Introdução Os estudos em Análise do Discurso

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Introdução Os estudos em Análise do Discurso
IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação
Múltiplos Olhares
05, 06 e 07 de junho de 2013
ISSN: 1981-8211
O IMAGINÁRIO NO/DO CENÁRIO CAMPESTRE
Laila de Castro Costa CASTILHO (UNICAMP)
Introdução
Os estudos em Análise do Discurso nos levaram a pensar o imaginário no/do
cenário campestre. O campo é, nos dias atuais, visto e contemplado de forma romantizada
como passado das cidades.
Buscaremos também refletir sobre o conceito de imaginário baseado nas teorias da
análise de discurso capitaneada no Brasil por Eni Orlandi e aplicado ao nosso corpus de
análise. Selecionamos como corpus para este trabalho dois textos poéticos de Rubem
Alves: O pescador e a sua mulher, e A casa. E também letras de músicas sertanejas que
citassem a “casinha branca” como cenário: Casinha Branca de Elpídio dos Santos gravada
por Renato Teixeira e Sérgio Reis, Casinha Branca de Gilson & Joran gravada por Maria
Bethânia, Michel Sullivan, e Gian e Giovani, e Casinha Branca de Anacleto Rosas Jr.,
Tonico e Tinoco gravada por Tonico e Tinoco.
1. O rural como retrospecção
Para conceber uma teoria em torno da significação dos textos poéticos de Rubem
Alves e das letras de músicas sertanejas que constituem o corpus deste trabalho, foi
necessário adentrar na discussão teórica da análise do discurso de linha francesa e de
acordo com Payer (2001) considerar que há traços diferenciadores que caracterizam as
práticas de linguagem no campo e na cidade, que são constituídas por formações
discursivas, com suas materialidades linguísticas e seus universos de saberes distintos.
Pensaremos também o sujeito na perspectiva da Análise do Discurso que o
compreende não como o ser físico, mas com sua posição projetada no discurso.
Compreendemos ainda essas posições como formações imaginárias, que projetam a posição
da qual fala o sujeito.
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Neste universo da análise do discurso, foi possível entender o imaginário presente
nos cenários rurais e nos seus elementos que remetem a um passado repleto de
rememorações, pautado nas memórias de nossos antepassados, imaginário que dentro dos
parâmetros da Análise do Discurso, tem seu lugar no campo da formulação e da circulação
dos sentidos. Isso quer dizer que a realidade vivenciada é composta de formulações
imaginárias que medeiam a relação entre sujeito e o mundo. Tais formações são produzidas
por um trabalho ideológico, entendido como aquilo que é capaz de produzir interpretações.
O mecanismo imaginário, segundo Orlandi,
produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de
uma conjuntura sócio-histórica. Temos assim a imagem da posição do
sujeito locutor (quem sou eu para lhe falar assim?), mas também da posição
sujeito interlocutor (quem é ele para me falar assim, ou para que eu lhe fale
assim?), e também a do objeto do discurso (do que estou falando, do que ele
me fala?). É pois todo um jogo imaginário que preside a troca de palavras.
(ORLANDI, 1999, p. 40)
As formações imaginárias se configuram a partir do interdiscurso (o pré-construído,
aquilo que sustenta o dizer, o já-dito, a memória do dizer), das condições de produção que
envolvem todos os elementos que rodeiam o dizer e da ideologia vista como mecanismo
necessário para se dizer X. Diremos que estas três dimensões, então, são fatores
determinantes de um imaginário que se forma na sociedade. Neste sentido, ocorre que
estamos num país cuja origem rural faz parte da construção histórica de nossa gente,
encontram-se as formas de viver do campo, já enraizadas na memória coletiva e/ou
individual, que vem à tona quando nos deparamos com imagens que nos trazem ou nos
conduzem a este lugar, cujo discurso já é estabilizado, estereotipado e, seguimos, a dizer o
que já disseram para nós um dia a respeito desse passado bucólico e repleto de “beleza”.
No caso dos textos poéticos abordados, as condições de produção que insistem em
valorizar a vida campestre, bem próxima do cenário rural, são determinadas pela
preocupação universal com a sobrevivência do planeta. É preciso que retornemos ao
campo, para salvaguardarmos o que o urbano nos tirou, não somente na qualidade de vida,
referindo-se ao meio ambiente, mas ao modo de viver melhor neste ambiente.
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O interdiscurso nos traz de volta toda a tradição de que a vida no campo é mais
saudável e mais tranqüila, ideal que havia sido soterrado pelo processo de urbanização, a
partir da segunda metade do século XX. Com isso está instalado o local adequado para a
veiculação da ideologia de valorização da vida campestre. E o imaginário social se
configura aí como objeto simbólico.
De acordo com Payer (2001), no encontro de dois modos diferentes de
simbolização, que são o discurso rural e o discurso urbano, surgiria o que a autora
denomina retrospecção. A retrospecção é aqui considerada um discurso que se projeta fora
do tempo presente. Nesse espaço, o campo aparece idealizado, romantizado, ou seja, o rural
é significado na memória, na lembrança.
Pelo dispositivo oferecido pela Análise do Discurso, torna-se essencial ver como os
textos poéticos produzem sentidos. Assim, não se trata de enxergar o que está por trás dos
textos, mas atravessar a sua superfície linguística para se chegar ao processo discursivo.
Centrados neste ponto, buscamos analisar, com base nos estudos de Payer, como o discurso
dos textos poéticos se nutre do imaginário da separação entre campo e cidade. É essencial
“ouvir para lá das evidências e compreender acolhendo, a opacidade da linguagem, a
determinação dos sentidos pela história, a constituição do sujeito pela ideologia e pelo
inconsciente, fazendo espaço para o possível, para a singularidade, a ruptura, a resistência”.
(Orlandi, 1999, p.83)
As atuais implicações da vida urbana no íntimo e no consciente das pessoas, em que
as exigências de uma sociedade capitalista remetem o ser humano a um quadro de negativo
psiquismo e estresse, induzem o cidadão urbano a uma fuga da realidade dos grandes
centros urbanos e a uma busca da paz e da tranquilidade interior no interior, no campo.
Esta atitude de procurar refúgio no campo e apresentá-lo como paraíso perdido da
humanidade constitui um modo discursivo universal de referência ao campo. A dicotomia
campo e cidade advém, segundo Payer (1996) de diversas formas de retrospecção, ou seja,
os dizeres sobre o campo se configuram no discurso das lembranças, das reminiscências, do
saudosismo, da contraposição ao presente. O dizer sobre o campo é uma forma de tornar
presente na linguagem o real ausente.
Onice Payer (1996, p. 86-87) afirma que:
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R. Williams vê a forma literária de maneira tão recorrente de abordagem
do campo que, dos mais modernos aos mais antigos, os autores
sucessivamente dizem que antes deles o seu país era mais rural, que seu
tempo é o tempo do desaparecimento do campo, bem como das
características humanas que são associadas a ele. Desse modo, procurando
passo a passo qual seria o momento do início da produção sobre o rural na
literatura e na história, Williams sucessivamente encontra e persegue a
produção de um recuo para um passado rural distante, até que isto se
confunda, já em épocas remotas, com o bucolismo enquanto forma de
abordagem do campo, num sentido mais estrito.
Desta forma, o turismo rural – pensamos aqui o turismo rural como atividade que
valoriza o campo e os recursos naturais, não apenas como fonte de renda através da prática
da agricultura, mas como possibilidade de lazer para os moradores da cidade. De acordo
com o Ministério do Turismo:
muitos moradores urbanos viajam com o intuito de reencontrar suas
raízes, interagir com a comunidade local, participar de suas festas
tradicionais, desfrutar da hospitalidade e do aconchego nas propriedades,
conhecer o patrimônio histórico e natural no meio rural, conviver com os
modos de vida, tradições, costumes e com as formas de produção das
populações do interior, vivenciar novas experiências, buscar novos
conhecimentos, saberes, descansar física e mentalmente, fugir da rotina da
vida urbana e adquirir produtos típicos. Isso somado à necessidade que o
produtor rural tem de diversificar sua fonte de renda e de agregar valor
aos seus produtos.
- se configura como uma nova versão da fuga para o campo dos poetas bucólicos,
dos poetas árcades. Tanto lá quanto hoje, a valorização da vida campestre se vincula ao
desenvolvimento da cultura urbana, que, opondo as linhas artificiais da cidade à paisagem
natural, transforma o campo num grande bem. O campo se configura como espaço que
equilibra idealmente a agitação do viver. Em pleno prestígio da existência citadina, os
homens sonham com o campo à maneira de uma felicidade a ser atingida, forjando a
convenção da naturalidade como forma ideal de relação humana e a memória expressa,
dentre outros, sentimentos de nostalgia. Nos dicionários, o termo nostalgia é
predominantemente associado à saudade ocasionada pelo afastamento da terra natal.
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O discurso do rural produz efeito de nostalgia o que Payer chama de “discurso da
retrospecção”. É essa retrospecção, de pensar o rural romantizado como passado do urbano,
que permite a criação de imagens idealizadas “de um rural paradisíaco” (cópia cedida pela
autora).
Pensamos estes textos poéticos, ainda como textos bucólicos, pensando aqui o
bucolismo como uma forma literária de elogio à vida campestre. De acordo com Williams,
“cristalizam-se e generalizam-se atitudes emocionais poderosas” em relação ao rural e ao
urbano, pois “o campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz,
inocência e virtudes simples”, enquanto “a cidade associou-se a ideia de centro de
realizações – de saber, comunicações, luz” (WILLIAMS, 1990).
Payer aponta juntamente com Williams, que a visão nostálgica e saudosista do
campo é recorrente. Quando solicitamos que alguém pense, imagine, idealize uma casa no
campo é bastante frequente que esta seja branca de portas e janelas azuis.
A casa branca de janelas azuis povoa os pensamentos que trazem um dizer presente
na memória de forma poética e saudosa. A imagem da casinha branca com portas e janelas
azuis, construída no campo e cercada por natureza intocada funciona como nostalgia,
saudades de um tempo e de um cenário que a cidade grande já não mais oferece.
É como se o campo permitisse um retorno temporal, ou seja, ao sair da cidade
grande e visitar o campo também fosse possível voltar no tempo e matar as saudades do que
não é mais presente.
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Figura 1. Casinha branca com portas e janelas azuis.
A nostalgia discursiva, que percebemos presente nas músicas sertanejas,
consideradas regionais, cristalizam esse sentimento. É possível encontrar referências
históricas em alguns trechos que exemplificam isso. Nota-se ainda, que destacamos a
referência à casinha branca como cenário. A música nomeada Casinha Branca de
composição de Elpídio dos Santos gravada por Renato Teixeira e Sérgio Reis, cantores
tradicionais do gênero inicia dizendo: “Fiz uma casinha branca lá no pé da serra prá nós
dois morar, fica perto da barranca, do rio Paraná. A paisagem é uma beleza eu tenho
certeza, você vai gostar, fiz uma capela bem do lado da janela pra nós dois rezar” assim
como nas regravações de Maria Bethânia, Michel Sullivan e também da dupla sertaneja
Gian e Giovani em outra música também nomeada Casinha Branca “Eu queria ter na vida
simplesmente um lugar de mato verde pra plantar e pra colher. Ter uma casinha branca de
varanda, um quintal e uma janela para ver o sol nascer”. E um terceiro exemplo da
presença da casinha branca está em uma melodia de Tonico e Tinoco, que traz: “Naquela
casinha branca lá no arto do espigão, lugar onde eu fui criado, eu junto co meu irmão, ele
cuidava do gado, eu tratava a prantação, e o nosso casar de véio, sentia satisfação.”
Além das músicas selecionadas para o corpus, analisamos também textos poéticos
que revelam o tema. Rubem Alves, filósofo e pedagogo brasileiro, faz alusão à casinha
branca de janelas azuis em duas de suas obras:
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Não tinham razões para serem felizes. Mas, a despeito de tudo, tinham
momentos de felicidade. Era quando começavam a falar sobre os seus
sonhos. Algum dia ele teria sorte, teria uma grande pescaria, ou
encontraria um tesouro - e então teriam uma casinha branca com janelas
azuis, jardim na frente e galinhas no quintal. (O pescador e a sua mulher)
Acho que estamos chegando. Estou sentindo cheiro de capim gordura.
Capim gordura era um capim que cobria os pastos. Os bois e as vacas
comiam. Tinha um cheirinho bom, de que não me esqueço. Quando o
capim floria, os campos ficavam cor-de-rosa porque as flores do capim
gordura são cor-de-rosa. Naquele tempo a gente sentia bem o cheiro das
plantas. E também porque estou vendo uns ipês amarelos floridos.
Precisou que os prédios, carros e asfalto desaparecessem para que os ipês
floridos nos campos aparecessem. A gente deixa de ver umas coisas para
poder ver as outras... Uma casa branca com janelas e portas azuis,
sozinha, no meio dos pastos! (A casa)
Consideramos que a formulação, casinha branca, faz sentido no campo do interior.
Para tal, nos pautamos na afirmação de Orlandi de que “todo dizer, na realidade, se
encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade
(formulação). E é desse jogo que tiram seus sentidos”. (2000, p. 33)
Ao inserir os aspectos que reúnem o imaginário envolvido no turismo rural, como
segmento que no presente articula-se com o passado, compreendemos que, a casinha branca
junto a outros elementos que constituem esse rememorar do passado histórico do espaço
rural, funciona como símbolo do local onde a infância pode acontecer, local onde a
convenção, movida pelo excesso de aparecimento de casinhas brancas em ambientes rurais,
se encontram plenamente habilitadas para representar o cenário rural.
Considerações finais
Consideramos que o sujeito, ao ler um texto poético ou escutar uma música que
retrate a poesia do campo, deixa-se levar pelas lembranças, quando já vividas e pela
imaginação daquilo que pode encontrar no interior. Assim, “supomos que a percepção é
sempre atravessada pelo „já ouvido‟ e o „já dito‟, através dos quais se constitui a substância
das formações imaginárias” e que a imagem interpela na produção de sentido, pois tem a
propriedade de produzir evidência do real. A imagem oferecida pela casinha branca reúne
aspectos de uma realidade que no passado fazia parte do cotidiano, e que se tornou distante
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rapidamente com uma urbanização acelerada, mas que deixou o sentimento de nostalgia e
saudade, mesmo naqueles que somente sabem deste ambiente através da memória do outro.
Referências
Brasil. Ministério do Turismo.Turismo rural: orientações básicas. 2.ed. Brasília: Ministério
do Turismo, 2010.
CARROZZA, Newton Guilherme Vale. As marcas do discurso machista na propaganda
brasileira 2006. 92 f. Dissertação Mestrado em Linguística – Linguagem e Sociedade,
Universidade do Vale do Sapucaí, Pouso Alegre, 2006.
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 3ª edição, Campinas,
SP: Pontes, 1999.
__________. Discurso Fundador. A formação do país e a construção da identidade
nacional. 3ª ed., Campinas: Pontes, 2000.
PAYER, Maria Onice. Linguagem e sociedade contemporânea. Sujeito, mídia e mercado.
Revista do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade da UNICAMP, Campinas - SP, v.
XI, p. 9-26, 2005.
__________. Presença rural e urbana nas cidades brasileiras. Cópia cedida pela autora.
__________. Retrospecção e Estereotipia. Imagens Urbanas sobre o Campo. Revista Rua,
Campinas, 2:83-101, 1996.
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na História e na Literatura. Tradução: Paulo
Henrique Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.