Literatura e Sociedade - Departamento de Teoria Literária e

Transcrição

Literatura e Sociedade - Departamento de Teoria Literária e
Literatura e Sociedade
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Universidade de São Paulo
Reitor João Grandino Rodas
Vice-Reitor Hélio Nogueira da Cruz
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Diretora Sandra Margarida Nitrini
Vice-Diretor Modesto Florenzano
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
Chefe Viviana Bosi
Vice-chefe Fábio Rigatto de Souza Andrade
Imagem da capa:
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O país ocupado, 1970
130 x 195 cm
Acrilíca sobre tela
Daros Latinamarica Collection, Zurich
Coleção do artista, cedida exclusivamente para essa publicação.
É proibida a reprodução da imagem para qualquer outro fim
Improviso de Ohio (Ohio Impromptu), de Samuel Brecht:
All rights whatsoever in this play are strictly reserved. Applications for performance,
including professional, amateur, recitation, lecturing, public reading, broadcasting,
television and the rights of translation into foreign languages, must be made before
rehearsals begin to: Curtis Brown Ltd, 28-29 Haymarket, London. SW1Y 4SP, UK.
No performance may be given unless a licence has been obtained.
Literatura e Sociedade/ Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada/ Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas/ Universidade de São Paulo. – n. 1 (1996) – . – São Paulo:
USP/ FFLCH/ DTLLC, 1996 – Semestral
Descrição baseada em: n. 12 (2009.2)
ISSN 1413-2982
1. Literatura e sociedade. 2. Teoria literária. 3. Literatura comparada.
I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada.
CDD (21. ed.) 801.3
DTLLC
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Literatura e Sociedade
Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
Número 15 São Paulo 2011.1 ISSN 1413-2982
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CONSELHO EDITORIAL
Adélia Bezerra de Meneses
Antonio Candido
Aurora Fornoni Bernardini
Beatriz Sarlo
Boris Schnaiderman
Davi Arrigucci Jr.
Fredric Jameson
Ismail Xavier
Jacques Leenhardt
John Gledson
Ligia Chiappini Moraes Leite
Roberto Schwarz
Teresa de Jesus Pires Vara
Walnice Nogueira Galvão
COMISSÃO EDITORIAL
Edu Teruki Otsuka
Marta Kawano
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EDITORIAL
J
á na década de 1970, o crítico britânico Raymond Williams apontou um
aspecto crucial da experiência contemporânea, ao dizer que vivemos em uma
sociedade dramatizada. Os indícios disso encontram-se em toda parte: representações, tipificações, imagens, personagens a serem representados e que as pessoas de fato representam ou se recusam a representar. O próprio vocabulário
proveniente do teatro, como “papel”, “cenário”, “tragédia” etc., já incorporado à
linguagem corrente, comparece com naturalidade no jornalismo, no discurso
político, na conversa cotidiana, para descrever práticas sociais, conjunturas ou
acontecimentos. Longe de serem abstratas, continua o crítico, as convenções
desses modos de dramatização – um país, uma sociedade, um período histórico,
uma crise civilizacional – são elaboradas e reelaboradas incessantemente nas relações vivas e efetivas. Por isso, Williams aposta na crítica de dupla perspectiva,
em que a análise do drama permite observar certos elementos particulares da
sociedade, bem como as convenções que, agrupadas, representam a sociedade; e,
por sua vez, essas convenções fazem que os problemas do drama se tornem renovadamente agudos e atuais.
Este número de Literatura e Sociedade é dedicado ao teatro, sobretudo o moderno e o contemporâneo, e visa pôr em discussão algumas questões, obras e autores
significativos do campo teatral, e, talvez, os próprios modos de discuti-los. Assim,
pensar o teatro em suas variadas formas e pensá-lo de maneiras diversas, além de
serem atividades acadêmicas, são também práticas sociais que fazem parte do quadro sumariamente esquematizado acima, uma vez que não deixam de ser modos de
organizar a imaginação e pensar a sociedade.
A revista se abre com um panorama histórico em que Iná Camargo Costa faz
ver as articulações entre as peças de autores como Ibsen, Tchekhov, Strindberg,
Hauptmann, Toller e Brecht. Logo após, o leitor encontrará um ensaio de Franco
Moretti sobre Henrik Ibsen, em cuja obra o crítico busca ressaltar aspectos da
sociedade burguesa então em processo de consolidação, nos quais se podem
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entrever questões vivas para a atualidade. Na sequência, são apresentados dois
artigos sobre autores decisivos na dramaturgia de língua alemã: um estudo de
Tercio Redondo sobre peça inacabada de Georg Büchner, em que se investiga a
profundidade social das questões formais de Woyzeck; e, de Luciano Gatti, uma
discussão da peça de aprendizagem, a partir da leitura de A medida, de Bertolt
Brecht. Em seguida, Maria Sílvia Betti se debruça sobre a obra de Tennessee
Williams, examinando nela o problema, central no drama moderno, da representação do sujeito sufocado em seus próprios impasses. Ainda no campo da dramaturgia norte-americana, Mayumi Ilari Defina apresenta ao leitor uma prática contemporânea do teatro político, posta em ação pelo Bread and Puppet Theater.
Dirigindo o olhar para os séculos XVII/XVIII, Ana Portich comenta peças de
Giovan Battista Andreini e Jean-Jacques Rousseau, nas quais o mito de Narciso e
o tema do espelhamento se associam a aspectos políticos.
No terreno do teatro brasileiro, este número traz um balanço da obra de Augusto Boal, na perspectiva de Cláudia de Arruda Campos. Em seguida, Walter
Garcia analisa uma canção de Chico Buarque em correlação com Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. A seção “Ensaios” se fecha com dois textos
sobre grupos brasileiros atuais: Alexandre Mate relembra o percurso do grupo Engenho, destacando a agudeza política de seus espetáculos; e Gustavo Assano apresenta a trajetória do Folias d’Arte, em apanhado de seus momentos significativos.
Na seção “Entrevista”, este número de Literatura e Sociedade estampa um depoimento de Paulo Eduardo Arantes, originalmente publicado em 2007, em que
o filósofo reflete sobre os recentes grupos teatrais paulistanos e seu significado no
cenário histórico atual.
Por fim, a seção “Rodapé” oferece ao leitor a possibilidade de ler (ou reler)
dois artigos de Mário de Andrade, originalmente publicados em jornal no ano de
1943. Neles, Mário discorre sobre o teatro cantado e dá testemunho de sua própria experiência na composição do poema dramático Café.
Como de costume, a seção “Biblioteca” divulga publicações dos docentes do
DTLLC, listando, neste número, a produção publicada em 2010.
COMISSÃO EDITORIAL
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Quanto se ganharia se, por exemplo, o teatro – a arte em geral – fosse capaz de criar uma
imagem praticável do mundo. Uma arte que fosse capaz disso poderia intervir a fundo na
evolução da sociedade; não emprestaria, ao homem que sente e pensa, impulsos mais ou
menos obtusos, mas iria entregar o mundo – o mundo dos homens – à sua praxis.
Bertolt Brecht
(tradução de Modesto Carone)
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CONTENTS
ESSAYS
Transitions • 14
INÁ CAMARGO COSTA
The grey area: Ibsen and the spirit of capitalism • 42
FRANCO MORETTI
Time and work in Georg Büchner’s Woyzek • 56
TERCIO REDONDO
Brecht’s The Decision: an exercise on posture • 68
LUCIANO GATTI
Mr. Paradise and other plays, by Tennessee Williams: • 94
notes for a formal analysis
MARIA SÍLVIA BETTI
Bread and art in the tracks of American Theatre, • 122
from counterculture to WikiLeaks
MAYUMI D. S. ILARI DEFINA
The spectator as Narcissus, the theatre as mirror. • 134
Considerations on Giovan Battista Andreini’s Amor nello
specchio and Jean-Jacques Rousseau’s Narcisse
ANA PORTICH
A certain Augusto Boal • 144
CLÁUDIA DE ARRUDA CAMPOS
Notes on a song for the theatre: • 160
“Funeral de um lavrador”
WALTER GARCIA
From Apoena to Engenho. One of many theatre groups • 174
whose experiences wait to be registered
ALEXANDRE MATE
Journey of gathered people: an outline of the trajectory • 180
of the theatre group Folias D’Arte
GUSTAVO ASSANO
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SUMÁRIO
ENSAIOS
14 • Transições
INÁ CAMARGO COSTA
42 • A área cinzenta: Ibsen e o espírito do capitalismo
FRANCO MORETTI
56 • Tempo e trabalho em Woyzeck, de Georg Büchner
TERCIO REDONDO
68 • A medida, de Brecht: um exercício de postura
LUCIANO GATTI
94 • Mr. Paradise and other plays, de Tennessee Williams:
apontamentos para uma análise formal
MARIA SÍLVIA BETTI
122 • Pão e arte nas sendas do teatro norte-americano,
da contracultura ao WikiLeaks
MAYUMI D. S. ILARI DEFINA
134 • O espectador como Narciso, o teatro como espelho.
Considerações sobre as peças Amor no espelho, de Giovan
Battista Andreini, e Narciso, de Jean-Jacques Rousseau
ANA PORTICH
144 • Certo Augusto Boal
CLÁUDIA DE ARRUDA CAMPOS
160 • Apontamentos sobre uma canção para teatro:
“Funeral de um lavrador”
WALTER GARCIA
174 • Do Apoena ao Engenho – um entre tantos outros grupos
de teatro cujas experiências esperam por ser documentadas
ALEXANDRE MATE
180 • Périplo de ajuntados: um esboço da trajetória
do grupo teatral Folias D’Arte
GUSTAVO ASSANO
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INTERVIEW
PAULO EDUARDO ARANTES • 200
FOOTNOTES
Do teatro cantado • 208
MÁRIO DE ANDRADE
Psicologia da criação • 212
MÁRIO DE ANDRADE
LIBRARY
Publications of the Departament 2010 • 218
To collaborators
Where to find the periodical
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ENTREVISTA
200 • PAULO EDUARDO ARANTES
RODAPÉ
208 • Do teatro cantado
MÁRIO DE ANDRADE
212 • Psicologia da criação
MÁRIO DE ANDRADE
BIBLIOTECA
218 • Publicações do Departamento em 2010
Aos colaboradores
Onde encontrar a revista
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ENSAIOS
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14 Literatura e Sociedade
TRANSIÇÕES
INÁ CAMARGO COSTA
Universidade de São Paulo
Resumo
Pautado pelo livro de Peter Szondi, mas adotando um viés abertamente brechtiano, o texto examina peças de Ibsen, Tchekhov,
Strindberg, Hauptmann, Ernst Toller e outros, buscando mostrar como Brecht resolveu no âmbito dos recursos do gênero
épico a crise instaurada por Ibsen na forma do drama.
Abstract
Guided by Peter Szondi’s book, but adopting an openly Brechtian
view, this essay examines plays by Ibsen, Tchekhov, Strindberg,
Hauptmann, Ernst Toller and others, and aims to show how Brecht
has resolved, in the realm of procedures of the epic genre, the crisis
established by Ibsen in the form of drama.
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Palavras-chave
Crise do drama;
drama naturalista;
teatro político e
teatro épico.
Keywords
Crisis of drama;
naturalist drama;
political theatre
and epic theatre.
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INÁ CAMARGO COSTA
Transições 15
D
esde que Ibsen fez a dramaturgia do século XIX começar a narrar, instaurou-se uma espécie de guerra civil não declarada na cena e na crítica. Na cena,
além da censura oficial que proibia uma infindável coleção de assuntos, os próprios empresários e elencos rejeitavam com vários graus de resistência os novos
experimentos dramatúrgicos. E, quando não o faziam e se dispunham a correr os
riscos, seus próprios hábitos e técnicas pautados pela sedimentação dos pressupostos dramáticos inviabilizavam os experimentos. Os resultados deixavam todos os envolvidos infelizes: os dramaturgos, porque viam seus textos literalmente
destruídos; os elencos, porque se frustravam com os desastres; e os produtores,
por causa dos prejuízos com a bilheteria.
Quanto aos críticos, ainda mais empenhados na preservação de seus saberes e,
como dizia Antoine, com uma disposição quase instintiva para preservar os interesses estéticos de seus clientes burgueses, esses travaram uma luta sem quartel
contra aquilo que identificavam como o risco de “destruição do teatro” e de seus
valores eternos.
A consequência disso foi a produção de quantidades industriais de incompreensão do que se passava na cena e sobretudo na dramaturgia. Foi preciso esperar
o aparecimento de um pesquisador como Peter Szondi, já na segunda metade do
século XX, para que fosse lançada alguma luz sobre o que ele chamou de “crise do
drama moderno”.
O texto que segue se pauta basicamente por suas reflexões, mas se desenvolve
numa perspectiva mais específica, pois aqui o horizonte é a dramaturgia brechtiana.
Ibsen, Tchekhov e a crise do drama moderno
Ibsen
Durante o século XIX, o drama alcançou um grau de hegemonia de tal ordem
que passou a ser sinônimo de teatro. Sua expressão degradada, transformada em
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receita na França por volta de 1820, é a chamada peça-bem-feita, que depois serviu
de modelo para os estúdios de Hollywood na primeira década do século XX e até
hoje é ensinada em manuais de roteiros.
De acordo com Peter Szondi,1 um dos primeiros abalos impostos à forma foi
obra de Ibsen, dramaturgo norueguês que durante uns bons vinte anos esforçouse para escrever segundo a receita. Ele já era um dramaturgo consagrado, encenado em toda a Europa, quando produziu a primeira obra que, além de se transformar em escândalo e sofrer censura em mais de um país, punha em questão a ideia
de universalidade do indivíduo livre, o mais importante dos pressupostos do drama, ainda que de maneira pouco perceptível para a época, por se restringir ao
âmbito temático. A peça em questão, Casa de boneca, encenada em 1879, demonstrou de maneira cabal (e crítica) que a ideia burguesa de liberdade humana excluía no mínimo a metade feminina dessa humanidade. Por isso a peça é muito
justamente considerada um divisor de águas na obra de Ibsen. A tal ponto que
suas peças anteriores passaram a ter interesse apenas para fins de pesquisa, com a
provável exceção de Peer Gynt e, mesmo essa, mais por razões musicais (por causa do balé composto por Grieg) do que dramáticas.
Em Casa de boneca temos a história de Nora, casada com Torvald Helmer, três
filhos, que decide abandoná-lo quando se descobre uma perfeita mulher da sociedade burguesa, isto é, uma boneca, sem nenhum direito, primeiro dependente do
pai e depois, do marido – que ostensivamente tinha com ela uma relação paternal.
Sua decisão de abandonar esse papel e sair de casa em busca de liberdade e direitos
foi tão chocante para a época que, na Alemanha, por exemplo, o dramaturgo foi
obrigado pela censura a dar outro desfecho à peça. Em compensação, o dramaturgo
recebeu inúmeras homenagens do movimento feminista (então vinculado ao socialista) em vários países, e, de um modo geral, foram mulheres que primeiro traduziram sua peça para outras línguas, como Eleanor Marx-Aveling, para o inglês.
A partir de Casa de boneca, até sua última peça, Quando despertamos de entre os
mortos, Ibsen progressivamente porá em crise outros elementos formais do drama,
com especial ênfase à proibição do flashback. Isso é o mesmo que dizer, como já
fez Peter Szondi, que com Ibsen o drama começou a narrar, a se interessar pelo
passado e, por isso, houve quem classificasse suas peças de dramas analíticos, procurando associá-las, por exemplo, ao Édipo de Sófocles, como veremos adiante.
De acordo com a teoria dos gêneros, a essa altura mobilizada em caráter normativo, só o épico tem acesso ao passado e a forma que lhe correspondia era o romance (também sinônimo de “literatura”, assim como o drama era sinônimo de “teatro”). Por esses critérios conservadores, não era difícil de perceber que Ibsen,
mesmo fazendo teatro, se voltava para interesses mais próprios do romance e que
no seu horizonte estava o gênero épico.
Esse interesse ainda não está muito claro em Casa de boneca, porque seu desfecho contém uma pergunta pelo futuro de Nora e mesmo de sua família burguesa
abandonada (Torvald Helmer agora é diretor de um grande banco, um executivo
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Peter Szondi, Teoria do drama moderno, São Paulo, Cosac & Naify, 2001.
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na linguagem mais atual e menos hipócrita que a do século passado). Mas a partir
da peça seguinte, Os espectros (1881), Ibsen começa a matar ou a enlouquecer
seus personagens, sempre como castigo por terem feito o jogo da sociedade burguesa no passado que as peças reconstituem – casamentos por interesse, mentiras
e hipocrisia em nome das conveniências etc.
Com Os espectros, Ibsen passou a ser considerado um “companheiro de viagem” do naturalismo, não apenas por sua temática de caráter cientificista (herança genética), mas sobretudo por se tratar de peça censurada que só poderia mesmo ser encenada num teatro livre (e, mesmo assim, na França o teatro que a
encenou esteve ameaçado de interdição).
Tematicamente precedendo Solness, e encenada em 1877, Os pilares da sociedade conta a história de um comerciante muito rico e muito prestigiado na cidade,
mas de passado obscuro. Ele era dado a práticas criminosas, mas nada excepcionais, como a do suborno e a de fazer contratos com navios sabidamente avariados
para, depois do desastre premeditado, receber o seguro marítimo (sem se importar,
evidentemente, com detalhes como as mortes que um naufrágio provoca). Numa
cerimônia em que é homenageado, sua cunhada o desmascara e ele faz uma confissão pública, com direito a perdão. Mas aqui ainda estamos diante de uma situação técnica em que o passado condena de maneira dramática.
Com Os espectros, a crítica da época entendeu que Ibsen teria achado o caminho da tragédia moderna, pois, ao definir o destino de seu personagem por meio
da herança genética, inteiramente fora do controle humano, o dramaturgo descobrira para o teatro moderno um modo de reintroduzir a própria noção de destino
e de fatalidade, essencial ao conceito de tragédia. Por esse prisma, o herói da peça
seria Helena Alving, que, ao descobrir a sífilis do marido, teria tentado abandoná-lo, mas foi convencida pelo pastor a não o fazer. O resultado é o nascimento do
filho que ficará louco quando adulto. Otto Maria Carpeaux resume assim essa
opinião da crítica mais avançada:
O verdadeiro herói de Os espectros é Helena Alving: culpada ativa e vítima passiva em uma
pessoa. Essa mãe é da estirpe dos Édipos, das Antígonas, das grandes figuras da tragédia grega.
A própria peça, guardando rigorosamente as três unidades da ação, do tempo e do espaço, é
uma tragédia clássica. A maior tragédia do teatro moderno.2
A possibilidade de entender essa peça por um prisma materialista foi demonstrada por Brecht em uma crítica fulminante: trata-se da história de uma mulher
que casou por dinheiro e passou toda a vida cultivando mentiras; no final, as mentiras custaram muito caro e deu tudo errado, pois elas foram descobertas e a situação ficou ainda pior.3
2
Otto Maria Carpeaux, “Ensaio sobre Henrik Ibsen”, in Henrik Ibsen, Seis dramas, Rio de Janeiro,
Ediouro, s. d., p. 41.
3
Bertolt Brecht, “Les revenants, d’Ibsen”, in
. Ecrits sur le théâtre, Paris, L’Arche, 1972,
v. 1, p. 10-11.
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Quanto a Solness, uma forma de associá-la à tragédia clássica, particularmente
ao Édipo, decorre da identificação de sua estrutura como drama analítico: a história
já começa no fim da vida do “herói” (ele está velho); os incidentes servem para
passar sua vida a limpo e, após as últimas e mais graves acusações, ele morre – mais
ou menos com o mesmo grau de deliberação que levou Édipo a furar os próprios
olhos. Mas uma leitura mais detida da peça pode levar a outras conclusões.
Solness é um construtor (meio-engenheiro, meio-arquiteto) muito esperto e
inteligente o suficiente para perceber que na profissão (como projetista) quando
muito é medíocre. Mas ele se tornou célebre porque soube explorar com método
a criatividade de dois de seus empregados, pai e filho. Ele sabe que o jovem Ragnar é um gênio, mas, felizmente para ele, sem consciência do próprio valor. Seu
objetivo, nesse caso, é mantê-lo como empregado em seu escritório. Não economiza meios para isso e o que temos oportunidade de ver no primeiro ato é o modo
como envolve Kaia – noiva do rapaz, mas apaixonada por Solness –, fazendo-a
acreditar que precisa dela a seu lado. Por Knut Brovik (pai de Ragnar, que está
muito doente) ficamos sabendo que Solness começou a vida profissional como
seu empregado e então não entendia grande coisa do ofício. Mas Solness subiu na
vida esmagando muita gente, ele incluído – mais adiante saberemos como e a que
preço. Ainda nesse primeiro ato aparece uma pista sobre a origem da fortuna de
Solness: um incêndio que destruiu a casa herdada dos pais de sua mulher. Fica
também sugerido que na mesma ocasião, sua esposa Aline, doente dos nervos,
sofreu um outro golpe além desse.
Esse ato se encerra com a chegada de uma jovem, Hilda Wangel, que conheceu o casal dez anos antes na festa de inauguração de uma torre que fora restaurada por Solness. Ela é uma espécie de precursora dos hippies: tem vinte e poucos
anos, saiu de casa com uma mochila nas costas, sem dinheiro e sem planos. Chegou ali porque foi convidada por Aline Solness quando ambas estavam internadas
em um sanatório. Não sabe quanto tempo vai ficar.
Hilda se lembra de coisas que aconteceram, como a inauguração, em que ficou
fascinada com a figura do construtor no alto da torre, depositando uma coroa de
flores, como era o costume. Mas também se “lembra” do que não aconteceu, como
o beijo que teria recebido de Solness e sua promessa de fazer uma torre para ela.
Solness deixa a ilusão prosperar, concluindo que a moça lhe dava a energia de que
precisava para enfrentar a mocidade (já sabemos quem).
No segundo ato, as reminiscências assumirão um tom mais pesado e sombrio.
É então que ficamos sabendo que o casal teve gêmeos que só viveram quinze dias.
As histórias se juntam: a casa que está sendo construída fica no terreno da que se
queimou; o incêndio aconteceu logo depois do nascimento das crianças; em consequência dele, Aline teve uma febre, mas assim mesmo continuou amamentando
os filhos, que por sua vez morreram “envenenados” pelo leite da mãe. Quanto a
Solness, loteou o terreno, construiu vilas e enriqueceu, porque renunciou a ter um
lar e assim se compensou pela moléstia da mulher.
Na conversa com Hilda, ele esclarece a sua responsabilidade pelo incêndio:
sabia da existência de uma fenda na chaminé, não preveniu ninguém, nem providenciou o conserto. Ele acreditava que a sorte poderia lhe chegar por aquela fenda. Hilda acha tudo emocionante e Solness se entusiasma:
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Eu queria que aquilo acontecesse no inverno... um pouco antes do meio dia. Nessa hora,
Aline e eu estaríamos fora. [...] Em casa, os criados teriam acendido um bom fogo [...] apenas
chegados à porta do jardim, toda a barraca já estaria em chamas [...] Eis como eu queria que que
a coisa viesse.4
Com a mesma placidez com que assume essa responsabilidade, explica que
arruinou Knut Brovik e por essa razão não pode permitir que Ragnar tenha sucesso, caso em que esse poderá fazer o mesmo com ele, isto é, destruí-lo, derrubá-lo.
Esse ato termina com o anúncio da inauguração da casa e da colocação das flores
na torre. Aline avisa que Solness sofre de vertigens.
Enquanto esperam pela inauguração, Hilda e Aline conversam. Ficamos então
sabendo que Aline se conformou com a morte dos filhos, pois afinal foi obra da
Providência, não há o que lamentar. O que ela não pode aceitar e constitui a verdadeira causa do seu sofrimento é a perda, no incêndio, de suas coisas: retratos,
vestidos, rendas e... suas noventa e uma bonecas! Todo o ato se constrói em função do suspense anunciado: Solness subirá à torre ou não? Forma-se uma multidão; Hilda, cada vez mais exaltada, relata a subida de Solness por meio da técnica
da teicoscopia.5 Ibsen toma a palavra e descreve o desfecho na rubrica:
As senhoras, de pé, na varanda, agitam seus lenços. Ouvem-se vivas! na rua. Subitamente
se faz silêncio, depois a multidão lança um grito de terror. Entrevê-se indistintamente por entre
as árvores a queda de um corpo humano, que cai entre as vigas e tábuas. Aline desmaia, o médico vai correndo em direção ao local da queda e Hilda parece ter enlouquecido de vez: fica
repetindo “meu mestre, meu mestre!6
A aproximação dessa peça com o Édipo é estruturalmente justificada, pois em
ambas temos a progressiva reconstituição do passado que tem uma catástrofe por
desfecho – cegueira de Édipo e morte de Solness. Pode-se também avançar na
interpretação da morte de Solness como uma espécie de autopunição equivalente
à de Édipo. Mas, bem pesadas as situações, veremos que Ibsen está tratando de
coisa bem diferente de Sófocles.
Antes de mais nada, é bom verificar que, ao contrário do que se passa em Édipo, onde as revelações são objetivas, isto é, todos sabem quais são os crimes e só
falta saber quem os cometeu, o que efetivamente ocorre, em Solness elas não ultrapassam o campo da subjetividade. As “confissões” do empreendedor são feitas
apenas a Hilda e por seu intermédio nós, o público, também ficamos sabendo
delas. Assim se, ao estimular o velho com vertigens a cometer a loucura de subir
à torre, Hilda cumpre, meio inconscientemente, o papel de justiceira, de maneira
alguma essa informação chega aos demais personagens. Por isso não se pode atribuir à morte de Solness a mesma objetividade que tem a cegueira de Édipo.
4
Henrik Ibsen, Seis dramas, Rio de Janeiro, Ediouro, s. d., p. 375.
Tão antiga quanto a Ilíada de Homero, essa técnica narrativa para relatar o que se passa no
presente fora da cena significa literalmente “olhar além do muro”. Sempre foi usada no drama para
relatos de ocorrências não dramáticas, ou “não encenáveis” como batalhas, catástrofes da natureza etc.
6
Ibsen, Seis dramas, op. cit., p. 396.
5
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20 Literatura e Sociedade
Como observa Peter Szondi, para entender o Édipo de Sófocles é preciso lembrar que Ésquilo também tinha uma trilogia sobre o caso (perdida) e, portanto, já
se dispunha de um relato cronológico sobre o destino de Édipo. Nas suas palavras:
Sófocles podia se basear numa apresentação épica de eventos amplamente separados no
tempo porque seu problema tinha menos a ver com os eventos em si do que com a sua qualidade trágica. Esta tragédia não está presa a detalhes; ela está acima do fluxo temporal. A trágica
dialética da visão e da cegueira – na qual um homem fica cego por causa do auto-conhecimento, através daquele olho “adicional” que ele tem – esta peripécia só precisa de um único ato de
reconhecimento (anagnorisis) para se tornar uma realidade dramática. O espectador ateniense
conhecia o mito; ele não precisa ser encenado. A única pessoa que ainda tem que passar por
essa experiência é o próprio Édipo. E ele só pode fazer isso no final, depois que o mito se tornou
a sua vida. A exposição aqui é desnecessária, e a análise é sinônimo de ação. Édipo, cego embora enxergue, cria, por assim dizer, o centro vazio de um mundo que já conhece o seu destino.
Passo a passo, mensageiros deste mundo invadem seu ser interior e o preenchem com sua horrível verdade. Não é uma verdade confinada ao passado, que é revelado. Édipo é o assassino do
pai, o marido da mãe e o irmão dos seus filhos. Ele é o “mal da terra” e só precisa saber do que
aconteceu para reconhecer o que é. Portanto, a ação em Édipo rei, ainda que de fato comece
antes da tragédia, está contida em seu presente. A técnica analítica em Sófocles é requerida pela
própria matéria e não para reproduzir uma forma pré-existente, mas para mostrar a sua qualidade trágica na máxima pureza e profundidade.7
Nada disso se passa com Solness, a começar pela diferente concepção de destino. Enquanto Édipo não conseguiu fugir à deliberação dos deuses, Solness forjou
o seu próprio destino, contra suas limitações pessoais, econômicas e sociais. Enquanto a matéria do Édipo é dramática e trágica, a de Solness é épica – está circunscrita ao passado e permanece subjetiva. Aqui ninguém fica sabendo que o incêndio
não foi acidental, ninguém tem acesso às motivações (que a fresta da chaminé era
conhecida de Solness, que Aline sofria pela perda de suas coisas). Em consequência, o desfecho, objetivamente, é inteiramente acidental. Tanto ocorreu como poderia não ter ocorrido. E, finalmente, como a temática (as motivações) permanece na
esfera da interioridade, é impossível dar a ela apresentação dramática direta. Como
diz Szondi, esse material tem necessidade da técnica analítica. Como no romance,
só pode ser encenado por meio dessa técnica. E ainda assim a temática continua
não encenada, ela é relatada. Esse é o problema formal básico da dramaturgia de
Ibsen e por isso ele escreveu o primeiro capítulo da crise do drama.
Na sua penúltima peça, João Gabriel Borkman (1906), todos os motivos tratados anteriormente se associam ao mais revelador deles: o “herói” fracassa justamente porque aderiu de maneira radical ao jogo da especulação financeira, quebrando o banco onde trabalhava e levando à ruína sua própria família, muitos
conhecidos que nele confiaram, sem falar na grande massa dos investidores. Para
Borkman, todo o processo que protagonizou nada mais era do que a manifestação
de sua infinita ousadia e livre iniciativa – tão nietzschianamente livre que nem às
7
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Szondi, Teoria do drama moderno, op. cit., p. 43-4.
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regras do banco se sujeitava. Denunciado em pleno voo especulativo, sua queda
resultou em prisão de cinco anos e mais oito de reclusão deliberada, pois a vergonha não lhe permitia encarar os conhecidos. O desfecho da combinação desse
feito de dimensões épicas – devidamente reconstituído por técnicas épicas – e das
mesquinharias da hipocrisia em família é a morte igualmente mesquinha do personagem, inteiramente destituído de perspectivas. Nem é preciso dizer que essa
peça, talvez a obra-prima de Ibsen, nunca foi encenada no Brasil e mesmo na
Europa foi muito cerceada pela censura (na Alemanha especialmente).
Naquilo que nos interessa agora, sua marca principal é a radicalidade com que
se volta para o passado. A perspectiva de futuro é inteiramente secundária e só diz
respeito ao filho de Borkman que, como Nora Helmer, abandona a família e, mais
radical que ela, vai-se embora do próprio país (como aliás o próprio Ibsen fez a certa altura da vida). Aqui o diálogo é inteiramente desdramatizado, pois sua função é
estritamente rememorativa. O tempo, embora tecnicamente seja o presente do diálogo, é o tempo da memória. Todos os participantes dessa conversa em cinco atos
estão interessados em compreender o passado e, se possível, convencer os seus interlocutores de que fizeram a coisa certa. Na medida em que só reafirmam as suas
opções, são condenados à solidão (esposa), à doença (cunhada) e à morte (Borkman).
Tchekhov
Na peça As três irmãs (1900), Tchekhov dá um passo adiante na crise formal
iniciada por Ibsen. Enquanto o norueguês esvaziou o diálogo da função dramática
(impregnando-o da função épica), o russo questionou a sua função dramática. Olga, Irina e Masha são as três irmãs Prozorovas. Elas vivem com o irmão Andrei numa cidadezinha do interior da Rússia para onde se mudaram onze anos
antes, acompanhando o pai que ali assumira o comando de um regimento militar.
Como faz um ano que esse morreu, elas não têm mais motivo para permanecer ali
(mas também não têm meios de sair), e passam o tempo todo sonhando com a
volta a Moscou, lembrando dos bons tempos que lá viveram. A casa é frequentada
pelos oficiais do regimento que são amigos das moças e por ocasião dessas visitas
a conversa corre solta. Entre os acontecimentos cotidianos, Andrei se casa com
Natasha que, ao longo da peça, vai tomando todo o espaço da residência (numa
narrativa muda muito eloquente). Após algumas peripécias, como um incêndio
de grandes proporções e um duelo no qual morre o noivo de Irina, o regimento se
retira da cidade deixando as irmãs para trás.
Esse resumo procurou explicitar o fato de que a peça tem pouco mais do que
os rudimentos de uma ação dramática no sentido que já podemos chamar de
tradicional. Na verdade, o que temos em cena são apenas lembranças, sonhos,
desilusões, espelhamentos e resultados. Todos os acontecimentos se dão fora de
cena: casamentos, nascimentos, mortes, traições, paixões, situações de trabalho, o
incêndio e o duelo. A única ação (em sentido dramático) é a história do casamento
de Andrei e Natasha que, entretanto, só é apresentada em seus efeitos, produzindo
uma trajetória ascendente de Natasha (de rejeitada pelas cunhadas a senhora de
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todo o espaço) e uma trajetória descendente de Andrei (de medíocre funcionário
da municipalidade a viciado em jogo que hipotecou a casa para pagar dívidas).
Com exceção da quase muda Natasha (que cuida dos seus interesses), todos
os personagens renunciaram ao presente: vivem de lembranças do passado e sonham com um futuro que não vem. Uma renúncia dessa ordem tem que necessariamente produzir efeitos sobre uma forma em que ficou sedimentada toda a fé
renascentista no aqui e agora e nas relações interpessoais. Esses efeitos aparecem
na ação e no diálogo, as mais importantes categorias formais do drama.
Como ficou dito, a peça apresenta apenas rudimentos de uma ação dramática,
sem muita conexão no sentido dramático (lei da causalidade). Esses rudimentos
de ação servem antes de pretexto para o que realmente interessa no teatro de
Tchekhov: o diálogo, que, por sua vez, dada a situação que o determina, também
não tem peso ou função dramática. O diálogo em Tchekhov é conversa monológica e nela se concentra o significado de seu teatro.
Como explica Peter Szondi (que estamos resumindo), conversa monológica é
inteiramente diversa de monólogo. Tomando o exemplo clássico de Hamlet, ali o
“ser ou não ser” é necessário solilóquio porque, entre outros motivos objetivos na
peça, ninguém pode saber de seus planos de vingança, mas o público sim. Em As
três irmãs, é conversando que os personagens se isolam. Esvaziado de sua função
dramática, que é estabelecer as relações interpessoais, o diálogo se transforma
essencialmente em monólogo e, com isso, o drama sai do seu elemento (diálogo)
tomando o rumo do gênero lírico. O que temos nessa peça é o constante movimento da conversa em direção à lírica da solidão. Mas na maior parte do tempo, a
aparência de diálogo fica preservada porque nessa conversa podemos ver como
um personagem participa da solidão do outro, ou como a solidão individual participa de uma crescente solidão coletiva. É isso que impede a dissolução da forma
dramática, mas ao mesmo tempo verificamos que essa chegou a seu limite, encenado e tematizado pelos personagens Andrei e Ferapont.
Andrei é o único personagem incapaz de participar daquela conversação. Sua
solidão o leva ao isolamento e ao silêncio. Ele evita qualquer companhia. Só se
permite falar quando sabe que não será entendido. É esse o pressuposto da cena em
que Andrei estabelece com Ferapont um diálogo de surdos sem nenhuma comicidade. Como se sabe, o “diálogo de surdos” é um lugar-comum milenar da comédia, técnica que produziu um sem número de divertidíssimos quiproquós. Mas
aqui, Ferapont é quase surdo mesmo, e, segundo a regra geral da peça, o que ele
deixa de ouvir não produz nenhum efeito na cena. Quanto a Andrei, esse explicita a razão de seu procedimento: “Se não ouvisse mal, irmãozinho, eu não conversaria com você. Eu preciso conversar com alguém, mas minha mulher não me
entende e minhas irmãs ririam de mim”.
Nessa cena temos, assim, dois discursos monológicos radicais, tematicamente
apoiados no motivo da surdez. Essa radicalização os contrapõe aos demais monólogos das outras conversas nas quais está sempre presente a possibilidade de entendimento (intercâmbio inter-humano). Mas entre Andrei e Ferapont, a impossibilidade é expressa temática e formalmente: trata-se do colapso da comunicação.
Como a inviabilização formal do diálogo conduz necessariamente ao épico, Peter
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Szondi pode dizer que “a surdez de Ferapont aponta para o futuro”8 (da dramaturgia a que interessa continuar tratando dos problemas humanos do seu tempo).
Desde que se candidatou à modernização, o teatro brasileiro sempre teve dificuldades para lidar com Tchekhov, tanto na cena como na crítica. Dona Gilda de
Mello e Souza explicou as razões desse fenômeno em ensaio da década de 1950:
desprovidos de ação dramática e personagens de exceção, os textos de Tchekhov
correm o tempo todo o risco de cair na monotonia. Os monólogos desencontrados,
travestidos de diálogos, a técnica fragmentada, a nostalgia e a melancolia dos personagens que constituem uma galeria de vencidos, expondo vários graus de derrota ou frustrações, presos ao passado ou sonhando com um futuro irrealizável são
os ingredientes que dificultam a direção, a interpretação e a recepção de Tchekhov
entre nós, habituados a contrastes vivos e de fácil apreensão, porque apoiados em
situações de conflito claramente delineados (os ingredientes do drama).9
O desafio, segundo o próprio dramaturgo que é citado por Gilda, é compreender que “para aqueles que não têm objetivos imediatos ou remotos só resta na
alma um grande vazio”.10 A essa percepção não faltou um adepto das conclusões
taxativas de Lukács para acrescentar que, como Ibsen, Tchekhov percebeu e mostrou em seu teatro que esse tipo de gente estava condenado pela história, assim
como a forma que cristalizou a ideologia de seus antepassados.
Teatro livre e naturalismo: Antoine e Hauptmann
Com Ibsen e Tchekhov, vimos como a forma do drama entrou em crise pelo
simples fato de que, procurando observar e configurar na cena o comportamento
de satélites da burguesia (ou pequenos burgueses, como os chamou Gorki), esses
dramaturgos acabaram questionando os pressupostos da forma do drama (liberdade, conquista de objetivos) e esvaziando suas principais categorias formais
(ação e diálogo). Em ambos o futuro inexiste, ou melhor, o presente é vazio e as
ocorrências desse agora não forjam futuro nenhum, até porque esses personagens
não são senhores de seu próprio destino. Se em Ibsen o diálogo se transformou em
relato, inteiramente comprometido com a reconstituição e tentativa de justificação do passado, explicitando a matéria romanesca e a vocação épica do dramaturgo, em Tchekhov essa categoria se transformou em monólogo travestido de diálogo, explicitando a solidão e a ausência de comunicação até chegar ao impasse – a
falência total das relações inter-humanas, apontando para a possibilidade de sua
superação no âmbito do gênero épico.
Antecedentes históricos
O Segundo Império francês, o mais legítimo resultado dos massacres parisienses de julho de 1848, impôs ao teatro (às artes, à literatura, à imprensa) um dos
8
Idem, ibidem, p. 53.
Gilda de Mello e Souza, Exercícios de leitura, São Paulo, Duas Cidades, 1980, p. 131-136.
10
Idem, ibidem.
9
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mais ferozes e bem-sucedidos sistemas de censura de que se tem notícia. A dramaturgia realista, do Alexandre Dumas Filho de A dama das camélias (1852) ao Émile Augier de As leoas pobres (1858), é a expressão legitimista desse período que se
encerrou com a guerra franco-prussiana (uma das origens da primeira Guerra
Mundial) e com a Comuna de Paris. Sobre a eficácia do sistema de censura ao teatro, basta lembrar que o mesmo Émile Augier aqui referido acumulava as funções
de dramaturgo prestigiado e censor. No teatro realista, portanto, as convenções do
drama degradadas na fórmula da peça-bem-feita são consagradas pelo público,
pela crítica e asseguradas pelo Estado.
No campo dos derrotados de 1848, ou simpatizantes de sua causa, encontravam-se escritores como Baudelaire, Flaubert e Zola. Foi este um dos primeiros a
mostrar, logo depois da Comuna de Paris, mais precisamente em 1873, um dos
caminhos que o teatro poderia seguir entre os escombros que restaram do teatro
realista e similares. Sua contribuição prática foi a adaptação para a cena de seu
romance Teresa Raquin e, no plano da crítica, foi o autor dos primeiros “manifestos” do teatro naturalista.
A Terceira República – proclamada em Versalhes porque em Paris havia uma
revolução em andamento –, para deixar bem claro o seu compromisso com a política “social” de Luís Bonaparte, como primeira providência diplomática, combinou com o exército prussiano a melhor estratégia para massacrar os operários
parisienses, que haviam se assenhoreado da cidade abandonada.
Depois que os ânimos se acalmaram, no âmbito teatral, o elo com o regime
apeado foi a manutenção e o aperfeiçoamento do eficiente sistema de censura
herdado, de modo que por algum tempo os esforços de Zola e outros, como os
irmãos Goncourt, continuavam cerceados a ferro e a fogo.
Teatro Livre
André Antoine aparece nesse cenário. Tratava-se de um funcionário da Companhia de Gás, apaixonado por teatro a ponto de prestar serviços de claque e figuração na Comédie Française desde muito jovem. Acabou se envolvendo em um grupo de teatro amador com mais alguns companheiros de trabalho e em breve tempo
começou a encenar as peças proibidas pela censura (que não alcançava os grupos
amadores), mas interessantes para ele e seu público de trabalhadores e amigos. As
portas do teatro comercial estavam evidentemente fechadas para uma companhia
que não dispunha de capital e contava com um repertório que a censura pusera no
índex ou peças que já tinham sido recusadas pelos teatros convencionais.
As dificuldades econômicas do grupo amador (Círculo Gaulês) e a descoberta
de um teatrinho desativado em Montmartre levaram à fundação do Teatro Livre,
solução para a maioria dos problemas: criava-se uma associação de artistas e público (amigos e simpatizantes) que, por meio de assinaturas, garantia o financiamento das produções programaticamente baratas; por se tratar de sociedade
fechada (como o grupo amador), as peças a serem encenadas não dependiam de
aprovação da censura. Essa é a essência política e econômica do Teatro Livre: liberdade na escolha dos textos e liberdade em relação às convenções estéticas e
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econômicas da peça-bem-feita (ou do teatro realista). É, pois, emblemática a escolha do texto com que estreou o Teatro Livre em 1887: Jacques Damour, adaptação
por Léon Hennique do conto de Zola sobre a história de um veterano da Comuna
de Paris que, tendo escapado ao massacre, mas dado por morto, volta à cidade,
encontra a família destruída e, depois de algumas peripécias extremamente dolorosas, vai trabalhar como caseiro para a filha que se tornou prostituta (como Naná,
personagem do romance de mesmo nome).
Essas condições econômicas, estéticas e políticas explicam por que o Teatro
Livre foi o introdutor na cena francesa de dramaturgos como Ibsen, Hauptmann e
Strindberg – os mais relevantes expoentes da dramaturgia naturalista não francesa. E, entre os franceses que experimentavam novos caminhos como Zola, vale a
pena destacar Henri Becque (Os corvos, A parisiense), que já conhecia tanto o desencontro entre as convenções do teatro realista e sua dramaturgia (o Odéon produziu sua peça Os corvos que fracassou), quanto os muito eficientes métodos e
critérios de censura dos empresários teatrais (A parisiense foi recusada pelo mesmo Odéon por causa do fracasso da primeira).
Do ponto de vista formal, o que distingue peças como as de Henri Becque do
repertório realista habitual é especialmente aquilo que os críticos contemporâneos
(como Sarcey) chamavam de inapetência dramática: diálogos com função épica
(comentários, relatos); ação pouco relevante quando não propriamente inexistente (prejudicando o ritmo) e personagens desprovidos de caráter dramático (não
eram heróis burgueses, até porque provenientes das camadas sociais inferiores).
Uma outra marca desse teatro foi a progressiva incorporação à cena de conjuntos
cada vez mais numerosos de personagens (ensembles), contrariando abertamente
uma das mais insistentes recomendações da crítica (e dos produtores, por razões
salariais óbvias): restringir o número de personagens ao estritamente essencial
para o bom andamento da ação dramática.
Antoine experimentou produzir o “efeito ensemble”, ou efeito de multidão, pela
primeira vez, em 1889. Foi com a peça A pátria em perigo, dos irmãos Goncourt,
que ficara retida pela censura desde 1866. Como o próprio diretor relata em Mes
souvenirs sur le Théatre-Libre (1921), a cena de protesto popular diante da prefeitura de Verdun foi a principal razão do seu interesse em encenar a peça. E seu empenho também se explica pelas convicções políticas dos militantes do Teatro Livre
(que iam do republicanismo ao anarquismo, passando pelo próprio socialismo).
Por isso não demorou muito tempo para a dramaturgia naturalista apresentar uma
peça inteiramente inspirada num episódio histórico das lutas dos trabalhadores.
Hauptmann
A criação do Teatro Livre em Paris funcionou como uma espécie de fogo em
palha seca. Pouco tempo depois, quase todos os países europeus tinham empreendimentos teatrais similares, dos quais os mais famosos são os de Berlim, Moscou,
Londres e Dublin (que existe até hoje). Para se ter ideia da extensão do fenômeno,
basta mencionar que Lukács aos dezoito anos foi um dos fundadores do teatro livre
de Budapeste, chamado Companhia Talia. De todos esses grupos, interessa agora o
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de Otto Brahm, que em 1889 fundou a Cena Livre de Berlim lançando o dramaturgo
Gerhart Hauptmann. Como se pode imaginar, no Império alemão a censura ao teatro era ainda mais feroz que a francesa, de modo que a motivação dos naturalistas
alemães para viabilizar um teatro que escapasse às suas restrições era ainda maior.
Essa é a principal razão por que Os tecelões de Hauptmann estreou em Paris
apenas três meses depois de Berlim. É que nessa cidade a polícia imperial não
respeitou as garantias legais da Cena Livre. Em vista da repercussão que teve a
peça, tratou de proibi-la em qualquer circunstância e de garantir que não mais
seria encenada em território alemão. Até por uma questão de solidariedade política, o grupo de Antoine tratou de providenciar a tradução da peça e estreá-la em
Paris, o que aconteceu em maio de 1893 – sob todo tipo de ameaças, diga-se de
passagem, inclusive de interdição do teatro. Para além da questão política, Antoine
tinha um interesse experimental por essa peça: nela havia mais de uma oportunidade de criar cenas de multidão no palco.
Embora Os tecelões já esteja bem distante da forma do drama, Hauptmann
ainda se encontra preso a algumas das expectativas dramáticas, em particular a da
unidade de ação, de modo que nessa peça é possível perceber uma espécie de luta
entre forma (dramática) e conteúdo (épico) bastante instrutiva. Seu assunto é a
rebelião dos trabalhadores têxteis e camponeses da Silésia, ocorrida em 1844. Foi
uma rebelião espontânea, desorganizada, expressão do desespero dos famintos e
miseráveis que foram facilmente massacrados pelo exército. Numa primeira indicação de que Hauptmann queria escrever um drama sobre esse assunto, a peça é
dividida nos cinco atos da tragédia clássica. Mas não são atos o que temos aqui,
pois essas unidades não têm o encadeamento causal que o drama exige. Seu nome
técnico é quadros, que nessa peça têm encadeamento temático.
O primeiro quadro mostra duas coisas em contraste e em relação: a miséria e
a exploração dos tecelões e os patrões às voltas com as oscilações do mercado em
fase de modernização tecnológica. No segundo, uma cena da vida privada miserável, a rebelião é anunciada pela canção dos tecelões. O terceiro quadro mostra
os incidentes numa taberna – comentários dos acontecimentos locais e “nacionais” – que são interrompidos pela própria rebelião, já em andamento. Indicando
simultaneidade parcial com esses incidentes, no quadro seguinte o jantar da casa
burguesa também é interrompido pelos rebeldes. A casa é invadida e destruída.
No quadro final, voltamos à cena do segundo, mas agora o que está em andamento
é o massacre dos rebeldes. Uma bala perdida mata o único personagem contrário
à rebelião por acreditar na solução pacífica dos conflitos.
Nem é preciso dizer que só no primeiro quadro e em parte do quarto o diálogo
mantém alguma semelhança com o diálogo dramático. Afinal, no primeiro, os
trabalhadores estão negociando o valor do produto do seu trabalho ou as quantidades de tecido (e perdem). No início do quarto quadro, a família burguesa e seus
amigos conversam sobre a vida, o regime político e outras amenidades, mas em
seguida a canção dos tecelões acaba com aquela paz confortável. Nas demais situações sua função básica é épica: ou relato e comentário de acontecimentos do
passado, ou descrição de acontecimentos do presente que se passam fora da cena.
Hauptmann lançou mão da teicoscopia, a técnica considerada própria para aque-
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les acontecimentos que, por suas dimensões épicas (como é o caso da rebelião),
dificilmente podiam ser encenados segundo as convenções do drama.
Esse esforço de Hauptmann acabou involuntariamente dando forma no teatro
à luta de classe propriamente dita. Como se sabe, o diálogo é um dos bens mais
preciosos do drama burguês. Mas a sua viabilidade cênica depende da presença de
personagens livres e iguais (homens burgueses) em conflito. Em Os tecelões temos
um confronto de classes, ambas tratadas como coletivos, em sinal de respeito por
parte do artista a seu material e à verdade histórica. Mas sendo o diálogo o único
tipo de discurso que o drama reconhece como legítimo, ele teria que ser o veículo
predominante do assunto. Mas já vimos que a partir do segundo quadro essa função passou a ser desempenhada também pela canção dos tecelões (uma só voz,
porém coletiva). Tecnicamente não chegou a haver disputa entre diálogo e canção
até o quarto quadro pois, a cada aparecimento da canção, o diálogo lhe cedeu o
lugar. Mas no quadro da rebelião propriamente dita o diálogo permaneceu em
cena, assim como os burgueses acuados. A família burguesa não tinha como resistir ao ataque, mas permanecendo em cena o diálogo também resiste. Só que esvaziado de função dramática e desempenhando a função épica de informar à plateia
sobre os avanços dos rebeldes. No segmento final, após um instante em que o
palco fica vazio, a multidão o invade.
Há, portanto, perdas e danos de ambos os lados: se o diálogo perdeu a sua
função, o que não é pouca coisa, a rebelião ficou fora de cena, o que também significa uma perda apreciável. Mas o valor histórico e estético dessa peça está nisso
mesmo – para além das questões levantadas por Peter Szondi e Anatol Rosenfeld
em análises muito mais minuciosas. Nas mãos de Hauptmann ficou evidenciado,
para além de qualquer dúvida, o compromisso do drama e suas categoriais formais com a burguesia. A classe trabalhadora, se quiser se ver no teatro, será obrigada a forjar seus próprios meios de expressão, assim como fez a burguesia no
século XVIII. É por esse feito que a experiência da dramaturgia naturalista, como
já disse Brecht, necessariamente deve figurar como o primeiro capítulo do teatro
dos trabalhadores. E Os tecelões de Hauptmann, exatamente pelos problemas que
evidencia, entrará nessa história como a sua primeira obra-prima.
Mesmo correndo o risco do excesso, vale a pena acrescentar que esse é o principal motivo por que o naturalismo (não só no teatro) é tão maltratado nas histórias convencionais da literatura, da arte e sobretudo do teatro.
Strindberg e a superação do naturalismo no drama
Ainda não existem os estudos necessários ao conhecimento adequado do
movimento naturalista nem mesmo nos principais centros onde ele se desenvolveu – Paris, Berlim, Londres, Dublin e Moscou. As razões para esse desastre cultural podem ser resumidas em uma só proposição: as derrotas que os trabalhadores sofreram ao longo desse século, começando logo após a Revolução de Outubro,
respondem pela progressiva incapacidade desses mesmos trabalhadores defenderem os seus interesses também no plano da cultura. E se nós não o fizermos não
será o inimigo a fazê-lo.
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Apesar disso, é possível conceituar o naturalismo como a experiência teatral
na qual pela primeira vez os trabalhadores se viram nos palcos como classe. Os
tecelões é apenas uma dentre as inúmeras peças escritas e encenadas ou censuradas no período. Para dar um exemplo não muito distante, o romance Germinal de
Zola teve censurada uma adaptação para teatro na mesma época. Do ponto de
vista da dramaturgia, o recorte que interessa aqui, foi com o naturalismo que se
explicitaram as razões de classe das incompatibilidades entre o drama como forma
e as lutas dos trabalhadores como assunto.
Mesmo os dramaturgos que não estavam minimamente envolvidos com as
lutas dos trabalhadores, caso de Strindberg, tinham preocupações que, levadas ao
teatro, também se mostravam incompatíveis com a forma do drama. Por isso mesmo a sua obra só encontrou o caminho do palco pelas mãos de encenadores naturalistas como Antoine ou de empreendimentos desde logo inspirados na luta
contra teatro livre, como foi o caso do L’Oeuvre de Lugné-Poe.
Senhorita Júlia (1888), encenada por Antoine, faz parte da família naturalista e
ainda está muito próxima da peça-bem-feita, mas tem duas qualidades que interessam aqui. A primeira lhe é extrínseca, pois se trata do prefácio (publicado por Antoine no programa do espetáculo) no qual Strindberg mostra o grau de consciência
dos artistas de então sobre a necessidade de se inventar novas formas. A segunda,
paradoxalmente inspirada na paranoia misógina de Strindberg, acrescenta uma
nova explicitação do caráter machista e de classe da ideia de liberdade, ou livre iniciativa, que nessa peça aparece sob a temática do assédio sexual (no bom sentido).
Depois dos manifestos de Zola, o prefácio da Senhorita Júlia é o documento
mais importante da geração naturalista. Embora não chegue a ter o mesmo estatuto do prefácio de Victor Hugo ao Cromwell, com ele estabelece um diálogo relevante. Victor Hugo defende com grande empenho o direito do artista de transitar
pelos vários gêneros segundo as exigências da matéria. Strindberg radicaliza a
ideia de que gêneros e formas têm vigência histórica e, como tudo o mais, envelhecem e morrem. Mas, enquanto não morrem, constituem obstáculo à apresentação de novos conteúdos. Por isso ele considera morto o teatro em países como a
Inglaterra e a Alemanha, enquanto em outros, como na Suécia, gente como ele
pensou ser possível criar o novo drama preenchendo as velhas formas com o conteúdo dos novos tempos (suas palavras, literais). Senhorita Júlia seria um exemplo
dessa tentativa, na qual a forma já sofreu algumas modificações importantes. Por
exemplo: seus personagens não têm caráter no sentido valorizado pelo drama,
porque ele não acredita na “imobilidade da alma”, ou fixação de temperamento,
que a ideia de caráter pressupõe. De acordo com isso, seus personagens seriam
mais bem descritos como febrilmente histéricos, vacilantes e fragmentários, mais
de acordo com a época de transição em que vivem. Quanto ao diálogo, Strindberg,
por assim dizer, confessa ter rompido com a tradição na qual os personagens se
comportam como catequistas fazendo perguntas tolas para receberem respostas
inteligentes. E, no plano estrutural, Strindberg aboliu a divisão em atos.
Como não é o caso de reconstituir aqui a iluminadora análise que ele faz de
sua própria peça, nem suas críticas bem-humoradas aos costumes e convenções
teatrais ainda em vigor, encerremos esse passeio por seu prefácio com a metáfora
bíblica que sintetiza o maior problema do teatro de seu tempo e que alguns anos
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depois ele mesmo contribuiu para solucionar: “não temos ainda novas formas
para os novos conteúdos, e o novo vinho fez explodir as garrafas velhas”.11
Como Senhorita Júlia apresenta características de transição semelhantes às
que vimos em Ibsen e Tchekhov, vamos restringir aqui o seu exame ao fio principal do enredo que, mesmo constituindo uma ação dramática, produz uma saborosa e significativa inversão de seus pressupostos. Reduzido ao essencial, o caso aqui
é que Júlia tem forte atração sexual por Jean, um criado cujos atributos físicos
justificam-na inteiramente. Os obstáculos à realização desses desejos (que têm
alguma reciprocidade, independentemente de motivações) são naturalmente de
classe. Mas, transformando o obstáculo em vantagem, é Júlia quem toma a iniciativa do assédio e, numa sutil guerra de trincheiras, vai quebrando as resistências
do atraente criado até conquistar seu objetivo. Essa conquista por certo tem um
preço: primeiro a relação senhor-escravo se inverte, e, no desfecho, induzida por
Jean, Júlia paga com a própria vida pela transgressão.
Aqui interessa a fase ascensional da curva dramática da trajetória de Júlia,
também compreensível por ser seu criador um sueco que conheceu pessoalmente
o processo feminista de conquista de muitas liberdades, incluindo a sexual, como
se sabe. Júlia pode tomar, e toma, a iniciativa porque na ausência do pai é a “senhora do castelo”, mesmo que temporariamente. Para o próprio Strindberg, esse
comportamento é privativo dos homens e por isso ele define Júlia como uma semimulher. Em suas palavras, ela é um tipo moderno “que está lançando para a
frente, que hoje em dia se vende em troca de poder, de títulos, de distinções, de
diplomas, assim como estava acostumada a vender-se por dinheiro”.12 Isso é o que
pensa o homem Strindberg. Mas o artista mostrou com muita clareza (e o homem
não percebeu) que há uma determinação de classe no comportamento tido por
masculino. O teorema da primeira parte da peça demonstra que, se a personagem
fizer parte da classe dominante, mesmo sendo mulher, a ela também estão abertos
os caminhos da livre iniciativa, ou da liberdade, como preferem os poetas e filósofos. A segunda parte, em que Júlia paga com a vida pela transgressão, corre por
conta dos valores assumidamente misóginos do dramaturgo. Mas, independentemente disso, ele acrescentou ao repertório do teatro naturalista um ingrediente
importante da ampla agenda das reivindicações feministas.
Se não tivesse ultrapassado esse ponto, Strindberg seria apenas mais um dos
dramaturgos naturalistas, talvez nem tivesse entrado para a história. Seu lugar na
história do teatro moderno se deve às experiências mais radicais que realizou no
plano da forma, na última fase de sua vida: coerente com a metáfora do vinho que
explodiu a garrafa velha, no ano de 1898, após outras experiências bem e malsucedidas, Strindberg finalmente deu com a forma que pavimentou o caminho por
onde passou o teatro do século XX, em particular o expressionista e o épico.
Entre as convenções do drama, uma em especial se lhe apresentava como obstáculo: a objetividade da forma, ou a impossibilidade de tratar da interioridade dos
11
12
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August Strindberg, Senhorita Júlia, Rio de Janeiro, Ediouro, s. d., p. 18.
Idem, ibidem, p. 23.
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personagens, como faz o romance, na medida em que a forma só reconhece aquilo
que se passa na esfera das relações inter-humanas, cujo veículo é o diálogo. Na
peça A mais forte, Strindberg já experimentara a forma do monólogo encenado
como falso diálogo (só um personagem fala, como fará Cocteau muito mais tarde
em O belo indiferente), mas não era isso o que procurava. O pai, anterior a Senhorita
Júlia, foi uma tentativa inteiramente incompreendida de introduzir o foco narrativo
no drama. É então que em 1898, em Rumo a Damasco, os dois problemas foram
resolvidos pelo resgate de uma das formas do teatro medieval, o drama de estações.
Como indica o conceito, a matriz dessa forma é o teatro processional, ou mais simplesmente a procissão em que se rememora a Via Sacra, na qual cada estação reconstitui um episódio do último dia do Cristo, do palácio de Pilatos ao Calvário.
Rumo a Damasco é uma trilogia cujas duas primeiras partes ficaram prontas em
1898 e a terceira, em 1904. O título remete à história da conversão de Saulo de
Tarso e é de conversão mesmo que a obra trata. Limitando-nos à primeira etapa
desse tríptico monumental (que estreou em Estocolmo em 1900 e na França só em
1949), a primeira coisa que salta aos olhos é a combinação da estrutura em estações (quadros) com a divisão em cinco atos (inteiramente desnecessária, como se
pode imaginar: a peça em quadros está nos antípodas da tragédia neoclássica).
Os quadros se sucedem num movimento de ida-e-volta perfeitamente simétrico. A ida começa numa esquina, passa pela casa de um médico, um quarto de hotel,
praia, estrada, desfiladeiro, cozinha de uma casa na montanha, quarto nessa mesma
casa e culmina num sanatório. Essa é a nona estação, a partir da qual dois (por assim dizer) personagens, Desconhecido e Mulher, retornam até chegar novamente à
esquina inicial, num total de dezessete estações (três a mais que a Via Crucis original). Desconhecido e Mulher desenvolvem uma problemática relação amorosa,
marcada por infidelidades, problemas econômicos, psicológicos e rejeição social
(estão impedidos de legalizar a união). Ao mesmo tempo ambos são reciprocamente estímulo e obstáculo, conhecimento e ignorância, desdobramento psicológico e
espelhamento, identificação e estranhamento. O clímax, se assim se puder chamar,
é um colapso nervoso do Desconhecido que recebe tratamento num sanatório. O
caminho de volta é uma peripécia para os que acreditaram na alusão à conversão de
São Paulo: aqui o autoconhecimento, ou a descoberta da “verdade”, ou cura, na
opinião dos médicos, não resulta em mudança de comportamento, até porque os
problemas objetivos (falta de dinheiro, especialmente) continuam irresolvidos. Só
na cena final do último quadro teremos uma espécie de promessa de conversão,
quando a Mulher convence o Desconhecido a entrar numa igreja.
O exame de todas as questões discutidas pela peça nos levaria longe demais.
Mas para que se tenha uma ideia, basta enumerar as seguintes: problemas de um
escritor em crise com seus editores que se recusam a lhe fazer adiantamentos,
discussão dos métodos de educação dos filhos, busca de identidade jamais encontrada, blasfêmia explícita inspirada em textos do Deuteronômio (especificamente:
as maldições de Moisés), métodos convencionais e heterodoxos de tratamento
psiquiátrico e assim por diante.
O que realmente interessa nesta peça de Strindberg, e já foi destacado nas análises de Peter Szondi, é a descoberta (ou redescoberta) de uma forma teatral épica em
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condições de permitir a encenação daquilo que mais tarde veio a chamar-se “dramaturgia do ego”, na qual não se tem mais diálogos, pois não há mais personagens. O
que se tem é o sonho (ou pesadelo) de um único personagem (nesse caso, o Desconhecido) no qual todos os demais são suas próprias emanações, ou projeções. Para
dizer o mesmo em outras palavras, a partir de Rumo a Damasco, tudo em Strindberg
passa a ser função de um eu central, ou seja, um narrador. O texto passa a ser na
verdade monólogo (com discurso indireto livre, apenas convencionalmente distribuído entre personagens que só aparentemente dialogam) no qual se assiste à encenação de episódios (quadros) da vida psíquica encoberta (ou revestida) de acontecimentos da esfera das relações inter-humanas. Essa revelação é ilimitada: não
respeita as convenções de tempo, espaço, verossimilhança, valores consagrados,
nada – exatamente como no inconsciente a que se refere Freud em sua Interpretação
dos sonhos, que tem praticamente a mesma idade dessa peça, e não por coincidência.
Como resultado dessa estratégia (monólogo, estações), desapareceram as três
unidades (ação, tempo e lugar) do drama tradicional e elas foram substituídas
pela “unidade de personagem”, que entretanto nem ao menos tem identidade. A
lei da causalidade, determinante da unidade de ação, é substituída pela sequência
solta, por fragmentos cujas ligações deverão ser identificadas por meio de categorias do repertório da crítica literária como os expostos por Freud no livro citado:
condensação, fusão, metáfora, metonímia e assim por diante. Sem exagero, pode-se
dizer que com Strindberg está tecnicamente consumada, também na dramaturgia,
a liberdade de trânsito por todos os gêneros.
Em 1902, Strindberg escreveu O sonho, que já explicita no título a referência
ao modo como a estruturou. A novidade aqui, em relação ao drama de estações, é
a materialização de um narrador (cuja ausência até hoje confunde intérpretes de
Rumo a Damasco), que o próprio dramaturgo não reconheceu como tal, embora
não lhe faltem antecedentes, na figura dos compadres do teatro de revista ou dos
raisonneurs do teatro realista francês. A prova técnica do não reconhecimento do
narrador (responsável pela consistência do foco narrativo e da própria narrativa
como um todo) é a sua morte no terceiro ato, uma vez que ele apareceu sob a
máscara de personagem dramática e essa morte compromete a consistência da
peça como um todo.
Avaliando esse resultado, Peter Szondi observa que, enquanto em Ibsen a personagem dramática tinha que morrer porque faltava às peças um narrador épico,
o primeiro narrador de Strindberg morreu por não ter sido reconhecido como tal.
É por isso que, mesmo tendo encontrado a forma épica no drama de estações ou
na estrutura do sonho para a temática épica que o século XIX já vinha apresentando havia tempo, Strindberg permanece no limiar do teatro moderno. Para o que
nos interessa agora, por ter encontrado a forma épica da “dramaturgia do ego”, ele
é o elo com o teatro expressionista.
Georg Kaiser e Ernst Toller: o expressionismo no teatro
Uma vez que a primeira geração expressionista, anterior à Primeira Guerra Mundial, não avançou de um ponto de vista formal sobre as experiências de
Strindberg, aqui vamos nos concentrar na segunda, a do entreguerras que, sem
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abandonar a estrutura do sonho, procurou romper com os limites do subjetivismo
que marcou Strindberg e discípulos.
Mas, para fazer justiça ao primeiro expressionismo, cabe registrar que foram
esses dramaturgos que seguiram o conselho da Mãe, personagem de Rumo a Damasco. Essa, no quadro/estação que precede o colapso nervoso do Desconhecido,
dá-lhe o seguinte conselho: “você deixou Jerusalém e está na estrada de Damasco.
Vá pelo mesmo caminho por onde veio. Plante uma cruz em cada estação, mas
pare na sétima. Não precisa sofrer as catorze como ele”.13 O próprio Strindberg
ultrapassou até mesmo as catorze estações, mas os primeiros expressionistas ficaram nas sete, que se transformaram numa espécie de marca registrada da estrutura épica de suas peças.
Antecedentes históricos
Para entender o teatro da segunda geração expressionista é indispensável um
conhecimento engajado da história alemã desde o final do século XIX até a proclamação da República de Weimar, quando a experiência se generalizou e expandiu.
O principal “personagem” dessa história é o Partido Socialdemocrata Alemão
(Sozialdemokratische Partei Deutschland – SPD) que conquistara a legalidade no
final da década de 1880 e no início do século XX veio a constituir o maior partido
da classe trabalhadora, com número de parlamentares no Reichstag capaz de decidir votações (maioria). Uma das formas de luta desse partido se desenvolveu no
“front” cultural, pois seus militantes e dirigentes sabiam muito bem do valor da
Kultur naquele país, por eles definida como importante campo de luta. Por isso
mesmo a Freie Bühne (Cena Livre), fundada por Otto Brahm inspirado em Antoine,
em pouco tempo se viu obrigada a debater e votar a proposta de vinculação ao SPD.
Com a vitória da facção favorável, isto é, dos militantes do SPD na Cena Livre, é
criada a Volksbühne (Cena do Povo). O resultado foi a multiplicação dos grupos de
teatro por toda a Alemanha, com o apoio da poderosa estrutura partidária e sindical do SPD. Segundo Anatol Rosenfeld, quando Hitler chegou ao poder em 1933,
só em Berlim a Volksbühne contava com mais de cem mil militantes (ou sócios).14
Atalhando um pouco essa história, sabe-se também que em agosto de 1914,
quando o Kaiser solicitou ao Reichstag a aprovação dos créditos necessários para
declarar guerra à França, o SPD tinha deputados em número suficiente para barrar
a proposta. Para escândalo dos socialistas do mundo inteiro, em particular Lenin,
que por isso mesmo rompeu com a Segunda Internacional, os deputados socialistas, com louváveis exceções como Karl Liebknecht, votaram a favor dos créditos de
guerra. E, uma vez enredados nessa lógica, votaram também a favor das leis de
exceção que, entre outras providências, permitiam prender militantes pacifistas do
próprio SPD por crime de alta traição, como aconteceu com Rosa Luxemburg.
13
August Strindberg, “Rumo a Damasco”, in
. Théâtre complet, Paris, L’Arche, 1983,
v. 3, p. 209.
14
Anatol Rosenfeld, Teatro alemão, São Paulo, Brasiliense, 1968, p. 122. Nosso mestre lembra
ainda que, encerrado o pesadelo hitlerista, a organização renasceu dos escombros alemães e, nos
anos 60 do século XX, já contava com cerca de 100 associações e mais de 500 mil sócios.
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É impossível supervalorizar o efeito desse desastre político sobre os socialistas, em geral, e os militantes da Volksbühne, em particular. Mas, para além do
efeito psicológico, a guerra propriamente dita se encarregou de dar fim à própria
vida de quase todos eles: poetas, dramaturgos, atores e diretores.
Outro acontecimento, que em alguma medida reverteu a expectativa da esquerda alemã, foi a revolução na Rússia em outubro de 1917. Especialmente porque o tratado de paz assinado em separado pelos bolcheviques foi fundamental
para determinar o fim da guerra. Muitos veteranos, entre os quais Piscator, voltaram das trincheiras dispostos a repetir o feito soviético na Alemanha.
Como, nesse meio tempo, a esquerda do SPD já fundara o Partido Socialdemocata Independente da Alemanha (Unabhängige Sozialdemokratische Partei
Deutschlands – USPD) e a Liga Espartaquista, que em seguida (1918) formaria o
Partido Comunista da Alemanha (Kommunistische Partei Deutschlands – KPD),
mal assinado o Tratado de Versalhes, começa a revolução em Berlim, Munique e
demais centros operários da Alemanha. Nos meses que vão de dezembro de 1918
a maio de 1919, temos um rápido processo no qual o Kaiser abdica, é proclamada
a República em Weimar (porque em Berlim havia uma revolução nas ruas), os
socialistas assumem o poder republicano e tratam de massacrar a revolução –
massacre cujo ponto alto certamente é o assassinato de Rosa Luxemburg e Karl
Liebknecht (em janeiro). Munique foi o último reduto revolucionário a cair (em
maio) sob os ataques dos freikorps (uma espécie de esquadrão da morte), que
mais tarde vieram a integrar as SS de Hitler.
Depois de instaurada a “paz de Weimar”, assistiremos ao grande surto do segundo expressionismo em todas as artes, mas com especial destaque no teatro e
no cinema, gêmeos fraternos.
Georg Kaiser
Como já ficou dito, a primeira geração do teatro expressionista dera continuidade à “dramaturgia do ego” de Strindberg. Aproveitando-se do repertório já consolidado, sobretudo a estrutura de sonho-pesadelo, De manhã à meia-noite, de Georg
Kaiser (encenada em Frankfurt em 1917), dá um passo adiante no plano do conteúdo, em relação aos personagens mais abstratos e relativamente sem identidade da
geração anterior. O protagonista-narrador que tem um pesadelo é um bancário (caixa) e como tal é designado. Isto é: começam a interessar as determinações de classe
das experiências. O sonho se desenvolve em sete estações: no primeiro episódio, ele
é uma espécie de robô que trabalha enjaulado em seu guichê; depois de dar um
desfalque no banco, num campo coberto de neve, interpreta como a morte uma figura formada pela neve depositada sobre uma árvore; mais adiante aposta nas corridas de cavalo, onde burgueses (de cartola) também agem como autômatos; num
cabaré, uma das bailarinas tem perna-de-pau, outras caem de bêbadas e outras se
transformam em bruxas assustadoras; por fim ele acaba se suicidando.
O interesse dessa peça é sua ambiguidade: lida (ou encenada) segundo as convenções realistas, ela também faz sentido, embora perca muito de seu conteúdo.
Veja-se, por exemplo, a síntese de um leitor simpatizante, mas desavisado: De
manhã à meia-noite é a sombria história de um bancário cuja necessidade de se
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libertar da futilidade da civilização moderna o leva ao suicídio.15 Esse crítico não
percebeu que estamos diante de um pesadelo que demonstra ao infeliz sonhador
as seguintes verdades: primeiro, que não há saída individual para a prisão em que
se encontram os trabalhadores, mesmo os dos estratos superiores; e segundo: a
saída mágica (desfalque), na melhor das hipóteses, leva a participar da vida dissipada e sem propósito da burguesia (jogo e diversão) que no fim das contas é o
espelho – só na aparência desejável – da vida de autômatos que levam os trabalhadores. Como se vê, a Escola de Frankfurt não caiu do céu, pois aqui já se encontram os mais importantes temas dos melhores críticos da indústria cultural.
Assim como no caso do naturalismo, a experiência expressionista passa necessariamente pela encenação. E assim como as propostas de Antoine ainda constituem verdadeiro desafio para encenadores exigentes (Stanislavski será tratado em
capítulo à parte), as dos diretores e cenógrafos expressionistas constituem referência obrigatória para o teatro exigente até hoje. Com as peças e as recomendações do próprio Georg Kaiser, as seguintes conquistas se consolidaram, ao menos
na Alemanha: cenários abstratos, indeterminados, distorções e outros recursos capazes de sugerir atmosfera de pesadelo; poucos adereços, o estritamente essencial
(como cartolas para burgueses), com sugestões simbólicas; como os personagens
são também abstratos e representam grupos sociais (Kaiser chama-os de figuras),
os atores devem preferencialmente atuar de modo grotesco, suas características
devem ser enfatizadas pelos adereços, máscaras ou maquiagem; as cenas de multidão (também despersonalizadas) devem obedecer a movimentos rítmicos e mecânicos, cuidadosamente coreografados; como o diálogo é fragmentado (assim como
a ação é dividida em episódios), os atores devem desenvolver um estilo telegráfico
de interpretação, acompanhando o espírito do texto; enfim, como se pode ver nos
filmes expressionistas, o estilo de interpretação adotará inclusive critérios musicais, sobretudo os relativos a ritmo e andamento (há uma forte preferência pela
rapidez frenética e pelo staccato).16
Ernst Toller
Como ficou sugerido, uma das operações de Georg Kaiser no plano do conteúdo foi reduzir o grau de abstração do personagem herdado de Strindberg, ao adotar determinações de classe a partir das quais faz sentido a crítica aos rumos da
sociedade moderna. Já Ernst Toller, um veterano da revolução massacrada em
1919 (foi preso e condenado a vinte anos por crime de “alta traição”), tratou de
aprofundar essa orientação mais claramente política do segundo expressionismo.
Ainda na prisão, Toller escreveu As massas e o homem, encenada pela Volksbühne de Nuremberg em 1920 e pela de Berlim em 1921. Trocando essas informações
em miúdos, o público a que se dirigia a peça era constituído majoritariamente por
veteranos da revolução, como o próprio autor. Isso explica, por um lado, o sucesso
15
Apud J. L. Styan, Modern drama in theory and in practice 3. Expressionism and Epic Theatre,
Cambridge, Cambridge University Press, 1981, p. 48-50.
16
De acordo com o resumo do mesmo Styan, Modern drama in theory and in practice 3, op. cit.
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absoluto da peça e a projeção de Toller a maior dramaturgo alemão da era pré-brechtiana. Por outro lado, explica também a leitura inteiramente equivocada da crítica
e do público nos países onde a peça foi encenada, sempre com muito sucesso, como
é o caso da Inglaterra e dos Estados Unidos (país para onde seguiu o dramaturgo
exilado). Esse fenômeno se verificou ainda na Alemanha, uma vez que a peça acabou sendo vista (e criticada) também pelos inimigos de classe. A esses o próprio
dramaturgo respondeu, no prefácio à segunda edição da peça, nos seguintes termos:
pode ser que, para o crítico ligado à burguesia, que não conhece os proletários como nós [...],
a formulação das lutas ideológicas mais significativas e revolucionárias, que mexem com os
homens dos pés à cabeça, pareça uma simples figura de retórica ou uma frase de editorial. Mas
de uma coisa não há dúvida: o que, tanto na arte quando na ‘vida real’ soa ao burguês como uma
discussão tola em torno de palavras sem maior significado, para o proletário é a expressão mais
pura da sua tragédia e da sua aflição. Por outro lado, o que o burguês interpreta como um pensamento altamente profundo e filosófico, a própria essência da efervescência intelectual, para o
proletário não diz rigorosamente nada.17
Toller há de ter se indignado com o profundo grau de ignorância e insensibilidade, inclusive auditiva, em relação a uma peça que tentou simplesmente reconstituir, por meio das mais eloquentes estratégias discursivas, a história da revolução
então recente. Mas, com a distância histórica, é forçoso admitir que seria demais
pedir a críticos, provavelmente ignorando até o assassinato de Rosa Luxemburg,
que identificassem no enfrentamento entre as lideranças revolucionárias dos trabalhadores os movimentos da classe desde a luta pacifista (clandestina) até a derrota
e os debates em torno das estratégias de sobrevivência então em andamento.
Para remediar um pouco esse estado de opacidade em que o texto mergulhou
desde que se viu separado de seus originais e legítimos interlocutores, comecemos
pela descrição de sua estrutura e principais figuras (para já adotar a terminologia
de Georg Kaiser).
Dividida em sete episódios, As massas e o homem apresenta uma novidade que
indica a tendência a abandonar o campo da subjetividade, num retorno à objetividade, mas em nova chave, pois esse retorno traz consigo as conquistas formais do
momento anterior, como o foco narrativo e o clima de pesadelo. A novidade é a alternância entre os planos do sonho e da realidade: os quadros ímpares estão na realidade e os pares são pesadelos, ou sonhos muito reveladores devidamente indicados como tais. Mas o dramaturgo recomenda ao encenador que procure, no plano
da interpretação e demais recursos cênicos, confundir as fronteiras entre sonho e
realidade, evitando sobretudo os ambientes realistas. Nessa moldura, o protagonista
é o processo histórico alemão no período que vai do final da guerra ao massacre da
revolução. O que vemos por meio das figuras são seus diversos agentes. A primeira
estação mostra o processo vivido por uma Mulher (assim designada) que abandonou um casamento burguês para aderir à causa pacifista dos trabalhadores, enfrentando duas consequências de igual importância: foi denunciada pelo marido, alto
17
Ernst Toller, “Prefácio a As massas e o homem”, in Ulrich Merkel (org.) Teatro e política.
Expressisonismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983, p. 29.
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funcionário do Estado, por crime de alta traição, e ao mesmo tempo acaba sendo
aclamada como líder pelos trabalhadores mobilizados. Esse seu movimento não é
inteiramente radical, pois ela continua presa ao marido, sobretudo no plano sexual.
O segundo quadro é o maior dos pesadelos: na bolsa de valores, os banqueiros disputam as ações da indústria bélica que a certa altura começam a cair (isto é, a guerra está próxima do fim); numa derradeira tentativa de prolongá-la, e para tanto infundir ânimo nos soldados, os concorrentes se unem para impor ao Estado a criação
de um imenso bordel destinado aos soldados. E para dar início ao levantamento de
fundos, organizam um baile no qual já começam a arregimentar as prostitutas. No
terceiro quadro, uma assembleia de trabalhadores mostra como foi rápida a transição da luta pacifista para a revolução. No início prevalecem as intervenções em defesa da proposta de greve dos trabalhadores da indústria bélica para forçar o fim da
guerra. A Mulher lidera essa tendência até começar a ser enfrentada pelo Anônimo
que propõe revolução. No desfecho, o coro toma a palavra: venceu a proposta de
revolução. O quadro seguinte é o sonho da Mulher, no qual a revolução é vitoriosa
e ela tem que enfrentar suas consequências: seu marido é preso e condenado à morte; intercedendo sem sucesso em seu favor, ela pede para ser executada junto com
ele. No quinto quadro, temos a revolução propriamente dita. Estamos no quartelgeneral dos revolucionários, onde chegam sucessivas notícias de derrotas e as tendências representadas pela Mulher e pelo Anônimo agora se confrontam sobre questões como indivíduo versus massa, luta armada versus não violência, e assim por
diante. São as polêmicas entre os leninistas e os luxemburguistas. Estes últimos são
contra a violência por princípio, não aceitando nem mesmo a violência revolucionária, contra a qual defendem os direitos individuais; e aqueles defendem a luta
armada, falam em nome da massa, que acreditam ser capazes de conduzir. No final,
a revolução foi derrotada, os dirigentes estão cercados e se entregam cantando A
internacional. No quadro seguinte, há outro sonho da Mulher: numa jaula em um
sanatório, ela é observada por um enfermeiro e está sendo processada, isto é, tratada. Nesse “tratamento”, investigam-se vários tipos de culpas e quando todos concluem que o maior culpado é Deus, ela recebe alta. No quadro final, a Mulher está
presa, foi condenada à morte e aguarda a ordem de execução. Seu companheiro de
luta e adversário teórico, o Anônimo, consegue infiltrar-se na cela e apresenta-lhe
um plano de fuga, uma vez que seus companheiros de partido dispõem de um esquema eficiente. Ela o recusa porque não aceita métodos violentos e o plano inclui
a necessidade de matar um guarda. Assim sendo, ela é mesmo executada.
Pelo exposto, dá para perceber que há muito o que discutir sobre essa peça em
diversos planos. Para o que interessa agora, basta esclarecer dois pontos: formalmente, a Alemanha já encontrou a forma do teatro épico; criticamente, dadas as
condições de recepção dessa peça, já referidas, ela foi transformada numa espécie
de suma do teatro expressionista, e como tal é conhecida, especialmente nos países onde foi encenada. No entanto, por maiores que sejam a simpatia e o interesse
que a cercam, ela teve seu conteúdo inteiramente esvaziado; as referências a seu
respeito se prendem estritamente a seus “feitos” cênicos e de interpretação (individuais e ensembles). Uma síntese desse esvaziamento está cifrada em uma referência inglesa ao espetáculo assistido na Alemanha, segundo a qual, na cena da
prisão dos dirigentes revolucionários, esses teriam cantado A marselhesa. Para
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quem conhece história desde 1789, confundir A Internacional com A marselhesa,
e numa peça que tem como protagonista a revolução proletária, esse não é um
equívoco de pequenas consequências.
Piscator e Brecht: formas do teatro político
Piscator
Erwin Piscator serviu na guerra como soldado e viveu todo o seu horror nas
trincheiras. Nessa situação, organizou um grupo de teatro que tinha a função de
distrair os soldados. Após o tratado de paz com a Rússia bolchevique, teve oportunidade de se confraternizar com os soldados russos com os quais tomou conhecimento da forma de teatro criada pelos revolucionários, o agitprop, que aqui referiremos simplesmente como teatro de agitação. De volta a Berlim, tratou de
adaptar para a situação alemã, pré-revolucionária, aquele modelo relativamente
simples de intervenção estético-política: um curto esquete, de duração entre dez
e quinze minutos, sobre assunto da ordem do dia, era preparado e apresentado nas
ruas, em portas de escolas e fábricas, em assembleias de trabalhadores, comícios e
demais manifestações políticas. Os inúmeros grupos contavam com elenco relativamente pequeno, não trabalhavam com cenários nem figurinos, mas apenas com
adereços fáceis de transportar (e de carregar em caso de necessidade de fugir da
polícia, ocorrência comum), assim como procuravam combinar a interpretação,
tão esquemática quanto a expressionista, com números musicais (de preferência
coros aos quais os espectadores costumavam aderir) que iam dos hinos dos trabalhadores a paródias de canções conhecidas.
Após o massacre de 1918-1919, a modalidade naturalmente entrou em baixa e
Piscator tratou de se dedicar ao teatro “convencional”, isto é, profissional, vinculando-se à Volksbühne de Berlim (não podemos nos esquecer de que, com o SPD
no poder, a administração dos teatros públicos alemães ficou em suas mãos).
Quando começou a participar da direção do Deutsches Theatre, Piscator registrou:
“pela primeira vez eu tinha em mãos um teatro moderno, o teatro mais moderno
de Berlim, com todas as suas possibilidades”.18 Entre essas possibilidades estava a
da participação ativa do público trabalhador em todo o processo da encenação:
desde a escolha do texto, passando pela produção, até o debate após as apresentações (havendo casos de interferência durante o próprio espetáculo). Piscator relata
o divertido episódio ocorrido num sindicato em que, cansados de esperar pela
chegada de um painel, o espetáculo foi iniciado. Quanto o painel chegou, o espetáculo foi interrompido e fez-se uma assembleia para decidir se começavam tudo
de novo com o painel instalado ou continuavam do ponto em que estavam.
Como seria de esperar, Piscator levou para o teatro convencional a experiência
do teatro de agitação e, entre outras, encenou em 1924 a peça Bandeiras (sobre os
acontecimentos de Chicago que estão na origem das comemorações do Primeiro
de Maio), na qual foram vistas todas as experiências cênicas que apontavam para
o teatro épico, como os efeitos de multidão de Antoine, a rebelião que só ficou
18
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Erwin Piscator, Teatro político, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 67.
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sugerida em Os tecelões, assim como as assembleias e passeatas do teatro expressionista. Novamente a crítica conservadora foi à luta. Entre outras acusações, esse
espetáculo recebeu a de que não tinh a nenhuma qualidade dramática.
A polêmica sobre esse espetáculo na imprensa alemã tem interesse histórico:
pela primeira vez a qualificação “épico”, que até então tivera conotação negativa,
passou a ser assumida como positiva. Um dos responsáveis pelo feito foi o romancista Alfred Döblin, que saiu em defesa do espetáculo com o seguinte argumento,
reproduzido por Piscator no livro citado: colocando a peça num muito fértil terreno intermediário entre o romance e o drama, aposta que “será procurado pelos
que têm algo a dizer e representar, e aos quais não agrada a forma empedernida do
nosso drama que obriga a uma arte dramática também empedernida”. O nome
dessa forma, que vinha sendo procurada desde o “drama social” dos naturalistas,
podia mesmo ser “épica”, pois a descrevia muito bem.
Brecht
Quando Brecht entrou nessa história, portanto, até o conceito de teatro épico
já estava disponível, embora ainda estivesse longe de consolidado (se é que se
pode falar nisso). Tanto é assim, que seus primeiros textos teóricos, de meados
dos anos 1920, ainda participam da luta pelo direito à forma e pelo conceito.
Como Piscator, Brecht também conheceu pessoalmente a guerra, embora não
tivesse servido nas trincheiras. Estudante de medicina, foi recrutado como enfermeiro em 1917. O que viu, fez e entendeu no período está resumido na atroz Balada do soldado morto, em que, entre outras imagens chocantes, um médico dá o
diagnóstico “está bom pro serviço” a um soldado morto, mas ainda inteiro.
Terminada a guerra, participa ativamente da vida literária, teatral e política em
Munique e Augsburg, a ponto de ter sido eleito membro do Conselho (Soviet) de
Trabalhadores e Soldados de sua cidade durante a Revolução. Na condição de
delegado do Conselho de Augsburg, participou da República Soviética de Munique, liquidada em maio de 1919 pelos freikorps.
Suas duas primeiras peças teatrais, Baal (1918) e Tambores na noite (1920),
estão nitidamente vinculadas às experiências expressionistas. Mas o assunto da
comédia grotesca que é Tambores na noite é o mesmo da peça de Ernst Toller –
a revolução, nesse caso vista do ângulo dos sórdidos interesses de uma família
pequeno-burguesa. Baal experimenta, à maneira do primeiro expressionismo, a
estrutura em estações e, em relação a ela, Tambores na noite constitui um nítido
recuo formal, com a estrutura em três atos e o encadeamento dramático dos acontecimentos que envolvem os personagens grotescos. Mas como as marchas e contramarchas da guerra e da revolução são o pano de fundo, esta última acaba invadindo a cena, um pouco à maneira do ocorrido em Os tecelões de Hauptmann.
As experiências seguintes mostram o dramaturgo às voltas com o programa
comunista e, como as peças de Toller, também dependem da incorporação da história da República de Weimar para serem analisadas com menos parcialidade.
Estamos evidentemente nos referindo às peças didáticas que só muito recentemente (anos 80), a partir dos trabalhos de Reiner Steinweg, começam a ser mais
propriamente decifradas.
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A última delas é A exceção e a regra, que, por motivos enraizados na história
dos últimos dias da República de Weimar (entre eles o massacre dos trabalhadores
promovido pelo governo socialista no primeiro de maio de 1929), não chegou a
ser encenada na Alemanha nem mesmo pelos grupos comunistas.
Sem querer forçar demais, o teorema central da peça pode ser formulado a partir
da sentença de absolvição do réu: “O acusado, portanto, agiu em legítima defesa,
tanto no caso de ter sido realmente ameaçado quanto no caso de apenas sentir-se
ameaçado”. O acusado é um comerciante que assassinou seu empregado durante a
travessia de um deserto. A vítima se aproximara do patrão com um cantil para dar-lhe de beber. Seu temor era que o patrão morresse de sede, caso em que com certeza seria condenado por assassinato. Confundindo o cantil com uma pedra e certo de
que o trabalhador tinha todos os motivos para atentar contra a sua vida, o comerciante atira à queima-roupa. Examinada a situação, é legítimo concluir que para
o trabalhador não havia saída – estava condenado de antemão. Da mesma forma, o
patrão estava absolvido de antemão e é sobre esse beco sem saída que o dramaturgo
dialético espera que pensemos. Trata-se de examinar, ou pelo menos atinar com a
ideia de que o Poder Judiciário é expressão em última instância do medo que a classe dominante tem dos dominados. Esse medo se exacerba quando fica evidente a
violência necessária ao exercício da exploração, da qual também depende a realização de grandiosos projetos econômicos de ponta. Angustiado pelo enfrentamento
com os concorrentes e se esforçando para vencê-los (ou de preferência eliminá-los),
e aterrorizado pela simples ideia de que o trabalhador possa reagir a seus desmandos
com violência proporcional segundo a lei de Talião, não passa pela cabeça do comerciante que o trabalhador oprimido, sabendo-se sem nenhum direito, descarta a
priori qualquer tipo de reação violenta. Digamos que a situação chegou ao ponto no
qual não dá mais para a classe dominante confiar no poder da ideologia. Cometendo
o desatino de destruir quem lhe asseguraria a vitória sobre seus concorrentes, ainda
resta a esse assassino o consolo de verificar que a Justiça de Classe está a postos para
ao menos evitar que lhe chegue a cobrança do preço a pagar por seu crime. Por
certo não se trata de atribuir a Brecht nenhum poder premonitório. Mas não é preciso ser especialista na história do nazismo para ver que foi mais ou menos isso que
aconteceu com a ascensão de Hitler, cujas providências assassinas de amplo alcance
foram todas sacramentadas por uma serena estrutura judicial, como ficou amplamente demonstrado depois da guerra pelo Tribunal de Nuremberg.
Posta em perspectiva da história do teatro que aqui nos interessa, A exceção e
a regra dá continuidade à discussão sobre a violência iniciada por Hauptmann e
ampliada por Toller. O passo adiante de Brecht consiste em mostrar as prerrogativas legais da violência exercida pela classe dominante.19
19
Suzana Mello defendeu dissertação de mestrado sobre essa peça de Brecht, na qual mostra até
mesmo o diálogo crítico que o dramaturgo desenvolve com as teorias de Carl Schmitt. É de extremo
interesse sua análise indireta do papel socialdemocrata na configuração dos paradoxos políticos que
Brecht examina (cf. Suzana Campos Albuquerque Mello, “A exceção e a regra”, de Bertolt Brecht ou
a exceção como regra: uma leitura. 2009. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humana, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009).
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40 Literatura e Sociedade
Todos têm conhecimento da sanha genocida de Hitler. O que ficou restrito ao
campo da esquerda foram as suas investidas contra os partidos dos trabalhadores
e todas as suas organizações. Nas palavras de Eve Rosenhaft:
bares, diretórios de partidos, sindicatos, jornais, livrarias, salas de leitura, clubes, hospitais,
escolas, centros de, assistência social e teatros que fizeram o tecido da cultura de Weimar foram
os primeiros objetos da onda de vandalismo oficial realizada em nome da ordem, da decência
pública e da economia.20
Como também se sabe, Brecht não pagou para ver: em 28 de fevereiro de 1933,
dia seguinte ao incêndio do Reichstag, fugiu da Alemanha com a família. Hitler
assumiu o poder nesse mesmo dia.
No exílio, Brecht escreve (ou conclui) suas obras primas, que também são as
obras primas do teatro épico. Dessas cabe destacar A Santa Joana dos Matadouros
que, embora escrita entre 1929 e 1930 e tendo partes apresentadas em rádio em
1932, integra esse conjunto e tem impressionante atualidade. Sobre esse ponto,
basta referir a permanência em cartaz da produção brasileira da Companhia do
Latão por cerca de um ano.
Conforme um crítico bem informado, Brecht pôs o capitalismo no centro dessa peça. Avançando um pouco, diríamos que ele examinou a crise de superprodução (que em 2008 voltou à ordem do dia) e seus efeitos: paralisia da produção,
transformação de populações inteiras de trabalhadores em item supérfluo (excluídos, como se diz atualmente) e a necessidade de pensar na própria sobrevivência
da espécie humana, ameaçada pelos exploradores da mais-valia.
A partir da produção paralisada, somos expostos a episódios que se passam na
esfera da circulação – a das mercadorias encalhadas que são tanto a força de trabalho como a carne enlatada ou rebanhos inteiros. Temos ao mesmo tempo a crise
de abastecimento, que em linguagem não especializada pode ser simplesmente
chamada de produção da fome em escala industrial. Tudo isso se passa em Chicago, que desde o século passado concentra na bolsa de mercadorias o essencial dos
negócios mundiais no ramo da agricultura. É lá que se decidem, em curto, médio
e longo prazos, o destino dos produtores agrícolas de todo o mundo e a fome ou
o abastecimento de populações inteiras.
Nesse quadro, em que o capital (ou “sujeito automático”, segundo alguns contemporâneos de Marx) parece assumir vida própria, todos os envolvidos pela crise
se comportam como baratas tontas. Ninguém entende o que se passa, aproveitadores ou vítimas; nem mesmo o partido (comunista) que deveria ter a capacidade de
formular alguma estratégia de saída para os trabalhadores. Como a luta que se abre
entre exploradores e explorados é vencida pelos primeiros (que apelam para a violência máxima), e como, no mesmo processo, esses encontram a saída para a sua
crise (com direito a intervenção do Estado), abre-se uma situação na qual deverá ser
20
Eve Rosenhaft, “Brecht’s Germany: 1898-1933”, in Peter Thomson e Glendyr Sacks, The
Cambridge Companion to Brecht, Cambridge University Press, 1994, p. 20.
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INÁ CAMARGO COSTA
Transições 41
ampliado o papel da organização religiosa, uma vez que a saída encontrada pelo
capital envolve uma revolução tecnológica que deverá produzir ainda maior desemprego, mais fome e mais miséria. Por isso, Joana, que morre durante os enfrentamentos da guerra civil, é canonizada pelos capitalistas e seus aliados na imprensa.
Não se tem notícia de outra obra teatral no século XX com o mesmo grau de
ambição artística e intelectual. Nessa peça, Brecht mobiliza todos os recursos da
forma épica, inteiramente a serviço do conteúdo. Por isso, A Santa Joana dos Matadouros pode ser pensada como uma síntese do teatro épico moderno.
O teatro épico pode agora ser definido como a forma teatral encontrada, num
processo de aproximadamente quarenta anos, por dramaturgos e encenadores de
alguma forma ligados às lutas dos trabalhadores, para expor o mundo segundo a
experiência dos trabalhadores.
Com Hauptmann vimos a forma do drama burguês operando como um obstáculo real para a exposição da luta ocorrida na Silésia. Ibsen questionou objetivamente a universalidade do conceito burguês de indivíduo, mostrando que ele exclui pelo menos a metade feminina da humanidade. Tchekhov mostrou que a
burguesia e sua forma teatral não tinham futuro. Strindberg descobriu com o drama de estações uma forma de romper com a objetividade do drama, abrindo o
caminho para o aparecimento do foco narrativo e, com ele, a possibilidade de ultrapassar as limitações da narrativa dramática, que exige entre outras determinações o encadeamento causal dos acontecimentos. As duas gerações do expressionismo consolidaram a forma épica e a segunda mostrou o seu interesse para os
trabalhadores na exposição de seus próprios assuntos. Brecht constitui a síntese
desse processo e por isso o conceito de teatro épico vinculou-se, com justiça, a seu
nome, porque sua obra teatral foi acompanhada de uma permanente militância
crítica e teórica, por meio da qual o conceito se consolidou.
Para quem se dedica ao assunto tanto tempo depois, entretanto, é bom lembrar
da observação do mesmo Brecht num ensaio muito a propósito intitulado “O teatro
como meio de produção”: “o teatro épico pressupõe, além de um certo nível técnico,
um poderoso movimento social, interessado na livre discussão de seus problemas
vitais e capaz de defender esse interesse contra todas as tendências adversárias”.21
Esse alerta é para introduzir o problema central do nosso tempo: depois de
todas as derrotas sofridas pela classe trabalhadora ao longo do século XX, não se
pode esperar que o conhecimento dessa história esteja disponível e muito menos
organizado em livros. Ao contrário, em vista dos direitos do vencedor, as histórias
do teatro no século XX são escritas com apoio em outros critérios e, no âmbito da
forma, estão presas a inúmeras atualizações dos pressupostos do drama (já que a
forma propriamente dita está inteiramente ultrapassada, mesmo no campo conservador). Com os seus pressupostos, entretanto, continuam sendo cultivadas as
expectativas de ordem dramática que dão régua e compasso a críticos e historiadores, com os quais também temos muitas contas a acertar.
21
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Bertolt Brecht, Escritos sobre teatro, Buenos Aires, Nueva Visión, 1976, p. 135.
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42 Literatura e Sociedade
A ÁREA CINZENTA:
IBSEN E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO*
FRANCO MORETTI
Universidade de Stanford
Resumo
O autor mostra como a moralidade flexível e os imperativos
capitalistas do fin-de-siècle burguês são apreendidos nas más
ações dos protagonistas de Ibsen.
Abstract
The author shows how flexible morality and capitalist imperatives
of the bourgeois fin-de-siècle are captured in the misdeeds of Ibsen’s
protagonists.
Palavras-chave
Ibsen;
sociedade
burguesa;
imperativos
capitalistas.
Keywords
Ibsen; bourgeois
society;
capitalist
imperatives.
* Ensaio originalmente publicado em New Left Review, Londres, n. 61, p. 117-131, jan.-fev.
2010. Tradução de Edu Teruki Otsuka. Cumpre registrar aqui um agradecimento especial à New Left
Review, que gentilmente concedeu à Literatura e Sociedade a permissão para publicar a tradução
deste ensaio.
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FRANCO MORETTI
I
A área cinzenta: Ibsen e o espírito do capitalismo 43
C
onsidere-se o universo social do ciclo de doze peças de Ibsen: construtores
navais, industriais, financistas, comerciantes, banqueiros, construtores imobiliários, diretores de empresas, juízes, gerentes, advogados, médicos, diretores de escolas, professores, engenheiros, pastores, jornalistas, fotógrafos, arquitetos, contadores, balconistas, editores. Nenhum outro escritor concentrou-se tão
obstinadamente no mundo burguês. Mann; mas em Mann há uma dialética constante entre burguesia e artista (Thomas e Hanno, Lübeck e Kröger, Zeitblom e
Leverkuhn), e em Ibsen não exatamente, seu único grande artista – o escultor
Rubek, de Quando despertamos de entre os mortos, que vai “trabalhar até o dia em
que morrer” e adora ser “senhor e mestre de seu material” – é apenas como todos
os outros.1
Agora, muitos historiadores têm dúvidas sobre o conceito de burguesia: se um
banqueiro e um fotógrafo, ou um construtor naval e um pastor, são realmente parte da mesma classe. Em Ibsen, eles o são; ou, pelo menos, compartilham os mesmos espaços e falam a mesma linguagem. Não há nada da camuflagem semântica
inglesa da classe “média” aqui; não se trata de uma classe que está no meio, ameaçada por cima e por baixo, e inocente quanto ao curso do mundo: esta é a classe
dominante, e o mundo é o que é porque ela o fez assim. É por isso que o “ajuste de
contas” de Ibsen com o século XIX – uma de suas metáforas preferidas – é tão empolgante: enfim, o que a burguesia trouxe ao mundo?
Retornarei a isso, é claro. Por ora, deixem-me dizer como é estranho ter um
afresco burguês tão amplo – e quase nenhum trabalhador nele (exceto empregados domésticos). Os pilares da sociedade, a primeira peça do ciclo, abre-se com
uma discussão sobre segurança e lucros entre um líder sindical e um diretor; e,
1
Todas as citações de Ibsen vêm de The complete major prose plays, com tradução e introdução de
Rolf Fjelde, Nova York, 1978. Muito obrigado a Sarah Allison pela ajuda com o original norueguês.
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44 Literatura e Sociedade
embora o tema nunca seja o centro do enredo, mantém-se visível até o fim, e é
decisivo para seu desfecho. Mas então o conflito entre capital e trabalho desaparece do mundo de Ibsen, mesmo que, em geral, nada desapareça aqui: Espectros é o
título ibseniano perfeito, porque muitos de seus personagens são espectros: a figura secundária de uma peça retorna como protagonista em outra, ou o contrário;
uma esposa abandona a casa em uma peça, e outra permanece até o amargo fim na
peça seguinte. É como um experimento de vinte anos que ele está realizando:
muda-se uma variável aqui e ali para observar o que ocorre com o sistema. Mas
não há trabalhadores no experimento – mesmo que os anos do ciclo, 1877-1899,
sejam aqueles em que os sindicatos, os partidos socialistas e o anarquismo estão
mudando a face da política europeia.
Não há trabalhadores porque o conflito em que Ibsen quer concentrar-se não
é entre a burguesia e outra classe, mas o conflito interno à própria burguesia. Quatro obras deixam isso particularmente claro: Os pilares da sociedade; O pato selvagem; Solness, o construtor; John Gabriel Borkman. Todas as quatro têm a mesma
pré-história, em que dois sócios e/ou amigos iniciam uma luta no curso da qual
um deles acaba financeiramente arruinado e psicologicamente mutilado. Competição intraburguesa como combate mortal: e como é a vida que está em jogo, o
conflito facilmente se torna cruel ou desonesto; no entanto, e isso é importante, é
cruel, injusto, equívoco, sujo – mas raramente ilegal de fato. Em alguns poucos
casos é também isso – as falsificações em Casa de bonecas, a contaminação das
águas em Um inimigo do povo, as manobras financeiras de Borkman – mas, em
geral, o que é característico das transgressões em Ibsen é que elas habitam uma
enganadora área cinzenta cuja natureza é nunca ser completamente clara.
Essa área cinzenta é a grande intuição de Ibsen sobre a vida burguesa; deixem-me dar alguns exemplos. Em Os pilares da sociedade, há rumores de que
ocorreu um furto na firma de Bernick; ele sabe que os rumores são falsos, mas
sabe também que irão salvá-lo da falência, e, assim, ele deixa que os rumores circulem, embora arruínem a reputação de um amigo; mais tarde, ele usa a influência
política de maneira quase ilegal, para proteger investimentos que são eles mesmos
quase ilegais. Em Espectros, o pastor Manders convence a Sra. Alving a não fazer
um seguro de seu orfanato, para que a opinião pública não pense que “nem você
nem eu temos fé suficiente na Divina Providência”, e, sendo a divina providência
o que é, o orfanato, é claro, acaba destruído por um incêndio – um acidente, mais
provavelmente um incêndio provocado – e tudo é perdido. Há uma “armadilha”
que Werle pode (ou não) ter armado para seu sócio na pré-história de O pato selvagem, e o negócio incerto entre Solness e seu sócio na pré-história de Solness, o
construtor; onde também há uma chaminé que deveria ser consertada, não o é, e a
casa é consumida por um incêndio – mas, diz o especialista do seguro, por uma
razão inteiramente diferente...
É assim que se parece a área cinzenta: reticência, deslealdade, difamação, negligência, meias-verdades. Até onde consigo ver, não há um termo geral para
descrever essas ações, o que à primeira vista é frustrante; pois muitas vezes achei
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FRANCO MORETTI
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que a análise de palavras-chave é iluminadora para compreender a dinâmica dos
valores burgueses: útil, sério, indústria, conforto, honesto. Tome-se “eficiência”:
uma palavra que existe há séculos, e sempre significou, como diz o Oxford English
Dictionary, “o fato de ser uma causa eficiente”: causalidade. Mas então, em meados do século XIX, subitamente o significado muda, e eficiência começa a indicar
“a aptidão ou o poder de realizar [...] o propósito intencionado; o poder adequado”. Adequado; ajustado ao propósito: não mais a capacidade de causar algo em
geral, mas de fazê-lo de acordo com um plano, e sem perda de tempo; o novo significado é uma miniatura da racionalização capitalista. “A linguagem é o instrumento por meio do qual o mundo e a sociedade se ajustam”, escreve Benveniste,
e ele está certo; mudança semântica, desencadeada pela mudança histórica; palavras acertando o passo com as coisas.2 Essa é a beleza das palavras-chave: elas são
uma ponte entre a história material e a intelectual.
Mas, com a área cinzenta, temos a coisa, não a palavra. E nós realmente temos a coisa: um dos modos pelos quais o capital se acumula é invadindo cada vez
mais novas esferas da vida – ou mesmo criando-as, como no mundo paralelo das
finanças – e nesses novos espaços as leis são mais incertas, e, num átimo, o comportamento pode se tornar profundamente equívoco. Equívoco: não ilegal, mas
não exatamente correto tampouco. Pense-se em um ano atrás (ou hoje): era legal
que os bancos tivessem uma proporção de risco de ativo [risk-to-asset] tão absurda? Sim. Era “correto”, em qualquer sentido concebível da palavra? Claramente
não. Ou pense-se na Enron: nos meses que levaram à sua falência, Kenneth Lay
vendeu ações a preços que estavam grosseiramente supervalorizados, como ele
sabia muito bem: na causa criminal, o governo não o processou; na causa civil o
fez, porque o nível de provas era mais baixo.3 O mesmo ato é e não é indiciado:
isso é quase barroco, com seu jogo de luz e sombra, mas típico: a lei ela mesma
reconhece a existência de uma área cinzenta. Faz-se algo porque não há norma
explícita contra isso; mas não parece correto, e o furtivo temor de ser responsabilizado permanece e instiga infindáveis encobrimentos. Cinza sobre cinza: um
ato dúbio, envolvido em equívocos. “A conduta substantiva pode ser um tanto
ambígua”, disse um promotor alguns anos atrás – ambígua por causa da “névoa
da financeirização”, dos “dados opacos”, dos “recursos obscuros”, do “sistema
bancário na sombra” [shadow banking]: névoa, opaco, obscuro, sombra: são todas imagens de inextricável preto e branco. O ato inicial pode ser ambíguo, “mas
a conduta obstrutora pode ser clara”.4 O primeiro movimento pode permanecer
para sempre indecidível: o que o segue – a “mentira”, como Ibsen a chama – isso
é inequívoco.
2
Émile Benveniste, “Remarks on the function of language in Freudian theory”, in Problems in
General Linguistics, Miami, 1971, p. 71.
3
Ver Kurt Eichenwald, “Ex-Chief of Enron Pleads Not Guilty to 11 Felony Counts”, New York
Times, 9 jul. 2004.
4
Jonathan Glater, “On Wall Street Today, a Break from the Past”, New York Times, 4 maio 2004.
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46 Literatura e Sociedade
O ato inicial pode ser ambíguo: é assim que as coisas começam na área cinzenta. Uma oportunidade imprevista surge por si mesma: um incêndio; um sócio expulso do quadro; rumores; a descoberta de papéis perdidos de um rival.
Acidentes. Mas acidentes que se repetem com tanta frequência que se tornam o
fundamento estrutural, oculto, da vida moderna. O evento inicial foi pontual,
irrepetível; a mentira perdura por anos ou décadas; torna-se “vida”. É provavelmente por isso que não há palavras-chave aqui: assim como alguns bancos são
grandes demais para quebrar, a área cinzenta é abrangente demais para ser reconhecida; ela lança uma sombra escura sobre o valor que é a justificação da
burguesia em face do mundo: a honestidade. A honestidade é para a burguesia
o que era a honra para a aristocracia; etimologicamente, até deriva de honra (e
há um trait d’union entre elas na “castidade” feminina – honra e honestidade a
um só tempo – tão central nos inícios do drama burguês). Honestidade é o que
distingue a burguesia das outras classes: a palavra do comerciante, tão boa
quanto ouro; transparência (“Posso mostrar meus livros para qualquer um”);
moralidade (a falência em Mann como “vergonha, desonra pior que a morte”).
Mesmo a extravagância de 600 páginas de McCloskey sobre as Virtudes burguesas – que atribui à burguesia coragem, temperança, prudência, justiça, fé, esperança, amor –, mesmo ali, as páginas cruciais são sobre a honestidade. Honestidade, diz a teoria, é a virtude burguesa porque está perfeitamente adaptada à
economia de mercado: transações mercantis exigem confiança, a honestidade a
fornece, e o mercado a recompensa. A honestidade funciona. “Fazendo o mal
nós nos damos mal” – perdemos dinheiro – conclui McCloskey, “e nos saímos
bem fazendo o bem”.5
Fazendo o mal nós nos damos mal – isso não é verdade no teatro de Ibsen,
nem fora dele. Aqui temos um seu contemporâneo, um banqueiro alemão, a descrever as “maquinações indecifráveis” do capital financeiro:
Os círculos banqueiros foram e são dominados por uma moralidade surpreendente, muito
flexível. Certos tipos de manipulação, que nenhum bom Bürger aceitaria em boa consciência
[...] são aprovados por essas pessoas como esperteza, como evidência de astúcia. A contradição
entre as duas moralidades é irreconciliável.6
Maquinações, manipulações, nenhuma boa consciência, moralidade flexível;
a área cinzenta. Dentro dela, uma “irreconciliável contradição entre duas moralidades”: palavras que ecoam quase literalmente a ideia hegeliana de tragédia – e
Ibsen é um dramaturgo. Será isso que o leva à área cinzenta? O potencial dramático de um conflito entre o honesto Bürger e o financista intrigante?
5
Deirdre McCloskey, The bourgeois virtues: ethics for an Age of Commerce, Chicago, 2006.
Citado em Richard Tilly, “Moral Standards and Business Behaviour in Nineteenth-Century Germany and Britain”, in Jürgen Kocka; Allan Mitchell, ed., Bourgeois society in Nineteenth-Century Europe,
Oxford, 1993, p. 190-1.
6
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FRANCO MORETTI
A área cinzenta: Ibsen e o espírito do capitalismo 47
II
A cortina sobe, e o mundo é sólido: salas cheias de poltronas, estantes, pianos,
sofás, escrivaninhas, lareiras; as pessoas se movem com calma, cuidadosamente,
falando em voz baixa. Sólido. Velho valor burguês: a âncora contra os caprichos
da Fortuna – tão instável em cima de sua roda e suas ondulações, vendada, com
as roupas sopradas pelo vento... Observem-se os bancos construídos por volta do
tempo de Ibsen: colunas, urnas, sacadas, esferas, estátuas – gravidade. Então a
ação se desdobra, e não há negócio que esteja a salvo da ruína: nenhuma palavra
que não seja oca em seu cerne. As pessoas estão preocupadas. Doentes. Morrendo.
É a primeira grande crise do capitalismo europeu: a longa depressão de 18731896, que as doze peças de Ibsen acompanham quase ano a ano.
A crise revela as vítimas do século burguês: I vinti: “os vencidos”, como Verga
intitulou seu ciclo de romances, um ano após os Pilares. Krogstad, em Casa de
bonecas; o velho Ekdal e seu filho, em O pato selvagem; Brovik e seu filho, em
Solness; Foldal e sua filha, mas também Borkman e seu filho, em John Gabriel
Borkman. Ekdal e filho, Brovik e filho... Nesse quarto de século naturalista, o fracasso flui de uma geração para a outra, como a sífilis. E não há redenção para os
vencidos de Ibsen: vítimas do capitalismo, sim, mas vítimas burguesas, feitas exatamente do mesmo barro de que são feitos seus opressores. Assim que a luta termina, o perdedor é contratado pelo homem que o arruinou e é transformado num
arlequim grotesco, em parte parasita, em parte trabalhador, confidente, bajulador.
“Por que você nos colocou nesse cubículo onde todos estão errados?”, perguntou-me certa vez uma aluna sobre O pato selvagem. Ela estava certa, é irrespirável.
Contradição irreconciliável entre o burguês honesto e o fraudulento? Não é
essa a questão de Ibsen. Alguém foi desonesto na pré-história de muitas peças,
mas seu antagonista era frequentemente mais estúpido do que honesto – e, de
qualquer modo, ele não mais é honesto nem antagonista. O único conflito entre o
bom Bürger e o financista corrupto está em Um inimigo do povo: a pior peça de
Ibsen (e, é claro, aquela que os vitorianos amaram imediatamente). Mas, em geral,
“limpar” a burguesia de seu lado sujo não é o projeto de Ibsen; é o de Shaw. Vivie
Warren: que abandona sua mãe, seu namorado, seu dinheiro, tudo, e – “lança-se
ao trabalho”, como diz a última rubrica. Quando Nora abandona tudo no final de
Casa de bonecas, ela caminha para dentro da noite, não para um bom emprego que
esperasse por ela.
O que arrasta Ibsen para a área cinzenta? Não a colisão entre uma boa burguesia e uma má. Não um interesse pelas vítimas, com certeza. Os vitoriosos? Tome-se
o velho Werle, em O pato selvagem. Werle ocupa a mesma posição estrutural de
Claudius em Hamlet, ou Filipe em Don Carlos: ele não é o protagonista da peça (é
o seu filho Gregers – assim como Hamlet ou Carlos), mas certamente é quem tem
mais poder; ele controla todas as mulheres no palco; compra a cumplicidade das
pessoas ou mesmo a afeição; e faz tudo isso sem ênfase, de maneira quase atenuada. Possivelmente, por causa de seu passado. Muitos anos antes, após uma “investigação incompetente”, seu sócio Ekdal “realizou uma derrubada ilegal em pro-
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48 Literatura e Sociedade
priedade estatal”.7 Ekdal arruinou-se; Werle sobreviveu, depois prosperou. Como
de costume, o ato inicial permanece ambíguo: a derrubada foi realmente fruto da
incompetência? Foi uma fraude? Ekdal agiu sozinho? Werle o sabia? Ele preparou uma armadilha para Ekdal, como Gregers sugere? A peça não o diz. “Mas o
fato permanece”, diz Werle. “Ele [Ekdal] foi condenado e eu, absolvido.” Sim,
responde seu filho: “Sei que nenhuma prova foi encontrada”. E Werle: “Absolvição é absolvição”.
Há um texto de Barthes, “Racine é Racine”, sobre a arrogância da tautologia:
esse tropo “que resiste ao pensamento”, como “um dono de cão puxando a correia”. Puxar a correia é certamente o estilo de Werle, mas não é essa a questão
aqui. Absolvição é absolvição, ou seja: o resultado de um julgamento é um ato
legal – e legalidade não é justiça: é uma noção formal, não uma noção ética. Werle
aceita essa contradição potencial, e Ibsen também: uma espécie de injustiça legal
é para ele quase intrínseca ao sucesso burguês. Outros escritores reagem de modo
diferente. Tome-se a obra-prima da Grã-Bretanha burguesa. Um dos personagens
principais de Middlemarch é um banqueiro, Bulstrode, que começa sua carreira
enganando uma mãe e sua filha quanto à herança dela – sem contudo ficar “em
perigo de punição legal” por isso. Um banqueiro – na verdade, um banqueiro
profundamente cristão – na área cinzenta: um triunfo da ambiguidade burguesa,
intensificada ainda mais pelo uso que George Eliot faz do estilo indireto livre,
tornando quase impossível encontrar um ponto de vista a partir do qual criticar
Bulstrode (uma consequência desse estilo que foi famosamente denunciado no
processo de Madame Bovary):
Os lucros extraídos de almas perdidas – onde traçar a linha na qual eles começam nas transações humanas? Até para Deus, não foi esta a maneira de salvar Seus eleitos? [...] Quem usaria
dinheiro e posição social melhor do que ele tencionava fazer? Quem poderia suplantá-lo na
execração de si mesmo e na exaltação da causa de Deus?8
Um triunfo da ambiguidade – se Eliot tivesse parado aqui. Mas ela não conseguiu parar. Um pequeno trapaceiro, Raffles, conhece a velha história, e por uma
série de coincidências esse “passado incorporado”, na maravilhosamente ibseniana
7
Como Sarah Allison me assinalou, essa “investigação incompetente” é uma área muito cinzenta:
a palavra uetterrettelig é definida como “falso, equivocado” no Norsk-Engelsk Ordbog de Brynildsen
(Kristiania 1917) e traduzida como “enganador” por Michael Meyer em sua edição (Londres, 1980);
“impreciso” na versão de Christopher Hamptom (Londres, 1980); “fraudulento” na de Dounia B.
Christiani (Nova York, 1980); “desastrosamente falso” na de Brian Johnston (Lyme, NH, 1996); e
“enviesado” na de Stephen Mulrine (Londres, 2006). A etimologia – um prefixo negativo ‘u’ + ‘efeter’
(= ‘depois’) + ‘rette’ (= ‘correto’) + o sufixo adjetival ‘lig’ – indica algo, ou alguém, em quem não se
pode confiar como estando certo: ‘equívoco’, ‘não confiável’ ou ‘pouco digno de confiança’ parecem
ser os melhores equivalentes para uma palavra na qual uma falta de confiabilidade objetiva nem
assume nem exclui o intento subjetivo de fornecer informação falsa.
8
Eliot, Middlemarch, Nova York, 1994, p. 615, 616, 619. [Eliot, Middlemarch, trad. de Leonardo
Fróes, Rio de Janeiro, Record, 1998, p. 650, 653.]
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FRANCO MORETTI
A área cinzenta: Ibsen e o espírito do capitalismo 49
formulação de Eliot, localiza tanto Bulstrode quanto a criança.9 Enquanto está na
casa de Bulstrode para chantageá-lo, Raffles adoece; Bulstrode chama o médico,
recebe suas prescrições e as segue; mais tarde, no entanto, ele deixa que a empregada se descuide delas – ele não instiga: apenas deixa acontecer –, e Raffles morre.
“Era impossível provar que [Bulstrode] tivesse feito alguma coisa para apressar a
partida da alma daquele homem”,10 diz o narrador. “Impossível provar”; “nenhuma prova foi encontrada”. Mas não precisamos de provas; nós vimos Bulstrode
consentir no assassínio. O cinzento se torna negro; a desonestidade foi forçada a
deitar sangue. “Forçada”, porque é uma sequência tão incrivelmente implausível
que é difícil acreditar que alguém como Eliot, que tinha um profundo respeito
intelectual pela causalidade, poderia realmente tê-la escrito.
Mas ela o fez: e, quando uma grande escritora contradiz seus próprios princípios de maneira tão aberta, normalmente algo importante está em jogo. Provavelmente, essa injustiça protegida pelo manto da legalidade – Bulstrode, culpado,
rico e ileso por seus antigos atos –, isso é para Eliot uma visão sombria demais de
como a sociedade funciona. Vejam, é de fato assim que o capitalismo funciona:
troca desigual, “equalizada” pelos contratos; expropriação e conquista, reescritas
como “melhoramento” e “civilização”. O passado pode tornar o presente correto.
Mas a cultura vitoriana – mesmo em seu melhor: “um dos poucos livros ingleses
escritos para adultos”, como disse Woolf sobre Middlemarch – não pode aceitar a
ideia de um mundo de injustiça perfeitamente legal. A contradição é insuportável:
a legalidade deve ser justa, ou a injustiça, criminosa: de um modo ou de outro,
forma e substância podem alinhar-se, fazendo que o capital seja eticamente compreensível. É isso que o vitorianismo é: relações sociais não podem ser sempre
moralmente boas – mas podem ser moralmente legíveis. Sem ambiguidade.
Ibsen não precisa disso. Em Os pilares da sociedade há uma pista nessa direção,
quando o “passado incorporado” de Bernick embarca em um navio que ele sabe
que vai afundar, e contudo ele o deixa navegar, do mesmo modo como Bulstrode
com a empregada. Mas então ele modifica o final, e nunca faz algo assim outra
vez. Ele pode olhar para a ambiguidade burguesa sem ter de resolvê-la: “signos
contra signos”, como se diz em A dama do mar: signos morais que dizem uma
coisa, e signos legais que dizem outra.
Signos contra signos. Mas, assim como não há conflito real entre as vítimas de
Ibsen e seus opressores, assim também aquele “contra” não indica uma oposição
no sentido dramático convencional. É mais como um paradoxo: injustiça legal;
legalidade injusta: o adjetivo range contra o substantivo, como giz no quadro negro. Enorme desconforto, mas nenhuma ação. O que leva Ibsen à área cinzenta?
Isto: ela revela com absoluta clareza a grande dissonância irresolvida da vida burguesa. Dissonância, não conflito. E irresolvida: estridente, perturbadora – Hedda
e suas pistolas – precisamente porque não há alternativas. O pato selvagem, escreve Adorno, o grande teórico da dissonância, não resolve a contradição, mas arti-
9
Eliot, Middlemarch, op. cit., p. 523.
Eliot, Middlemarch, op. cit., p. 717. [Trad. cit., p. 753.]
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cula sua natureza insolúvel.11 É daqui que vem a claustrofobia ibseniana: o cubículo em que todos estão errados: a paralisia, para usar a palavra-chave do jovem
Joyce, que foi um de seus maiores admiradores. É a mesma prisão de outros inimigos jurados da ordem pós-1848: Baudelaire, Flaubert, Manet, Machado, Mahler. Tudo o que eles fazem é criticar a vida burguesa; tudo o que eles veem é a vida
burguesa. Hypocrite lecteur, – mon semblable, – mon frère!
III
Até aqui, considerei o que os personagens de Ibsen “fazem” nas peças. Agora
vou me voltar para como eles falam, e especialmente para como eles usam metáforas. Os primeiros cinco títulos do ciclo – Os pilares, Espectros, Um inimigo do
povo, O pato selvagem – são todos metáforas; e (com uma possível exceção) são
todos, de um modo ou de outro, ilusões enganadoras. Tomem-se Os pilares da
sociedade. Pilares: Bernick e seus sócios: exploradores que a metáfora transforma
em benfeitores, numa reversão semântica típica da ideologia. Então um segundo
sentido emerge: o pilar é aquela (falsa) “credibilidade moral” que salvou Bernick
da falência no passado, e de que ele agora precisa de novo para proteger seus investimentos. E então, nas últimas linhas da peça, mais duas transformações: “Outra coisa que aprendi”, diz Bernick, é que “vocês mulheres é que são os pilares da
sociedade”. E Lona: “Não, meu caro – o espírito da verdade e o espírito da liberdade –, esses são os pilares da sociedade”.
Uma palavra; quatro significados totalmente diferentes. Aqui, a metáfora é
flexível: está lá, como uma espécie de sedimento semântico preexistente, mas os
personagens podem adaptá-los para suas próprias visões sobre as coisas. Em outro
lugar, é um signo mais ameaçador de um mundo que se recusa a morrer:
Quase acredito que somos espectros, todos nós, Pastor. Não é só o que herdamos de nossos
pais e mães que continua retornando em nós. São todos os tipos de antigas doutrinas, opiniões
e pensamentos mortos, esse tipo de coisa. Não vivem em nós; mas se agarram a nós de qualquer jeito, e não conseguimos nos livrar deles. Basta pegar um jornal, e é como se eu visse
espectros deslizando entre as linhas. Eles devem estar assombrando nosso país inteiro, espectros por toda parte...
Eles se agarram e não podemos nos livrar deles... Um personagem de Ibsen
pode fazê-lo:
Nossa casa nunca foi nada mais que um quarto de brinquedos. Fui sua boneca-esposa,
como fora boneca-filha na casa de meu pai. E os nossos filhos, por sua vez, têm sido as minhas
bonecas. Eu achava engraçado quando você brincava comigo, como eles acham engraçado que
eu brinque com eles. Eis o que foi o nosso casamento, Torvald.12
11
Theodor W. Adorno, Problems of Moral Philosophy (1963), Stanford, 2001, p. 161.
Ibsen, Casa de bonecas, trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino, São Paulo, Veredas, 2007,
p. 96-97. Tradução ligeiramente modificada, conforme citação de Moretti. (N. do T.)
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Nada mais que um quarto de brinquedos. É uma revelação para Nora. E o que
a torna realmente inesquecível é que a ela se segue uma mudança para um estilo
inteiramente diferente. “Não lhe ocorre”, diz ela, depois de trocar seu vestido de
tarantela por roupas comuns, “que esta é a primeira vez que nós dois [...] conversamos juntos a sério?”. Sério; outra grande palavra-chave burguesa: sério como
em “sem alegria”, é claro; mas também sóbrio, concentrado, preciso. Nora, séria,
toma os ídolos do discurso ético (“dever”, “confiança”, “felicidade”, “casamento”), e os confronta com o comportamento efetivo. Ela esperou durante anos,
desejando que a metáfora se tornasse realidade: “a coisa mais maravilhosa do
mundo” (ou “o maior milagre”, como também foi traduzido); agora o mundo, na
pessoa do marido, forçou-a a tornar-se “realista”. “Estamos acertando nossas contas, Torvald”. Como você pode dizer isso, reage ele; Não a compreendo, O que é
isso, O que quer dizer, Que coisa terrível para se dizer ... E, é claro, não é que ele
não entende o que ela está dizendo: é que, para ele, a linguagem nunca deveria ser
tão – séria. Nunca deveria ser prosa.
Prosa: inevitável, se se quiser fazer justiça às realizações da cultura burguesa.
Prosa como o estilo burguês; estilo como conduta, como modo de viver no mundo, não apenas de representá-lo. Prosa como análise, antes de tudo: tentar ver com
clareza: “distinta determinação e clara inteligibilidade”, como diz a Estética de
Hegel. Prosa como reconhecimento – meio melancólico, meio orgulhoso – de que
o sentido nunca será tão intuitivo e memorável quanto o é em verso: será adiado,
disperso, parcial; mas também articulado, também fortalecido pelo esforço. Prosa,
não como inspiração – essa dádiva absurdamente injustificada dos deuses –, mas
como trabalho; duro, provisório, nunca perfeito. E, finalmente, prosa como polêmica racional, como a de Nora: emoções, fortificadas pelo pensamento. É a ideia
ibseniana de liberdade: um estilo que compreende as ilusões enganadoras das
metáforas e as abandona. Uma mulher que compreende um homem e o abandona.
A dissipação das mentiras realizada por Nora no final de Casa de bonecas é
uma das grandes páginas da cultura burguesa: à altura das palavras de Kant sobre
o Esclarecimento ou de Mill sobre a Liberdade. E como é revelador que o momento
seja tão breve. De O pato selvagem em diante, as metáforas se multiplicam – o assim
chamado “simbolismo” do último Ibsen –, e a prosa da fase inicial se torna inimaginável. E dessa vez a fonte das metáforas não é o passado, não é um antigo regime cultural, mas a própria burguesia. Duas passagens muito similares, de Bernick
e de Borkman – duas versões do empreendedor financeiro, uma no começo e outra no final do ciclo – explicam o que quero dizer. Esse é Bernick, descrevendo o
que uma estrada de ferro criará:
Pense no avanço que isso trará à comunidade! Pense só nas vastas áreas de florestas que
serão abertas! Os ricos filões de minérios para escavar! E o rio, com uma queda d’água após a
outra! As possibilidades de desenvolvimento industrial são ilimitadas!
Bernick está entusiasmado aqui: as orações são curtas, exclamativas, com
aqueles “pense!” (pense no avanço, pense na floresta) que tentam acender a ima-
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ginação do ouvinte, enquanto os plurais (áreas, filões, quedas d’água, possibilidades) multiplicam resultados diante de nossos olhos. É uma passagem apaixonada – mas fundamentalmente descritiva. E aqui temos Borkman:
Está vendo a cadeia de montanhas lá, bem longe? [...] Aquele era o meu reino profundo,
inesgotável, infinito! / Para mim é o sopro da vida que vem até aqui como uma saudação dos
espíritos cativos. Posso vê-los, aos milhões, aprisionados. Sinto que os veios de metal me estendem os braços retorcidos e se ramificam e me seduzem. Eu os vi diante de mim, como fantasmas, na noite que passei nos cofres do banco, com uma lâmpada na mão. Vocês me imploravam
a liberdade e eu tentei libertá-los. Mas não fui forte o suficiente. O tesouro naufragou novamente no abismo. (Estendendo os braços.) Mas eu sussurro, na calma da noite: eu os amo, tesouros
que repousam como mortos nas profundezas e na escuridão! Eu amo os tesouros que clamam
pela vida e amo os esplendores, o poder e a glória que eles proporcionam. Eu amo os tesouros!
Amo, amo!13
O mundo de Bernick era de florestas, minas e quedas d’água; o de Borkman, de
espíritos e sombras e amor. O capitalismo é desmaterializado: os “filões de minério” se tornam reino, sopro, vida, morte, aura, nascimento, glória... A prosa se retira ante os tropos: uma saudação dos espíritos cativos, veios de metal chamando,
tesouros afundando no abismo, riquezas lutando por nascer. As metáforas – essa é
provavelmente a corrente metafórica mais longa no ciclo inteiro – não mais interpretam o mundo; elas o obliteram e então o recriam, como o fogo noturno que
limpa o caminho para o construtor Solness. Destruição criativa, Schumpeter a chamará: a área cinzenta se torna sedutora. Típico do empreendedor, escreve Sombart,
é “o dom do poeta – o dom metafórico – de trazer aos olhos do público imagens
arrebatadoras dos reinos de ouro [...] ele mesmo, com toda a intensidade apaixonada de que é capaz, sonha o sonho do sucesso de seu empreendimento”.14
Ele sonha o sonho... Sonhos não são mentiras. Mas não são a verdade tampouco. A especulação, escreve um de seus historiadores, “retém algo de seu significado filosófico original, a saber, refletir ou teorizar sem uma base factual firme”.15
Borkman fala com o mesmo “estilo profético” que era típico do diretor da South
Sea Company (uma das primeiras bolhas do moderno capitalismo);16 a grandiosa – e cega – visão do Fausto moribundo; a crença “de que a idade de ouro não
ficou para trás, mas está à frente da humanidade” que Gerschenkron viu como o
“mais forte remédio” para a decolagem econômica:
13
H. Ibsen, John Gabriel Borkman, trad. Fátima Saadi e Karl Erik Schøllhammer, São Paulo,
Ed. 34, 1996, p. 92-93. (N. do T.)
14
Werner Sombart, The quintessence of capitalism, Londres, 1915, p. 91-2. É impossível deixar
passar o componente erótico da tese de Sombart, que, afinal, identifica “o tipo clássico do empreendedor” em Fausto, o mais destrutivo – e criativo – sedutor de Goethe. Também em Ibsen a visão
metafórica do empreendedor tem origem erótica no adultério histericamente casto de Solness com
Hilda (a quem ele já havia “seduzido” quando ela tinha doze anos).
15
Edward Chancellor, The devil take the Hindmost: A history of financial speculation, Nova
York, 1999, p. xii.
16
Chancellor, The Devil Take the Hindmost, op. cit., p. 74.
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Está vendo a fumaça dos barcos a vapor no fiorde? Pois eu vejo... Está ouvindo o barulho
que vem do rio? São as fábricas trabalhando! Minhas fábricas! Todas as fábricas que eu teria
construído! Ouça: elas estão trabalhando. É o turno da noite. Elas trabalham noite e dia.17
Visionário; despótico; destrutivo; autodestrutivo: esse é o empreendedor de
Ibsen. Borkman renuncia ao amor em troca de ouro, como Alberich em O anel dos
Nibelungos; é encarcerado; aprisiona-se em casa por mais oito anos; e no arrebatamento de sua visão, marcha rumo ao gelo para a morte certa. É por isso que o
empreendedor é tão importante para o último Ibsen: ele traz a hubris de volta para
o mundo – portanto, tragédia. Ele é o tirano moderno: A tragédia do banqueiro
teria sido o título de John Gabriel Borkman em 1620. A vertigem de Solness é a
pista perfeita: a tentativa desesperada do corpo de preservar-se da ousadia mortífera exigida de um fundador de reinos. Mas, infelizmente, o espírito é forte demais:
ele irá subir ao topo da casa que acabou de construir, desafiar Deus – “Ouvi-me,
Todo-Poderoso [...] de agora em diante construirei apenas o que é mais belo em
todo este mundo” –, acenar para a multidão em baixo... e cair.
E esse estranho ato de autoimolação é o prelúdio adequado para minha última
questão: então, qual é o veredicto de Ibsen sobre a burguesia europeia? O que essa
classe trouxe ao mundo?
IV
A resposta está num arco mais amplo da história do que as décadas de 1880 e
1890; um arco em cujo centro reside a grande transformação industrial do século
XIX. Antes disso, a burguesia não é a classe dominante: o que o burguês quer é
que o deixem em paz, como na famosa resposta de Frederico, o Grande, ou, quando muito, quer ser reconhecido e aceito. É modesto demais em suas aspirações;
estreito demais: o pai de Robinson Crusoe ou o de Wilhelm Meister. Seu maior
desejo é o “conforto”: essa noção quase medicinal, a meio caminho entre a utilidade e o lazer: prazer como mero bem-estar. Capturado numa luta sem fim contra
os caprichos da Fortuna, esse burguês dos inícios é ordeiro, cuidadoso, com o
“respeito quase religioso pelos fatos” dos primeiros Buddenbrooks. Ele é um homem de detalhes. É a prosa da história capitalista.
Depois da grande industrialização, embora mais lentamente do que costumávamos pensar – cronologicamente, todo o Ibsen entra na “persistência do Antigo
Regime” de Arno Mayer – a burguesia se torna a classe dominante; e é uma classe
que tem os meios imensos da indústria à sua disposição. O burguês realista é desbancado pelo destruidor criativo; a prosa analítica, pelas metáforas que transformam o mundo. O teatro capta melhor do que o romance essa nova fase, em que o
eixo temporal muda do registro sóbrio do passado – as partidas dobradas praticadas no Robinson e celebradas no Meister – para o ousado moldar do futuro que é
típico do diálogo dramático. No Fausto, n’O anel, no último Ibsen, os personagens
17
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Ibsen, John Gabriel Borkman, op. cit., p. 91-92. (N. do T.)
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“especulam”, olhando longe para o tempo que virá. Os detalhes são diminuídos
pela imaginação; o real, pelo possível. É a poesia do desenvolvimento capitalista.
A poesia do possível... A grande virtude burguesa é a honestidade, eu disse antes; mas a honestidade é retrospectiva; você é honesto, se, no passado, não fez nada
errado. Você não pode ser honesto no tempo verbal futuro – que é o tempo verbal
do empreendedor. O que seria uma previsão “honesta” do preço do óleo, ou de
qualquer outra coisa, daqui a cinco anos? Mesmo que você queira ser honesto, não
pode sê-lo, porque honestidade precisa de fatos firmes, que “especular” – mesmo no
mais neutro sentido etimológico – não tem. Na história da Enron, por exemplo, um
grande passo em direção à grande fraude foi a adoção da assim chamada contabilidade a preço de mercado [mark-to-market accounting]: registrar como realmente
existentes os lucros que ainda estão no futuro (às vezes, anos no futuro). No dia em
que a Securities and Exchange Commission autorizou essa “especulação” sobre o
valor dos ativos, Jeff Skilling levou champanhe ao escritório: a contabilidade como
“ceticismo profissional”, como dizia a definição clássica – e isso soa muito parecido
com a poética do realismo – o ceticismo acabou. Agora, a contabilidade era visão.
“Não era um emprego – era uma missão... Estamos fazendo o trabalho de Deus.”18
Isso é o que dizia Skilling, depois da indiciação; Borkman, que não pode mais diferenciar conjuntura, desejo, sonho, alucinação e fraude pura e simples.
O que a burguesia trouxe ao mundo? Essa louca bifurcação entre uma norma
muito mais racional e uma mais irracional da sociedade. Dois tipos ideais – um antes e um depois da industrialização – que Weber e Schumpeter tornaram memoráveis. Vindo de um país em que o capitalismo chegou tarde, e encontrou poucos
obstáculos, Ibsen teve a oportunidade – e o gênio – de comprimir uma história de
séculos em apenas vinte anos, tornando-a explosiva e irrevogável. O burguês realista habita as primeiras peças: Lona; Nora; talvez Regina em Espectros. O realista era
uma mulher: uma escolha incomum para os tempos (O coração das trevas: “é estranho como as mulheres estão fora de contato com a verdade”). Uma escolha radical,
também, no espírito da Sujeição das mulheres, de Mill. Mas também profundamente
pessimista em relação ao escopo do “realismo” burguês: imaginável dentro da esfera
íntima – como o solvente da família nuclear e de todas as suas mentiras – mas não
na sociedade como um todo. A prosa de Nora no final de Casa de bonecas ecoa os
escritos de Wollstonecraft, Fuller, Martineau:19 mas seus argumentos públicos agora
são trancados dentro de uma sala de estar (na encenação de Bergman, um quarto).
Que paradoxo, essa peça que choca a esfera pública europeia, mas não acredita realmente na esfera pública. E então, uma vez que a destruição criativa emerge, não há
mais Noras para se contraporem às metáforas destrutivas de Borkman e Solness;
ocorre o oposto: Hilda, incitando “meu construtor” à alucinação suicida. Quanto
mais indispensável é o realismo, tanto mais impensável ele se torna.
18
Bethany McLean; Peter Elkind, The smartest guys in the room: The amazing rise and scandalous
fall of Enron, Londres, 2003, p. xxv.
19
As fontes da fala de Nora foram identificadas por Joan Templeton; ver Alisa Solomon,
Re-dressing the canon: essays on Theatre and Gender, Londres e Nova York, p. 50.
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Lembrem-se do banqueiro alemão, com sua “contradição irreconciliável” entre o bom Bürger e o financista inescrupuloso. Ibsen, é claro, conhecia a diferença entre eles; e era um dramaturgo, procurando uma colisão objetiva na qual
pudesse basear sua obra. Por que não usar essa contradição intraburguesa? Faria
muito mais sentido assim; faria muito mais sentido que Ibsen fosse Shaw, em vez
de ser Ibsen. Mas ele fez o que fez porque a diferença entre aqueles dois burgueses
é talvez “irreconciliável”, mas não é realmente uma contradição: o bom Bürger
nunca terá a força para suportar a destruição criativa do capital; o empreendedor
hipnótico nunca cederá ao puritano sóbrio. Reconhecer a impotência do realismo burguês frente à megalomania capitalista: nisso reside a inesquecível lição
política de Ibsen.
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56 Literatura e Sociedade
TEMPO E TRABALHO EM WOYZECK,
DE GEORG BÜCHNER*
TERCIO REDONDO
Universidade de São Paulo
Resumo
O presente ensaio ocupa-se da relação existente entre regime
de trabalho, exploração social e forma dramática no fragmento
Woyzeck, de Georg Büchner.
Abstract
The present essay deals with the relationship between work
regime, social exploitation and dramatic form in Georg Büchner’s
Woyzeck.
Palavras-chave
Georg
Büchner;
exploração
social; forma
dramática.
Keywords
Georg Büchner;
social
exploitation;
dramatic form.
* Este trabalho, com ligeira modificação, é parte de uma tese de doutorado defendida pelo autor, na USP, da qual provém igualmente a tradução das citações aqui empregadas da obra de Büchner:
Tercio Redondo, A corda e o travessão: a exploração social e a sua configuração dramática em Woyzeck,
de Georg Büchner, 2006. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
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TERCIO REDONDO
Tempo e trabalho em Woyzeck, de Georg Büchner 57
G
eorg Büchner criou um problema insolúvel para o teatro de seu tempo ao
introduzir a figura de um pobretão como protagonista de Woyzeck, tragédia inacabada escrita no inverno de 1836/1837. A presença da pobreza num palco que até
então fora reduto de personagens de elevada estatura social impunha, já no plano
linguístico, sérios entraves à forma dramática. Woyzeck, por força de sua condição social, não pode se expressar na linguagem culta e elevada que, no limite, é
partilhada pela burguesia ascendente e pela nobreza decaída; seu dialeto proletário impossibilita o diálogo pleno com as figuras burguesas que integram o círculo
de seus exploradores: o médico, o professor e o capitão. A personagem solapa uma
das bases da tradição teatral de seu tempo, herdeira da receita neoclássica francesa: o duelo verbal executado por antagonistas de uma mesma posição social, que
se submetem a um código comum de comportamentos e a um padrão linguístico
refratário a oscilações de estilo.
Tempo urgente
Com seu reles soldado, Büchner constitui não apenas uma figura desprovida
de estatura trágica, mas traz ao palco alemão uma condição existencial extremamente precarizada. Ser soldado, na época, configurava situação das mais aviltantes,
à qual se submetia somente aquele que não tivesse outro remédio para escapar da
pura mendicância.
Gerhard Knapp salienta a miserável condição do soldado nos estertores do
regime feudal alemão, naquele início do século XIX:
trata-se de um aparato disciplinar brutal e desumano que quase não deixa espaço para a vida
privada. O regime militar é o prolongamento legal da servidão. Ainda assim muitos dos plebeus do tempo da Restauração, desprovidos de casa e comida, preferiram o exército à mendicância e à fome. Para o público da época, portanto, a situação econômica da personagem de
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58 Literatura e Sociedade
Büchner estava claramente esboçada: Woyzeck pertencia à grande massa dos mais pobres
entre os pobres.1
Que a “disciplina brutal” dos exércitos europeus fosse lugar-comum testemunhara a pena satírica de Voltaire, algumas décadas antes de Büchner. A primeira
desventura de Cândido após a expulsão do castelo onde fora criado é o exercício
militar seguido da costumeira surra aplicada pelos superiores:
Ordena-se-lhe volver à direita, à esquerda, puxar a vareta, recolocar a vareta, apontar, atirar, dobrar o passo, e dão-lhe trinta golpes de bastão; no dia seguinte ele faz o exercício um
pouco menos mal e recebe apenas vinte golpes; no terceiro dia, recebe apenas dez, e é considerado um prodígio por seus camaradas.2
Quando Woyzeck esboça uma reação menos submissa às provocações humilhantes do capitão, esse não titubeia em ameaçá-lo com uma bala na cabeça
(H2,7)3 – nada de extraordinário no contexto de uma relação marcada pelo arbítrio, em que a soldadesca proletária encontra-se à mercê do oficialato nobre.
O castigo mais doloroso, contudo, advém do soldo insignificante: Woyzeck é
constrangido ao trabalho extra para angariar os meios de sobrevivência da mulher
e do filho. O fato de Woyzeck tornar-se fuzileiro “decorre de uma férrea coação, a
fome. [...] Ele não pode sequer cogitar a insubordinação. O soldo é a base de sua
existência”.4 Na cena comentada (H2,7), a saída de Woyzeck dá-se no passo exato
de sua entrada; ele se afasta de seus interlocutores no ritmo acelerado que lhe é característico, pois a agenda de tarefas a cumprir não lhe permite a folga de que gozam
o médico e o capitão. Já na primeira cena ele recolhe varas num matagal, junto com
Andres, companheiro de farda. Em seguida apresenta-se nas funções de barbeiro, de
probando num experimento médico, de modelo anatomofisiológico para a preleção
do professor, e de copeiro, além de cumprir suas obrigações de militar acantonado
num quartel. O tempo de Woyzeck, pautado pela necessidade de cumprir deveres
os mais diversos, imprime o ritmo característico do drama de Büchner. O regime de
trabalho do soldado é o compasso que dita o andamento das cenas.
A abstração dessa realidade social, da miséria a que se submetiam mais de 70%
da população alemã no período, tem levado uma parte da crítica a fazer conjecturas as mais variadas em torno do caráter fragmentário do texto de Büchner. Volker
Klotz, num livro dedicado ao estudo das formas “aberta” e “fechada” do drama,5
conclui pela existência de uma temporalidade desmaterializada, que seria carac-
1
Gerhard P. Knapp, Georg Büchner, Stuttgart, Metzler, 2000, p. 200.
Voltaire, Candide, Paris, Larrousse/HER, 2000, p. 39.
3
Os manuscritos de Woyzeck, obra inacabada, são compostos por quatro conjuntos de cenas
enumeradas, na edição alemã e na tradução aqui utilizada, por sigla iniciada pela letra “H”. O primeiro algarismo posposto à letra indica o número do conjunto referido, de acordo com a ordem
cronológica em que foi redigido pelo autor; o segundo algarismo refere-se ao número da cena nesse
conjunto. Assim, nesse caso (H2,7) a sigla refere-se à sétima cena do segundo conjunto de cenas.
4
Alfons Glück, “Militär und Justiz in Georg Büchners Woyzeck”, in Georg Büchner Jahrbuch 4,
editado por Thomas Michael Mayer, Frankfurt am Main, Europäisches Verlagsanstalt, 1984, p. 232-33.
5
Volker Klotz, Geschlossene und offene Form im Drama, München, Karl Hanser, 1972.
2
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TERCIO REDONDO
Tempo e trabalho em Woyzeck, de Georg Büchner 59
terística em peças como Woyzeck e O despertar da primavera, de Frank Wedekind.
Segundo Klotz, ao se liberar das amarras da unidade aristotélica, o tempo adquire,
nos dramas da “forma aberta”, tal grau de liberdade que se transfigura numa entidade autônoma, em força que atua sobre as personagens de modo a constrangê-las
e a vitimá-las:
O grande espaço de tempo no drama aberto libera o tempo para uma função mais ampla.
Ele se torna autônomo, uma força de atuação que intervém nos acontecimentos. [...] Ao contrário [do drama fechado], na distensão temporal e na liberdade espacial do drama aberto, este tem
a oportunidade de emancipar-se da ação e de influir de modo autônomo sobre as personagens.6
Assim, em O despertar da primavera, o que confrontaria a adolescência não
seria “a força temporal da história que atua e transforma dirigindo-se de fora às
personagens, e sim a fase privada, temporal e biológica da puberdade [...]”.7
O que se passa no drama de Wedekind? Um grupo de adolescentes depara com
o despertar dos impulsos sexuais próprios da idade. O corpo até então menino transforma-se em sua forma adulta, prenhe de desejos. Mas esse corpo que se despede da
infância é algo mais do que libido concentrada. Os meninos e meninas dessa primavera trágica sujeitam-se igualmente a imperativos de outra ordem. Oriundos da pequena burguesia, eles vivem sob a égide da moral vitoriana que lhes nega a satisfação
do que a natureza está a exigir. O tabu sexual veda-lhes o conhecimento dos fatos
“biológicos” e Wendla engravida sem saber ainda de onde “vêm os bebês”. Não é,
portanto, o fato biológico puro que causa sua tragédia, mas imposições sociais historicamente determinadas. Não é uma erupção hormonal que leva esses garotos
a padecer a gravidez indesejada ou a incompreensão do Conselho Escolar. No drama de Wedekind, a puberdade em si mesma está longe de constituir o germe de uma
tragédia. A descoberta dos impulsos sexuais em O despertar da primavera somente se
torna problemática no seio de uma sociedade hipócrita e autoritária.
Em Woyzeck, poder-se-ia identificar igualmente no tempo um agente opressor
do protagonista. Mas isso apenas na medida em que se compreendessem as determinações específicas que moldam os dias, as horas e os minutos do soldado. Sua jornada constitui-se das mesmas 24 horas que perfazem o dia do capitão e, no entanto,
a relação que ambos guardam com os ponteiros do relógio diverge inteiramente.
CAPITÃO. Devagar, Woyzeck, devagar; uma coisa de cada vez; deixas-me zonzo. Que é que eu
vou fazer com os dez minutos que sobrarão, já que terminas tão cedo? [...] Woyzeck, pareces
sempre tão excitado! Um homem de bem não age assim, um homem que tenha uma consciência limpa. – diz alguma coisa, Woyzeck! (H3,5)
Para o oficial, a azáfama de Woyzeck traduz falha moral, reflexo de uma consciência que não está em paz consigo mesma. Mas o mundo, a despeito dos temores do capitão, é de fato movido pelo trabalho. Para Woyzeck, o dia não se divide
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em 24 horas iguais e pachorrentas, mas numa longa jornada de labor e em poucas
horas de sono.
Desgostoso dos novos tempos, em que o dia passa a ser cronometrado e disposto a serviço do empreendimento industrial, sobra ao capitão a constatação
entristecida da nova cadência do mundo. Membro de uma corporação aristocrática,8
o capitão enuncia de modo lapidar a nostalgia de um mundo prestes a desaparecer: “[...] tremo só de pensar que o mundo dá uma volta num único dia [...].
Woyzeck, não posso ver a roda de um moinho que já fico melancólico” (H3,5).
A velha ordem feudal a que se aferra a nobreza decadente agoniza em face do
movimento frenético da fábrica e do comércio. O superior de Woyzeck sucumbe
a essa nostalgia que o imobiliza, numa sociedade em rápida transformação, restando-lhe o blá-blá-blá derrisório em torno da vida comedida, distante da agitação
empresarial: “Não corra tanto, doutor. Não agite dessa maneira o seu bastão. Desse jeito o senhor caminha direto para a morte. Um bom sujeito, com a consciência
limpa, não anda tão depressa” (H3,9).
O tempo de Woyzeck está sujeito ao imperativo da ordem social, em que o
soldado corre contra o relógio, procurando cumprir sua rotina de múltiplas tarefas. Daí a brevidade das cenas, que se esgotam na medida dessa pressa atordoante:
“Sinto-me zonzo com os modos dessa gente, como correm!”, diz perplexo o capitão ao observar a movimentação de um médico excitado com seus projetos científicos e de seu subordinado a correr rua afora (H2,7).
Woyzeck apresenta o antagonismo de duas posições sociais diferentes, com
interesses políticos e econômicos conflitantes. O capitão pleiteia o retorno à virtude aristocrática do ócio imaginando formas de “matar o tempo”. Woyzeck reivindica o direito à dignidade na pobreza. O capitão vê seu mundo desaparecer a
cada “giro do moinho”, o futuro estando fora do âmbito de suas cogitações.
Woyzeck, soldado e factótum do oficial, reafirma sua condição de trabalhador
diuturno (H3,5): “Eu acho que quando a gente chegar no céu, vai ser pra ajudar a
fazer os trovões”. Diante do filho adormecido, mais do que o destino pessoal, ele
reconhece no trabalho duro a condição de sua classe (H3,4): “Como dorme o
bebê! Puxa ele pelo bracinho, a cadeira está apertando ele. A testa dele está cheia
de gotas claras; tudo é trabalho debaixo do sol; até dormindo a gente sua. A gente,
pobres diabos!”. Assim que suas forças se exaurirem ou no momento em que perder seus “empregos”, Woyzeck sabe o que será do pequeno Christian: ele ingressará no mercado infantil de trabalho, passará o resto de seus dias numa fábrica
ou numa oficina, destituído de sua infância, excluído da escola, tão despossuído quanto seus pais. Woyzeck não se encontra só em sua desgraça. Ela arrasta
junto consigo a mulher, o filho e toda a multidão de miseráveis que o regime de
Metternich subjugou, negando-lhes as condições mínimas de uma existência digna.
8
A oficialidade dos exércitos alemães era composta majoritariamente por nobres. Quando não,
por burgueses devidamente doutrinados e subordinados a um código de honra aristocrático. Como
salienta Meier, “o capitão representa, como militar e moralista religiosamente determinado, o feudalismo de orientação cristã, ou seja, o tradicionalista e anacrônico ancien régime [...]” (Albert Meier,
Georg Büchner: ?Woyzeck?, München, Fink, 1993, p. 42).
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Na cena com o bebê transfigura-se todo um processo histórico. Trata-se, falando com Brecht, de um processo pressuposto por ela. O dramaturgo de Mãe Coragem salienta a necessidade de se reconhecer a dimensão histórica de eventos que,
tornando-se corriqueiros, acabam por se “naturalizar”. À guisa de exemplo, ele se
refere à ação de despejo de uma família sem meios para quitar o aluguel. Nos anos
1920-1930, a visão de móveis descendo à rua podia ser interpretada como acontecimento rotineiro e “natural” no cotidiano de uma cidade alemã. Mas, ao observador mais atento, poderia e deveria causar estranheza. Brecht sintetiza esse acontecimento na imagem do carteiro que traz a má notícia, para ressaltar o caráter
histórico da situação: “Um homem uniformizado traz uma carta, de acordo com a
qual os inquilinos devem pôr seus móveis na rua. Isso não é claro? Não é assim há
muito tempo? Sim, há muito é assim. Não é, portanto, natural que assim seja?
Não, não é natural”.9 O dramaturgo lembra que não fora assim no tempo das
cavernas e que o camponês da Idade Média não seria expulso de sua cabana exatamente dessa forma: por meio de um documento escrito, trazido por um agente
do Estado, perfazendo-se todo um ritual burocrático etc. Brecht ressalta também
o fato de que, por constituir um fenômeno histórico, não é possível reconhecê-lo
por inteiro quando é dramatizado. A complexidade da situação não cabe nos contornos de uma ação conduzida exclusivamente pelo diálogo:
Seja como for, por trás do processo encontra-se ainda outro processo. O processo encenado
por si só não contém a chave [para a sua compreensão]. Há muito pouca gente no palco para
que o conflito possa se desenvolver integralmente diante dos espectadores. Os que se apresentam não podem sozinhos produzir nenhuma outra solução. Não se pode compreender o
processo, ele deve ser apontado [gezeigt].10
Brecht apela a toda sorte de artifícios extradramáticos para informar ao espectador aquilo que o diálogo não pode abarcar. Mas, decerto, mesmo o recurso
épico não alcança informar toda a complexidade do mundo. Aqui a crítica assume seu papel imprescindível na análise de uma realidade que se esvai como
areia entre os dedos.11
No caso de Woyzeck, é preciso ter no horizonte a realidade social alemã do
início do século XIX, com relevo para as condições de vida de seu proletariado
urbano, para o qual uma jornada laboral de dezesseis horas era frequentemente a
regra, e o descanso dominical, muitas vezes, a exceção. Tirando-se as poucas horas que lhe restavam de sono, o tempo do proletário que lograva obter um emprego era quase exclusivamente tomado pelo trabalho. O registro espaciotemporal de
Woyzeck expõe na sucessão de suas cenas a rotina do trabalhador, sujeitando-se a
forma do drama a esse compasso. A correria de Woyzeck impõe o fim abrupto e
9
Bertolt Brecht, Gesammelte Werke, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1967, v. 15, p. 258.
Idem, ibidem, p. 258-59.
11
Entenda-se aqui a crítica como atividade a ser exercida também pelo espectador da peça. Incitá-lo a refletir, de acordo com Brecht, é objetivo de todo o aparato teatral, a começar pela dramaturgia, passando pela direção e por todos os recursos cênicos empregados, até o trabalho de interpretação dos atores.
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precoce das cenas, na exata medida de um corte, como repara o capitão (H2,7):
“Ei, Woyzeck, por que passas assim tão apressado? Para um pouco. Corres como
uma navalha aberta mundo afora; só de te tocar a gente já se corta”. A fala do oficial aponta na passada ofegante do soldado a síntese gestual do processo.
Trabalho de composição – composição pelo trabalho
Woyzeck ocupa um lugar central na tragédia inacabada de Büchner. Em torno
dele gravitam as demais personagens. O grande esboço dessa concentração de
foco no protagonista encontra-se na obra da geração Tempestade e ímpeto.12 Lenz13
considerava as regras unitárias da tradição clássica um estorvo à criação e um
anacronismo:
Uma vez que um férreo destino determinava e regia as ações dos antigos, essas podiam
interessá-los, sem que tivessem de procurar por seu motivo e torná-lo visível na alma humana.
Nós, contudo, detestamos tais ações, das quais não partilhamos e não percebemos as causas.14
O jovem autor de Os soldados subvertia a primazia da ação aristotélica tornando-a subsidiária do herói, que passava a determinar os acontecimentos antes de
ser por eles determinado:
Trata-se de personagens que geram os seus acontecimentos, que de modo independente e
invariável fazem girar a grande máquina, sem que nas nuvens os deuses tenham algo mais a
fazer do que se portarem como espectadores: não de figuras, de marionetes, mas de homens.15
Büchner faz-se herdeiro da ousadia de Lenz tomando-lhe o herói que centraliza a ação. Mas a centralidade de Woyzeck distingue-se daquela preconizada pela
dramaturgia do Tempestade e ímpeto. A militância política, associada a uma arguta
observação de comportamentos, afasta Büchner de qualquer veleidade iluminista
no que diz respeito à liberdade de ação e de pensamento. Em carta endereçada à
família em fevereiro de 1834, ele expõe os limites da liberdade individual prescritos no ideário da Aufklärung:
Não desprezo ninguém, ainda mais por causa de sua inteligência ou de sua formação. Porque a ninguém é dado decidir tornar-se um idiota ou um criminoso. Por meio de circunstâncias
iguais tornamo-nos todos iguais, porque as circunstâncias encontram-se fora de nós.16
As circunstâncias que fazem de Woyzeck um soldado às voltas com a sobrevivência da família extrapolam a esfera das decisões autônomas e refletidas, tomadas
12
Movimento literário com forte expressão no teatro, do qual participaram o Goethe do Werther
e o jovem Schiller.
13
Jakob Michael Reinhold Lenz (1751-1792), dramaturgo e teórico do movimento.
14
Jakob Michael Reinhold Lenz, Anmerkungen übers Theater, Shakespeare-Arbeiten und
Shakepeare-Übersetzungen, Stuttgart, Reclam, 1976, p. 17.
15
Idem, ibidem, p. 19.
16
Georg Büchner, Sämtliche Werke, Briefe und Dokumente, edit. Henri Poschmann, Frankfurt
am Main, Deutscher Klassiker Verlag, 1999, v. II, p. 378.
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com base num juízo moral. Sua opção divide-se entre a situação atual e a mendicância, ou ainda, em última instância, por um eventual abandono dos seus. Como
prefere garantir o sustento de Marie e de Christian, sujeita-se à dura vida na caserna e aceita todo e qualquer trabalho que se lhe ofereça, mesmo quando a tarefa a
ser executada represente um risco à sua saúde e um empecilho ao convívio social
e familiar. Ressalte-se mais uma vez que, na época, a situação de um soldado como
Woyzeck ou de um artesão malsucedido, como o seu homônimo histórico, caracterizava estado de extrema pobreza. Segundo Robert Castel, a condição assalariada à época era
uma das situações mais incertas e também uma das mais indignas e miseráveis. Alguém era um
assalariado quando não era nada e nada tinha para trocar, exceto a força de seus braços. Alguém
caía na condição de assalariado quando a sua situação se degradava: o artesão arruinado, o agricultor que a terra não alimentava mais, o aprendiz que não conseguia chegar a mestre [...].17
Diversas cenas de Woyzeck terminam abruptamente, em razão da pressa do soldado, sempre chamado a cumprir mais uma de suas inúmeras tarefas. A cena de
abertura encerra-se quando o toque de recolher o chama de volta ao quartel, junto
com seu companheiro, Andres. De Marie ele tem de se despedir sem sequer ter entrado em casa ou logo depois de chegar. Do capitão e do médico afasta-se assim que
pode, no modo acelerado de sempre. Ao deixar a sala em que barbeou o capitão, este
lhe ordena que modere o passo e que desça a rua “bem devagar”, incomodado que
está com a afoiteza do soldado. A premência do trabalho acarreta completa perversão na relação marital e familiar de Woyzeck. Como aponta Albert Meier, o soldado
“tem de trabalhar, para poder viver com Marie e com o filho”, mas, ao mesmo tempo, tem de abdicar dessa convivência “para poder trabalhar”.18 Assim, diz Leslie
Mac Ewen, ele “entra e sai de casa como se fosse o gato da família”.19
A composição de Woyzeck obedece a esse imperativo do trabalho, executado
no ritmo da urgência e do desespero. As cenas abreviam-se na medida em que o
protagonista não pode ficar num mesmo lugar por mais que um instante. Não por
acaso, as duas cenas mais longas de Woyzeck são aquelas em que figura o oficial,
o bonachão apologista do ócio (H3,5 e H2,7). A ausência programática de trabalho leva o oficial a “matar o tempo”, sobretudo pelo expediente da conversa fiada,
não se escusando jamais de um pretexto para rir-se do soldado. Nessas duas cenas
mais alentadas, o ritmo de Woyzeck é quebrado, é interrompido pela intervenção
de seu superior falastrão. Longe dele, o soldado trata de correr.
Somente se levada em consideração a rotina de tarefas do soldado, realçada pelo
contraponto de um capitão entediado, é que se pode observar um princípio de racionalidade na composição de Woyzeck. A forma do drama é resultante do embate
17
Robert Castel, As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, trad. Iraci D. Poleti,
Petrópolis, Vozes, 2003, p. 21.
18
Meier, Georg Büchner: ?Woyzeck?, op. cit., p. 38.
19
Leslie Mac Ewen, The Narren-motifs in the works of Georg Büchner, Bern, Herbert Lang & Cie,
1968, p. 39.
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entre a miséria do fuzileiro e a bonança do oficial, entre o espelhinho de Marie e os
cristais da mansão burguesa (H3,4). É esse antagonismo de classes que impede a
consecução do formato simétrico e exige o recurso à cena mal polida, pois a presença simultânea da burguesia e da canaille impede o encaixe harmônico das peças que
movem a cena. O tempo, assenhoreado pelo trabalho, perde em Woyzeck toda possibilidade de se conduzir linearmente. Contudo, ele não se anula, nem se transforma num ente autônomo a dirigir a ação dramática, como pretende Klotz. Ele tão
somente se acelera em demasia, atropela-se numa ordenação aparentemente caótica, mas que faz jus à ordem destinada a submeter o pobre. Ambos, Marie e Woyzeck, acham-se premidos entre o instinto que impõe a satisfação da fome ou do sexo
e uma ordem social que lhes nega tal satisfação. Trata-se de um tempo que não se
ajusta às horas e minutos do capitão, nem à elegância composicional do teatro burguês, mas que espelha a luta desesperada do pobre pela sobrevivência.
A determinação do espaço
Há em Woyzeck uma cena emblemática do modo como se constitui o espaço no
drama de Büchner. Trata-se do momento em que se confirmam de maneira insofismável as insinuações maldosas do capitão: Marie e o tambor-mor dançam num salão, enquanto Woyzeck os observa do lado de fora. Para Klotz, o fato de o soldado
permanecer sentado no banco defronte a taberna, em vez de entrar e tomar satisfações, corrobora sua tese de que o espaço, à semelhança do tempo, autonomiza-se e
passa de moto proprio a trancafiar a personagem e a isolá-la do mundo. A propósito
dessa cena, ele assevera que a “parede separa o solitário daquela que o abandonou”.20
A parede da taberna oferece, contudo, uma porta de entrada. A inércia de Woyzeck
não decorre do confinamento físico, constituído por muros intransponíveis; o que
de fato impede-lhe o contato direto com Marie é a autoridade do tambor-mor e sua
força. Enfraquecido pela dieta que o consome e ciente de sua situação subalterna, Woyzeck não pode adentrar no salão, ignorar o suboficial e retirar sem mais a
mulher que o trai. Resta-lhe sentar-se humilhado e maquinar sua vingança engendrando um crime do qual não poderá sair impune. A condição de pária social permite-lhe olhar pela janela da taberna, mas não tocar o trinco da porta. O que se
opera na cena é uma determinação social do espaço. O que separa ou aproxima as
personagens é o lugar que ocupam numa sociedade rigidamente hierarquizada.
De igual modo, no espaço público e aberto, configura-se o mesmo estado de
opressão que sujeita Woyzeck à tortura moral. Woyzeck é abordado na rua pelo
médico e pelo capitão (H2,7). O oficial, em conluio com o facultativo, diverte-se
à custa da perplexidade vexada do soldado. Ele insinua a seu subordinado que a
mulher o trai com o tambor-mor, de quem haveria de ter sobrado um fio de barba
num fundo de tigela. A reação indignada de Woyzeck repercute na fala do capitão:
“Que cara é essa meu rapaz? pode ser que não o tenhas visto na sopa, mas, se te
apressares e dobrares a esquina, poderás quem sabe encontrá-lo num par de lábios”. A denúncia de que aquilo que lhe é mais caro se lhe escapa na forma da
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Volker Klotz, Geschlossene und offene Form im Drama, op. cit., p. 122.
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traição leva-o a imaginar subitamente a constrição física extrema do enforcamento e os horrores do inferno gelado. Tais imagens, no entanto, não encontram correspondência em elementos tirados ao ambiente imediato, à exceção das duas
personagens postadas no meio do caminho, que constituem ali um resumo da
usina que tritura a alma e o corpo do soldado. Num lance único e concentrado, o
médico e o capitão sujeitam Woyzeck ao escárnio, exigem-lhe obediência (o capitão ameaça-o com um tiro), usam-no mais uma vez como cobaia (o médico toma-lhe o pulso, avalia a sua postura), lembram-no da dependência financeira que o
obriga à tarefa da fome (a promessa de um aumento pela dieta ignominiosa das
ervilhas). O espaço público torna-se o cenário propício e necessário ao encontro
humilhante do proletário com dois de seus algozes.
Também a natureza se submete à ordem social. A cena de abertura (H3,1)
apresenta Woyzeck e seu companheiro Andres em meio a uma campina, colhendo
varas. Enquanto podam os arbustos, Woyzeck é acometido por visões que ele
narra ao colega:
É, Andres, naquela faixa de capim, de noite rola a cabeça. Uma vez alguém levantou a dita
pensando que era um ouriço. Três dias e três noites depois estava durinho, esticado num caixão;
(em voz baixa) Andres, foram os maçons, eu sei, os maçons, silêncio!
Em seguida, o soldado crê ouvir a percussão do “oco” da terra e o som de
trombetas, tudo entrecortado por um estranho silêncio. O ambiente penumbroso
do anoitecer no arrabalde ajuda a promover essa conjuração de imagens soturnas,
mas a natureza está contaminada por elementos trazidos de outra parte. A colheita de varas promove algo mais que uma atividade campestre. Alude-se aqui à recolha do material necessário à confecção dos bastões ou açoites que se usavam no
castigo físico infligido aos soldados.21
À percepção de que a terra é oca Woyzeck associa a ideia do refúgio secreto de
uma confraria: “É tudo oco lá embaixo: os maçons!”. A associação não é gratuita. A
maçonaria constituía organização civil que de modo clandestino lutava pela liberalização do regime de Metternich. As autoridades procuravam denegri-la aos olhos
do povo atribuindo-lhe intenções e poderes que afrontavam a religião e os costumes. Não por acaso, diz Alfons Glück, Woyzeck imagina os maçons acoitando-se
embaixo da terra.22 A campina sombria espelha um sistema que oprime, persegue e
mata. A paisagem “natural” é cenário desse sistema, ao qual se integram Woyzeck
e Andres. Ela é lugar de trabalho e de reprodução do discurso ideológico, elemento
essencial no controle da temida massa proletária. A natureza encontra-se, assim, a
21
Cf. nota de Henri Poschmann a propósito dessa cena in Georg Büchner, Sämtliche Werke,
Briefe und Dokumente, op. cit., v. I, p. 742.
22
Cf. Alfons Glück. “‘Herrschende Ideen’: Die Rolle der Ideologie, Indoktrination und Desorientierung in Georg Büchners Woyzeck”, in Georg Büchner Jahrbuch 5, editado por Thomas Michael
Mayer, Frankfurt a. M., Europäische Verlagsanstalt, 1985, p. 62. Cf. também Henri Poschmann,
“‘Wer das lesen könnt’ – Zur Sprache natürlicher Zeichen im ‘Woyzeck’”, in Studien zu Georg Büchner,
editado por Hans-Georg Werner, Berlin, Weimar, Aufbau-Verlag, 1988, p. 195.
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serviço de interesses claramente identificáveis, oferecendo trabalho para o soldado,
matéria-prima para o apetrecho correcional e eco para a propaganda política.
Um pequeno monólogo de Marie, no final de H3,2, traz a primeira indicação
do desconforto da casa onde ela mora com o filho de colo: “Por que você ficou tão
calado, neném? Tá com medo? – Está tão escuro, é que nem se a gente ficasse cega.
Quase sempre a lanterna do poste ilumina aqui dentro. (Sai). Não aguento mais!
Isso me dá calafrios”. Além de escuro, o espaço da habitação é apertado e desguarnecido, observando-se na mão de Marie um “pedaço de espelho” e, numa cena
adiante (H3,4), à guisa de berço, uma cadeira a embalar o sono de Christian. Em
meio à penúria da casa, o par de brincos deixados pelo tamboreiro afigura-se-lhe
uma verdadeira joia: “Com certeza é ouro!”. Mas esse lampejo de felicidade é logo
substituído pelo confronto com o espaço e os objetos que a envolvem:
A gente só tem um cantinho no mundo e um pedaço de espelho, e ainda assim a minha
boca é tão vermelha quanto a de qualquer madame. Dessas madames que têm uns espelhos
grandes, que mostram de cima até embaixo. Dessas que os homens finos vêm beijar a mão. Eu
sou apenas uma pobre coitada. (H3,4)
Os objetos cênicos caracterizam o espaço e as personagens num preciso contexto de posição social. A faca e a navalha, a cadeira em que se acomoda o filho de
Woyzeck, as varas tiradas ao matagal: todos esses objetos vinculam-se a um determinado valor de uso e identificam a personagem que deles se utiliza com sua situação de classe. O burguês veste a casaca de belo talhe e ostenta um valioso relógio; o
filho do pobre contenta-se com a cadeira apertada e o ar abafado de seu casebre. O
contraste acentua-se ao se inserir um objeto que medeia a relação entre duas personagens. A navalha manuseada por Woyzeck aproxima-o fisicamente do capitão que
se afeita. O contato físico, porém, não esgota o sentido da cena, toda ela construída
em torno de uma conversa marcada pela clivagem existente entre o mundo das virtudes do oficial e o cotidiano do soldado, organizado em razão da sobrevivência
material: a presença do instrumento de corte assume assim caráter simbólico. Além
disso, o objeto em questão adquire valoração distinta a partir de perspectivas diferentes. Do ponto de vista de Woyzeck, a lâmina afiada é uma ferramenta de trabalho, valiosa na medida em que proporciona um dinheiro a mais em seu bolso. Para
o capitão, o mesmo objeto traduz o conforto e a distinção que sua posição social
garante. Ao roçar sua pele, o fio da navalha não representa esforço, mas o seu contrário, o ócio que ele cultiva como a última das virtudes, como se vê na já citada
passagem em H3,5: “Devagar, Woyzeck, devagar; uma coisa de cada vez; deixas-me
zonzo. Que é que eu farei com os dez minutos que sobrarão, já que terminas tão
cedo?”. O capitão usufrui a toillete do rosto como um entretenimento destinado a
preencher sua rotina de tédio. Para Woyzeck, os minutos economizados poderão
render-lhe algures outra gorjeta ou, quem sabe, um pingo de descanso.
Na cena do professor com seus alunos (H4,1) ocorre também a aproximação
física, promovida por mãos que apalpam o corpo macilento do soldado:
MÉDICO. Cavalheiros, os senhores podem ainda ver algo mais. Vejam este sujeito, há três meses que não come nada além de ervilhas. Observem o efeito, sintam como o pulso é irregular,
aqui, e os olhos.
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TERCIO REDONDO
Tempo e trabalho em Woyzeck, de Georg Büchner 67
WOYZECK. Doutor, a minha vista está escurecendo. (Senta-se.)
MÉDICO. Coragem, Woyzeck, apenas mais alguns dias e teremos terminado. Apalpem, senhores, apalpem!
(Apalpam-lhe a fronte, o pulso e o peito.)
Aqui também a proximidade física deve ser observada em razão de pontos de
vista divergentes. Para o médico, o soldado a ser examinado constitui a prova das
teses que lhe trarão o glorioso reconhecimento científico. A seus alunos a cobaia
humana representa tão somente o instrumento do aprendizado propedêutico.
Para Woyzeck, seu corpo descarnado traduz a tortura e a humilhação necessárias
ao incremento do soldo miserável. No contato físico revelam-se as disposições
sociais que colocam uns poucos sobre o terraço ou sobre a poltrona confortável e
os demais, na pele da cobaia e do burro de carga.
A profusão espacial que se observa em Woyzeck corresponde, como já se disse,
ao regime de trabalho fragmentado do soldado. Ele tem de distribuir seu tempo
pelos lugares onde executa suas obrigações militares, a par de uma gama de atividades extras, restando-lhe umas curtas visitas à própria casa e o divertimento barato
na feira. A multiplicidade de espaços revela também o caráter ubíquo do sistema de
exploração a que Woyzeck está submetido. A feira, lugar destinado em princípio ao
entretenimento, reproduz a mesma sorte de humilhação que Woyzeck padece nas
mãos de seus superiores. Ali o tambor-mor aproveita-se do interesse de Marie pelo
espetáculo do charlatão para conduzi-la às primeiras fileiras da plateia, em flagrante
desrespeito à presença daquele que a acompanha. Pouco antes, prestes a entrar na
barraca (H2,3), Woyzeck ouve o discurso que o detrata como inferior:
Meus senhores, meus senhores! Vede a criatura, como Deus a fez: sem nada, nada mesmo.
Vede agora o que faz o engenho humano: a criatura anda ereta, veste calças e casaca, e porta
uma espada! Vede o progresso da civilização. Tudo progride. – Um cavalo! Um macaco! Um
canalho!23 O macaco já é um soldado – o que não quer dizer muita coisa – o degrau mais baixo
do gênero humano!
Woyzeck aparenta não se ressentir da acusação de inferioridade ao ver-se
como soldado equiparado ao símio. A doutrinação para a obediência e para a aceitação da miséria acaba por naturalizar o dito maldoso, de modo que ele e sua
acompanhante decidem-se por adentrar na tenda do espetáculo que se anuncia,
antevendo uma atração divertida. A tirada do charlatão humilha aquele que se
acostumou ao vexame, não porque ela distorce a real situação do militar de baixo
escalão, mas justamente por revelar sua face verdadeira: ser soldado constitui ocupação vil que rebaixa o homem à condição animal. Os lugares reservados aos
passos agitados de Woyzeck configuram o espaço social da humilhação.
23
No texto original há um jogo de palavras. No lugar de Kanarienvögel (canário), aparece
Kanaillenvögel (pássaro canalha).
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68 Literatura e Sociedade
A MEDIDA, DE BRECHT:
UM EXERCÍCIO DE POSTURA
LUCIANO GATTI
Universidade Federal de São Paulo
Resumo
O texto propõe uma discussão da peça A medida, de Bertolt
Brecht, a partir de uma análise da forma da peça de aprendizagem, bem como de sua polêmica recepção. Discute-se o
conceito de “refuncionalização” como estratégia político-artística inerente à tal forma de espetáculo, para então, a partir
da interpretação de trechos escolhidos da peça, examinar a
concepção de ensinamento proposta por ela.
Abstract
This article proposes a discussion of Bertolt Brecht’s play The
decision (Die Massnahme), through an analysis of the form of
the learning play (Lehrstück), as well as its polemical reception.
It discusses the concept of ‘re-functionalization’ as a political and
artistic strategy which is inherent to that kind of performance,
and then interprets excerpts of the play in order to examine the
concept of teaching proposed by it.
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Palavras-chave
Bertolt Brecht;
peça de
aprendizagem;
teatro
pedagógico.
Keywords
Bertolt Brecht;
learning play;
pedagogical
theatre.
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LUCIANO GATTI
A medida, de Brecht: um exercício de postura 69
Refuncionalizar
E
xperimento mais controverso de Brecht, A medida (Die Massnahme, 1930)
ainda é um trabalho de difícil avaliação. Desde sua concepção, a forma vanguardista da peça de aprendizagem (Lehrstück) destoava do espetáculo convencional,
oferecido por profissionais à apreciação do público (Schaustück). A ousadia da
proposta consistia em produzir um exercício coletivo voltado primordialmente
para os que nele atuavam. Tal arranjo formal parecia o mais adequado à discussão
de uma questão tão urgente e delicada quanto a violência implicada na formação
dos coletivos revolucionários, especialmente no início de uma década que enfrentaria a ascensão do fascismo e o autoritarismo dos partidos comunistas. O conjunto, em suma, era atípico, e prenunciava uma história de polêmicas que não se
dissociaria mais da própria obra. Produção de um autor preocupado, antes de
tudo, em despertar processos de pensamento, as controvérsias eram esperadas.
Até que ponto elas iluminam a obra, é algo a ser discutido. Brecht, em todo caso,
não descartaria a recepção interessada do público, ainda que esse não fosse imprescindível à encenação de uma peça de aprendizagem. Com o intuito de organizar essa recepção, o programa para a noite de estreia, na grande sala da Filarmônica de Berlim, em dezembro de 1930, cuidava de introduzir os espectadores à
novidade do experimento:
A peça de aprendizagem A Medida não é uma peça de teatro no sentido usual. É um empreendimento para um coro de massa e quatro atuantes. Na nossa encenação de hoje, que deve ser
mais um tipo de apresentação, a parte dos atuantes foi feita por quatro atores. Mas esta parte
pode ser encenada de forma simples e primitiva e tal é justamente seu objetivo principal. / O
conteúdo da peça de aprendizagem é, em resumo, o seguinte: quatro agitadores comunistas
estão diante de um tribunal do partido, representado pelo coro de massa. Eles fizeram propaganda comunista na China e se viram obrigados a matar o seu mais jovem camarada. A fim de
provar ao tribunal a necessidade da medida, eles mostram como o Jovem Camarada se comportou durante as diversas situações políticas. Mostram que o Jovem Camarada era sentimentalmente um revolucionário, mas não mantinha disciplina suficiente e utilizava pouco a sua razão,
de modo que, sem querer, se tornara um grave perigo para o movimento. O objetivo da peça de
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aprendizagem é portanto expor um comportamento político incorreto, ensinando assim o comportamento correto. A apresentação visa pôr em discussão se um empreendimento como esse
tem valor de aprendizagem política.1
A recepção na imprensa da época foi bem diversificada.2 De modo geral, as
apreciações favoráveis vinham da imprensa musical burguesa, que destacava a alta
qualidade do desempenho musical. A partitura de Hanns Eisler, executada por
cantores e por três coros amadores de trabalhadores, não era, de modo algum, um
aspecto secundário do espetáculo. Com construção sofisticada, ela empregava
materiais musicais do oratório do século XVIII – coro introdutório, recitativos,
árias – além de citações do Evangelho segundo São Mateus de Bach, e, aliada ao
texto de Brecht, deveria conferir ao concerto musical, segundo Eisler, o aspecto de
um comício político. O interesse pela conformação musical das peças de aprendizagem não era inédito. Desde o Festival de Música Nova de Baden-Baden, em
1929, onde Brecht, com colaborações de Kurt Weil e Paul Hindemith, estreara O
voo de Lindbergh e A peça de Baden-Baden sobre o acordo, tais experimentos já se
inseriam nos debates em torno da música utilitária (Gebrauchsmusik). Essas experiências bem-sucedidas com a ópera escolar e com novas formas de produção e
execução musical, entre elas o rádio e o disco, preparavam o terreno para a recepção positiva em Berlim.
Na imprensa conservadora, por sua vez, acusações de militarismo comunista
na história do sacrifício do jovem camarada em prol do partido foram a nota dominante. À margem das inovações de Brecht e Eisler, tais críticas prenunciavam a
recepção predominante nas décadas seguintes. A conversão autoritária dos partidos comunistas favoreceria a fixação do texto como um prenúncio justificador
dos processos de Moscou. Mesmo críticos competentes como Adorno ainda encontrariam na peça uma “glorificação” do partido.3 Ouvido a distância, o peso dos
grandes coros de Eisler sobre a voz individual do jovem camarada terminaria por
ressaltar ainda mais a supremacia partidária. Como afirmou recentemente Hans
This-Lehmann,
este outro nível é estruturado de tal forma que, para muitos ouvintes, A medida tornou-se um
hino quase ritual sobre a obediência e a disciplina do coletivo comunista, uma festa para-religiosa do sacrifício pela causa, um forte cântico de louvor sobre a futilidade do pensamento
1
Bertolt Brecht, “[Das Lehrstück ‘Die Massnahme’]”, in Grösse kommentierte Berliner und
Frankfurter Ausgabe 24, Schriften 4, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1988, p. 96. Tradução para o
português em Ingrid Koudela, Brecht: um jogo de aprendizagem, São Paulo, Perspectiva, 1991, p. 61.
Salvo indicação em contrário, as traduções utilizadas neste texto são de responsabilidade do autor.
Traduções disponíveis podem estar modificadas.
2
Uma amostra da recepção inicial pode ser encontrada nas resenhas coletadas por Reiner
Steinweg para sua edição crítica da peça: Reiner Steinweg, Die Massnahme. Kritische Ausgabe mit
einer Spielanleitung von Reiner Steinweg, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1972.
3
Cf. T. W. Adorno, “Engagement”, in Noten zur Literatur, Gesammelte Schriften, Frankfurt am
Main, 1997, p. 415.
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individual, considerando a elevada sabedoria do coletivo do partido etc. E intérpretes [...] acentuaram a sua proximidade com jogos folclóricos e jogos de consagração do trabalho, nos quais
devem sobreviver as vivências comunitárias da comunidade popular (Volksgemeinschaft) ou as
tradições dos festivais convertidas à social-democracia.4
Os problemas de uma interpretação nessa linha se realçam ainda mais quando
se levam em consideração as circunstâncias políticas imediatas, uma vez que
Brecht e Eisler também assumiam uma posição crítica perante as diretrizes do
Partido Comunista soviético e da Terceira Internacional a respeito da organização da revolução chinesa.5 Seja como for, o embate mais intenso ocorreu, como
Brecht e Eisler esperavam, no interior do movimento revolucionário de trabalhadores. O programa da estreia trazia um pequeno questionário a respeito do eventual potencial político do espetáculo, o qual deu ensejo, na semana seguinte, a
uma discussão aberta em uma escola de Berlim.6 A peça foi amplamente discutida nesses círculos e, apesar de elogios gerais, não foi poupada de críticas severas. As resenhas censuravam desde a distinção “burguesa” entre o racionalismo
dos agitadores e o sentimentalismo do jovem camarada, cujo “coração bate pela
revolução”, até um certo idealismo na concepção do trabalho revolucionário,
fundado antes no ensinamento dos clássicos do comunismo, cuja propaganda
motiva a viagem dos agitadores, do que nas estratégias concretas dos militantes.
Num longo artigo publicado no ano seguinte em Moscou, Alfred Kurella sintetizou diversas dessas críticas.
Uma concepção idealista fundamental atravessa a peça por inteiro. Ela se apresenta de modo
mais nítido na concepção do comunismo e do partido comunista. Para os autores, o comunismo é uma ideia, ele consiste no ensinamento dos clássicos. Quando a peça glorifica o partido
[…] e exige a submissão do indivíduo a ele, tal ocorre porque o partido corporifica “a doutrina”. […] O verdadeiro tema [da peça] é a tese da primazia da razão sobre o sentimento: o
jovem camarada, diz Brecht, age de modo errado em toda ocasião porque ele se deixa levar
pelo sentimento no lugar da razão. […] Mesmo quando o intelectual já compreendeu racionalmente e por inteiro a correção das ideias comunistas, seu sentimento ainda se volta contra
muitas medidas práticas do partido comunista. O conflito entre razão e sentimento é, portanto,
uma vivência fundamental do intelectual burguês que está a ponto de juntar-se ao proletariado
revolucionário.7
4
Hans Thies Lehmann, “Peça didática e espaço de possibilidades”, in Escritura política no texto
teatral, São Paulo, Perspectiva, 2009. p. 394-5.
5
Cf. Iná Camargo Costa, “Brecht e o teatro épico”, Literatura e Sociedade, n. 13, p. 232-3, 2010.
6
O questionário era composto por quatro questões: “1. O senhor acredita que um empreendimento como esse tem valor de aprendizagem política para o espectador? 2. O senhor acredita que um
empreendimento como esse tem valor de aprendizagem para os encenadores (portanto, atuantes e
coro)? 3. Contra quais tendências de aprendizagem contidas em A medida o senhor tem objeções
políticas? 4. O senhor acredita que a forma de nosso empreendimento é correta para o seu objetivo
político? O senhor poderia nos sugerir outras formas?”. Brecht, GA 24, p. 96. Tradução de Koudela,
op. cit., p. 62.
7
Alfred Kurella, “Ein Versuch mit nicht ganz tauglichen Mitteln”, in Steinweg, op. cit., p. 384-390.
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Essas discussões estimularam Brecht a escrever uma nova versão do texto,
publicada no ano seguinte num caderno das Versuche [Experimentos].8 A peça,
contudo, cada vez mais inseparável dos percalços da recepção, não voltou a ser
montada por ele no pós-guerra. Pouco antes de morrer, quando a considerava seu
esforço mais próximo ao modelo de um teatro do futuro,9 ele ainda recusava a
conceder permissão a novas encenações. Ao apresentar seus motivos a um encenador, ele esclarece. “A medida não foi escrita para espectadores, mas sim para o
ensinamento dos atuantes. Encenações diante de um público suscitam, por experiência, nada mais do que afetações morais geralmente de tipo medíocre por parte
do público. Por isso há tempos não libero a peça para apresentações”.10 Sua recusa
se apoia na defesa do princípio formal básico da peça de aprendizagem: ao propor
um exercício de aprendizado destinado aos atuantes, ela supera a cisão tradicional
entre quem atua e quem observa. A presença do público é secundária, como ele
afirmou em 1937, ao formular retrospectivamente os esboços de uma “teoria da
peça de aprendizagem” paralelamente às reflexões sobre o teatro épico:
A peça de aprendizagem ensina quando nela se atua, não quando se é espectador. Em princípio, não há necessidade de espectadores, mas eles podem ser utilizados. A peça de aprendizagem
baseia-se na expectativa de que o atuante possa ser influenciado socialmente, levando a cabo determinadas formas de agir, assumindo determinadas posturas, reproduzindo determinadas falas.11
8
A edição crítica conta com cinco versões: a primeira, de 1930; a versão para publicação nas Versuche, também de 1930, a qual foi utilizada nas primeiras apresentações; a versão revista de 1931, publicada em outro número das Versuche; um trecho de poucas páginas para uma edição soviética de
1935/6; e uma última versão revista para publicação nas Gesammelte Werke de 1938. Com base na
análise das diferenças entre os textos e da posição do próprio Brecht perante o trabalho, a última edição
crítica, a Grösse kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe, publicada em 1988 pela Suhrkamp,
traz apenas as versões publicadas por Brecht em 1930 e 1931. O presente trabalho utiliza a versão de
1931, disponível nesta última edição. Entre as diversas diferenças entre a versão de 1930 e de 1931, vale
ressaltar algumas das modificações feitas por Brecht a partir das discussões provocadas pela peça. Em
relação à tal dicotomia entre razão e sentimento, na versão de 1930, o jovem camarada erra por colocar
o sentimento acima da razão, enquanto no texto revisto, seu erro surge da separação de razão e sentimento, o que atenua a dicotomia entre os termos. A missão de propaganda comunista também se modifica: enquanto que em 1930 se tratava de fundar o partido comunista chinês, em 1931 a tarefa reduz-se
a subvencioná-lo. Também não se trata mais de agitar uma greve, mas de colaborar para o desenvolvimento de uma greve específica em greve geral. Como comentário ao conjunto das modificações, vale
consultar as anotações dos editores da edição crítica citada acima. A tradução para o português, feita
por Ingrid Koudela e publicada pela Paz e Terra em 1992, junto com as peças de aprendizagem anteriores, toma por base a versão publicada na edição alemã de 1955, a qual reproduziria o texto de 1931.
Há, contudo, diversas disparidades entre o texto traduzido e a versão de 1931 publicada na última
edição crítica (cf. Bertolt Brecht, Teatro completo 3, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992).
9
Conversa com Manfred Wekwerth apud Koudela op. cit., p. 59.
10
Carta de Brecht a Paul Patera de 21 de abril de 1956 (apud Koudela op. cit., p. 59).
11
Bertolt Brecht, “Zur Theorie des Lehrstücks”, GBA 22, p. 351. Tradução de Koudela, op. cit.,
p. 16. Cf. também o “Caderno de programa para a apresentação pública da Peça de aprendizagem de
Baden-Baden sobre o acordo”: “A peça de aprendizagem, formada por algumas teorias de caráter musical, dramático e político, tendo por objetivo um exercício artístico coletivo, foi escrita para o autoconhecimento dos autores e daqueles que dela participam e não para ser um evento para quaisquer
pessoas. Ela não está sequer concluída […].”
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Pouco antes de morrer, em uma entrevista de 1956, ao responder quem era o
“público” de sua peça, ele reafirma que a peça havia sido escrita
para o jogo em grupo. Ela foi escrita não para um público de leitores, nem para o público de
espectadores, mas exclusivamente para alguns jovens que queiram se dar ao trabalho de estudá-la. Cada um deles deve passar de um papel ao outro e assumir, sucessivamente, o lugar do
acusado, dos acusadores, das testemunhas, dos juízes. Nestas condições, cada um deles irá
submeter-se aos exercícios da discussão e terminará por adquirir a noção – a noção prática do
que é a dialética.12
O experimento ocupa aqui um lugar de destaque entre os modos de aprendizagem. Cabia à peça de aprendizagem conferir caráter cênico à tese de que se
aprende melhor pelo experimento prático do que pela observação teórica. Mas a
proposta não se esgotava na realização de um exercício predefinido. O ator deveria tornar-se capaz de problematizar tanto o objeto quanto a forma mesma da
aprendizagem. Os impasses da formação político-partidária do coletivo são explicitados por meio de um exercício de natureza coletiva, sem que os atuantes sejam
induzidos a optar por uma alternativa definida de antemão pelo autor como a
correta.13 Os equívocos da recepção devem ser vistos como a assimilação do conteúdo fabular a uma forma tradicional, como se a peça disseminasse teses a respeito do conflito entre a disciplina coletiva e a espontaneidade individual. A pedagogia brechtiana não parte de um ensinamento prévio atualizado e transmitido
durante o exercício, mas enfatiza a dimensão cênica e coletiva do exercício, sempre
receptivo à discussão dos pressupostos da formação de uma coletividade. Como
isso requeria uma profunda transformação do próprio espetáculo, não causa surpresa que Brecht atribua os equívocos suscitados pela fábula à desconsideração da
organização formal do exercício. Caso o espetáculo não superasse a cisão tradicional entre atuantes e observadores, ele se dissolveria em seus polos antitéticos,
dando margem à justificação da autoridade do partido como solução positiva para
os problemas propostos.
Ao conceber um espetáculo em que as posições do público e dos atuantes
tornaram-se intercambiáveis, a peça de aprendizagem também confere um novo
sentido a esses termos. Enquanto o público não é mais só um observador, os atuantes também passam a ocupar a posição de observadores. Não são mais instâncias
incomunicáveis, mas posições que se transformam reciprocamente. O espetáculo,
por sua vez, adquire uma nova função: ele não se destina mais à fruição, mas, ra-
12
Entrevista a Pierre Abraham, Alternative 78/79, p. 131 (apud Koudela, op. cit., p. 66).
Em textos como a “Teoria da pedagogia”, Brecht amplia o escopo da superação entre ator e
espectador operada pela peça de aprendizagem. Do ponto de vista da educação para a organização
política coletiva – o Estado –, tal superação aponta para outra relação entre teoria e prática, tornando-se um instrumento de crítica ideológica à separação burguesa entre agente e observador,
fundamento da neutralidade axiológica pretendida pela ciência burguesa. Esta crítica é o ponto de
partida para as diretrizes de superação da distinção entre o cientista e o político, de modo a mobilizar
a ciência a favor da emancipação social, questões estas trabalhadas em peças como O voo sobre o
oceano e A peça de Baden-Baden sobre o acordo (cf. Brecht, “Theorie der Pädagogien”, GBA 21, p. 398).
13
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dicalizando as intenções do teatro épico, à organização do público-atuante. Brecht
nomeou essa estratégia de Umfunktionierung, um termo que poderia ser traduzido
por “inverter o funcionamento”, “conferir uma nova função” ou, simplesmente
“refuncionalizar” as instituições artísticas. O trabalho artístico inovador ficaria
aquém de sua potencialidade caso se contentasse a abastecer as instituições artísticas tradicionais sem transformá-las. Na introdução do quarto caderno dos Experimentos, onde Brecht publicou o texto de A medida, ele esclarece: “A publicação
dos Experimentos ocorre num momento em que certos trabalhos não deverão ser
mais vivências tão individuais (ter o caráter de obra), mas voltam-se mais à utilização (transformação) de determinados institutos e instituições (ter o caráter de
experimento)”.14
Na contracorrente de muitas intenções vanguardistas, Brecht não pretendia
liquidar as instituições artísticas, mas conferir a elas uma nova função social a
partir de potencialidades inscritas na realidade. Seu alcance, porém, não é menor.
O artista é destituído da posição de criador autossuficiente para tornar-se um produtor em condições de ensinar e colaborar com outros produtores. O processo
produtivo conquista assim relevo e autonomia, colocando em destaque o experimento coletivo perante a noção usual de obra feita e acabada. Pois, segundo as
considerações de Walter Benjamin em “O autor como produtor”, um ensaio que
tem em Brecht seu ponto de fuga, essa nova postura do artista não se limita a fornecer produtos, mas procura, sobretudo, desenvolver novos meios de produção
para si e para outros artistas. Seria o progresso técnico da obra de arte o responsável por oferecer condições para a refuncionalização das formas artísticas e, desse
modo, dos meios de produção espirituais. “Para o autor como produtor”, diz Benjamin, “o progresso técnico é o fundamento de seu progresso político”.15 Trata-se
aqui de uma perspectiva que, ao avaliar a função revolucionária da arte, almeja
superar oposições tradicionais como forma e conteúdo ou, nesse caso específico,
entre inovação formal e tendência política correta. Tal tendência exige uma outra
função social para a arte, essencialmente não ilusionista, função essa que não poderia ser alcançada sem inovações técnicas na composição da obra de arte. Basta
lembrar o quanto a produção de um espetáculo não ilusionista por Brecht foi favorecida pelo aprendizado e pela apropriação das novas técnicas de montagem
colocadas em circulação pelo cinema. É nesse sentido que seu teatro poderia ser
considerado atual. A montagem desfaz o caráter orgânico do espetáculo e eleva a
interrupção da ação dramática à posição de princípio organizador. Ao referir-se ao
emprego da interrupção pelo teatro épico, nesse ponto análogo às peças de aprendizagem, Benjamin ressalta:
14
Brecht, GBA 10, p. 1118 / GBA 22 p. 1049.
W. Benjamin, “O autor como produtor”, in Gesammelte Schriften II-2, Frankfurt am Main,
Suhrkamp, 1991, p. 693. Tradução brasileira de Sérgio Paulo Rouanet em W. Benjamin, Obras escolhidas, São Paulo, Brasiliense, 1995, p. 129. Benjamin documentou uma discussão com Brecht sobre
essa questão em 1934 (cf. Benjamin, “Anotações de Svendborg, Verão de 1934”. GS VI, p. 523-4.
Tradução brasileira em Viso – Cadernos de estética aplicada, n. 9, 2011).
15
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Com o princípio da interrupção, o teatro épico adota um procedimento que se tornou familiar para nós, nos últimos anos, com o desenvolvimento do cinema e do rádio, da imprensa
e da fotografia. Refiro-me ao procedimento da montagem: pois o material montado interrompe
o contexto no qual é montado. A interrupção da ação, que levou Brecht a caracterizar seu teatro
como épico, combate sistematicamente qualquer ilusão por parte do público. Essa ilusão é inutilizável para um teatro que se propõe a tratar os elementos da realidade no sentido de um ordenamento experimental. […] O teatro épico, portanto, não reproduz as condições, ele as descobre.
A descoberta das condições se efetua por meio da interrupção das sequências. Mas a interrupção não se destina a provocar uma excitação, e sim a exercer uma função organizadora. Ela
imobiliza os acontecimentos e com isso obriga o ouvinte a tomar uma posição quanto à ação, e
o ator, a tomar uma posição quanto ao seu papel.16
A estratégia político-artística da Umfunktionierung é aqui indissociável de um
posicionamento perante os mecanismos artísticos disponíveis aos produtores.
Avaliar o papel da peça de aprendizagem nesse contexto implica especificar as
instituições artísticas afetadas por um trabalho como A medida. Em outras palavras, trata-se de perguntar pelos aparelhos – o teatro, o concerto, a ópera – visados
pela peça de aprendizagem. A questão não recai em áridas discussões formais,
muito menos se dilui em manobras de engajamento ou política cultural. Ao contrário, ela é necessária tanto à compreensão da autonomia de tal forma quanto à
sua sobrevida em condições político-artísticas bem diversas daquelas enfrentadas
por Brecht e Eisler. Benjamin nos dá uma pista ao mencionar a diversificação do
talento de Brecht no “teatro, na anedota, no rádio” – “pontos calculados com exatidão no deserto da atualidade”.17 Nesse contexto, as peças de aprendizagem
servem à variação de estratégias na aplicação desse talento. Levar em conta a
diversidade das peças contra a ideia de um modelo unívoco realça o processo de
Umfunktionierung. Ponto alto de uma sequência de experimentos, A medida não é
a suma de um conceito de espetáculo. Como variação sobre um mesmo tema, ela
retoma e intensifica motivos gestados nas peças anteriores.
O voo sobre o oceano (originalmente O voo de Lindbergh) é uma peça radiofônica
com música composta por Kurt Weil. Ela parte de um evento amplamente divulgado pelo rádio – a primeira travessia aérea do Oceano Atlântico pelo aviador norte-americano Charles Lindbergh – e apropria-se estrategicamente do meio de comunicação para discutir os pressupostos sociais do grande feito. A façanha heroica do
aviador é então desmitificada como parte de um esforço coletivo fundado no progresso técnico. A peça de Baden-Baden sobre o acordo, por sua vez, apresentada no
mesmo festival com música de Hindemith, aproxima-se, assim como A medida, de
um oratório na organização musical, mas a segmentação didática da apresentação
em episódios de caráter argumentativo confere ao conjunto flexibilidade suficiente
para a inclusão de episódios como um violento número de clowns. Ao retomar
logo no início o tema da peça anterior, ela reforçava a conexão sequencial das peças, mas com acentos distintos, examinando a confiança irrestrita na dominação
16
17
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Benjamin. “O autor como produtor”, GS II-2, p. 697-8 (Obras escolhidas, p. 131).
Benjamin, “Dos comentários a Brecht”, GS II-2, p. 506.
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técnica da natureza à luz de sua finalidade social. Aquele que diz sim/ Aquele que diz
não, finalmente, são duas óperas escolares conexas, com música de Weil, destinadas a escolas de Berlim. No conjunto das peças, são as mais próximas dos recursos
estritamente teatrais. Elas retomam o motivo da expedição e o submetem a uma
disjunção antitética com o intuito de colocar em relevo pressupostos da relação do
indivíduo com a coletividade. Por meio do motivo do acordo consentido ou negado com a própria morte, elas antecipam uma questão-chave de A medida.
A variedade de aparelhos chama a atenção: o concerto, seja numa grande sala,
seja num festival de música, o rádio, o teatro escolar. Nem sombra do teatro comercial, palco do espetáculo “culinário”, destinado à diversão evasiva do público
em suas noites de lazer. Ainda assim, discutir se a peça de aprendizagem é (apenas) uma nova e promissora forma de teatro não é uma questão secundária. O alto
padrão técnico da estreia de A medida levanta várias questões. Na década de 1920,
as exigentes condições para uma apresentação bem-sucedida eram fornecidas pela
estreita conexão do teatro e dos corais de trabalhadores com um público não comercial oriundo dos sindicatos e das escolas em algumas cidades alemãs. No caso
do teatro, salienta Roberto Schwarz,
se não for uma ilusão retrospectiva, este espectador sob medida para o teatro político existiu
durante um curto período, nuns poucos lugares, ligado a condições especiais, que merecem
reflexão. Era o resultado da confluência dos “teatros livres” – um experimento importante, filiado à literatura naturalista, no qual a contribuição voluntária dos associados afastava da cena
as considerações mercantis e o ponto de vista oficial – e o avanço histórico das organizações
operárias autônomas.18
O cenário musical, por sua vez, também colaborava para confluência entre
arte e política: “A federação dos corais operários, de orientação social-democrata,
congregava, em 1930, mais de catorze mil conjuntos, ou seja, quinhentos e sessenta mil participantes, dos quais setenta por cento eram operários”.19 Durante o
exílio na Dinamarca, refletindo sobre o caso específico do teatro épico, Brecht retomaria esses pressupostos:
até hoje as circunstâncias favoráveis a um teatro épico e pedagógico só existiram em poucos
lugares e não por muito tempo. Em Berlim, o fascismo impediu energicamente o desenvolvimento de tal teatro. Além de um determinado padrão técnico, ele pressupõe um poderoso movimento na vida social que tenha interesse na livre discussão das questões vitais em vista de sua
solução e que possa defendê-lo de toda tendência oposta.20
Foram essas condições favoráveis que possibilitaram a elaboração de A medida
como uma nova forma de espetáculo cênico-musical. É natural, portanto, supor
que o desaparecimento dessas condições a afete profundamente. Os debates em
18
Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, in Sequências brasileiras, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 126-7.
19
Koudela, op. cit., p. 50.
20
Brecht, “Vergnügungstheater oder Lehrtheater”, GBA 22, p. 116.
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torno da redescoberta do gênero a partir do final dos anos 1960 movem-se em
torno dessa questão. Logo após a morte de Brecht, em 1956, com sua consequente consagração, o termo “peça de aprendizagem” se encontrava reduzido a uma
designação genérica para peças de cunho político, o que era considerado bastante
aquém da forma épica desenvolvida nas grandes peças. Mesmo o confronto de
Heiner Müller com o gênero nos 1960 permaneceu um esforço circunscrito ao
próprio teatro de Müller.21
A renovação do interesse por tais peças teria que esperar pelos estudos de
Reiner Steinweg – sobretudo seu livro A peça de aprendizagem. A teoria brechtiana
de uma educação estético-política, de 1972.22 Esse trabalho lançava mão de uma
tese ousada para reabilitar a peça de aprendizagem: essa seria o ponto alto do teatro de Brecht, o verdadeiro teatro de uma época socialista, enquanto o teatro épico, por sua vez, corresponderia a uma solução transitória para as dificuldades
circunstanciais enfrentadas por ele. Steinweg sustentava sua tese mediante a reconstituição de uma teoria da peça de aprendizagem, nunca acabada pelo próprio
Brecht, e construída a partir de uma “regra básica”: o ator atua para si mesmo, o
que seria uma modificação de grande alcance. Além de privar o espectador tradicional de uma função na organização do espetáculo, mantida por Brecht no teatro
épico, ela superaria a divisão do trabalho entre quem assiste e quem atua. A ênfase na teoria da peça como um modelo de teatro, para além das condições de cada
experimento, termina por distanciar o estudo de Steinweg das repercussões mais
amplas pretendidas por Brecht, especialmente da refuncionalização de aparelhos
como o rádio e o concerto.
A redução da peça de aprendizagem a um modelo de teatro foi o ponto de
partida da forte polêmica empreendida por Klaus-Dieter Krabiel contra Steinweg
em seu livro de 1993, As peças de aprendizagem de Brecht. Origem e desenvolvimento de um tipo de espetáculo.23 Passando a forma para o plural, Krabiel retoma
a gênese das peças, especialmente sua inscrição nos debates a respeito da música
utilitária do Festival de Música Nova de Baden-Baden, para afirmar a indissociabilidade entre texto dramático e partitura musical. Embora empregassem técnicas
dramatúrgicas e de encenação teatral, as peças de aprendizagem, afirma ele, se
21
A partir de meados dos anos 1960, Müller escreveu três peças interligadas que pressupõem e
criticam o modelo brechtiano: Filocteto (1964), o Horácio (1968) e Mauser (1970). O problema da
peça de aprendizagem, contudo, continua a repercutir em sua obra nos anos seguintes, como pode
ser notado em trabalhos como sua encenação do Material Fatzer, de Brecht, em 1978, e em peças
como Quarteto (1980), Descrição de imagem (1983) e A estrada de Wolokolamsk (1984).
22
Reiner Steinweg, Das Lehrstück. Brechts Theorie einer politisch-ästhetischen Erziehung, Stuttgart,
Metzler, 1972. Cf. também sua coletânea de material sobre a peça: Reiner Steinweg (org.) Brechts
Modell der Lehrstücke. Zeugnisse, Diskussion, Erfahrung, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991. O livro de Koudela, de 1991, destaque na bibliografia brasileira sobre o tema, mantém-se circunscrito
ao horizonte de pesquisa aberto por Steinweg.
23
Klaus-Dieter Krabiel, Brechts Lehrstücke. Entstehung und Entwicklung eines Spieltyps, Stuttgart,
Metzler, 1993. Uma apresentação condensada de sua posição pode ser encontrada em seus verbetes sobre as peças de aprendizagem para o Brecht-Handbuch, organizado por Jan Knopf, Stuttgart,
Metzler, 2003.
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desenvolveram como uma forma autônoma, a partir de duas preocupações básicas: a consciência do crescente afastamento da Música Nova em relação ao público, com a contrapartida de uma reaproximação promovida por novos vínculos
com a ópera, a dança, o rádio e o cinema; e o interesse em apropriar-se do rádio
e da gravação em disco como instrumentos de difusão musical, produzindo composições originais para esses novos meios. Esses eram, de resto, os grandes temas
do Festival de 1929, onde Brecht apresentou seus dois primeiros experimentos
com a peça de aprendizagem.
O argumento de Krabiel adquire um interesse especial ao derivar essa autonomia formal daquelas condições de refuncionalização disponíveis a Brecht e Eisler
por volta de 1930. É o que esclarece o testemunho histórico de Benjamin. Em “O
autor como produtor”, ele cita Eisler retrospectivamente para mostrar como a colaboração entre música e palavra poderia conferir uma função nova e progressista
à música de concerto. O diagnóstico de Eisler sobre o papel da técnica no crescente afastamento entre músicos e ouvintes é perfeitamente reconhecível no contexto
dos debates da música utilitária dos anos 1920:
Também na evolução musical, tanto na esfera da produção quanto da reprodução, temos
que reconhecer um processo de racionalização cada vez mais rápido […] O disco, o cinema
sonoro, o automático musical, podem fazer circular obras-primas da música em conserva, como
mercadorias. Esse processo de racionalização tem como consequência que a produção musical
se limita a grupos cada vez menores, mas também cada vez mais qualificados. A crise da música
de concerto é a crise de uma forma produtiva obsoleta, superada por novas invenções técnicas.
A medida é então lembrada por Benjamin como a resposta mais avançada a
essa crise, justamente por superar oposições que travavam a transformação progressista da arte, seja no uso do aparelho (músico/ouvinte), seja na composição
artística (música/palavra):
A tarefa consistia, portanto, em refuncionalizar a forma-concerto, mediante duas condições: primeiro, eliminar a oposição entre intérprete e ouvinte, e segundo, eliminar a oposição
entre técnica e conteúdo. […] Ou seja, a tarefa de transformar um concerto não é possível sem
a cooperação da palavra. Somente ela, como diz Eisler, pode transformar um concerto em um
comício político. Brecht e Eisler provaram, com a peça de aprendizagem A Medida que essa
transformação pressupõe um altíssimo nível da técnica musical e literária.24
Resta discutir se tal autonomia resiste ao desaparecimento desse pressuposto
histórico. Afirmar a autonomia de uma forma implica um conceito restrito dela,
quando não reservas ao que a história faz dela? Estaria assim a caracterização da
peça de aprendizagem como teatro de vanguarda, como quer Steinweg, mais próxima da realização, nas atuais circunstâncias, do experimento de aprendizagem
24
Benjamin. “O autor como produtor”. GS II-2, p. 694 (Obras escolhidas, p. 129-130). Os debates entre Krabiel e Steinweg continuaram nos anos seguintes. Cf. Steinweg, “Re-Konstruktion,
Irrtum, Entwicklung oder Denken fürs Museum: Eine Antwort auf Klaus Krabiel”, in Brecht-Yearbook
v. 20, 1995; e os verbetes de Krabiel para o Brecht-Handbuch.
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A medida, de Brecht: um exercício de postura 79
proposto por Brecht? Diante da inexistência na atualidade dos coros amadores de
trabalhadores – os próprios interessados nas questões levantadas por Brecht –, os
altos parâmetros técnicos exigidos pela partitura só poderiam ser atendidos por
artistas profissionais, o que possivelmente resultaria em espetáculos de cunho mais
convencional. Como combinar então a prática artística concreta com a autonomia
da forma? Ela ainda mostra algum potencial de refuncionalização do aparelho?
Como lembra o próprio Brecht, as definições corretas são as definições praticáveis.25 Diversos debates do final dos anos 1990 vincularam tal praticabilidade
à necessidade de abandonar a partitura de Eisler no fundo da gaveta. Joachin
Lucchesi, por exemplo, lembra que sua forma de oratório, além de aproximá-la
demais do cânone da arte burguesa, confere um caráter estático ao espetáculo,
pouco permeável à ideia de um exercício de aprendizagem.26 Hans-Thies Lehmann
dá um passo além, ao afirmar que mudanças profundas das condições de encenação teriam dado origem não só a duas maneiras de encenar, mas também a duas
obras distintas:
Comecemos com a existência dupla singular […] daquilo que conhecemos sob o título A
medida: um texto no livro que, no contexto da teoria das peças de aprendizagem, deve ser recebido como um dispositivo, no qual os leitores podem e devem inserir os seus interesses como
usuário; e a obra total com música de Eisler, levada à cena pela primeira vez em 1930, ligada a
um ritmo dos mais severos, do tipo de oratório com fortes cânticos de coros e solistas, música
que hoje ainda é considerada militante, dinâmica. Após poucas apresentações nos tempos da
República de Weimar […], A medida foi apresentada como texto e não como obra musical e
com razão foi constatado “que a limitação ao texto aproximava-a mais a uma peça de aprendizagem, que, nesse sentido, a deixava praticável, sendo que, com a obra completa e com a composição de Eisler, eram desenvolvidas contradições imprevistas contra a ideia das peças de
aprendizagem”. A elevada forma musical e a severa organização do material quase não deixam
lugar para a realização da ideia da peça de aprendizagem.27
Tais colocações são pertinentes, embora não devam ser alçadas à posição de
condições normativas para a recepção da peça, de modo a sugerir alguma hierarquia entre formas distintas de espetáculo. Assim como as condições de gênese não
se confundem com as circunstâncias posteriores da recepção, a atenção ao momento presente do teatro também deve precaver-se contra a exclusão de formas
que um dia foram possíveis. Tanto o texto quanto a partitura, separadas ou em
conjunto, continuam existindo como materiais históricos disponíveis à apropriação. Optar de antemão por uma ou outra é antecipar uma decisão que cabe a cada
nova encenação. Uma vez que a peça resiste como algo abstrato, que se materia-
25
Joachim Lucchesi, “Das Stück wirkt mit der Musik ganz anders!”, in Inge Gellert, Gerd Koch,
Florian Vassen, Massnehmen. Bertolt Brecht / Hanns Eislers Lehrstück, Die Massnahme. Kontroverse,
Perspektive Praxis, Berlin, Theater der Zeit, 1999, p. 190-2.
26
Idem, ibidem.
27
Lehmann, “Peça de aprendizagem e espaço de possibilidades”, in Escritura política no texto
teatral, p. 394-5.
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liza somente no momento histórico que lhe imprime um novo sentido, caberia à
encenação concretizar uma concepção de espetáculo segundo a qual o texto não é
algo concluído de antemão, mas um conjunto de referências à espera de efetivação. Daí o feitio de experimento da peça, mais afinado com a dinâmica exploratória dos ensaios. Em um fragmento de 1937, intitulado “Para uma teoria da peça
didática”, Brecht reforça essa abertura do texto à experiência: “A forma da peça de
aprendizagem é árida, mas apenas para permitir que trechos de invenção própria
e de tipo atual possam ser introduzidos ([…]; em A medida é possível inserir livremente cenas inteiras […])”.28 A encenação deve levar em conta as condições
disponíveis às duas épocas, de modo a promover uma constelação entre as potencialidades do texto/partitura e aquelas bem distintas de sua recepção. Caso contrário, a peça de aprendizagem correria o risco de reduzir-se a móvel do engajamento
subjetivista dos participantes ou então a um mero exercício de estilo, mais próximo de um inventário de formas passadas do que da prática artística.
O acordo
Conferir função pedagógica ao experimento cênico exige também esvaziar o
processo de aprendizado de todo ensinamento preconcebido. De outro modo, ele
se veria reduzido a um transmissor de doutrinas, sejam elas de teor revolucionário ou não. É inegável que A medida é permeada por textos de teor partidário. Seu
teor pedagógico, contudo, não está na mensagem veiculada pelas falas. Tomá-las
literalmente sem levar em conta o processo em que são produzidas seria desconsiderar o feitio mesmo da peça de aprendizagem. Como estratégia de composição, Brecht optou por não se limitar a inserir a questão da coletividade no centro
da fábula: ela é alçada à posição de princípio formal do experimento. Sua instauração é explicitada logo na primeira cena como uma moldura para a efetivação
do exercício.
O coro de controle – Adiantem-se! Seu trabalho foi bem-sucedido, também nesse país a revolução
está em marcha, e as fileiras de combatentes estão organizadas. Estamos de acordo com vocês.
Os quatro agitadores – Alto, temos algo a dizer! Queremos comunicar a morte de um camarada.
O coro de controle – Quem o matou?
Os quatro agitadores – Nós o matamos. Atiramos nele e o jogamos numa mina de cal.
O coro de controle – O que ele fez para que vocês o matassem?
Os quatro agitadores – Muitas vezes fez o que era certo, algumas vezes o que era errado, mas por
último colocou em risco o movimento. Ele queria o certo e fez o errado. Exigimos sua sentença.
O coro de controle – Reconheceremos sua sentença.29
A cena inicial apresenta o experimento como uma peça dentro da peça, artifício que confere aos quatro agitadores o papel de encenadores das circunstâncias
da morte do jovem camarada para o coro de controle. Como explicitação da fina-
28
29
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Brecht, “Zur Theorie des Lehrstücks”, GBA 22, p. 351.
Brecht, A medida, GBA 3, p. 101. Tradução, p. 237.
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lidade da apresentação, a cena é exterior aos acontecimentos apresentados. Durante a encenação, contudo, os eventos narrados não encobrem o ato de narrar (a
encenação). Ao contrário, a apresentação opera com a alternância de três registros:
narrativas em que o evento é previamente recordado no pretérito épico; a demonstração cênica, que encena episódios no presente dramático mediante a apresentação do comportamento do jovem camarada por um dos agitadores; e o presente
da discussão entre os agitadores e o coro de controle. Na relação da peça com a
peça dentro da peça, a atualidade do diálogo, de natureza dramática, é produzida
no interior da armação épica, remetendo-o ao passado, enquanto os episódios
narrados são constituídos pelo tempo presente da encenação. A ênfase, para além
da representação de uma ação possível, recai sobre o caráter reflexivo da situação
teatral em todos os âmbitos, reforçando a condição teatral do exercício.
A execução do artifício épico (peça dentro da peça) exige a instância a quem
se narra, no caso, a representação coletiva fornecida pelo coro de controle, a qual
é introduzida no jogo como polo ajuizador, de quem se espera a sentença a respeito da correção da medida tomada. Mas, ao contrário do que se afirmou a respeito
do coro, o texto não confere a ele uma posição acima do exercício articulado nas
duas dimensões temporais. “Alto, temos algo a dizer”: a fala dos agitadores interrompe o discurso do coro de controle e exige dele uma apreciação do comportamento coletivo. Sua autoridade não precede o exercício. Ao contrário, ele é uma
espécie de público participante, convocado pelos agitadores interessados na encenação como única instância coletiva capaz de balizar a correção da medida. Os
atos de pronunciar (coro) e de reconhecer (agitadores) a sentença decorrerão da
eficácia do acordo coletivo.
A primeira rubrica coloca esse acordo em movimento. “Eles se colocam, três
contra um. Um dos quatro representa o jovem camarada.” Conforme indicações
de Brecht, cada ator deveria desempenhar ao menos uma vez o papel do jovem
camarada num exercício de aproximação de seu comportamento.30 Trata-se de
uma técnica de estranhamento que receberia amplo tratamento cênico e teórico
por Brecht. A função da alternância de papéis é realçar o caráter teatral do processo e, desse modo, combater qualquer processo de identificação de natureza ilusionista. Não cabe ao ator vivenciar o personagem, mas mostrá-lo, de um ponto de
vista distanciado, tanto a si mesmo quanto aos demais atuantes (atores e coro), de
modo que todos possam avaliar o comportamento apresentado.
As dificuldades da formação coletiva são então discutidas por meio das balizas
do trabalho revolucionário. Com esse intuito, Brecht transfere a atuação dos quatro agitadores e do jovem camarada para a China, onde, num gesto de conotações
tanto cênicas quanto políticas, demonstram seu acordo com as condições do trabalho ilegal. É a cena da anulação dos rostos pela vestimenta das máscaras.
O diretor da casa do partido – Agora vocês não são mais vocês mesmos. […] Vocês não tem
nome nem mãe, são folhas em branco sobre as quais a revolução escreve as suas instruções.
30
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Brecht, entrevista a Pierre Abraham (apud Koudela, op. cit., p. 66).
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Os dois agitadores – Sim.
O diretor da casa do partido dá-lhes as máscaras e eles as colocam – A partir deste momento
vocês não são mais um ninguém, mas, a partir deste momento, e talvez até o seu desaparecimento, vocês são operários desconhecidos, combatentes, chineses, nascidos de mães chinesas,
pele amarela, falando apenas chinês, no sono e no delírio.
Os dois agitadores – Sim.
O diretor da casa do partido – Em interesse do comunismo, de acordo com o avanço das massas proletárias de todos os países, dizendo sim à revolução mundial.
Os dois agitadores – Sim. (Também o jovem camarada disse sim). Desta forma o jovem camarada
se mostrou de acordo com a anulação de seu rosto.31
De modo geral, a diretriz do apagamento é um recurso de iluminação dos pressupostos do comprometimento individual com um esforço coletivo. Ela se desdobra em diversos planos. Em primeiro lugar, trata-se um gesto exigido pela ilegalidade do trabalho revolucionário. O apagamento é, nesse sentido, a introdução à
existência clandestina e, portanto, além de uma condição de sobrevivência, também uma estratégia de mobilização da adversidade das circunstâncias em vista de
sua superação. Além disso, o apagamento da própria identidade realça o desprendimento em relação a uma concepção de individualidade anterior à dialética entre
indivíduo e coletividade buscada pela peça. Seus rostos se tornam “folhas em branco sobre as quais a revolução escreve suas instruções”, ou seja, a identidade será
algo constituído ao longo deste processo histórico. Por fim, a apresentação do “estar de acordo” por meio da colocação das máscaras torna a dinâmica do trabalho
clandestino inseparável de um exercício de natureza teatral calcado nas exigências
de distanciamento e despersonalização do ator brechtiano. A encenação não está a
serviço da representação de uma ação verossímil em sua totalidade coerente, mas
da recuperação de elementos necessários a uma demostração.
O apagamento não é, contudo, imposto pelo partido. Uma questão essencial
às peças didáticas como um todo é o consentimento explícito, a manifestação do
“estar de acordo”. As duas peças anteriores – Aquele que diz sim / Aquele que diz
não – já haviam colocado desde o início o acordo como o cerne do problema da
formação do coletivo.
O grande coro – O mais importante de tudo é aprender a estar de acordo. Muitos dizem sim,
mas sem estar de acordo. Muitos não são consultados, e muitos estão de acordo com o erro. Por
isso: o mais importante é estar de acordo.32
Como em A medida e nas demais peças de aprendizagem, essas peças escolares
se valem do tema da viagem para discutir o problema da coletividade. Em todas
elas, a ameaça do fracasso enseja a apresentação das dificuldades da questão. Em
Aquele que diz sim / Aquele que diz não, os motivos da expedição são distintos – a
31
Brecht. A medida, GBA 3, p. 104. Tradução, p. 242.
Brecht. “Aquele que diz sim”, GBA 3, p. 59. Tradução, p. 217; “Aquele que diz não”, p. 66.
Tradução, p. 225.
32
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busca de auxílio médico para uma epidemia e uma viagem de estudos –, mas convergem na justificativa coletiva para a partida. Em ambas a expedição será acompanhada por um menino, cuja fraqueza física colocará em risco a empreitada coletiva. A medida retoma o mesmo tema, substituindo essa ameaça pela imaturidade
política do jovem camarada. Nas peças escolares, também se exige do menino o
consentimento com sua própria morte: ele deve estar de acordo com o costume
segundo o qual ele deveria ser abandonado (Aquele que diz sim) ou jogado no vale
(Aquele que diz não), caso se tornasse um obstáculo ao prosseguimento dos demais. Krabiel ressalta bem que tal consentimento envolve uma dupla exigência: a
convicção interna e sua manifestação expressa. A pergunta pelo “estar de acordo”
não indica, em princípio, liberdade de escolha, pois a peça tematiza a liberdade no
sentido do conhecimento da necessidade. Sua função é fornecer a oportunidade ao
indivíduo de informar que está disposto a reconhecer toda pretensão justa da coletividade, assim como suas consequências pessoais. Diante do sacrifício, o indivíduo tem que expressar com total consciência (o “sim” é dito após um momento de
reflexão) seu acordo com a necessidade do sacrifício em interesse do bem comum,
enquanto a coletividade não deve furtar-se à responsabilidade pelo destino do indivíduo. Todos são igualmente responsáveis pelo sacrifício do indivíduo.33
Em Aquele que diz sim, o consentimento do menino justifica a submissão dos
interesses individuais às pretensões da coletividade. A boa recepção do sacrifício,
inclusive por setores da Igreja, levou Brecht a esboçar tanto a primeira versão de A
medida quanto a peça conexa em que o menino responde com uma negativa, de
modo a verificar a legitimidade das pretensões que lhe eram colocadas. No final
de Aquele que diz não, lê-se:
Os três estudantes – Por que você não responde de acordo com o costume? Aquele que disse
a, também tem que dizer b. Naquele tempo quando lhe perguntaram se você estaria de acordo
com tudo que esta viagem poderia trazer, você respondeu que sim.
O menino – A resposta que eu dei foi falsa, mas a sua pergunta, mais falsa ainda. Aquele que
diz a, não tem que dizer b. Ele também pode reconhecer que a era falso. Eu queria buscar remédio para minha mãe, mas agora eu também fiquei doente, e, assim, isto não é mais possível.
E diante desta nova situação, quero voltar imediatamente. E eu peço a vocês que também
voltem e me levem para casa. Seus estudos podem muito bem esperar. E se há alguma coisa a
aprender lá, o que eu espero, só poderia ser que, em nossa situação, nós temos que voltar. E
quanto ao antigo grande costume, não vejo nele o menor sentido. Preciso é de um novo grande costume, que devemos introduzir imediatamente: o costume de refletir novamente diante
de cada nova situação.34
A circunstância imprevista enseja o exame da pertinência da regra tradicional,
a qual se revela falsa, exigindo a instauração de um novo costume elaborado a
partir do aprendizado realizado:
33
34
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Krabiel, in Brecht-Handbuch I, p. 246-50.
Brecht, “Aquele que diz não”, GBA 3, p. 71. Tradução, p. 231.
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O grande coro – Assim os amigos levaram o amigo
E eles criaram um novo costume,
E uma nova lei,
E levaram o menino de volta.
Lado a lado, caminharam juntos
Ao encontro do desprezo,
Ao encontro da zombaria, de olhos abertos,
Nenhum mais covarde que o outro.35
Brecht insistia na apresentação conjunta das duas peças, de modo a salientar
que a exigência do consentimento não implicava a subsunção do indivíduo ao interesse coletivo. Ao contrário, o “estar de acordo” seria um modo de operar a dialética entre indivíduo e coletividade, em que um termo questiona o outro, mantendo
a instabilidade da relação.
O desacordo
Em A medida, os problemas da ação coletiva são evidenciados pela exacerbação dos traços emocionais e individualistas do comportamento do jovem camarada.
Sua visão do sofrimento humano se insurge contra a disciplina exigida para a
preparação de uma revolução com chances de vitória, condições que vão do amadurecimento da consciência de classe dos trabalhadores à aquisição de armas.
Num gesto de impaciência e revolta, ele rasga os panfletos com os ensinamentos
dos clássicos, iniciando a crise do comportamento coletivo estabelecido na cena
da anulação dos rostos. O momento de cisão dá margem à invocação pelos agitadores do partido como organizador da ação coletiva.
O jovem camarada – Mas quem é o partido? […] Quem é ele?
Os três agitadores – Nós somos ele.
Você e eu e vocês – Nós todos.
[…]
Mostre-nos o caminho que devemos percorrer
E o percorreremos com você, mas
Não percorra sem nós o caminho correto,
Sem nós ele seria
O mais errado.
Não se separe de nós!
Podemos estar errados e você ter razão,
portanto
Não se separe de nós!
Que o caminho mais curto é melhor que o mais longo
Ninguém nega
Mas se alguém o conhece
E não é capaz de mostrá-lo a nós, de que nos adianta a sua sabedoria?
Seja sábio junto a nós.
Não se separe de nós!
35
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Idem, ibidem, p. 72. Tradução, p. 232.
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A medida, de Brecht: um exercício de postura 85
O jovem camarada – Porque tenho razão, não posso ceder. Vejo com os meus dois olhos que a
miséria não pode esperar.36
Ao contrário da interpretação que predominou em boa parte da recepção de A
medida, o partido não é invocado como a instância anônima e burocrática acima
do indivíduo. A autoridade do coro não é a do julgador que avalia de fora a ação.
O coro de controle participa da ação. Ele é, antes de tudo, uma forma de organização dos indivíduos. Como coportador de um processo decisório coletivo, o indivíduo deve aceitar a competência da experiência coletiva, organizada em torno
do partido, mas esse deve, por sua vez, conquistar essa competência por meio da
democracia intrapartidária. Não cabe ao coletivo sobrepor-se à sabedoria individual, mas conferir-lhe sua dimensão coletiva, pois só merece o nome de sabedoria
aquele conhecimento capaz de atender à tarefa coletiva chamada por Brecht de
“transformação do mundo”. Somente a sabedoria produzida coletivamente é válida. “Seja sábio junto a nós”, diz o texto. Caberia à encenação conferir a esse “nós”
seu devido peso coletivo, para além de qualquer autoridade partidária estabelecida anteriormente ao processo de aprendizado a que a concepção da peça didática
busca dar forma cênica. Nesse mesmo sentido deve ser lido o “Elogio do partido”
cantado pelo coro de controle.
O indivíduo tem dois olhos,
O partido tem milhares de olhos.
O partido vê sete países
O indivíduo vê uma cidade.
O indivíduo tem a sua hora,
Mas o partido tem muitas horas.
O indivíduo pode ser aniquilado,
Mas o partido não pode ser aniquilado,
Pois ele é a tropa avançada das massas
E lidera a sua luta
Com os métodos dos clássicos, que foram criados
A partir do conhecimento da realidade.37
Aglutinador dos equívocos a respeito de A medida, esse coro foi insistentemente interpretado como a tese subjacente à peça, justificadora do sacrifício individual perante a supremacia do partido.38 O erro é duplo, incidindo ora nas conclusões a respeito do autoritarismo do conjunto, ora na expressão particular e
discursiva de uma ideia organizadora da totalidade do material cênico-dramático,
o que ainda pressuporia uma forma dramática orgânica e totalizante. O mesmo
36
Brecht, A medida, GBA 3, p. 119-20. Tradução, p. 259-60.
Idem, ibidem, p. 120. Tradução, p. 260.
38
Mesmo trabalhos instigantes e bem fundamentados sobre Brecht, como o livro de Gerd
Bornheim, interpretam essa fala do coro como a chave de leitura da peça: “No coral intitulado Elogio
do Partido, tudo se justifica por uma verdade absoluta. […] O aprendizado da renúncia do indivíduo,
levado até a morte, continua sendo a espinha dorsal da ação, que prossegue presa ao maniqueísmo
razão-sentimento” (Gerd Bornheim, Brecht. A estética do teatro, São Paulo, Graal, 1992, p. 188).
37
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Adorno que encontrou na peça uma “glorificação” do partido fez considerações
decisivas que nos ajudam a circunscrever a função de textos como esse na dramaturgia brechtiana. Em seu ensaio sobre Engagement, de resto bastante crítico a
Brecht, há a seguinte formulação:
A fabula docet [moral da história] – que há injustiça no mundo – dificilmente precisa ser
ensinada a alguém. […] Na verdade, o primado da doutrina perante a forma, tal como pretendido por Brecht, se torna seu momento mais próprio. Ao ser suspensa ela se volta contra seu
caráter ilusório. […] A correção heteronomamente condicionada da forma, a anulação do ornamental a favor da funcionalidade, aumenta sua autonomia. Esta é a substância da produção literária de Brecht: a peça de aprendizagem como princípio artístico. Seu medium, o estranhamento
de processos que aparecem de modo imediato, é assim também mais um meio de constituição
formal do que um que contribuísse para o resultado prático […] Caso se tome Brecht ao pé da
letra; caso se faça da política o critério de seu teatro engajado, então ele se mostra não verdadeiro
frente a este critério.39
Essas colocações advertem contra a identificação dos elementos doutrinários
a uma moral da história ou à visão de mundo do dramaturgo. Sua função não é
explicitar a posição do artista a respeito do que apresenta, ou seja, elas não comunicam um conteúdo doutrinário coincidente com a posição política do autor. Sua
função é formal: a doutrina possui função anti-ilusionista. Brecht construiu mecanismos em que não só o material dramático, mas também textos de natureza teórica recebem outra iluminação. A fábula está a serviço de uma demostração, nunca de representação de uma ação completa da qual se extrai um sentido unívoco.
Caso contrário, ela poderia ser acusada de “fragmentada”, comprometendo a veracidade de certos episódios; a saudação inicial pelo coro da missão revolucionária cumprida destoa, por exemplo, da missão fracassada que exigiu a medida.
Atendendo aos objetivos da demostração, o texto apresenta aspectos necessários
à discussão. Nesse sentido, teses e performance, assim como ação e demostração,
se delineiam contínua e alternativamente. Os textos não defendem as teses que
enunciam, mas as submetem à dinâmica distanciadora do exercício. Em O voo
sobre o oceano, por exemplo, o texto “Ideologia”, enunciado pelo coro dos aviadores, poderia muito bem ser lido como a sustentação ideológica da peça, ou seja,
como a expressão da confiança do dramaturgo na capacidade da técnica moderna
em superar desafios naturais. Submetido ao mecanismo formal da peça de aprendizagem, tal “ideologia” torna-se um objeto de avaliação por parte dos cantores,
um texto cujo conteúdo não é objeto de defesa, mas de sóbria ponderação. Toda
colocação discursiva é distanciada pela encenação. Ao transformar a peça em crítica de suas próprias ideologias, Brecht trabalha aqui contra o enrijecimento de
suas próprias certezas.40
39
T. W. Adorno, “Engagement”, in Noten zur Literatur, p. 418-9. Cf. também Ästhetische Theorie,
p. 366.
40
Algo semelhante ocorre com a “canção da mercadoria” em A medida. Ao colocar ensinamentos marxistas na boca do comerciante (a distinção entre valor de uso e valor de troca, a força de
trabalho como mercadoria), Brecht não pretende desvelar o motivo oculto do lucro por trás de seu
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A medida, de Brecht: um exercício de postura 87
Descaracterizado como mensagem doutrinária, o “Elogio do partido” não se
sustenta como argumento a favor do teor autoritário da peça. O lembrete de Adorno da verdade dos dois olhos do dissidente diante da cegueira automatizada do
coletivo tem seu fundamento histórico nos regimes e movimentos autoritários
do século XX, teor crítico perante a assimilação do indivíduo a falsas noções de
universalidade, e apelo moral diante da perpetuação das condições de injustiça
no pós-guerra.41 Sua observação, porém, passa ao largo da sobriedade da peça
de aprendizagem, a qual transforma este coro em uma autoexposição, seja de um
partido desconectado do coletivo, seja da cisão do coletivo em medidas que se
tornaram incompatíveis. Lehmann explora essa incompatibilidade:
Ele [o jovem camarada] não quer apostar friamente com incertezas sobre o futuro e o adiamento, quer salvar a sua vivacidade espontânea diante do cálculo mortal e frio. Só superficialmente a peça parece propagar contra ele uma subordinação irrefletida sob a disciplina do partido. Visto com mais precisão, trata-se de uma divisão e uma dissociação radical de dois tempos
de experiências: processo histórico e subjetividade. A canção para louvar o partido diz: Cada um
tem dois olhos, mas o partido tem milhares, porém estes dois e aqueles milhares não representam
a mesma medida. Dois significa no sentido preciso, o sentir e simpatizar sem medidas do corpo:
com os meus dois olhos eu vejo que o sofrimento não pode esperar. Milhares não significa 2x500,
mas é a medida hiperbólica, a medida da razão heterogênea ao corpo: a medida do cálculo, da
moderação, da reserva, e da conservação. Contudo, mesmo neste exemplo mais frio da frieza
brechtiana, ela não é a medida de todas as coisas.42
Mais consequente com o exercício proposto pela peça de aprendizagem seria
afirmar que sua tarefa reside em encontrar a medida comum entre a impaciência
espontânea do indivíduo, irredutível a uma medida coletiva, e a disciplina fria e
organizadora do partido, de modo que corpo e cálculo não sejam os termos da
cisão, ou seja, para que o corpo não seja impermeável ao cálculo e à moderação,
e a razão, por sua vez, avessa à espontaneidade das emoções.
Essa cisão se consuma num gesto simétrico ao da cena da anulação, em que,
após rasgar os panfletos, inviabilizando a continuidade da propaganda, o jovem
camarada, em mais um gesto exaltado de impaciência, arranca sua máscara e expõe a todos seu rosto nu. Sua posição é contraposta ao “Elogio do partido”:
O jovem camarada – Tudo isso não vale mais; em vista da luta, nego tudo o que ainda ontem
era válido. Rescindo todo acordo com tudo, faço apenas o que é humano. Aqui está uma ação.
Assumo a sua liderança. Meu coração bate pela revolução. Ela está aqui.
Os três agitadores – Cale-se!
comportamento social, mas assinalar o caráter manifesto da ideologia. Seria assim errôneo reduzir a
peça de aprendizagem a um processo de conscientização. Consequentemente, exige-se de quem luta
pela superação da dominação mais que a consciência do curso real, desvelado, do processo histórico: justamente uma forma de exercício coletivo que vá além de informar a respeito do andamento
atual da exploração.
41
Adorno, Negative Dialektik, p. 56.
42
Lehmann, “A retirada da razão: culpa, medida e transgressão em Bertolt Brecht”, op. cit.,
p. 280-1.
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O jovem camarada – Aqui há opressão. Sou a favor da liberdade!
Os três agitadores – Cale-se! Você está nos traindo!
O jovem camarada – Não posso calar-me pois estou com a razão.
Os três agitadores – Esteja ou não com a razão – se você falar, estamos perdidos! – Cale-se!
O jovem camarada –
Já vi demais.
Por isso coloco-me à sua frente
Como aquele que sou e diz o que é.43
(Ele retira a máscara e grita:)
Viemos ajudá-los,
Viemos de Moscou.
(Ele rasga a máscara.)
Os quatro agitadores –
E o olhamos, e no crepúsculo
Vimos seu rosto nu
Humano, aberto e sincero. Ele havia
Rasgado a máscara.
E das casas
Os explorados gritavam: Quem
perturba o sono dos pobres?
E uma janela se abriu, e uma voz gritou:
Aqui há estranhos! Peguem os agitadores!
Assim fomos descobertos!44
Ao rasgar a máscara, o jovem camarada dissolve o vínculo entre clandestinidade e coletividade, selado na cena da anulação como precondição do trabalho
revolucionário. O gesto assinala as consequências extremas de uma ação individualista sobreposta às condições de sobrevivência do coletivo. Desmascarado, o jovem camarada atrai a atenção sobre si, torna-se reconhecível e coloca a existência
do grupo em risco, obrigado a fugir. Durante a fuga os agitadores precisarão apagar os rastros – outro tema brechtiano – do jovem camarada. É nesse contexto de
discussão da ação coletiva que a questão da “anulação” ganha uma duplicidade:
ele pode indicar tanto a clandestinidade da militância comunista quanto a morte
física do jovem camarada. A relação entre indivíduo e coletivo determinará um ou
outro resultado. Quem deixa rastros é o jovem camarada que retira sua máscara e
revela sua identidade, abandonando o coletivo com o mesmo gesto com que coloca sua segurança em risco. A decisão de matá-lo durante a fuga e apagar seus traços faciais é a forma assumida pela necessidade de “anulação” numa situação em
que o esforço coletivo é ameaçado pela unilateralidade de um posicionamento
individual. A medida radicaliza o problema de Aquele que diz não, pois o desacordo
não permite aqui uma reorganização do coletivo em novas bases. A sobrevivência
do grupo os coloca diante da exigência da violência física como única medida
capaz de restituí-los à condição de clandestinos, situação em que o “apagamento”
43
Na versão de 1931, Brecht suprime o seguinte trecho desta fala: “Por que calar-me ainda? / Se
eles não sabem que têm amigos, / Como se levantarão?”.
44
Brecht, A medida, GBA, p. 120-1. Tradução, p. 260-1.
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A medida, de Brecht: um exercício de postura 89
é tanto uma estratégia de sobrevivência quanto uma forma de existência ilegal em
favor da causa da transformação do mundo.
Por fim, o processo decisório dos agitadores a favor da “medida” volta a recorrer às duas dimensões da encenação. Ao explorar as descontinuidades entre o
evento ocorrido e o evento encenado, eles não justificam o sacrifício, mas ensejam
a reflexão sobre as condições da tomada da decisão.
Os quatro agitadores –
É fácil saber o que é certo
Longe do tiro,
Quando se tem meses à disposição,
Mas nós
Tínhamos
Dez minutos e
Refletimos diante dos cano dos fuzis.
[…]
O coro de controle – Não encontraram outra saída?
Os quatro agitadores –
Como o tempo era pouco, não encontramos outra saída.
Assim como o animal ajuda o animal,
Também nós desejávamos ajudá-lo, àquele que lutara conosco pela nossa causa.
Distante cinco minutos dos perseguidores
Pensamos numa
Alternativa melhor.
Também vocês agora estão pensando
Numa alterativa melhor.
(Pausa)
Portanto decidimos separar o próprio pé do corpo
É terrível matar.
Mas não somente os outros, também nos mataríamos, caso fosse necessário
Já que somente com violência é possível mudar
Este mundo assassino, como
Sabe todo ser vivo.
Ainda não nos foi dado, dissemos,
Não matar. Unicamente
Pela vontade inabalável de transformar o mundo fundamentamos
A medida.45
A frase anterior à pausa, como lembra Lehmann, pode ser endereçada tanto ao
coro de controle como a todos os participantes. Ela institui um espaço de considerações – a pausa silenciosa – que cabe a cada encenação explorar do modo a
trazer à tona a radicalidade amoral da obrigação de matar.
A vida humana está sempre situada na premência do tempo. […] Neste lugar de uma comprovação racional, é colocada a indicação de uma condition humaine – que por sua vez não fundamenta uma tese, mas que a pode abalar. […] O que acontece aqui é literalmente inaudito. […] Do
45
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Brecht, A decisão, GBA, p. 122-4. Tradução, p. 262-4.
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relatório passa-se diretamente e sem mediar para a presença da cena teatral hic et nunc. O texto
deixa em aberto quem deve ser atingido: o coro de controle ou todos os presentes? Dirigir-se com
“ela” ao público – os agitadores – colocando uma transgressão dos limites de “alheamento” não
somente ente acontecimento e discussão (representada), mas também ente ficção e a realidade do
próprio momento teatral. […] Este “looping” performático do comunicado no discurso teatral e
na situação do teatro abre um precipício que de maneira alguma pode ser preenchido e configurado pela encenação do conteúdo do texto, mas que encontra a sua realização no relacionamento
específico, sobre o qual os atores e os espectadores decidem numa situação posterior do jogo.46
Essa medida humana é análoga ao caráter humano invocado pelo jovem camarada em sua espontaneidade. A abertura para o jogo, por sua vez, colocada pela
pausa, retira do coro de controle o papel de julgador da correção da medida. Ele
concorda com a correção, mas não tem a sua disposição nenhum elemento a mais
que qualquer participante. Como diz Lehmann mais uma vez,
Quando no final o coro de controle explica novamente que o trabalho foi bem-sucedido, no
texto fica em aberto o motivo para isto. O texto tem a forma de uma argumentação, mas não
apresenta a substância de um argumento. Só se comunica a derrota, fuga e revés da revolução. A
submissão do resultado positivo fica na incerteza. A afirmação do sucesso não é uma representação nem alguma doutrina ou moral que poderia ser ganha a partir da narração dos acontecimentos, mas é a apresentada como gesto sem qualquer chão seguro. […] O resultado triunfal do
trabalho revolucionário dos agitadores informantes não está demostrado em nenhum lugar.47
A nova postura
Uma vez que o ensinamento não se cristaliza em nenhum dado positivo de
conteúdo, seja na atualização dos ensinamentos dos clássicos, seja na justificação
do sacrifício em nome do partido, resta saber em que consiste a natureza pedagógica desse exercício coletivo. No programa da noite de estreia, Brecht afirmava
que o “objetivo da peça de aprendizagem era mostrar o comportamento político
incorreto e, desse modo, ensinar o comportamento correto”.48 Pelo que foi indicado até aqui, é razoável supor que tal ensinamento deva ser buscado nesse processo
cênico de “mostrar”. Já sabemos que a peça utiliza o artifício da peça dentro da
peça para examinar a correção de dois comportamentos políticos: o comportamento do “jovem camarada”, que coloca em risco a sobrevivência do grupo revolucionário por reagir de modo emocional e imediatista diante das condições de
exploração capitalistas; e o comportamento do grupo revolucionário, que encena
para o “coro de controle” a medida já tomada contra o jovem camarada. Desde a
primeira encenação, muito se escreveu a respeito de uma contraposição entre um
modo de comportamento criticável e outro a ser tomado como modelo exemplar.49 Com seu sentimentalismo imediatista, embalado por chavões idealistas a
respeito do sofrimento e da liberdade, o jovem camarada é levado a reconhecer
46
Lehmann, op. cit., p. 398-9.
Idem, ibidem, p. 397.
48
Brecht, GBA 23, p. 96.
49
Cf. a resenha de Alfred Kurella citada na nota 7.
47
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sua incorreção e a consentir com a medida dos agitadores, ratificada posteriormente pelo coro de controle. Até aqui o próprio Brecht acompanharia. O problema está em um modo de considerar a medida tomada pelos agitadores como a
suma do comportamento correto. Se esse for a eliminação dos membros desviantes em favor da sobrevivência do coletivo, não seria nada fácil livrar a peça de uma
conclusão a favor da disciplina partidária.
Em vez de ceder a tal antitética de modelos, é aconselhável voltar mais uma vez
à peça para acompanhar o modo como Brecht apresenta tais comportamentos opostos. O desempenho do jovem camarada em suas missões é exemplar para tal exame.
Na terceira cena, “A pedra”, os quatro agitadores o instruem a aproximar-se dos
trabalhadores e a ajudá-los a reivindicar melhores condições de trabalho (melhores
sapatos, no caso). O sucesso da missão depende, contudo, de um preceito básico
que deverá ser observado em todas as suas missões. Os agitadores o advertem:
Os quatro agitadores – […] Procure fazer com que eles exijam também os tais sapatos. Não
ceda, porém, à compaixão! E nós perguntamos: Você está de acordo? E ele estava de acordo e
foi depressa e logo cedeu à compaixão.50
Os leitores da Poética de Aristóteles sabem que a compaixão é uma das duas
emoções que compõem o efeito da tragédia sobre o espectador, a catarse. Em sua
crítica ao que ele denomina “dramaturgia aristotélica”, Brecht aproxima as noções
de catarse e de empatia, uma proximidade, a princípio, pouco evidente no texto
da Poética.51 Nesse contexto, identificar-se com o espetáculo é reagir a ele de maneira exclusivamente emocional, o que não deixaria margem ao desenvolvimento
de uma postura crítica perante os eventos apresentados.
Em A medida, o comportamento do jovem camarada tem algo dessa empatia.
Sua posição inicial também é a de um observador: como tal ele será avaliado. Colocado diante do sofrimento alheio, ele cede à compaixão: sente pena dos trabalhadores e reage de modo emocional e irrefletido, colocando em risco o objetivo
mais amplo de criar as condições para a erradicação da exploração. Em outras
palavras, Brecht se vale do personagem do jovem camarada para estudar esse tipo
de postura regulada pela empatia. Como indica Benjamin, o personagem brechtiano não oferece um modelo de comportamento – positivo ou negativo – com o
qual se possa identificar, mas instrumentos de análise e de correção de uma postura social. Representam, antes, tipos interessados na transformação social ou, a
50
Brecht, A medida, GBA 3, p. 106. Tradução, p. 243.
Brecht, “Kritik der ‘Poetik” des Aristoteles’, in GBA 22, p. 171-2. “Aparece-nos do maior interesse social o que Aristóteles estabelece como a finalidade da tragédia, ou seja, a catarse, a purificação do espectador do temor e da compaixão por meio da imitação de ações capazes de suscitar
temor e compaixão. Esta purificação ocorre por causa de um ato psíquico bastante singular: a empatia do espectador com os personagens da ação imitados pelos atores. Nós designamos uma dramaturgia como aristotélica quando esta empatia é provocada por ela, sendo inteiramente indiferente se
com ou sem o emprego das regras mencionadas por Aristóteles. O ato psíquico singular da empatia
se executa de maneira inteiramente variada no decorrer dos séculos”.
51
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partir dos quais, a transformação social pode ser examinada do ponto de vista de
um tipo social existente. Diante disso, seria um equívoco pensar que a crítica à
empatia incide apenas sobre o comportamento do jovem camarada. Ela também
visa impedir que haja identificação da finalidade do exercício com a decisão tomada pelos agitadores. Como ela não induz à imitação de um modelo de ação
transportável para a vida prática, qual seria então o tal comportamento correto?
Sabemos que Brecht procurou construir mecanismos de autoquestionamento de materiais de natureza tanto cênica e dramática quanto teórico-doutrinário,
de modo a produzir um curto circuito entre a produção e a recepção unívoca.
Em A medida, esses mecanismos convergem na postura fria e distanciada dos
agitadores. Eles apresentam os eventos ocorridos, assumem os papéis de si mesmos e do jovem camarada, mas mantém uma postura sóbria perante os eventos,
sem confundir-se com eles, de modo que outros – o coro de controle, os eventuais
espectadores – possam formar uma opinião sobre o ocorrido. Brecht não pretendia de modo algum estabelecer uma simples oposição entre razão e emoção,
como censurou a primeira recepção da peça, mas criar condições para que as
emoções não fossem unicamente objetos de vivência imediata, mas também de
consideração refletida.
Durante a década de 1930, Brecht caracterizaria essa postura como a do ator-demostrador:52 Ele é aquele que não se confunde com seu personagem e não se
deixa levar por suas emoções, mas assume um posicionamento racional diante
dele, de modo a atender à função maior de sua atuação: mostrar que está mostrando, de modo a impedir a recaída do espetáculo em ilusionismo. Como diria
Brecht em 1937, “para a for