Michelangelo, o artista do cristianismo

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Michelangelo, o artista do cristianismo
Michelangelo, o artista do cristianismo
Perfil do escultor, arquiteto, pintor e erudito.
Os contemporâneos em Florença o chamavam II Divino. Por certo ele encarnou o
ideal do artista do Renascimento, de que foi a figura máxima: escultor, arquiteto,
pintor e erudito.
Por Mônica Falcone, de Roma
O escritor Umberto Eco, autor do best seller O nome da rosa, em entrevista
recente explicou de modo simples e eloqüente o que é a sede de cultura que faz
com que muitas pessoas passem horas a ler Balzac ou Platão ou enfrentem filas
quilométricas para ver os afrescos restaurados de Michelangelo, na Capela
Sistina, no Vaticano, ou uma viagem exaustiva ao Egito para visitar o templo de
Abu Simbel, construído por Ramsés 11 para a rainha Nefertari, a mais de 1000
quilômetros do Cairo. Esta sede de conhecimento, segundo Eco, é um modo de
prolongar a vida. Assim, ao morrer, teremos como que vivido não só a nossa
existência, mas também a do imperador romano Júlio César, se tivermos lido De
bello gallico; ou a de Julian Sorel, o herói do romance O vermelho e o negro do
escritor francês Stendhal; ou ainda a de Michelangelo, se tivermos observado com
quanta doçura, força e juventude, ele, órfão de mãe ainda menino, concebeu as
pietàs, ou o erotismo que, homossexual não assumido, imprimiu nas esculturas
masculinas.Numa poesia, Michelangelo escreveu que "a beleza da terra ao céu
em vida conduz". Costumava dizer que essa idéia de beleza Ihe havia sido dada
no parto. Sua arte e sua vida foram a perseguição incansável, quase angustiada,
dessa idéia de Beleza Absoluta. Filho de uma família burguesa de cultura média,
mas sem grandes horizontes, Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni nasceu
em Caprese, em 6 de março de 1475. Ainda recém-nascido, seus pais, Francesca
e Lodovico di Lionardo Buonarroti Simoni, este descendente de duas gerações de
banqueiros e prefeito de sua cidade, foram viver em Florença. A bela cidade
toscana, de casas de pedra, cinzenta, cortada pelo Rio Arno, era dominada desde
1469 por Lorenzo de Medici, o Magnífico. De uma estirpe de banqueiros, Lorenzo
era o homem mais rico do seu tempo. Poderoso e iluminado, sonhava fazer de
Florença a capital mundial da cultura, como foi Atenas na época de Péricles.
Foi um tempo de notáveis realizações artísticas e culturais. Enquanto o pequeno
Michelangelo recebia as primeiras lições de leitura e escrita, a poucos quarteirões
de sua casa Sandro Botticelli pintava A primavera e O nascimento de Vênus e
Leonardo da Vinci terminava a Adoração dos reis magos. Não muito longe, em
Urbino, nascia Rafael Sanzio. Aos 13 anos, Michelangelo deixou a escola para se
tornar um aprendiz do pintor Domenico Ghirlandaio. Mas gostava mesmo da
escultura, para ele "a primeira arte", e foi praticá-la nos jardins de Lorenzo de
Medici, com Bertoldo di Giovanni. Desde então, ficou marcado em Florença como
um "homem dos Medici", o que, nas vicissitudes da política toscana, às vezes era
uma vantagem, às vezes um perigo. Por exemplo, após a morte de Lorenzo, em
1492, e pouco antes da expulsão de seu filho Piero pelo fanático pregador
religioso Girolamo Savonarola, Michelangelo retirou-se prudente mente para
Bolonha. A morte da mãe, quando tinha 6 anos, marcou sua personalidade e toda
sua vida. Entregue a uma ama-seca, na família de um canteiro, um operário que
cortava a pedra para construções, ele próprio considerou fundamental para sua
vocação de escultor este período em que se misturavam afeto familiar, cuidados
maternos e pedra entalhada. Outro fato crucial foi seu encontro com Lorenzo de
Medici.
Para o Magnífico, era a oportunidade de glorificar-se como o descobridor de um
grande artista e moldá-lo segundo o seu ideal. Convenceu o rapaz a morar no
palácio e. como compensação, deu ao pai um bom emprego público. Foi no seu
período de aprendizado no palácio que realizou as duas primeiras obras que
sobreviveram até os nossos dias. São os baixos-relevos Madona da escada e a
Batalha dos centauros. A morte de Lorenzo, em 1492, interrompeu
traumaticamente a suave decolagem do jovem artista. Os filhos do Magnífico não
tinham a envergadura do pai. Piero, o primogênito, era incapaz e dissoluto.
Herdou o domínio de Florença e o perdeu em pouco tempo. Para o segundo,
Giovanni, o futuro papa Leão X, Michelangelo iria realizar? 32 anos depois, a
Capela dos Medici e as sete magníficas esculturas para os túmulos de Lorenzo e
Giuliano, que estão na Igreja de São Lourenço, em Florença.
Para Michelangelo foi um período de desorientação. Ele já havia identificado os
seus modelos artísticos, Masaccio, Donateilo e a escultura antiga. mas não tinha
trabalho. Não podia voltar para casa, pois o pai nunca aprovou sua escolha
profissional. Aproveitou a oportunidade para estudar Anatomia, acumulando
noções que depois iriam se materializar nas milagrosas contorções musculares
dos corpos de suas estátuas e afrescos. Aprendeu dissecando cadáveres uma
atividade ilegal que praticou graças à silenciosa cumplicidade do superior do
Convento do Espírito Santo. Retribuiu oferecendo ao superior uma escultura de
madeira, um crucifixo que só em 1963 foi reconhecido pela critica como parte de
sua obra. A chance de recomeçar a trabalhar veio travestida de um embuste. Um
conhecido, comerciante de arte. sugeriu que fizesse uma estátua simulando uma
antiguidade romana e Ihe aplicasse uma pátina camada esverdeada que se forma
no bronze ou no cobre de objetos antigos para fazer parecer que tivesse sido
soterrada.
Aceitou o desafio e em poucos meses esculpiu um Cupido adormecido que, de
mão em mão, acabou sendo vendido como antiguidade ao cardeal Riario, em
Roma. Grande colecionador, o cardeal não engoliu a alegada antiguidade da obra,
mas pagou o preço pedido em troca do nome do autor. Convocado pelo cardeal, o
escultor desembarcou em Roma em 1496. Ali, começou a trabalhar para o
banqueiro Jacopo Galli. que se tornou seu grande amigo e conselheiro financeiro.
Influenciado pelo banqueiro, o cardeal francês Jean Villiers encomendou a
Michelangelo a Pietà, que hoje está na Basílica de São Pedro, no Vatïcano, atrás
de sólidos vidros que a protegem de atentados como o que quase a destruiu em
1972. Para escolher os modelos para a Pietà, o perfeccionista Michelangelo
passou em revista a colônia hebraica de Roma, em busca de genuínas feições
judaicas para Cristo e Maria.
De volta a Florença, uma república desde a deposição de Piero e a expulsão dos
Medici, foi convocado para realizar a obra que simbolizaria a liberdade
conquistada. Ele deveria esculpir um bloco de mármore de mais de 4 metros de
altura, recusado por diversos artistas porque, com uma fenda bem no meio. era
considerado inutilizável. O tema escolhido foi o personagem bíblico Davi, no
momento em que decide combater Golias. A ação aparece na escultura ainda em
potencial: o peso do corpo está apoiado na perna direita.cujos músculos estão
contraídos pelo esforço, a funda repousa sobre o ombro. o rosto demonstra
tensão. Em seus escritos, deixou evidente que aquela figura era uma projeção de
si próprio.Por 18 meses, o artista combateu dia e noite com o mármore, para obter
dele o que pretendia fosse o símbolo de um sentimento de apego à liberdade.
Michelangelo queria "lembrar aos chefes da cidade que deveriam governá-la com
justiça". A escultura foi completada em 1504 e a Comuna logo encomendou uma
réplica em bronze. Sem dúvida, o artista tinha simpatias pelo novo poder, embora
se declarasse cético quanto à política. Quase 25 anos mais tarde, quando o papa
se aliou ao imperador da Espanha para destruir a República Florentina,
Michelangelo foi nomeado membro do Comitê dos Nove da Milícia Florentina e.
mais tarde, governador das fortificações da cidade. Quando a República caiu, em
1530, ele teve de se esconder até que o papa Clemente VII tacitamente o
perdoou, fazendo-o voltar ao trabalho na Capela dos Medici. Valeu-lhe, ainda uma
vez, a antiga condição de "homem dos Medici", tanto quanto a de artista
incomparável.
Enquanto esculpia o Davi, Michelangelo recebeu de um amigo de infância, Agnelo
Doni. a encomenda de uma pintura. Seria seu presente de casamento para a
esposa Maddalena Strozzi. Michelangelo realizou o que Cesare Brandi um dos
mais respeitados críticos de arte da Itália neste século definiu como a pintura mais
importante da história da arte. O chamado Tondo Doni é um quadro redondo, com
a sagrada família (José, Maria e o menino Jesus) em primeiro plano, São João
Batista logo atrás, por detrás de um muro, e no fundo um grupo de nus, no melhor
estilo clássico. Segundo Brandi, essa obra inaugurou um novo século na arte. A
novidade está no espaço interno da pintura, que não se realiza num plano. mas
numa esfera.Criou-se uma nova perspectiva, não mais linear com um ponto de
fuga no infinito. O espaço infinito, que Leonardo da Vinci colocava ainda no
horizonte, passou para dentro da figura. A perspectiva está dentro de Nossa
Senhora, que ao se torcer sobre si mesma, com as pernas dobradas para a direita
e o busto girando para a esquerda, mostra o corpo nas três dimensões. É o
domínio da terceira dimensão que só um escultor pode ter.
Nessa mesma época fez o afresco da Batalha de Cascina, no Panteão dos
Quinhentos, no Palazzo Vecchio. Esse trabalho acirrou sua rivalidade com
Leonardo da Vinci, que estava pintando a Batalha de Anghiari na parede em
frente. Com a eleição do papa Júlio II, começou para Michelangelo um intenso e
torturado relacionamento artístico com o poder eclesiástico. Protetor das artes,
esse papa foi mais um chefe de Estado do que chefe religioso. Quando
Michelangelo Ihe perguntou se desejava sua estátua de bronze segurando um
livro ou uma Bíblia, respondeu arrogante: "Ponha uma espada, pois não sou
homem de literaturas". Para Júlio II, ele fez os afrescos da Capela Sistina e vários
projetos para seu túmulo, que o papa sonhava tornar conhecido como a oitava
maravilha do mundo. Esses projetos resultaram na escultura fenomenal de
Moisés, que mereceu um estudo do pai da Psicanálise, Sigmund Freud, e numa
permanente dor de cabeça para o artista, infernizado toda a vida pelos herdeiros
do papa, que desejavam ver a obra concluída. Para o papa Leão X executou a
Capela dos Medici, na Igreja de São Lourenço, em Florença, com sete esculturas.
Para o papa Paulo III realizou os afrescos da Capela Paulina e o Juízo Final, na
Capela Sistina, e foi encarregado de concluir a Basílica de São Pedro e refazer
todo o projeto de sua cúpula.Em abril de 1508, quando iniciou a gigantesca tarefa
de pintar os afrescos da Capela Sistina, estava com 33 anos. Quando Júlio II o
convocou para essa empreitada, Michelangelo ousou recusar, alegando não ser
pintor. Mas, depois de convencido, entregou-se à pintura como se estivesse
possuído por um espírito sobrenatural. Irritado com a má qualidade do trabalho
dos ajudantes que Ihe deram, dispensou todos e passou a trabalhar sozinho.
Pintava o dia inteiro em pé, com as costas e o pescoço curvos para trás. Comia
enquanto pintava. À noite desenhava os cartões com as figuras que seriam
transferidas para o teto na manhã seguinte. Esgotado, caia na cama sem tirar os
sapatos e dormia por poucas horas. Não via ninguém, nem os amigos florentinos
que moravam em Roma.Natural que, nesse estado, se irritasse facilmente. O papa
perturbava-o com visitas constantes, para perguntar pelo fim das obras. "Estará
pronto quando eu acabar",respondia mal-humorado. O relacionamento com os
papas, não apenas Júlio II, foi sempre muito difícil porque Michelangelo pretendia
tratá-los de igual para igual, atitude impensável na época. Até porque seu trabalho
valia tanto quanto o de qualquer outro artesão: sua arte era considerada um
prodígio das mãos, não do intelecto. Com Michelangelo esse conceito absurdo
começou a dar lugar à idéia do artista intelectual. que trabalha com a
sensibilidade. Ainda assim, no embate com os pontífices quase sempre perdia,
sendo obrigado a realizar obras que não desejava.Também a vida afetiva do
artista era atormentada. Na sua grande produção poética, os únicos versos de
grande conteúdo erótico, entre os mais bonitos de sua poesia, são dedicados ao
nobre romano Tommaso de Cavalieri. Michelangelo o conheceu em 1532, pouco
antes de receber a encomenda do Juízo final, Segundo o crítico Michele Cordaro,
a homossexualidade não assumida de Michelangelo era certamente um elemento
que tornava difícil seu relacionamento com os outros. E, de fato, em 1623, quase
sessenta anos depois de sua morte, quando um sobrinho neto resolveu publicar
seus poemas, suprimiu amplos trechos onde ficava evidente o erotismo
homossexual. Talvez por causa dessa versão adulterada, apenas recentemente a
poesia de Michelangelo começou a ser valorizada.O período em que trabalhou no
Juízo Final (1533-1541), foi de grande tensão para a Igreja Católica. O francês
Jean Calvino instaurou em Genebra a Reforma protestante, iniciada pelo alemão
Martinho Lutero, excomungado quinze anos antes, e Inácio de Loyola fundou a
Companhia de Jesus, o exército da Contra-Reforma. O momento histórico e
emotivo da vida do artista, o sentimento e a reflexão sobre a morte que o
dominavam, transpiram na ira de Deus, no gesto do Cristo judicante, figura central
do Juízo Final. Cristo domina a cena de 17 metros de altura por 13 de largura com
o braço direito erguido num terrível gesto, implacável, e o esquerdo mantido no ar,
numa atitude benévola.Obedecendo a este movimento contestante, os corpos
ressuscitados se precipitam de um lado para o abismo e de outro ascendem para
a redenção. Depois do Juízo Final, realizou dois afrescos para a Capela Paulina,
que encerraram sua carreira de pintor. Ele mesmo anunciou isso em carta ao
amigo e biógrafo Giorgio Vasari, afirmando que a pintura não é atividade para
velhos. Michelangelo tinha então 75 anos. A partir daí, mesmo a escultura se
tornou uma atividade íntima, uma meditação sobre a própria morte.Os últimos
trabalhos, como suas últimas pietàs, foram realizados para si mesmo, não eram
encomendas. Abandonados o cinzel e a palheta, dedicou seus últimos anos à
Arquitetura e à Urbanística, como arquiteto-chefe da construção da Basílica de
São Pedro. Redesenhou a Praça do Capitólio, em Roma, criou uma nova
escadaria para o edifício central e colocou no centro a estátua eqüestre romana do
imperador Marco Aurélio. No fim da vida, realizou urna das suas obras primas
como arquiteto, quase um testamento artístico. Transformou as ruínas de uma
parte das termas do imperador Diocleciano na Igreja de Santa Maria dos Anjos.
Com pouquíssimas mudanças, virou pelo avesso um monumento pagão,
transformando-o num verdadeiro monumento cristão.No dia 14 de fevereiro de
1564, pouco antes de completar 89 anos, Michelangelo aparentemente sofreu um
derrame. Na tarde do dia 18, o cardeal Salviati administrou-lhe os últimos
sacramentos. Poucos amigos estavam ao lado de seu leito. Sua última confissão
antes de morrer foi digna da condição de maior artista do Cristianismo. " Eu sinto",
disse ao cardeal Salviati, "não ter feito o suficiente para a salvação da minha alma
e morrer justamente quando estava começando a aprender o alfabeto da minha
profissão".
(Revista Super Interessante – Edição 53 – fevereiro de 1992)

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