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A RETOMADA DO CONCEITO DE OPRESSÃO POR MEIO DOS CATIVEIROS DAS MULHERES DE MARCELA LAGARDE – QUESTÕES PARA DEBATE Edla Eggert PPGEDU Unisinos Núcleo de Pesquisa de Gênero, NPG da EST Marcia Paixão Núcleo de Pesquisa de Gênero, NPG da EST Resumo Apresentamos os conceitos de opressão e cativeiros da autora Marcela Lagarde y de Los Rios e aproximamos Paulo Freire por entendermos que esse autor partilha de proximidades conceituais críticas. Ensaiamos dúvidas e simultaneamente concordâncias com Lagarde. Analisamos que ler autores como esses possibilitam discutir a busca por mudanças, lugar pisoteado pela área da educação, lugar esse construído como entendimento esperançoso da vida. simultaneamente nos remetemos às limitações que se nos apresentam, isto é, afirmações categóricas dessa autora que ficam reféns da vida que nos obriga ao revés. Indicamos a ambiguidade que des(loca) a madresposa e a puta, com todas as outras parceiras (monjas, presas e loucas) como possibilidades criadoras de uma outra erótica. Palavras-chave: Opressão. Cativeiro. Madresposa. Ambiguidade. Erótica. Taking up the concept of oppression through Cativeiros das Mulheres (Women’s Captivity) by Marcela Lagarde – issues for debate We present the concepts of oppression and captivity according to Marcela Lagarde y de Los Rios and approximate them to Paulo Freire, understanding that this author shares critical conceptual proximities. We rehearse doubts and simultaneously concordances with Lagarde. We analyze that reading authors like these enable the search for change, a space treaded in the Education Field, which is built as hopeful understanding of life. Simultaneously we refer to the limitations presented to us, i.e., categorical statements made by this author (Lagarde) which remain hostage by the life that requires from us the other side. We point out the ambiguity which de(locate) the madresposa and the whore, along with all the other partners (female monks, prisoners and the mad) as creative possibilities of another erotica. Keywords: Repression – Captivity – Madresposa – ambiguity - Erotica INTRODUÇAO O livro da antropóloga e etnóloga Marcela Lagarde y de Los Rios, Los cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas é pouco conhecido nos círculos de estudos de gênero brasileiros. Não se sabe ao certo se esse fato deve-se ao volume que é significativo (884 p. e em letras miúdas!) e, por isso assusta num tempo que estamos direcionadas a ler artigos de, no máximo 25 paginas, ou se pelo fato de o livro não ser trazido para o português. O fato é que no Brasil esse texto é pouco conhecido. A primeira edição do livro é do ano de 1990 e a quinta edição de 5ª edição de 20051. Nosso grupo de Pesquisa do NPG (vinculado ao Conselho Nacional de Pesquisa - CNPq) teve, por meio desse livro o impacto que, para muitas mulheres o livro de Simone de Beavouir proporcionou nas décadas de 60 e 70: um estado de reflexão e crise geradora de desassossegos. Antes de chegar ao NPG, por meio de leituras sistemáticas nos anos de 2010 e 2011, o livro circulou na Pratica de Pesquisa coordenada por Edla Eggert no Programa de Pós-graduação em Educação da Unisinos nos anos de 2006, 2007 e 20082. É uma obra de consulta lenta. Exige que deixemo-nos revivar desde dentro de nós mesmas e pede um debate atento na atual conjunta entre tantos debates e opções teóricas presentes na academia. Acreditamos que um livro é capaz de fazer isso! Assim que esse artigo tem por objetivo apresentar e discutir alguns dos conceitos e em especial o da opressão por meio do conceito chave do livro que são os cativeiros: o das madresposas, o das presas, o das monjas, o das putas e o das loucar. O conceito das madresposas é reinventado todos os dias por meio da aprendizagem sistemática de que somos sempre de “alguém e para os outros” e que, segundo Lagarde, atravessa os cinco cativeiros. Uma introdução ao conceito de opressão e cativeiro de Lagarde 1 Marcela Lagarde Marcela Lagarde y de los Ríos, (1948) mexicana, etnóloga e doutora em antropologia. Professora de Pós-graduação em Sociologia e em Antropologia na Universidade Nacional Autónoma do 2 Naquele tempo, as doutorandas Aline Lemos Cunha e Marcia Alves e o doutorando Carmo Thum, hoje respectivamente docentes na UFRGS, UFPel e FURG, juntamente com as mestrandas Graciela Cornaglia, Graziela da Rosa Rinaldi estimularam o estudo da obra tentando fazer uma resenha que segue em aberto, pois concluímos ser praticamente impossível resenhar essa obra. A opção passou a ser escrever artigos apresentandos alguns conceitos o de trabalho e madresposa em Eggert e Silva (2010) e o presente sobre opressão e cativeiros. A apresentação escrita por Graciela Hierro possibilita a quem lê perceber que há uma cumplicidade nas propostas de estudar as mulheres em carne e osso e as mulheres em textos já publicados e ainda muito pouco lidos. Ela anuncia que “descobrir nossos cativeiros é o primeiro passo para abandoná-los” (HIERRO, in. LAGARDE, 2005, p.10). Esse é o exercício constante em todas as páginas dessa obra: descobrir cativeiros, abrir com o argumento da palavra os cadeados bem polidos das mães-esposas, das monjas, das putas, das presas e das loucas. Lagarde conceitua uma Antropologia da Mulher e defende a ideia justificando que há algo novo nesta proposta: o fato de que esta definição no singular se ocupe das mulheres como protagonistas da história, da cultura e de que as mulheres, em sua diferença, possam observar-se, explicar-se e, talvez, interpretar-se a partir de enfoques antropológicos que contribuam para erradicar sua opressão. Define Antropologia da Mulher dizendo que (…) lejos de conformar un cuerpo de leyes y un modelo cerrado y acabado, la antropología de la mujer es una perspectiva filosófica que ha de incorporar conocimientos de la economía, la biología, la antropología, la sociología, el psicoanálisis y cualesquiera otras disciplinas. (LAGARDE, 2005, p.60). Num sub-capítulo chamado Escisión genérica, condición y situación, Marcela Lagarde discute duas divisões relativas aos gêneros: um desconhecimento que existe entre homens e mulheres e outro: o das próprias mulheres entre si, o qual é corroborado por fatores como classe social, nacionalidade, concepção de mundo, idade, língua, tradição histórica própria, costumes, etc. Lagarde também aborda a questão de mulher como sujeito histórico e sujeito do conhecimento, corroborando a necessidade de uma antropologia da mulher, onde as questões vinculadas aos diversos aspectos relativos aos seres humanos sejam observados a partir das diferenciações provocadas pelos gêneros. A partir de Franca Basaglia, Marcela vai discutir que “la historia de la mujer como género, há sido hasta ahora la de un ser-de-los-otros” (p.64), refletindo sobre as atribuições dadas ao corpo feminino: procriar e pertencer aos homens, ou seja, ser de alguém e para os outros. Lagarde denomina La condición de la mujer, citando Simone de Beauvoir: não se nasce mulher e sim nos tornamos mulheres. Analisa que a condição feminina foi produzida historicamente, longe de ser sua natureza. Ao abordar a situação, as categorias e o método reflete sobre as diferentes situações vividas pelas mulheres, as quais fazem com que os níveis de opressão sejam diferenciados, embora compartilhem, no que diz respeito ao gênero, da mesma condição. Salienta que os termos a mulher e as mulheres são diferentes e que nem um é plural do outro, pois “son categorias com significados específicos y se refierem a distintos niveles de representación” (2005, p. 80). Quando trata da mulher destaca o caráter mais geral do termo, referindo-se, portanto, ao gênero feminino e sua condição histórica. Descreve os constitutivos da mulher, ou seja, a sexualidade, sua relação com os outros e com o poder. Ao analisar as Mulheres destaca que se trata das particularidades de cada uma, ou seja, do conteúdo de sua existência social singular, o que também as aproxima, por semelhança, com outras mulheres. Aborda as origens da opressão feminina e destaca as superações desta condição realizadas cotidianamente pelas mulheres. Afirma que o feminismo contribuiu, significativamente, para que fossem percebidos os antagonismos gerados a partir das diferenciações dos gêneros, destacando que mulheres não são opostos de homens. Lagarde argumenta que o feminismo é uma crítica da cultura e uma cultura nova. Para a autora, a categoria de patriarcado surge como parte da criação das utopias socialistas e feministas. Ou seja, ao nosso ver a autora mantem essa categoria e afirma que a análise de Engels se faz mais completa com a diferenciação classista das mulheres que permite evidenciar tanto sua condição comum como as diferenças em sua opressão. Cita Alexandra Kolontai que considera ser a pensadora que articulou o debate entre propriedade, família e Estado como base do patriarcado. A partir da obra de Zilla Eisenstein mostra que, para entender a opressão da mulher, é necessário examinar as estruturas de poder da sociedade, sendo essas identificadas como sendo a estrutura de classes capitalistas, a ordem hierárquica dos mundos masculino e feminismo do patriarcado e, ainda, a divisão racial de trabalho que se pratica de uma forma muito particular dentro do capitalismo porém que com raízes pré-capitalistas na escravidão. Assim, o patriarcado capitalista enquanto sistema hierárquico explorador e opressor recorre da opressão racial e da opressão sexual e de classe. As mulheres compartilham a opressão sexual uma com as outras, porém o que compartilham é diferente segundo as classes e as raças. Para Lagarde “El patriarcado es uno de los espacios históricos del poder masculino que encuentra su asiento en las más diversas formaciones sociales y se conforma por vários ejes de relaciones sociales y contenidos culturales” (p.91). Procura identificar o patriarcado, afirmando que esse se caracteriza por um antagonismo de gênero, aliado a opressão das mulheres e ao domínio dos homens e de seus interesses; pela exclusão do gênero feminino e, ainda, pelo fenômeno cultural do machismo, baseado tanto no poder patriarcal, como na inferiorização e na discriminação das mulheres. A autora desenvolve uma teoria da opressão da mulher. Lagarde afirma que “las sociedades patriarcales de clases encuentran en la opresión genérica uno de los cimientos de reproducción del sistema social y cultural en su conjunto” (p.95). Daí afirma que nenhuma teoria existente – nem a teoria da luta de classes – é suficiente para dar conta dos fenômenos políticos que são gerados com a opressão das mulheres. Assim, defende a constituição de um marco teórico específico. Na tentativa de criação desse marco teórico, procura definir a opressão feminina, afirmando que “la opresión de las mujeres se define por un conjunto articulado de características enmarcadas en la situación de subordinación, dependencia vital y discriminación de las mujeres en sus relaciones com los hombres, en el conjunto de la sociedad y en el Estado” (p. 97). Além disso, procura caracterizar as formas de expressão da opressão masculina dominante, quando diz que “la opresión de las mujeres se expresa y se funda en la desigualdad económica, política, social y cultural de las mujeres”(p.98). Nesse processo de caracterização da opressão3 ao qual as mulheres vivem e naturalizam, Marcela Lagarde (2005) afirma que não existe um único processo de opressão, mas que a opressão pode se expressar de diferentes modos. No entanto, afirma que todas as mulheres sofrem um processo de dupla opressão pelo capital, perante os homens e perante o conjunto da sociedade e do Estado, que as colocam em uma posição de subordinação, discriminação e dependência, se traduzindo na constituição de produtoras subordinadas ao capital e sujeitas ao poder patriarcal , através da dominação masculina. A autora demonstra como se desenvolve o processo de dupla opressão em algumas categorias de mulheres trabalhadoras, especificamente, o que denomina de produtoras diretas - que são as que trabalham na agricultura, no artesanato, nas 3 Manteremos o termo opressão tendo consciência das implicações do mesmo. A opressão, no caso do que temos estudado até o momento nessa autora, possui uma compreensão ampliada e simultânea, ou seja, as mulheres ao mesmo tempo em são “oprimidas” seguem oprimindo ao manterem a lógica patriarcal por meio de poderes que lhes são concedidos na medida em que cumprem com seu legado de serem zelosas nessa manutenção. atividades domésticas e, inclusive, na comercialização de alguns produtos; as assalariadas e, ainda se refere, às mulheres indígenas, as quais afirma que estão submetidas não a uma dupla opressão, mas a uma tripla opressão porque, além da opressão de gênero e de classe social, se soma a opressão étnico/racial. No caso específico na realidade brasileira podemos acrescentar as mulheres afro-brasileiras e indígenas em especial. A autora enfatiza a opressão como cativeiro atual para as mulheres. A palavra cativeiro nos remete ao passado, à prisão, a práticas excludentes de séculos passados. Escrever cativeiro parece até “absurdo” em pleno século XXI, onde a tecnologia avança assustadoramente e tudo se transforma rapidamente. É possível dizer que o acesso à informação é em tempo real, a liberdade de expressão ganhou o seu espaço, a democracia faz parte dos discursos em todos os campos, a escravidão não existe mais, as mulheres avançaram em todos os níveis, os direitos humanos ganharam força mundial, etc. Dessa forma, fica-se com a impressão de que é obsoleto analisar a opressão e a dominação. É como se a palavra cativeiro não combinasse com a hipermodernidade de nossos tempos. Porém, o cotidiano revela várias formas e práticas que denunciam explicitamente e veladamente que os cativeiros ainda existem nos modos de ser da vida em sociedade. Os avanços e alguns acessos dos novos tempos maquiam os cativeiros e a opressão, pois alguns avanços sociais vistos de um modo geral tornam invisíveis, superficiais e marginais as especificidades da opressão. Ao apresentarem um artigo sobre o trabalho e a categoria das madresposas, Eggert e Silva (2010) discutem a importância de manter o tema da opressão compreendendo que esse conceito ainda não foi suficientemente debatido4. Em especial pela complexidade dessa opressão que, em Lagarde, é consequência do cativeiro madresposa por meio de um modo muito peculiar: a servidão voluntária. Lagarde traz o aspecto da especificidade da opressão das mulheres. E, nesse exercício, nomeia as opressões que mantém cativas as mulheres ainda hoje. Ela entende opressão como um conjunto articulado de características que colocam as mulheres em 4 Basta observarmos as letras das músicas de maior sucesso nas temporadas em nosso país como a que varreu o mundo por meio do cantor Michel Teló “ai se eu te pego”, ou anteriores a essa como um “tapinha não dói”, ou ainda, se visitarmos os templos desde os mais tradicionais das Igrejas Cristãs como as versões mais atualizadas que são as neo-pentecostais e veremos e ouviremos os discursos mais androcentricos e sexistas ensinando modos de ser de mulheres e homens indicando a tradição de longa data. situações de subordinação, de dependência e de discriminação em suas relações com os homens, com o Estado e com a sociedade. A opressão as torna objeto “corpo-paraotros” (LAGARDE, 2005, p. 99). A sociedade as repudia, despreza e maltrata. Cativas, as mulheres ficam subordinadas, dependentes e encaram a inferiorização como algo prescrito para elas. Pensar sobre os cativeiros existentes é possibilitar construir um novo paradigma que se abre via cultura, via teoria e práticas na intenção de superar os cativeiros vividos pelas mulheres. O eixo específico abordado por Lagarde em relação à opressão das mulheres trata da dor, do medo, da servidão e da impotência vivida pelas mulheres cativas no mundo patriarcal. Analisando as formas diversas de inferiorização e de discriminação que excluem as mulheres seletivamente de diversos espaços, atividades e poderes são possíveis perceber seus cativeiros. Cativas, as mulheres se tornam dependentes, submissas, alienadas e vivem para os outros. Dessa forma, são construídos socialmente os atributos da feminilidade. Lagarde esclarece esse aspecto dizendo que Conformadas como parte de los otros, las mujeres buscan ligarse a algo em fusión perpetua. De esta manera el impulso que mueve a La existencia y que da sentido a La vida de las mujeres es La realización de La dependencia: estabelecer vínculos con los otros, lograr su reconocimiento y symbiotizarnos. Estos processos conflyen en uma enorme garantia patriarcal: la sociedad dispone de las mujeres cautivas para adorar y cuidar a los otros, trabajar invisivelmente, purificar y reiterar el mundo, y para que lo hagan de manera compulsiva: por deseo propio (LAGARDE, 2005, p. 17). Esse conjunto de fenômenos opressivos que Lagarde elenca: expropriação, subordinação, inferiorização, dependência definem a sexualidade, as atividades, o trabalho, as relações sociais, as formas de participação no mundo e a cultura das mulheres. Assim formatadas, os limites e as possibilidades de vida das mulheres são reduzidos aos cativeiros. Os cativeiros têm suas normas, instituições, modos de vida e cultura. Esses fenômenos acontecem em círculos vitais e esses são denominados por Lagarde de cativeiros (LAGARDE, 2005). Para la mayoría de las mujeres la vivencia del cautiverio significa sufriemiento, conflitos, contrariedades y dolor; pero hay felices cautivas. En otras palavras, la felicidade feminina se construye sobre la base de la realización personal del cautiverio que, como expresión de feminidad, se asigna a cada mujer. De ahí que, más allá de su consciencia de su valoración y de su afectividad, y en ocasiones en contradicción con ellas, todas mujeres están cautivas por el solo hecho de ser mujeres en el mundo patriarcal. (...) el cativeiro define politicamente a las mujeres, se concreta en la relación específica de las mujeres con el poder, y se caracteriza por la privación de la liberdad, por la opressión (LAGARDE, 2005, p. 36-7). Dessa forma, as mulheres sobrevivem em cativeiro como resultado de sua condição social e cultural no mundo patriarcal. As mulheres são diversas como são diversos seus cativeiros (LAGARDE, 2005). Ou seja, para Lagarde, pelo menos no tempo em que escreveu seu livro e em parte pelo que se pode constatar das publicações mais atuais, as mulheres ainda não possuem liberdade. A liberdade é geradora do “protagonismo de los sujeitos en la historia, y de los particulares (a relação com os outros) en la sociedade y en la cultura”. (LAGARDE, 2005, p. 37) A relação entre a condição da mulher e sua situação de vida permitiu que Lagarde agrupasse as mulheres na sociedade e na cultura a partir de tipologias antropológicas. Essas tipologias fazem parte dos círculos vitais das mulheres e podem ser chamados de cativeiros. No cativeiro, há cinco categorias e essas são suas características (LAGARDE, 2005. p.38-41; 363; 365; 463; 641; 687; 694): Madresposas = definida pela sexualidade, relação de dependência com os outros por meio da maternidade, da filialidade e conjugalidade/casamento. A realização normativa reconhecida culturalmente se dá pela maternidade e conjugalidade. É possível ser madresposa sem marido ou filhos. Há mulheres que são esposas de seu pai, mães de seus irmãos, mães de seus amigos, etc. Ser madresposa significa ser-para e de-outros, realizar atividades de reprodução e ter relações de servidão voluntária. Assim, seu espaço de maternidade, de mãe e de mulher é na família; Monjas = não procriam e nem se vinculam aos outros a partir do serviço erótico. Não têm marido nem filhos, mas são mães universais e estabelecem o vínculo conjugal sublimado com o poder divino. A relação religiosa é uma relação de sujeição dependente e servil a outro todo-poderoso e adorado. A negação do corpo, do Eros e da sexualidade se transfere para suas ações onde se dão para os outros; Putas = elas se especializam social e culturalmente na sexualidade proibida, negada e sublimada. O erotismo é para o prazer dos outros (serde-outros). São consideradas mulheres do mal, pois atuam com o erotismo feminino no mundo que faz as madresposas virgens, boas, deserotizadas, fiéis, castas e monogâmicas. Encarnam a poligamia feminina e são objeto da poligamia masculina. Seu corpo lembra erotismo e o ser-de-outros se expressa na disponibilidade de usar seu corpo por homens diversos, sem com isso estabelecer vínculos permanentes com eles. Presas = simbolizam a prisão genérica de todas (material e subjetiva). A casa é presídio, é encerramento, é privação de liberdade em seu próprio espaço vital. O extremo da prisão é o aprisionamento das instituições de poder. Sua prisão é exemplar e pedagógica para as demais mulheres. Loucas = atuam a partir da racionalidade masculina, mas a loucura também é um espaço cultural de transgressão feminina. As mulheres enlouquecem de tão mulheres que são e porque não podem ser plenamente. A loucura genérica emerge de sua sexualidade e da sua relação com os outros. São as instituições (família, hospital, tribunal e os indivíduos do poder: familiares, vizinhos, amigos, chefes, médicos) quem define e decide quais mulheres estão loucas e quais não. O poder decide quem fica fora (livre) e quem deve fica encerrada (PAIXÃO, 2011). Dessa forma, casa, convento, bordel, prisão e manicômio são os lugares específicos dos cativeiros das mulheres. A sociedade e a cultura compulsivamente empurram as mulheres a ocupar um desses espaços e, em certas ocasiões, mais de um espaço ao mesmo tempo (LAGARDE, 2005). Na condição de cativas e privadas de sua liberdade, as mulheres se encontram numa situação de dependência vital. São as instituições de poder quem as obrigam a cumprir com o mandato de ser subordinadas à cultura classista e patriarcal. Lagarde explica que o poder privado acontece nas instituições domésticas e é reproduzido pelas próprias “protagonistas”. A ideologia amorosa (do amor “incondicional”) consagra o ser para os outros ensinado às mulheres. Dessa forma, Por el amor las mujeres disponen su vida para los otros. El amor de la mujer es otorgado en exclusiva a los miembros del grupo doméstico; si éste se reduce, se reducen las possibilidades amorosas de las mujeres. La mujer no es solo monógama sino monoamorosa y debe ser monomadre. Para la mujer amor es renuncia y entrega, tiene significado casi exclusivo de ser-de-otros; para el hombre por el contrario, es posesión y uso de otros (otras). La vida de la mujer está organizada en torno a la vivencia de uma sexualidad destinada para. Como ciudadana o como fiel, como hija o como esposa, como madre e como prostituta, el poder atraviesa el cuerpo de la mujer. En el lenguaje laico y estatal se controlo su fecundidad, su fertilidad es um asunto de política demográfica; en el lenguaje doméstico del amor y del poder se hace referencia a la fidelidad, a la castidad, la virgindad, o a la permanente disposición a la maternidad o al placer del outro (LAGARDE, 2005, p 161-2). Ser de alguém e para os outros é uma criação histórica, uma imposição às mulheres e esse conjunto de condições torna as mulheres reféns dos cativeiros sociais gerando. Como a opressão de Gênero está ativa no mundo, os cativeiros ainda estão vigentes. Freire e Lagarde - Um encontro de possibilidades Trazemos para essa tela outro personagem caro para nós: Paulo Freire. Na obra de Paulo Freire que retratou a opressão e a dominação no campo educativo e social e a necessidade de superá-las, Lagarde tece argumentos sobre a dominação masculina plenamente identificáveis no cotidiano dos nossos dias, com a constatação da dificuldade de superá-las. Freire, diferente de Lagarde, não se ateve às dominações específicas e não aprofundou o aspecto da opressão e dominação vivida pelas mulheres5. Paulo Freire (1983) abordou a temática da opressão com muita intensidade em seu livro Pedagogia do Oprimido. Partiu da premissa de que a libertação da pessoa é o foco da educação emancipatória. Trouxe à tona o conceito opressão em relação às formas de dominação social, política, educativa, econômica e subjetiva. No horizonte das relações igualitárias está a nova pessoa libertada, agindo a partir do pressuposto de igualdade, de respeito e de cidadania. Nesse sentido, trazer sua abordagem para dialogar com o tema cativeiro corrobora para inverter a lógica da dominação ainda existente nas relações sociais. Nesse texto específico, Freire pontuou que a opressão é o que faz alguém ser menos. E esse ser menos diz respeito àquilo que foi aviltado de alguém e que, por isso, faz da pessoa um objeto colocando-a nos lugares de difícil acesso de cidadania, de 5 Freire retoma a questão do seu machismo no livro A Pedagogia da esperança (1992, p.66-68), em que lembra que foi advertido pelas feministas de vários países que o leram, sobre a sua visão machista de mundo e Eggert (2010) procura fazer uma analise dessa memoria e levanta suspeitas do porque Freire não deu nome para as feministas que ele diz terem escrito para ele. inclusão, de vida digna. Quando se está nesse estado anestesiado de consciência, acredita-se na naturalização da opressão, nos lugares hierárquicos dominantes - “uns nasceram para mandar e outros para obedecer; pobre nasceu para sofrer; negro não presta; mãe tem que padecer no paraíso,” como nos dizem alguns ditados populares – instituindo, assim, a naturalização de cativeiros. Esse conceito pode ser considerado o ponto inicial dos diferentes tipos de opressão, dos quais ambos os textos, de Lagarde e de Freire, têm falado e que de certa forma demonstram que as pessoas vivem em cativeiros. O que faz alguém vivenciar a opressão, destituída de sua humanidade ou que carregue em si os pressupostos opressores como forma hierárquica dominante e “normal” de relação social? Esses pressupostos são construídos e impostos sutilmente às pessoas. Assumi-los consciente ou inconscientemente tem a ver com as dualidades nos modos de ser. Superar a opressão requer um dar-se conta de que simultaneamente hospedamos a opressão. Freire pontua esse dilema humano quando diz que O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” ao opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo (FREIRE, 1983, p. 32-3). Opressão e liberdade são conceitos e práticas opostas, mas a linha divisória é tênue entre as duas. Freire (1983) usa o termo aderência (p. 33, 34, 201) para falar da identificação do oprimido com o opressor. A aderência é uma visão distorcida do seu ser sujeito e, ao distorcer a imagem de si, torna a visão de si individualista, sem consciência, naturalizando a dominação como norma. A aderência é o desejo de parecer com o opressor ou opressora. Esse status mantém a pessoa na inclusão subordinada (KUENZER, 2006) sem que esta se dê conta. Não se pode negar que há inconscientemente o medo da liberdade e de tudo aquilo que vem com ela: autonomia, protagonismo, cidadania, justiça, alteridade, etc quando se vislumbra uma mudança de posição. Há um certo “conforto” (por mais irônico e perverso isso pareça) em manter-se na alienação. Esta posição ou postura acrítica faz com que as pessoas busquem a sua “revolução privada” (FREIRE, 1983, p. 34), do mesmo modo como fazem os opressores, iludindo a si e aos outros que estão fazendo “revolução” coletiva. Buscam o bem para si num discurso de bem comum estando, muitas vezes, em grupos ou manifestos que lutam pelo bem comum, pela justiça social. Dessa forma, é difícil discernir liberdade de aderência opressora. O que conseguimos perceber ao fazer relações entre Lagarde e Freire é que há semelhanças no conceito de opressão, mas que tanto ser feliz no cativeiro quanto aderir ao opressor são modos de aprender a fazer caminhos possíveis. Podemos chamar isso de insurgência, conformismo, resistência e talvez seja tudo isso simultaneamente. O fato é que nesse processo seguimos tramando possibilidades e nos parece que a percepção de que há uma sofisticação iminente que não pode ser desconsiderada: são as ambiguidades acertadamente indicadas por Beauvoir (1947). Essas são cruciais na vida das madresposas nos dias de hoje. O desdobrável nas mulheres – as madresposas Com licença poética, Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos — dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou. (Adélia Prado, 1976) Ao que parece as mulheres são um espécie ainda envergonhada, e seguem sua servidão voluntaria porque tergiversam, negociam e mediam pequenas liberdades, conseguindo com isso ser felizes em seus cativeiros! Porque melhor algumas conquistas do que nada! Será que é isso a que estamos fadadas a comemorar? Voltamos ao cheque mate das muitas feministas que já afirmaram ser necessário ir à raiz! Romper de uma vez por todas, não ceder. Isso porém não é viável quando vivemos, segundo Nelson Rodrigues, -a vida como ela é?6 Na vida de fato como ela é seguimos sendo desdobráveis. E o amor segue sendo a incógnita identificada por Lagarde como o sustentáculo das mulheres. El ámbito conyugal está destinado social y culturalmente para la vivencia del amor y se norma por etapas: el enamoramiento en el noviazgo y el amor en el matrimonio. También está normado en las relaciones negativas como el amasiato, al que se supone fundamentalmente de amor erótico, ‘apasionado’. Así el contenido de la felicidad de la mujeres es la experiencia amorosa, y es evidente que el sentido de la vida de la mayoría de ellas es la realización del amor. La cantidad de trabajo invisible realizado por las mujeres, las energías vitales destinadas a cuidar y a acoger a los otros, el cuidado permanente de ellas mismas para ser mejores objetos, y la tolerancia a la servidumbre voluntaria, no son gratuitas. Las mujeres movilizam sus capacidades y sus energías vitales en busca de la realización del deseo: de vivenciar el amor. (LAGARDE, 2005, p.440) O que gostaríamos de ver apreciado com base na experiência da vida como ela é compõe o que a autora enuncia no entremeio da citação acima, ou seja, de que existem as relações negativas, portanto há indícios de uma erótica, mesmo que também eivada pelo desejo de amor, mas há uma situação desdobrável. A aprendizagem erótica das putas mistura-se com a da santidade das madresposas. Essa talvez seja a ambiguidade desejada para que vida seja suportável e siga sendo vivida. A percepção de que ‘gastamos’ muita energia vital com devaneios amorosos é contundente e pronuncia, no dizer da autora, a sequencia da servidão voluntária. Essa é sem duvida uma chamada forte para que as mulheres busquem tomar distância dos seus próprios sentimentos fazendo um exercício pouco comum nesse campo sentimental, ou seja, pensar sobre o que se sente. A razão não descarta o sentimento e vice-versa. 6 Esse era o título da coluna escrita por Nelson Rodrigues, publicada seis dias por semana, entre 1951 e 1961, no jornal carioca Última hora. Ao longo do artigo buscamos apresentar alguns conceitos da autora Marcela Lagarde y de Los Rios, aproximamos Paulo Freire com o qual entendemos partilhar de proximidades conceituais críticas e fomos aos, poucos ensaiando dúvidas e simultaneamente concordâncias com a autora. Percebemos que ler autores como esses possibilitam discutir a busca por mudanças, lugar pisoteado pela área da educação e que nos encaminha para um entendimento esperançoso da vida. Mas também nos remete às limitações que se nos apresentam, isto é, afirmações categóricas reféns da vida que nos obriga ao revés. Portanto a ambiguidade que des(loca) a madresposa e a puta, com todas as outras parceiras (monjas, presas e loucas) como possibilidades criadoras de uma outra erótica. É um exercício pronto para ser questionado. Refêrencias bibliográficas BEAUVOIR, Simone de. Moral da Ambigüidade, Rio de janeiro, Ed. Paz e Terra, 1947. Vol. 34. EGGERT, Edla; SILVA, Marcia Alves da. O ‘dentro’ e o ‘fora’ do trabalho feminino: entre os papéis de mãe, esposa e trabalhadora. Educação Unisinos, Vol. 14, n. 1, p.5965, janeiro/abril 2010. EGGERT, Edla. Mulher/Homem (relações de gênero, relações dignas). In. STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime J. (org.) 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