MEIO AMBIENTE E CONHECIMENTO LOCAL NO DISCURSO
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MEIO AMBIENTE E CONHECIMENTO LOCAL NO DISCURSO
Revista UNIVERSUM . Nº 16 . 2001 . Universidad de Talca MEIO AMBIENTE E CONHECIMENTO LOCAL NO DISCURSO CAMPONÊS LATINO-AMERICANO Sheila Maria Doula (*) O objetivo deste artigo é continuar a discussão iniciada nesta mesma revista (Universum; 2000: 365-376) sobre a construção da identidade camponesa na América Latina contemporânea, sob a ótica da CLOC (Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones Del Campo). Naquele artigo analisamos a forma como os camponeses, baixo o slogan “vamos globalizar a luta”, constroem uma identidade supranacional e genérica, como forma de adquirir maior visibilidade política e de criticar os efeitos da globalização e do neoliberalismo, particularmente no campo. No presente artigo a ênfase irá recair no discurso da CLOC sobre a ligação entre natureza e identidade camponesa e na crítica aos efeitos da ciência contemporânea nessa relação. O objetivo aqui é mostrar como a CLOC concebe a identidade a partir das formas de conhecimento próprias dos camponeses em oposição às formas de conhecimento que são próprias da Ciência e do Estado. Para o prosseguimento da análise utilizarei como marcos teóricos as formulações do antropólogo e cientista político James C. Scott, em especial a sua análise sobre as formas de visão do Estado moderno, e as formulações do também antropólogo Clifford Geertz, notadamente suas concepções sobre o local knowledge. O que se pretende analisar é que a reivindicação de valorização do conhecimento local por parte dos camponeses questiona a opacidade do olhar do Estado e da Ciência e suas intervenções no campo, particularmente nos últimos 40 anos. (*) Doctora en Antropología Social, Universidade de Sao Paulo. Profesora de Antropología, Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais, Brasil. 349 Sheila Maria Doula Em seu livro Seeing like a state – how certain schemes to improve the human condition have failed (1998), Scott mostra que é uma das características do Estado moderno racionalizar e estandardizar o hieróglifo social e natural em um formato legível. O que se produz é um mapa baseado na simplificação do mundo que, aliada ao próprio poder coercitivo que o Estado detém, possibilita e facilita a intervenção e a administração. Scott mostra que tal processo de simplificação e abstração, tendo em vista uma administração em larga escala, não é, em si mesmo, injurioso; ele é, de fato, uma concentração de foco necessária que permite mensurar, quantificar e comparar. Esse esquema de engenharia social produz uma miniaturização que reduz as diferenças e as particularidades dos vários contextos sociais e naturais, criando uma micro-ordem mais facilmente controlável. É essa uniformização que permite ao Estado formular respostas quantitativas às necessidades que lhes são demandadas. Esse tipo de lente, é claro, concebe o mundo real de forma abstrata e parcial, bem como são transformados em abstratos os seres aos quais os projetos de intervenção se destinam. Pode-se dizer que nesse tipo de visão há um alto grau de realidade que se torna excedente, que é ocultada ou que fica fora de foco. Essa ocultação, como veremos, torna-se alvo de críticas, resistências ou mesmo repúdio por parte dos movimentos sociais, como, por exemplo, os da América Latina, que têm se intensificado nos últimos vinte anos. Scott inicia seu argumento tomando como exemplo o desenvolvimento da silvicultura na Europa moderna. Embora tenha incentivado o desenvolvimento científico da silvicultura e embora reconhecesse a importância das árvores para a construção de navios, casas e alimentação, a lente do Estado privilegiava as fortes implicações comerciais que as árvores tinham enquanto fonte de renda para os reinos. Nessa visão utilitarista os diferentes componentes da natureza passaram a ser classificados como “recursos” naturais. Um sistema de tabelas foi então criado contendo fórmulas padronizadas para calcular as classes de árvores, com dados matemáticos sobre o tamanho, idade e grau de maturação, facilitando assim o manejo, principalmente fiscal, para viabilizar a cobrança de taxas. A floresta não era algo para ser visto, mas “lido” através de tabelas e mapas. O segundo passo foi criar um sistema oficial de manejo de sementes, plantio e corte que tornasse mais fácil aos funcionários do Estado a contagem, a manipulação, a medição e o acesso. Como afirma Scott, “The fact is that forest science and geometry, backed by state power, had the capacity to transform the real, disorderly, chaotic forest so that it more closely resembled the administrative grid of its techniques. To this end, the underbrush was cleared, the number of species was reduced (often to monoculture), and planting was done simultaneously and in straight rows for large tracts.” (SCOTT; 1996:46). 350 Meio ambiente e conhecimento local no discurso camponês latino-americano Fica claro que, detendo-se apenas neste foco, o Estado ignorava, assim, o vasto e complexo mundo de negociações, usos culturais, leis pautadas pela tradição e adaptações históricas que os agricultores, pescadores, lenhadores e caçadores, mantinham com o meio ambiente e também entre si. Toda essa pluralidade de práticas, conhecimentos e discursos locais eram e continuam sendo apagados da visão do Estado, já que este constrói uma legibilidade através de códigos e padrões uniformes, homogêneos e nacionais (ou mesmo universais). Scott conclui que e Estado representa o mundo com uma eficiência imaginária, um mundo funcional; como o mundo, de fato, não é assim, o controle sobre a vida pública só é possível através de mecanismos que inibam a agilidade, a iniciativa e a participação da sociedade civil, beneficiária dos projetos. O autor afirma que quando o estado é autoritário, tende a ver o mundo a partir de sua própria imagem e a sociedade é então representada como engessada, não inovadora, inflexível e pronta para atuar conforme o schemata pré-estabelecido. Segundo Scott, os episódios mais trágicos do “desenvolvimento estatal” são produtos da combinação de três elementos: uma ideologia de high-modernism1 que aspira impor uma ordem administrativa ao mundo natural e social; o uso da força como instrumento para impor essa aspiração e, finalmente, uma sociedade civil prostrada que tem fraca capacidade para resistir a esses planos. Scott chama a atenção para o fato de que essa nova ordem, assim engendrada, é frágil e vulnerável, pois o mundo real também é sustentado por imprevistos naturais e sociais, não calculados pelos criadores dessa ordem artificial. Embora esse esquema possa ter conseqüências destrutivas, os atores humanos têm a capacidade de modificálo. Quando as instituições representativas funcionam, alguma forma de acomodação será inevitável. Seguindo o raciocínio de Scott, Frank Fischer desenvolve o argumento de que também a Ciência moderna, pautando-se no mesmo corolário, concebe uma formulação abstrata e técnica da sociedade. Os problemas sociais, conceptualizados em termos técnicos, são “descolados” dos contextos culturais, psicológicos e lingüísticos que constituem a lente da tradição social. O processo de simplificação pressupõe, então, um crivo onde a experiência e a realidade são traduzidas de forma única. Além disso, o padrão científico e tecnocrático de pensar entende o mundo fenomenológico em termos de partes componentes de um todo e amplia o conhecimento especializado em cada parte componente. O resultado dessa lógica é uma visão de mundo como sistema (social e físico) que pode ser redesenhado de forma a torná-lo mais manipulável e eficiente. Característico desse modo de pensar 1 Scott entende por high-modernism a ideologia que prioriza o progresso técnico e científico. Está associada ao processo de industrialização da Europa ocidental e da América do Norte na virada do século XX. O high-modernism é, por excelência, uma ideologia da intelligentsia técnico-burocrática. 351 Sheila Maria Doula é a tendência de aplicar as mesmas soluções técnicas à maioria das diferentes situações sociais e culturais. Assim, resolver problemas, é reduzir à matéria técnica contextos sociais distintos (FISHER: 2000). ) Fisher, como Scott, desenvolve o argumento de que a Ciência também opera a partir de um silenciamento da sociedade, através da alegação de que esta não dispõe de conhecimentos adequados para julgamento. O método científico, visto como único meio de se obter o conhecimento verdadeiro, facilita um design racional dos sistemas sociais, o que torna os experts (cientistas, engenheiros e planejadores) capazes de prever e manejar, senão eliminar, os persistentes conflitos e crises que solapam a sociedade moderna. (MENDES: 2001) Assim, tanto o Estado como a Ciência, dispõem, a partir de um modelo de leitura esquemático e globalizante, de mecanismos de intervenção e reconstrução artificial do mundo natural e social. A modernidade, notadamente as noções de progresso e desenvolvimento, é marcada pela aliança entre o Estado e a ciência no que se refere à intervenção continuada sobre o mundo social e natural. Dado os limites da própria forma cognitiva desse tipo de visão, complexas cadeias de processos sociais e naturais são ofuscadas e silenciadas, fazendo com que os efeitos da intervenção se tornem, na grande maioria das vezes, imprevisíveis, negativos e até mesmo desastrosos. INTERVENÇÕES DO MODERNISMO HIGH-TECH NO CAMPO Durante as décadas de 50, 60 e 70, as elites modernizantes dos países latinoamericanos adotaram o modelo norte-americano que, desenvolvido nos anos 30 e 40, revolucionou a prática da agricultura através de profundas transformações tecnológicas com o uso de fertilizantes químicos, máquinas e equipamentos, sementes híbridas e irrigação. A partir da aliança entre Estado, Ciência e empresas, o meio rural foi invadido por técnicos estatais, universitários e privados, que tinham como “missão” levar o progresso para um mundo visto como arcaico. Particularmente os profissionais das ciências agrárias se tornariam a ponta de lance do modernismo high-tech no campo como planejadores e também executores dos grandes projetos de reestruturação massiva da paisagem e do tecido social rural (MENDES: 2001). Trinta anos atrás, as fundações norte-americanas Rockefeller e Ford lançariam as bases do que se chamou Revolução Verde, que se baseava na premissa de que a adoção da ciência e do paradigma modernizante poderia erradicar o problema da fome no mundo, bem como amenizar as contradições e a miséria social no campo. “Os efeitos iniciais das melhorias tecnológicas foram aumentos espetaculares na produtividade de cereais básicos como arroz e milho (...) Esse incremento inicial de produtividade foi alcançado através de duas técnicas rapidamente exploradas: a redução da altura das plantas, de modo a canalizar mais energia 352 Meio ambiente e conhecimento local no discurso camponês latino-americano para a produção de grãos, e o emprego de fertilizantes químicos e irrigação” (GAIFAMI e CORDEIRO; 1994: 04). No entanto, por requerer condições ótimas de produção, o modelo não conseguiu resolver os problemas de complexidade e heterogeneidade que caracterizam a estrutura dos solos, a variedade dos climas, a particularidade do conhecimento das culturas rurais nos quais esse plano foi implantado. “Além desses limites, o pacote da alta tecnologia da Revolução Verde levou a outros problemas bem conhecidos (...) A uniformidade genética das sementes milagrosas e a tecnologia intensiva em químicos têm levado à multiplicação de pragas e epidemias de doenças, acarretando desastrosas quebras de safra. Igualmente ruim, à medida em que as novas sementes substituíam as antigas variedades tradicionais e as variedades silvestres aparentadas às plantas cultivadas, perdia-se a matéria-prima futura do melhoramento das plantas. Ainda que a Revolução Verde geralmente se refira à onda inicial de intervenção científica na agricultura do Terceiro Mundo, o mesmo tipo de política tem continuado vigente, desde então, mais ou menos inalterado. A verdadeira tragédia da Revolução Verde é que ela solapou, e muitas vezes destruiu, as práticas dos agricultores que se baseavam na diversidade. Na busca por uniformidade, ela não apenas destruiu boa parte da diversidade de recursos genéticos existente nos campos dos agricultores, como também rompeu as sofisticadas correntes biológicas que formam a base de qualquer agricultura sustentada. (...) Ao tirar o germoplasma do campo e levá-lo para o banco de germoplasma, a Revolução Verde tendeu a reduzir o controle dos agricultores sobre seus próprios sistemas de produção. (GAIFAMI e CORDEIRO; 1994: 04-05). Chama a atenção, na citação acima, a oposição entre diversidade e uniformidade. Como salientaram Scott e Fischer, qualquer tipo de análise por parte do Estado e da Ciência tem que ser baseada em uma macro-visão simplificada para que a realidade se torne legível e mensurável. A Revolução Verde, nesse sentido, pode então ser analisada como um exemplo claro de intervenção balizada por uma engenharia social, geométrica e clean, que tem como base esse tipo de conhecimento que opera por tipificações homogeneizantes. Scott mostra como as ciências agrárias, particularmente a agronomia, são casos representativos desse procedimento, dado que os experimentos envolvem uma determinada plantação e sua resposta a um input específico (um tipo de fertilizante ou pesticida). A resposta na qual os agrônomos estão interessados é também monocromática, isto é, o objetivo da pesquisa é aumentar o rendimento o lucro por unidade de terra. Já os agricultores, principalmente os do Terceiro Mundo, podem plantar diversas espécies simultaneamente na mesma terra, 353 Sheila Maria Doula tendo em mente um grande número de objetivos, resultados e conseqüências além do lucro. Todas essas ponderações por parte do agricultor são eminentemente racionais e cada camponês pode compor seu próprio repertório de objetivos e inclusive testá-los de uma safra a outra. Scott salienta que nenhuma estação experimental, notadamente durante a Revolução Verde, poderia reconstruir todos esses motivos em seus experimentos. Cabe destacar que a Revolução Verde abriu dois caminhos opostos, mais nitidamente marcados nos anos 90. Por um lado, possibilitou o desenvolvimento da biotecnologia, visto como um grau mais apurado de engenharia natural high-tech e cuja intervenção no campo também já é alvo de críticas. Basicamente pergunta-se se a agricultura continuará a existir enquanto tal e se as lavouras não se tornarão apenas e simplesmente produtoras de biomassa e compostos básicos para os processos industriais biotecnológicos. Para muitos críticos (inclusive a CLOC) a biotecnologia representa a tentativa de uniformizar o mundo natural numa escala mais extremada. Por outro lado, houve um processo crítico em relação à Revolução Verde, particularmente no que se refere aos danos ambientais e perda de biodiversidade causada por esse programa no Terceiro Mundo. Dessa visão crítica surgiu a proposta do desenvolvimento rural auto-sustentado, bandeira hoje sustentada por muitas entidades camponesas (incluindo a própria CLOC) e Ongs. Embora amplamente alardeado e já incorporado mesmo que de forma truncada e conflitante como política pública em alguns países, o fato é que há um grande descompasso entre a teoria e a prática desse novo programa. Mesmo quando bem intencionados e “participativos”, os programas de desenvolvimento rural padecem sempre de inegável distância e incompreensão entre os objetivos oficiais definidos pelos experts das ciências agrárias e o mundo dos supostamente beneficiados por tais programas (MENDES: 2001). Muitos autores já apontaram as dificuldades de se implantar o desenvolvimento rural sustentável na América Latina devido aos preconceitos dos arranjos institucionais, das forças de mercado, das políticas e das pesquisas na área. “Um desafio maior, portanto, é criar novas políticas que reduzam os custos dos recursos para a promoção da sustentabilidade social e ecológica. Embora novas políticas sejam um importante requisito para o desenvolvimento rural sustentável (DRS) no continente, ainda não é o suficiente. Outros problemas, como a dívida externa, miséria, má distribuição de recursos, falta de tecnologias adequadas e forças internacionais constituem grandes obstáculos para o DRS. Qualquer estratégia básica para atingir-se o DRS deve visar as prioridades de desenvolvimento mais urgentes da região: redução da miséria; abastecimento adequado de alimentos e auto-suficiência; conservação dos recursos naturais; autonomia das comunidades locais e participação efetiva dos pobres das áreas rurais no processo de desenvolvimento” (ALTIERI e MASERA: 1997: 72). 354 Meio ambiente e conhecimento local no discurso camponês latino-americano Como ressaltam ainda os autores citados, o desafio está em, ao contrário da Revolução Verde que foi construída de cima para baixo, construir outro modelo, de baixo para cima. Isso só será possível a partir da organização e coesão de forças sociais diversas e do fortalecimento de novos atores sociais. Com isso, pretende-se ganhar maior concretude e entrar no campo de visão do Estado e da Ciência de forma diferente. A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE ATRAVÉS DA DIVERSIDADE Particularmente nos últimos 20 anos, a sociedade civil latino-americana vem se organizando e se posicionando contra as externalidades negativas dos programas estatais. A saída do regime militar possibilitou que diferentes grupos sociais adquirissem contornos mais nítidos e hoje vários deles já alcançaram visibilidade pública graças, principalmente, à tática de aliança com a mídia. O repúdio às intervenções estatais ou empresariais - notadamente os PGE (Projetos em Grande Escala) que foram implantados pelos regimes autoritários e demandaram grandes investimentos estrangeiros em infra-estrutura - visava, antes de tudo, evidenciar os efeitos desastrosos principalmente no que tange ao meio ambiente, à pauperização rural e à expulsão de populações nativas. Construção de hidrelétricas, subsídios à pecuária extensiva nas florestas tropicais, abertura de estradas, programas de colonização e frentes de expansão agro-industrial foram focos privilegiados de crítica: implantados verticalmente, os programas de desenvolvimento partiram da premissa de um silenciamento, ou seja, via-se as populações-alvo como destituídas de passado e conhecimento próprios, simplificadas em suas especificidades e diferenças, enfim, todas passíveis de seguirem um projeto de evolução rumo a um desenvolvimento unilinear. Todo um acervo de local knowledge era deixado à margem, na medida em que poderia questionar a validade e a unilateralidade dos programas de desenvolvimento. A invisibilidade a que foram relegados muitos grupos sociais foi rechaçada com maior veemência durante as comemorações de 500 anos de descoberta da América. Nesse momento, como vimos no artigo anterior, foi criada a CLOC, com o objetivo de ser um canal de reivindicações dos vários movimentos camponeses latinoamericanos de esquerda. Um dos recursos utilizados pela CLOC na construção da identidade camponesa é seu discurso de valorização da tradição. A vinculação com a terra e o meio natural bem como a recorrência a um saber tradicional tem colocado para a entidade o problema de como resolver a dicotomia entre unidade e diversidade dos próprios camponeses. No I Congresso realizado em 1994 no Peru, a CLOC lançou o lema “Unidad en la diversidad” pretendendo mostrar que o movimento deve partir da 355 Sheila Maria Doula unidade de classe, mas reiterando a diversidade cultural e natural da qual os camponeses latino-americanos são integrantes. O principal objetivo é elaborar uma idéia de unidade sem mascarar a diversidade de sua composição interna. O que permite que o lema não fique contraditório é a concepção de patrimônio. A unidade camponesa está em reivindicar a posse e o uso da terra ancestral e também o conhecimento herdado dos antepassados. A diversidade, por outro lado, está em reconhecer a multiplicidade desse conhecimento, enfim, a própria cultura. Talvez influenciada por certas linhas do movimento ambientalista e mesmo pela atuação de algumas ongs, a CLOC vem se empenhando em uma luta pelo reconhecimento daquilo que o antropólogo Clifford Geertz chamou de “conhecimento local”. E é através da valorização do conhecimento local que a entidade pretende, ao mesmo tempo, reafirmar a identidade e fazer frente à forma de conhecimento globalizante do Estado e da Ciência. Entende-se por conhecimento local o acervo cognitivo e também as práticas de seres sociais circunstanciados, ou seja, situados em e posicionados dentro de determinadas configurações geográficas e históricas. O entrelaçamento entre o conhecimento e a necessidade prática é o que torna o local knowledge particularizado e, por isso mesmo, invisível e intraduzível para a ótica generalizada do Estado e da Ciência. Local é um termo relativo e variável e por isso mesmo tem uma validade instrumental situada (GEERTZ: 2001), ao passo que as generalizações e as leis do Estado e da Ciência abstraem os dados biográficos e originais, limpando o campo de visão já que sua instrumentalidade é macroscópica. Scott chama de métis ao saber acumulado da experiência local2. Esse conceito envolve a idéia de habilidade, destreza e astúcia. Métis representa um tipo de perícia adquirida como resposta a mudanças constantes no meio natural e humano e por isso mesmo requer constantes ajustes a um meio que não pode ser simplesmente controlado ou criado. Para Scott, o cultivo da terra e o pastoreio são exemplos de atividades que requerem alto grau de métis. As situações nas quais o métis é relevante são a) similares, mas não idênticas; b) requerem uma prática rápida de adaptação; c) requerem uma habilidade adquirida na prática e uma percepção desenvolvida para as estratégias; d) aquelas que resistem à simplificação a princípios dedutivos que possam ser transmitidos em manuais e f) o meio onde esse conhecimento é aplicado é tão complexo e não repetitivo que os procedimentos formais das “decisões prontas” são impossíveis de se aplicar. Métis, então, é um tipo particular de sabedoria que é adquirida pela prática do “tato” ou “olhar” de uma atividade baseada na experiência prática. Assim, o métis está em oposição ao modelo formal do método científico e da 2 Scott usa como referência o conceito de métis formulado por Jean Pierre Vernant e Marcel Detienne, que analisaram as formas de conhecimento desenvolvidas pelos gregos. 356 Meio ambiente e conhecimento local no discurso camponês latino-americano razão cartesiana em todos os princípios. Está, por sua vez, em desacordo com as simplificações do Estado que requer uma grade administrativa uniforme. Scott conclui que os dois modos de procedimentos são, então, incomensuráveis e intraduzíveis. A instrumentalidade macroscópica é criticada pela CLOC através da vivência que os camponeses vêm acumulando em face dos efeitos negativos das intervenções externas. A Revolução Verde, por exemplo, é criticada pela CLOC por ter resultado em uma repartição injusta dos benefícios e dos desastres, pela maior dependência alimentar, pela perda da fertilidade dos solos e dos recursos biológicos. O fracasso dessa intervenção “fue el promover una ‘eficiencia’ a la medida de las agroindustrias, sin tener en cuenta la casi infinita diversidad de situaciones y necesidades de las comunidades campesinas locales y su entorno.” (Boletín 30) Ao avaliar as intervenções high-tech no campo a CLOC conclui que a monocultura e a conseqüente perda da diversidade dos cultivos levou também a uma perda de diversidade cultural, dado que as práticas dos agricultores vinham sendo direcionadas por uma seletividade de poucos produtos, tornando supérfluo outros tipos de conhecimentos particularizados e localizados. A própria perda da terra é criticada nesse sentido, já que inibe o processo de reprodução cultural. Se a Revolução Verde é alvo de críticas pelo grau de uniformização produzida em termos sociais e biológicos, a Revolução Biotecnológica é encarada pela CLOC como o maior perigo enfrentado até então pelos camponeses. Em primeiro lugar, a CLOC critica a criação e produção de “sustancias alimentarias en el laboratorio”, enfatizando sua artificialidade. Para a entidade, os três ramos básicos da biotecnologia – tecnologia enzimática e de fermentação, técnica de cultivo de tecidos e propagação clonal e técnicas de engenharia genética – pretendem “construir” organismos “desenhados” expressamente para cumprir uma função determinada que responda às necessidades da indústria. Em segundo lugar, a CLOC denuncia o desemprego como um dos principais impactos sociais que o incremento da biotecnologia pode causar: “La producción de vainilla dejará sin medio de vida a 70.000 pequeños agricultores en Madagascar, y se calcula que unos 10 millones de campesinos del Tercer Mundo pueden quedarse igualmente sin sustento en el momento en que se perfeccione la producción el laboratorio de la taumatina, un sustitutivo “natural” del azúcar. Las multinacionales centran ahora sus investigaciones en la búsqueda de sucedáneos de productos claves para millones de agricultores del Tercer Mundo, como el cacao, aceites vegetales, proteínas para alimento de ganado...” (Boletín 30) Em terceiro lugar, a crítica da CLOC em face da biotecnologia reflete o medo de que as novas tecnologias nas mãos da indústria agro-alimentar prescindam do próprio 357 Sheila Maria Doula agricultor e que “la producción alimentaria procederá fundamentalmente del cultivo sin tierra.” (Idem) Produzir sem agricultor e sem terra significa eliminar um locus e uma prática que definem a função mais significativa da identidade camponesa, ou seja, produzir alimento pelo cultivo da terra. O risco detectado pela CLOC é, portanto, não só o da perda da identidade, mas do próprio ser camponês, dado que o que a entidade vislumbra é que a função social e econômica de produzir alimentos estará nas mãos de cientistas e técnicos e terá como locus os laboratórios e as indústrias. Como resposta a esses perigos as organizações camponesas vem se manifestando contrárias aos impactos das novas tecnologias no campo. Em 1996, na cidade de Buenos Aires, um grupo de 35 organizações promoveu uma convenção para “compartir sus experiencias y buscar visiones y posibles formas de acción en común acerca de la protección de la biodiversidad y de los derechos de las comunidades locales”.(CLOC; Documentos: 1996) Já em 1999, no Chile, 77 organizações participaram de um seminário internacional “por el control ciudadano para la defensa de la vida y uma América Latina libre de agrotóxicos y de transigências” (CLOC; Documentos: 1999). A análise dos documentos produzidos nesses encontros revela principalmente um embate entre camponeses e cientistas no que tange às diferenças das formas de conhecimento. Para a CLOC, todo o conhecimento científico está atrelado às leis de mercado e isso significa que “el hecho de que los intereses comerciales son quienes dictan el enfoque de la investigación, hace que las soluciones buscadas sean lo más simples (mínima inversión) y universalizables (máximas posibilidades de mercado posible.” (Boletín 30) Essa citação, em particular, evidencia a crítica aos processos de simplificação e universalização da ciência, o que contrasta com a forma de conhecimento dos camponeses, que a CLOC define como baseado na complexidade e na diversidade. A generalização que fornece a base do processo cognitivo da ciência é vista com desconfiança porque, além de ser desenvolvida longe do próprio campo, falha em contemplar as contingências práticas e familiares dos camponeses. Ao isolar e maximizar uma única variável – produtividade atrelada ao lucro – essa forma de conhecimento “apaga” todos os outros interesses e outras formas de estar no e conhecer o mundo. A CLOC defende o conhecimento dos agricultores como produto destilado e reatualizado da herança ancestral. A diferença entre os conhecimentos camponeses está no fato de que os dados acumulados sobre micro-climas, solos, correntes de água, sucessos e fracassos nas colheitas, variedade de sementes e ervas daninhas, são dados irremediavelmente locais. Também as formas de posse e uso da terra, uso de florestas, rios e pastagens, rotinas de subsistência, etc, são formas eminentemente locais que, em outros cenários, têm que ser traduzidos. São essas adaptações locais bem sucedidas, como diz Scott, que personificam o métis de grupos e comunidades. Diríamos que esse métis personificado é um dos atributos que confere identidade. Na convenção de Buenos Aires a CLOC se manifestou sobre isso da seguinte forma: 358 Meio ambiente e conhecimento local no discurso camponês latino-americano “La biodiversidad que nos sustenta (agrícola, forestal, pesquera) es resultado del manejo, cuidado y creación histórica de las comunidades locales, tradicionales y pueblos indígenas. El flujo e intercambio de recursos genéticos y conocimiento asociado a ellos, efectuado sin presiones y sólo determinado por las pautas y valores culturales de cada pueblo, han sido la base fundamental del proceso de la manutención y creación de la biodiversidad..” (CLOC; Documentos: 1996). A troca de conhecimentos entre camponeses é muito enfatizada nos encontros da CLOC, pois o que a entidade pretende é procurar formas plausíveis de tradução para os diversos métis, sem que a tradução implique em anulação. A anulação é, então, a principal crítica que a CLOC postula em relação ao modo de ver e de intervir da Ciência e do Estado, pois ambos, por um processo de simplificação, abstraem e ocultam a historicidade, a diversidade cultural e a biodiversidade, elementos estes com os quais a entidade pretende reafirmar a identidade camponesa latino-americana contemporânea. BIBLIOGRAFIA Altieri, M. e Masera, O., “Desenvolvimento rural sustentável na América Latina: construindo de baixo para cima” in Almeida, Jalcione e Navarro, Zander, Reconstruindo a agricultura – idéias e ideais na perspectiva do desenvolvimento rural sustentável, Editora da Universidade (UFRGS), Porto Alegre, 1997, pp. 72-105. CLOC (Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo), Boletin Informativo. www.movimientos.org/cloc. ——————, Documentos. www.movimientos.org/cloc. Fischer, Frank, Citizens, experts, and the environment – the politics of local knowledge, Duke University Press, 2000. Gaifami, Andréa e Cordeiro, Ângela, Cultivando a diversidade: recursos genéticos e segurança alimentar local, AS-PTA, Rio de Janeiro, 1994. Geertz, Clifford. O saber local – Novos ensaios em Antropologia Interpretativa. Tradução de Vera Mello Joscelyne, Vozes, Petrópolis, 1997. ———————, Nova luz sobre a Antropologia, Tradução de Vera Ribeiro, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2001. 359 Sheila Maria Doula Mendes, Fabio F., Proposta do Programa de Doutoramento em Extensão Rural. Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais, 2001, mimeo. Scott, James C., “State simplifications: nature, space, and people” in Shapiro, Ian and Hardin, Russell, Political Order, New York University Press, New York, 1996. ———————, Seeing like a state – how certain schemes to improve the human condition have failed, Yale University Press, New Haven, 1998. 360