excerto - Paulus

Transcrição

excerto - Paulus
Prefácio
O viver humano, para ser humano, não se pode resumir só
ao viver.
Começar um prefácio com esta afirmação pode parecer estranho, mas a verdade é que ela traduz bem o exercício que
o Paulo Caetano faz nas belas páginas que nos oferece nesta
publicação.
Antes de me referir propriamente a elas, coisa que farei com
o mesmo gosto que senti ao lê-las, permitam-me uma pequena reflexão com a qual tentarei fundamentar a afirmação com que começo estas linhas.
No momento do seu nascimento, o ser humano é um projeto aberto a inúmeras possibilidades. O seu destino não
está traçado, nem sequer aquilo que lhe é mais próprio,
a sua identidade, está definitivamente adquirida. A sua
existência, como homem ou mulher, requer uma constante atividade através da qual vai construindo a sua condição humana. Neste sentido, uma das notas que melhor o
caracterizam é a sua permanente condição de aprendiz.
O “ofício” de ser homem e mulher corresponde, na verdade,
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a um processo de aprendizagem que tem de ser realizado ao
longo de toda a sua vida.
A capacidade de falar, de expressar e de se expressar constitui uma das características fundamentais da condição humana. O mundo verdadeiramente só se torna o seu mundo
à medida que vai sendo capaz de dizê-lo, do mesmo modo
que a sua vida se humaniza à medida que vai sendo por
ele expressa. A passagem do caos ao cosmos, em todos os
níveis da sua existência, só é possível mediante o uso da
palavra. De facto, todos sabemos, por experiência própria,
que aquilo que de algum modo não somos capazes de dizer
nunca chega a ser verdadeiramente assumido e feito nosso.
A existência humana exige, nesta linha, um constante processo de “empalavramento”, ou, dito de outro modo, «para o
ser humano só existe o que, direta ou alusivamente, é capaz
de expressar, de empalavrar»1.
O facto de falar2 não é pois algo de marginal ou secundário no humano. A sua capacidade “linguística” e “adverbial”
está, para ele, intimamente relacionada com a qualidade
da sua humanidade. Por aquilo a que podemos chamar o
«bom uso da palavra» o ser humano pode percorrer o caminho da sua humanização, pelo contrário, o caminho da
Lluis Duch, Notas para una antropologia de la comunicación, in Estaciones del
laberinto. Ensayos de antropologia, Herder, Barcelona 2004 109. Tomo a categoria
«empalavrar» deste autor catalão, monge beneditino, que ao longo da sua obra
tem também refletido a condição humana a partir da capacidade e do exercício
da palavra.
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Lluís Duch não se refere unicamente à capacidade biológica de falar, mas a um
processo muito mais amplo e mais complexo. O uso da palavra a que se refere
não está simplesmente reduzido à palavra escrita ou falada, ele aponta para mais
longe, para a capacidade e necessidade de expressar e de expressar-se através de
múltiplas linguagens.
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sua desestruturação é uma realidade que advém a partir do
«mau uso da palavra».
Todo este processo revela uma “predisposição responsorial” no ser humano que surge como fazendo parte da sua
constituição. O mundo que o rodeia e a sua própria existência constantemente o interpelam, exigindo uma resposta
que pressupõe a sua capacidade para aprender as várias linguagens com que se diz o humano. Só porque pode aprender essas linguagens, pode responder. No fundo, só porque
pode falar, pode criar caminhos de humanização.
Tudo isto começa no próprio momento do nascimento.
É a partir desse preciso momento que começa a progressiva
instalação da criança no seu mundo e a construção da sua
identidade. Das “semânticas cordiais” que for desenvolvendo e das “competências gramaticais” que for adquirindo depende em grande medida o seu futuro. Da sua capacidade
de falar e de ouvir muito depende o rosto, que vai edificando, da sua humanidade. A palavra não é, neste sentido, um
simples som, imagem ou conceito, um simples conjunto
de dicções sem grande incidência na configuração da vida
quotidiana, pelo contrário, pela palavra ele vai edificando
essa quotidianidade e abrindo-a a todos os horizontes de
possibilidade. Para ele falar é viver, e a vida do “falante”, que
é por excelência o ser humano no concreto da sua história pessoal, constitui-se essencialmente através das relações
responsáveis com os outros, ou seja, através do diálogo.
A construção humana de cada um passa essencialmente
por este diálogo, por esta capacidade de falar e ouvir a partir da qual se vai edificando a si e ao seu mundo.
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A importância da palavra e da dicção como elemento distintivo e estruturante do humano é, também, sublinhada
no âmbito do religioso. Tanto no campo da oralidade como
no campo da escrita, as religiões têm sido, de facto, intermináveis exercícios com as diversas modalidades da palavra
humana. No contexto do Cristianismo, por exemplo, a palavra é utilizada para se referir ao próprio mistério de Deus:
«No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o
Verbo era Deus.» (Jo 1,1) E esta palavra que era no princípio é uma palavra criadora. É por ela que todas as coisas são
feitas. O texto do Génesis testemunha-nos de uma maneira
maravilhosa este falar criador de Deus. O caos transforma-se em cosmo através do dizer de Deus: Deus diz e a realidade acontece.
O próprio ser humano é uma palavra que Deus diz. E a palavra é também um dos atributos mais significativos que
Deus concede ao ser humano, o qual é criado à Sua imagem
e semelhança. O paralelismo é claramente evidente: ele foi
criado pela palavra de Deus, mas tem de concretizar diariamente o seu ofício de ser homem e mulher através do
contínuo exercício da palavra. Tal como o caos do início se
transforma em ordem através da Palavra Criadora, também
o ser humano transforma o mundo sem mais num mundo
por ele habitado (mundo humano) através de um exercício
criador da sua palavra.
É por isso que o viver humano, para ser humano, não se
pode resumir só ao viver.
As páginas que se seguem são claramente um exemplo deste exercício de “empalavramento” que permite humanizar o
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mundo e a vida, de tal modo que este não seja só mundo,
mas se torne mundo humano e esta não seja só vida, mas
possa adquirir os contornos característicos e tipificantes do
viver humano.
Sem ter falado com o autor a respeito da génese deste livro,
sou capaz de imaginar o seguinte itinerário da sua construção. O mundo e as pessoas que o rodeiam e a sua própria
experiência foram-no interpelando, e porque não se contenta só em viver, foi ousando responder a essa mesma interpelação num processo de empalavramento, que num primeiro
momento certamente não foi palavra escrita, pois teve de ser
reflexão acerca da experiência da vida, para depois ser escrita, ser dita, ser ouvida e de novo escrita, agora em forma de
livro, para que outros – espero e desejo que muitos – possam
também usufruir deste Desassossego do pensamento.
Mais do que um simples exercício de escrita, julgo que o
que aqui podemos encontrar é verdadeiramente este exercício de humanização da vida, do mundo e da história. A um
ritmo que acompanha os grandes acontecimentos da vida,
o Paulo Caetano oferece-nos, como o próprio diz, «um espaço que pretende ser lugar de tranquilidade, de palavras
cheias de luz, de amizade e de força, para todos quantos nos
ouvem». No nosso caso, para todos quantos o lerem.
Penetremos, pois, nesse espaço. E, «já agora, encaremos
cada dia que se inicia como nova oportunidade de aprender
coisas para a mente, mas também para o coração».
Juan Ambrósio
Professor de Teologia da UCP
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