corrupto
e de utilizar seu poder para beneficiar os negócios familiares. Em 2003 foi
citado pela revista Forbes como um dos homens mais ricos do Irã. Voltou
à cena em 2005 quando disputou a presidência com Ahmadinejad, que o
derrotou no segundo turno. Rafsanjani ocupa a presidência do Conselho de
Especialistas desde 2007.
• Mohammad Khatami: antes de ser eleito presidente, Khatami foi
membro do Parlamento (de 80 a 82), Ministro da Cultura e ocupou vários
cargos no governo. Exerceu o cargo de presidente por dois mandatos, de
1997 a 2005. Sua primeira eleição, em 1997 foi um marco no processo político iraniano, pois 80% do eleitorado compareceu às urnas (o voto não
é obrigatório no Irã) e destes, 70% votaram em Khatami, atraídos pelas
propostas que o identificavam como um político reformista. No plano econômico, Khatami deu continuidade ao projeto neoliberal de seu antecessor,
Rafsanjani, financiando o setor privado, abrindo a economia e acelerando as
privatizações.
• Mir-Hossein Mousavi: foi primeiro-ministro do Irã de 1981 a 1989,
o período da guerra Irã-Iraque. Teve importante papel nos acordos secretos
com os EUA, conhecido como o escândalo Irã-Contras. Após a morte de
Khomeini, que lhe dava sustentação política, seu grupo ficou enfraquecido
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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Dossiê
e ele se afastou da vida pública, retornando nas últimas eleições como o
candidato a presidência do setor reformista, derrotado por Ahmadinejad.
• Mahmoud Ahmadinejad: após a revolução, fez parte da Agência para
a Consolidação da Unidade (OSU), entidade estudantil criada para combater os grupos de esquerda que tradicionalmente atuavam nas universidades.
Durante a investida contra as universidades, chamada por Khomeini de Revolução Cultural Islâmica, os militantes da OSU promoveram o expurgo
de um grande número de professores e estudantes dissidentes, muitos dos
quais foram presos e executados. Ocupou cargos de governador em pequenas províncias, até que em 2003 assumiu a prefeitura da cidade de Teerã. Em
2005 foi eleito presidente com um discurso populista, dizendo-se defensor
dos pobres.
Como se pode constatar são todos políticos com origem no clero ou em
organizações ligadas à hierarquia e que fizeram suas carreiras por dentro do
regime, ocupando importantes cargos na estrutura de poder iraniano nos
últimos 30 anos. Nenhum destes personagens representa um rompimento
com o regime teocrático, continuam fiéis à República Islâmica, colocam-se
como seus defensores e disputam posições aceitando suas regras.
Na essência, Ahmadinejad e Mousavi representam dois grandes blocos
da burguesia que disputam eleitoralmente o controle do aparato estatal para
melhor se beneficiarem economicamente. Nesse ponto há muita semelhança
com as disputas interburguesas tão comuns na maioria dos países e que se
expressam em distintos partidos. Esta disputa tornou-se mais acirrada nas
últimas eleições, como consequência da crise econômica e da queda do preço
do petróleo, o que significa uma diminuição do tamanho do “bolo” e menos
oportunidades de negócio. Reflexo disso foi Ahmadinejad acusar publicamente a Rafsanjani de corrupto, enquanto este defendeu o fim da figura do
Líder Supremo, que deveria ser substituído por um Conselho de Aiatolás.
Há outra componente, relacionada ao tratamento dado aos movimentos
sociais (lutas sindicais, juventude, mulheres, minorias étnicas e religiosas),
sobre qual é a melhor tática para não fugirem do controle, e assim não questionem ou enfraqueçam o regime islâmico, mas que também deem sustentação eleitoral a uma ou outra ala. Este é um tema extremamente importante
e muito atual, já que o governo vem procurando jogar as consequências da
atual crise econômica nas costas dos trabalhadores, aumentando os conflitos e tensões sociais. A ala de Ahmadinejad e de Ali Khamenei investe na
repressão, no aparato policial e nas milícias fascistas; atacam as lutas sindicais e por liberdades políticas, prendem seus dirigentes; não reconhecem
os direitos das mulheres e das minorias étnicas. E trata de compensar essa
posição opressiva com populismo, prometendo mais comida aos pobres, e
políticas assistencialistas e compensatórias, embalados por um forte discurso
anti-imperialista, utilizado para justificar, tanto as “dificuldades econômicas”
quanto a repressão aos “agentes desestabilizadores infiltrados”. O discurso
anti-imperialista tem ainda a função de elevar, interna e externamente, o
regime iraniano como liderança regional, que se coloca contra os interesses
americanos na região, fortalecendo-se e aumentando sua importância nas
negociações internacionais.
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A ala reformista, representada por Mousavi, defende um regime com
algumas aberturas, com maiores liberdades e, que alivie ou desvie as tensões
sociais, evitando que fuja do controle, pois teme uma explosão social que
possa derrubar os alicerces do regime, como já ocorreu em situações semelhantes. Apresenta-se como liberal, tanto política como economicamente. A
campanha de Mousavi baseou-se em promessas vagas como a justiça social,
a igualdade, a liberdade de expressão, o combate à corrupção, etc. Com isso,
recuperou a simpatia dos movimentos sociais, particularmente da juventude
e de setores da classe média, que haviam se decepcionado com o governo
de seu aliado Khatami, que há dez anos uniu-se a Khamenei na repressão
violenta às manifestações estudantis por liberdades democráticas, liberdades
que iam além dos limites aceitáveis para o regime. Esta é uma ala da burguesia
iraniana com maiores ligações com o imperialismo europeu, com o qual tem
fortes vínculos comerciais em várias áreas, e por isso defende maior abertura
econômica e a aceleração das privatizações.
Já vimos que estas alas da burguesia iraniana movem-se em defesa de seus
interesses na apropriação das riquezas do Estado, mas se unem quando veem
qualquer ameaça ao regime teocrático, numa clara indicação de quão limitada
é a “democratização” defendida pela ala de Mousavi. E quanto à gestão da
economia? Ainda que haja diferenças nos ritmos que cada um quer impor, não
há uma disputa entre os defensores da privatização e os que defendem uma
economia estatizada. Ou entre aqueles que querem mais relações comerciais
com o imperialismo, e aqueles que as rejeitam. Qualquer análise das medidas
tomadas por Ahmadinejad mostram que foi em seu governo, considerado
estatizante e anti-imperialista por parte da esquerda, que ocorreu o maior
número de privatizações, e quando as relações comerciais com o imperialismo,
inclusive o americano, mais se intensificaram.
Na página oficial da Organização Iraniana de Privatização é apresentada,
como oportunidade de investimento para o mercado internacional, a lista das
empresas a serem privatizadas em 2009, por meio da venda de suas ações ou
pelo recebimento de ofertas2. A lista envolve petroquímicas, siderúrgicas,
companhias de gás, de refino de petróleo, companhias aéreas, bancos, a Companhia Iraniana de Telecomunicações. Somado a isso, tem-se o anúncio do
atual Ministro do Comercio do Irã, Masoud Mir-Kazemi, de que o Irã atraiu,
em 2008, 300% mais investimentos externos que nos dois anos anteriores;
ou ainda o anúncio do Ministério de Assuntos Econômicos e Finanças, de
que na gestão Ahmadinejad as privatizações já haviam superado em mais de
três vezes as ocorridas nos quinze anos anteriores.
Por fim, dados oficiais revelam que, apesar dos choques e da hostilidade
no discurso, os governos Bush e Ahmadinejad foram extremamente pragmáticos em termos de parceria comercial: as transações comerciais entre EUA
e Irã aumentaram cerca de 600% nos quatro anos do primeiro mandato do
presidente iraniano.
Como vimos, estas duas alas do regime iraniano são semelhantes, e o que
levou o acirramento das disputas entre as mesmas atingir um nível inédito
nestas eleições é a crise econômica, que como dissemos, reduz as “oportunidades”. Para se manterem, estas alas têm que, necessariamente, uma tomar
2 www.guardian.com.
u k / wo r l d / 2 0 0 9 /
oct/12/us-irantrade-mahmoudahmadinejad #historybyline, acessada
em 26/10/09
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o espaço da outra, e isso enfraquece o regime, provoca fissuras. O problema
para eles é que a crise tem outras consequências: ao procurar transferir a conta
para os trabalhadores, leva-os a reagirem, a se defenderem, a lutarem... e é
isso o que explica o aumento das greves no último período. As massas, ao
entrarem em cena na luta por seus interesses, intervêm no processo eleitoral,
e acirram ainda mais as contradições do regime bonapartista, levando a uma
crise nas alturas.
É muito difícil, dado o grau de crise e enfraquecimento do regime, que
mesmo com a violenta repressão seja possível voltar ao status anterior, como
almeja Ahamadinejad, ou apenas com pequenas aberturas como querem Mousavi e Rafsanajani. A experiência da revolução de 79 poderia servir de lição
aos ditadores de hoje, e talvez seja a origem dos fantasmas de suas noites mal
dormidas. Esta revolução certamente continua nas mentes e corações dos trabalhadores, que foram novamente despertados para a ação política de massas.
Os acordos do Irã com o imperialismo para a estabilização da região
Não se pode entender a posição dos imperialismos na crise que vem se
arrastando desde junho, sem analisarmos o papel que ultimamente o Irã vem
cumprindo na situação regional: se por um lado o imperialismo tenta, desde
a revolução de 79, liquidar definitivamente qualquer traço de independência
do regime (e isso explica, por exemplo, a pressão que vem fazendo contra
o programa nuclear), por outro reconhece a importância do Irã na solução
dos vários problemas regionais causados pela desastrosa política da “guerra
contra o terror” de Bush, que reduziu significativamente a força de pressão
militar dos EUA, apesar das centenas de milhares de soldados enviados ao
Iraque e Afeganistão sem conseguir estabilizar a situação. Some-se a isso a
derrota de Israel no Líbano em 2006, além de outro componente explosivo,
que foi a abertura da “caixa de pandora” das lutas inter-étnicas na região.
Hoje os americanos já não podem contar com aliados de peso na região: já
não contam mais com ex-aliados, como Sadam Hussein em 1980, antes de
ser descartado, nem com a influência que o Egito já teve, hoje governado
por Mubarak cada vez mais desmoralizado perante as massas, pelo seu giro
à direita; Israel é odiado e saiu enfraquecido do Líbano, e não se pode contar
com a monarquia corrupta da Arábia Saudita. O Irã tornou-se o único país
com peso suficiente sobre as direções e sobre as massas para desempenhar
um papel significativo na estabilização da região. Sua influência sobre o
Hezbollah, e nos últimos tempos sobre o Hamas, o fortalece como um fator
real de poder na área. Mesmo a Síria, até hoje governada pelo Baas, tem se
colocado em uma parceria com os iranianos para subsistir frente à pressão
de Israel e dos EUA.
O imperialismo viu-se então obrigado a negociar e contar com algum
tipo de relação com o mesmo regime acusado de “fora-da-lei”, “terrorista”,
etc. E estas negociações começaram ainda durante o governo de Bush, para
garantir minimamente a estabilidade no Iraque, com o governo títere de Jaafari e depois de Al Maliki, dirigentes da burguesia xiita iraquiana que eram
e são até hoje homens de confiança do Irã. Como explicar que os governos
de Jaafari e agora de Al Maliki, totalmente vinculados politicamente ao Irã,
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sejam o braço da ocupação se não por uma aliança prática entre Irã e EUA
na sustentação desse “governo”?
As negociações entre EUA e Irã desenvolveram-se ainda mais com a
mudança da realidade após a derrota da política de guerra contra o terror de
G. W. Bush. Apesar dos conflitos com os EUA, estes não impediram que a
direção da república islâmica negociasse e colaborasse ativamente com a dominação imperialista na região, sempre que isso permitisse tirar algum proveito,
conseguir ao menos uma pequena parte dos despojos da rapina imperialista.
Além do exemplo já citado dos acordos para a sustentação dos governos
títeres no Iraque, é um fato já documentado que o Irã vem colaborando
com os EUA em sua ocupação do Afeganistão. Como os talibãs não estão
sob sua esfera de influência, e sob o argumento de que o Talibã pode vir a se
tornar um problema para a estabilização da região, o Irã permite que armas
americanas atravessem seu território para abastecer as tropas que ocupam o
Afeganistão. Além disso, o Irã tem pressionado política e financeiramente
o Hezbollah para que se incorpore ao governo burguês do Líbano. Assim, o
Irã contribuiu para uma relativa estabilização regional, por acalmar uma das
principais organizações que enfrentam militarmente Israel, permitindo um
respiro ao Estado sionista.
O governo Obama, diante da crítica situação deixada por Bush no Oriente
Médio, definiu-se por intensificar as negociações com as forças da região,
buscando uma saída honrosa para a retirada de seus soldados, ao mesmo
tempo em que tenta uma relativa estabilização da região. Para isso, dispõe-se
a uma maior interação com o Irã, o que explica em parte a mudança no tom
das negociações. Os EUA mostram-se dispostos a reavaliar uma colaboração
com os aiatolás, desde que o regime aceite alguns limites, como o abandono
do projeto de enriquecimento de urânio e suas pretensões de produzir armas
nucleares. Não por acaso, Obama fez questão de dizer que abriria o diálogo
com o regime do Irã em sua campanha eleitoral, apesar de suas diatribes contra
Israel. E estimulou abertamente Lula a receber Ahmadinejad em dezembro
no Brasil, para convencê-lo a ser mais flexível.
O Programa Nuclear Iraniano: mais uma capitulação ao imperialismo
Apesar de todas “propostas de diálogo” feitas ao Irã, o imperialismo é
muito claro nas negociações referentes ao acordo nuclear: não aceitará que o
Irã se dote de uma tecnologia que lhe permita desenvolver armas nucleares,
pois isso provocaria muito mais instabilidade da região, particularmente com
Israel. No entanto não conseguem demonstrar que o Irã esteja infringindo
alguma das regras das convenções internacionais, mesmo considerando-se
o Tratado de Não Proliferação vigente, que serve aos interesses das grandes
potências.
Apesar disso os EUA exigem o fim do programa nuclear iraniano, sob o
argumento de que o país não necessita de usinas nucleares para a produção
de eletricidade. Esquecem-se que anos antes usaram argumento inverso para
poder vender reatores ao Irã, quando esse era dirigido pelo governo fantoche
dos americanos. Os EUA têm uma política seletiva para a questão nuclear:
apoiou e colaborou com o programa nuclear de Israel e do Paquistão, sem
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Dossiê
que estes países, juntamente com a Índia (outra aliada), assinassem o Tratado
de Não Proliferação.
Nestes anos todos, o Irã tem denunciado publicamente a discriminação
pela qual vem passando, e afirmado que não abrirá mão de seu direito de enriquecer urânio. Defendemos o direito do Irã à posse e desenvolvimento da
tecnologia nuclear, inclusive a de produzir armas nucleares para defender-se
do imperialismo e de Israel. No entanto, a tendência do regime nesse campo
também tem sido a de capitular, mantendo o discurso anti-imperialista para seu
público interno, e buscando conseguir melhores condições nas negociações
conduzidas pela AIEA e pelo Conselho de Segurança da ONU.
O Irã vem cedendo cada vez mais sua autonomia, chegando ao ponto de
aceitar, mesmo com idas e vindas, abrir mão de seu programa de enriquecimento, e enviar seu urânio estocado (enriquecido a 3,5%) para ser enriquecido na Rússia e França ao nível de 18,5%, retornando já como elementos
combustíveis montados em reator nuclear para a produção de radio-fármacos
utilizados no diagnóstico e tratamento de câncer. Assim, o Irã não teria
urânio em quantidade suficiente para promover o enriquecimento nos níveis
necessários para a construção de armas nucleares.
Qual a saída para o Irã sob a ótica da classe trabalhadora?
A única saída viável para o Irã é uma revolução que derrube o Estado
vigente e aponte a tomada do poder pela classe operária aliada aos camponeses e setores populares. Os diversos processos de luta que vêm ocorrendo
ultimamente se enfrentam diretamente com o inimigo verdadeiro: a ditadura
teocrática, que reprime os trabalhadores, a juventude, as mulheres, as minorias
étnicas e religiosas, e todos os opositores de um modo geral.
Como dissemos no início deste texto, as manifestações de junho foram as
maiores desde 79, e fez com que todos se recordassem daquele processo. Mas
muitos detratores do movimento dizem que eram apenas manifestações da
“classe média” urbana, manipuladas pelo imperialismo. Qualquer análise séria
mostra que nas manifestações de junho havia uma participação do movimento
operário organizado, seja através de presença física de trabalhadores ou de
manifestos como o da Iran Khodro e dos condutores de Teerã. Por isso, houve
fortes manifestações não somente em Teerã, mas também em cidades industriais como Isfahan, ou Tabriz (na região azerbaijã). Por outro lado, houve
uma participação importante dos professores, das mulheres, do movimento
estudantil e de intelectuais. Isso se deu porque a classe operária e os setores
populares estão fartos de serem reprimidos e sofrerem as consequências da
exploração capitalista, avalizada pela hierarquia xiita. Ou seja, foi de fato um
levante operário e popular contra um regime burguês repressivo, apesar de
sua direção ser capitalizada por uma ala da burguesia. Em um enfrentamento
entre as massas e esse regime, não pode haver nenhuma dúvida quanto ao lado
que nos posicionamos: do lado das massas que exigem seus direitos democráticos, ao mesmo tempo em que denunciamos a direção política burguesa
e pró-imperialista, representada por Mousavi.
Não se pode permitir que os mesmos erros de 79 se repitam, e que a
burguesia, (seja a governante, ou as frações opositoras), tome a direção deste
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Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Dossiê
processo de lutas; isso novamente levaria as massas a um beco sem saída. É
preciso que a classe operária iraniana avance em suas instâncias e métodos
de organização, postule-se como direção dos demais setores oprimidos, e
construa uma saída classista para o Irã, oposta ao regime dos aiatolás, e contra a oposição burguesa e o imperialismo; uma saída que aponte para uma
sociedade socialista.
A defesa das liberdades democráticas não pode ficar nas mãos do
imperialismo
O governo Ahmadinejad continua a perseguição aos opositores após as
manifestações de junho, sob o pretexto de que são organizados pelo imperialismo. Infelizmente, uma parte significativa da esquerda, particularmente
a ligada aos partidos stalinistas e aos chavistas, alinha-se a esta posição e
defende o governo de Ahmadinejad, classificando os protestos como uma
“conspiração da CIA”. Dessa forma, acabam defendendo a sangrenta repressão
do governo iraniano sobre as massas, alegando que é justificável a repressão
ao povo para defender-se do imperialismo. Essa postura, na prática, é uma
valiosa contribuição ao imperialismo, pois deixa em suas mãos sujas de sangue
a bandeira da defesa das liberdades democráticas e da denúncia da repressão.
Estas bandeiras devem estar nas mãos das organizações dos trabalhadoresàs quais é destinado o papel de capitanear o processo de luta dos oprimidos,
chamando a mais ampla unidade de ação em defesa dos direitos democráticos. Por liberdade de expressão e de imprensa, eleições livres, liberdade de
organização política, por uma Assembleia Constituinte e laica, pelo direito
a organizar sindicatos livres, pelos direitos de organização e expressão das
minorias, e pelo fim de todas as instituições bonapartistas típicas do regime
teocrático. E devem, neste processo, colocar suas bandeiras de classe contra
a exploração capitalista e por seu direito à organização independente.
Esse é o caminho para desmascarar Mousavi e sua ala, que têm como
limite a defesa do regime. É preciso combatê-la por dentro do processo
de mobilização para que não canalizem as legítimas aspirações das massas
iranianas para o beco sem saída da reforma do regime e da abertura cada vez
maior ao imperialismo.
Repetimos que, se os trabalhadores e a esquerda mundial não assumirem
a bandeira das liberdades democráticas no Irã, estas serão arrebatadas por
setores da burguesia e do imperialismo, que acabarão ganhando o respaldo
das massas. Defender a repressão às manifestações em nome de uma suposta
natureza anti-imperialista de Ahmadinejad e do regime é repetir a traição do
Tudeh iraniano e da esquerda anti-Khomeini após 79, o que permitiu o fortalecimento do regime, e a repressão ao desenvolvimento de uma alternativa
independente de classe no Irã.
A esquerda revolucionária deve impulsionar a luta contra a ditadura dos
aiatolás, e ao mesmo tempo denunciar qualquer ilusão na oposição burguesa
e no imperialismo. A tomada do poder pela classe trabalhadora é o único
caminho para expulsar de vez o imperialismo e acabar com a exploração
capitalista no Irã.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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Dossiê
Afeganistã~ao:
Uma encruzilhada para o
imperialismo
Bernardo Cerdeira
Editor de Marxismo Vivo
2001: ocupação do Afeganistão pelos EUA
A atual situação do Afeganistão está marcada por três problemas fundamentais. O primeiro é, obviamente, a guerra, que já dura oito anos, entre os
mais de cem mil soldados das forças de ocupação imperialista e a guerrilha do
Talibã. O segundo é a crise do governo e do regime político colonial, montados e sustentados pelos EUA, afundados em corrupção, tráfico de drogas e
fraudes eleitorais. O terceiro é o dilema da política global do imperialismo,
que deve decidir entre aumentar a escalada militar de envio de tropas e armamentos ou se arriscar a que o Talibã tome outra vez o poder. Partindo da
análise destes três aspectos, queremos chegar às questões mais importantes
que estão em jogo na guerra do Afeganistão.
A guerra
No Correio Internacional de setembro deste ano, a LIT resumia assim a
atual situação militar dos Estados Unidos neste conflito:
Tropas dos Estados Unidos ocupam o Afeganistão há oito anos, um
período quase 50% mais longo que o envolvimento do país nas duas
Guerras Mundiais. No entanto, depois de todo este tempo, o Talibã, que
foi deposto do governo no momento da ocupação em 2001, mantém
uma atividade guerrilheira permanente em quase todo o país.
Segundo o centro de estudos britânico International Council on Security and Development (citado pelo Estado de São Paulo de 11/09/2009)
o Talibã age em 97% do território afegão. Em 80% do país a presença
de insurgentes seria permanente. Esta porcentagem vem crescendo
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Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
Dossiê
rapidamente, já que em novembro de 2007 era de 54% e em 2008, 72%,
segundo o mesmo estudo. Um mapa produzido pelo instituto mostra
que quase metade do país está sob controle dos Talibãs ou sob risco de
ataque. Nos últimos meses, os insurgentes aumentaram seus ataques
no norte do país, uma região que até então era considerada pacífica.
As baixas americanas e dos outros países da OTAN vêm crescendo
constantemente e atingiram seu número mais alto este ano. As tropas
de ocupação controlam apenas a região da capital Cabul, mas mesmo
assim não conseguem evitar os ataques do Talibã, inclusive um atentado
a bomba em frente ao quartel-general da OTAN que matou 7 pessoas.1
A situação descrita acima não só se confirmou como se agravou sensivelmente nos últimos dois meses. Em outubro morreram 55 soldados
americanos, o maior número de baixas em um único mês desde o início da
guerra. Por outro lado, o Talibã intensificou os ataques aos caminhões que
abastecem regularmente as tropas imperialistas com combustíveis, alimentos e suprimentos. Vários comboios que vêm do Paquistão, atravessando as
montanhas pela rota do Passo Khyber, têm sido atacados e destruídos.
O aumento de ações do Talibã prossegue apesar do governo Obama ter
procurado fortalecer sua posição militar este ano: enviou mais 30 mil soldados ao país e deslocou quatro mil deles para a província de Helmand, para
combater a presença dos insurgentes na região, uma das mais conflagradas
do Afeganistão.
Atualmente, 68 mil soldados dos Estados Unidos e 32 mil de outros
países da OTAN ocupam o país, totalizando 100 mil militares, o maior número desde o começo da guerra. As forças da OTAN, além dos EUA, são
compostas principalmente por soldados de países imperialistas europeus: a
Inglaterra com 8300 homens; a Alemanha tem 3600; França, 3300; Espanha,
2400; Itália 2800.
Mesmo assim, o general Stanley McChrystal, comandante das forças de
ocupação no Afeganistão, pediu ao governo o envio de mais 40 mil soldados,
sem os quais, segundo ele, os EUA estariam sob risco de sair derrotados
desta guerra.
Não é necessária tal declaração para se concluir que os Estados Unidos
e a OTAN estão com graves problemas do ponto de vista militar. A maior
evidência é o próprio pedido de aumentar as tropas americanas em 60%, o
que significa um esforço de guerra extraordinário, com o equivalente em
armas e suprimentos. Com as Forças Armadas dos EUA esgotadas depois
de combater durante oito anos em duas guerras simultâneas, é fácil entender
que não se apelaria para tal medida se esta não fosse decisiva.
O imperialismo não pode se dar ao luxo de sofrer outra derrota militar,
desta vez no Afeganistão. A derrota no Vietnã custou anos de crise até que os
Estados Unidos pudessem retomar sua ofensiva contra os povos explorados
do mundo. A derrota no Iraque, ainda que o governo dos EUA tente atenuar
seus efeitos e busque uma retirada “honrosa”, significou o fim do projeto de
um novo “século americano” e da ofensiva bonapartista que o acompanhava.
Uma derrota no Afeganistão pode abrir uma nova crise de grandes proporções.
1 Correio Internacional, n. 152, setembro
2009
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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Dossiê
O Talibã e a extensão da guerra ao Paquistão
Outro aspecto fundamental da situação militar é a facilidade geográfica
que o Talibã encontra para desenvolver sua atividade guerrilheira. Como todos os movimentos de guerrilha bem-sucedidos, o Talibã se fortalece porque
tem um país vizinho, neste caso o Paquistão, que pode utilizar como refúgio
para seus militantes. Os insurgentes do Talibã atravessam a fronteira entre o
Afeganistão e o Paquistão, porosa e com muito pouca vigilância, e se abrigam
no país vizinho. Aproveitam-se dos laços étnicos, culturais e até familiares, já
que sua principal base de apoio encontra-se entre o mesmo povo, os pashtun,
que vive dos dois lados da fronteira.
O povo pashtun, que constitui a maior etnia do Afeganistão com 40% da
população, também está presente em grande número no Paquistão, principalmente na chamada Província da Fronteira Noroeste, nas Áreas Tribais e no
norte da Província do Baluquistão. Além disso, no Paquistão existem mais
de cinco milhões de refugiados afegãos, a maioria de pashtuns, uma grande
parte concentrada ao redor da cidade de Peshawar. No total, 26 milhões de
pashtuns vivem no Paquistão.
O Talibã chegou a dominar uma região, o Vale do Swat na Província da
Fronteira Noroeste, onde implantaram a Lei muçulmana da sharia2, com o
acordo implícito do governo paquistanês. Recentemente, o governo rompeu
o acordo e atacou o Talibã, expulsando-o do Vale. No entanto, a ofensiva do
exército paquistanês gerou mais de dois milhões de refugiados paquistaneses
em seu próprio país.
Nos últimos dias de outubro, o exército paquistanês começou outra
ofensiva, desta vez para tentar desalojar o Talibã do Waziristão do Sul, uma
região das chamadas Áreas Tribais do Paquistão.
Para se ter uma idéia do que significa a presença do Talibã nesta área, é
interessante ver o depoimento do jornalista David Rohde do New York Times.
Rohde foi sequestrado no Afeganistão e mantido como refém durante sete
meses pelos Haqqani, uma das facções do Talibã. Depois foi levado para o
Waziristão do Sul e mais tarde para o Waziristão do Norte. Ali, o Talibã criou
um mini-Estado, um “emirado islâmico” no feitio do que havia no Afeganistão antes da invasão das tropas dos EUA. O jornalista afirma: “A perda
de milhares de vidas afegãs, paquistanesas e americanas e bilhões de dólares
em ajuda americana apenas deslocaram o Estado alguns quilômetros para o
leste, não o eliminaram”.3
O que fica evidente com as campanhas do exército paquistanês no Vale
do Swat e no Waziristão é que a guerra estendeu-se ao Paquistão. As razões
são políticas e sociais, facilitadas pela geografia. Os dois países compartilham
2400 quilômetros de fronteira, mas esta linha existe somente nos mapas.
Ou seja, como pano de fundo da extensão do conflito ao Paquistão
está uma questão nacional muito presente nesta região: a divisão artificial
do povo pashtun promovida pelo imperialismo britânico em 1893, quando
estabeleceu a Linha Durand, uma fronteira traçada entre a Índia Britânica
e o território afegão. Durante décadas, nacionalistas pashtuns defenderam a
criação do Pashtunistão como um país independente, constituído pelas áreas
sob domínio desta etnia no Afeganistão e Paquistão.
66
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
2 Corpo de Direito
islâmico, adotado pela
maioria dos mussulmanos. Constitui um
código detalhado de
conduta, na qual se
incluem também as
normas relativas aos
modos do culto, os
critérios da moral e
da vida, as coisas permitidas ou proibidas,
as regras separadoras
entre o bem e o mal.
3 The New York Times,
artigo reproduzido
pela Folha de S. Paulo
(02/11/2009)
Dossiê
Esse processo, portanto, deve ser entendido no seu contexto regional
e mundial. A guerra do Afeganistão é uma guerra de libertação nacional
contra a ocupação militar imperialista. Por isso une diferentes etnias de
países da região, que também lutam contra a opressão do imperialismo e seus
agentes nacionais e a divisão promovida pelo imperialismo.
A guerra não só já está desestabilizando o Paquistão como pode chegar a
desestabilizar toda a região, porque, além disso, o Afeganistão tem uma posição estratégica no Oriente Médio: está localizado entre o Irã, a Ásia Central
e o subcontinente indiano e tem laços étnicos com os povos iranianos, turcos
e indianos de vários países da região.
Porém, o mais importante é que esta guerra de libertação nacional se
insere no contexto geral da luta dos povos islâmicos contra o imperialismo.
Por isso, assistimos ao fenômeno de combatentes de diferentes nacionalidades
islâmicas apoiando a insurgência.
Por fim, ao golpear e enfraquecer diretamente o imperialismo, a guerra de
libertação nacional do povo afegão transforma-se em um fato de repercussão
mundial para os trabalhadores e os povos de todo o mundo.
Antes, porém, de abordar a situação política da ocupação militar e a
política de Obama, parece-nos útil aportar alguns dados que permitam compreender melhor o Afeganistão e alguns elementos de sua história recente.
O que é o Afeganistão?
O Afeganistão é um país com 85% do seu território formado por montanhas, numa área de 647,5 mil km². Sua população estava estimada em cerca
de 32 milhões de habitantes em 2008.
É um dos países mais pobres do mundo. A taxa de mortalidade infantil é
de 160,23 mortes a cada 1000 nascimentos. A expectativa de vida é de 43 anos.
A instabilidade política e os conflitos internos arruinaram a já débil economia
e infra-estrutura. Hoje, cerca de 1/3 da população afegã já abandonou o país.
No Afeganistão convivem diferentes grupos étnicos que em sua maioria
são povos iranianos, ou seja, falam idiomas indo-europeus do subgrupo das
línguas iranianas (os pashtuns, os tadjiques e os balúchis, por exemplo). Outras etnias falam línguas do grupo turco (como os uzbeques e turcomanos).
O idioma dari, também chamado de persa oriental ou farsi oriental, é falado
em 50% do país e utilizado como língua franca de comunicação entre os
diferentes povos iranianos.
Como não há um censo sistemático no país, não existem estatísticas
exatas do tamanho e da composição dos variados grupos étnicos. Segundo o
CIA World FactBook4, uma distribuição aproximada é a seguinte: pashtuns,
42%, tadjiques 27%, hazaras 9%, uzbeques 9%, aimaks 4%, turcomanos 3%
e balúchis 2%.5
Estes grupos étnicos vivem também em vários dos países com os quais
o Afeganistão faz fronteira. Por exemplo, existem cerca de 26 milhões de
pashtuns no Paquistão, segundo o último censo. A maioria vive na Província
da Fronteira Noroeste, cuja capital é Peshawar, mas também existem 3,5
milhões de pashtuns em Karachi, a maior cidade do Paquistão e que abriga
a maior concentração da etnia pashtun em uma única cidade. Outras etnias
4 Espécie de anuário
da CIA onde analisam
dados geográficos,
econômicos e sociais
de todos os países do
mundo.
5 CIA World FactBook, 2007.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
67
Dossiê
são majoritárias em países vizinhos, como Tadjiquistão, Uzbequistão e Turcomenistão.
As bases históricas da guerra atual
Os elementos da história recente do Afeganistão que explicam as raízes da
guerra atual começaram a ser gerados há três décadas: a Revolução iraniana e a
invasão soviética do Afeganistão. Em 1979, uma revolução operária e popular
no Irã derrubou a ditadura do Xá Reza Pahlevi. Este acontecimento teve um
tremendo impacto sobre os povos islâmicos oprimidos pelo imperialismo.
Também teve repercussão entre as então Repúblicas de maioria islâmica
da fronteira sul da ex-União Soviética (Uzbequistão, Cazaquistão, Turcomenistão, Tadjiquistão, Quirquistão)6, assim como entre as etnias islâmicas
dentro da Rússia (como os chechenos), todas oprimidas pelo “chauvinismo”
grão russo, incentivado pela burocracia stalinista.
O Afeganistão tinha um governo próximo ao da União Soviética, mas
ameaçado por uma crescente oposição islâmica e problemas internos. Temendo a constituição de uma república islâmica na sua fronteira e a possível
extensão da revolução islâmica a suas repúblicas da Ásia Central, a União
Soviética invadiu o Afeganistão.
A invasão soviética desencadeou uma luta guerrilheira de resistência.
Os Estados Unidos aproveitaram-se da insatisfação gerada pela invasão para
combater a influência soviética nessa parte do mundo e desgastar a burocracia comunista. Para isso, apoiaram e armaram uma guerrilha muçulmana, os
“mujaheddin”, à qual se uniram combatentes islâmicos de vários países, entre
os quais Osama Bin Laden e boa parte das organizações islâmicas fundamentalistas atuais. Alguns dos principais atores da guerrilha foram os “senhores
da guerra”, oligarcas que hoje dirigem as principais nacionalidades do país.
Depois de dez anos, a guerrilha islâmica expulsou os soviéticos em 1989
e tomou o poder, mas, em seguida, os grupos se dividiram, passaram a se
enfrentar e o país mergulhou na guerra civil.
Diante desta situação, os Estados Unidos, agindo por meio de seu aliado,
a ditadura militar que governava o Paquistão, buscaram criar um instrumento
para estabilizar o país. O ISI (organismo de segurança do governo paquistanês) incentivou a formação de uma organização de estudantes das Madrassas
(escolas islâmicas) da região onde predomina a etnia pashtun. Seus membros
ficaram conhecidos como Talibãs, palavra emprestada do árabe talib (estudante ou quem estuda o livro, isto é, o Corão) e utilizada no plural Talibã
(em farsi e em pashtun).
O Talibã entrou na guerra civil e, depois de uma campanha militar
vitoriosa, conseguiu tomar o poder e governar o país de 1996 a 2001. No
princípio, o Talibã foi visto com muita simpatia porque trazia ordem a um
país mergulhado no caos e na destruição devido aos confrontos entre os
“senhores da guerra”. Depois, no entanto, foi se desgastando, à medida que
foi instituindo uma república islâmica das mais reacionárias e repressivas do
mundo, especialmente em relação às mulheres.
No entanto, por mais reacionário que fosse, o governo do Talibã não
gozava da confiança dos Estados Unidos, pois não estava sob seu controle. O
68
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
6 O nome desses países é formado pela
adição do sufixo ostan (que quer dizer
“lugar” em farsi ou
persa) e o nome da
etnia principal do país.
Assim, Uzbequistão
significa “lugar ou
terra dos uzbeques”,
Tadjiquistão, “lugar
ou terra dos tadjiques”
etc. Afeganistão significa “lugar, terra ou
país dos afegãos”, que
é o nome pelo qual
eram conhecidos os
pashtuns.
Dossiê
atentado de 11 de setembro de 2001 e o objetivo declarado de capturar Osama
Bin Laden, aliado do governo Talibã, foi o pretexto para Bush invadir o país.
Mas as verdadeiras razões da guerra eram econômicas e geopolíticas.
Um dos objetivos centrais do imperialismo é o escoamento da produção
das principais empresas petrolíferas dos países da Ásia Central (Cazaquistão, Uzbequistão) por um oleoduto que atravessaria todo o Afeganistão até
um porto no Paquistão. Desta maneira, aquele teria o controle total sobre
os oleodutos e gasodutos, ou seja, o transporte do petróleo que atualmente
está nas mãos da Rússia.
Além disso, o Afeganistão tem uma posição geográfica estratégica para a
estabilidade da região. Está localizado entre o Oriente Médio, região detentora das maiores reservas de petróleo do mundo, a Ásia Central, que também
tem importantes reservas, e o subcontinente indiano. Um dos objetivos da
ocupação era manter bases militares permanentes dos EUA no Afeganistão.
Expulso do governo, o Talibã voltou a se organizar e desencadeou uma
guerra de guerrilha contra as tropas de ocupação. O imperialismo, mais uma
vez, atuou como “aprendiz de feiticeiro”, criando um instrumento que mais
tarde voltou-se contra ele. Contraditoriamente, um movimento reacionário
atualmente luta de armas na mão contra o imperialismo.
A crise política da dominação colonial
Com a ocupação militar por tropas do imperialismo norte-americano e
seus aliados, o Afeganistão transformou-se numa verdadeira colônia, sem
independência política ou econômica.
Como na maioria das colônias, a ”metrópole” procura transferir para um
regime político e um governo “local” algumas tarefas da administração da
máquina estatal civil e, inclusive, uma parte da repressão interna (embora,
no caso do Afeganistão, a guerra de libertação nacional force a que a maior
parte da repressão seja assumida pelas forças de ocupação).
Os Estados Unidos nomearam diretamente o governo de Hamid Karzai
para cumprir este papel no Afeganistão. É um governo colonial fantoche
que depende totalmente das tropas de ocupação. E se baseia em um regime
de democracia colonial farsesco, em que todas as instituições se apoiam nas
tropas de ocupação ou em organismos internacionais para poder existir.
Mas, apesar disso, o imperialismo tenta conferir ao regime uma aparência
democrática e ao governo um reconhecimento internacional que justifique
a ocupação militar.
No entanto, os Estados Unidos enfrentam uma dificuldade enorme não
só para montar este regime e governo coloniais locais como para organizar o
próprio Estado. O aparato estatal e a própria infraestrutura do país são muito
débeis devido ao atraso, às dificuldades geográficas e aos quase trinta anos de
guerras permanentes desde a invasão pela União Soviética.
O próprio exército afegão, a mais importante instituição de qualquer
Estado, não passa de uma junção dos exércitos dos “senhores da guerra”,
que controlam as principais etnias do país (tadjiques, uzbeques e hazaras). A
polícia afunda-se em incompetência e corrupção e o tráfico de ópio e heroína
atinge os principais escalões do governo.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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Dossiê
A produção de drogas é um dos elementos não só de corrupção, mas
também de fragilização do Estado. E não é um problema qualquer: no Afeganistão, o ópio, proveniente das plantações de papoula, é o principal produto de
exportação, com um valor estimado em US$ 5 bilhões anuais. O país produz
93% da matéria-prima mundial necessária para a fabricação da heroína.
O imperialismo utiliza frequentemente as drogas como uma arma política. Mas, neste caso, existe um grande risco, nos dois sentidos. Por um lado,
não há como controlar as plantações de papoula, principalmente nas regiões
mais conflagradas. Por isso, o dinheiro da droga é uma das principais fontes
de financiamento do Talibã. A província de Helmand, com forte presença do
Talibã, produz 70% do ópio afegão. Por outro lado, o narcotráfico infiltra-se
diretamente no aparato do Estado fantoche. Um dos principais traficantes
do país é Walid Karzai, irmão do atual presidente e denunciado como sendo
um agente pago pela CIA desde 2001.
Neste aspecto, a situação no Afeganistão se parece cada vez mais com
o Vietnã, onde os principais traficantes do país chegaram a ser Nguyen Van
Thieu e Cao Ky, respectivamente presidente e vice-presidente do governo
fantoche do Vietnã do Sul. O perigo para Karzai é terminar como Cao Ky
ou Ngo Dinh Diem, alijados do poder por disputas internas entre os grupos
de traficantes do governo.
Esses problemas estruturais do regime colonial, que têm a ver com uma
produção econômica e uma burguesia local extremamente frágeis e com o
apoio maciço à insurgência guerrilheira, constituem o pano de fundo da atual
crise política do processo eleitoral e do governo de Karzai. Em setembro, o
Correio Internacional já assinalava a crise do processo eleitoral e os problemas
que isso trazia para o objetivo do imperialismo de tentar dar uma aparência
de legitimidade à ocupação militar e à guerra.
Esta conclusão tornou-se evidente com as últimas eleições presidenciais
no país, realizadas em 21 de agosto. O processo eleitoral custou 300 milhões
de dólares e muito esforço para seus organizadores, mas o desfecho é de crise.
Calcula-se que somente compareceram às urnas cerca de 40% a 50% dos
15,6 milhões de eleitores em condições de votar. O resultado é bem inferior
à eleição anterior, realizada em 2004, quando a participação, segundo os
organizadores, chegou a 70% dos eleitores.
A abstenção eleitoral mostrou a fragilidade do governo afegão e das “instituições” criadas pelo imperialismo. Um só dado mostra bem esta situação:
em Kandahar, província e cidade do mesmo nome, localizada no sul do país
e santuário do Talibã, a abstenção pode ter chegado à incrível porcentagem
de 95% de um milhão de eleitores registrados, segundo observadores internacionais independentes.
O processo de votação esteve marcado pelas denúncias de fraude que
favoreceram o presidente Karzai, que tenta ganhar no primeiro turno para
evitar o prolongamento da campanha eleitoral até 1º de outubro, quando se
daria o segundo turno.7
Das eleições para cá, a crise e o desmascaramento da farsa só aumentaram.
As denúncias de fraude nas eleições foram tão grandes que obrigaram os organismos internacionais a pedirem a anulação de mais de um milhão de votos.
70
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
7 Correio Internacional, 152, setembro de
2009.
Dossiê
A pressão obrigou a Comissão Eleitoral Independente (sic), ligada a Karzai,
a anular estes votos. Com a anulação, Karzai não atingiu a maioria para ser
eleito no primeiro turno, o que obrigaria a realização de um segundo turno.
O imperialismo, que antes das eleições já percebia a ineficiência do
governo de Karzai para cumprir seu papel de fantoche com um mínimo de
credibilidade, pressionava para um acordo para a participação de Abdullah
Abdullah e outros candidatos no novo governo.
O segundo turno chegou a ser anunciado, mas o candidato de oposição
Abdullah Abdullah, que deveria enfrentar Karzai, renunciou da segunda,
denunciando que não havia garantias mínimas para uma eleição democrática.
Com isso, Karzai foi declarado finalmente vencedor (sic), depois de dois
meses de crise que só confirmaram a fraude do sistema eleitoral e do regime.
Ou seja, um verdadeiro desastre político.
A conclusão a que chegava o Correio Internacional há dois meses é mais
válida que nunca: “(...) as eleições serviram muito pouco ao propósito do
imperialismo de criar a imagem de um regime democrático e de uma situação mais estável, apesar da guerra”8. Esta crise política do regime colonial
de dominação faz recair mais ainda sobre as tropas de ocupação o peso do
combate à insurgência guerrilheira.
A política de Obama
A estratégia e as táticas do atual governo dos Estados Unidos para a
guerra do Afeganistão só podem ser consideradas no marco da política geral
do imperialismo contra os trabalhadores e os povos explorados de todo o
mundo. Esta política é analisada por Alejandro Iturbe em outro artigo deste
número da Marxismo Vivo, que explica a mudança de tática do imperialismo
para continuar enfrentando a luta dos trabalhadores e povos do mundo no
novo cenário criado pela derrota da ofensiva militar do governo Bush.
A nova política do imperialismo está marcada por duas orientações gerais.
Por um lado, continua sendo imperialismo e, por isso, mesmo com um presidente negro que utiliza um discurso conciliador, democrático, que prega a
união de povos e classes, continua tendo como objetivo principal explorar a
classe operária de todo o mundo e saquear as riquezas dos países explorados.
Para isso, continua disposto a utilizar todos os recursos e a violência necessária
e possível na atual situação mundial.
Mas, por outro lado, a derrota do projeto de Bush enfraqueceu o imperialismo e obrigou-o a adotar uma tática preferencial de negociações, planos
de “paz” e manobras “democráticas” para desviar e derrotar revoluções e
processos de insurgência armada. Isso não significa que o imperialismo abandone as guerras e as ações armadas, mas que prioriza a tática das negociações,
utilizando a força para pressionar os inimigos e obrigá-los a claudicar, capitular
e a colaborar em troca de concessões “democráticas”.
Mas, quando passamos da análise da tática mundial do imperialismo para
abordar a situação concreta do Afeganistão, parece haver uma contradição:
o novo governo de Barack Obama vem intensificando a intervenção militar
neste país. Desde a campanha eleitoral, Obama vem defendendo que é no
Afeganistão que se trava a principal batalha contra o terrorismo e que agora,
8 Idem
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ao contrário da guerra do Iraque, as tropas americanas podem sair vitoriosas.
Depois da posse, Obama mandou mais 30 mil soldados ao país e prometeu transformar o Afeganistão no centro da “guerra contra o terrorismo”.
Utiliza os mesmos argumentos de Bush, de que esta seria uma “guerra justa”
porque é contra o terrorismo, e prometeu “destruir, desmantelar e derrotar
a Al-Qaeda e seus aliados extremistas”, inclusive os talibãs.
Este discurso e estas iniciativas poderiam indicar que o presidente dos
EUA estaria preparando uma volta à ofensiva guerreira de Bush, senão em
todo o planeta, pelo menos no Afeganistão? Em nossa opinião é o contrário:
este é um dos países onde o governo Obama mais busca aplicar sua nova tática. O problema é que também é o lugar onde o imperialismo está em piores
condições de aplicar qualquer política.
Obama sabe que o curso desta guerra não pode ser mudado com o envio
de mais tropas, a não ser em uma escala que não seria aceita pela opinião
pública norte-americana. Um ex-agente da CIA chegou a afirmar que seriam
necessários um milhão de soldados para derrotar o Talibã e estabilizar o país.
Por quê? Porque é evidente que a insurgência guerrilheira tem apoio de
massas entre a população. Se não, não seria possível para o Talibã desenvolver
uma ação permanente em 80% do país. E por que os insurgentes têm apoio?
Porque a ocupação militar piorou muito a situação do país. Produziu
bombardeios constantes que atingem indiscriminadamente a população e já
mataram dezenas de milhares de civis. Só em 2008, os EUA realizaram 3572
ataques aéreos, boa parte por meio de drones, aviões sem piloto. O regime
político, agora supostamente “democrático”, governa baseado na corrupção,
na fraude eleitoral, na violência e, principalmente, nas tropas estrangeiras. A
situação de atraso do país, que gera a violência contra a mulher, não mudou,
mantendo-se inclusive o amplo uso da burka. Em resumo, o Talibã recebe
apoio simplesmente porque as massas não aceitam mais a presença das tropas
de ocupação.
Uma das ironias desta guerra é que o reacionário Talibã encabece a luta
armada contra o imperialismo. Esta contradição não é casual. A política
sistemática de recolonização dos países periféricos e o ataque militar brutal
protagonizado pelo governo Bush acabaram levando a que uma força aliada
do imperialismo até pouco tempo atrás terminasse se enfrentando com ele.
Diante desta situação extremamente difícil, o governo Obama e a burguesia norte-americana estão discutindo possíveis saídas. E existem divergências,
como seria previsível face à delicada posição dos Estados Unidos na guerra.
Há setores do imperialismo - inclusive conservadores como o conhecido
colunista reacionário do Washington Post, George Will, que escreveu um artigo
com o sugestivo título É preciso saber quando se deve parar – que começam a
se declarar contra a continuidade da intervenção no Afeganistão.
Entre os setores que defendem a continuidade da ocupação e da guerra
e no próprio governo Obama existe uma divergência interna, ou pelo menos
duas tendências, sobre a estratégia a seguir. Segundo a informação vazada
por integrantes do governo para a imprensa americana9, haveria dois grandes
esquemas em discussão e em disputa. Um, encabeçado pelo comandante americano no Afeganistão, Stanley McChrystal, prevê manter a tática atual e um
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9 Noticiado por Sérgio Dávila, correspondente em Washington
da Folha de S. Paulo
(11/10/2009).
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acréscimo de 40 ou até 60 mil homens na força militar. O outro, defendido
pelo vice-presidente Joe Biden, manteria o atual contingente, mas substituiria uma parte dos soldados por oficiais treinadores que teriam o objetivo de
formar uma força de segurança afegã.
Mas, segundo a mesma notícia, a discussão mais importante seria sobre
uma nova estratégia para a guerra. O foco, ou seja, os alvos da ação militar
norte-americana dividir-se-iam em dois. A prioridade passaria a ser eliminar
os líderes do Al Qaeda, vistos por Washington como uma rede global jihadista
que procura atacar os EUA. Esta é, evidentemente, uma declaração pró-forma,
porque o Al Qaeda não tem nenhuma influência no movimento de resistência.
Quanto ao Talibã, que constitui a organização central do movimento de
resistência e tem apoio de massas, continuaria a sofrer ataques do imperialismo
e do exército paquistanês, “mas não estaria descartada a negociação com o
baixo clero da organização e até a possibilidade de se negociar uma trégua”10.
Analisando essas diferentes posições e variantes, fica claro que nenhuma
tem como estratégia conseguir uma vitória militar nesta guerra, isto é, que
as tropas de ocupação esmaguem a resistência e destruam o Talibã. Isso porque, obviamente, a situação da luta de classes em todos os seus aspectos – a
insatisfação das massas com a guerra e a ocupação, o repúdio às tropas invasoras, o apoio ou neutralidade em relação ao Talibã, a debilidade do governo
fantoche – torna impossível a vitória.
A própria posição do general McChrystal assemelha-se à política do
Surge11 no Iraque, da qual ele foi o principal executor militar. Esta política
consistiu num aumento de tropas, mas com o objetivo de pressionar a resistência sunita a um acordo baseado em concessões políticas e econômicas.
O aumento de tropas explica por que o imperialismo americano não pode
aceitar, pelo menos num primeiro momento, a posição do setor burguês que
propõe uma retirada imediata. Uma decisão desse tipo provavelmente teria
como conseqüência uma vitória rápida da resistência e a volta do Talibã ao
poder. Um fato desta dimensão significaria, sem dúvida, um golpe no imperialismo e abriria uma crise no governo Obama.
Esse dilema do governo Obama reflete a própria situação da guerra e do
imperialismo. Mas, justamente por isso, reafirmamos o que dissemos anteriormente: o imperialismo não só tenta aplicar no Afeganistão sua tática de
negociações como esta é a melhor tática de que dispõe para tentar derrotar
a insurgência. E será neste país que esta política será submetida ao seu mais
duro teste. Neste contexto, pode ser até que o governo Obama envie ainda
mais tropas, mas sempre com o objetivo de negociar um acordo com o Talibã
para estabilizar o país e permitir uma saída negociada das tropas imperialistas.
A ofensiva militar subordina-se ao aspecto principal da política, isto é,
a ação militar busca pressionar o Talibã a negociar, obter uma posição mais
vantajosa para o imperialismo e, se possível, a capitulação da resistência.
Na verdade, tudo indica que esta política de negociação já está em curso.
Segundo a Red IslamOnline.net, um alto funcionário do governo afegão informou a este órgão, sob a condição de permanecer anônimo, que o governo dos
EUA já teria feito uma primeira proposta ao Talibã, por meio dos governos da
Arábia Saudita e Turquia. A proposta consistiria em ceder a este movimento
10 Idem.
11 Surge: Política de
Bush en 2007 para
aumentar as tropas
no Iraque.
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o governo de seis províncias (Kandahar, Zabul, Helmand, Orazgan, no sul,
e Nuristán e Kunar, no nordeste do país). Em troca, o Talibã aceitaria a presença das forças da OTAN e a existência permanente de oito grandes bases
militares imperialistas no país.12
É certo que, aparentemente, o Talibã rechaçou a proposta, mas o mais
importante é constatar qual é a verdadeira política do imperialismo. Outras
notícias informam que Hillary Clinton, em sua recente viagem ao Paquistão,
teria acertado com os militares deste país que seriam eles os interlocutores
das negociações com o Talibã. Se non è vero...
Os revolucionários não são neutros nesta guerra: lutamos pela vitória da
resistência e pela derrota do imperialismo
A guerra do Afeganistão estará cada vez mais no centro dos acontecimentos mundiais e, portanto, exigirá dos revolucionários, das organizações de
esquerda e de todos os ativistas dos movimentos sociais tomar uma posição.
Isso é ainda mais importante porque grande parte da esquerda, inclusive
uma parte da que se reivindica trotsquista, tomou uma posição de “neutralidade” quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão há oito anos. Na
época, a Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI) posicionou-se na
trincheira militar do reacionário Talibã contra os Estados Unidos “democráticos”. Acreditamos que o balanço desses oito anos de guerra nos deu razão.
Mas agora a situação é ainda mais evidente: trata-se de uma guerra de
libertação nacional contra um exército imperialista de ocupação formado
por mais de 100 mil homens. Nenhum ativista anti-imperialista do mundo
pode vacilar quanto ao lado da trincheira em que deve estar. Neste sentido,
a posição recente da LIT resume o que está em jogo nesta luta.
O destino da guerra do Afeganistão interessa a todos os trabalhadores e
povos explorados do mundo. Uma derrota do imperialismo americano nesta
guerra pode significar um golpe tremendo contra o opressor. É preciso lutar
para que esta guerra termine sendo o Vietnã de Barack Obama. Por isso,
a LIT chama todas as organizações populares e democráticas do mundo a
denunciar a ocupação militar do Afeganistão e exigir a retirada das tropas
invasoras. Chamamos especialmente os trabalhadores de países imperialistas
que mantêm tropas de ocupação no país, como é o caso da Inglaterra, Alemanha e Espanha, entre outros, a mobilizarem-se para exigir de seus governos
a retirada imediata de seus soldados.
Nós não somos neutros na guerra que está sendo travada nas montanhas
daquele país. Estamos do lado dos oprimidos e agredidos pela invasão e
ocupação imperialista. A luta do povo afegão é para expulsar as tropas imperialistas de ocupação e conseguir a verdadeira independência nacional do
Afeganistão. Por isso, sem que signifique qualquer tipo de apoio político às
posições do Talibã, a LIT declara seu apoio às ações militares da resistência.
A luta guerrilheira que enfrenta o imperialismo, ainda que dirigida por uma
organização burguesa reacionária, é um dos fatores fundamentais para as
baixas e o desgaste das tropas, para a crescente queda de popularidade do
governo Obama e para a crise da ocupação militar. É esta luta militar de resistência, junto às mobilizações e à pressão da opinião pública principalmente
dos países imperialistas, que pode infligir uma derrota ao imperialismo.13
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12 LATIFF, Aamir.
Los talibanes rechazan
la oferta de EE.UU.
de 6 provincias por 8
bases. www.IslamOnline.net, 05/11/2009,
reproduzido por Rebelión.org.
13 Correio Internacional, n. 152, setembro
de 2009
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A guerra, o imperialismo e a
questaã~o nacional polarizam o
Paquistaã~o
Bernardo Cerdeira
Editor de Marxismo Vivo
A guerra do Afeganistão estendeu-se de tal maneira ao Paquistão que
hoje o mais correto seria falar de uma só guerra do Afeganistão-Paquistão.
O próprio imperialismo já fala de uma só “entidade”, que ele denomina Afpak, e tem uma política de conjunto para ela. Chegou a designar um enviado
especial do Departamento de Estado, Richard Holbrook, para dar atenção
aos dois países.
A guerra está presente em toda a situação política do Paquistão, desde o
crescimento da insurgência guerrilheira até as tremendas pressões do imperialismo sobre o governo Zardari, que forçaram a atual ofensiva do exército
sobre a região de influência do Talibã em aliança com grupos locais.
No entanto, a realidade da guerra se ergue sobre enormes contradições
que o país alberga desde sua fundação em 1947, especialmente a questão
nacional, que atinge algumas de suas diferentes etnias.
A ofensiva do exército paquistanês
O Paquistão está envolvido nesta guerra desde seu princípio em 2001.
Com o fluxo de refugiados e combatentes do Afeganistão que atravessaram a
fronteira buscando refúgio dos ataques militares das tropas norte-americanas
veio também a guerra. Os refugiados guardam laços étnicos com a população
paquistanesa da região – são do povo pashtun que vive nos dois países – e
também relações políticas e religiosas, já que a constituição do Talibã, organização que dirigia o Estado afegão, deu-se nas escolas islâmicas do Paquistão
(Madrassas), estimulados por uma política do governo e do ISI, serviço
paquistanês de segurança e informação.
Uma aliança do Talibã com grupos islâmicos insurgentes locais desenvolveu uma forte presença no Waziristão do Norte e do Sul, regiões localizadas
nas Áreas Tribais do Paquistão, assim como na Província da Fronteira Noroeste, onde chegaram a estabelecer a sharia (lei islâmica) na região do vale
do Swat, com a própria anuência do governo.
O exército paquistanês, pressionado pelos EUA, vem reagindo com intensas e amplas ofensivas militares nestas regiões. Esta intensificação da guerra
vem acompanhada por métodos brutais utilizados pelo exército do Paquistão,
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que provocaram a fuga de milhões de refugiados civis em seu próprio país.
Em abril e maio deste ano, o exército paquistanês empreendeu um
importante ataque ao Vale do Swat, na Província da Fronteira Noroeste,
tentando esmagar o movimento islâmico pashtun Teheek-e-Nafaz-e-Shariate-Mohammadi (TNSM), que tem ligações com o Talibã e cuja crescente
influência reflete o apoio que a organização afegã tem entre a população
pashtun do Paquistão. O ataque foi uma exigência de Washington, que temia
que a trégua assinada em princípios deste ano entre o TNSM e o governo
paquistanês permitisse que muitos militantes passassem ao Afeganistão para
se unir à resistência.
Durante os combates, segundo o exército paquistanês, foram mortos 1800
combatentes do TNSM e outros 900 foram capturados. O ataque provocou
a fuga de dois milhões de civis, devido aos ataques aéreos e bombardeios do
exército. Centenas de milhares ainda não voltaram, por medo ou porque suas
casas estão destruídas.
O Vale do Swat continua ocupado por uns cinquenta mil soldados e policiais. A Comissão de Direitos Humanos do Paquistão afirma que as forças
de segurança estão assassinando partidários do TNSM. Foram descobertas
fossas comuns que continham corpos de supostos militantes executados pelo
exército. Depois se encontraram outros 75 corpos perto do povoado de Kabal.
Mais recentemente, em fins de outubro, trinta mil soldados paquistaneses,
apoiados pela Força Aérea, iniciaram nova ofensiva no Waziristão do Sul, na
região das Áreas Tribais autônomas, bastiões do Tehrik-e-Taliban paquistanês,
um movimento islâmico pashtun que proporciona um refúgio seguro aos
insurgentes afegãos que lutam na fronteira contra a ocupação dos Estados
Unidos e da OTAN. A ofensiva está concentrada na área da tribo Mehsud
que também é o quartel-general do Tehrik-e-Taliban Pakistan (TTP).
A zona tribal, pobre e abandonada pelo governo central, sofreu um duro
castigo com as diferentes operações militares das Forças Armadas paquistanesas. A economia entrou em colapso com os bloqueios econômicos e a
existência de dois milhões de refugiados internos e, por outro lado, aumentou
o tráfico de armas e drogas.
No entanto, a eficácia das operações militares é duvidosa. A maioria dos
insurgentes escapou da região em meio às centenas de milhares de refugiados.
Em contrapartida, os grupos militantes ampliaram suas ações em todo o país:
ataques contra o quartel-general do exército, um importante comboio militar,
diferentes edifícios policiais de Lahore, os escritórios da ONU na capital, etc.
Somente na primeira semana de novembro morreram mais de 200 pessoas em
atentados a bomba em diferentes cidades e regiões do Paquistão.
Esta polarização abre a possibilidade de que o TTP (que é uma aliança
de grupos) chegue a um acordo com grupos jihadistas do Punjab ou da Caxemira, não só fortalecendo sua ação militar na região (o que parece já estar
acontecendo) como a ampliando ao conjunto do país.
Por outro lado, existe uma ação direta das Forças Armadas dos Estados
Unidos dentro do Paquistão que ajuda a exacerbar a situação. Os EUA têm
um “programa” de assassinatos de dirigentes dos talibãs e da resistência em
geral, que visa também aterrorizar a população civil. O instrumento utilizado
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para esta verdadeira campanha de terror são aviões sem piloto teledirigidos,
os drones Predator.
Em 5 de agosto, mísseis lançados por um Predator mataram o ex-chefe
do Tehrik-e-Taliban, Baitullah Mehsud, assim como sua mulher e outras 17
pessoas. Desde agosto deste ano, os ataques aéreos dos Estados Unidos
mataram mais de 700 civis paquistaneses. O vicepresidente Joe Biden é um
dos defensores deste tipo de ações e quer pôr mais ênfase nos ataques aéreos
com drones e nas forças de operações especiais.
No entanto, este tipo de intervenção direta dos EUA com uma clara
agressão militar dentro do Paquistão provoca repúdio geral. Uma recente
pesquisa americana no país apontou que “76% dos entrevistados opunhamse a que o Paquistão se associasse aos EUA nos ataques com mísseis contra
extremistas por aviões drones norte-americanos”
Frente a esta reação, o governo paquistanês também se viu obrigado a
protestar contra os ataques de mísseis dos Estados Unidos, lançados a partir
de aviões sem tripulantes contra alvos talibãs dentro do Paquistão.
Ou seja, as ofensivas combinadas das tropas imperialistas no Afeganistão
e do Exército paquistanês provocaram uma reação de atentados, resistência
popular e muito ódio à ocupação e às agressões militares imperialistas. A
segunda conclusão é que esta reação das massas – que se dá principalmente
nos territórios pashtun do Paquistão – ameaça servir de catalisador das insatisfações populares do resto do país e da crescente oposição ao governo
de Zardari. E, por último, a resistência guerrilheira às tropas imperialistas e
seus aliados vem se colocando cada vez mais como o polo aglutinador dos
combatentes não só no Afeganistão, mas também no Paquistão.
A pressão brutal do imperialismo
Quanto mais os Estados Unidos se metem no “atoleiro” da Guerra no
Afeganistão, mais são obrigados a intervir no Paquistão, política e militarmente. Esta intervenção ocorre em forma direta (bombardeios, assessores
militares, espionagem) e indireta (através de violentas pressões sobre o governo, as Forças Armadas e outras instituições do país) para que combatam
o Talibã e seus aliados deste lado da fronteira.
Do ponto de vista militar, o imperialismo vem intensificando sua presença no Paquistão. O General Stanley McChrystal, comandante das tropas
norte-americanas no Afeganistão e o General David Petraeus, comandante em
chefe das tropas norte-americanas, estão frequentemente no país. As Forças
Armadas dos EUA mostraram-se especialmente satisfeitas com a ofensiva do
exército. O general Petraeus expressou seu apoio à brutal campanha e elogiou
as “firmes operações militares paquistanesas” que “limparam de militantes”
o vale do Swat e outras zonas da Província da Fronteira Noroeste.
No Pentágono foi criado um programa de especialistas afegãos e uma
Célula de Coordenação Paquistão-Afeganistão, duas unidades concentradas
na melhoria do rendimento militar no teatro de operações Af-Pak durante os
próximos três a cinco anos. Por outro lado, o Pentágono revelou que mais de
70 conselheiros militares dos EUA trabalharam no Paquistão.
Também estão presentes os mercenários da Blackwater na Província da
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Fronteira Noroeste. Blackwater é formalmente uma companhia de segurança,
mas, na prática é um exército mercenário, formado por vários milhares de exmilitares, que trabalha sob ordens das Forças Armadas dos Estados Unidos
e da CIA, fazendo seu “trabalho sujo”. Segundo denúncias, a Blackwater
estaria operando em Peshawar, a partir do escritório de uma ONG americana,
Creative Associates International Inc., CAII, que trabalha em projetos nas
agências tribais perto do Paquistão, vinculados com o governo dos EUA.
Do ponto de vista político e diplomático, os Estados Unidos aprovaram
o pacote Kerry-Lugar (promovido pelo senador John Kerry, da Comissão de
Relações Externas do Senado norte-americano) de “ajuda” de US$ 7,5 bilhões
ao Paquistão para os próximos cinco anos. É a maior soma de dinheiro com
fins não-militares já recebido pelo Paquistão.
Este pacote, que consiste em uma ajuda “civil” para fins sociais, estipula
dois condicionantes: um, que o orçamento militar esteja subordinado ao
orçamento nacional e dois, que não exista mais intervenção militar em assuntos políticos e judiciais. Ou seja, condiciona a ajuda a que o governo do
presidente Zardari controle as Forças Armadas, o que provocou uma reação
dos militares e um escândalo político sobre a ingerência dos Estados Unidos
na vida política interna do país.
O Departamento de Estado americano nomeou o enviado especial Richard Holbrook para o Paquistão e o Afeganistão. Um jornalista americano
descrevia assim a atitude de Holbrook durante uma recente passagem pelo
Afeganistão: “Parecia menos um emissário de visita que um pró-cônsul
inspecionando uma vasta operação sobre a qual tem uma parte da autoridade”. A própria secretária de Estado, Hillary Clinton, visitou o Paquistão e
cobrou, publicamente e da forma mais arrogante, a necessidade do governo
paquistanês incrementar o combate ao Talibã e à Al-Qaeda.
Como símbolo desta intervenção crescente, os EUA estão construindo
o que será a maior embaixada-fortaleza dos Estados Unidos no mundo e que
deve servir de ponta de lança para a presença norte-americana no Paquistão.
Mil marines chegaram a Islamabad para defendê-la.
O custo total da presença dos “marines” será de US$ 112,5 milhões.
Segundo a embaixadora Anne W. Patterson, “US$ 5 milhões serão para alojamento dos marines, US$ 53,5 milhões para infra-estrutura de alojamento,
US$ 18 milhões para a melhoria da área dos escritórios de serviços gerais e
US$ 36 milhões para alojamentos temporários e instalações de apoio comum”.
A explicação de Patterson para a gigantesca expansão da embaixada é
que esta “...reflete o compromisso de longo prazo dos Estados Unidos com
o Paquistão. Além disso, disse, a quadruplicação da ajuda social, econômica
e militar chegaria a US$ 4 bilhões por ano durante os próximos 18 meses, e
requer um aumento de pessoal.”
Toda esta pressão do imperialismo, e a subserviência do governo do
PPP (Partido do Povo do Paquistão de Ali Zardari) às suas exigências, têm
exacerbado ao máximo não só os enfrentamentos diretos na luta de classes,
principalmente na guerra, mas também as tensões entre a burguesia e os
setores do aparato de Estado.
Estas tensões expressam-se em elementos de insatisfação e de crise no
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Exército paquistanês. Um exemplo foi a reação aos condicionantes da Lei
Kerry-Lugar mencionada acima. Também a decisão dos Estados Unidos
de construir mais bases no Paquistão com permissão do governo irritou o
exército.
Por trás destas tensões estão dois problemas estruturais. O imperialismo
está pressionando para que o exército ataque seu próprio povo, pashtuns paquistaneses muçulmanos, com métodos de guerra civil. Vinte e seis milhões
de pashtuns vivem no Paquistão, muitos em grandes cidades e outros tantos
estão no exército. Por isso, há cada vez mais notícias de jovens que desertam.
Por outro lado, existe um problema político na superestrutura do Exército. O ISI, com o aval da cúpula do Exército (e sob a orientação do imperialismo naquela época) foi um dos responsáveis diretos pela organização
e fundação da milícia do Talibã no princípio da década de 90, a partir dos
estudantes das Madrassas das áreas pashtun no Paquistão. Desde então, o
Talibã sempre esteve ligado ao ISI e ao Exército paquistanês. Hoje, a cúpula
do exército está de acordo em combater o Talibã paquistanês, mas reluta
em combater o Talibã afegão com quem continua mantendo vínculos. O
problema é que estas organizações estão cada vez mais ligadas e, à medida
que a guerra avança, tendem a ser uma coisa só.
As contradições no Exército (e entre este e o governo do país) refletem
a debilidade do Estado e do regime de um país semicolonial, tremendamente
acossado pelo imperialismo. Mas, além disso, o fraco desenvolvimento da economia do Paquistão, a debilidade de sua burguesia, a pressão do imperialismo
norte-americano por um lado e a URSS e a Índia por outro, levaram a burguesia paquistanesa a apelar tradicionalmente para regimes fortes, apoiados nas
Forças Armadas, que denominamos de maneira geral regimes bonapartistas.
Nos 62 anos de existência do país, nunca houve um período mais ou menos
longo de funcionamento de um regime democrático-burguês minimamente
estável. A norma foi de governos militares. Nas poucas vezes em que os civis
governaram, o regime político sempre teve características marcadamente
autoritárias, bonapartistas.
O próprio Estado paquistanês reflete estas características. Apesar de ser
um país pobre, o Paquistão tem a sexta maior força militar do mundo em
número de soldados, contando com setecentos mil homens. O país possui
armas nucleares e mísseis balísticos.
Mas, a contradição da situação atual é que as Forças Armadas saíram bastante debilitadas depois da queda do governo do general Pervez Musharraf,
no poder por oito anos (1999 a 2008). A ditadura de Musharraf terminou em
uma situação que combinava o desgaste com o envolvimento do Paquistão
na guerra do Afeganistão e as mobilizações populares por reivindicações
democráticas, tais como o fim da suspensão do juiz Muhammad Chaudhry,
presidente da Suprema Corte, pelo governo.
O imperialismo e a questão nacional
Um dos elementos centrais que transparece tanto na questão da guerra
quanto na presença do imperialismo e no desenvolvimento da luta de classes
no Paquistão é a questão nacional ou da autodeterminação nacional das
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diversas etnias, que também é um elemento presente em todo o Grande
Oriente Médio e o subcontinente indiano.
No entanto, o problema nacional no Paquistão é especialmente explosivo, devido às condições em que o país foi fundado. Para compreender as
contradições atuais do problema nacional é preciso entender os elementos
estruturais que têm sua base na própria formação do país. Não é possível, até
por razões de espaço, estender-nos longamente sobre este tema, mas podemos
assinalar, grosso modo, os seguintes elementos.
Até sua independência em 1947, a região onde fica hoje o Paquistão fazia
parte da Índia Britânica ou mais precisamente do domínio colonial do império
britânico sobre a Índia. Antes desta dominação, o atual Paquistão constituía
uma região de maioria muçulmana, parte do antigo Império Mongol (1526
até meados do Século XIX) que compreendia também o norte da atual Índia
(por exemplo, as cidades de Déli e Agra).
A dominação britânica sobre a Índia abarcava todo o subcontinente indiano, isto é, a região formada hoje pelo Paquistão, a atual Índia, Bangladesh,
Sri Lanka (na época, Ceilão), Nepal e Butão. O Paquistão, assim como toda
a região, foi marcado pela dominação colonial imperialista britânica e a luta
pela independência nacional.
O imperialismo britânico teve uma política permanente de “dividir os
povos para melhor reinar”, promovendo várias divisões artificiais. Esta política começou já no século XIX, por exemplo, com a divisão da província de
Bengala entre Ocidental e Oriental (hoje Bangladesh). Outro exemplo foi o
da região dos Pashtuns (Pashtunistão) dividida pela chamada linha Durand
em 1893 (e que hoje pertence parte ao Afeganistão e parte ao Paquistão).
Mas esta política chegou ao seu ponto máximo no processo de independência da Índia, resultado de uma longa luta do povo indiano. O imperialismo britânico, diante da certeza de perder sua maior colônia, impulsionou
artificialmente a divisão do subcontinente para enfraquecer a Índia e fazer
com que o processo de independência gerasse vários países mais fracos, que
permanecessem na Commonwealth1 com o status de Dominions2.
Esta política obteve resultado por meio do estímulo à política separatista
da burguesia muçulmana, dirigida pelo partido Liga Muçulmana, de Muhamad
Ali Jinnah. O Paquistão constituiu-se então, em 1947, como um país islâmico,
dirigido pela Liga Muçulmana nas províncias do Sindh e no Punjab. O Baluquistão e o Pashtunistão, regiões de etnias irânicas (baluches e pashtuns), foram
divididos entre o Paquistão e o Afeganistão. Bengala Oriental integrou-se ao
país na sua fundação com o nome de Paquistão Oriental. Em 1971, declararia
sua independência, passando a chamar-se Bangladesh. A Caxemira, antigo
principado, foi dividida entre a Índia e o Paquistão, gerando uma disputa que
dura até os dias atuais.
Portanto, o Paquistão concentra vários problemas nacionais explosivos
desde a sua fundação, que tendem a polarizar o país. No Pashtunistão, cada
vez mais os movimentos insurgentes que lutam contra a ocupação imperialista
unem-se e retomam seus laços étnicos e políticos. No Baluquistão, existe um
movimento independentista que luta por um país constituído pelos territórios
baluches do Irã, Afeganistão e Paquistão.
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Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
1 Commonwealth of
Nations: Comunidade
de países que substituiu o Império Britânico, formada pela
Grã-Bretanha com
suas ex-colônias. O
objetivo britânico era
manter estes países
em sua órbita, como
semicolônias.
2 Nações independentes, membros da Commonwealth, mas que
mantinham a Rainha
da Inglaterra como
Chefe de seus Estados.
Paquistão, Ceilão e
Quênia, por exemplo,
tiveram este status.
Dossiê
E na fronteira com a Índia, a guerra no Vale da Caxemira já dura 20 anos
e custou umas 70 mil vidas. Dezenas de milhares de pessoas foram torturadas
e milhares “desapareceram”. Quinhentos mil soldados indianos patrulham
o vale da Caxemira, convertendo-o na zona mais militarizada do mundo.
No verão de 2008, uma disputa por terra designada para o Comitê do
Santuário Amarnath converteu-se num levante maciço e não-violento. Dia
após dia, centenas de milhares de pessoas desafiaram soldados e policiais e
encheram as ruas. As tropas dispararam diretamente contra as multidões,
matando muita gente. As multidões gritavam: Azadi! Azadi! (Liberdade). Os
protestos duraram vários dias. Arundhati Roy, uma escritora indiana afirma:
…a Caxemira irá converter-se no conduto pelo qual toda a violência
que se desenvolve no Afeganistão e no Paquistão derramar-se-á em
direção à Índia, onde encontrará aceitação na cólera dos jovens entre
os 150 milhões de muçulmanos da Índia que foram brutalizados,
humilhados e marginalizados. O aviso foi dado pela série de ataques
terroristas que culminaram nos ataques de Mumbai de 2008.3
Todos estes problemas nacionais, que vão desde a luta pela unificação
de povos ou por sua autodeterminação e inclusive sua independência, estão
atravessados pela ação política e militar do imperialismo norte-americano na
região. Depois de sua fundação, o Paquistão tornou-se uma semicolônia dos
Estados Unidos, transformando-se num importante país auxiliar da potência
imperialista em sua política de pressão e controle da Índia e da URSS durante
a Guerra Fria.
Atualmente, esta intervenção do imperialismo é elevada à enésima potência, principalmente pela guerra do Afeganistão-Paquistão. A resistência
das massas hoje se concentra em três processos: a luta para expulsar o imperialismo do Afeganistão e do Paquistão, que se combina com a luta pela
autodeterminação nacional dos diferentes povos e a luta contra o regime do
Exército e o governo de Zardari, subserviente ao imperialismo.
A grande tarefa dos povos do Paquistão, do Grande Oriente Médio e do
subcontinente indiano é expulsar o imperialismo da região o que significa em
primeiro lugar a luta para derrotar o imperialismo na guerra do AfeganistãoPaquistão.
Mas, ao mesmo tempo, é necessário levantar a bandeira da autodeterminação nacional dos povos de todos os países da região e o direito a se separarem
dos Estados aos quais se encontram submetidos atualmente e a se organizarem
em novos Estados nacionais se assim o preferirem.
Os socialistas revolucionários reconhecem e apoiam o direito à autodeterminação de todas as etnias. Mas, ao mesmo tempo, assinalamos que a única
possibilidade de que estes povos se livrem de toda a exploração e desenvolvam suas riquezas e potencialidades humanas em liberdade é a construção
do socialismo e a unidade de todos os povos em Federações de Repúblicas
Soviéticas em regiões como o Oriente Médio e o subcontinente indiano.
3 ROY, Arundhati.
Una nueva guerra fría
en Cachemira. A autora é uma escritora,
atriz e roteirista de
cinema que vive em
Nova Déli. Escreveu,
entre outras coisas, o
romance O Deus das
coisas pequenas pelo qual
recebeu o Prêmio de
Booker de 1997.
Marxismo Vivo - Nº 22 - 2009
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Dossiê
Alguns dados sobre o Paquistãa~o
O nome Paquistão (ou Pakistan em urdu) significa “terra (ostan) dos puros
(pak)” em Urdu e em farsi (ou persa). Mas também, em sua origem, foi um
nome composto pelas iniciais de quatro das cinco províncias de maioria
muçulmana da Índia britânica mais o sufixo stan. O nome foi cunhado em
1934 por Choudhary Rahmat Ali, um nacionalista muçulmano, que em seu
folheto Agora ou nunca referiu-se aos “trinta milhões de muçulmanos do
Paquistão (Pakistan) que vivem nas cinco províncias do Raj Britânico – Punjab,
Afghan (hoje Província da Fronteira Noroeste), Kashmir (Caxemira), Sind e
Balochistan (Baluquistão)”.
A população do Paquistão está estimada em 168 milhões, o que o torna o
sexto país mais populoso do mundo. Sua área é de 803.940 km2. Estima-se
que o PIB paquistanês (PPC) seja de US$ 475,4 bilhões e a renda per capita
de US$ 2942. A taxa de pobreza é estimada entre 23% e 28% da população.
O Paquistão é uma federação com quatro províncias: Punjab, Sind, Baluquistão
e Província da Fronteira Noroeste. Além disso, existe um distrito federal onde
está a capital Islamabad, e áreas tribais administradas pelo governo federal. O
governo paquistanês exerce jurisdição de facto sobre partes da Caxemira, a
chamada Caxemira Livre (Azad Kashmir), e as Áreas do Norte, uma parte da
Caxemira também reivindicada pela Índia. O Paquistão também reivindica o
estado de Jammu e Caxemira, controlado pela Índia.
As etnias punjabi e sind são povos hindus, sendo que a etnia punjab é a mais
populosa do país. No entanto, parte da população do país é composta por
etnias de idiomas e culturas irânicas ou indo-arianas: os pashtuns (15,4%
da população) e os baluches (3,6%). Os baluches vivem ao sudoeste do país
e os pashtuns ao noroeste.
O urdu é uma língua franca utilizada como idioma de comunicação entre
as diversas etnias e é o idioma oficial do país. Mas, para apenas 7,57% da
população é o idioma materno. Os estudiosos consideram que o urdu é
basicamente o mesmo idioma híndi (o mais falado na Índia), porém escrito
com o alfabeto árabe (em sua versão persa).
Províncias
2
6
5
3
1
4
82
8
7
e territórios do
Paquistão
Províncias:
1. Baluquistão
2. Província da Fronteira Noroeste
3. Punjab
4. Sindh
Territórios:
5. Distrito Federal - Capital Islamabad
6. Áreas Tribais
7. Azad Jammu e Kashmir (ocupada pela Índia)
8. Gilgit-Baltistan
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